Livro Das Moradas Ou Castelo Interior

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  • 8/6/2019 Livro Das Moradas Ou Castelo Interior

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    LIVRO DAS MORADAS ouCASTELO INTERIOR

    Santa Teresa de Jesus

    Este tratado, chamado Castelo interior, escreveu Teresa de Jesus, freira de nossaSenhora do Carmo, para suas irms filhas, as freiras Carmelitas Descalas.

    Indice Geral

    JHS PRIMEIRAS MORADAS SEGUNDAS MORADAS TERCEIRAS MORADAS QUARTAS MORADAS QUINTAS MORADAS SEXTAS MORADAS STIMAS MORADAS EPLOGO

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    JHS

    1. Poucas coisas, das que me tem mandado a obedincia, se tornaram todificultosas para mim como escrever agora coisas de orao; primeiro, porque meparece que o Senhor no me d nem esprito nem desejo para o fazer; depois, porter a cabea, h trs meses, com um zumbido e fraqueza to grande, que, at sobrenegcios urgentes, escrevo a custo. Mas, entendendo que a fora da obedinciacostuma facilitar coisas que parecem impossveis, a vontade determina-se a faz-lode muito bom grado, ainda que a natureza se aflija muito; porque o Senhor no medeu tanta virtude, para que o pelejar com a enfermidade contnua e com muitas evariadas ocupaes se possa fazersem grande contradio sua. Faa-o Ele, quetemfeito outras coisas mais dificultosas para me fazer merc, e em cuja misericrdia

    confio.

    2. Creio bem que pouco mais hei-de saber dizer do que j disse em outras coisas,que me mandaram escrever, antes temo que ho-de ser quase sempre as mesmas:porque, como os pssaros a quem ensinam a falar, no sabem mais do que lhesensinam ou eles ouvem, e isto repetem muitas vezes, assim sou eu ao p da letra.Se o Senhor quiser que eu diga algo de novo, Sua Majestade o far ou ser servidotrazer-me memria o que de outras vezes disse, e que at com isto mecontentaria, por t-la to m que folgaria em atinar com algumas coisas, que dizemque estavam bem ditas, caso se tivessem perdido. Se nem mesmo isso me der o

    Senhor, com me cansar e acrescentar o mal de cabea, por obedincia, ficarei comlucro, embora do que disser, no se tire nenhum proveito?

    3. E assim comeo a cumpri-la hoje, dia da Santssima Trindade, ano de 1577,neste mosteiro de S. Jos do Carmo em Toledo, onde estou presentemente,sujeitando-me em tudo o que disser ao parecer de quem mo manda escrever, queso pessoas de grandes letras. Se alguma coisa disser que no v conforme ao queensina a Santa Igreja Catlica Romana, ser por ignorncia e no por malcia. Istose pode ter por certo e que sempre estou e estarei sujeita, por bondade de Deus, e otenho estado, Santa Igreja. Seja para sempre bendito e glorificado! Amen!

    4. Disse-me quem me mandou escrever, que estas freiras destes mosteiros deNossa Senhora do Carmo tm necessidade de que algum lhes declare algumasdvidas de orao, e lhe parecia que melhor entendem as mulheres a linguagemumas das outras. Com o amor que me tm, lhes faria mais ao caso o que eu lhesdissesse e, por esta razo, entendia ter alguma importncia se se acertasse a dizeralguma coisa e, por isso, irei falando com elas naquilo que escrever, porque parecedesatino pensar que pode fazer ao caso a outras pessoas. Grande merc me far oSenhor, se a alguma delas aproveitar para O louvar um poucochinho mais. Bem

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    sabe Sua Majestade que eu no pretendo outra coisa; e bem claro que, quandoatinar a dizer alguma coisa, elas entendero que no meu, pois no h razo para

    isso, nem to-pouco tivera eu entendimento e habilidade para coisas semelhantes;se o Senhor, por Sua misericrdia no mos desse.

    PRIMEIRAS MORADAS

    CAPTULO l. Trata da formosura e dignidade das nossas almas. Pe uma comparao para seentender e diz o lucro que h em entend-la e saber as mercs que recebemos de Deus, e como aporta deste castelo a orao.

    1. Estando eu hoje suplicando a Nosso Senhor que falasse por mim, porque eu noatinava com coisa que dissesse, nem como comear a cumprir a obedincia,ofereceu-se-me o que agora direi para comear com algum fundamento. considerar a nossa alma como um castelo todo ele de um diamante ou mui clarocristal, onde h muitos aposentos, assim como no Cu h muitas moradas. Que sebem o considerarmos, irms, no outra coisa a alma do justo, seno um parasoonde Ele disse ter Suas delcias. Pois, no isso que vos parece que ser o

    aposento onde um Rei to poderoso, to sbio, to puro, to cheio de todos os bensse deleita? No encontro eu outra coisa com que comparar a grande formosura deuma alma e a sua grande capacidade; na verdade, os nossos entendimentos, poragudos que sejam, mal podem chegar a compreend-la, assim como no podemchegar a considerar a Deus, pois Ele mesmo disse que nos criou Sua imagem esemelhana. Pois, se isto assim , como , no h razo para nos cansarmos aquerer compreender a formosura deste castelo; porque, ainda que haja diferenadele a Deus como do Criador criatura, pois criatura, basta dizer Sua Majestadeque a alma feita Sua imagem, para que possamos entender a grande dignidade eformosura da alma.

    2. No pequena lstima e confuso que, por nossa culpa, no nos entendamos ans mesmos, nem saibamos quem somos. No seria grande ignorncia, minhasfilhas, que perguntassem a algum quem era e no se conhecesse, nem soubessequem foi seu pai, nem sua me, nem sua terra? Pois, se isto seria grande estupidez,sem comparao maior a que h em ns quando no procuramos saber que coisasomos e s nos detemos nestes corpos; e assim, s a vulto sabemos que temosalma, porque o ouvimos e porque no-lo diz a f. Mas, que bens pode haver nestaalma ou quem est dentro dela, ou o seu grande valor, poucas vezes o

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    consideramos; e assim se tem em to pouco procurar com todo o cuidado conservarsua formosura. Tudo se nos vai na grosseria do engaste ou cerca deste castelo; que

    so estes corpos. 3. Consideremos agora que este castelo tem, como disse, muitasmoradas: umas no alto, outras em baixo, outras aos lados; e, no centro e meio detodas estas, tem a mais principal onde se passam as coisas mais secretas entre Deuse a alma. mister que fiqueis esclarecidas por esta comparao; talvez seja Deus servidoque eu possa por ela dar-vos a entender alguma coisa das mercs que Ele faz salmas e as diferenas que h entre elas, at onde eu tiver entendido que possvel;que, todas, ser impossvel entend-las algum, pois so muitas, e quanto maisquem to ruim como eu! Pois ser-vos- grande consolo, quando o Senhor vosfizer essas mercs, saber que coisa possvel e, a quem Ele as no fizer, para

    louvarem Sua grande bondade. Assim como no nos faz dano considerar as coisasque h no cu e o que nele gozam os bem-aventurados, antes nos alegramos eprocuramos alcanar o que eles gozam, to pouco nos far dano ver que possvel,neste desterro, comunicar-se um to grande Deus a uns vermes to cheios de mauodor e am-los com uma bondade to boa e uma misericrdia to sem medida.Tenho por certo que, a quem fizer dano entender que possvel fazer Deus estamerc neste desterro, que estar muito falha de humildade e de amor do prximo;porque, se assim no , como podemos deixar de nos alegrar de que Deus faaestas mercs a um irmo nosso e de que Sua Majestade d a entender Suas

    grandezas seja a quem for, pois isso no impede que no-las faa a ns? Quealgumas vezes ser s para as mostrar, como disse do cego a quem deu vistaquando Lhe perguntaram os Apstolos se era cego por seus pecados ou de seuspais. E assim acontece fazer mercs, no por serem mais santos do que aqueles aquem as no faz, mas para que se conhea Sua grandeza, como vemos em S. Pauloe na Madalena e para que O louvemos em Suas criaturas.

    4. Poder dizer-se que parecem coisas impossveis e que bom no escandalizar osfracos. Menos se perde em que estes no o creiam, do que em deixarem deaproveitar aqueles a quem Deus as faz e de se consolar e despertar a amar mais a

    Quem faz tantas misericrdias, sendo to grande Seu poder e majestade; tanto maisque sei que falo com quem no corre este perigo, porque sabem e crem que dDeus ainda muito maiores provas de amor. Eu sei que os que nisto no crerem, noo vero por experincia; porque Deus muito amigo de que Lhe no ponham taxae medida a Suas obras, e assim, irms, nunca isto acontea s que o Senhor nolevar por este caminho.

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    5. Pois, voltando a nosso formoso e deleitoso castelo, temos de ver comopoderemos entrar nele.

    Parece que digo algum disparate; porque, se este castelo a alma, claro que no setrata de entrar, pois se ele mesmo, pareceria desatino dizer a algum que entrassenum aposento estando j dentro. Mas haveis de entender que vai muito de estar aestar; que h muitas almas que ficam volta do castelo, onde esto os que oguardam, e que se lhes no d nada de entrar, nem sabem o que h naquele toprecioso lugar, nem quem est dentro, nem mesmo que dependncias tem. J tereisvisto, em alguns livros de orao, aconselhar a alma a que entre dentro de si; istomesmo.

    6. Dizia-me h pouco um grande letrado, que as almas, que no tm orao socomo um corpo paraltico ou tolhido que, embora tenha ps e mos, no os podemmexer; e so assim: h almas to enfermas e to habituadas s coisas exteriores,que no h remdio nem parece que possam entrar dentro de si mesmas; porque tal o costume de tratarem sempre com as sevandijas e alimrias que esto roda docastelo, que j quase se tornaram como elas e, sendo de natureza to rica e podendoter a sua conversao nada menos do que com Deus, no tm remdio. E se estasalmas no procuram entender e remediar sua grande misria, ficaro feitas emesttuas de sal por no voltarem a cabea para si mesmas, assim como ficou amulher de Lot por voltar a cabea para trs.

    7. Porque, tanto quanto eu posso entender, a porta para entrar neste castelo aorao e reflexo, no digo mais mental que vocal; logo que seja orao, h-de sercom considerao; porque naquela em que no se adverte com Quem se fala e oque se pede e quem que pede e a Quem, no lhe chamo eu orao, embora muitomeneie os lbios. E, se algumas vezes o for, mesmo sem este cuidado, ser porquese teve em outras; mas, quem tivesse por costume falar com a Majestade de Deuscomo falaria a um seu escravo, que nem repara se diz mal, mas o que lhe vem boca e decorou, porque j o fez outras vezes, no o tenho por orao e preza aDeus nenhum cristo a tenha desta sorte. Que entre vs, irms, espero em SuaMajestade no haver tal orao, pelo costume que h de tratardes de coisasinteriores, e que muito bom para no cairdes em semelhante bruteza.

    8. No falemos, pois, com estas almas tolhidas, que, se no vem o mesmo Senhormandar-lhes que se levantem - como aquele que havia 30 anos que estava junto piscina-, tm muito m ventura e correm grande perigo; mas sim com outras almasque, por fim, entram no castelo; porque, ainda que estejam muito metidas nomundo, tm bons desejos e algumas vezes, ainda que de longe em longe,encomendam-se a Nosso Senhor e consideram quem so, ainda que sem muita

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    demora. Alguma vez ou outra, num ms, rezam cheias de mil negcios, opensamento quase de ordinrio nisso, porque, como esto to apegadas a eles, o

    corao se lhes vai para onde est o seu tesouro. Propem algumas vezes, paraconsigo mesmos, desocuparem-se, e j grande coisa o prprio conhecimento e over que no vo bem encaminhadas para atinar com a porta. Enfim, entram nasprimeiras dependncias do rs-do-cho; mas entram com elas tantas sevandijas,que no lhes deixam ver a formosura do castelo nem sossegar: muito fazem j emter entrado.

    9. Parecer-vos-, filhas, que estou impertinente, pois, por bondade do Senhor, nosois destas. Haveis de ter pacincia, porque, a no ser assim, no saberei dar aentender, como eu as tenho entendido, algumas coisas interiores de orao, e ainda

    assim preza ao Senhor que atine a dizer alguma coisa, porque bem dificultoso oque eu quereria dar-vos a entender, se no houver experincia. Se a houver, vereisque o menos que se pode fazer tocar no que, preza ao Senhor, no nos toque ans por Sua misericrdia.

    CAPTULO 2. Trata de quo feia coisa a alma que est em pecado mortal, e como quis Deusdar a entender algo disto a uma pessoa. Trata tambm alguma coisa sobre o prprioconhecimento. Diz como se ho-de entender estas moradas.

    1. Antes de passar adiante, quero dizer-vos que considereis o que ser ver estecastelo to resplandecente e formoso, esta prola oriental, esta rvore de vida queest plantada nas mesmas guas vivas da Vida, que Deus, quando cai em pecadomortal. No h trevas mais tenebrosas, nem coisa to escura e negra que ela o noesteja muito mais. Basta saber que, estando at o mesmo Sol, que lhe dava tantoresplendor e formosura no centro da sua alma, todavia como se ali no estivesse,para participar d'Ele, apesar de ser to capaz de gozar de Sua Majestade, como ocristal o para nele resplandecer o sol. Nenhuma coisa lhe aproveita; e daqui vem

    que todas as boas obras que fizer, estando assim em pecado mortal, so de nenhumfruto para alcanar glria; porque, no procedendo daquele princpio que Deus,do qual vem que a nossa virtude virtude, e apartando-nos d'Ele, no pode a obraser agradvel a Seus olhos; porque, enfim, o intento de quem faz um pecadomortal, no contentar a Deus, seno dar prazer ao demnio o qual, como asmesmas trevas, assim a pobre alma fica feita uma mesma treva.

    2. Eu sei de uma pessoa a quem Nosso Senhor quis mostrar como ficava uma almaquando pecava mortalmente. Diz aquela pessoa que lhe parece que, se o

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    entendessem, no seria possvel que algum pecasse, ainda que se pusesse nosmaiores trabalhos que se possam pensar para fugir das ocasies. E assim, deu-lhe

    um grande desejo de que todos o entendessem. Assim vo-lo d a vs, filhas, derogar a Deus pelos que esto neste estado, todos feitos uma escurido, e tais sosuas obras; porque, assim como duma fonte muito clara, claros so os arroiozitosque dela manam, assim uma alma que est em graa, pois daqui lhe vem seremsuas obras to agradveis aos olhos de Deus e dos homens, porque procedem destafonte de vida, onde a alma est como uma rvore plantada; nem ela teria frescura efruto, se no lhe viesse dali; isto que a sustenta e faz com que no seque, e que dbom fruto. Assim a alma que, por sua culpa se aparta desta fonte e se transplanta aoutra de uma negrssima gua e de muito mau odor, tudo o que dela sai a mesmadesventura e sujidade.

    3. de considerar aqui que a fonte e aquele Sol resplandecente que est no centroda alma, no perde seu resplendor e formosura, que est sempre dentro dela, e noh coisa que lhe possa tirar a sua formosura. Mas, se sobre um cristal que est aosol, se pusesse um pano muito negro, claro est que, embora o sol d nele, a suaclaridade no far o seu efeito no cristal.

    4. almas remidas pelo Sangue de Jesus Cristo! Entendei-vos e tende d de vsmesmas! Como possvel que, entendendo isto, no procureis tirar este pez destecristal? Olhai que, se a vida se vos acaba, jamais tornareis a gozar desta luz.

    Jesus! O que ver uma alma apartada dela! Como ficam os pobres aposentos docastelo! Que perturbados andam os sentidos, que a gente que vive neles! E aspotncias, que so os alcaides, mordomos e mestres-salas, com que cegueira, comque mau governo! Enfim, como onde est plantada a rvore o demnio, que frutopode dar?

    5. Ouvi uma vez a um homem espiritual, que no se espantava do que fazia quemest em pecado mortal, mas sim do que no fazia. Deus, por Sua misericrdia, noslivre de to grande mal, que no h coisa, enquanto vivemos, que merea estenome de mal, seno esta; pois acarreta males eternos para sempre. disto, filhas,que devemos andar temerosas e o que temos de pedir a Deus em nossas oraes;porque, se Ele no guarda a cidade, em vo trabalharemos, pois somos a prpriavaidade.

    Dizia aquela pessoa que tinha aproveitado duas coisas da merc que Deus lhe fez:uma, um temor grandssimo de O ofender, e assim sempre Lhe andava suplicandono a deixasse cair, vendo to terrveis danos; a segunda, um espelho para ahumildade, vendo que, coisa boa que faamos, no tem seu princpio em nsmesmos, mas naquela fonte onde est plantada esta rvore das nossas almas, e

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    neste Sol que d calor s nossas obras. Disse que se lhe representou isto to claroque, em fazendo alguma coisa boa ou vendo-a fazer, acudia ao seu princpio e

    entendia como, sem esta ajuda, no podamos nada; e daqui lhe procedia ir logo alouvar a Deus, e, habitualmente, no se lembrava de si em coisa boa que fizesse.

    6. No seria tempo perdido, irms, o que gastsseis a ler isto, nem eu a escrev-lo,se ficssemos com estas duas coisas, que os letrados e entendidos muito bemsabem; mas a nossa ignorncia de mulheres de tudo precisa; e assim, porventura,quer o Senhor que nos venham lembrana semelhantes comparaes. Praza a SuaMajestade dar-nos graa para isso.

    7. So to obscuras de entender estas coisas interiores que, a quem to pouco sabe

    como eu, foroso dizer muitas coisas suprfluas e at desatinadas, para que hajaalguma em que acerte. necessrio terem pacincia quando isto lerem, pois eu atenho para escrever o que no sei; e certo algumas vezes tomar o papel, comouma pessoa tonta, sem saber que dizer nem mesmo comear. Bem entendo que coisa importante para vs declarar-vos algumas coisas interiores, como puder;porque sempre ouvimos quo boa a orao e temos na Constituio t-la tantashoras. No se nos declara mais do que podemos e, de coisas que o Senhor operanuma alma, declara-se pouco, digo de coisas sobrenaturais. Dizendo-se e dando-sea entender de muitas maneiras, ser-nos- grande consolao considerar esteartifcio celestial interior, to pouco entendido dos mortais, embora passem muitos

    por ele. E, ainda que em outras coisas que escrevi, o Senhor me tenha dado algo aentender, creio que algumas no as tinha entendido como de ento para c, emespecial das mais dificultosas. O trabalho que, para as chegar a declarar - comodisse -, ser preciso dizer muitas coisas muito sabidas, porque no pode ser pormenos para meu rude talento.

    8. Pois voltemos ao nosso castelo de muitas moradas. No haveis de imaginar estasmoradas uma aps outra, como coisa alinhada; mas ponde os olhos no centro que a casa ou palcio onde est o Rei, e considerai-a como um palmito, que, parachegar ao que de comer, tem muitas coberturas que cercam tudo quanto saboroso. Assim aqui, em redor desta morada, h outras muitas e tambm porcima. Porque as coisas da alma devem-se considerar com amplido, largueza egrandeza, e nisto no h demasia, pois tem maior capacidade do que nspoderemos considerar, e a todas as partes dela se comunica este Sol que est nopalcio. Isto importa muito a qualquer alma que tenha orao, pouca ou muita: queno a tolha nem a aperte. Deixe-a andar por estas moradas, em cima, em baixo eaos lados, pois Deus lhe deu to grande dignidade; no se obrigue a estar muitotempo num s aposento! Oh! mas se no prprio conhecimento! E quo necessrio isto (vejam se me entendem), mesmo aquelas que o Senhor tem na mesma

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    morada em que Ele est, pois - por mais elevada que esteja a alma -, no lhecumpre outra coisa, nem poder, ainda que queira que a humildade sempre fabrica

    o seu mel, como a abelha na colmeia; sem isto, tudo vai perdido. Masconsideremos que a abelha no deixa de sair e voar para trazer flores; assim a almano prprio conhecimento: creia-me e voe algumas vezes a considerar a grandeza ea majestade do seu Deus. Aqui achar a sua baixeza, melhor que em si mesma, emais livre das sevandijas, que entram nas primeiras moradas, que so as do prprioconhecimento; ainda que, como digo, grande misericrdia de Deus que a alma seexercite nisto, pois tanto se peca por excesso como por defeito, - costuma-se dizer-.E creiam-me que, com a virtude de Deus, praticaremos muito melhor a virtude doque muito presas nossa terra.

    9. No sei se fica bem dado a entender, porque coisa to importante esteconhecermo-nos, que no quereria que nisso houvesse nunca relaxao, por muitosubidas que estejais nos cus; pois, enquanto estamos nesta terra, no h coisa quemais nos importe que a humildade. E assim volto a dizer que muito bom e muitomelhor tratar de entrar primeiro no aposento onde se trata disto, que voar aosdemais, porque este o caminho; e, se podemos ir pelo seguro e plano, para quehavemos de querer asas para voar? Mas procure-se como aproveitar mais nisto; e ameu ver, jamais acabamos de nos conhecer se no procurarmos conhecer a Deus;olhando Sua grandeza, acudamos nossa baixeza; e olhando Sua pureza,veremos nossa sujidade; considerando a Sua humildade, veremos como estamoslonge de ser humildes.

    10. H dois proveitos nisto: o primeiro, est claro que uma coisa branca parecemuito mais branca ao p duma negra e, ao contrrio, a negra ao p da branca. Osegundo , porque o nosso entendimento e nossa vontade se tornam mais nobres emais dispostos para todo o bem, quando, s voltas consigo mesmos, tratam comDeus. E se nunca samos do nosso lodo de misrias, coisa muito inconveniente.Assim como dizamos dos que esto em pecado mortal quo negras e de mau odorso seus cursos de gua, assim aqui (ainda. que no so como aqueles, Deus nos

    livre, que isto s comparao), metidos sempre na misria da nossa terra, nunca ocurso sair do lodo de temores, de pusilanimidade e cobardia: de olhar a se meolham, se me no olham; se indo por este caminho, me suceder mal; se ousareicomear aquela obra, se ser soberba; se bom que uma pessoa to miservel tratede coisa to alta como a orao; se me ho-de ter por melhor no indo pelocaminho de toda a gente; que no so bons os extremos, mesmo em virtude; que,como sou to pecadora, ser cair de mais alto; no irei talvez por diante e fareidano aos bons; uma como eu no precisa de singularidades.

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    11. Oh! valha-me Deus, filhas, quantas almas deve o demnio ter feito perdermuito por este meio! Tudo isto lhes parece humildade e outras muitas coisas que

    pudera dizer, vem de nunca acabarmos de nos entender; rende-se o prprioconhecimento, e, se nunca samos de ns mesmos, no me espanto, que isto e maisse possa temer. Por isso digo, filhas, que ponhamos os olhos em Cristo, nossoBem, e ali aprenderemos a verdadeira humildade, e em seus santos, e enobrecer-se- o entendimento - como disse -, e no ficar o prprio conhecimento rasteiro ecobarde; pois que, embora esta seja a primeira morada, muito rica e de to grandepreo e, se se escapa das sevandijas que nela h, no se ficar sem passar adiante.Terrveis so os ardis e manhas do demnio para que as almas no se conheam asi mesmas nem entendam Seus caminhos.

    12. Destas primeiras moradas posso eu dar sinais muito certos, por experincia. Porisso digo que no considerem poucos aposentos, seno um milho deles; porque,de muitas maneiras, entram aqui almas, umas e outras com boa inteno. Mas,como o demnio sempre a tem to m, deve terem cada um muitas legies dedemnios a combater para que no passem de uns a outros. Como a pobre almano o entende, por mil maneiras nos engana, o que no pode fazer j tanto s queesto mais perto onde est o Rei Aqui, porm, como ainda esto embebidas nomundo e engolfadas em seus contentos e desvanecidas com suas honras epretenses, no tm fora os vassalos da alma (que so os sentidos e potnciasnaturais que Deus lhe deu), e facilmente estas almas so vencidas, embora andemcom desejos de no ofender a Deus, e faam boas obras. As que se virem nesteestado precisam de recorrer amide, como puderem, a Sua Majestade, tomar a Suabendita Me por intercessora e a Seus santos, para que pelejem por elas, pois osseus criados pouca fora tm para se defender. E, na verdade, em todos os estados necessrio que ela nos venha de Deus. Sua Majestade no-la d por Suamisericrdia, amen.

    13. Que miservel a vida em que vivemos! Porque, em outra parte, disse muitodo dano que nos faz, filhas, no entender bem isto da humildade e do prprio

    conhecimento, nada mais vos digo aqui, ainda que seja o que mais importa, e prazaa Deus tenha dito alguma coisa que vos aproveite.

    14. Haveis de notar que, nestas primeiras moradas, ainda no chega quase nada daluz que sai do palcio onde est o Rei; porque, embora no estejam obscurecidas enegras como quando a alma est em pecado, esto de alguma maneira obscurecidaspara poderem ver quem est nelas e no por culpa do aposento - no me sei dar aentender -, mas porque entraram com a alma tantas coisas ms de cobras e vborase coisas peonhentas que no a deixam reparar na luz. como se algum entrasseem um lugar aonde entra muito sol e levasse terra nos olhos, que quase os no

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    pudesse abrir. O aposento est claro, mas ela no o goza pelo impedimento destasferas e alimrias que lhe fazem cerrar os olhos para no ver seno a elas.

    Assim me parece deve ser uma alma que, embora no esteja em mau estado, estto metida em coisas do mundo e to embebida com sua fazenda ou honra ounegcios - como disse - que, ainda que de facto e verdade queira ver e gozar daSua formosura, no a deixam nem parece que possa desembaraar-se de tantosimpedimentos. E convm muito, para entrar nas segundas moradas, que procuredar de mo s coisas e negcios no necessrios, cada um conforme seu estado; coisa que lhe importa tanto para chegar morada principal, que, se no comea afazer isto, o tenho por impossvel; e at mesmo o estar sem muito perigo naquelaem que est, embora j tenha entrado no castelo, porque entre coisas to

    peonhentas, uma vez ou outra impossvel que deixem de lhe morder.

    15. Pois que seria, filhas, se s que j esto livres destes tropeos, como ns, eentrmos j muito mais adentro de outras moradas secretas do castelo, se por nossaculpa tornssemos a sair para estas barafundas, como por nossos pecados devehaver muitas pessoas a quem Deus faz mercs, e por sua culpa se lanam nestamisria? Aqui estamos livres quanto ao exterior; no interior, praza ao Senhor que oestejamos e que Ele nos livre. Guardai-vos, filhas minhas, de cuidados alheios.Olhai que em poucas moradas deste castelo deixam de combater os demnios. verdade que em algumas tm fora os guardas para pelejar, que so as potncias -

    como creio ter dito -; mas muito necessrio no nos descuidarmos para entenderseus ardis e no nos engane o demnio feito anjo de luz; pois h uma multido decoisas com que ele nos pode fazer dano, pouco a pouco, e, at que o faa, no oentendemos.

    16. J vos disse de outra vez que ele como uma lima surda, que precisoentend-lo nos princpios. Quero dizer alguma coisa para vo-lo dar melhor aentender.

    D ele a uma irm vrios mpetos de penitncia, e a esta lhe parece que no tem

    descanso seno quando se est atormentando. Este princpio bom; mas, se aprioresa mandou que no faam penitncias sem licena e o demnio lhe fazparecer que a coisa to boa bem se pode atrever, e s escondidas se d a tal vidaque vem a perder a sade e no poder fazer o que manda a sua Regra, j vedes emque vai parar tal bem.

    D a outra um zelo de perfeio muito grande. Isto muito bom; mas poder virdaqui, que qualquer faltita das irms lhe parea uma grande quebra e assim vir-lheo cuidado de ver se as fazem, e de recorrer prioresa; e at, s vezes, poder ser

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    ela no ver as suas prprias faltas pelo grande zelo que tem da Religio; como asoutras no vem o interior, e vem o cuidado exterior, poderia ser que o no

    tomassem tanto a bem.17. O que aqui pretende o demnio no pouco; esfriar a caridade e o amor deumas para com as outras, o que seria grande dano. Entendamos, minhas filhas, quea perfeio verdadeira amor de Deus e do prximo e, com quanto mais perfeioguardarmos estes dois mandamentos, seremos mais perfeitas. Toda a nossa Regra eConstituies no servem para outra coisa, seno de meios para guardar isto commais perfeio. Deixemo-nos de zelos indiscretos, que nos podem fazer muitodano. Cada uma olhe para si mesma.

    Porque noutra parte vos falei largamente sobre isto, no me alongarei.18. Importa tanto este amor de umas para com as outras, que eu nunca quereria quedele vos esquecsseis; porque, de andar olhando nas outras a umas ninharias que svezes no ser imperfeio, mas, como sabemos pouco, talvez o lanaremos piorparte, pode a alma perder a paz e ainda inquietar a das outras. Vede como custariacaro a perfeio! Tambm poderia o demnio trazer esta tentao para com aprioresa e seria mais perigosa. Para isto mister muita discrio: porque, se foremcoisas que vo contra a Regra e Constituio, preciso que nem sempre se lancem boa parte, mas sim avis-la; e, se no se emendar, ao Prelado: isto caridade. E

    tambm para com as irms, se fosse alguma coisa grave; deixar passar tudo commedo de que seja tentao, seria a mesma tentao. Mas preciso ponderar muito(no nos engane o demnio) no o tratar umas com as outras, pois disso pode odemnio tirar grande proveito e comear o costume da murmurao; mas apenastrat-lo com quem h-de aproveitar, como j disse. Aqui, glria a Deus, no htanta ocasio para isso, porque se guarda to contnuo silncio; mas bom queestejamos de sobreaviso.

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    SEGUNDAS MORADAS

    CAPTULO NICO. Trata do muito que importa a perseverana para chegar s ltimasmoradas, e a grande guerra que d o demnio, e quanto convm no errar o caminho noprincpio para acertar. D um meio que experimentou ser muito eficaz.

    1. Agora, vejamos quais sero as almas que entram nas segundas moradas e o quefazem nelas. Quereria dizer-vos pouco, porque j disse bastante em outras partes eser impossvel deixar de tornar a dizer outra vez muito sobre isso, porque no melembra nada do que j foi dito; se o pudesse guisar de diferentes maneiras, bem seique no vos enfastiareis, como nunca nos cansamos dos livros que tratam disto,

    apesar de serem muitos.

    2. esta morada a dos que j comearam a ter orao e entendido quanto lhesimporta no se ficarem nas primeiras moradas, mas no tm ainda determinaopara deixar de estar nela muitas vezes, porque no deixam as ocasies, o que grande perigo. Mas j grande misericrdia que, mesmo por pouco tempo,procurem fugir das cobras e coisas peonhentas e entendam que bom deix-las.

    Estes, em parte, tm muito mais trabalho que os primeiros, ainda que no tenhamtanto perigo; pois parece que j os entendem, e h grande esperana que entrem

    mais adentro. Digo que tm mais trabalho, porque os primeiros so como mudosque no ouvem, e assim passam melhor o trabalho de no falar; mas no opassariam assim, seno muito maior, os que ouvissem e no pudessem falar. Mas,nem por isso mais de desejar o trabalho dos que no ouvem, porque enfim,grande coisa entender o que nos dizem. Assim estes entendem os chamamentosque lhes faz o Senhor, porque vo entrando mais perto onde est Sua Majestade, muito bom vizinho e to grande a Sua misericrdia e bondade que, mesmo estandons em nosso passatempo, negcios, contentamentos e bagatelas do mundo, e atcaindo e levantando-nos em pecados (porque estas alimrias so to peonhentas e

    perigosa sua companhia e buliosas que, s por maravilha deixaro de tropearnelas para cair), com tudo isto, tem em tanto este Senhor nosso que O amemos eprocuremos a Sua companhia que, uma vez ou outra, no deixa de nos chamar paraque nos acerquemos d'Ele. E esta voz to doce, que se desfaz a pobre alma porno fazer logo o que lhe manda; e assim - como digo - muito mais trabalho doque no O ouvir.

    3. No digo que estas vozes e chamamentos sejam como outros que direi depois,mas so com palavras que se ouvem a gente boa, ou sermes ou com o que se lem bons livros e outras muitas coisas que tendes ouvido, com as quais Deus

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    chama; ou enfermidades, trabalhos e tambm com uma ou outra verdade que Eleensina naqueles instantes em que estamos em orao que, seja quo frouxamente

    quiserdes, os tem Deus em muito. E vs, irms, no tenhais em pouco esta primeiramerc, nem vos desconsoleis, ainda mesmo que no respondais logo ao Senhor.Bem sabe Sua Majestade aguardar muitos dias e anos, em especial quando vperseverana e bons desejos. Esta perseverana aqui o mais necessrio, porquecom ela jamais se deixa de ganhar muito. Mas terrvel a violncia que aqui usamos demnios de mil maneiras, com mais tormento da alma que na morada anterior;porque ali, estava muda e surda, pelo menos ouvia muito pouco e resistia menos,como quem tem, em parte, perdida a esperana de vencer; aqui est o entendimentomais vivo e as potncias mais hbeis; e so os golpes e a artilharia de tal modo, quea alma no pode deixar de ouvir. Porque aqui o representarem os demnios estas

    cobras das coisas do mundo e fazerem os seus contentos quase eternos, a estimaem que nele se tido, os amigos e parentes, a sade que se pode perder nas coisasde penitncia (pois sempre comea a alma que entra nesta morada a desejar fazeralguma), e outras mil maneiras de impedimentos.

    4. Jesus, que barafunda a que pem aqui os demnios e as aflies da pobrealma, que no sabe se h-de passar adiante ou voltar ao primeiro aposento! que arazo, por outra parte, representa-lhe o engano que pensar que tudo isto valealguma coisa em comparao do que pretende. A f ensina-lhe o que que lhecumpre fazer; a memria representa-lhe em que vo parar todas estas coisas,tornando-lhe presente a morte, e algumas sbitas, dos que muito gozaram destascoisas que viu; quo depressa so esquecidos de todos, como viu pisar debaixo daterra alguns que conheceu em grande prosperidade - e at mesmo ter ela passadosobre suas sepulturas muitas vezes - e pensar que naquele corpo esto fervilhandomuitos vermes e muitas outras coisas que podem ocorrer; a vontade inclina-se aamar Aquele em quem tem visto to inumerveis coisas e mostras de amor, equereria pagar alguma; em especial, pe-se-lhe diante como nunca se aparta delaeste verdadeiro Amador, acompanhando-a, dando-lhe vida e ser. Logo oentendimento acode dando-lhe a entender que no pode encontrar melhor amigo,

    ainda que viva muitos anos; que todo o mundo est cheio de falsidade, e estescontentos que lhe representa o demnio, esto cheios de trabalhos e cuidados econtradies; e lhe diz que est certo que, fora deste castelo, no encontrarsegurana nem paz; que se deixe de andar por casas alheias, pois a sua est cheiade bens, se a quiser gozar; que ningum acha tudo que h mister seno em suacasa, em especial tendo tal Hspede, que a far senhora de todos os bens; se elaquiser no andar perdida, como o filho prdigo, comendo manjar de porcos.

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    5. Razes so estas para vencer os demnios. Mas, Senhor e Deus meu! Oscostumes das coisas de vaidade e o ver que toda a gente trata disso, estraga tudo!

    Porque est to morta a f, queremos mais o que vemos do que aquilo que ela nosdiz. E, na verdade, no vemos seno excessiva m ventura nos que se deixam iratrs destas coisas visveis. Mas isso fizeram estas coisas peonhentas quetratamos; como algum que mordido por uma vbora se empeonha e incha todo,assim aqui, se no nos acautelamos; claro est que para sarar so precisas muitascuras; e grande merc nos faz Deus, se no morremos disso. certo que a almapassa aqui grandes trabalhos, em especial se o demnio entende que ela temdisposies de sua condio e costumes para ir muito adiante: todo o inferno se

    juntar para faz-la tornar a sair para fora.

    6. Ah! Senhor meu!, aqui mister a Vossa ajuda, pois, sem ela, no se pode fazernada. Por Vossa misericrdia no consintais que esta alma seja enganada paradeixar o que comeou. Dai-lhe luz para ver como est nisto todo o seu bem e parase apartar das ms companhias. Grandssima coisa tratar com os que tratam distoe achegar-se, no s aos que vir nestes aposentos em que est, mas tambm aos queentender que j entraram nos mais interiores; porque lhe ser grande ajuda, e tantopoder conversar com estes, que ali a metam consigo. Esteja sempre de sobreavisopara no se deixar vencer; porque, se o demnio a v com uma grandedeterminao de que, antes perder a vida, o descanso e tudo o que ele lhe oferece,do que voltar ao primeiro aposento, muito mais depressa a deixar. Seja varo eno dos que se deitavam a beber de bruos, quando iam para a batalha, no melembro com quem, mas determine-se: vai pelejar com todos os demnios e no hmelhores armas do que as da Cruz.

    7. Ainda que de outras vezes tenha dito isto, importa tanto, que o torno a dizeraqui; que no se lembre que h regalos nisto que principia, porque maneiramuito baixa de comear a construir to precioso e grande edifcio; e, se comeamsobre areia, daro com tudo em terra; nunca deixaro de andar desgostosos etentados. Porque no so estas moradas onde chove o man; esto mais adiante,

    onde tudo sabe ao que uma alma quer, porque no quer seno o que Deus quer. coisa muito engraada que ainda estejamos com mil embaraos e imperfeies e asvirtudes que ainda no sabem andar, pois s h pouco comearam a nascer, emesmo praza a Deus que estejam comeadas; e no temos vergonha de querergostos na orao e de nos queixarmos de aridez? Nunca isto vos acontea, irms;abraai-vos com a cruz que vosso Esposo tomou sobre Si e entendei que esta deveser a vossa empresa. A que mais puder padecer, que padea mais por Ele e ser aque melhor se liberta. O resto, como coisa acessria, se vo-lo der o Senhor, dai-Lhe muitas graas.

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    8. Parecer-vos- que, para os trabalhos exteriores, estais bem determinadas,conquanto vos regale Deus no interior. Sua Majestade sabe melhor, o que nos

    convm; no temos de Lhe aconselhar o que nos h-de dar, poi. pode com razodizer-nos que no sabemos o que pedimos. Toda a pretenso de quem comea a terorao (e no vos esquea isto, pois importa muito) h-de ser trabalhar edeterminar-se e dispor-se, com quanta diligncia puder, a fazer conformar a suavontade com a de Deus; e - como direi depois -, estai bem certas que nisto consistetoda a maior perfeio, que se pode alcanar no caminho espiritual. Quem maisperfeitamente tiver isto, mais receber do Senhor e mais adiante estar nestecaminho. No penseis que h aqui muitas algaravias nem coisas no sabidas ecompreendidas: nisto consiste todo o nosso bem. Pois, se erramos no princpio,querendo logo que o Senhor faa a nossa vontade e que nos leve como

    imaginamos, que firmeza pode levar este edifcio? Procuremos fazer o que est emnossa mo e guardemo-nos das sevandijas peonhentas; que muitas vezes quer oSenhor que haja securas e nos persigam maus pensamentos e nos aflijam, sem ospodermos afastar de ns, e at algumas vezes permite que nos mordam, para quens nos saibamos melhor guardar depois e para ver se nos pesa muito de O terofendido.

    9. Por isso, no vos desanimeis, se alguma vez cairdes, para deixar de ir por diante;pois, dessa mesma queda, tirar Deus bem, como faz aquele que vende a mezinhaque, para provar se boa, bebe o veneno primeiro. Se no vssemos em outra coisaa nossa misria e o grande dano que nos faz o andarmos dissipados, s esta lutaque se passa para nos tornarmos a recolher, bastava. Poder haver maior mal doque no nos acharmos em nossa prpria casa? Que esperana podemos ter deencontrar sossego em outras coisas, se nas prprias no podemos sossegar? Masto grandes e verdadeiros amigos e parentes, com quem embora no o queiramos,sempre havemos de viver, como so as nossas potncias, parece fazerem-nosguerra, como que sentidas da que lhes fizeram os nossos vcios. Paz, paz, minhasirms, disse o Senhor e admoestou os Seus Apstolos tantas vezes. Pois, crede-meque, se no a temos e no a procuramos em nossa casa, no a acharemos na dos

    estranhos. Acabe-se j esta guerra; pelo Sangue que Ele derramou por ns o peoeu aos que no comearam a entrar em si; e os que j comearam, que nada sejabastante para os fazer voltar atrs. Olhem que pior a recada que a queda; j vemsua perda; confiem na misericrdia de Deus e nada em si mesmas, e vero comoSua Majestade leva a alma de umas moradas a outras e a mete naquela terra ondeestas feras no a podem tocar nem cansar; mas ela as sujeita a todas e faz troadelas, e goza de muitos mais bens do que poderia desejar, ainda mesmo nesta vida,digo.

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    10. Porque - como disse ao principio -, escrevi como vos haveis de comportarnestas perturbaes que aqui apresenta o demnio, e como comear a recolher-se

    no h-de ir fora de braos, mas sim com suavidade, para que o possais estarmais continuamente, s direi aqui que, a meu parecer, faz muito ao caso tratar compessoas experimentadas; porque em coisas que necessrio fazer, podereis pensarque h grande quebra. Contanto que no se deixe este comeo de recolhimento,tudo guiar o Senhor em nosso proveito, embora no encontremos quem nosensine; que para este mal de deixar a orao, no h remdio, se no se torna acomear, seno que, pouco a pouco, a alma vai perdendo cada dia mais, e aindapraza a Deus que o entenda.

    11. Poderia alguma pensar que, se to grande mal voltar atrs, melhor ser nunca

    comear, mas antes iscar-se fora do castelo. J vos disse ao princpio,- e o mesmoSenhor o diz que, quem anda no perigo, nele perece e que a porta para entrar nestecastelo a orao. Ora, pensar que havemos de entrar no Cu e no entrar em ns,conhecendo-nos e considerando nossa misria e o que devemos a Deus e pedindo-Lhe muitas vezes misericrdia, desatino. O mesmo Senhor diz: Ningum subira meu Pai, seno por Mim. No sei se disse assim, creio que sim; e quem Me va Mim v a Meu Pai. Pois, se nunca olhamos para Ele, nem consideramos o queLhe devemos e a morte que sofreu por ns, no sei como O podemos conhecernem fazer obras em Seu servio. Porque a f, sem elas, e sem irem unidas ao valordos merecimentos de Jesus Cristo, nosso Bem, que valor pode ter? E quem nosdespertar a amar este Senhor?

    Praza a Sua Majestade nos d a entender o muito que Lhe custmos e como o servono mais que o Senhor; e que precisamos fazer obras para gozar da Sua glria;para isto necessrio orar para no andar sempre em tentao.

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    TERCEIRAS MORADAS

    CAPTULO 1. Trata da pouca segurana que podemos ter enquanto se vive neste desterro,ainda que o estado seja elevado. E como convm andar com temor. Contm alguns temas muitobons.

    1. Aqueles que, pela misericrdia de Deus, venceram estes combates e comperseverana entraram nas terceiras moradas, que lhes diremos, seno bem-aventurado o varo que teme o Senhor? No foi pouco fazer Sua Majestade comque entenda eu agora, nesta altura, em que costumo ser rude nestes casos, o quequer dizerem vernculo este versculo. Por certo, com razo o chamaremos bem-aventurado, pois, se no volta atrs, ao que podemos entender, leva caminho

    seguro na sua salvao. Aqui vereis, irms, quanto importa vencer as batalhaspassadas; pois tenho por certo que nunca deixa o Senhor de o pr em segurana deconscincia, o que no pequeno bem. Digo em segurana, e disse mal, pois no ah nesta vida, e por isso entendei sempre o que digo: se no voltar a deixar ocaminho comeado.

    2. Muito grande misria viver em vida que sempre temos de andar como quemtem inimigos porta, que no pode comer nem dormir sem armas, e sempre emsobressalto, com receio de que, por alguma parte, possam arrombar esta fortaleza. meu Senhor e meu Bem! Como quereis que se deseje vida to miservel, se no possvel deixar de querer e pedir que nos tireis dela, se no com esperana deperd-la por Vs ou gast-la em Vosso servio, e sobretudo entender que Vossavontade? Se o , Deus meu, morramos convosco, como disse S. Tom, porque no outra coisa seno morrer muitas vezes o viver sem Vs e com estes temores deque pode ser possvel perder-Vos para sempre. Por isso digo, filhas, que a bem-aventurana que temos de pedir estar j em segurana com os bem-aventurados;pois com estes temores, que satisfao pode ter aquele que a tem toda em contentara Deus? E considerai que esta, e muito maior, tinham alguns santos que caram emgraves pecados; e no temos a certeza de que nos dar Deus a mo para sair deles e

    fazer a penitncia que esses fizeram (subentende-se o auxlio particular).

    3. Certo , minhas filhas, que estou com no pouco temor escrevendo isto, pois nosei como o escrevo nem como vivo, quando disso me lembro muitas, muitas vezes.Pedi-Lhe, minhas filhas, que Sua Majestade viva sempre em mim; porque, se nofor assim, que segurana pode ter uma vida to mal gasta como a minha? E no vospese o entender que isto assim, como algumas vezes o tenho visto em vs,quando vo-lo digo, e procede de que quisreis que tivesse sido muito santa e tendesrazo; tambm eu o quisera. Mas, que hei-de fazer, se o perdi somente por minha

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    culpa?! E no me queixarei de Deus que deixou de me dar bastantes ajudas, paraque se cumprissem vossos desejos. No posso dizer isto sem lgrimas e grande

    confuso de ver que escrevo para aquelas que me podem ensinar a mim. Duraobedincia tem sido! Praza ao Senhor que, pois se faz por Ele, seja para que vosaproveiteis de alguma coisa e para que Lhe peais que perdoe a esta miservelatrevida. Mas bem sabe Sua Majestade que s posso presumir da Sua misericrdia;e, j que no posso deixar de ser a que tenho sido, no tenho outro remdio, senoacolher-me a ela e confiar nos mritos de Seu Filho e da Virgem, Sua Me, cujohbito indignamente trago, e vs trazeis tambm. Louvai-O, minhas filhas, poisverdadeiramente o sois desta Senhora; e assim no tendes de vos afrontar que euseja ruim, pois tendes to boa Me. Imitai-A e considerai qual deve ser a grandezadesta Senhora, e o bem de A ter por Padroeira, pois no bastaram meus pecados e

    ser a que sou, para em nada deslustrar esta sagrada Ordem.

    4. Mas, duma coisa vos aviso: que nem por ser tal e ter to boa Me, estais seguras,que muito santo era David, e j vedes o que foi Salomo; nem faais caso doencerramento e penitncia em que viveis, nem vos assegureis por tratardes semprecom Deus e exercitar-vos na orao to continuamente e estardes to retiradas dascoisas do mundo e t-las, a vosso parecer, aborrecidas. bom tudo isto, mas nobasta - como disse para deixarmos de temer; e assim meditai este versculo etrazei-o na memria muitas vezes: Beatus vir, qui timet Dominum.

    5. J no sei o que dizia, pois distra-me muito e, em me lembrando de mim,quebram-se-me as asas para dizer coisa boa. E assim o quero deixar por agora.

    Voltando ao que comecei a dizer das almas que entraram nas terceiras moradas, eno lhes fez o Senhor pequena merc, mas sim muito grande em terem vencido asprimeiras dificuldades. Destas, pela bondade do Senhor, creio que h muitas nomundo; so muito desejosas de no ofender a Sua Majestade, e at mesmo dospecados veniais se guardam, e amigas de fazer penitncia; tm suas horas derecolhimento, gastam bem o tempo, exercitando-se em obras de caridade com osprximos, muito concertadas no falar e vestir e governo de casa, as que a tm.Decerto que estado para desejar, e parece que nada h para que se lhes negue aentrada at ltima morada, nem lha negar o Senhor, se elas quiserem. Que beladisposio esta para que lhes faa toda a merc.

    6. Jesus! e quem dir que no quer um to grande bem, em especial havendo jpassado pelo mais trabalhoso? Ningum. Todas dizemos que o queremos; mas,como ainda mister mais para que de todo o Senhor possua a alma, no basta diz-lo, como no bastou ao mancebo quando o Senhor lhe perguntou se queria serperfeito. Desde que comecei a falar destas moradas, trago-o diante de mim; porque

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    somos assim ao p da letra, e o mais normal virem daqui as grandes securas naorao, ainda que tambm haja outras causas; e deixo uns trabalhos interiores

    intolerveis que tm muitas almas boas, e muito sem culpa sua, dos quais sempre oSenhor as tira com muito lucro, e das que tm melancolia e outras enfermidades.Enfim, em todas as coisas temos de deixar parte os juzos de Deus. Segundotenho para mim, o mais habitual, o que disse; porque, como estas almas vemque por coisa alguma fariam um pecado, e muitas nem ainda venial deliberado, eque gastam bem sua vida e fazenda, no podem levar pacincia que se lhes cerrea porta para no entrar aonde est o nosso Rei, por cujos vassalos se tm e o so.Mas, c na terra, ainda que tenha muitos vassalos o rei, nem todos entram at suacmara. Entrai, entrai, filhas minhas, no interior; passai adiante de vossasobrazitas, pois, por serdes crists, deveis tudo isso e muito mais, e vos basta ser

    vassalas de Deus. No queirais tanto, que vos fiqueis sem nada. Vede os santos queentraram na cmara deste Rei e vereis a diferena que h deles para ns. Nopeais o que no tendes merecido, nem havia de nos vir ao pensamento que, pormuito que sirvamos, o havemos de merecer, ns os que temos ofendido a Deus.

    7. humildade! No sei que tentao me vem neste caso, que no posso acabar decrer a quem tanto caso faz destas securas, seno que um pouco falta dela. Digoque deixo aparte os grandes trabalhos interiores que disse, pois estes so muitomais que falta de devoo. Provemo-nos a ns mesmas, minhas irms, ou antesprove-nos o Senhor, pois bem o sabe fazer, embora muitas vezes no o queremosentender, e venhamos a estas almas to concertadas; vejamos o que fazem porDeus, e logo veremos como no temos razo de nos queixarmos de Sua Majestade.Porque, se lhe voltamos as costas e nos vamos tristes como o mancebo doEvangelho, quando nos diz o que havemos de fazer para sermos perfeitos, quequereis que faa Sua Majestade, se Ele h-de dar o prmio conforme ao amor queLhe temos? E este amor, filhas, no h-de ser fabricado em nossa imaginao, massim provado com obras; e no penses que olha s nossas obras, seno determinao da nossa vontade.

    8. Parecer-nos- a ns, que temos hbito de religio, e o tommos por nossavontade e deixmos todas as coisas do mundo e o que tnhamos, por amor d'Ele(ainda que sejam as redes de S. Pedro, pois parece que d muito quem d o quetem), que j est tudo feito. Muito boa disposio se persevera e no se torna ameter nas sevandijas dos primeiros aposentos, embora s com o desejo; pois noh dvida que, se persevera nesta desnudez e desprendimento de tudo, alcanar oque pretende. Mas h-de ser com a condio, e vede que vos aviso disto, que setenha por servo sem proveito - como disse S. Paulo, ou Cristo, e no creia queobrigou assim a Nosso Senhor a fazer-lhe semelhantes mercs; antes, como quem

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    mais recebeu, fica mais endividado. Que poderemos fazer por um Deus togeneroso, que morreu por ns e nos criou e nos d o ser, que no nos tenhamos por

    venturosos em que se v descontando alguma coisa do que Lhe devemos pelo queEle nos tem servido (disse esta palavra de m vontade, mas isto assim, pois nofez outra coisa enquanto viveu no mundo), sem que Lhe peamos de novo mercs eregalos?

    9. Olhai muito, filhas, a algumas coisas que aqui vo apontadas; ainda queatabalhoadas, porque melhor no as sei declarar. O Senhor vo-lo dar a entender,para que tireis das securas humildade e no inquietao, que o que pretende odemnio. E crede que onde h verdadeira humildade, ainda que Deus nunca dregalos, dar uma paz e conformidade com que andareis mais contentes do que

    outros com regalos. E muitas vezes - como tendes lido -, os d a Divina Majestadeaos mais fracos; embora creia que eles no os trocariam pelas fortalezas dos queandam com securas. Somos amigos de contentamentos mais do que de cruz. Prova-nos, Tu, Senhor, que sabes a verdade, para que nos conheamos.

    CAPTULO 2. Prossegue no mesmo e trata das securas na orao e do que poderia suceder, aseu parecer, e como mister provar-nos e que o Senhor prova aos que esto nestas moradas.

    1. Eu tenho conhecido algumas almas, e creio que posso dizer bastantes, das quechegaram a este estado e vivido muitos anos nesta rectido e concerto, alma ecorpo; ao que se pode entender. E depois disto, quando j parece haviam de estarsenhores do mundo, ao menos bem desenganados dele, prova-os Sua Majestade emcoisas no muito grandes, e andam com tanta inquietao e aperto de cotao, quea mim me trazem tonta e at muito temerosa. Pois, dar-lhes conselho, no remdio porque, como h tanto que tratam de virtudes, parece-lhes que podemensinar a outros e que lhes sobra razo sentindo aquelas coisas.

    2. Enfim, eu no achei remdio nem acho para consolar semelhantes pessoas, a no

    ser mostrar grande sentimento da sua pena (e na verdade, tem-se pena de as versujeitas a tanta misria), e no contradizer suas razes; porque todas as concertamem seu pensamento, que por Deus que as sentem e assim no vm a entender que imperfeio. E outro engano para gente to aproveitada. Que o sintam, no deespantar, embora, a meu parecer, havia de passar depressa o sentimento de coisassemelhantes. Porque muitas vezes quer Deus que Seus escolhidos sintam essamisria e aparta um pouco o Seu favor e no preciso mais para que, de verdade,nos conheamos bem depressa. E logo se entende esta maneira de os provar: paraque eles compreendam a sua falta muito claramente; e, s vezes, d-lhes mais pena

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    ver que, sem estar na sua mo, sentem as coisas da terra e no muito pesadas, doque daquilo mesmo de que tm pena. Isto tenho-o eu por grande misericrdia de

    Deus; e ainda que falta, muito vantajosa para a humildade.3. Nas pessoas que digo, no assim, seno que canonizam - como disse - em seuspensamentos estas coisas, e assim quereriam que os outros as canonizassem. Querodizer algumas delas, para que nos entendamos e nos provemos a ns mesmas, antesque nos prove o Senhor; pois seria bem grande coisa estarmos apercebidas e termo-nos entendido primeiro.

    4. A uma pessoa rica, sem filhos nem para quem ela queira a fazenda, vem-lhe umaquebra de riqueza; mas no de maneira que, do que lhe fica, lhe possa faltar o

    necessrio para si e para sua casa, e ainda de sobra. Se esta andasse com tantodesassossego e inquietao como se no lhe ficasse um po para comer, como h-de pedir-lhe Nosso Senhor que deixe tudo por Ele? Aqui comea a dizer que osente, porque o quer para os pobres. Por mim, creio que Deus mais quer que meconforme com o que Sua Majestade faz e, embora procure faz-la, aquiete a minhaalma e no esta caridade. E j que o no faz, por no a ter elevado o Senhor a tanto,seja muito em boa hora; mas entenda que lhe falta esta liberdade de esprito e comisto se dispor para que o Senhor lha d, porque lha pedir.

    Tem uma pessoa bem de que comer, e at de sobra; oferece-se-lhe o poder adquirir

    mais fortuna: tom-la, se lha derem, seja em muito boa hora; mas procur-la, edepois de a ter, procurar mais e mais, tenha to boa inteno que quiser (e deve terporque, como disse, so estas pessoas de orao e virtuosas), no haja medo quesubam s moradas mais perto do Rei.

    5. Deste modo acontece, quando se lhes oferece alguma coisa, pela qual osdesprezem ou lhes tirem um pouco na honra; pois, embora lhes faa Deus merc deque muitas vezes o sofram bem (porque muito amigo de favorecer a virtude empblico, para que no padea a mesma virtude em que so tidos; e mesmo serporque O tm servido, pois muito bom este nosso Bem), l lhes fica uma tal

    inquietao, que no se podem valer, nem acaba de se acabar to depressa. Valha-me Deus! No so estes os que, h tanto tempo, consideram como padeceu oSenhor e quo bom padecer e at o desejam? Quereriam a todos to concertadoscomo eles trazem suas vidas, e praza a Deus que no pensem que a pena que tm pela culpa alheia e a faam meritria em seu pensamento.

    6. Parecer-vos-, irms, que falo fora de propsito e no convosco, pois estascoisasaqui no as h, porque nem temos fazenda, nem a queremos, nem a procuramos,nem to pouco algum nos injuria. Por isso as comparaes no aludem ao que se

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    passa; mas tira-se delas outras muitas coisas que podem acontecer, as quais noseria bom assinalar, nem h para qu. Por estas entenderes se estais bem

    desprendidas do que deixastes porque se oferecem coisitas, ainda que no bemdesta sorte, em que vos podereis muito bem provar e conhecer se estais senhorasdas vossas paixes. E crede-me que no est o negcio em ter hbito de religio ouno, seno em procurar exercitar as virtudes e render a nossa vontade de Deus emtudo e que oconcerto da nossa vida seja o que Sua Majestade dela ordenar e noqueiramos que se faa a nossa vontade mas sim a Sua. Se no tivermos chegado ataqui, tenhamos - como disse - humildade, que o unguento para as nossas feridas;porque, se a temos deveras, ainda que tarde algum tempo, vir o cirurgio, que Deus, a sarar-nos.

    7. As penitncias que fazem estas almas so to concertadas como a sua vida.Querem-na muito para servir a Nosso Senhor com ela, e tudo isto no mau; assimtm grande discrio em fazer penitncias, para no causar dano sade. Notenhais medo que se matem, porque a sua razo est muito em si; no est ainda oamor para pr de parte a razo. Mas queria eu que a tivssemos para no noscontentarmos com esta maneira de servir a Deus, sempre passo a passo, que nuncaacabamos de andar este caminho. E, como a nosso parecer sempre andamos e noscansamos - porque crede que um caminho custoso -, j ser bem bom que nonos percamos. Mas, parece-vos, filhas, que se indo duma terra a outra pudssemoschegar em oito dias, seria bom andar um ano por ventos, neves, chuvas e mauscaminhos? No valeria mais pass-lo de urna vez? Porque tudo isto h e perigos deserpentes. Oh! que bons sinais poderia eu dar disto. E praza a Deus que tenhapassado daqui, que bastantes vezes me parece que no.

    8. Como vamos com tanto senso, tudo nos ofende, porque tudo tememos; e assim,no ousamos passar adiante, como se ns pudssemos chegar a estas moradas eoutros estivessem a caminho. Pois, como isto no possvel, esforcemo-nos, irmsminhas, por amor do Senhor; deixemos nossa razo e temores em Suas mos;esqueamos esta fraqueza natural que muito nos pode ocupar. O cuidado destes

    corpos tenham-no os prelados, e l se avenham; ns tenhamo-lo s de caminhardepressa para ver este Senhor; pois, embora o regalo que possais ter pouco ounenhum, o cuidado da sade nos poderia enganar, quanto mais que no se ter maispor isso, eu o sei. E tambm sei que no est o negcio no que toca ao corpo, queisto o menos; pois o caminhar que digo, com uma grande humildade; porque, sebem e entendestes, creio estar aqui o mal das que no vo adiante e nos parea quetemos andado poucos passos e assim o julguemos, e os que andam nossas irmsnos paream muito pressurosos, e no s desejemos, mas procuremos que nostenham pela mais ruim de todas.

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    9. E, com isto, este estado excelentssimo; e, se assim no , toda a nossa vidaestaremos nele e com mil penas e misrias. Porque, como no nos deixamos a ns

    mesmas, muito trabalhoso e pesado, porque vamos muito carregadas com estaterra da nossa misria, que no levam os que sobem aos aposentos que faltam.Nestes, no deixa o Senhor de pagar como justo, e ainda como misericordioso, poisd sempre muito mais do que merecemos, dando-nos contentamentos muitomaiores que os que podemos ter nos regalos e distraces desta vida. Mas nopenso que d muitos gostos, a no ser alguma vez, para nos convidar a ver o que sepassa nas demais moradas, para que nos disponhamos a entrar nelas.

    10. Parecer-vos- que contentamentos e gostos tudo o mesmo, para que eu faaesta diferena nos nomes. A mim parece-me que a h e muito grande; bem me

    posso enganar. Direi o que nisto entender nas quartas moradas que vm depoisdestas; porque, como se h-de declarar algo dos gostos que ali d o Senhor, ficamelhor, e ainda que parea sem proveito, poder ser de algum, para que,entendendo o que cada coisa, possais; esforar-vos a seguir o melhor; e demuito consolo para as almas que Deus leva at ali, e confuso para quem lheparece j ter tudo, e, se so; humildes, mover-se-o a dar graas. Se h alguma faltadisto, dar-lhes- um desgosto interior fora de propsito; pois, no est a perfeionos gostos, nem no prmio, seno em quem mais ama e em quem melhor operacom justia e verdade.

    11. Direis: Para que serve tratar destas mercs interiores e dar a entender como so,se isto verdade, como ? Eu no o sei; pergunte-se a quem mo mandou escreverque eu no estou obrigada a discutir com os superiores, mas a obedecer; nem seriabem faz-lo. O que vos posso dizer com verdade, que, quando eu no as tinha,nem ainda sabia por experincia, nem pensava sab-lo em minha vida (e comrazo, que grande contentamento fora para mim saber ou por conjecturas entenderque agradava a Deus em algum modo), quando lia em livros destas mercs econsolos que faz o Senhor s almas que O servem, isso me dava grandssimoprazer e era motivo para minha alma dar grandes louvores a Deus. Pois, se a

    minha, com ser to ruim, fazia isto, as que so boas e humildes O louvaro muitomais; e por uma s que O louve uma vez, est muito bem que se diga, a meuparecer, e que entendamos o contentamento e deleites que perdemos por nossaculpa. Quanto mais que, se so de Deus, vm carregados de amor e fortaleza, comque se pode caminhar mais sem trabalho e ir crescendo nas obras e virtudes. Nopenseis que importa pouco que isto no falhe da: nossa parte, pois, quando no nossa a falta, justo o Senhor, e Sua Majestade vos dar, por outros caminhos, oque vos tira por este, pelo que Sua Majestade sabe, pois so mui ocultos Seussegredos; pelo menos, ser isso o que mais nos convm, sem dvida nenhuma.

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    12. O que me parece nos faria muito proveito quelas que pela bondade do Senhoresto neste estado (que, como disse, no lhes faz pouca misericrdia, porque esto

    muito perto de ir mais longe), exercitarem-se muito na prontido da obedincia.E mesmo que no sejam religiosos, seria grande coisa - como o fazem muitaspessoas - ter a quem recorrer para no fazer em nada a sua vontade, que o quehabitualmente nos causa dano; e no buscar algum do seu humor, como dizem,que v sempre com muito tento em tudo, mas sim, procurar quem esteja muitodesenganado das coisas do mundo, pois, de grande modo, aproveita tratar comquem j conhece o mundo para nos conhecermos e, porque algumas coisas que nosparecem impossveis vendo-se em outros to possveis e a suavidade com que aslevam, anima muito e parece que, com seu voo, nos atrevemos a voar, como fazemos filhos das aves quando os ensinam. Ainda que no dem grande voo, pouco a

    pouco imitam os seus pais. De grande modo aproveita isto, eu o sei.

    Por mais determinadas que estejam em no ofender o Senhor, semelhantes pessoasprocedero com acerto, no se metendo em ocasies de O ofender; porque, comoesto perto das primeiras moradas, com facilidade podero voltar a elas, porque asua fortaleza no est fundada em terra firme, como os que esto j exercitados empadecer; estes conhecem as tempestades do mundo, e quo pouco tm a temer ou adesejar seus contentamentos; e seria possvel, com uma grande perseguio,voltarem de novo a eles. O demnio bem as sabe urdir para lhes fazer mal, epoderia suceder que, indo com bom zelo, querendo impedir pecados alheios, nopudessem resistir ao que a isto sobreviesse.

    13. Olhemos as nossas faltas e deixemos as alheias, pois muito prprio depessoas to concertadas espantarem-se de tudo; e porventura de quem nosespantamos, bem poderamos aprender no principal. Na compostura exterior e namaneira de tratar, levamos-lhe vantagem; e no isto o que tem mais importncia,embora seja bom, e nem h para qu querer logo que vo todos pelo nossocaminho, nem pr-se a ensinar o que do esprito quem porventura no sabe o queisso ; pois com estes desejos que Deus nos d, irms, do bem das almas, podemos

    cometer muitos erros. E assim melhor ater-nos ao que diz a nossa Regra:procurar viver sempre em silncio e esperana, que o Senhor ter cuidado denossas almas. Desde que no nos descuidemos de o suplicar a Sua Majestade,faremos grande proveito com Seu favor. Seja para sempre bendito.

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    QUARTAS MORADAS

    CAPTULO 1. Trata da diferena que h entre ternuras na orao e gostos, e diz o contento quelhe deu entender que coisa diferente o pensamento e o entendimento. de grande proveitopara quem se recreia muito na orao.

    1. Para comear a falar das quartas moradas, bem necessrio o que fiz, que foiencomendar-me ao Esprito Santo e suplicar-Lhe que, daqui em diante, fale pormim, para dizer alguma coisa das que ficam por dizer, de maneira que o entendais;porque comeam a ser coisas sobrenaturais, e dificultosssimo d-las a entender,se Sua Majestade no o faz, como fez,: h catorze anos, pouco mais ou menos,quando escrevi em outra parte at onde eu havia entendido. Ainda que me parece

    que tenho agora um pouco mais de luz destas mercs que o Senhor faz a algumasalmas, diferente o sab-las dizer. Faa-o Sua Majestade, se da h-de seguir-sealgum proveito; e se no, no.

    2. Como estas moradas j esto mais perto de onde est o Rei, grande a suaformosura e h coisas to delicadas para ver e entender, que o entendimento no capaz de poder achar maneira de dizer sequer alguma coisa que venha to ajustada,que no fique bem obscura para os que no tenham experincia; pois, quem a tem,muito bem entender, em especial se j muita.

    Parecer que, para chegar a estas moradas, se dever ter vivido nas outras muitotempo; e embora o normal seja que se tenha estado na que acabamos de dizer, no regra certa, como tereis ouvido muitas vezes; porque o d o Senhor, quando quere como quer e a quem quer, como bens Seus, e no faz agravo a ningum.

    3. Nestas moradas, poucas vezes entram as coisas peonhentas e, se entram, nofazem dano, antes deixam lucro. E tenho por muito melhor quando entram e doguerra neste estado de orao; porque poderia o demnio enganar, volta dosgostos que Deus d, se no houvesse tentaes, e fazer muito mais dano do quequando as h, e no ganhar tanto a alma, pelo menos apartando todas as coisas quea ho-de fazer merecer, e deixando-a num embevecimento habitual. Porque,quando o embevecimento habitual em um ser, no o tenho por seguro nem meparece possvel estar assim sempre num mesmo ser o esprito do Senhor nestedesterro.

    4. Pois falando no que disse que diria aqui, da diferena que h entrecontentamentos na orao e gostos, contentamentos, me parece a mim, se podechamar aos que adquirimos com a nossa meditao e peties a Nosso Senhor, queprocedem do nosso natural, ainda que, enfim, ajuda para isso Deus, pois h-de-se

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    entenderem tudo quanto dissermos que nada podemos sem Ele; mas nascem damesma obra virtuosa que fazemos e parece que o ganhamos com nosso trabalho, e

    com razo nos d contentamento o termo-nos empregado em coisas semelhantes.Mas se o considerarmos bem, os mesmos contentos teremos em muitas coisas quepodem suceder na terra. Assim, numa grande fazenda que de repente advm aalgum, o ver de sbito uma pessoa que muito amamos ter acertado num negcioimportante ou numa coisa grande, de que todos nos dizem bem; se a alguma pessoalhe disserem que morreu seu marido ou irmo ou filho e o v chegar vivo. Eu viderramar lgrimas dum grande contentamento e at mesmo me tem acontecidoalgumas vezes. Parece-me a mim que, assim como estes contentamentos sonaturais, assim nos que nos do as coisas de Deus; embora de linhagem maisnobre, ainda que aqueles tambm no eram de todo maus. Enfim comeam no que

    natural em ns e acabam em Deus.

    Os gostos comeam em Deus e sente-os a natureza, e goza tanto deles como gozamos que disse e muito mais. Jesus!, e que desejo tenho de saber declarar-me nisto!Porque entendo, a meu parecer, mui conhecida diferena e no alcana o meu sabero dar-me a entender; faa-o o Senhor.

    5. Agora me lembro dum versculo que dizemos em Prima, ao fim do ltimosalmo, que ao terminar o versculo diz: Cum dilatasti cor meum. A quem tivermuita experincia, isto lhe basta para ver a diferena que vai de um ao outro; a

    quem no a tiver, preciso mais. Os contentos que dissemos no dilatam ocorao, antes habitualmente parece que o apertam um pouco, embora com grandecontentamento de ver o que se faz por Deus; mas vm umas lgrimas de aflio,que de alguma maneira parece as move a paixo. Eu sei pouco destas paixes daalma - que talvez me desse a entender -, mas, como sou muito rude, no sei o queprocede da sensualidade e o que procede do nosso natural. Saberia declar-lo se,assim como passei por isso, o entendesse. Grande coisa o saber e as letras paratudo.

    6. O que tenho de experincia deste estado, digo destes regalos e contentos nameditao, que, se comeava a chorar por causa da Paixo, no podia acabar atque se me quebrava a cabea; se o fazia por meus pecados, era o mesmo. Grandemerc me fazia Nosso Senhor, e no quero agora examinar qual melhor, se um seoutro. Apenas quereria saber dizer a diferena que h entre um e outro. Para estascoisas vo algumas vezes estas lgrimas e estes desejos ajudados do natural econforme est a disposio; mas enfim, como disse, vm a parar em Deus, aindaque sejam naturais. E so para ter em muito, se houver humildade, para entenderque no se melhor por isso; porque no se pode entender se todos so efeitos doamor; e quando forem, so dados por Deus.

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    Na maior parte tm estas devoes as almas das moradas anteriores, porque andamquase de contnuo com trabalho do entendimento, empregadas em discorrer com o

    entendimento e em meditao; e vo bem, porque no lhes foi dado mais, aindaque acertariam em ocupar-se um pouco em fazer actos e em louvores de Deus e emse alegrarem da Sua bondade e que seja Quem , e em desejar Sua honra e glria.Isto como puderem, porque desperta muito a vontade. E estejam de sobreaviso,quando o Senhor lhes der isto; no o deixem para acabar a meditao como se tempor costume.

    7. Porque me alarguei muito em dizer isto em outras partes, no o direi aqui. Squero que estejais advertidas que, para aproveitar muito neste caminho e subir smoradas que desejamos, no est a coisa em pensar muito, seno em amar muito; e

    assim, o que mais vos despertar ao amor, isso deveis fazer. Talvez no saibamos oque amar, e no me espantarei muito; porque no est no maior gosto, mas simna maior determinao de desejar contentar a Deus em tudo e procurar, tantoquanto pudermos, no O ofender, e rogar-Lhe que v sempre por diante a honra eglria de Seu Filho e o aumento da Igreja Catlica. Estes so os sinais do amor, eno penseis que consiste em no pensar outra coisa, e que, se vos distras umpouco, vai tudo perdido.

    8. Eu tenho andado nisto, nesta barafunda do pensamento, bem apertada algumasvezes, e haver pouco mais de quatro anos que vim a entender, por experincia,

    que o pensamento (ou imaginao, para que melhor se entenda) no oentendimento. Perguntei-o a um letrado e disse-me que, efectivamente, era assim, oque foi para mim grande contentamento. Por que, como o entendimento uma daspotncias da alma, tornava-se-me duro estar ele to volvel, s vezes, poisnormalmente voa o pensamento to rpido, que s Deus o pode atar quando assimnos ata, de maneira que parece estarmos de algum modo desatados deste corpo. Euvia, a meu parecer, as potncias da alma empregadas em Deus e estarem recolhidascom Ele e, por outra parte, o pensamento alvorotado: trazia-me tonta.

    9. Senhor, tende em conta o muito que passamos neste caminho por falta desaber! E o mal que, como no pensamos ser preciso saber mais do que pensaremVs, nem sabemos perguntar aos que sabem, nem entendemos que haja queperguntar, e passam-se terrveis trabalhos, porque no nos entendemos; e o que no mau, seno bom, pensamos que grande culpa. Daqui procedem as aflies demuita gente que trata de orao e o queixarem-se de trabalhos interiores, pelomenos grande parte em gente que no tem letras, e vm as melancolias e operderem a sade e at o deixarem-na de todo, porque no consideram que hdentro um mundo interior; e assim, como no podemos deter o movimento doscus, que anda pressa com toda a velocidade, to-pouco podemos deter o nosso

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    pensamento, e logo metemos todas as potncias da alma com ele e nos parece queestamos perdidas e mal gasto o tempo em que estamos diante de Deus. E a alma

    est porventura toda unida a Ele nas moradas muito prximas e o pensamento nosarredores do castelo, padecendo com mil animais ferozes e peonhentos emerecendo com este sofrimento; e assim, nem nos h-de perturbar nem o havemosde deixar, que o que pretende o demnio. E, na maior parte, todas as inquietaese trabalhos vm deste no nos entendermos.

    10. Ao escrever isto, estou considerando o que se passa na minha cabea, o granderudo que nela h, como disse ao princpio, pelo que se me tornou quase impossvelpoder fazer o que me mandavam escrever. No parece seno que nela esto muitosrios caudalosos e, por outra parte, que estas guas se despenham; muitos

    passarinhos e silvos, no nos ouvidos, mas na parte superior da cabea, onde dizemestar a parte superior da alma. E eu estive nisto muito tempo, por me parecer que ogrande movimento do esprito para cima subia com velocidade. Praza a Deus melembre, nas moradas mais adiante, de dizer a causa disto, pois aqui no fica bem, eno ser muito que o Senhor haja querido dar-me este mal de cabea para melhor oentender, porque, com toda esta barafunda que nela vai, no me estorvava a oraonem o que estou dizendo, mas antes a alma est muito inteira em sua quietude eamor e desejos de claro conhecimento.

    11. Pois, se na parte superior da cabea est a parte superior da alma, como no a

    perturba? Isso o que no sei, mas sei que verdade o que digo. D pena quandono orao com suspenso, pois ento, at que passe, no se sente nenhum mal;mas grande mal seria se, por este impedimento, eu deixasse tudo. E assim no bem que nos perturbemos com os pensamentos, nem deles nada se nos d, porque,se vm do demnio, cessar com isto; e se , como , da misria que nos ficou depecado de Ado, com outras muitas, tenhamos pacincia e soframo-lo por amor deDeus, pois tambm estamos sujeitas a comer e dormir, sem nos podermos escusar,o que grande trabalho.

    12. Reconheamos a nossa misria, e desejemos ir aonde "ningum nosmenospreze"; pois algumas vezes me lembro de ter ouvido isto que dizia a Esposados Cantares, e verdadeiramente no encontro em toda a vida coisa onde, com maisrazo, isto se possa dizer; porque todos os menosprezos e trabalhos que pode haverna vida, no me parece que cheguem a estas batalhas interiores. Qualquerdesassossego e guerra se pode sofrer. achando paz onde vivemos, - como j disse -;mas, que queiramos vir a descansar dos mil trabalhos que h no mundo, que queirao Senhor preparar-nos o descanso e que em ns mesmas esteja o estorvo, no podedeixar de ser muito penoso e quase insuportvel. Por isso, levai-nos Senhor, aonde

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    no nos menosprezem estas misrias, que parecem algumas vezes estarem a fazerescrnio da alma!

    Ainda nesta vida a liberta disto o Senhor, quando chegar ltima morada, comodiremos, se Deus for servido.

    13. Nem a todas daro tanta pena estas misrias, nem as acometero, como a mimme fizeram muitos anos por ser to ruim, que parece que eu mesma me queriavingar de mim. E, como coisa to penosa para mim, penso que talvez o seja assimpara vs e no fao seno diz-lo de um cabo ao outro, para ver se alguma vezacerto dar-vos a entender como coisa forosa e no vos traga inquietas e aflitas,mas deixemos andar esta taramela do moinho e moamos nossa farinha, no

    deixando de trabalhar com a vontade e o entendimento.14. H mais e menos neste estorvo, conforme a sade e os tempos. Padea a pobrealma, ainda que no tenha culpa; pois outras teremos pelas quais de razo quetenhamos pacincia. E, porque no basta o que lemos e nos aconselham, nofaamos caso destes pensamentos; para ns, que pouco sabemos, no me parecetempo perdido todo o que gasto em declarar mais e em consolar-vos neste caso;mas, at que o Senhor nos queira dar luz, pouco aproveita. Mas preciso e querSua Majestade que tomemos conhecimento e entendamos do que faz a fracaimaginao, o natural, e o demnio, no deitemos a culpa alma.

    CAPTULO 2. Prossegue no mesmo e declara por uma comparao o que so gostos e como seho-de alcanar no os procurando.

    1. Valha-me Deus! Onde me meti! J tinha esquecido o que tratava, porque osnegcios e a sade me fazem deix-lo na melhor altura. E, como tenho poucamemria, ir tudo desconcertado por no o poder tornar a ler. E mesmo talvez sejatudo desconcerto quanto digo; ao menos o que sinto.

    Parece-me que fica dito das consolaes espirituais, como algumas vezes voenvoltos com as nossas paixes, trazem consigo uns alvorotos de soluos, e atouvi a pessoas que se lhes aperta o peito e mesmo lhes vm movimentos exteriores,a que no podem ir mo; e tal a fora, que lhes faz sair sangue do nariz, e coisasassim penosas. Disto no sei dizer nada, porque no passei por isso, mas deve ficarconsolao; porque, como digo, tudo vai pararem desejar contentar a Deus e gozarda Sua Majestade.

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    Vossas grandezas! E andamos por c como uns pastorinhos tontos, parecendo-nosque enxergamos alguma coisa de Vs e deve ser tanto como nada, pois em ns

    mesmos h grandes segredos que no entendemos. Digo tanto como nada, para omuito, muitssimo que h em Vs; e no porque no sejam muito grandes asgrandezas que vemos, mesmo no que podemos alcanar das Vossas obras.

    6. Voltando ao versculo, o que ele me pode aqui aproveitar, a meu parecer, aquela dilatao; pois parece que, assim que se comea a produzir aquela guacelestial deste manancial que digo, do profundo de ns mesmos, parece que se vaidilatando e alargando todo o nosso interior e produzindo uns bens que no sepodem dizer, nem mesmo a alma sabe entender o que aquilo que ali se lhe d.Sente uma fragrncia interior - digamos agora - como se naquela profundidade

    interior estivesse um braseiro onde se lanassem olorosos perfumes; nem se v olume nem onde est; mas o calor e o fumo perfumado penetram toda a alma e atbastantes vezes - como j disse -, participa o corpo. Olhai e entendei-me: nem sesente calor nem se aspira perfume, pois isto coisa mais delicada que estas coisas; apenas para vo-lo dar a entender. E entendam as pessoas que no passaram poristo, que verdade isto passar-se assim e que se entende, e que o entende a almamais claramente do que eu o digo agora. No isto coisa que se possa imaginar,porque, por diligncias que faamos, no o podemos adquirir e nisto mesmo se vno ser do nosso metal, seno daquele purssimo oiro da sabedoria divina.

    Aqui no esto as potncias unidas, a meu parecer, mas embebidas e olhando comoespantadas o que ser aquilo.

    7. Poder ser que nestas coisas interiores me contradiga um tanto do que tenho ditoem outras partes, No maravilha, porque em quase quinze anos desde que oescrevi, talvez me tenha dado o Senhor mais claridade nestas coisas do que entoentendia e, agora como ento, posso errar em tudo mas no mentir, que, pormisericrdia de Deus, antes passaria mil mortes. Digo o que entendo.

    8. A vontade bem me parece que deve estar unida, de certa maneira, com a de

    Deus; mas, nos efeitos e obras que depois se seguem, que se conhecem estasverdades da orao, pois no h melhor crisol para as provar. bem grande mercde Nosso Senhor, se a conhece quem a recebe, e muito grande se no volta atrs.Logo querereis, minhas filhas, procurar ter esta orao, e tendes razo; pois - comodisse - a alma no acaba de entender as mercs que ali lhe faz o Senhor e o amorcom que a vai achegando mais a Si. De certo est, desejando saber comoalcanaremos esta merc. Eu vos direi o que nisto tenho entendido.

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    9. Deixemos o Senhor faz-la quando servido, por Sua Majestade o querer e nopor mais nada. Ele sabe o porqu; no nos havemos de meter nisso. Depois de

    fazermos o mesmo que fazem os das moradas anteriores, humildade, humildade!Por ela se deixa render o Senhor a tudo quanto d'Ele queremos. E a primeira coisaem que vereis se a tendes, em no pensar que mereceis estas mercs e gostos doSenhor, nem que os haveis de ter em vossa vida. Direis: desta maneira, como seho-de alcanar no os procurando? A isto respondo, no h outra melhor do queesta que vos, disse, e no os procurar pelas razes seguintes: Primeiro, porque aprimeira coisa, que para isto mister, amar a Deus sem interesse. Segundo,porque no deixa de ser um pouco de falta de humildade pensar que, por nossosservios miserveis, se h-de alcanar coisa to grande. Terceiro, porque averdadeira preparao para isto o desejo de padecer e de imitar ao Senhor e no o

    ter gostos, ns que, enfim, O temos ofendido. Quarto,, porque Sua Majestade noest obrigado a dar-nos gostos, como o est a dar-nos a Glria se guardarmos osSeus mandamentos, pois, sem isto, nos poderemos salvar, e Ele sabe melhor quens o que nos convm e quem O ama de verdade. Assim coisa certa, eu sei-o, econheo pessoas que vo, pelo caminho do amor como se deve ir, s para servir aseu Cristo crucificado, que no s no Lhe pedem gostos nem os desejam, mas Lhesuplicam que no lhos d nesta vida. Isto verdade. A quinta, porquetrabalharemos debalde, pois, como no se h-de trazer esta gua por aquedutoscomo a precedente, se o manancial no a quer produzir, pouco aproveita que nos

    cansemos. Quero dizer que, por mais meditao que tenhamos e por mais que nosapoquentemos e tenhamos lgrimas, no por aqui, que esta gua vem. S se d aquem Deus quer e, muitas vezes, quando mais descuidada est a alma.

    10. Suas somos, irms; faa de ns o que quiser, leve-nos por onde for servido.Creio bem que, a quem de verdade se humilhar e desapegar (digo de verdade,porque no o h-de ser s em nosso pensamento, que muitas vezes nos engana,seno que estejamos desapegadas de todo), no deixar o Senhor de nos fazer estamerc, e outras muitas que no saberemos desejar. Seja Ele para sempre bendito.Amen.

    CAPTULO 3. Trata do que orao de recolhimento. Na maior parte das vezes, a d o Senhorantes da orao acima dita. Diz seus efeitos e os que ficam da orao anterior em que tratou dosgostos que d o Senhor.

    1. So muitos os efeitos desta orao; apenas direi alguns. Mas direi primeiro outramaneira de orao que comea quase sempre antes desta, e, por t-la dito em outraspartes, direi pouco. um recolhimento que tambm me parece sobrenatural,

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    porque no estar s escuras nem cerrar os olhos, nem consiste em coisa algumaexterior, posto que, sem o querer, se faa isto de cerrar os olhos e desejar soledade;

    e sem artifcio, parece que se vai lavrando o edifcio para a orao que fica dita;porque estes sentidos e coisas exteriores parecem ir perdendo de seu direito, paraque a alma v cobrando o seu que tinha perdido.

    2. Dizem que a alma entra dentro de si e outras vezes que "sobe sobre si". Por estalinguagem no saberei eu esclarecer nada, que isto tenho de mau: penso que poraquilo que eu sei dizer de uma coisa o haveis de entender e talvez seja s claro paramim. Faamos de conta que estes sentidos e potncias so, como j disse, a gentedeste castelo - a comparao que tomei para saber dizer alguma coisa-, que saramfora e andam com gente estranha, inimiga do bem deste castelo, dias e anos; e que,

    vendo sua perdio, j se tm vindo acercando dele, embora no cheguem a entrar- porque este costume coisa dura -, mas no so j traidores e andam ao redor.Vendo j o grande Rei que est na morada deste castelo sua boa vontade, por Suagrande misericrdia quer traz-los de novo a Si e, como bom pastor, com um silvoto suave que at quase eles mesmos o no ouvem, faz com que conheam Sua voze no andem to perdidos, mas voltem sua morada. E tem tanta fora este silvodo pastor, que desamparam as coisas exteriores em que andavam alheados e semetem no castelo.

    3. Parece-me que nunca o dei a entender como agora, porque, para buscar a Deus

    no interior da alma (onde melhor O encontramos e com mais proveito para ns quenas criaturas, como disse Santo Agostinho que a O achou, depois de O terprocurado em muitas partes), grande a ajuda quando Deus faz essa merc. E nopenseis que isto adquirido pelo entendimento, procurando pensar que tm dentrode si a Deus, nem pela imaginao, imaginando-O dentro de si. Bom isto, eexcelente maneira de meditao, porque se funda sobre esta verdade: o estar Deusdentro de ns mesmos; mas no isto, pois cada um o pode fazer (com o favor doSenhor, bem se entende). Mas o que digo de maneira diferente, e algumas vezes,antes que se comece a pensarem Deus, j esta gente est no castelo, que no sei por

    onde nem como ouviu o silvo do pastor. E no foi pelos ouvidos, que no se ouvenada, mas sente-se notavelmente um recolhimento suave para o interior, como verquem passa por isto, que eu no o sei aclarar melhor. Parece-me ter lido que como um ourio ou tartaruga, quando se escondem em si mesmos; e devia entend-lo bem quem o escreveu. Mas estes entram em si quando querem; aqui isto noest no nosso querer, seno quando Deus nos quer fazer esta merc. Tenho paramim que, quando Sua Majestade a faz, a pessoas que j vo dando de mo scoisas do mundo. No digo que seja pondo-o por obra aqueles que tm estado, queno podem, mas sim pelo desejo, pois chama-os particularmente para que estejam

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    atentos s coisas interiores; e assim creio que, se queremos dar lugar a SuaMajestade, Ele no dar s isto a quem j comeou a chamar para mais.

    4. Louve-O muito quem reconhecer isto em si, porque muitssimo justo que seentenda a merc, e a aco de graas que se d por ela far com que a alma sedisponha para outras maiores. E tambm disposio para poder escutar a Deus,como se aconselha em alguns livros, procurar no discorrer, mas estar-se atentos aver o que o Senhor opera na alma; e, se Sua Majestade no comeou a embeber-nos, no posso acabar de entender como se possa deter o pensamento de maneiraque no faa mais dano que proveito, ainda que isto tenha sido contenda bempleiteada entre algumas pessoas espirituais. Eu por mim confesso a minha poucahumildade: nunca me deram razes para que eu me renda ao que dizem. Um me

    alegou certo livro do santo Frei Pedro de Alcntara - que eu creio que o -, a quemeu me renderia, porque sei que o sabia; e lemo-lo e diz o mesmo que eu, ainda quepor outras palavras; g mas entende-se no que disse que h-de estar j desperto oamor. Bem pode ser que eu me engane, mas vou por estas razes:

    5. A primeira, que nesta obra de esprito, quem menos pensa e quer fazer, quefaz mais. O que devemos fazer pedir como pobres necessitados diante dum ricoimperador e logo baixar os olhos e esperar com humildade. Quando por seussecretos caminhos parece que entendemos que nos ouve, ento bom calar, poisnos deixou estar junto d'Ele e no ser mau procurar no trabalhar com o

    entendimento - se podemos, digo -. Mas, se ainda no entendemos que este Rei nosouviu e nos v, no havemos de ficar pasmados, e no pouco o fica a alma quandoisto procurou; quando se escondem em si mesmos; e devia entend-lo bem quem oescreveu. Mas estes entram em si quando querem; aqui isto no est no nossoquerer, seno quando Deus nos quer fazer esta merc. Tenho para mim que,quando Sua Majestade a faz, a pessoas que j vo dando de mo s coisas domundo. No digo que seja pondo-o por obra aqueles que tm estado, que nopodem, mas sim pelo desejo, pois chama-os particularmente para que estejamatentos s coisas interiores; e assim creio que, se queremos dar lugar a Sua

    Majestade, Ele no dar s isto a quem j comeou a chamar para mais.4. Louve-O muito quem reconhecer isto em si, porque muitssimo justo que seentenda a merc, e a aco de graas que se d por ela far com que a alma sedisponha para outras maiores. E tambm disposio para poder escutar a Deus,como se aconselha em alguns livros, procurar no discorrer, mas estar-se atentos aver o que o Senhor opera na alma; e, se Sua Majestade no comeou a embeber-nos, no posso acabar de entender como se possa deter o pensamento de maneiraque no faa mais dano que proveito, ainda que isto tenha sido contenda bempleiteada entre algumas pessoas espirituais. Eu por mim confesso a minha pouca

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    que com elas trabalhssemos e tudo tem o seu valor, no h para que t-lasencantadas, mas deix-las fazer seu ofcio, at que Deus as ponha noutro maior.

    7. O que entendo que mais convm alma a quem o Senhor quis meter nestamorada fazer o que fica dito, e que, sem nenhum esfo