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Dificuldades de Aprendizagem na Alfabetização Maria de Fátima Cardoso Gomes Maria das Graças de Castro Sena (Orgs.) LINGUAGEM & EDUCAÇÃO APRESENTAÇÃO Chegamos ao ano 2000, que até bem pouco tempo nos parecia tão distante! Pensar que viveríamos para ver viver e sentir a entrada de um novo século - o século XXI - era coisa que pertencia ao futuro. Porém, no próximo ano estaremos entrando em outro século e esperamos ver os problemas do "fracasso escolar" com outros olhos os olhos, da possibilidade de erradicá-los de vez, no Brasil. Sabemos que cada época cria sua própria "doença". Nesta publicação, trataremos do mal do século XX, o "fracasso escolar" de meninos e meninas das camadas populares. Fracasso que foi historicamente produzido e criado por médicos e psicólogos e que vem sendo tratado de forma patológica, naturalizada e a-histórica pela maioria das escolas. Estas buscam legitimar a exclusão de alguns alunos com o conhecimento científico da medicina e da psicologia, principalmente. Os artigos que fazem parte deste livro foram elaborados com base em dissertações de mestrado e uma tese de doutorado defendidas no período de 1990 a 1996, na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais e no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, respectivamente. Eles tratam basicamente do sucesso e do fracasso escolar na aprendizagem da leitura e da escrita, e não apenas do fracasso de alguns alunos de camadas populares que estudam em escolas públicas de Belo Horizonte, Ibirité, Brumadinho e Sabará, com a perspectiva de "desnaturalizar" o fenômeno do "fracasso escolar" daqueles aprendizes. Muitas perguntas orientaram a condução das pesquisas que são

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Dificuldades de Aprendizagem na AlfabetizaçãoMaria de Fátima Cardoso Gomes

Maria das Graças de Castro Sena (Orgs.)

LINGUAGEM & EDUCAÇÃO

APRESENTAÇÃOChegamos ao ano 2000, que até bem pouco tempo nos parecia tão distante! Pensar que viveríamos para ver viver e sentir a entrada de um novo século - o século XXI - era coisa que pertencia ao futuro. Porém, no próximo ano estaremos entrando em outro século e esperamos ver os problemas do "fracasso escolar" com outros olhos os olhos, da possibilidade de erradicá-los de vez, no Brasil. Sabemos que cada época cria sua própria "doença". Nesta publicação, trataremos do mal do século XX, o "fracasso escolar" de meninos e meninas das camadas populares. Fracasso que foi historicamente produzido e criado por médicos e psicólogos e que vem sendo tratado de forma patológica, naturalizada e a-histórica pela maioria das escolas. Estas buscam legitimar a exclusão de alguns alunos com o conhecimento científico da medicina e da psicologia, principalmente.Os artigos que fazem parte deste livro foram elaborados com base em dissertações de mestrado e uma tese de doutorado defendidas no período de 1990 a 1996, na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais e no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, respectivamente. Eles tratam basicamente do sucesso e do fracasso escolar na aprendizagem da leitura e da escrita, e não apenas do fracasso de alguns alunos de camadas populares que estudam em escolas públicas de Belo Horizonte, Ibirité, Brumadinho e Sabará, com a perspectiva de "desnaturalizar" o fenômeno do "fracasso escolar" daqueles aprendizes.Muitas perguntas orientaram a condução das pesquisas que são apresentadas neste livro, como: apesar das dificuldades dos alunos, o que eles são capazes de aprender, dentro e fora da escola? Por que alguns aprendem a ler e a escrever e outros não? Que processos de ensino e aprendizagem os divide e separa em "bons" e "maus" alunos? Como seus familiares se relacionam com essa divisão? Como encaram o sucesso e/ou fracasso de seus filhos? Como as próprias crianças lidam com o sucesso e o fracasso escolar? Como a escola lida com a subjetividade e a individualidade de seus alunos?Nesta publicação, os autores abordam a questão do sucesso e do fracasso escolar de uma forma relacional, ou seja, buscam discuti-la sob a lógica do "e" e não do "ou". Sendo assim, tanto os fatores relativos às crianças e suas famílias quanto os fatores relativos às escolas, à sociedade e ao sistema de ensino estarão fazendo parte das análises dos estudos de casos. Não se trata portanto, de "culpar" um ou outro segmento, mas, sim, de discutir a questão da forma mais ampla e aprofundada que nos foi possível fazer.Os artigos mostram a necessidade de se trabalhar com as potencialidades das

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crianças, a partir de seus conhecimentos prévios, numa perspectiva de letramento, de maneira que os usos e funções da leitura e da escrita estejam presentes no processo de alfabetização. Todos eles apontam a necessidade de se reverem práticas pedagógicas calcadas na memorização excessiva e de a escola abrir-se para a escuta dos problemas de seus alunos com a perspectiva de promovê-los, e não de usar seus problemas como justificativa de fracassos escolares. Portanto, esperamos que esta publicação sirva de instrumento para os educadores refletirem sobre as suas práticas de alfabetização, leitura e escrita com os alunos que obtêm sucesso e com aqueles que fracassam nessa área.Maria de Fátima Cardoso GomesLEITURA E ESCRITA: A PRODUÇÃO DOS "MAUS" E "BONS" ALUNOSMaria de Fátima Cardoso Gomes ( Nota: Professora de Psicologia da Educação da FaE/UFMG e pesquisadora do CEALE/FaE/UFMG. Fim nota)Várias pesquisas sobre a escola pública, como, por exemplo, Silva (1995), Gomes (1995), Maciel (1994), Griffo (1994), Rezende (1994), Oliveira (1994), Carvalho (1993), Sena (1990), têm demonstrado que a grande maioria dos educadores tenta remediar os efeitos de práticas pedagógicas que fracassam buscando na psicologia, na sociologia e na medicina justificativas científicas tanto para o fracasso quanto para o sucesso escolar de crianças de camadas populares.Esses educadores adotam mecanismos variados para separar os "bons" dos "maus" alunos, desde critérios de avaliação que norteiam os processos de enturmação, o remanejamento, a fixação de normas disciplinares e higiênicas até o encaminhamento dos "maus" alunos para clínicas ou escolas especializadas. Acabam depositando no aluno toda a "culpa" pela não-aprendizagem da leitura e da escrita sem que o processo escolar e social em que estas são produzidas seja levado em conta pelos educadores, sobretudo das escolas públicas.Este trabalho focalizou as causas do "fracasso escolar" nos primeiros ciclos do processo de ensino e aprendizagem da leitura e da escrita. Na tentativa de explicação do fracasso, foram analisados os aspectos sociais, escolares e psicolingüísticos.Tentou-se avaliar o peso do ambiente escolar com suas normas explícitas e implícitas de conduta, construídas pela professora, pelos alunos e pela própria escola. Tentou-se mostrar também que o desempenho lingüístico dos "bons" e dos "maus" alunos está vinculado às representações sobre esses e desses mesmos alunos.A metodologia usada na pesquisa foi a de um estudo de caso etnográfico. O que me interessou investigar foi o processo de produção de "maus" e de "bons" alunos inseridos num contexto escolar e suas representações sobre esse processo.Foi feita uma investigação sistemática procurando retratar o idiossincrático e descobrir elementos importantes que pudessem emergir durante o estudo.O material base desta pesquisa foi colhido durante o ano de 1993, em uma escola pública da rede municipal de Belo Horizonte. Foi escolhida uma sala de aula de 1ª série composta por alunos novatos, de camadas populares, sendo que a maioria não havia freqüentado o pré-escolar.O meu interesse, portanto, voltou-se para o dia-a-dia da escola, para as questões rotineiras que compõem os significados construídos pelos educadores e alunos nos rituais que celebram no interior da sala de aula. Isso implicou

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apreender as "teias de significados" que alunos, professora e demais profissionais da escola teceram, na sua complexidade, irregularidade, opacidade, estranheza e incoerência a fim de buscar uma "ciência interpretativa" à procura de significados (GEERTZ,1978, p. 15) e não leis gerais que explicassem a produção do "fracasso escolar".Três questões nortearam a condução da pesquisa:1- Que relações de poder estabelecidas no contexto escolar e fora dele estarão influenciando a exclusão dos "maus" alunos do processo de alfabetização?2- Que objeto pré-construído está presente nas representações dos educadores para justificar a exclusão?3- Em que condições as dificuldades de ensino e aprendizagem se manifestam?A partir dessas questões, o estudo pretendeu romper com as explicações naturalistas, biologistas e individuais do senso comum para o "fracasso escolar" presentes, inclusive, nas práticas científicas. Trata-se, pois, de romper com o "etnocentrismo" dos pesquisadores e considerar que a "neutralidade" é falsa e a "objetividade inexiste" (THIOLLENT, 1987, p. 28). O convívio do pesquisador com os pesquisados consiste na tentativa de explicitar o que não é dito e de revelar o que está oculto no discurso, permitindo que os sintomas que mantêm intocável e inflexível o modelo teórico dos educadores se revelem. Isso é possível apenas no movimento de estranhamento entre pessoas e de aproximação, quando se pode desvelar o que está oculto e explicitar relações de que não se tem conhecimento.OS SUJEITOS DA PESQUISATrabalhei com um grupo de seis crianças. Três delas (Lauro, Fernanda e Gustavo) foram consideradas pela escola como "maus" alunos e as outras três (Neide, Glória e Francisco), "bons" alunos.Segundo a professora, "os 'bons' alunos fazem o para-casa do jeito que ela gosta, decoram as sílabas e aprendem a ler, têm hábitos de higiene, têm cadernos limpos e caprichados, vão para a escola de uniforme e calçados limpos, sabem ouvir, têm atenção, olham para o quadro, têm letra linda e seus pais comparecem às reuniões e atendem imediatamente a qualquer chamado da escola". A qualidade maior do "bom" aluno é a atenção.Àqueles que não correspondem às expectativas de aprendizagem da leitura e da escrita, por parte das educadoras da escola pesquisada, restam os rótulos de "preguiçosos", "malandros", "desinteressados ", "sujos", "lambões", "infreqüentes', "molezas", "lerdos", imaturos". São os "maus" alunos, que, de acordo com a professora, não decoram as sílabas e não aprendem a ler, não têm hábitos de higiene, têm piolhos, usam uniforme, calçados e material escolar sujos, não têm ajuda em casa e seus pais não comparecem às reuniões nem atendem aos chamados da escola. A desqualificação maior do "mau" aluno é a falta de atenção e a preguiça.COMO SE DEU O PROCESSO DE PRODUÇÃO DOS "BONS" E DOS "MAUS" ALUNOS?Durante todo o ano de 1993, em que estive dentro da sala de aula - lugar onde se manifestam e se entrelaçam as contradições e, portanto, o lugar concreto onde se produzem as dificuldades de aprendizagem da leitura e da escrita e também onde

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as interações sociais acontecem dinâmica e contraditoriamente -, foram se revelando os mecanismos seletivos e a diferença de tratamento da escola com relação aos "bons" e aos "maus" alunos.Dentro da sala de aula formaram-se duas redes de comunicação: principal e paralela (SIROTA, 1988). (Sirota parte da hipótese de que no interior de um jogo de igualdade formal entre alunos e professores, o discurso do professor e seu comportamento produzem um arbitrário cultural ou norma que define o interior da sala de aula. E é com base nesta norma implícita e subjacente ao funcionamento da sala que se produz um mecanismo de valorização e desvalorização do discurso e do comportamento de alunos, porque os alunos e professores comparam, diferenciam, hierarquizam e se espelham ou não no discurso e no comportamento do professor. Entretanto, diz Sirota, não se joga o mesmo jogo com o conjunto da sala. É aí que se pode distinguir duas redes de comunicação: uma rede de comunicação principal e uma rede de comunicação paralela.A rede de comunicação principal é aquela constituída pelos alunos que são sujeitos da comunicação, porque participam e são interessados, valorizados, têm coisas a dizer porque a situação de aprendizagem faz sentido para eles.A rede de comunicação paralela é aquela constituída pelos alunos que ocupam uma posição exterior à rede de comunicação principal na medida em que não são nem interessados, nem valorizados e desenvolvem condutas escolares ilegais e desviantes, ou são apáticos.Geralmente, os "bons" alunos, mesmo não produzindo discursos conformes à norma esperada (falam a qualquer momento, contam casos pessoais), permanecem na rede de comunicação principal, pois quando utilizam as regras explícitas (atenção, falar na hora certa, levantar o dedo para falar, etc.) de tomada da palavra tentam transpô-las para um registro implícito, negando e reconhecendo, concomitantemente, a norma escolar e, portanto, demonstrando que nesse jogo uma das regras é a exceção. Assim, o que distingue os alunos é a negociação da norma escolar que conseguem estabelecer em sua relação com a professora, quer seja pelo exagero, pela adesão, pelo retraimento ou pela oposição a ela.Os "bons" alunos estiveram, predominantemente, na rede principal de comunicação, embora, transitassem pela rede paralela. Corresponderam às expectativas de aprendizagem da leitura e escrita da escola e nem sempre corresponderam às expectativas de conduta. Glória foi a surpresa. No início do ano, esperava-se dela que não aprendesse a ler e escrever, assim como seus irmãos. Possivelmente, o reforço escolar recebido fora da escola, no Centro Estudantil da Lagoinha, tenha sido fundamental para o seu sucesso, pois ela aprendeu a ler e escrever ainda no 1º semestre.Os "maus" alunos estiveram, predominantemente, na rede paralela de comunicação, embora transitassem (raramente) pela rede principal. De um lado foram "guerreiros", enfrentando a discriminação e o preconceito, tanto por parte dos colegas quanto da própria escola, por serem negros, pardos, pobres e favelados. Tentaram aprender e participar das aulas apesar dos rótulos e expectativas negativas da escola com relação a eles. Por outro lado, corresponderam às expectativas negativas quanto à aprendizagem da leitura e da escrita, pois Fernanda e Lauro não passaram de ano e aprenderam pouco a ler e

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escrever. Gustavo não correspondeu às expectativas iniciais da escola quanto a sua aprendizagem da leitura e da escrita, pois no inicio do ano, apesar de ter sido considerado um aluno fraco, aprendeu a ler e escrever. O que se enfatizava era o seu "mau" comportamento e não as suas dificuldades de aprendizagem, diferentemente de Lauro e Fernanda, que desde o início do ano foram considerados "com dificuldades mesmo" para a leitura e a escrita.Outro mecanismo de seleção presenciado foi a ação do poder disciplinar(Segundo Foucault (1989), foi no século X\/III que se inventaram as técnicas disciplinares e o exame, com o objetivo de transformar os homens em força de trabalho produtiva, proporcionando-lhes o sentimento de utilidade máxima e diminuindo sua capacidade de revolta, de resistência, de luta, de insurreição contra o poder instituído. Em outras palavras, o poder disciplinar tem o objetivo de tornar os homens dóceis politicamente. A disciplina é um tipo de organização do espaço, é um controle do tempo e a vigilância é um dos principais instrumentos de controle. Ela deve ser continua, ser vista por todos, mas com discrição da parte de quem vigia. Assim "o poder disciplinar é uma técnica, um dispositivo, um mecanismo, um instrumento de poder. São métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que asseguram a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade" (FOUCAULT, 1993, p. XVII). No século XIX as relações de poder ganham positividade porque produzem saber. É um poder característico de nossa época, de nossa sociedade, que ocorre pela vigilância, por separações, por medidas comparativas, e que tem a norma como modelo). (FOUCAULT, 1989) na constituição de "bons" e de "maus" alunos. Quem se encaixou nas regras do jogo escolar avançou na aprendizagem, mesmo que muitas vezes as negassem. O contrário ocorreu com aqueles alunos que não iam para a escola com os cabelos limpos e penteados, que não levavam material escolar e nem cuidavam deles com capricho, que não prestavam atenção as aulas, que brigavam com os colegas, que eram "imaturos", "bloqueados" e cujas famílias não compareciam à escola nem ajudavam os filhos a fazerem o para-casa, ou seja que rompiam com as regras escolares explícitas. Esses aspectos como vimos, caracterizam os "maus" alunos e foram usados para explicar suas dificuldades na leitura e na escrita. Assim, a "culpa" das dificuldades recaiu sobre as crianças e seus familiares, revelando que a escola ainda está presa às teorias do "bandicap sociocultural"( Teoria do bandicap sociocultural - surge nos anos 60, nos E.U.A. e defende uma "superioridade" do controle cultural das classes dominantes, em confronto com a "pobreza cultural" do contexto em que vivem as classes dominadas, O contexto é que é responsável pelos "déficits" das crianças de camadas populares que se vêem privadas de alimentação, de atenção, de cultura, apresentando "carências", sobretudo no campo intelectual.) assim como às teorias"cognitivistas"( Teoria cognitivista - aparece e se desenvolve na França, nos E.U.A. e na Grã-Bretanha, logo depois da 2º guerra mundial (FIJALKOW, 1989). Nasceu da psicologia e pretendeu fazer a crítica à concepção organicista. Busca as origens das dificuldades de aprendizagem da leitura e da escrita na inteligência, na percepção, nas imagens, na integração de sentidos auditivos e visuais, na memória imediata, na atenção seletiva e na linguagem, ou seja, naquilo que ela denomina de déficits cognitivos)

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e "organicistas"( Teoria organicista - surge na França, no século XIX, da medicina: os médicos localizavam as causas das dificuldades de aprendizagem da leitura e da escrita no cérebro. Alguns estudiosos defendem que tais dificuldades são inatas, outros que são adquiridas e ainda há aqueles que não entram na polêmica do inato/adquirido e localizam-nas na não-maturação do sistema nervoso central.para explicar a não-aprendizagem dos "maus" alunos. Revela também que a escola ainda não percebe que as dificuldades são de ensino e de aprendizagem, que entre crianças de camadas populares e escola existe uma relação que não está sendo questionada. Trata-se de uma relação arbitrária, cultural: apenas aqueles alunos cujo babitus (Habitus - O habitus (BOURDIEU, 1983) produz comportamentos, linguagens, posturas, gestos, valores, costumes. Não é uma "espécie de essência a-histórica, cuja existência seria o seu desenvolvimento, enfim um destino definido de uma vez por todas" (p. 106). Ele indica não só as regras de comportamento aprendidas em casa, como também as maneiras de falar, de ser, ou seja, a subjetividade das crianças, que por sua vez denuncia suas origens de classe. Assim, o habitus é produto das relações sociais. Ele tende a assegurar a reprodução dessas mesmas relações e não possui o domínio consciente das ações, pois ultrapassa sempre as intenções conscientes. É um processo de internalização da objetividade que ocorre de forma subjetiva, mas que não é apenas individual, é também social).se aproxima do babitus que a escola valoriza se saem bem na aprendizagem da leitura e da escrita.Os "bons" alunos, apesar de chegarem à escola com habitus diferentes daqueles valorizados pela escola, logo se adaptaram, estabelecendo-se, assim, uma relação positiva entre ambos.Os "maus" alunos não se adaptaram tão facilmente ao que a escola valoriza, sendo, portanto, discriminados e desvalorizados por ela.Todas as crianças demonstraram perfeito conhecimento das regras escolares quanto ao comportamento no pátio, na cantina e na sala de aula. Se não agem de acordo com elas, não é por desconhecimento. O que se percebeu é que os "bons" alunos acatam mais as ordens disciplinares, embora intervenham mais vezes e com mais intensidade na sala de aula do que os "maus" alunos. Tanto os "bons" quanto os "maus" alunos assumiram o discurso da escola para explicarem suas medidas punitivas (ora de ordem simbólica, ora de ordem física) com relação à bagunça dos "maus" alunos, ou seja, utilizaram a palavra "preguiça", a mais usada na sala de aula, para explicar a razão da não-aprendizagem e do mau comportamento de algumas crianças.Outro mecanismo de seleção de alunos diz respeito à aprendizagem da leitura e da escrita. Em nossa pesquisa, os "bons" alunos demonstraram maior conhecimento lingüístico que os "maus" alunos, como se pode ver nos exemplos seguintes:1- Numa conversa informal e individual com Lauro apresentei-lhe uns toquinhos de madeira com letras vermelhas, de imprensa, maiúsculas, em relevo. Pedi que formasse palavras com eles.Lau. Vou formar "lata" e formou: DACIXA.Pesq. O que você formou?Lau. DA.

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Pesq. DA é letra, é sílaba ou nome de pessoa?Lau. É nome de pessoa.Pesq. Lê o que você formou.Lau. DAQUIXA.Pesq. O que é DAQUIXA?Lau. Num sei.Logo depois começou a formar a palavra RITO e leu-a. Depois formou BOFL e leu BOELA. Formou VLA e leu VELA. Formou TUFA e leu TATU (disse que usou a letra F no lugar da letra T porque estava faltando).Esse aluno apresentou palavras treinadas na escola, com produções variadas, tornando-se difícil determinar seu nível de elaboração conceitual da língua escrita, pois os dados pesquisados foram insuficientes para afirmar em que nível ele se encontra. Vê-se um esforço mental para compreender a língua escrita e não erros aleatórios ou esquecimentos.Fernanda, por sua vez, diante dos toquinhos de madeira formou: IAFP e não soube dizer o que formou. Mas apontou as letras A,U,S e F corretamente e reafirmou que o F era de Fernanda. Depois formou EIAO e disse ter formado MISAEL, nome de seu irmão. Formou também ElO e disse que a letra E seria a letra M, pois tinha formado MARLENE, nome de sua irmã (hipótese silábica). Formou POAIA e disse que era o nome de seu irmão PEDRO. Não soube dizer o nome da letra P e disse ser T.Essa aluna procura dar significado ao que escreve por meio de nomes de pessoas ligadas a ela afetivamente, não se restringindo às palavras com sílabas simples e treinadas na escola. Indica que sabe que deve usar letras variadas para escrever palavras diferentes, mas não tem o domínio, o conhecimento específico das letras que formam as palavras. Aparece na sua produção a hipótese silábica.Num encontro com Neide, Francisco e Glória procurei saber quais conhecimentos linguísticos esses alunos haviam acumulado.Pesq. O que vocês aprendem na sala?Nei. Nóis aprende a ler, aprende sílaba.Fer. As sílabas.Glo. Hoje mesmo, a tia passou sílabas novas e amanhã vai dar o ditado das sílabas.Pesq. O que é sílaba?Nei. Sílaba é ba,be,bi,bo,bu; ma,me,mi,mo,mu; é as letrinhas dos nome que nós vamo aprender.Pesq. O que é palavra?Glo. Palavra é juntar as sílabas uma com a outra - o "la"e o "ta" dá lata.Pesq. O que é frase?Nei. É nóis fazer assim: A vaca é do papai.Pesq. O que é composição?Todos - Ah! Isso eu num sei não.Pesq. O que é escrita?Nei. Escrita é nome que fica na roupa, igual este aqui.Pesq. O que está escrito na sua roupa?Todos. Escola Municipal .......Pesq. O que é leitura?

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Nei. Leitura é assim o:Glo. É a gente...Nei. A bola rola... rola...A bola rola na rua.A rola voa.., voa...Todos- A rola voa no espaço.A lua rola... rola...A lua rola no céu.Pesq. Vocês sabem de cor?Nei. É do livro.Essas crianças sabem diferenciar sílaba de palavra e de frase. Possivelmente o termo composição esteja fora de moda e por isso não souberam defini-lo. O termo usado na escola é redação ou produção de texto .A definição de escrita desses alunos não faz relação com o que eles aprenderam na escola. Provavelmente porque no processo de ensino e aprendizagem, a escrita tenha sido transformada em mera cópia, não permitindo, portanto, a essas crianças fazerem a relação de sua aprendizagem com a escrita. A definição de leitura dada por eles ficou reduzida ao escolarmente aprendido, não se relacionando com o que estava escrito na camisa de uniforme, por exemplo. Vimos que o fato de decorarem o "texto" da cartilha que elas chamam de livro se configura como aprendizagem de leitura. O aprendizado se fez de forma descontextualizada, com ênfase na memorização de letras, sílabas, frases e "textos". No entanto, alguns alunos obtêm sucesso.O que se observou também foi que ambos ("bons" e "maus") esperam, com a mediação da escola, uma promoção social e a possibilidade de melhores empregos e salários do que os de seus pais. Por exemplo, quando lhes perguntei para que aprendem a ler e escrever disseram:Ig. Pra ter uma profissão. Quem sabe ler e escrever ganha mais.Glo. Pra gente ter um serviço, num fazer nada errado, prestar atenção.Gus. A gente cresce, aprende tudo, arranja um serviço e vai a mãe tá cansada e o filho fica trabalhando. E a mãe fica arrumando a casa.Tanto os "bons" quanto os "maus" confrontaram o discurso da escola com seus discursos, como por exemplo: "A gente não fala nada, ela que quer fazer". A escola diz que combina regras com os alunos e eles dizem que não. Outro exemplo: "Nu, a tia encheu o quadro"! Era cópia do começo ao fim do ano, mesmo querendo fazer uma prática agradável e inovadora. Ainda: - "A tia chamou a Neide".- "Chamou!!?? Chamou!!?? As crianças percebem as diferenças de tratamento dentro da escola mesmo que o discurso dos educadores seja elaborado em torno de questões de igualdade: "aqui todos são iguais e irmãozinhos". Percebem as negociações implícitas e as explícitas que são feitas entre a professora e os "bons" alunos, principalmente.Todas as crianças demonstraram grande capacidade de reflexão sobre a língua escrita através das variações ortográficas(Variações ortográficas - Alvarenga (1995) utiliza o termo variação ortográfica no lugar de erro ortográfico, pois segundo esse autor, a palavra erro se define em referência a um quadro teórico que admite a existência de uma norma social definida previamente, como único

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referencial "correto", tudo o mais sendo considerado como incorreto. Neste quadro, a língua é estudada como um objeto fechado, pronto e acabado. A aprendizagem é vista como apreensão ou assimilação de normas lingüísticas impostas pelo sistema social. A avaliação é vista como a medida dos resultados e nunca do desenvolvimento dos mecanismos com os quais operam os alunos. Assim, as construções ortográficas dos educandos, que diferem da norma padrão, são rejeitadas, riscadas, desvalorizadas e consideradas como erros.O termo variação ortográfica parte do ponto de vista de que a língua é um objeto de conhecimento aberto, em construção. Que a aprendizagem é uma tarefa de conceitualização, caracterizando-se como a compreensão dos princípios organizadores da língua, por parte dos aprendizes. Assim, eles não violam as regras, as normas, mas suas construções são o produto de uma elaboração intensa, produtiva e dinâmica, o resultado da aplicação de numerosas hipóteses implícitas.). Variações que foram consideradas pela escola como aquilo que as crianças "não" aprenderam. Entretanto, elas ocorreram nos pontos de instabilidade estrutural da língua, indicando reflexão das crianças e não algo aleatório, gratuito.Tanto os "bons" quanto os "maus" alunos produziram variações no sentido de se regularizar a escrita das palavras. Ou seja, produziram variações ortográficas tanto no plano acentual quanto silábico, em direção ao acento mais canônico da língua portuguesa, o "paroxítono", e em direção à sílaba mais canônica da língua portuguesa, a "CV". Os exemplos dão visibilidade ao que foi dito:VARIAÇÕES ORTOGRÁFICAS, NO NÍVEL DA SÍLABA, PRODUZIDAS NOS PONTOS DE INSTABILIDADE DA LÍNGUA:1- "cademilha" no lugar de academia - as variações ocorreram nas sílabas não-canônicas - cai o "a" inicial e acrescenta-se "lh" na sílaba CVV tentando transformá-la em CV.2- "dinadica" no lugar de ginástica - variações de diversas naturezas ocorrem nesta grafia, todas elas ligadas à percepção auditiva; ou seja, os sons são muito parecidos, mas ou se distinguem em relação às cordas vovais ("t" é consoante surda e "d" a sonora correspondente) ou em relação ao ponto de articulação (g é palatal e "d" é linguodental). As trocas de consoantes indicam problemas na articulação ou inversão no momento de representar distinções feitas na fala. É interessante observar a tentativa de transformar a única sílaba não-canônica em silaba canônica: "nás" em "na".mamãe está numa cademilha de dinadica latei toda dinadiaA cademilha é bonita.VARIAÇÕES ORTOGRÁFICAS, NO NÍVEL DO ACENTO:1- "frenti" no lugar de frente, "tei" no lugar de tem, "ti" no lugar de te: as sílabas fracas mostram maior ponto de instabilidade (sílabas não acentuadas e aquelas com acento na última e antepenúltima sílaba). As vogais átonas /e/e /o/ sofrem um processo de alçamento, passando a /i/e/u/ respectivamente.Ainda no nível acentual ocorre a formação de palavras fonológicas e grupos de força:Ex. de palavras fonológicas: "nacasa"/na casa "uminino"o menino. Isto se explica porque palavras que não têm acento próprio, como o artigo ou a preposição, serão sempre ligadas, do ponto de vista fonológico, a uma outra palavra portadora de

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acento. O artigo ou preposição passa a fazer parte da palavra seguinte.Ex. de grupos de força: "lateto"/lá dentro "latei"/lá tem, "jalicontei"/já lhe contei. Aqui, a explicação se encontra no fato de que palavras que têm acento próprio quando isoladas (adjetivo, advérbio) podem ter seu acento rebaixado devido à presença de outra palavra portadora de acento principal no grupo. No exemplo, "lá" tem acento enquanto isolada e é rebaixado em função do acento principal, formando um só grupo de força.Papai tei umacasa.A casa e tão bonitaNa frenti tei muita gramaNacasa latet e toda pintada(acima deste texto há uma figura de uma casa )inegesia do copodenegsia(acima desta frase há uma figura do corpo de bombeiro)As crianças da pesquisa produziram mais variações de fusão do que de cisão (CARVAIHO,1994), demonstrando que estavam ainda se valendo de critérios fonológicos, mais do que de critérios semânticos e sintáticos para escreverem - escrita que é própria dos principiantes na aprendizagem da leitura e da escrita. Exemplo de fusões: "jalicontei", "omenino", "nacasa". Exemplos de cisões: "a codado", "mu le pe lada", "um lepelada", "mu lepe lada".Geraldo gosta de mu lepe ladao Willian gosta de mu le peladao Geraldo gosta de mu lepeladaestá de noite a lagoa estáfrio tem tubarão cuidadoO tubarão está a cordado cuidamamãe o tubarão está a codaEle vai ti moder mamãevamos dumir mamãe( acima deste deste texto há uma figura de um mar à noite)As crianças que já segmentavam as palavras produziram escritas alfabéticas, e as crianças que ainda não segmentavam produziram escritas pré-silábicas, silâbicas e silábico alfabéticas.O que se verificou foi uma enorme vontade e capacidade de aprendizagem tanto dos "bons" quanto dos "maus" alunos. Se estes não avançaram mais, foi porque não lhes foram dadas as condições necessárias e suficientes para tal por parte da escola e de suas famílias.O que se viu também foi que a profecia que se auto-cumpre e o efeito Mateus(Efeito Mateus - descrito por Stanovich (1986, 1988); citado por Lecocq (1992). Segundo este autor, o efeito Mateus se refere à expressão tirada do Evangelho segundo São Mateus: "os ricos se enriquecem e os pobres se empobrecem" (p. 170) direcionaram a prática pedagógica observada. Deu-se às crianças o que elas conseguiriam fazer sozinhas, pois segundo a professora, "não adianta dar coisas muito difíceis porque eles não conseguem fazer sozinhos e eu tenho que fazer junto com eles. Eles (sistema de ensino) tinham que fazer uma coisa mais simples que isso que já vem pronto pra você dar. Porque os bons pegam, mas e os outros? Eu acho que tem muito valor dar coisas que eles sabem

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fazer sozinhos".Esta fala mostra o desconhecimento, por parte da professora, do conceito de "Zona de desenvolvimento proximal"( Zona de desenvolvimento proximal - Ela é a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes)(VYGOTSKY, 1989, p. 97) de Vygotsky, que pode ser um instrumento valioso de intervenção dos professores no processo de ensino e aprendizagem porque proporciona tanto às crianças quanto aos adultos a construção e reconstrução de conhecimentos, pois parte do pressuposto de que é na interação social que se aprende e se desenvolve. Ou seja, o que já vem pronto pode e deve ser questionado e reformulado em função das necessidades e interesses tanto dos alunos quanto dos professores.Segundo Vygotsky (1989), não se pode ensinar às crianças através de explicações artificiais, por memorização compulsiva e repetição apenas. O que uma criança necessita é de adquirir novos conceitos e palavras para atribuir sentido e significado ao que aprende. E um conceito não é apenas a soma de certas ligações associativas formadas pela memória, assim como não é, também, apenas um simples hábito mental; é um complexo e genuíno ato de pensamento, um ato de generalização, que envolve a atenção deliberada, a lógica, a abstração e a capacidade de comparar e diferenciar. Esses processos psicológicos não são adquiridos por simples repetição ou rotina pedagógica, mas por um grande e longo esforço mental por parte da criança, em interação com adultos e outras crianças.Assim sendo, aprender a ler e escrever, por exemplo, é muito mais de que adquirir habilidades básicas. É principalmente construir, obter e atribuir sentido e significado à aprendizagem. Ou seja, em lugar das habilidades básicas, devemos considerar as atividades básicas, nas quais o que se percebe são os usos funcionais da linguagem, que sejam relevantes e significativos, o que implica ver a linguagem como uma totalidade. Portanto, no processo de ensino e aprendizagem, o que se recusa é a abordagem mecânica e a redução da leitura e escrita a seqüências de habilidades ensinadas isoladamente ou sob a forma de estágios sucessivos. Para isso, enfatiza-se a criação de contextos sociais (zonas de desenvolvimento proximal) nos quais as crianças aprendam ativamente a usar, provar e manipular a linguagem, colocando-a a serviço da atribuição de sentido ou da criação de significado (GOMES & FARIA FILHO, 1997).Se por um lado o efeito Mateus e a profecia que se autocumpre direcionaram a prática pedagógica observada, por outro, há que se questionar a estrutura política e social que a sustenta e alimenta. Há que se questionar e relacionar essa prática com a organização das escolas públicas, com os sistemas de avaliação dessas escolas, com os baixos salários e com as condições de trabalho dos profissionais que nelas estão. Há que se questionar a formação desses profissionais nos cursos de magistério e universidades.Assim não cabe "culpar" a escola ou os professores e especialistas ou os alunos e seus familiares pelo "fracasso escolar" de determinados alunos (os mais pobres). Cabe, sim, fazer relações entre a prática pedagógica mencionada e as estruturas que a sustentam, fazer relações entre crianças de camadas populares e escola

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pública. Assim, estaremos dando um passo à frente para a democratização do ensino no Brasil.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASALVARENGA, Daniel. Análise de Variações Ortográficas. Rev. Presença Pedagógica, v. 2, ano 1, mar./abr., 1995.BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.CARVALHO, Gilcinei T. O processo de segmentação da escrita. Faculdade de Letras, UFMG, 1994. (Dissertação de mestrado.)CARVALHO, Mauro Giffoni de. Os "bons" e os "maus": interação verbal e rendimento escolar. Belo Horizonte: FaE/UFMG, 1993. (Dissertação de mestrado.)FERREIRO E. & TEBEROSKY, A. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.FIJALKOW Jacques. ?Malos Lectores por qué? Madrid: Biblioteca del libro, 1989.FOUCAULT Michel. Vigiar e punir História da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1989.GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.GOMES, Maria de Fátima Cardoso. Chico Bento na escola: um confronto entre o processo de produção de "maus" e de "bons" alunos e suas representações. Belo Horizonte: FaE/UFMG 1995. (Dissertação de mestrado.)GOMES, Maria de Fátima Cardoso & FARIA FILHO, Luciano Mendes. Memória e aprendizagem: uma perspectiva sócio-histórica. Rev. Presença Pedagógica, v.3, n.15, mai./jun. 1997.GRIFFO, Clenice. Dificuldade de aprendizagem na alfabetização: perspectivas do aprendiz. Belo Horizonte: FaE/UFMG, 1994. (Dissertação de mestrado.)LECOCQ, P. (org.). Accessibilité à l'écrit et apprentissage de la lecture. In: La lecture. processus, apprentissage, troubles, Lilles: Ed. Presses Universitaires, 1992.MACIEL, Francisca Izabel Pereira. Pais e filhos diante do fracasso na alfabetização. Belo Horizonte: FaE/UFMG, 1994. (Dissertação de mestrado.)RESENDE, Valéria Barbosa de. Fracasso e sucesso escolar os dois lados da moeda. Belo Horizonte: FaE/UFMG, 1994. (Dissertação de mestrado.)SENA, Maria das Graças de Castro. A educação de crianças: representações de pais e mães das camadas populares. São Paulo: USP, 1990. (Tese de Doutorado em Psicologia Escolar.)SILVA, Maria Cristina da. Fracasso escolar a subjetividade em questão. Belo Horizonte: FaE/UFMG, 1996. (Dissertação de mestrado.)SIROTA, Regine. A escola primária no cotidiano. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.THIOLLENT, M.J.M. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. São Paulo: Ed. Polis, 1987.QUATRO HISTÓRIAS E DOIS DESTINOSMauro Giffoni de Carvalho(Doutorando em Comunicação e Cultura pela UFRJ e professor-pesquisador do UNICENTRO-BH.)Dos "bons" e dos "maus"Quatro crianças, com pais cuja condição socioeconômica se assemelha à da maioria dos subproletariados brasileiros, foram estudar, no primeiro semestre de 1992, numa escola municipal localizada entre a favela onde moravam e um

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grande bairro da cidade. Quatro histórias de vida, de convivências, de acessos e de experiências muito parecidas até ingressarem na escola. Quatro histórias e dois destinos. Assim começam as histórias dos "bons" e dos "maus".Essas quatro crianças e mais outras vinte e seis encontraram-se pela primeira vez com a professora. Era o primeiro dia de aula de uma turma de alunos novatos. Parecia que ali ninguém conhecia nada de ninguém. Tudo era novidade: a grande sala chamada de "laranja", as carteiras enfileiradas, o quadro negro ladeado por cartazes que desejavam "boas vindas", uma grande janela que cortava toda a lateral da sala e os novos colegas. A professora, sorrindo, distribuía pelas carteiras folhas usadas de computador. Hora da chamada: "escrevam seus nomes!". Todos sentados e calados atendem à solicitação feita.De repente, o silêncio é quebrado por um aluno, José (Os nomes dos alunos e da professora, neste artigo, são fictícios ), que se diz o mais rico da sala. Desencadeia-se, nesse momento, uma série de falas comparativas por toda a sala:- Olha, professora - diz Ana - meu pai dá som no DCE!- E o meu, professora - diz Pedro - tem um carro!- Meu pai ganha muito dinheiro, "nó" - exclama - tem um bolão assim de dinheiro lá em casa!- Mas o meu é o mais rico - retruca José.Com um sorriso terno, a professora Nádia interrompe a disputa de notoriedades e todos se voltam para a realização das atividades programadas.Que razões teriam levado esses alunos a interromper o silêncio dos primeiros dias de aula, com afirmações que pareciam despropositadas para aquele momento? Num ambiente onde todos eram economicamente carentes, por que comunicar uma suposta riqueza? Poderiam essas falas constituir um ingente esforço de reconhecimento social que aproximasse esses alunos da professora e os distinguisse dos demais colegas? E o sorriso, um "já sei", indicaria que a professora já possuía uma leitura prévia desses discursos?Ao verbalizarem essa condição, esses alunos pareciam tentar, ainda que de forma inapropriada, buscar, forçadamente, um reconhecimento social que os aproximasse da professora e da cultura escolar. A suspeita de que a professora poderia valorizar mais os alunos que possuíssem um maior capital econômico era o primeiro passo da negociação para ser considerado um "bom" aluno e, consequentemente, para obter aprovação.O diálogo desses alunos parece comprovar a visão estigmatizada que a clientela, geralmente, recebe das instituições escolares públicas. O preconceito maior da escola, via de regra, está voltado para as condições de vida de seus alunos e para a chamada assistência em casa. A respeito da classificação dos alunos segundo suas condições de vida, ela pode ser resumida conforme descreve Teves (1989):As condições de vida do aluno passam a servir de critérios a sua própria identificação: ele é morador de uma favela, seus pais, quando conhecidos, vivem separados. Ele convive com péssimas condições de higiene, o vocabulário familiar é bastante restrito, sua alimentação é bastante precária, enfim, é possível identificá-lo mediante uma metodologia específica classificatória. O resultado desse tipo de tratamento do aluno é confundi-lo com as suas condições de existência. Identifica-se nele mais o que lhe falta do que ele tem, sem se discutir

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por que lhe falta ou o sentido que têm para ele aquelas faltas. Elabora-se, com isso, o discurso descritivo da carência. (p. 29)Quais seriam, então, as vias, os discursos que podem causar o reconhecimento do "bom" aluno? O que poderia a professora valorizar nesses alunos? Estaria condicionado o reconhecimento dos considerados "bons" a um tipo de estrutura familiar que se aproxima da estrutura familiar da professora, isto é, de acordo com os padrões de organização das famílias de classe média?As previsões sobre o futuro escolar desses alunos pareciam relacionar-se, porém, muito mais à prática discursiva (re)construída e negociada por eles e pela professora, a partir de seus contextos culturais do que às diferenças econômicas. A cultura escolar, em geral hegemônica e rotuladora, se confrontaria diretamente com as outras formas de interação social e discursivas trazidas pelos alunos. Estes, quando chegaram à escola, trouxeram consigo uma identidade, um mundo real particular, já categorizado e referenciado a um conjunto de relações sociais abrangentes, construídas através de vivências variadas no seu cotidiano. O desafio era explicar em que se baseavam e como eram construídos os conceitos de "bom" e de "mau"numa sala de aula.A constituição do sentido do "bom" e do "mau" aluno se realizaria, nos primeiros dias de aula, durante a interação verbal entre os alunos e a professora. Na sala de aula, sentidos e significações, produzidos no jogo social mais amplo, se confrontariam à luz dos interesses pessoais de seus interlocutores.A maioria das situações de interação verbal observadas na sala de aula estava conformada à dinâmica de funcionamento das escolas públicas. A apropriação da cultura escolar implícita nas ações pedagógicas do professor expressava-se através de uma postura na sala de aula coerente com a lógica autoritária/assistencialista da burocracia do sistema de educação pública brasileiro (Nesse sentido, seria impróprio, além de um equivoco de graves repercussões, apontar a professora como responsável pelo fracasso escolar de seus alunos. As ações pedagógicas da professora, bem como seu discurso na interação verbal com seus alunos mostram que elas se explicam na lógica do sistema escolar, que a leva a apropriar-se de concepções de ensino-aprendizagem mecanicistas e de práticas disciplinares, constituindo, assim, "verdadeiras estratégias de sobrevivência").(Para maiores informações sobre esse tema, ver texto de Gomes que faz parte deste livro.).Essa característica das instituições escolares evidenciava o quanto são assimétricas e divergentes as interações social e discursiva entre professores e alunos, inclusive no tocante à produção e à recepção de formas simbólicas relacionadas ao sucesso ou fracasso escolar. Nessa interação alguns alunos iriam adquirir o reconhecimento e a identidade de "bons", indicativos do sucesso escolar, enquanto outros, os "maus", não teriam o conhecimento nem o reconhecimento da professora e de seus pares, não sendo merecedores da aprovação escolar.Para a realização de um "bom negócio", o domínio da linguagem escolar era fundamental para o alcance da aprovação. O estudante capaz de apresentar uma linguagem mais próxima da linguagem escolar tenderia a obter maior simpatia e aceitação da professora, tendo mais chance de ser considerado um "bom" aluno. Em contrapartida, os considerados "maus", por utilizarem menos eficientemente a

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linguagem e as formas de pensamento preexistentes na cultura escolar, sobretudo nos primeiros dias de aula, pouco a pouco ingressavam no bloco monolítico dos estudantes tidos como "fracos", como demonstra a situação ocorrida.Os alunos foram desafiados a disputar quais eram os melhores da sala: os meninos ou as meninas? A professora explicou que iria mostrar várias fichas e depois eles deveriam reconhecer a mesma palavra escrita no quadro-negro e ligá-las com um traço.RODINHA ATENCÃOBOA TARDE RODINHAATENCÃO POR FAVORMERENDA ATENCÃOPOR FAVOR SILÊNCIO(fig. 1: quadro-negro)Era a vez de Paulo. A professora lhe mostrou a ficha MERENDA.. Paulo foi até o quadro e colocou a ponta do giz na palavra MERENDA e ficou um grande tempo procurando a outra palavra que deveria ligar. A professora interveio:- Tem crianças que ficam brincando na sala e é por isso quealguns aprendem mais depressa do que outros!Nesse momento, ao meu lado, Milena suspirou:- Ai que sono...Finalmente, Paulo resolveu ligar a palavra MERENDA com RODINHA. A professora, olhando para a turma e para ele perguntou:- A resposta está correta, gente?- Está erraaaada! Responderam todos num tom bem alto e prolongado.A professora, então, mostrou a diferença das duas palavras pelo significado e pelas letras uma a uma. A atividade foi concluída pela leitura coletiva de todas as fichas.Supus que tal situação não poderia ter acontecido senão com Paulo. Ele era uma criança que demonstrava ser muito calada na sala e que, quando falava, mal se ouvia Sua voz. Utilizando-se de um exercício que expunha o aluno a todos os colegas, a professora, consciente ou não, pôde confirmar suas hipóteses, representações e expectativas em relação aos seus "bons" e "maus" alunos na sala de aula. Talvez, com esse tipo de atividade, houvesse nela muito mais a intenção de identificar os "bons"e os "maus e muito menos o propósito de ensinar ao Paulo, nesse exercício, as regras da língua escrita, a partir da lógica contida no seu erro.Em nossa sociedade, a escola não só legitima uma seleção meritocrática dos mais capazes para o desempenho das funções mais relevantes, associado às maiores recompensas econômicas e políticas, como também constitui-se num importante veículo da transmissão de valores morais, atitudes e comportamentos da cultura que se afirma como hegemônica.Entre nós é costume separar o bem do mal, o céu do inferno, a virtude do pecado, o normal do anormal, o apropriado do inapropriado, o certo do errado e assim por diante. Nossa tradição judaico-cristã (mais cristã do que judaica) é a principal incentivadora dessa divisão. Esse procedimento, que é freqüentemente utilizado pela Igreja, foi também adotado pela educação, não somente em sua didática, mas também como meio de justificar as injustiças sociais e a sua própria

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incapacidade de ensinar os que se confrontam com os programas de ensino preestabelecidos, muito semelhantes às liturgias. O mito do "bom" versus o "mau" sustenta a crença da cultura escolar de que a repetência é boa para o aluno e que, por sua vez, é de boa qualidade a escola que muito reprova.Compreender a dinâmica das interações verbais na sala de aula implicaria, também, conhecer o cotidiano desses alunos na escola e na família. Participar do dia-a-dia escolar e de suas rotinas, que são pano de fundo do processo de ensino-aprendizagem, possibilitaria identificar as contradições mais específicas do processo de interação verbal.NEM "BOM" NEM "MAU"No final do primeiro semestre daquele ano, escolhemos uma amostra constituída por quatro alunos: dois com "melhor" rendimento e dois com "pior", segundo os critérios da professora(No que concerne à avaliação e ao rendimento escolar, as decisões do professor, quanto ao sucesso ou ao fracasso de seus alunos, valeram-se muito mais de critérios estribados em hábitos, valores, estilos de linguagem e pensamento do que da qualidade e produtividade intelectual deles). Procuramos observar as interações verbais desses quatro personagens dentro e fora da sala de aula.Cena 1- Sala de aula. Numa tarde de junho, a professora perguntava a cada um dos alunos o nome das letras e das sílabas escritas no quadro. O que parecia ser básico para a leitura e a escrita, numa determinada concepção de aprendizagem, na verdade se traduziu, para o primeiro desses dois alunos considerados fracos, numa novidade. Quando argüido, respondeu com um tom de voz quase inaudível, revelando um desconhecimento das vogais, o que causou um olhar de espanto na professora. O seu lugar social na sala de aula se configurava, a cada dia que passava, no discurso do silêncio: não entendia o que a professora lhe dizia nem se fazia entender.Cena 2 - Fora da sala de aula. Numa sala de artes da escola, os quatro alunos da amostra foram jogar um tipo de jogo da memória (Bingo Educativo - série animais). Fiz para todos a leitura das regras do jogo, que consistia em completar as cartelas com figuras de animais como na regra do jogo de memória. Apesar de toda a atenção (ou tensão) causada pela situação de jogo, todos tiveram seus momentos de erro e de acerto. Nessa partida, um dos "bons" foi o vencedor, o segundo lugar coube a um dos "maus", seguido por um "mau" e um "bom", respectivamente.Cena 3 - Fora da escola. Numa das raras atividades extraclasse promovidas pela escola, fomos ao Parque Municipal de Belo Horizonte. Ficamos nesse local uma grande parte da tarde brincando, andando, conversando e contando histórias. No final da tarde, depois do lanche, a professora convidou-nos para observar os peixes que estavam na margem do lago. O segundo aluno considerado fraco, levantando os braços e gesticulando, disse-me:- "Mauro, é muito melhor essa aula do que a outra, a nossa mão fica livre!". E continuou:- "Todas as aulas podiam ser assim, não é?"Nas atividades extraclasse promovidas pela escola, os alunos pareciam estar mais interessados em fazer o que era proposto pela professora e mais solidários com os seus colegas. Por outro lado, fora do contexto escolar, a professora mostrou-se

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mais próxima dos alunos, estabelecendo com eles mais situações de interação verbal.Um comportamento (rendimento) diferente do encontrado na sala de aula pôde ser observado quando foram criadas novas situações fora da sala. A mudança de contexto das interações como, por exemplo, nos jogos, nas dramatizações, nos desenhos, nas conversas informais, mostrou que o grupo dos "bons" e dos "maus" se comunicava mais e melhor, pois ali as regras da cultura escolar estavam diluídas e poderiam ser estabelecidas outras regras, conforme as suas próprias referências culturais. Como conseqüência, os alunos tidos como "maus" apresentaram, freqüentemente, um rendimento equivalente, ou até mesmo superior, ao dos alunos tidos como "bons".Ser dos "bons" ou ser dos "maus" é muito relativo, assim como são relativos os conceitos de certo e errado, de normal e anormal, de verdade e falsidade etc. Na vida, isso depende de muitos fatores e contextos. Segundo Orlandi (1988), o lugar da constituição do sentido e da identificação do sujeito se realiza durante sua formação discursiva. Dessa forma, é na interação verbal que o aluno-sujeito se reconhece e é reconhecido por seus pares e pela professora como um dos "bons" ou como um dos "maus". Para se buscar uma melhor compreensão das diferenças de rendimento dos alunos das camadas populares, numa mesma sala de aula, há que se levar em conta as relações discursivas - a intertextualidade - que são produzidas no processo de interação, as quais, por sua vez, são apropriações de referências culturais distintas.Na escola, as diferenças de interação verbal entre os "bons" e os "maus" alunos poderiam advir da trajetória percorrida pela família, da origem rural ou urbana, dos deslocamentos ou do enraizamento no espaço geográfico, ou explica-se pela presença de interação com parentes escolarizados e pelo contato com outros modelos socioculturais.Os resultados de nossa pesquisa, de certa maneira, confirmam a tendência da escola em atribuir a seus usuários a responsabilidade por todos os defeitos e dificuldades de sua aprendizagem e de seu ajustamento escolar. Um contato mais prolongado e direto com os alunos e com suas respectivas famílias mostrou-nos a heterogeneidade do corpo discente, no tocante às formas de falar, de responder às perguntas, ao estilo de pensamento, a valores, hábitos, crenças, aceitação ou recusa de normas disciplinares, vestimentas etc. Seria impróprio, portanto, fazer uma generalização do aluno "pobre". Os alunos das camadas populares não constituem, culturalmente, um bloco monolítico e homogêneo. (Para maiores informações sobre o tema, ver o texto de Maria Cristina da Silva que faz parte deste livro.)Em suma, o "sinal distintivo", que diferencia os alunos entre si, está na relação que cada um estabelece com a cultura escolar. A relação que eles mantêm com o contexto sociocultural do ambiente familiar impregna todas as suas atividades escolares e todas as suas formas de interação verbal.Nossa história termina acenando para a possibilidade de se criarem, na escola, situações de interação, de aprendizagem e de avaliação condizentes com o contexto cultural de sua clientela e propiciadoras da aquisição do conhecimento indispensável ao sucesso escolar. Tratar igualmente os diferentes ou generalizar os alunos em "bons" e "maus" pode constituir-se em fonte de injustiças e de mal-

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entendidos, quando não são compreendidas as suas diferentes histórias e suas diversidades culturais na interação escolar.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASCARVALHO, Mauro Giffoni. Os "bons" e os "maus". Interação verbal e rendimento escolar. Belo Horizonte: FaE/UFMG, 1993. (Dissertação de mestrado.)ORLANDI, Eni Pulcinelli. Discurso e leitura. São Paulo: Cortez, 1988.TEVES, Nilda. Imaginário social e educação. Rio de Janeiro: Gryphus, FaE/UFRJ, 1992.DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM NA ALFABETIZAÇÃO: PERSPECTIVAS DO APRENDIZClenice Grifo(Professora do Centro Pedagógico/Faculdade de Educação/UFMG).Esta pesquisa, desenvolvida no programa de pós-graduação da FaE/UFMG, teve como objetivo primeiro estudar a perspectiva do aprendiz, aluno da primeira série do ensino fundamental, que, freqüentador de turmas de alfabetização, não obtém sucesso na escola, sendo considerado por ela como portador de dificuldades de aprendizagem no processo de aquisição da linguagem escrita. Foram realizados quatro estudos de caso com meninos de uma mesma turma de uma escola da rede pública estadual de Belo Horizonte no ano de 1994.O estudo realizou-se a partir de observações em sala de aula priorizando-se as interações estabelecidas, buscando-se entender como o aluno fracassado se percebia na condição de ausência de produtividade escolar e como reagia frente aos rótulos que lhe eram atribuídos. Foram realizadas sessões coletivas e individuais, sessões com toda a turma de alunos, entrevistas com os sujeitos da pesquisa e seus familiares, com as professoras alfabetizadoras da escola, com a supervisora e com o responsável pelo acompanhamento das tarefas escolares. Buscava-se entender como cada um desses alunos era tratado e percebido no meio familiar e escolar e, sobretudo, como eles próprios se percebiam na situação em que se encontravam.Parte do trabalho compõe-se da exposição e análise das teorias que tentaram explicar o fracasso escolar dos alunos das redes públicas de ensino. Tais análises não serão, no entanto, expostas integralmente aqui, pois já constam no artigo de Gomes, que faz parte desta edição. Serão acrescentadas apenas algumas considerações desenvolvidas na referida dissertação.Todas as teorias desenvolvidas para explicação do fracasso escolar sofreram críticas pela inconsistência de seus fundamentos. Historicamente houve uma tentativa de superação de uma pela outra. Podemos verificar que, embora cada teoria contenha suas especificidades é possível extrair do conjunto de suas concepções alguns aspectos que, em maior ou menor escala, estão presentes em todas elas. Um primeiro aspecto é referente ao problema localizado no aprendiz. É como se as explicações se desenvolvessem no sentido de apontar um responsável, um culpado. Segundo a concepção organicista o aprendiz já nasce com essa responsabilidade instalada em seu cérebro: é um problema no nível físico. Conforme a concepção instrumental, a responsabilidade se desloca do nível físico (hereditário ou neurológico) e se estabelece no campo psicológico: a inteligência do aprendiz estará comprometida. A concepção dos transtornos afetivos da personalidade aponta como fatores determinantes da não-aprendizagem as perturbações afetivas e características da personalidade,

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indicando que tais sintomas podem afetar o campo cognitivo do aprendiz. As explicações decorrentes das teorias do bandicap sociocultural atribuem à criança que fracassa na escola deficiências, carências ou diferenças que vão desde comparações e atribuições valorativas de seus hábitos cotidianos até sua incompetência lingüística. Dessa forma, percebe-se afetados o campo físico (na inabilidade de utilizar objetos que ela não conhece, por exemplo), o sócio-afetivo (na inabilidade de se relacionar em determinados meios) e o campo intelectual (na inabilidade de se comunicar de forma eficiente ou aprender na escola).É interessante verificar que a teoria do bandicap sociocultural, em destaque a ideologia das diferenças culturais, considerada avançada no meio científico, contém em seu arcabouço teórico aspectos que são combatidos e considerados não científicos em suas teorias de origem. Mesmo quando se diz que há apenas diferenças culturais, e não deficiências nos alunos que fracassam, encontram-se embutidas nesta expressão atribuições valorativas que provocam distinção de percepção entre alunos de níveis socioculturais diferentes. Esta distinção está relacionada à maior ou menor competência e habilidade para aprender. Sendo assim, e apenas um termo de distinção, não se constituindo, portanto, um desvio de foco de responsabilidade pelo fracasso.Um segundo aspecto comum às explicações para o fracasso escolar diz respeito à maturidade. Em todas as abordagens encontramos indícios de que este seja um fator determinante nos processos de aprendizagem escolar. Na teoria organicista, a maturidade se apresenta como de natureza físio-neurológica na concepção cognitivista, é indicada como pertencendo ao campo das percepções e do intelecto; na concepção dos transtornos afetivos da personalidade, refere-se aos estados maturacionais dos aspectos afetivo-emocionais da criança fracassada; e nas diversas vertentes da teoria do bandicap sociocultural aparece como ausência de requisitos indispensáveis ao processo de aquisição dos aprendizados escolares. percebe-se que de uma teoria para outra o conceito de maturidade permanece com o mesmo conteúdo conceitual-ideológico. Outro aspecto comum a todas elas é relativo à ausência de abordagens relacionadas às especificidades da língua, linguagem oral e escrita, e conseqüentemente, do próprio objeto de aprendizagem. Ou seja, não se considera a escrita como objeto de conhecimento do processo de aprendizagem da mesma.A partir da análise das explicações dos problemas de aprendizagem escolar é possível perceber que as teorias se encontram vinculadas às práticas escolares, exercendo papel importante na consagração da ideologia dominante. As teorias atendem a interesses escolares e principalmente sociopolíticos É interessante ressaltar que o preconceito lingüístico presente nas práticas escolares se apresenta como grande fator de discriminação das crianças das camadas desfavorecidas da sociedade. Como aponta Soares (1985, p. 17): "é o uso da língua na escola que evidencia mais claramente as diferenças entre grupos sociais e que gera discriminação e fracasso". As variações lingüìsticas funcionam como fator de discriminação e instrumento de uso de autoridade e poder dentro das escolas. No entanto, a discriminação lingüística não aparece de forma clara nas abordagens sobre as dificuldades de aprendizagem na leitura e na escrita. A ausência de discussão sobre os conceitos de alfabetização, língua e linguagem apresenta-se como forma de desvio da questão central: o preconceito para com os

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alunos das classes desfavorecidas.OS CASOSA opção por estudo de caso, para a concretização dos objetivos propostos, se deu a partir das seguintes constatações: a) não existem na produção acadêmica e científica, estudos de casos de alunos considerados portadores de dificuldades de aprendizagem na leitura e escrita; b) não foram encontradas, na revisão bibliográfica sobre o tema (pesquisa realizada por equipe do CEALE /FaE/UFMG) pesquisas ou trabalhos que abordassem a perspectiva do aprendiz no processo de fracasso na aprendizagem; c) as obras sobre as dificuldades de aprendizagem em grande parte, estão fundamentadas em generalizações, sem indicação e discussão de aspectos específicos relativos às condições dos alunos a que se referem.Serão apresentados neste artigo apenas dois dos quatro casos estudados, dadas as limitações desta publicação.A seleção foi aleatória, por ser grande a dificuldade de escolha e por conter cada um deles especificidades significativas para a análise final. Esta, no entanto, se referirá a todos os casos do estudo realizado.CASO 1: PAULO - A DIFICULDADE INVENTADAPaulo completou nove anos de idade em maio de 1994 e este foi o ano de sua entrada na primeira série. Até então, nunca havia freqüentado escola. Em agosto desse mesmo ano, quando as observações de campo se iniciaram, Paulo se encontrava longe de sua mãe, que o deixara com vizinhos (família adotiva, como explicava a escola, embora fosse uma situação provisória). A mãe, prostituta e considerada louca pelas profissionais da escola visitava-o esporadicamente e segundo relatou o vizinho com quem morava o menino, ela o agredia muito. O "pai adotivo" de Paulo o considerava "extremamente inteligente" e dizia que o menino o ajudava na confecção de placas e faixas, decorava textos bíblicos e até lhe dava conselhos, mostrando-se muitas vezes carinhoso e prestativo.Trazido pela própria mãe, Paulo foi logo encaminhado para a turma onde se concentravam os alunos considerados pela escola como portadores de alguma deficiência, alunos avaliados, por meio de teste elaborado na própria instituição, como despreparados para cursar uma primeira série normal. A professora dessa turma não "suportou" menino e pediu a transferência dele para outra sala: alegava que era muito indisciplinado, que era insuportável.Nessa segunda turma, o menino passou a ocupar a última carteira da última fileira da sala de aula. De estatura baixa, ele não conseguia nem mesmo copiar as tarefas do quadro. A professora, com a qual ficou até o final do ano letivo, permitia que ele fizesse as provas e só se dirigia ao menino para criticá-lo ou castigá-lo. Seus colegas não podiam se relacionar com ele na frente da professora, mas, na ausência dela, alguns lhe demonstravam simpatia. Essa professora dizia "ter dó" do menino e o aceitou na condição de que ele não a incomodasse.Todos na escola o viam como problemático e de difícil convivência. Visto como má companhia, menino perigoso e agressivo, estava impedido de aproximações e amizades. Era tratado com indiferença e discriminação. No entanto, seus atos de subversão dentro e fora da sala de aula eram admirados por seus colegas. Paulo fazia inúmeras tentativas de aproximação e reconhecimento: cantava alto, representava personagens de desenhos animados, defendia os colegas menores

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das agressões dos maiores, prestava favores quando solicitado, contava piadas, imitava a professora e até dava cambalhotas na sala de aula. As risadas dos colegas eram abafadas e disfarçadas, pois ninguém podia dar mostras de simpatia por ele.Aluno faltoso, porém sempre presente. Até quando faltava era lembrado várias vezes, principalmente pela professora em chamadas como: "Deus ajuda que ele não aparece"; "Puxa, hoje foi mais sossegado sem o Paulo. Ele só vem pra atrapalhar". As aulas nunca se iniciavam sem que a professora chamasse a sua atenção ou já lhe desse um castigo. Um dia, após longa chamada de atenção, Paulo respondeu a ela: "Ô tia, por que você não larga de ser professora .É ruim!". A resposta que obteve, no entanto, não foi de igual carinho: "Ruim não, só tem uns aluninhos que não me dão sossego".Paulo parecia buscar sentido nos fatos que vivia. Parecia não compreender muito bem a discriminação que sofria dentro e fora da sala de aula. No entanto, esse estado de incompreensão não o impedia de pensar, falar e levantar hipóteses acerca das tarefas escolares e até mesmo de duvidar do desempenho da professora. Em uma conversa informal (entre o menino e a pesquisadora), ao ser perguntado se estava aprendendo o que a professora lhe ensinava, respondeu dando risadas: "Não! E porque a tia não ensina."A discriminação que sofria foi expressa em vários momentos, algumas vezes traduzida em sinais de baixa estima tais como: "Eu sei ler, fico pensando: como é que vou saber ler? Eu sou muito burro." Esta frase foi pronunciada em um momento em que acertava a tarefa proposta para os fins da pesquisa. Mostrou-se espantado ao se ver acertando.Por meio das sessões individuais e coletivas que realizamos, foi possível constatar que Paulo tinha muito mais conhecimento da língua escrita do que a escola parecia supor. Conhecimentos que, com certeza, não foram detectados no teste inicial da escola: nomeava todas as letras, localizava palavras em textos que não conhecia, escrevia palavras a partir de palavras já escritas.A concepção dos transtornos afetivos da personalidade era a mais presente no discurso das profissionais da escola em relação ao caso de Paulo. Com referência na família, principalmente na figura materna, a escola apontava como causa de seu fracasso a situação afetivo-emocional que vivia. Mesclada a essa abordagem encontramos referência às teorias do handicap sociocultural, uma vez que a situação econômica, cultural e, principalmente, social do menino parecia, aos olhos da escola, ser responsável pelo seu quadro de fracasso. A concepção instrumental ou cognitivista influiu também na classificação do menino como portador de problemas de aprendizagem, uma vez que não apresentou nível satisfatório de desenvolvimento intelectual medido pelo teste de prontidão, como confirmado nas palavras da supervisora: "ele veio pra escola, ele não tinha nem coordenação motora. Nada, nada, nada!" Por fim, a abordagem organicista apresentou-se como recurso de justificativa uma vez que se estabeleceu relação entre a mãe e o menino, buscando-se um quadro patológico na situação de ambosMesmo tendo a escola apresentado justificativas diversas em relação a Paulo, não foi possível percebê-lo como uma criança portadora de dificuldades de aprendizagem visto que, durante os contatos com a pesquisadora, ele mostrou-se extremamente interessado em aprender a ler e a escrever. Notava-se que auto-

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estima do menino estava muito abalada pelas relações estabelecidas entre ele e a escola- "Eu sou muito burro" -, mas entusiasmava-se e envolvia-se com facilidade diante das situações propostas e, até mesmo, enfrentava as barreiras impostas tais como a negação da realização das provas, insistindo por realizá-las.CASO 2: LEONARDO: DEFICIENTE?Com expressão de cansaço e sofrimento, Leonardo completou quinze anos de idade em outubro de 1994. Estatura média e bastante magro. Menino quieto, parecia esconder-se de todos atrás de seu silêncio. Segundo filho de uma família de seis irmãos, vivia com a mãe em pequenos cômodos construídos pela própria família, em uma favela próxima ao bairro em que se localizava a escola. A mãe, recém-separada do pai alcoólatra, tentava sustentar seus filhos trabalhando como faxineira diarista. A família vivia em constantes dificuldades econômicas.Respondia ao apelido de "Cabeça" ou "Cabeção" com indiferença. Segundo as profissionais da escola, tal apelido devia-se ao fato de a sua cabeça ser grande por ter sofrido, ao nascer, hidrocefalia, ou como diziam: "água na cabeça". Sua mãe, no entanto, declarou não ser real essa informação, pois os exames aos quais fora submetido quando nasceu constataram que ele não padecia de nenhuma doença desse tipo. Segundo a mãe, nenhum médico ou exame havia detectado qualquer anormalidade em Leonardo. A mãe considerava-o um menino normal e expressava não entender o motivo de seu fracasso tão prolongado. Às vezes sentia-se impelida a justificar os oito anos de repetência do filho na primeira série utilizando-se de parâmetros escolares: "... e parece assim que ele não puxa muito assim pra estudar, porque em casa eu mando. Ele não é assim bem inteligente mesmo não."Contudo, a mãe de Leonardo insistia muito em que permanecesse na escola. Planejava para o ano seguinte que o menino aprendesse a trabalhar com um tio servente de pedreiro. Demonstrou não se dar conta da seriedade do estado de insucesso escolar de seu filho, como se o importante fosse que um dia qualquer ele pudesse sair da primeira série. Durante a entrevista com a pesquisadora, a mãe devolvia as perguntas como se tivesse encontrado uma oportunidade mais de ouvir do que de falar sobre o assunto.Leonardo recusava-se a falar de si mesmo, respondia estritamente ao que lhe era perguntado. Inúmeras vezes respondia com movimentos de cabeça e outras tantas vezes, simplesmente não respondia, mesmo após insistência de quem com ele estivesse dialogando. Não queria ser questionado sobre si e sobre a sua situação de vida. Sua mãe confirmou a recusa do menino em falar de assuntos relacionados à escola e à sua situação.A entrada de Leonardo na escola pesquisada ocorrera há oito anos, quando completara sete anos de idade. Na época da pesquisa, Leonardo estava completando oito anos de repetência na primeira série! Contudo, não foi possível resgatar muito da sua trajetória escolar, pois sua mãe pouco soube informar sobre o assunto, não havendo, também na escola, alguém que soubesse a respeito de sua vida escolar. Sabiam apenas que freqüentara a "sala especial" em anos anteriores e que "não conseguia aprender quase nada". A supervisora foi a única profissional da escola que pôde apresentar o seu ponto de vista, embora não tenha feito uma retrospectiva da carreira escolar de Leonardo nem tenha apontado

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para as especificidades do seu problema. Não havia nada na escola a seu respeito além dos diários escolares marcados pela reprovação.Em 1994, ano de realização da pesquisa, Leonardo completava três anos com a mesma professora. A situação aparentava ser um tipo de pacto em que a professora deixava que o menino ficasse ali bem quietinho como era, e ele também, em estado de inércia, sem ser cobrado de nada, como se cumprissem ambos o combinado de não se incomodarem mutuamente A condição de se comportar bem fora colocada desde o início; caso não cumprisse estaria sujeito a voltar para a turma especial, de onde viera mais uma vez, depois de nova investida da escola para fazê-lo retornar a tal turma.Leonardo passava todo o tempo das aulas sem ao menos ser percebido por alguém. Às vezes fazia algum favor para a professora, como por exemplo, levar um recado Sempre curvado na cadeira, parecia se esconder ou tentar diminuir de tamanho para não ser notado, pois destacava-se entre os alunos de sete, oito anos de idade. Nos dias de provas reclinava-se em cima da carteira, preenchia o cabeçalho, o qual sabia de cor e ali permanecia escondendo as lacunas em branco. Às vezes fingia escrever, às vezes conseguia copiar alguma coisa de seus colegas e só entregava a prova quando a professora recolhia, para, misturada entre outras, evitar os comentários em público. Mesmo sabendo que Leonardo copiara de seus colegas as poucas lacunas preenchidas, a professora considerava-as como acertos e atribuía nota a elas. Seus cadernos continham quase todo o conteúdo passado no quadro sua letra bonita mostrava bom nível de organização. Embora copiasse bem, Leonardo não reconhecia nem mesmo as letras do seu nome.Demonstrando estar sempre aflito, parecia sofrer o decorrer de cada segundo ocioso. Abaixava a cabeça sempre que a professora falava dele, como aconteceu algumas vezes quando ela se dirigia à pesquisadora dizendo em voz alta perante toda a turma: "Eu tenho muita dó do Leonardo, ele é muito esforçado e muito bonzinho, mas ele tem muita dificuldade mesmo, sabe?" Para a professora as dificuldades de Leonardo estariam concentradas em Português, principalmente na leitura. É importante ressaltar que durante as observações para os fins da pesquisa não ocorreu na sala de aula nenhuma atividade de leitura, nem pela professora nem pelos alunos.Quase sempre parecendo estar imerso em um grande vazio, Leonardo ignorava o motivo de sua permanência há oito anos na primeira série. Ninguém lhe informava nada a respeito da situação de fracasso. Quando perguntado pela pesquisadora se conhecia o motivo de suas repetências, respondeu apenas: "Sei lá!" Fez sinal afirmativo com a cabeça reconhecendo o problema como sendo seu. Fora da sala de aula, principalmente na hora do recreio foi possível ver Leonardo brincar e conversar com seus colegas. Percebia o tratamento diferenciado que recebia: "ela (a professora) pede pra fazer coisas e uns negócios lá também... pra eu ir nas salas." Reclamou também do tratamento dos colegas: "Eles ficam falando que eu tô muito velho pra primeira série"Durante as sessões individuais ou em grupo, Leonardo participava com mais envolvimento apenas quando se tratava de jogos ou atividades e assuntos que não se relacionavam com os conteúdos escolares. Quando se propunha alguma atividade de leitura ou apenas de identificação de letras, por exemplo, era como se

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ele imediatamente se desligasse ou partisse para outro lugar. Seus braços relaxavam e caíam sobre a mesa ou sobre o seu corpo e seus olhos buscavam qualquer outro objeto para divagar. Sua expressão era de extremo cansaço. Ele passava então a não responder mais. Via-se que seu esforço era enorme naqueles momentos. Algumas vezes chegou a dizer: "Eu não vou fazer esse negócio". Recusava-se a aprender na escola. Havia se acostumado a não ser cobrado por nada e irritava-se quando solicitado a fazer algo.Demonstrava saber pouco de si e da sua situação. A ausência de vontade de aprender pode ser traduzida por uma ausência dele próprio no mundo escolar. Parecia não depender mais da escola para obter alguma realização, pensava apenas em sair da escola: "Quando eu sair daqui eu penso em trabalhar assim de fazer uns jarros de barro. Meu primo faz, de colocar flor". Este enunciado exterioriza um desejo ao mesmo tempo em que dá um recado do menino, que pode ser traduzido como um desprezo à escola, pois o que pretende fazer não depende do que pode lhe oferecer essa instituição.A escola utilizava prioritariamente a abordagem organicista para explicar o fracasso de Leonardo, em decorrência da suposta hidrocefalia do menino. As outras abordagens aparecem como justificativas periféricas, visto que o suposto comprometimento físico e neurológico dispensa quaisquer outras explicações.DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM?É sabido que o preconceito cultural e lingüístico é um dos grandes responsáveis pelo fracasso nos processos de aquisição da linguagem escrita. Pouco se sabe, no entanto, como o aluno que é discriminado dentro da escola pensa, sente e expressa a sua condição. Foi possível, através da realização desta pesquisa, verificar relações arbitrárias entre as características apontadas nos alunos e o suposto comprometimento dos seus processos de aprendizagem.Foi possível extrair dos depoimentos fornecidos pelas profissionais da escola em que se realizou a pesquisa enunciados carregados de preconceitos e até mesmo posturas que denunciam a ausência de reflexão quanto à sua procedência. O preconceito aparece revestido de um vocabulário técnico que aparenta ser legítimo, científico e inquestionável.A partir da previsão que faz do aluno, fundamentada numa visão preconceituosa das classes desfavorecidas, a escola confirma por um teste de prontidão, sempre marcado por vieses lingüísticos, culturais e pedagógicos, as suas hipóteses, tendo assim, de antemão, as justificativas para o fracasso de determinados alunos. Estas justificativas foram encontradas em grande número no estudo dos quatro casos desta pesquisa. As mais freqüentes foram quanto a:a) famílias desestruturadas, tradução da teoria dos transtornos afetivos da personalidade. Nos quatro casos estudados podemos constatar uma centralização da culpa pelo fracasso na família das crianças, principalmente na figura materna, ou melhor, na ausência da mãe do ambiente doméstico e a conseqüente falta de assistência no acompanhamento escolar.b) dificuldades econômicas, nível sociocultural baixo com referência nas teorias do handicap sociocultural. Três dos quatro indivíduos da pesquisa eram moradores das favelas próximas da escola e por isso eram percebidos como portadores de déficits de aprendizagem.c) problemas cognitivos ou intelectuais partindo da teoria instrumental ou

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cognitivista. O teste é um dos instrumentos utilizados pela escola para atribuir aos alunos problemas dessa natureza. Os quatro alunos pesquisados foram detectados pelo teste da escola como tendo problemas de aprendizagem. Além disso, as profissionais da escola procuravam problemas dessa natureza ao falar dos alunos fracassados, utilizando-se de argumentos como: lentidão do aluno, desinteresse, incapacidade para acompanhar a turma- argumentos a indicar a ausência de suas habilidades intelectuais.d) problemas orgânicos com referência na abordagem organicista. A supervisora da escola, buscou em todos eles características que pudessem qualificá-los como portadores de algum problema de ordem física e/ou neurológica.Assim diagnosticado, e tendo a escola criado o suporte teórico para justificar os seus prognósticos, o aluno passa a receber tratamento diferenciado desde a sua entrada na instituição. Isso ocorre de várias maneiras: por meio de atividades paralelas, como trabalhos manuais, ou atividades "que não exigem atividade do pensamento", conforme explica a supervisora; por meio da atribuição ao aluno do papel de menino de recados; pelo não-reconhecimento de suas habilidades e de seus conhecimentos; finalmente, por meio de castigos e punições variadas, como utilização de apelidos, comentários em público a respeito da vida dos alunos, impedimento de que se submetam às provas. Tudo isso se desenrola no cotidiano da sala de aula sem que o aluno e sua família sejam informados sobre o que está acontecendo.A escola opera com o princípio de que o problema está nos alunos e que somente eles próprios poderão resolvê-lo. Dessa forma, faz com que se percebam como os culpados da situação, levando-os a assumir a culpa pelo fracasso. Além disso, é possível afirmar que há uma enorme dificuldade da escola em inserir determinados alunos nos processos de ensino-aprendizagem. Este fato aponta para uma necessidade emergente de se redefinirem, na escola, as concepções de aprendizagem, de alfabetização e, principalmente, de aprendiz - concepções que já vem sendo intensivamente trabalhadas no meio acadêmico.Por sua vez, as famílias, desinformadas da situação, buscam, na escola, as explicações para o fracasso de seus filhos, deixando emergir assim uma via de mão dupla onde os dados nem sempre se cruzam. Os dados fornecidos pela escola, muitas vezes, foram desmentidos pelos familiares contactados, embora suas opiniões, algumas vezes, parecessem influenciadas pelo discurso escolar, principalmente quando falavam do desinteresse e da indisciplina dos meninos. Os familiares terminavam por adotar uma postura semelhante à da escola no que dizia respeito à classificação dos seus filhos como "problemáticos para o estudo", e ao tratamento dados a eles através de castigos.Por outro lado, pareciam não se convencer completamente dos argumentos utilizados pela escola, levantando dúvidas e procurando entender o que estava acontecendo.Quanto aos alunos pesquisados, em unanimidade, demonstraram indisposição para com as tarefas escolares ao mesmo tempo em que se mostravam, nas situações de aprendizagem propostas pela pesquisadora, interesse em aprender e grande vontade de realizar outras atividades. Demonstraram também o sentimento de tédio quanto à permanência no cotidiano da sala de aula. Esta se lhes

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afigurava improdutiva e sem sentido. Expressaram verbalmente a idéia de que na sala de aula não faziam nada e aborreciam-se com isso. Algumas vezes, criticaram as tarefas escolares.Os quatro meninos, quando questionados sobre a situação de fracasso, silenciavam-se e não se mostravam dispostos a conversar sobre assuntos relativos à escola. Como pode ser interpretada essa reação, uma vez que foi comum aos alunos pesquisados? É importante ressaltar que o silêncio não apareceu somente na situação da pesquisa, tendo sido observado também pelos familiares dos meninos.É possível que tal atitude se apresentasse, para os meninos fracassados, como uma forma de recusa ou fuga da confissão pela responsabilidade do problema. Tendo diante de si um discurso escolar carregado de discriminações mal explicadas, restava aos alunos assumirem a culpa pelo fracasso ou calarem-se diante dele.A introjeção do papel de aluno fracassado e a fixação das funções de aluno "desviante" deixavam-nos em uma situação de permanência e auto-sustentação do estado de fracasso. Sentiam-se sozinhos e isolados do restante da turma, demonstrando compreender a situação de discriminação escolar.A partir das constatações da pesquisa, podemos dizer que os meninos, considerados pela escola como portadores de problemas de aprendizagem, se encontravam em um estado de aprisionamento (na situação de fracasso), de isolamento (das relações dentro da sala de aula e dos conteúdos escolares) e submetidos a punições diversas.Por todas essas considerações, foi possível concluir que, em grande parte, as pretensas "dificuldades de aprendizagem" de alunos que fracassam nos processos de aquisição do código escrito se devem, fundamentalmente, não a problemas pessoais, mas a um conjunto de condições socioculturais e, sobretudo, escolares que dificultam ou até impossibilitam sua inserção nos processos de aprendizagem escolar.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASGOMES, Maria de Fátima Cardoso, Chico Bento na Escola: um confronto entre o processo de produção de "maus" e de "bons" alunos e suas representações. Belo Horizonte: FaE 1995, p. 265. (Dissertação de mestrado em Educação.)SOARES, Magda Becker. Alfabetização. Revista AMAE Educando.p.23-27.SOARES, Magda Becker. As muitas facetas da alfabetização. Cadernos de pesquisa, n. 52, fev. 1985, p. 19-24.SOARES, Magda Becker. Linguagem e escola: uma perspectiva social. 7 ed. São Paulo: Ática, 1989SABERES E DIZERES DIFERENTES DE CRIANÇAS QUE "FRACASSAM" NA ESCOLAMaria Cristina da Silva (Pedagoga do Serviço de Saúde Mental - Brumadinho/MG)O CASO CARLOSBuscando entender os vários momentos e movimentosNa época da pesquisa (1996), Carlos (começou a freqüentar escola aos 4 anos de idade) tinha 14 anos, morava em um bairro de Brumadinho - cidade da grande Belo Horizonte MG -, cursava a 5ª série em uma escola estadual, no centro da cidade, onde estuda desde a 1ª série do ensino fundamental. Carlos repetiu a lª

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série por três vezes, a 2ª série por duas vezes, a 3ª série por uma vez; não repetiu a 4ª série. Tem muitos amigos e muita facilidade para fazer novos amigos. Briga muito com o irmão mais velho, que sempre o chama de "burro".Nas primeiras informações da mãe, quando procurou a Casa da Criança(Serviço de saúde mental infanto-juvenil onde Carlos foi atendido na busca de soluções para suas dificuldades escolares.), consta que Carlos trocava letras como P/B, C/G, T/D, V/F, era confuso, desorganizado e pouco cuidadoso com seus objetos escolares e não gostava de fazer o dever de casa. Desde a lª série tem aulas particulares, com uma vizinha que também é professora e muito amiga da família. Conseguiu passar para a 2ª série após ter iniciado essas aulas, que, segundo a mãe, não acontecem todos os dias, só quando Carlos está precisando mais e a pessoa que o ajuda também tem algum tempo disponível.A família de Carlos é composta por seis pessoas: o pai, a mãe e quatro filhos. A mãe escreve apenas o nome e umas poucas palavras, conforme seu depoimento. Considera a leitura e a escrita fundamentais e exemplifica dizendo que, muitas vezes, tem vontade de copiar da TV alguma receita, mas não consegue. Ela não trabalha fora e é a principal responsável pelos serviços de casa; tem hipertensão e enxaqueca crônica e às vezes não consegue realizar as tarefas domésticas. O pai cursou até a 3ª série do ensino fundamental, trabalha em uma empresa de mineração e ganha menos de 400 reais por mês( gostaríamos aqui de lembrar que o salário mínimo em 1995, época da realização da entrevista, era de 100 reais. . Recebe cesta básica e uma parte do dinheiro em forma de adiantamento. Trabalha em turnos alternados, não tendo, pois, um horário fixo. A mãe diz que o pai é muito amigo dos filhos e, sempre que pode, leva Carlos para passear. Conversa muito com todos os filhos, dá conselhos e os incentiva muito a estudar. O pai de Carlos sonha com os filhos na universidade, pois acredita que a escola traz a garantia de uma profissão melhor "menos dura".Os pais de Carlos, como grande parte da classe trabalhadora, não puderam permanecer na escola, pois ainda cedo, antes de dos 10 anos de idade, já tinham de contribuir para o orçamento familiar. Para a mãe de Carlos, a necessidade de trabalhar e o pouco valor que seus pais davam à educação foram os fatores básicos que a levaram, como a seu marido, a deixar de estudar. Essa realidade confirma o que as pesquisas têm apontado: o trabalho é, há muito anos, a principal razão de abandono escolar. No entanto, as políticas de educação têm demonstrado pouco empenho em resolver a questão.É importante lembrar que os pais de Carlos tiveram sua fase escolar no final da década de 50, período em que, além das dificuldades enfrentadas pelas famílias, a possibilidade de escolarização, principalmente na zona rural, era muito remota para uma grande maioria. Aosfilhos de trabalhadores cabia ajudar os pais no trabalho doméstico ou nas atividades que exerciam. A escolarização dos filhos, principalmente das mulheres, não era vista como fundamental.Em conversa com a pesquisadora, a mãe e a irmã de Carlos disseram que ele é "desatento e tem preguiça de fazer sozinho as atividades, escreve muito errado, faz as atividades de forma desorganizada, não gosta que lhe chamem a atenção, fica com raiva e briga". A irmã afirmou que o incentiva a fazer tudo sozinho, a ser independente na realização de seus trabalhos escolares. Explicou que não se

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preocupa muito em corrigir o que ele faz, mas lhe mostra os erros; que não fica todo o tempo junto dele nem se preocupa em fazer para ele as tarefas escolares. Para a irmã, "a escola não tem muitos atrativos, é muita teoria"; sempre que pergunta ao menino se a professora faz experiências, ou alguma coisa diferente, ele responde que não.A irmã acrescentou ainda que sempre chamou a atenção de Carlos para estudar, falando-lhe da importância da escola. "Carlos gosta de estudar algumas matérias, como ciências, leitura, mas não gosta de português, matemática". Ela disse não entender por que Carlos escreve errado se gosta tanto de ler. Considerando que o hábito de ler facilita a escrita, questionou o que estaria ocorrendo com Carlos.Apesar de levantar críticas sobre o modo como são repassados os conteúdos, a irmã não relaciona os dois fatos; parece não perceber que, na junção dos dois fatores - aulas desinteressantes e dificuldades de aprendizagem de Carlos - pode estar a explicação para a dificuldade na relação professor-aluno.Kramer et al (1987)( KRAMER, 1987, vol. 68. n.158, p. 65-67.), em pesquisa realizada sobre alfabetização, seus conflitos e complexidades, demonstra como um professor pode tornar-se a referência para seus alunos e exercer influência sobre eles. O discurso do professorpode influenciar não somente as relações deste com o grupo, mas também dos componentes do grupo uns com os outros e com o meio social no qual vivem. A partir da análise dos dados coletados, podemos inferir que Carlos talvez não tenha sofrido nenhuma intervenção dos discursos de suas professoras e nem tenha dado importância a eles, porque, na verdade, o que lhe interessa não são os fatos que ocorrem no interior da escola, mas, sim, aqueles que se dão no dia-a-dia, na rua, em outros espaços que não o escolar.Ao falar sobre o papel da escola e sua importância, a irmã de Carlos demonstra que o papel da escola vai muito além do ensinar a ler e a escrever. O espaço escolar é um mundo de conhecimentos diversos e que pode possibilitar situações novas de vida no dia-a-dia do aluno.HISTÓRIAS DO PASSADO QUE JUSTIFICAM REALIDADES DO PRESENTECarlos é o mais novo de sua casa, pois a última gravidez de sua mãe foi interrompida. Segundo a mãe, ela quase morreu nessa época, porque os médicos demoraram muito a descobrir que o feto estava morto; ela teve infecção generalizada e permaneceu hospitalizada por quase um mês. Aliás, todas as vezes que ficou grávida ela teve problemas de saúde, como enjôos muito freqüentes e pressão alta. Os outros irmãos não tiveram dificuldades na escola, o que leva a mãe a crer que Carlos tenha algum problema. Segundo seu relato, Carlos nasceu de cesariana, sendo necessário massagem para que chorasse. Chorava muito quando criança e falava bastante durante o sono. A mãe o amamentou e ele nunca gostou de mamadeira e nem de bico. Aos 10 anos de idade, vestia roupa pelo avesso, abotoava errado, calçava sapatos trocados. Atualmente, ainda veste a camisa pelo avesso ou do lado contrário. A mãe sempre ensina a forma correta de usar a roupa, mas, para ela, Carlos não presta atenção a essesdetalhes. "- Carlos, olha bem essa camisa, vira aqui, Carlos. Ai ele vira (nesse momento a mãe lhe mostra que a etiqueta está na frente e não atrás, como deveria ser).- Ah! mãe gorda, ele fala assim" ( "Mãe gorda" é uma forma carinhosa

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como Carlos se refere a sua mãe.). Ela sempre lhe ensinou a forma correta de vestir a roupa, mas ele ainda não consegue fazê-lo. Além de todas essas dificuldades apontadas, a mãe comenta que, ainda pequeno, ao se machucar, o menino chorava e ficava "sem fôlego", "ficava roxo". Na sua visão, parece existir uma relação direta entre a vida escolar de Carlos e as condições em que se deram seu nascimento e crescimento. Apesar de acreditar que seu filho não tenha nenhuma doença, não é capaz de afirmar o que possa estar ocorrendo e impossibilitando Carlos de ser bem-sucedido na escola.No meio de muitas dúvidas e questionamentos de todos, existe para a mãe, o pai, a irmã e a professora particular uma constante busca de solução para o fracasso escolar de Carlos. Ele é considerado uma "criança problema, desinquieta, imatura, que só gosta de brincar". Essas afirmações, que não são feitas somente pela escola, mas também por aqueles que acompanham sua vida escolar e que nela interferem, parecem ter outras interpretações, se analisamos a situação à luz de outras abordagens.Segundo a mãe, Carlos teve várias professoras na 3ª série, e isto atrapalhou muito. Ela recebia muitos bilhetes em casa falando das dificuldades escolares e do comportamento do menino ou pedindo que comparecesse à escola para conversar a respeito do filho. O que a professora dizia para a mãe era que Carlos era muito difícil, ou seja, fazia muita bagunça, escrevia muito errado: se ela ditava uma coisa, Carlos escrevia outra; era impossível entender o que ele escrevia, pois suas palavras eram inventadas e nunca aquelas que a professora ditava. No relato da mãe, fica evidente a forma como a professora se referia a Carlos:A professora falou comigo na reunião: "ô dona, eu dito alguma coisa, ele escreve outra que eu nem sei, põe palavra que eu nem sei, ele inventa de cabeça... Isso tá atrapalhando o Carlos, põe ele pra ler mais"...A importância da leitura é reforçada pela professora, como relata a mãe. Ler mais é percebido como uma atividade importante para o desenvolvimento da leitura e da escrita. A partir dessa visão da professora, podemos inferir como tem peso o fato de se ser um "bom" leitor e escritor. Ler está relacionado a escrever. Nessa concepção, a prática da leitura é uma atividade fundamental e determinante para a formação de um bom leitor e escritor.Estudos atuais sobre a prática da leitura têm questionado essa relação estreita e unilateral entre ler e escrever bem. A ampliação da compreensão da leitura e da escrita nos indica que são dois processos específicos e distintos. Nesse sentido, podemos contar com a contribuição de Batista (1995), que busca novos conceitos e sentidos para a prática da leitura, numa tentativa de desmitificar que ler bem corresponde a escrever bem, a qual perdura há anos entre nossos educadores.Voltando à professora particular, esta parece pensar que a rigidez das normas escolares é fator que leva os alunos ao desinteresse e à desmotivação. Essa "ortodoxia", segundo ela, é demasiadamente negativa quando se trata de crianças como Carlos. Em sua opinião, não é somente ele que demonstra um desprazer com essa ortodoxia escolar, mas também os demais alunos e os professores.Realmente, para que essa falta de flexibilidade da escola frente a situações novas parece acarretar dificuldades na relação com crianças que apresentam problemas na aquisição da leitura e da escrita e explica por que elas são discriminadas e, muitas vezes, ignoradas. O novo nesta situação é a discrepância entre elas e as

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demais crianças em virtude das diferenças individuais que apresentam, e que as torna diferentes ou deficientes para muitos. Tal dissonância, vista como uma "desinteligência", conduz esses alunos a um submundo do desinteresse generalizado na visão das escolas. Seus familiares buscam alternativas, assim como alguns professores, mas permanece em seu currículo a marca do fracasso.Ao final do ano de 1995, Carlos foi aprovado para a 5ª série. A 4ª série foi a única que ele não repetiu, e a mãe atribuiu esse "sucesso'' a um grande esforço feito por Carlos e por todos os que estavam à sua volta. As condições que o levaram a ser aprovado na 4ª série não são claras. Apesar do esforço de várias pessoas (irmã, vizinha, ele próprio, incentivo dos pais, Casa da Criança), a questão da idade, apresentada pela professora como fator importante, precisa ser vista e analisada, procurando-se entender as razões que levam a essa justificativa. A ameaça de ter de estudar em um curso noturno (curso de suplência) parece não ter agradado nem a Carlos nem a seus familiares. Sua professora parece ter utilizado esse argumento na tentativa de buscar um resultado: a aprovação. O que poderia ter levado a professora a se valer dessa hipótese? Teria ela interesse e desejo de que Carlos, de fato, fosse aprovado? Estaria temendo a ida do mesmo para um curso de suplência, por já ter uma opinião negativa a respeito desse curso? Que tipo de avaliação estaria fazendo, para que tenha buscado junto a Carlos e sua família estratégias para sua aprovação? São perguntas a que não podemos responder. Talvez possa inferir alguma hipótese a respeito, buscando perceber as relações criadas e estabelecidas entre essa professora, Carlos e seus familiares. No entanto, não podemos esquecer-nos de que não só a irmã de Carlos é professora, como também a vizinha que lhe dá aulas particulares, e ambas são conhecidas da professora de Carlos. A busca do sucesso de Carlos parece ser objetivo de todas essas pessoas, a julgar pela forma como se envolveram e investiram na sua possível promoção. Isso nos leva a crer que a avaliação realizada pela escola não visa somente a obter dados numéricos, mas também a olhar para os sujeitos ali envolvidos.O que então poderia ter levado Carlos a fracassar na 1ª, na 2ª e na 3ª séries? Se era considerado pelos professores uma "criança problema", o que o levou a ser percebido hoje de forma diferente? As justificativas para seu fracasso, como "nervosismo", "desatenção", "falta de interesse", ainda persistem?REFLETINDO SOBRE A REALIDADE EDUCACIONAL ,E BUSCANDO ENTENDER O FRACASSO ESCOLARO presente trabalho sobre o fracasso escolar buscou contribuir com os estudos já existentes sobre o assunto. O fracasso escolar nas camadas populares não tem em si mesmo uma definição clara. Os conceitos por elas construídos são resultantes, na maioria das vezes, de afirmações vindas da própria escola. Os profissionais da educação fazem uso de conceitos e estudos da área médica( Trata-se neste contexto das várias abordagens que buscaram explicaro fracasso escolar tendo como referencial teórico a psiquiatria e a psicologia. (Ver textos de Gomes e Griffo neste livro.) , muitos deles já desacreditados, em virtude de sua inconsistência conceitual e metodológica. Nesse contexto, os educadores, os pais e os familiares, de posse destes saberes, ficam impossibilitados de questionar sua coerência ou seu valor. As concepções atuais convivem as de outrora, novo e velho em um mesmo tempo, mas esse velho é que vem dando

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sustentação, aos educadores, das respostas para o fracasso escolar de seus alunos. O desconhecimento e a falta de compreensão desses educadores acerca de estudos atuais sobre o fracasso escolar demonstram a que distância nossas escolas estão da realidade de seus alunos.Os professores e os profissionais da educação estão na mesma lógica de fracasso de seus alunos: fracassam por não compreenderem o que ocorre em sala de aula. São professores e buscam a cada dia ensinar, ensinar a todos, mas, no cotidiano, fazem discriminações e adotam posturas preconceituosas em suas concepções. Estão impregnados de valores morais, éticos e políticos que tornam sua prática cotidiana, muitas vezes, contraditória. Acreditam na homogeneidade dos sujeitos e buscam distribuir os conteúdos escolares, na crença de que todos precisam atingir o mesmo resultado. O reconhecimento da subjetividade de cada um inexiste. São sujeitos que, muitas vezes, se vêem em uma situação de constante sofrimento, de enormes dificuldades, tornando o mundo da escola e mais especificamente, o da sala de aula, uma realidade de angústia. Para Cordié (1996), existe uma amplitude maior da questão do que aquela aparentemente mostrada pelos sujeitos envolvidos:O fracasso escolar é uma questão complexa cujas causas são múltiplas e diversas: umas estão ligadas à própria estrutura do sujeito, outras dependem dos acontecimentos. O fato de elas intrincarem e agirem umas sobre as outras não ajuda em nada a compreensão do fenômeno. O resultado disso é que cada um projeta seus fantasmas e inventa remédios para esse novo flagelo social: É culpa... do governo, da sociedade, da Educação Nacional, dos pais...", é preciso apenas... rever a pedagogia, aumentar as verbas", etc. (CORDIÉ, 1996, p. 10) (Grifo nosso)Os educadores, de um modo geral, têm uma visão idealizada da instituição escolar e buscam uma realidade de harmonia e beleza, acreditando estar aí a possibilidade de um mundo escolar sem alunos que fracassam. Desconhecem a impossibilidade dessa realidade e também o fato de que cada um se constitui como um sujeito. A unidade de pensamento, de realização de tarefas, de desempenho não pode existir devido à impossibilidade de tal realidade. O reconhecimento da singularidade de cada um e da subjetividade nos impede de conceber que esses alunos, inseridos numa mesma realidade, possam ter objetivos, vontades e desejos iguais. A sala de aula é um mundo de diversidade de opiniões, comportamentos, vontades, desejos, porque ali está reunido um grupo de sujeitos que busca, cada um de sua maneira, formas variadas de entender, a cada momento, o que ali acontece. O professor também participa desse lugar, portanto faz-se necessário e importante que perceba e veja o mundo diversificado que vivência, procurando não atingir a unidade, mas ouvir e entender as diversidades ali presentes. Deve perceber que o fracasso escolar não está limitado a um só fator e nem acontece por acaso. Ele é datado, como nos mostra Cordié, quando discute a dimensão do fracasso escolar na sociedade:O fracasso escolar é uma patologia recente. Só pôde surgir com a instauração da escolaridade obrigatória no fim do século XIX e tomou um lugar considerável nas preocupações de nossos contemporâneos em conseqüência de uma mudança radical da sociedade. Também neste caso não é somente a exigência da sociedade moderna que causa os distúrbios, como se pensa muito

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freqüentemente, mas um sujeito que expressa seu mal-estar na linguagem de uma época em que o poder do dinheiro e o sucesso social são valores predominantes. A pressão social serve de agente de cristalização para um distúrbio que se inscreve de forma singular na história de cada um (1996, p. 17).A pressão social imposta sobre esses "fracassados" pode não só definir e estabelecer normas, como também organizá-los dentro de um padrão de "certo" e "errado" enquadrando-os nessa perversa realidade. O fracasso escolar cria normas e valores segundo uma necessidade social e um padrão de homem socialmente desejado.Sabemos, também, que os fatores econômicos, políticos e sociais não podem ser desconsiderados quando buscamos entender as causas do elevado número de repetências em nossas escolas. Estes, no entanto, não são suficientes para explicar o "fracasso escolar", pois estamos falando de sujeitos diversos em situações adversas, quando, a nosso ver é na subjetividade e na singularidade que se devem concentrar as discussões.Talvez pudéssemos pensar que esses meninos e meninas, que não têm conseguido aprender somente na escola, talvez estejam procurando mostrar, com sua recusa de aprender, uma situação que está latente. Eles parecem negar não apenas o que lhes é ensinado, mas as situações diversas em que se dá o aprendizado escolar. Essa negação, ou indisposição, para a aquisição de novos conhecimentos escolares pode estar sendo utilizada como estratégia:na verdade, o que se quer negar são outros acontecimentos que ocorrem no interior da escola. Essa atitude pode significar uma fuga inconsciente das situações vivenciadas por esses sujeitos, das quais o conhecimento escolar seria uma forma de manifestação. Para Cordié, "aprender implica um desejo, um projeto, uma perspectiva, não é apenas compreender" (CORDIÉ, 1996, p. 27).Nessa perspectiva, ao retardar o conhecimento escolar, podem estar buscando estratégias de construção de si mesmos e do conhecimento. A escola, por sua vez, busca outros saberes, saberes constituídos e formalizados. Observa-se, no entanto, uma fragmentação entre os dois processos. A busca de saber e a busca de construção do sujeito poderiam ocorrer conjuntamente, mas muitos não conseguem vivenciar os dois processos ao mesmo tempo. Poderíamos deduzir que isso ocorre tendo em vista a rigidez do tempo escolar, o excesso de regras, a estagnação dos conteúdos, o pouco espaço para conversas e brincadeiras como componentes complicadores do processo. No meu entender, as reclamações de que as crianças gostam muito de brincar, ou só gostam de brincar, indicam o caminho escolhido nesse momento de construção: a busca de saberes outros que não aqueles ministrados pela escola.Não cabe, nesse momento, criticar e dizer que a escola não privilegia a maioria e que diferencia e discrimina aqueles que não se sujeitam a sua estrutura de funcionamento. Cabe sim, mostrar que a escola que temos não vem atendendo aos interesses dos alunos que chegam até ela. Essa escola tem, em sua concepção, um aluno idealizado, um aluno que deve corresponder e responder a seus interesses e concepções. Ela quer um aluno igual e harmonioso, ao passo que os que chegam às salas de aula são meninos e meninas com saberes e dizeres diferentes, com desejos e concepções de mundo variados. Meninos e meninas que sonham com profissões de prestígio, segundo a lógica do capital,

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com riquezas, mas que trazem consigo a realidade da classe trabalhadora. São uma infinidade dentro das instituições escolares, e jamais podem ser vistos como iguais. São sujeitos de um mundo em constante mudança, na qual também estão incluídos, passando por várias alterações, buscando construir-se e se constituir como sujeitos.Diante das (des)organizações no espaço escolar, esses meninos e meninas se inserem na lógica da desorganização, tornando-se apáticos, ou agitados, desconhecendo ou não reconhecendo o espaço da escola como um lugar de troca, de aprendizado. A (des)organização leva à insatisfação, à desconfiança e à incerteza, que os conduz à repetência, restando-lhes a culpa ou a responsabilidade por seu fracasso escolar.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASBATISTA, Antônio Augusto G. O ensino da leitura e suas condições de possibilidades. Mimeo.CORDIÉ, Anny. Os atrasados não existem; psicanálise de crianças com fracasso escolar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.GRIFFO, Clenice. Dificuldades de aprendizagem na alfabetização; perspectivas do aprendiz. Belo Horizonte: FaE/UFMG, 1996. (Dissertação de mestrado.)KRAMER, Sônia et alii. Um mergulho na alfabetização (ou: há muito que revelar sobre o cotidiano da escola). RBEP. v.68, n.158. jan./abr., 1987, p. 65-97.ARA ALÉM DO ERRO CONSTRUTIVO...O SUJEITOJoana Assunção de Oliveira (Pedagoga graduada na UFMG, Diretora/Proprietária da Companhia do Ensino (Ensino Fundamental, formação de educadores e consultoria na área educacional).Um dos grandes problemas enfrentados por educadores nas salas de aula é a dificuldade de certas crianças em apreender o que é ensinado, apesar dos esforços e recursos empregados para promover a aprendizagem. É comum encontrarmos professores e professoras que se angustiam diante da impossibilidade de fazer com que todos os seus alunos obtenham sucesso escolar. Quando deparam com tais limites, esses educadores, muitas vezes, fazem o encaminhamento das crianças a especialistas da área educacional ou psicólogos, na busca de auxílio para que o processo se desenvolva de modo mais satisfatório. Nesse contexto, pude receber algumas crianças cujas dificuldades escolares fugiam ao controle das instituições onde estudavam.O meu trabalho com as crianças encaminhadas pelas escolas consistia na tentativa de levá-las a superar seus erros pela via da reconstrução destes. Utilizando-me do referencial piagetiano, eu entendia os erros dessas crianças como hipóteses possíveis naquele momento de seu desenvolvimento. Não se tratava, pois, de simplesmente corrigi-los, mas, precisamente, de possibilitar que as crianças repensassem suas hipóteses sobre um objeto de seu conhecimento pela introdução de uma situação conflitiva, no nível cognitivo, que desestruturasse o pensamento e as forçasse a buscar novo equilíbrio, construindo umanova hipótese.Essa trajetória se apresentava adequada para muitas crianças; outras, no entanto, não se beneficiavam dela, repetindo sempre os mesmos erros escolares. O referencial teórico no qual me baseava não me ajudava a compreender a razão da persistência das dificuldades escolares dessas crianças. Eu tinha diante de mim

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sujeitos que erravam independentemente de suas condições para o acerto e isso me fez pensar no sujeito da psicanálise, com os lapsos, os esquecimentos e atos falhos, pois estes seriam também erros que ele comete independentemente da sua vontade e condição para acertar. Diante de tal hipótese, realizei, no período de 1994 a 1996, uma pesquisa de Iniciação Científica com bolsa do CNPq e sob a orientação da Prof Ana Lydia Santiago, da Faculdade de Educação da UFMG.Trata-se de um estudo de dois casos realizado em uma escola particular, de orientação construtivista, em Belo Horizonte. Foram escolhidas, a partir de uma lista apresentada pela supervisora da escola, duas crianças da 2ª série do Ensino Fundamental(Durante o trabalho essas crianças foram promovidas à 3ª série do ensino fundamental.) que apresentavam erros recorrentes em suas produções escolares. Essas crianças, que chamarei de Pedro e Alice, apresentavam dificuldades em português e matemática, respectivamente. Segundo a supervisora, havia outras crianças na escola com dificuldades de aprendizagem. No entanto, não foram citadas na lista, uma vez que a equipe pedagógica acreditava que as dificuldades escolares dessas crianças eram causadas por problemas emocionais e, por isso, já haviam sido encaminhadas a um psicólogo ou psicopedagogo. Pedro e Alice faziam parte de um pequeno grupo cujas dificuldades, no entender da escola, estavam localizadas no âmbito estritamente pedagógico.Vale ressaltar que essa equipe pedagógica contava, na ocasião, com o apoio de uma consultoria para tentar solucionar o problema de algumas crianças com dificuldades nas aprendizagens. O enfoque de tal consultoria era voltado para a tentativa de realizar intervenções pedagógicas para que essas crianças fossem estimuladas a pensar sobre seus erros e, como conseqüência, superá-los. O que se notou ao longo desse processo foi que a maior parte dos alunos se beneficiou com tais intervenções. Restou, no entanto, um pequeno grupo que não apresentou qualquer progresso com relação ao seu estágio inicial, permanecendo com suas dificuldades e erros, do qual retirei Pedro e Alice.É igualmente importante salientar que se trata de uma escola que atende clientela de nível socioeconômico favorecido e cuja proposta pedagógica se define nos referenciais construtivistas. Com isso eu procurava de antemão eliminar variáveis que poderiam interferir consideravelmente nas produções escolares dos estudantes. A amostra devia representar crianças que tinham condições plenamente favoráveis à aprendizagem e que contrariavam as expectativas, tanto dos educadores quanto de seus pais.Inicialmente, utilizei-me de métodos e técnicas amplamente conhecidas para a avaliação diagnóstica. São testes que nos fornecem dados sobre as condições de memória, atenção, modalidade de aprendizagem e situação emocional dos sujeitos, entre outros aspectos considerados relevantes para uma vida escolar bem sucedida. Ao terminar a avaliação, pude constatar que não dispunha de informações suficientes para ajudar Pedro e, particularmente, Alice. As informações que eu obtinha nos testes estavam em consonância com as informações que os pais e professoras dessas crianças me forneciam. Porém, nada me acrescentavam quanto aos motivos da persistência de seus erros e de como proceder para que conseguissem superá-los.Diante do fracasso dessa tentativa de diagnóstico, busquei outro caminho que me

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permitisse aprender, com essas crianças, algo sobre seus erros. Para isso, adotei uma lógica que foi dividida em quatro etapas:1) identificação dos erros de cada criança; 2) análise de seu pensamento na produção desses erros; 3) tentativa de desconstrução do erro a partir de atividades pedagógicas específicas, visando à reorganização do raciocínio na busca de respostas mais adequadas e 4) avaliação do processo vivido pela criança.Gostaria apenas de esclarecer que, apesar de estarem dispostas em série, não é verdade que essas etapas possam existir de maneira tão linear. Todo o processo acontece com idas e voltas e somente para efeito de compreensão optei por ordená-las de 1 a 4.Para identificar os erros nas produções escolares dos alunos, utilizei-me de seus cadernos, realizei entrevistas com suas professoras e observei-os em atividades individualizadas, tendo em mente o método clínico de Piaget, que consiste basicamente em fazer perguntas às crianças e orientar-se por suas respostas. Tal método também serviu como norteador da análise do pensamento das crianças na produção dos erros e da tentativa de desconstrução destes, levando-as a questionar suas hipóteses. Como se poderá notar, a primeira preocupação foi tornar "observável" a essas crianças o seu erro a partir de intervenções que lhes possibilitassem avanços no processo de reconstrução do próprio pensamento.Para organizar estes procedimentos utilizei-me das pesquisas de Constance Kamii (1992), Daniel Alvarenga (1994), Milton do Nascimento (1990) e Marco Antônio de Oliveira (1990).ARMADILHAS DE PEDROEm entrevista com a professora de Pedro, fui informada de sua dificuldade em escrever corretamente as palavras e da falta de coerência de sua produção textual. Após a identificação dos erros e a análise do pensamento de Pedro ao produzi-los, pude constatar que ele utilizava, na escrita das palavras, uma hipótese muito comum em crianças durante a fase inicial do aprendizado da escrita. Ele acreditava que as palavras escritas são reproduções exatas das palavras pronunciadas. Na tentativa de tornar esses erros observáveis a ele, incentivei-o a comparar a pronúncia espontânea de determinadas palavras à sua escrita em revistas, jornais, livros, rótulos, etc. Esta estratégia provocou um desequilíbrio no seu pensamento e Pedro, adotando uma idéia oposta à sua hipótese inicial, passou a diferenciar palavras escritas da forma como eram pronunciadas, fazendo uma hiper-correção. Com isso, surgiram escritas como: abacaixi, tegela, etc. Novas atividades foram realizadas no sentido de proporcionar-lhe a oportunidade de perceber o distanciamento existente entre fonema e grafema, o que o deixou em situação mais adequada com relação ao padrão de escrita da língua portuguesa.Faltavam também, nas palavras escritas por Pedro, o "r" no final dos verbos no infinitivo, o "u", no final dos verbos no passado e o "s" indicador do plural. Tratava-se, novamente, de um "colamento" do grafema ao fonema. No entanto, as atividades realizadas visando mostrar o distanciamento entre o som e a escrita das palavras não tiveram o efeito esperado. Foi necessário um trabalho que possibilitasse a construção dos conceitos de infinitivo, passado e plural. Isso trouxe modificações favoráveis à escrita dessa criança. Após esses trabalhos, os

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erros que ainda apareciam na sua produção eram encontrados em palavras cuja ortografia é arbitrária e requer a memorização.No que se refere à sua produção textual, pude observar que ele omitia partes do texto, nos quais deveria descrever uma ação importante que justificaria o final da história, como se pode notar na produção da criança e no diálogo transcrito logo abaixo:A corridaEra uma vez um coelho que ia desafiar a tartaruga numa corrida e a coruja ia da a largada.E os dois foram a largada e a coruja deu a largada e o coelho saiu na frente. Quando o coelho parou na árvore ele ficou preso na corda, quando a tartaruga chegou a onde ele estava a tartaruga cortou a corda o coelho se livro e o coelho agradeceu.Quando chegou a chegada eles gritaram só viva a tartaruga.E o coelho e a tartaruga ficaram amigo para sempre e a tartaruga recebeu o trofel.Após certificar-me com Pedro que o texto estava terminado faço-lhe alguns questionamentos sobre o texto, dentre eles o que se segue:J: Eu não entendi por que o coelho parou na árvore. Ele não estava no meio de uma corrida?P: É. Ele não parou. Ele caiu numa armadilha que um caçador tinha colocado lá.J: Mas isso não está na estória, só você sabia.P:(Ele sorri.)J: Se você não estivesse aqui comigo eu não poderia saber dessa armadilha e ia ficar pensando que o coelho ficou cansado e parou para dormir debaixo da árvore. Mas mesmo assim eu não ia entender como ele ficou preso numa corda. Como poderia fazer para que qualquer pessoa, ao ler o seu texto, saiba o que realmente aconteceu ao coelho?A partir dessa intervenção Pedro pôde alterar seu texto, fornecendo ao leitor as informações antes omitidas.Pude perceber que Pedro sempre preparava armadilhas para o seu leitor e, diante disto, resolvo preparar uma armadilha para ele. Apresentei-lhe textos de outros autores e, repetindo seu próprio procedimento, retirei trechos importantes para a compreensão do fato principal da estória. Inicialmente, Pedro não percebeu a falta do trecho retirado, até que fosse necessário responder aalgumas questões sobre as quais não encontrava informações. Com essa estratégia foi possível realizarmos uma reflexão sobre as necessidades principais na construção de um texto coerente, resultando em melhoria de sua produção textual.Pedro tem uma teoria que o faz acreditar que, ao crescer, perde-se a qualidade de ser esperto. Ele alega que, quando pequeno, seu pai era esperto e hoje não é mais. Ele faz ainda uma analogia entre a estatura e o grau de esperteza de uma pessoa, afirmando: "Lá em casa eu sou o mais esperto porque sou o menor. Minha mãe é a maior e a menos esperta. Meu pai é mais-ou-menos esperto. Ele é menor que a minha mãe." Vale ressaltar que os dados reais acerca da estatura dos pais de Pedro não coincidem com a sua impressão sobre eles. O seu pai é, na verdade, mais alto que sua mãe.Esta teoria de Pedro pode ser encontrada nas entrelinhas de seu texto, sendo,

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inclusive, a explicação para o fracasso de alguns personagens. Para a sua vida, no entanto, ele encontra uma outra solução: "o meu pai não é tão esperto mais. Ele agora é forte. Eu vou crescer e perder minha esperteza, mas eu vou ser forte".Outro tema recorrente nos textos de Pedro é a armadilha. Nas suas produções textuais, como ocorre no texto "Corrida", ele introduz situações que prejudicam o personagem, além de criar uma outra cilada destinada ao leitor, que não pode compreender o desfecho da história. E, ao ouvi-lo sobre essas armadilhas, descobri que sua diversão predileta é prepará-las também para o seu pai, usando barbantes amarrados aos pés dos móveis de sua casa. A descrição que faz de seus inventos para surpreender o pai demonstram um alto e sofisticado investimento intelectual, o que vem ratificar a percepção da professora e de seus familiares sobre a sua competência para outros fins que não sejam as aprendizagens escolares.É evidente a visão subjetiva de Pedro sobre a estatura de seus pais e, ainda, sobre os riscos que corre ao crescer. Poderíamos teorizar sobre esses pensamentos do menino buscando explicações para a necessidade constante de testar a inteligência de seu pai. No entanto, tal atitude não me parece necessária. Ainda que pudéssemos pensar que essas armadilhas preparadas para o pai tivessem alguma ligação com as armadilhas do português com as quais Pedro se vê enlaçado e ainda com as armadilhas que prepara para o leitor nas suas produções textuais, ele não faz nenhuma vinculação entre os dois fatos. Continua brincando com o pai enquanto se desvencilha das armadilhas da escrita, conseguindo, como desejávamos, progredir na escola.O QUE ALICE NÃO PODE SABERSegundo sua professora, Alice apresentava dificuldades em memorizar os fatos fundamentais da matemática e em decompor os números. Somente conseguia chegar à resolução de atividades que exigiam conhecimento dos fatos fundamentais com uso de material concreto. De outro modo, apareciam as dificuldades e, conseqüentemente, os erros.Alice era capaz de dizer quanto valia um algarismo em função da sua localização em um número qualquer, demonstrando competência com relação ao valor posicional do algarismo. No entanto, esse conhecimento se mostrava insuficiente para que ela pudesse operar com algoritmos em situações nas quais fosse necessário realizar reagrupamentos ou reservas. Nesses momentos ela demonstrava inabilidade para lidar com a conservação das quantidades, pois considerava que, ao ser reagrupado, o algarismo perdia seu valor em função da posição ocupada no número. O primeiro passo foi tentar a construção da conservação das quantidades para que Alice pudesse avançar no uso do algoritmo, podendo chegar à realização de cálculos de multiplicação e divisão.Após alguns exercícios bem sucedidos, pensando estar superada a dificuldade em decompor um número, passei à investigação do pensamento de Alice quando lhe era exigido um nível de abstração tal que lhe fosse possível lidar com a forma algorítimica. Ficou evidente, naquele momento, a sua inabilidade em lidar com o algoritmo e novamente surgiu a dificuldade com o reagrupamento e com a conservação da quantidade, problemas que pareciam ter sido resolvidos. A persistência desses erros não se sustentava mais na idéia de que Alice não dispunha de condições para superá-lo.

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Ao estudar seu procedimento na resolução de operações matemáticas usando algoritmo, notei uma inversão na construção dos conceitos de divisão exata e inexata. Alice fez várias tentativas de resolução da operação 12 dividido por 3, mas deixava sempre um resto . É interessante notar como mantinha uma idéia marcadamente subjetiva sobre esse ponto: para ela, na divisão exata deveria haver resto. Quando lhe pedi que resolvesse a operação usando os blocos de madeira, Alice o fez corretamente. Chamei-lhe a atenção para a inexistência do resto nessa divisão e lhe ofereci a informação sobre o que seria uma divisão exata e uma divisão inexata. Isso provocou o riso de Alice, mas pareceu não ter efeito sobre o seu pensamento. Ela resolveu a mesma operação após ter sido previamente lembrada de se tratar de uma divisão exata e, no entanto, desprezou essa informação deixando uma sobra. Alice explicou o seu procedimento dizendo-me que "doze dividido por três é igual a quatro; quatro menos três é igual a um. Um menos um dá zero e o dois fica lá porque não dá para dividir por três".Ao questioná-la sobre a necessidade de uma sobra para tornar uma divisão exata, mostrou-se profundamente incomodada. No dia seguinte, chegou trazendo queixas sobre a divisão de seu quarto, do uso do computador e da atenção do pai em função da presença de uma prima que veio morar em sua casa. Neste momento, percebi que Alice deslocava para a matemática algo da estrutura familiar, quando insistia na presença do resto.Alice não conseguia lembrar-se dos fatos fundamentais da multiplicação e da divisão. Observei que ela se respaldava no discurso do outro ao dizer que tinha a memória fraca e ao justificar, com isso, sua dificuldade escolar. Estes eram os discursos de sua professora e de sua mãe que ela tomava como seus. No entanto, tentava insistentemente mostrar-me a inverdade ai contida. Contou-me que já havia decorado quase toda a coreografia para a apresentação de jazz; não se esquecia do horário do nosso compromisso; lembrava-se das atividades realizadas no encontro anterior e até de uma promessa minha sobre jogar cartas. Porém, ao vencer no jogo da memória dizia ter sido por sorte. Ao ser questionada sobre essa falta de memória, admitiu o papel do seu desejo naquilo de que se lembra ou esquece, dizendo: "Eu posso lembrar do que eu quero". Mas esse desejo era barrado quando se tratava dos fatos da matemática, como revelou certo dia: "desses eu não me lembro nem quando eu quero". Perguntei-lhe sobre isso e Alice quis saber se o que fazíamos era aula particular. Informei-lhe sobre a natureza do meu trabalho naquela escola e, então, ela me disse que aula particular, no seu caso, não adiantava nada e colocou outra questão que parecia incomodá-la: "Eu não sei por que todo mundo pode saber os fatos e eu não". Perguntei-lhe que fatos ela não podia saber e Alice me disse serem os do 8 e do 9, acrescentando ainda: "há nove anos eu não sabia de coisas que hoje eu sei".Isso que Alice sabe, segundo ela mesma, são fatos que uma coleguinha lhe teria contado sobre a atividade sexual dos pais. Esse saber lhe traz culpa, pois trata-se de algo que, para ela, não se pode saber antes dos 12 anos. Como vemos, os fatos fundamentais da matemática passaram a ter, para Alice, uma outra significação. Os seus erros estavam ligados a questões subjetivas, para além do erro construtivo e, por isso a minha tentativa de provocar um conflito cognitivo resultou infrutífera. Constatei, então, uma demanda que não se restringia à escuta pedagógica. Alice punha nos fatos fundamentais da matemática um sentido que

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não lhes pertencia. Nesse momento, com o suporte da psicanálise, passei a refletir sobre a possibilidade dos erros de Alice serem obra não do sujeito epistêmico, mas do sujeito do inconsciente.De acordo com Sigmund Freud (1987), o erro pode ser classificado em duas categorias: erro por ignorância e erro por recalcamento. É importante frisar que "os erros derivados do recalcamento devem ser claramente distinguidos de outros que se baseiam numa verdadeira ignorância".No caso de Alice podemos constatar que não se trata, efetivamente, de erros por ignorância. Ela demonstrou conhecer o suficiente para que pudesse obter sucesso em suas tarefas escolares. Demonstrou, inclusive, poder memorizar outras coisas que não os fatos da matemática e, em relação a estes últimos, ficou claro que sua dificuldade em memorizar não se estendia a todos os fatos. Resta-nos, portanto, pensar na segunda categoria e, nesse caso, estar alerta, como sugere Freud (1987), para o fato de que "ali onde surge um erro oculta-se um recalcamento - melhor dizendo, uma insinceridade, uma distorção que se baseia fundamentalmente no material recalcado".Segundo a teoria psicanalítica, o recalque tem conotação bem diferente daquela apresentada por Piaget em seus estudos. Naquele contexto, de acordo com a visão piagetiana, recalca-se algo sobre o objeto, ou seja, na impossibilidade de lidar com um conflito cognitivo, o sujeito "esquece" algo sobre o objeto que poderia desencadear tal conflito, permanecendo, desta forma, em equilíbrio. Esse recalcamento é desfeito tão logo o sujeito possa contar com estruturas cognitivas capazes de suportar e lidar com a situação conflitiva.No caso da teoria psicanalítica, o recalcamento "só pode surgir quando tiver ocorrido uma cisão marcante entre a atividade mental consciente e a inconsciente" (FREUD, 1974). O material recalcado fica, assim, impedido de ter acesso ao sistema consciente. Isso não significa que ele não exista mais. Aquilo que foi afastado do consciente pelo sujeito permanece presente em outro sistema, o inconsciente, e dessa forma pode dar origem a derivados psíquicos e produzir sintomas sem que o sujeito possa dar-se conta disso. Temos de admitir que Alice não estava totalmente enganada, há sempre algo que resta na divisão do sujeito da psicanálise, pois nessa cisão algo se perde, ficando fora do seu controle. Isso que se perde, que está fora do controle diz respeito ao desejo inconsciente e marca, portanto, o sujeito com uma falta. A divisão do sujeito não pode ser uma divisão exata porque para sempre ele será um sujeito desejante. E é bom frisar que não se trata de um desejo qualquer, mas sim, para utilizar os termos de Lacan, "de um desejo recalcado, um desejo que não está ali, um desejo rejeitado, excluído" (LACAN, 1957).Recalca-se, no entender da psicanálise, algo sobre o sujeito. Quando aquilo que foi recalcado retorna, não pode apresentar-se ao consciente sem que esteja distorcido ou vinculado a outro conteúdo, já que traz algo com o qual o sujeito não suporta lidar. Nessa perspectiva, o erro por recalcamento se situa como derivado do inconsciente, ou seja, como sintoma, e, enquanto tal, traz em si algo sobre o sujeito. De acordo com a idéia psicanalítica, os erros de Alice não seriam outra coisa que material inconsciente que encontrou sustentação para a sua manifestação nos fatos fundamentais da matemática - um tipo de material que não oferece perigo - podendo existir livremente no sistema consciente. É possível

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encontrar na teoria psicanalítica e no discurso de Alice pontos de convergência que nos possibilitam pensar seus erros escolares como portadores de uma verdade sobre ela própria.No artigo "O mecanismo psíquico do esquecimento", de 1915, Freud escreve que "entre os vários fatores que contribuem para o fracasso de uma recordação ou para uma perda de memória, não se deve menosprezar o papel desempenhado pelo recalcamento". Segundo o pai da psicanálise, o fato de esquecermos algo - em geral nomes próprios, intenções, conhecimentos ou outras coisas corriqueiras - denuncia a ligação do conteúdo esquecido com algo que possa trazer uma sobrecarga de desprazer. Ao ser interrogada sobre que fatos não podia saber Alice se lembrou de uma amiga que lhe teria feito mal ao contar-lhe sobre a vida sexual dos pais. Os fatos que ela não podia saber e que agora sabe estariam sendo transportados à matemática, ocorrendo o que a psicanálise denomina deslocamento.Em A interpretação de sonhos Freud (1987) desenvolveu o conceito de deslocamento no processo de formação do sonho, sendo este entendido como algo que retorna do recalcado. O resultado desse deslocamento é uma diferença entre o conteúdo e o pensamento do sonho. Assim, as imagens do sonho não se ligam diretamente ou de maneira clara àquilo que o sonho traz e que causa sofrimento ao sujeito. Esse processo, que resulta em distorção do sonho, é promovido pela censura a fim de garantir uma defesa psíquica, já que aquilo que está sendo censurado é algo com o qual o sujeito não pode lidar.Deslocamentos não ocorrem somente quando estamos dormindo e, em Alice, temos um exemplo de como pode acontecer em estado de vigília. Ela desloca para a matemática valores que são de outra ordem. Esse mecanismo pode ser tomado como uma função defensiva, como ocorre no caso da fobia. Em Laplanche (1992) vemos que o "deslocamento sobre um objeto fóbico permite objetivar, localizar, circunscrever a angústia". Deslocando para a matemática a intensidade psíquica de questões sobre as quais ela não pode pensar, Alice encontra a possibilidade de, como foi citado acima, objetivar, localizar e circunscrever sua angústia e, principalmente, de poder pensar e falar sobre ela. Tal angústia, em certo momento do trabalho com Alice, pareceu ser relativa às questões sexuais.Tudo isto parece ter um caráter puramente especulativo, mas podemos recorrer à teoria psicanalítica para mais uma reflexão. Diante da afirmação freudiana de que "não há nada no psiquismo que seja arbitrário ou indeterminado" podemos, pensar que Alice, ao "escolher" os números 8 e 9 como indicadores daquilo que lhe é impossível saber, tinha razões psíquicas suficientemente fortes para justificar tal "escolha".Alice foi encaminhada a uma psicanalista, com a qual ela pôde falar das suas angústias, deixando a matemática livre para a aprendizagem. Segundo a psicanalista, a menina falou das suas dificuldades escolares no primeiro encontro, só voltando a fazê-lo após alguns meses para informar que havia conseguido obter 23 pontos no bimestre valendo 25.DIFICULDADES ESCOLARES: QUESTÕES SUBJETIVAS E/U PEDAGÓGICAS?Os erros escolares de Alice, a princípio, apontavam para questões de competência no uso da memória e de raciocínio abstrato. No entanto, a análise de seu pensamento acerca dos conteúdos que se apresentavam difíceis à sua

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aprendizagem mostrou que Alice, na verdade, produzia tais erros como resultado de algo que foi recalcado, não no entendimento piagetiano do termo, mas no que a psicanálise traz sobre o tema.Poderíamos considerar os erros de Alice como algo que retoma do recalcado, portanto, algo da ordem do sintoma; sendo assim, foge ao âmbito pedagógico o trato das questões a eles relativas. Confirma-se, assim, a constatação de Alice sobre a insuficiência da abordagem pedagógica no seu caso, quando diz que "aula particular não adianta nada". Isso não quer dizer que o referencial pedagógico deva ser abandonado em prol da clínica psicanalítica. Apesar de esta última se mostrar necessária no caso especifico de Alice, não ocorreu o mesmo com Pedro. Embora tenha manifestado questões subjetivas na determinação de seus erros, ele conseguiu avançar, abandonando as suas dificuldades escolares com intervenções no âmbito pedagógico, mais especificamente baseadas no referencial psicogenético. Além disso, ficou evidente no momento do diagnóstico que o domínio dos conceitos pedagógicos é imprescindível para a compreensão do raciocínio da criança e para a construção de intervenções adequadas.Para concluir, gostaria de deixar claro que o uso da psicologia genética e da psicanálise no trabalho com crianças que têm dificuldades nas aprendizagens escolares demarca, a meu ver, a diferença e os limites de cada abordagem e não, como sugeriu um dia Piaget (1972), uma fusão "numa teoria geral que melhorará as duas, corrigindo uma e outra". Cabe aqui a lembrança da lição de Freud (1976) referente à relação entre a psicanálise e a educação: "a psicanálise pode ser convocada pela educação como meio auxiliar de lidar com uma criança, porém não constitui um substituto apropriado para a educação".REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASALVARENGA, Daniel - Análise das variações ortográficas. BeloHorizonte: FaE/UFMG, 1994. Mimeo.FREUD, Sigmund. A Interpretação de Sonhos. Ed. Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud,. Rio de Janeiro: Imago, v.4 e 5,1987.____ Repressão. In: Artigos sobre metapsicologia. Ed. Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud,. Rio de Janeiro: Imago, v.14, 1974.____ A psicopatologia da vida cotidiana. Ed. Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:Imago, v.6, 1987._____ O sentido do sintoma (Conferência XVII)". In: Conferências Introdutórias sobre Psicanálise. Ed. Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. v.16, 1976._____ Mecanismos psíquicos do esquecimento". In: Primeiras publica ções psicanalíticas. Ed. Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago v.3, 1986._____ Três ensaios sobre a sexualidade. Ed. Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.7, 1989.AICHHOM. "Prefácio à juventude desorientada". In: Ed. Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.19, 1976.KAMII, Constance. Aritmética. novas perspectivas. Campinas: Papirus, 1992.LACAN, Jacques. O Seminário - as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, livro V, 1957LAPLANCHE, Jean. Vocabulário da Psicanálise . São Paulo: Martins Fontes,

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1992.OLIVEIRA, Marco Antônio & NASCIMENTO, Milton do. Da análise de "erros" aos mecanismos envolvidos na aprendizagem da escrita. Educação em Revista, dez/1990, p. 33-43.OLIVEIRA, Joana A. de. Para além do erro construtivo. 1996. Monografia de Iniciação Científica UFMG/CNPq. Mimeo.PIAGET, Jean. Problemas de psicologia genética. São Paulo: Abril Cultural, 1972.SANTIAGO, Ana Lydia. A pedopsiquiatria pedagógica: alguns aspectos históricos e suas relações com os problemas de aprendizagem. Biblioteca da Faculdade de Educação da UFMG, MimeoSIGNIFICADO DA ESCOLA: MEMÓRIA DE ADULTOS QUE VIVERAM A INFÂNCIA NA ZONA RURAL*( Este trabalho contém depoimentos de várias pessoas por mim entrevistadas, durante a coleta de dados para a elaboração de minha Tese de Doutorado, defendida em abril de 1991, "A Educação das Crianças: Representações de Pais e Mães das Camadas Populares", na qual contei com a orientação da professora Doutora Maria Helena Souza Pato, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.)Maria das Graças de Castro Sena( Professora aposentada da Faculdade de Educação/UFMG; Pedagoga Clínica.)Na análise do fracasso escolar dos alunos provenientes das camadas populares, uma das justificativas freqüentemente utilizadas é o desinteresse dos pais dessas crianças pela educação de seus filhos e, mais especificamente, o seu descaso pelo rendimento desses na escola. Tal discurso, oriundo da abordagem do "bandicap sociocultural", presente tanto na literatura especializada quanto no depoimento de profissionais da escola, vê na própria família das camadas populares a origem das dificuldades escolares de suas crianças. A fim de pesquisar a veracidade dessa argumentação, realizei um estudo sobre a educação familiar de crianças dessas camadas, pesquisando as representações de educação de um grupo de adultos - oito mulheres e sete homens - moradores de um bairro localizado na periferia urbana de Belo Horizonte.( "A escola está irremediavelmente comprometida com concepções e valores urbanos e dominantes da sociedade capitalista. Ela só se torna eficaz no meio rural quando a sua população já está envolvida, através da mercadoria, em relações sociais indispensáveis com a sociedade inclusiva." Assim, a escola se relaciona, basicamente, com possibilidade de surgimento de um projeto individual ou familiar, mas de qualquer modo socialmente dado, de negação da existência rural. Assim, "a escola só se propõe como veículo de negação do mundo rural onde e para quem ele já está negado, ou seja, no mundo das mercadorias." (MARTINS, 1975, p. 100-102).Ao levantar algumas questões que deveriam direcionar tanto a observação da vida cotidiana, quanto as entrevistas, não considerei como relevante o tema "escola" e o seu significado na vida desses sujeitos. Como a questão central era pesquisar as representações de educação desse grupo que diziam respeito especificamente ao relacionamento adulto-criança concretizado na vida cotidiana, acreditei que desfocaria o problema caso priorizasse a instituição escolar. Entretanto, esse tema foi tão insistentemente apresentado pelos entrevistados que pude constatar que a escola ocupa um lugar muito significativo em suas vidas - tanto em suas memórias

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de infância quanto no projeto de vida que eles sonham para seus filhos.Portanto, era preciso ouvi-los e tentar apreender a leitura que eles fazem dessa instituição social, analisando os dados referentes ao processo de escolarização vivido por esses adultos na infância e a expectativa que têm em relação ao futuro dos filhos.Suas memórias de infância relacionadas com a escola estão permeadas de experiências muito prazerosas. Apesar de toda a luta para freqüentá-la, a escola era considerada como "alguma coisa boa" em suas vidas. Era, de certa forma, uma maneira de descansarem do trabalho pesado da roça, durante algumas horas do dia. Os vários depoimentos sobre a experiência escolar concomitante ao trabalho na roça nos provam isso.A gente trabalhava até nove e meia, dez horas na roça, pra gente mesmo, lá junto com ela (sua mãe). Quando era dez horas a gente vinha correndo de galope, passava uma água nos braços, lavava as pernas, vestia aquela roupinha até remendada, aqueles trapos, cheio de remendo... nós andava seis quilômetros, uma légua, a pé, eu e minha irmã (ela, a mãe matriculou nós dois primeiro). Então nós fomos estudando, ela (a mãe) levou nós... a gente só teve condições de estudar só até o 3º ano, tanto eu como minha irmã. Nós gastava mais de uma hora pra chegar na aula, todos os dias, todos os dias... saía dez horas de casa, comia qualquer coisa, porque a situação era muito fraca, a gente era pobre demais e não tinha condições. A gente comia lá uma coisinha assim e saía.(Vicente).Portanto, o prazer de ir à escola era sempre ponto de conflito com a obrigação e a necessidade de trabalhar para ajudar na sobrevivência da família. Nesse conflito o trabalho era sempre considerado prioridade pelos pais, que também não tinham outra opção. Eles realmente necessitavam da mão-de-obra dos seus filhos.A condição de vida do meu pai era muito difícil, então a gente tinha que trabalhar na roça, na enxada mesmo. A gente ficava na roça. Quando estava faltando uns 10,15 minutos pra aula terminar ele (o pai) falava assim: "Agora você pode ir na aula". A gente descia pra lá. (pausa). Nesse meio tempo, a gente fez 1º e 2º ano, porque já tinha tido uma escola lá. Então eu fiz 1º e 2º ano e depois fui pro 3º... Então, ai eu tinha 14 anos, eu fui pro 3º ano, no "Patrimônio"; a gente andava uma hora e meia a pé. Para chegar lá 7:00 horas da manhã, a gente tinha que acordar 5:30 da manhã. Andava até, chegava lá, estudava, acabava a aula 11:00 horas, vinha pra casa, chegava em casa uma hora da tarde mais ou menos, almoçava; tinha que ir pra roça novamente. Trabalhava.., O tempo de fazer o "para casa", estudar, era de noite. Depois que chegasse em casa, tomasse banho, a gente estudava. Ai, quando eu tava com 14, 15 anos, eu fiz a 3º e 4º série. (Rosaria)Na idade da minha filha (8 anos) eu acho que eu nem estudava. Ai a gente ficava até o horário da aula. Se a aula fosse 11:00 horas, a gente trabalhava um pouco, ia pra aula e depois voltava pra roça de novo. (Tita)Ah, gostava tanto da escola! Era doida por causa da escola. Eu falo hoje em dia com meus meninos lá em casa que eles não têm boa vontade de estudar. Eu falo com eles assim: "Eh , rapazinho, só pensa em guardar seus cadernos". Que eu trabalhava muito na roça e ainda era a melhor aluna da sala. Agora, português eu era mais fraca um tiquinho. Mas não era muito mais ruim não". (Rosaria)E Rosaria carrega o peso de não ter tido acesso a uma escolarização que lhe

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oferecesse a oportunidade de ser realmente alfabetizada.O mais pesado pra mim na coordenação da creche é quando exige de ficar escrevendo muito. Quando dá pra falar, eu falo muito bem. Se depender de eu escrever ou ler alguma coisa, isso pra mim é pesado demais. É fácil, mas é pesado. Acho que é porque eu não sei ler. Não consigo entender o que estou lendo. Se uma pessoa ler, eu sei entender muito melhor que se eu ler. (Rosaria)Apesar de os depoimentos falarem do desejo de aprender a ler e escrever, o que mais está presente nesses fragmentos de memória são as situações do processo de socialização das crianças e os sentimentos em relação ao comportamento e à figura do professor.Vicente, ao se lembrar da escola, demonstrou em sua fisionomia uma satisfação enorme, que contrastava com a sua verbalização pela luta e a "peleja" vividas para freqüentá-la. Esse prazer estava relacionado principalmente com a troca de merenda, que possibilitava por sua vez uma troca de afetividade entre os colegas. São lembranças tão fortes que quase cinqüenta anos depois Vicente as conta, apontando os mínimos detalhes.Sabe qual é a merenda que nós levava para a hora do recreio? No tempo de milho granado, quando estava vesprando a hora da gente ir para a aula, cada um de nós, eu e a minha irmã, assava umas 3 ou 4 espigas de milho. Correndo, assava mal, mal, sapecado, de qualquer jeito e levava para a hora do recreio, servir de merenda.Agora, chegava lá na hora do recreio, às vezes aqueles outros meninos que levavam uma rapadura, um pedaço de queijo, uma banana madura, interessava pelo milho, né? "Ah vamos trocar uma espiga de milho por um pedaço de rapadura?" Ai a gente falava. "Então nós troca".E ai a gente comia rapadura, era essa a merenda nossa... (Risos,) (Vicente)Mas a possibilidade de ser alfabetizado não ficava reduzida à instituição escolar. Os próprios pais inventavam diversas alternativas para oferecer aos filhos um "pouco de instrução". Havia pai, por exemplo, que após um dia de trabalho pesado na roça colocava os filhos em volta de uma mesa e tentava alfabetizá-los, e usava - apesar da discordância da mãe - a surra como um recurso eficaz para a aprendizagem.Ah! Apanhei... Papai batia muito! Eu não tive escola, eu não estudei não. Foi 30 dias de aula que eu tive com um professor. Meu pai me ensinava, trabalhava o dia todo, estudava à noite. Estudava um mucadinho e tinha que aprender.. .(pausa) Mamãe ficava pra lá, coitada! Qualquer galho ela chegava perto: "Ah! Joaquim (meu pai chamava Joaquim), Ah! Joaquim, não bate mais não. Os meninos acaba guardando. Chega de bater uai"... (Tião)Outro recurso para ensinar as crianças a ler, a escrever e a decorar a tabuada foi reivindicar o conhecimento da avó. Apesar da lembrança dos "bolos" da palmatória, era um sentimento de prazer que movia os seus netos até a sua casa-escola, onde eles aprendiam alguma coisa.Ah! A minha bisavó, quando aprendi a ler com ela... Porque eu era pequenininha, ela dava aula, então eu gostava de ir lá pra aprender com ela. Aquele tempo a professora era muito brava, qualquer coisinha ralhava. Então, a gente ia lá, quando eu era pequena, quando ela ia, ela me deixava lá a vontade. (pausa). Ali a gente não dava conta de escrever, ela pegava na mão da gente, escrevia, xingava

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a gente. Tabuada, por exemplo, se a gente fosse ler tabuada e errasse tabuada, a gente ganhava um bolo. Falava na época palmatória. Então, foi assim que a gente conseguiu aprender alguma coisa. (Rosaria)No caso de uma das entrevistadas, além das figuras do pai e da bisavó, havia também a professora particular, contratada pelo avô para dar aulas para os netos e os meninos da região. Mas o trabalho na roça era sempre colocado em primeiro lugar e à escola era dispensado o tempo que sobrava.Mas depois que eu estudei esse tempo com minha avó, dessa maneira, eu tinha 13 anos de idade já. Aí meu avô trouxe uma professora, que estava na escola pública aquela época, pôs na casa dele pra dar aula pros filhos dele mais novo e pros netos. E ai juntou os meninos daquela região para fazer uma turma de aula. Mas nós não íamos na aula. Eu não ia na aula. Eu tinha que ir pra roça e ficava lá. Na hora que estava terminando a escola, meu pai falava que podia deixar de novo que... "agora pode ir pra aula". A gente descia correndo, pra ir pra aula, e ia lá um pouquinho. (Rosaria).O desejo de ser alfabetizado era tão forte e as dificuldades para que isso ocorresse eram tão grandes que Marcelino se lançou nessa aventura praticamente sozinho, com todo o esforço que lhe foi possível fazer. Essa experiência lhe deu, inclusive, elementos para questionar a metodologia utilizada hoje pelas escolas no processo de alfabetização dos seus filhos.Nunca fui na escola. Aprendi sozinho. Tinha uma boa idéia ai eu aprendi com a explicação de um e de outro. Lá na roça tinha uma prima da gente. Naquele tempo uma pessoa que fazia 4° ano era uma coisa muito boa, porque eu acho que hoje devia ser igual aquele tempo. De fato ela não era uma professora, mas a dona convidou ela para passar uns dias lá e eu freqüentei uns 15 dias. Eu aprendi o ABC e por ali eu só olhava o modo que ela ensinou e eu aprendi o ABC de cor. Depois fala que de cor não vale. Mas eu aprendi de cor: eu olhava a letra e prestava atenção na letra como ela era e aprendia aquela. Passava pra outra, ai eu fui executando e tal, fui aprendendo, e mais porque eu queria muito aprender. ..(pausa). Aqueles 15 dias foi só bom para fazer uma experiência. Dai fui olhando as letras, fui aprendendo as letras, até que eu aprendi a conhecer as letras, juntar as letras, na cabeça mesmo eu juntava... Quando tinha 3 letras eu martelava a cabeça até aprender. Era difícil, mas quando eu achava essa letra num lugar, eu ia martelar a cabeça como é que podia fazer, para achar como que fazia juntando as três... Ai eu achava o jeito que elas faziam... Ai, quando eu ficava com um pouco de dúvida, eu encontrava uma pessoa que sabia e eu perguntava: "Essa letra com essa, o que dá?". E a cabeça gravava. Aí comecei a pegar livro, história eu sempre gostei, pegava livro de história e lia do principio ao fim, correndo mesmo, lia muito. Ai escrever carta, fazia tudo, qualquer letra de médico eu lia (porque antes eles escreviam muito mal, hoje é que eles estão escrevendo melhor...).Depois que eu casei, minha esposa sabia um pouco, então eu larguei pra lá... antes eu escrevia carta para namorada ai eu casei e esqueci daquilo. (Marcelino).No caso de Marcelino, foi o desejo de ser reconhecido como um cidadão - fazendo uso de seu direito de voto e ser igual aos outros - que o motivou para essa "dolorosa" aprendizagem.Eu era rapaz de uns 18 anos mais ou menos... E tinha uma vontade também de

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ser eleitor, também. Ai então eu aprendi e com pouco tempo eu fui eleitor. Eu queria votar... Eu achava bonito ser assim um eleitor. Estava naqueles dias de eleição, todo mundo saia para votar. Eu cheguei na idade de 18 anos, tinha aquela vontade de votar, então eu lutei pra aprender, pra assinar o nome, ai comecei a votar, dai pra cá continuou. (Marcelino)O fato de ser alfabetizado hoje confere a Marcelino um "status" no seu grupo, por ter um conhecimento que ele põe a serviço de uma causa - na qual ele acredita e com a qual está comprometido.Hoje, na conferência, na função de tesoureiro, eu escrevo, não é muito não, mas pelo menos dá pra ajudar um pouquinho, a gente já favorece os outros. Não anoto tudo lá na hora não, mas anoto o dinheiro que entrou e o dinheiro que saiu. Então eu chego em casa, e com o tempo (à noite eu não enxergo, porque estou sem óculos), então eu chego em casa e passo para o livro tudo direitinho, o dinheiro que entrou, que saiu, a gente anota tudo.. (Marcelino)Ainda que na lembrança a figura do professor esteja associada à de um "carrasco fora do comum", o fato de ele dar um tratamento igual, tanto para os meninos ricos quanto para os pobres, foi devidamente recordado:O professor era tão carrasco pra nós, mas carrasco fora do comum. Todos os alunos: não tinha dizer que era filho de pobre ou filho do mais rico, não. Ele batia em todo mundo! Batia mesmo! Batia com vara de bambu amarelo (não tinha um bambu amarelo, que dá umas listras?). Aquele bambu dava uns brotos e diariamente ele tinha lá perto de um quadro negro, ele encostava as varas: 8, 10 varas, tinha dia que ele quebrava uma vara de bambu todinha, só em mim. Qualquer coisinha que a gente... Se a gente desse uma risada, sentado na cadeira, ele ia lá, sacudia a gente todo, balançava a gente todo, dava soco na cabeça da gente, puxava a orelha até cortar a orelha. Nessa época ele já era um professor assim de uns 40 anos. Chamava sô Astor, isso era em São José de Campinho, perto de Coroaci, fui criado lá. Então, esse professor judiava com a gente demais... (Vicente)A mudança da roça para a cidade (Os dados coletados a esse respeito se assemelham às conclusões de Moraes (1977, p. 66). Ao pesquisar junto a um grupo de famílias operárias "de que maneira as condições objetivas da atuação de classe definem os limites da organização da vida familiar", essa autora conclui que:.. ."as famílias pesquisadas não têm como projeto a ruptura da condição proletária, mas passam a desejar melhores condições de realização da condição proletária em si, pela via de um melhor padrão de consumo". Tal aspiração situa-se nos limites do projeto familiar, e não de projetos de uma classe. Fausto Neto (1982, p. 192-197) também comprovou em seu estudo que nos discursos das famílias pesquisadas "a estrutura social e a posição nela foram de alguma forma poupadas". Mas, quando se estabelecem confrontos e correlações com outras situações, elas percebem sua situação de "indivíduos dominados". Nesse contexto, o salário é uma categoria delimitadora das duas situações sociais comparadas. A autora pontua, assim, o elemento "ambigüidade" presente nos discursos), além de outras expectativas (especialmente aquelas relacionadas com o mercado de trabalho), significava também a possibilidade de estudar e, conseqüentemente, "melhorar de vida. Mas acabou se tornando para o Zé (e para muitos outros "Zés") apenas um "sonho de criança".

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A vinda para a cidade a princípio foi agradável, depois piorou, porque eu não pude continuar a estudar. Você já pensou um menino parado na 7ª série, tinha até uma boa vontade pra estudar, sonho de eu ser alguma coisa na vida, ter um futuro melhor. Eu pensava que talvez eu poderia ter um emprego bacana e... e ser uma coisa melhor na vida, aquele sonho de criança que a pessoa sempre tem. Achava bonito aqui, agradável, aqueles entusiasmo de criança (Zé).O reconhecimento do direito de freqüentar uma escola e de priorizá-la no projeto de vida de seus filhos (oferecendo-lhes condições para estudar) foi apontado pelos entrevistados como uma grande diferença entre o comportamento dos pais que viveram na zona rural e dos pais que vivem hoje na zona urbana.Se eu tivesse feito um cursinho, toda a vida a pessoa tem que tentar, e se eu tivesse tido um pai que pensa.. Quando eu estava em Montes Claros, na 7ª série, jovem, cheio de vida e de vontade, andava muito a pé pra ir pra escola também, ele não preocupava de comprar as livros de matemática, português... Eu tinha que estar olhando livro de outros... isso desnorteia qualquer um, né ? Tinha que estar olhando livros dos outro as vezes não deixavam eu copiar. A professora as vezes estava de cabeça quente e apagava o quadro, e mandava eu copiar do colega, quer dizer... Eu falava "compra livro pra mim!" e ele não esquentava a cabeça. Era só pensar no bem bom da vida dele. E só tinha eu, ele devia ter mais boa vontade comigo, né ? E não tinha! Talvez eu tenha mais hoje, mais boa vontade com os meus do que ele teve comigo! Porque os meus, por exemplo, eu estou com 38 anos, o meu está com 16 e está no 1º ano do 2º grau. Quer dizer ele era técnico em couro, fazia qualquer coisa. Tinha condições de ganhar dinheiro, até mais do que eu, e ele só tinha eu pra criar, podia me estimular mais e não, ele até me humilhava.(Zé)A criação era muito diferente, porque você vê hoje que os meninos de hoje têm mais liberdade, né ? Antigamente menino não tinha liberdade. A gente chegava da escola e tinha que ir trabalhar, era só a conta de pegar um comêzinho e ir trabalhar. Agora, os meninos de hoje em dia fica por conta de estudar e ainda deixa o para casa pra noite, né ? Brinca o resto da tarde, é muito tranqüilo, boba... (Glória)Portanto, essa diferença de geração é percebida, principalmente, pelo deslocamento da instituição escolar e de suas tarefas diárias na vida de seus filhos. Esse fenômeno está indiretamente relacionado com a perspectiva da escola como fator de mobilidade social.Porque eu, por exemplo, quando comecei a trabalhar em casa de família com 13 anos, eu já dava conta, por quê? Porque com 7, 8 anos eu já tinha que ter a minha responsabilidade dentro de casa, já tinha aquele serviço marcado (nós era 5 moças), cada uma fazia uma coisa e a gente dava conta. Agora as coisas de escola não. Eles mandavam a gente ir pra escola, mas não era uma coisa que a gente fazia porque eles tava obrigando não. Ia, né? Mas primeiro as coisas de casa, a obrigação primeiro, e o estudo vinha depois. Agora não: você vê que uma moça ia às vezes com 15 anos, 16 anos, ela chega dentro de casa, pega o caderno e fica estudando a tarde toda. Igual à minha de 10 anos: se eu deixar uma cozinha para arrumar, se eu chegar e tiver arrumado, bem, se não tiver arrumado ela está estudando e fala: "Ah, mãe eu estava fazendo meus para casa, eu tenho isto, isso", aí eu entendo e não é o caso de mamãe de antigüidade, não

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é? (Ivani)Lá na roça tinha escola, mas nossos pais quando colocou a gente na escola já estava com 15 anos de idade. Aprendi um pouco, foi muito pouco... Pra arrumar um bom emprego hoje, com esse estudo que a gente tem, não dá não... (João)Numa estrutura socioeconômica em que as crianças trabalhavam pesado no campo a maior parte do seu dia, a escola era muito valorizada.A gente tinha mais interesse. Eu acho que eu tinha mais atenção também, né? Que a gente estava ali naquela dificuldade de trabalhar muito. Estava doida para sair um pouquinho. Quando a gente saia, dava muito valor naquilo. (Rosaria)Ignorar a escola como uma instituição social bastante significativa na vida desses sujeitos pesquisados reduziria, com certeza, a dimensão deste estudo. A consideração de sua relevância determinou a busca de mais elementos, na tentativa de aprender a realidade vivida por esses sujeitos, realidade essa que é influenciada por sua história de vida e por suas condições de sobrevivência, as quais, por sua vez, também influenciam seus valores e seu modo de vida.Ao serem entrevistados sobre a maneira como educam seus filhos hoje, os sujeitos pesquisados fazem, inevitavelmente, comparações com a estrutura patriarcal de suas famílias na zona rural e o modo como eles foram tratados quando crianças. Tais recordações não estão isoladas do contexto mais amplo das estruturas sociais e econômicas da época. Pelo contrário, a lembrança de como seus pais eram tratados pelos fazendeiros e a atitude de subserviência da maioria deles diante dessa situação de exploração e de desrespeito à sua pessoa provoca a verbalização de sentimentos de indignação e revolta.A situação de opressão determinava uma rigidez na vida desses trabalhadores rurais, obrigando-os a um trabalho pesado e desgastante em idade ainda bastante precoce. É evidente que nesse contexto a criança era percebida como mão-de-obra indispensável na luta pela sobrevivência. Como conseqüência, as lembranças do "suor deixados naquelas terras"- ainda que esses indivíduos reconheçam as precárias condições de sua vida atual - evocam sempre uma visão mais otimista da cidade. Esse otimismo é reforçado pela contextualização sociogeográfica e econômica do município em que está localizado o bairro onde moram os sujeitos pesquisados, indicando uma estrutura ainda bastante precária de urbanização, mas que, se comparada à situação inicial (quando os moradores mais antigos se mudaram para o bairro), revela uma série de conquistas, fruto de muita luta junto aos órgãos competentes.Talvez seja por esses motivos que, nos relatos sobre a vida na roça, não encontrei casos tão "puros" como aqueles observados por Mello & Souza (1964, p. 193-194) que foram denominados "saudosismo transfigurador". Este consiste em "comparar, a todo propósito, as atuais condições de vida com as antigas, as modernas relações humanas com as do passado". Os sujeitos entrevistados demonstraram uma certa ambivalência: a lembrança do passado é impregnada de acontecimentos muito dolorosos, mas que esses sujeitos relatam com um certo orgulho.Com o processo migratório - ainda que permaneçam em suas condições de classe explorada - esse grupo de trabalhadores é introduzido numa nova maneira de lutar pela sobrevivência, maneira essa que é analisada por eles como geradora de diferenças significativas em suas vidas. Atualmente, as suas principais aspirações

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estão reduzidas a ter um barraco para morar sem precisar pagar aluguel, poder oferecer infra-estrutura (uniforme e material escolar) ao estudo dos filhos e, principalmente, ter um emprego fixo. O fantasma do desemprego impede que as análises sobre as condições de trabalho e de remuneração sejam mais profundas(Os dados coletados a esse respeito se assemelham às conclusões de Moraes (1977, p. 66). Ao pesquisar junto a um grupo de famílias operárias "de que maneira as condições objetivas da atuação de classe definem os limites da organização da vida familiar", essa autora conclui que:.. ."as famílias pesquisadas não têm como projeto a ruptura da condição proletária, mas passam a desejar melhores condições de realização da condição proletária em si, pela via de um melhor padrão de consumo". Tal aspiração situa-se nos limites do projeto familiar, e não de projetos de uma classe. Fausto Neto (1982, p. 192-197) também comprovou em seu estudo que nos discursos das famílias pesquisadas "a estrutura social e a posição nela foram de alguma forma poupadas". Mas, quando se estabelecem confrontos e correlações com outras situações, elas percebem sua situação de "indivíduos dominados". Nesse contexto, o salário é uma categoria delimitadora das duas situações sociais comparadas. A autora pontua, assim, o elemento "ambigüidade" presente nos discursos).Portanto, o fato de migrarem para a cidade, deixando para trás um passado na zona rural que se mostrou bastante presente em suas memórias, provocou mudanças radicais em seu modo de vida. Em alguns casos foi possível perceber que a absorção e a vivência de novos valores veiculados na zona urbana se dão através de um processo doloroso, principalmente para os homens, que se mostraram mais resistentes do que as mulheres às novas situações. Isso se justifica considerando-se, principalmente, que o processo de assimilação de valores próprios da vida urbana implicou, em alguns contextos, uma ruptura com os modos de vida específicos da zona rural. Outros autores que estudaram grupos de pessoas moradoras da periferia urbana e oriundas do interior também chegaram a essa conclusões. Segundo Durham, (1984, p. 8-217):O processo migratório não se reduz a um mero deslocamento geográfico, mas reflete a situação econômico-Social do país e traz como conseqüências alterações ao nível do comportamento dos sujeitos que vivem o processo. Ainda que esse fenômeno não altere a posição das pessoas na estrutura da sociedade global enquanto categorias, estrato ou classe social, mas enquanto indivíduos e membros de famílias, a trajetória da roça para a cidade envolve uma ruptura com modos de vida antes vivenciados e não questionados.Também Mello e Souza (1964, p. 193), ao estudar as "representações mentais" de um grupo de caipiras, constata como a mudança da zona rural para a zona urbana, baseada especificamente numa nova condição econômica, que por sua vez define uma posição diferente na estrutura social, traz como conseqüência novos "traços de mentalidade e afetividade".A disciplina cobrada na vida rural era basicamente a da produtividade no trabalho. Naquele contexto a instituição escolar ocupava - na representação de seus pais - um lugar secundário e provisório na vida infantil. Ainda que durante as entrevistas tivessem emergido as lembranças do "professor carrasco" e do "uso da palmatória", a escola era apresentada como um local prazeroso, onde as crianças descansavam, durante algumas horas, do trabalho pesado da roça e,

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principalmente, como a possibilidade de conviver com outras crianças de várias idades. Para os pais, a aprendizagem da leitura, da escrita e do contar servia como motivo para permitirem que seus filhos freqüentassem a escola. Martins (1975, p. 84) afirma que:O significado da escolaridade não é definido apenas a partir da perspectiva do sujeito mas sobretudo das componentes cruciais da situação que nessa perspectiva se exprimem, e que o definem como ser social.Portanto, considerando que a definição do significado da escola depende basicamente da estrutura social e, consequentemente, do lugar que os indivíduos ocupam na sociedade, os pais hoje reconhecem como direito de seus filhos freqüentar uma escola e priorizam-na no seu projeto de vida. Essa postura está ligada à experiência de que a escolarização é um fator bastante decisivo para se conseguir um desempenho e, assim, a escola é, inegavelmente, um dos fatores de mobilidade social.A qualificação, no seu sentido mais amplo, consiste na aquisição de padrões culturais que se referem não apenas a novas técnicas, mas, inclusive, a novas normas de relações sociais e de valores que se manifestam como atitudes e motivação para o trabalho. (DURHAN,1984, p. 147)Entretanto, a expectativa desse grupo com o seu processo de escolarização e o de seus filhos tem lhes mostrado uma realidade muito cruel. Assim, a sua expectativa em relação ao futuro dos filhos é impregnada de incertezas e de apreensões, considerando-se que a vivência do presente só lhes tem oferecido elementos negativos e preocupantes em relação ao amanhã.Nesse contexto, cabe aos profissionais da educação uma reflexão sócio-histórica sobre o papel da escola e a elaboração de projetos que viabilizam o acesso aos conteúdos escolares pelas crianças das camadas populares.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASDURHAN, E. R. A caminho da cidade, 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1984.FAUSTO NETO, A. M. C. Família operária e reprodução da força de trabalho. Rio de Janeiro: Vozes, 1982.MARTINS, J. S. A valorização da escola e do trabalho no meio rural. In:Capitalismo e radicionalismo. São Paulo: Pioneira, 1975.MELLO E SOUZA, A.C. Os parceiros do Rio Bonito. Rio de Janeiro:José Olympio, 1964.MORAES, C. C. M. P. A reprodução da desigualdade: o projeto de vida familiar de um grupo operário. São Paulo: USP, 1977. (Dissertação de mestrado.)FRACASSO E SUCESSO ESCOLAR: OS DOIS LADOS DA MOEDAValéria Barbosa de Resende(Professora da Rede Municipal de Ensino, integrante do Centro de Aperfeiçoamento dos Profissionais da Educação, CAPE/Secretaria Municipal de Educação/PBH; Professora da Faculdade de Ciências Humanas da Fundação Mineira de Educação e Cultura (FUMEC).Justificando o fracasso escolar: diversas abordagensConvive-se historicamente com um problema educacional: o fracasso escolar. Há mais de meio século várias crianças e adolescentes apresentam trajetórias escolares marcadas por rupturas e reprovações. Esses sujeitos não conseguem nem mesmo iniciar o processo de alfabetização, entendido como a apropriação da base alfabética, a aquisição de algumas regras ortográficas e o desenvolvimento

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de habilidades textuais.Diante dessa situação, instaurou-se, na escola, uma cultura do fracasso, que tem sido justificada sob diferentes perspectivas: falta de prontidão da criança, carência cultural, diferença cultural, reprodução das desigualdades sociais, diferentes níveis de compreensão da natureza simbólica da escrita, distância entre a variedade escrita e a variante oral das crianças, diferentes funções atribuídas à leitura e à escrita pelos diversos setores sociais, conflito entre o contexto cultural familiar e a cultura da escola, dificuldades para definir com clareza o que uma criança deve conhecer, que habilidades de leitura e de escrita deve adquirir e dificuldades para trabalhar, na sala de aula, com a diversidade cultural e de ritmos de aprendizagem.O entendimento das diferentes perspectivas, seus limites e formas de superação, bem como do contexto histórico na qual se inserem, possibilita uma visão menos fragmentada dos aspectos teórico-práticos que vêm orientando as discussões de âmbito pedagógico e ainda fornece pistas para a construção de uma escola em que as trajetórias sejam, predominantemente, de sucesso.Uma das explicações para o fracasso escolar baseia-se no estado de prontidão da criança. A constatação ou ausência da prontidão pode ser verificada a partir da aplicação de testes psicométricos, que estabelecem os pré-requisitos necessários à aprendizagem da leitura e da escrita e avaliam o estado de prontidão da criança.No Brasil, o primeiro instrumento de medida destinado a avaliar a prontidão foi o Teste ABC, de Lourenço Filho, elaborado em 1931, que apresentou um novo critério avaliativo para o início da aprendizagem da leitura e da escrita - antes prevaleciam os critérios de idade cronológica e idade mental (Quociente Intelectual - Q.I.). Esse novo critério centrou-se nos aspectos fisiológicos e maturacionais expressos nas habilidades de coordenação motora, discriminação auditiva e visual, organização perceptiva, memória.A partir do teste ABC, vários outros instrumentos destinados a avaliar a prontidão escolar foram criados e todos eles apresentavam características em comum. Dentro dessa perspectiva, sucesso e fracasso na alfabetização dependeriam do estado de prontidão do aluno, isto é, do domínio das habilidades específicas necessárias ao aprendizado da leitura e escrita, enfatizados nos testes de prontidão.A noção de prontidão e a utilização dos testes para sua medida foram amplamente divulgadas nos meios escolares, na tentativa de favorecer o ensino por meio da organização de classes seletivas. Embora os resultados não tenham contribuído para o sucesso na aprendizagem daleitura e da escrita, têm servido plenamente para selecionar e rotular as crianças das camadas populares, isentando a escola de qualquer responsabilidade e atribuindo o fracasso à falta de prontidão do aluno.Dentre os estudos que pretendem criticar essa abordagem, destaca-se o de Costa (1993), que além de denunciar o caráter ideológico dos testes - elaborados a partir da concepção e prática de uma classe social - mostra que a criança da camada popular "não só é capaz de aprender, mas também apresenta uma especificidade própria de pensamento, diretamente relacionada à sua classe social de origem" (p. 19).A constatação de que a criança imatura para a alfabetização é quase sempre a

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criança de nível socioeconômico baixo possibilitou a elaboração de uma outra explicação para o fracasso escolar, denominada teoria da carência cultural. Essa perspectiva aponta, nas crianças das camadas populares, as mais variadas deficiências: de alimentação, de habitação, de bens materiais, de prestigio social, de afetividade, de estimulação verbal. Em decorrência dessas "privações", essas crianças apresentariam deficiências em fatores cognitivos importantes para a aprendizagem da leitura e da escrita.A teoria da carência cultural responsabiliza a criança pobre e sua família pelo insucesso na alfabetização. Não questiona o papel da escola na produção do fracasso, apenas sugere uma mudança curricular, a fim de ajustar a criança "carente" à sociedade, e apresenta como solução programas especiais que busquem compensar as suas deficiências.O pressuposto presente na teoria da carência cultural, de que a linguagem e a cultura das crianças das camadas populares são deficientes, foi desmistificado, principalmente, por estudos de natureza sociolingüística e antropológica, conforme a citação abaixo:O estudo das línguas de diferentes culturas deixa claro (...) que não há línguas mais complexas ou mais simples, mais lógicas ou menos lógicas: todas elas são adequadas às necessidades e características da cultura a que servem, e igualmente válidas como instrumento de comunicação social. (SOARES, 1986, p.39)Assim, a cultura e a linguagem das crianças das camadas populares não são consideradas nem inferiores, nem atrasadas, mas diferentes. Enquanto a teoria da carência cultural busca a explicação para o fracasso escolar das crianças das camadas populares fora da escola, ou seja, nas suas precárias condições de vida, a teoria da diferença cultural aponta para uma inadequação da escola à realidade cultural delas.Em consonância com a teoria da diferença cultural se encontram os estudos de natureza sociolingüística que atribuem o fracasso na alfabetização das crianças das camadas populares, principalmente, "a problemas decorrentes da distância entre a variedade escrita do dialeto padrão e os dialetos não padrão de que são falantes essas crianças". (SOARES, 1988, p. 4)Os estudos socioligüísticos têm-se voltado, também, para as funções sociais da escrita. Segundo Soares (1988, p. 4),(...) é necessário conhecer o valor e função atribuídos à língua escrita pelas camadas populares, para que se possa compreender o significado que tem, para as crianças pertencentes a essas camadas, a aquisição da língua escrita - esse significado interfere, certamente, em sua alfabetização.Uma outra perspectiva desloca o estudo para o processo de construção do conhecimento. As pesquisas desenvolvidas por Ferreiro e Teberosky (1986) que têm como referencial teórico a psicologia genética de Piaget e estudaram especificamente a psicogênese da leitura e da escrita. Nessa abordagem se estudam, principalmente, as hipóteses construídas pelas crianças no sentido de se apropriar da língua escrita. Assim, a aquisição da escrita é entendida como produto de uma construção ativa do sujeito em interação com o objeto de conhecimento. O fracasso e o sucesso na alfabetização, segundo Ferreiro e Teberosky (1986, p. 277), dependem

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(...) das condições em que se encontre a criança no momento de receber o ensino. As que se encontram em momentos bem avançados de conceitualização são as únicas que podem tirar proveito do ensino tradicional e são aquelas que aprendem o que o professor propõe ensinar-lhes. O resto são as que fracassam, às quais a escola acusa de incapacidade para aprendizagem ou de "dificuldades de aprendizagem", segundo uma terminologia já clássica. Porém, atribuir as deficiências do método à incapacidade da criança é negar que toda a aprendizagem supõe um processo, é ver déficit ali onde somente existem diferenças em relação ao momento de desenvolvimento conceitual em que se situam.Nessa perspectiva, sucesso e fracasso na alfabetização são explicados a partir de características individuais de desenvolvimento cognitivo e da inadequação da escola em identificar e considerar essas características na apropriação da leitura e da escrita pela criança.Tanto a psicogênese quanto a teoria da diferença cultural propõem uma mudança de postura por parte dos professores, enfatizando o respeito aos padrões culturais e lingüísticos e a forma de pensamento das crianças das camadas populares. Contudo, na prática, o professor, mesmo consciente da necessidade de respeitar os padrões culturais de seus alunos, continua a valorizar os padrões culturais e lingüísticos da classe dominante.Esse fato pode ser explicado a partir de uma análise do sistema de ensino inserido em um contexto social mais amplo. Para Bourdieu, existe uma economia das trocas materiais e uma "economia das trocas simbólicas", e, portanto, uma "economia das trocas lingüísticas". Para o autor, funciona na escola o mercado lingüístico das classes dominantes - grupo que detém o poder e a autoridade nasrelações de força econômica e cultural, e que impõe a sua linguagem como sendo a única legitima, constituindo-a em "capital lingüístico escolarmente rentável". A apropriação ou não desse capital é responsável pelo sucesso ou fracasso escolares. Segundo Bourdieu (1989, p. 5),(...) cada família transmite a seus filhos, mais por vias indiretas que diretas, um certo capital cultural e um certo ethos, sistema de valores implícitos e profundamente interiorizados, que contribui para definir, entre outras coisas, as atividades face ao capital cultural e à instituição escolar. A herança cultural, que difere, sob os dois aspectos, segundo as classes sociais, é a responsável pela diferença inicial das crianças diante da experiência escolar, e, consequentemente, pelas taxas desiguais de êxito.Nessa perspectiva, as crianças das classes dominantes chegam à escola de posse do capital cultural e lingüístico legítimo, adquirido em seu grupo social, o que lhes possibilita maiores chances de sucesso na escola. As crianças das camadas populares não dispõem desse capital cultural, porque adquiriram em seu grupo social uma outra linguagem, uma linguagem considerada não-legitima, e por isso fracassam na escola.Ainda com relação às diferenças entre as classes sociais, Nicolaci-da-Costa (1987) investiga o conflito estabelecido entre o contexto cultural da família e o contexto cultural da escola. Segundo a autora, o fracasso dos alunos procedentes das camadas populares é explicado pelo conflito entre seus próprios padrões culturais e os da escola, que coincidem com os da classe dominante. O conflito é

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assim explicitado pela autora:A criança, ao ingressar na escola, depara, tal como o estranho, com todo um conjunto de valores, comportamentos e atitudes de um grupo social diferente do seu. É uma situação difícil de enfrentar: durante parte do dia (no horário escolar) tenta-se fazer da criança um membro da cultura X (a da escola), enquanto que durante o resto do tempo ela é membro integrante da cultura Y (a de seus pais, irmãos, parentes, vizinhos e amigos). É uma situação de conflito, uma situação que tem o potencial de gerar insegurança, de criar uma sensação de perda de referenciais. (p. 50)A criança que fracassa é aquela que não consegue aceitar a visão de mundo da escola, porque essa visão não tem relação com a sua cultura. Tal como a criança que fracassa, a criança de sucesso também passa por um penoso processo de adaptação ao entrar em contato com o padrão cultural da escola, mas, termina aceitando e incorporando a visão de mundo da escola.Essa trajetória de sucesso da criança de camada popular pode ser entendida se considerar a circularidade entre as culturas, isto é, apesar de a cultura escolar estar mais próxima da cultura das classes privilegiadas, torna-se necessário verificar que, nas sociedades estratificadas, coexistem diferentes culturas que, por sua vez, não se encontram isoladas, mas em um processo dinâmico de circularidade. Os pais dos alunos das camadas populares promovem, de certa forma, essa circularidade, quando acreditam que seus filhos dependem da escola para a aquisição dos conhecimentos historicamente acumulados, valorizando a cultura escolar, vendo nela uma possibilidade de mobilidade social, ainda que limitada e controlada.Há ainda estudos que focalizam a estrutura escolar como responsável pela produção do fracasso e estabelecem uma relação entre a história do fracasso escolar com a história do sistema seriado e disciplinar. Propõem uma revisão da ossatura escolar (grades curriculares, sistema de avaliação e organização seriada), a fim de construir uma cultura do sucesso.Esse novo ordenamento estaria ancorado na vivência sociocultural dos sujeitos e organizado a partir dos ciclos de formação da infância e da adolescência. Nessa concepção, "o tradicional critério para aprovação-reprovação, avanço-retenção, que era o domínio de conteúdos predefinidos por disciplina e série, perde qualquer sentido próprio e não passa de uma pedagógica maquiagem da cultura da exclusão. O direito maior a uma vivência sociocultural adequada a cada idade-ciclo de formação se impõe como critério mais justo, igualitário." (ARROYO, 1997, p. 25).( Dentre os movimentos realizados pela escola/sociedade, no sentido de romper com a lógica do fracasso e construir uma escola pública democrática e inclusiva, destacam-se as experiências de Porto Alegre (Escola Cidadã), Belo Horizonte (Escola Plural) e, recentemente, Brasília) (Escola Candanga).Trajetórias de fracasso/sucesso e a escolaTransformar a estrutura da escola não é uma tarefa fácil. Essa mudança não depende somente da alteração do nome das coisas - de série para ciclo, de avaliação quantitativa para avaliação processual, da organização disciplinar dos conteúdos para organização por projetos de trabalho, da homogeneização para a diversidade dos ritmos de aprendizagem. Além de mudar o discurso, o educador precisa, principalmente, alterar sua prática a fim de garantir uma educação de

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qualidade para seus alunos. Essa alteração é processual e depende da discussão e avaliação das concepções que têm sustentado a prática do professor, da capacidade do coletivo escolar para apontar acertos e equívocos e buscar superar os problemas surgidos.E foi com a intenção de transformar os mecanismos que excluem as crianças da escolarização que, em 1991, a escola pesquisada decidiu organizar as turmas a partir de um único critério: ordem de matrícula. O objetivo era evitar rotulações, tais como turmas fracas e turmas fortes. Essa atitude foi um avanço na medida em que rompia com modelos até então dominantes na escola, ancorados nos princípios da homogeneização e classificação. Contudo, diante da dificuldade em lidar com a diversidade de ritmos de aprendizagem, as professoras continuaram a avaliar seus alunos a partir de critérios utilizados tradicionalmente pela escola: selecionar, comparar e rotular.Assim, no decorrer de alguns meses de aula, os alunos eram comparados entre si, destacando-se os melhores, ou de sucesso, e os piores, ou de fracasso. Os alunos de sucesso serviam de parâmetro para os outros, e a forma como os alunos avaliavam a si mesmos e aos outros, em função desse parâmetro, tinha conseqüências importantes para o seu rendimento. A expectativa da professora com relação ao aluno e do próprio aluno com relação às suas possibilidades interferiram na trajetória escolar. O veredicto anunciado no início do ano acompanhava o aluno por toda sua trajetória na escola.(...)a turma cresceu muito, mas três alunos não conseguiram acompanhar, então eles não vão me dar uma resposta positiva, eu tenho certeza que são crianças que eu não vou conseguir promovê-las. (depoimento de uma professora realizado após 5 meses de aula)O que as três crianças mencionadas pela professora não conseguiram acompanhar? Quais habilidades a escola priorizava? Quais os critérios utilizados para aprovar ou reprovar?Considerando que, no primeiro ano de escolarização, o sucesso ou fracasso do aluno está atrelado ao domínio ou não das habilidades de leitura e de escrita, vejamos abaixo as habilidades consideradas pelas professoras para aprovar ou reprovar os alunos.O menino tem que ler, no meu caso eu não sou criteriosa quanto ao automatismo da leitura, o aluno tem que ler e interpretar o que está lendo e escrever, não cobrei uma ortografia assim também perfeita, na produção de texto eu não olhava muito ortografia, mas o conteúdo que o aluno está querendo passar. (Professora da turma A)Para ter aprovação a criança precisa ler todas as sílabas simples de um texto, e também dominar o CH, NH, LH, QU, agora o X com som de Z, as mais complicadas eu não cobro não, porque ela não dá conta. (Professora da turma B)Para freqüentar a 2ª série, os alunos têm que escrever texto e ler todas as dificuldades. Por isso, os alunos da minha turma não têm condições de passar. Eles não dominam as dificuldades ortográficas, eu trabalhei somente com palavras simples. (Professora da turma C, de "não-promoção")Nota-se que as professoras tinham diferentes critérios para definir se uma criança deveria ter aprovação ou não. Desse modo, as atividades desenvolvidas em sala de aula também eram diferenciadas segundo o conceito de alfabetização. Por

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exemplo, na turma A, os alunos produziam textos, na turma B, os alunos escreviam ditados de palavras e frases e na turma C, considerada uma turma de "não-promoção", a professora só trabalhava com palavras com sílabas simples e os alunos não produziam textos.(TURMA A)O brinquedo de bruno bruno está feliz eleganhou uma caixa grande do seu pai, sabe que tem dentro dela tem uma tartaruga ele ficou feliz davida com u prezete que o seu pai tideu ele ficou tenão feliz que esqueseu dagradise o seu pai(TURMA B)1º) Quitaninha gata de quiabo2º) O periquito cone caqui3°) um quilo de queijo é caro4°) O moleque levou uma queda5°) O pára-queda caiu no mar6°) Papal é muito querido7°) Chuva - fito - palha8°) Bolacha - pinirinho9°) Formiga -batata - boneca10°) Pipoca - banana - peteca11°) Patinho - caneta - caneca(TURMA C)bola - sola - mola - boneca - bonéApesar de desenvolver habilidades lingüísticas diferenciadas, os alunos das turmas A e B foram considerados de promoção, e os alunos da turma C foram reprovados. Esse fato revela que não havia um consenso entre as professoras a respeito das habilidades de leitura e escrita que deveriam ser consideradas para avaliar se uma criança estava alfabetizada ou não. Na turma A, a ênfase recaía sobre a construção de textos com coerência e coesão, deixando-se as questões ortográficas para um momento posterior; na turma B, a ênfase era colocada na escrita de palavras ortograficamente corretas. Já na turma C, considerada de "não-promoção", a forma como eram conduzidas as atividades, pautada na repetição das atividades do início do ano (fixação do alfabeto e de palavras com sílabas simples) impedia que os alunos demonstrassem possíveis avanços na apropriação da língua escrita.Assim, a forma como era entendida a alfabetização, as habilidades enfatizadas e as atividades elaboradas e desenvolvidas em sala de aula marcavam a trajetória dos alunos, no que se refere à formação de leitores e escritores. A história de Fernando pode ajudar-nos a refletir e compreender melhor essas questões.A história de Fernando: fracasso ou sucesso?Os mapas era mais fácil... ai eu olhava pro mapa, eu aprendi um pouco, agora eu estou lendo o que a professora passaFernando, 13 anos, morava com a família em um barracão de um cômodo, a mobília se resumia a uma cama de casal, uma bicama, uma pequena estante onde ficava a televisão, o fogão e alguns bancos. Esse espaço era dividido entre 17 pessoas. Com relação à escolarização da família, a mãe e o padrasto eram analfabetos. Os filhos pareciam herdar a condição escolar dos pais: dos oito irmãos de Fernando, quatro eram analfabetos e não freqüentavam mais a escola e

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a outra metade estava repetindo a 1ª série. Fernando herdara esse destino, a sua trajetória escolar era marcada por reprovações e rupturas. As rupturas, ou seja, os momentos em que Fernando abandonava a escola, estavam atreladas às dificuldades financeiras enfrentadas pela família. Assim, todos tinham que trabalhar para garantir a sobrevivência. O depoimento da mãe de Fernando evidencia esse fato:O ano passado eles estudaram só um pouco, ai eu tirei eles porque a nossa situação estava bem pior do que está agora, então precisava, eu pegava empreitada e punha eles pra ajudar. Na época que eles falharam de aula eu tinha comprado uma televisão, tinha que pagar 440 por mês, e eu sozinha não tinha condição. Então eles vigiava carro, outra hora me ajudava a lavar roupa.Por outro lado, logo que possível, os filhos retornavam à escola, sob o seguinte argumento utilizado pela mãe:Espero que eles aprende a escrever, isso que a gente quer, porque igual eu mesma que já não sei nada, meu pai não me deu estudo, faz falta pra mim aqui dentro de casa, não posso mandar nem uma carta, qualquer coisa (...) olhar receita que chega do médico. Quando eles crescer, formar, ai eles vão ter um serviço firme, não vai ficar sofrendo igual eu.Assim, a família de Fernando mantém uma relação ambígua com a escola: existiam momentos de distanciamento, quase sempre relacionados às condições econômicas, e momentos de aproximação e valorização da cultura escolar, principalmente quando as habilidades desenvolvidas na escola eram usadas na vida cotidiana.Diante das limitações dos familiares, no que se refere à apropriação das habilidades de leitura, quem auxiliava a mãe nas compras, lendo os preços das mercadorias, das placas, o nome do ônibus, era Fernando. Em casa, era ele quem lia as contas e receitas fornecidas pelos médicos e o fazia com sucesso, dando sentido, usando a leitura em um contexto prático.Na escola, o processo de aprendizagem das habilidades de leitura foi assim explicitado pela professora:Ele lê tudo. Ele começou a ler palavras que eu nunca tinha trabalhado (L intermediário, atlântico). Eu tinha voltado com os alunos, trabalhando família silábica e Fernando estava lendo México, América do Norte, tudo que estava escrito nos mapas Fernando começou a ler, e coisas assim que eu não tinha trabalhado...( Os mapas ficavam expostos nas paredes da sala de aula e eram usados pelos alunos do curso supletivo, que funcionava no horário noturno).O desenvolvimento das habilidades de leitura pode ser explicado a partir da história de letramento de Fernando, ou seja, da sua inserção nas práticas sociais de leitura e, também, pelo seu tempo de escolaridade, que, apesar de marcado por rupturas e repetições, possibilitou a apropriação de algumas habilidades. Contudo, por estar freqüentando a turma C, rotulada de não-promoção, Fernando seria impedido, mais uma vez, de avançar, de ser aprovado, de ter sucesso. Os argumentos utilizados para essa avaliação centravam-se nas dificuldades de produção escrita, infreqüência e indisciplina. Conclui-se que, na escola, Fernando era um fracasso.Para finalizar, pretendo enfatizar a necessidade de a escola romper com a lógica do fracasso e partir de uma discussão sobre o que vem a ser uma criança

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alfabetizada e que habilidades devem ser enfatizadas no inicio do processo. É preciso, também, pensar em um tempo mais flexível para desenvolver nos alunos as habilidades necessárias à formação de alunos não só alfabetizados, mas letrados, entendendo-se letramento como o estado em que o sujeito usa a leitura e a escrita em diferentes contextos sociais, de forma a garantir sua autonomia e seus direitos como cidadão.A discussão atual sobre os processos de ensino e aprendizagem enfatiza a diversidade cultural e de ritmos de aprendizagem e, em função desses aspectos, a escola está em transformação. Não cabe mais a existência de trajetórias de fracasso, não há argumentos para justificá-las. O desafio para nós, educadores, é garantir acesso, permanência e uma educação de qualidade para todos os aluno.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASARROYO, Miguel G. Fracasso-sucesso: o peso da cultura escolar e do ordenamento da Educação Básica. In: ABRAMOWICZ, Anete (org.). Para além do fracasso escolar. Campinas: São Paulo:Papirus, 1997.BOURDIEU, Pierre. A escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura. Educação em Revista, n. 10, dez. 1989, p. 3-15.COSTA, Dóris Anita Freire. Fracasso escolar. diferença ou deficiência? Porto Alegre: Kuarup, 1993.FERREIRO, Emilia & TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artes Médicas, 1986.NICOLACI-DA-COSTA. Ana Maria. Sujeito e cotidiano: um estudo da dimensão psicológica do social. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1987.SOARES, Magda. Linguagem e Escola: uma perspectiva social. São Paulo: Ática, 1986.SOARES, Magda. Alfabetização: A (des)aprendizagem das funções da escrita. Educação em Revista, n. 8, dez. 1988, p. 3-11.PAIS E FILHOS DIANTE DO FRACASSO NA ALFABETIZAÇÃOFrancisca Izabel Pereira Maciel( Professora da Faculdade de Educação da UFMG).A vida também é para ser lida. (...)Por enquanto só a lemos por tortas linhas.Guimarães RosaA proposta deste artigo é demonstrar, analisar e "ler", na história de vida "não lida" dos analfabetos, as concepções e aspirações que pais analfabetos têm com relação à alfabetização dos filhos, e verificar se existe ou não relação entre o analfabetismo dos pais e o fracasso dos filhos na escola. Pretende-se demonstrar, através dos dados analisados, que determinadas concepções e aspirações de alfabetização representam o contexto social em que estão inseridas. Não podem, portanto, ser consideradas como neutras, e a alfabetização não pode ser vista simplesmente como técnica a ser adquirida.Em geral, a literatura e as pesquisas nessa área contribuem para o fortalecimento do mito da alfabetização; isso ocorre desde o aparecimento da escrita. No entanto, temos também pensadores, historiadores e antropólogos cujos trabalhos questionam o poder da escrita. E é essa nova perspectiva, que discute o "ser analfabeto" o "estar analfabeto" em uma sociedade cada dia mais informatizada,

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que será enfocada nesta pesquisa( Para uma análise nessa perspectiva ver: Graff (1990), Heath (1986), Levine (1982), Scribner (1984), Paseyro (1989), Frago (1993) e Soares(1993).Na tentativa de apreender o significado que tem para pais analfabetos a aprendizagem da leitura e da escrita pelos filhos, participaram da pesquisa seis casais que tinham filhos matriculados nas séries iniciais. Todos eles residem da periferia da cidade de Sabará, Minas Gerais.Para tornar viável a proposta de trabalho, decidiu-se estudar as famílias por meio de suas histórias de vida: o seu cotidiano, a relação com o trabalho, o modo de sobrevivência, as expectativas em relação ao futuro escolar de seus filhos. Os procedimentos utilizados foram registros de observação, diário de campo, entrevistas abertas que pudessem refletir, principalmente, a maneira como os sujeitos se relacionavam com a escola em sua infância e, atualmente, no seu cotidiano de vida e lida. Nas entrevistas, eram feitas algumas perguntas-chave, focalizando a relação familiar e a escolarização. Essas estratégias eram fundamentais para a orientação deste trabalho, que tinha como questões básicas:1. Quais as representações que os analfabetos têm dos usos e funções da leitura e da escrita?2. Há relação entre o analfabetismo dos pais e o fracasso escolar dos filhos? Como os pais e filhos se sentem frente ao fracasso escolar?Os pais e o fracasso escolar dos filhosO grupo pesquisado apresentou semelhanças quanto às condições econômicas, sociais e culturais. As histórias de vida e lida das famílias se (con)fundem, seja no passado, seja no presente. As semelhanças quanto ao passado estão no fato de serem todos ex-moradores da zona rural, advindos de uma família de pais analfabetos, com um grande número de filhos. Devido à precariedade das condições materiais de existência, os pais dependiam do trabalho dos filhos na roça, em idade precoce e sem distinção de sexo. Ao rememorar o passado não-escolar, os entrevistados apontaram como ponto nevrálgico o trabalho. Procuramos saber como se sentem atualmente como moradores da zonaurbana, como pais que constituíram suas famílias na cidade? E como encaram o fracasso escolar de seus filhos?Nos depoimentos as justificativas que mais se sobressaíram para explicar o insucesso escolar dos filhos - além da malandragem - foram primordialmente as de origem patológica e/ou a ideologia do dom.Os pais, antes de atribuírem aos filhos a culpa pelo fracasso, descrevem as suas responsabilidades como pais de filhos estudantes. Isso significa, em termos práticos, fazer a matrícula, comprar uniforme e material escolar. De posse "desses bens escolares", eles acreditam que tenha chegado a hora de seus filhos ingressarem no mundo letrado, não como expectadores, e sim como usuários eficientes e profissionais da leitura e da escrita. Apesar dos esforços dos pais, como descreve José, a realidade se mostra bem diferente.Os meninos têm caderno, lápis, borracha, roupa, calçado, podem comer de manhã se quiser, antes de ir para escola e mesmo assim não quer ir... depois fala que é o pai mais a mãe que não quer, que não liga.., eu quero todos os cinco estudado. (José)

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O esforço financeiro da família para adquirir "os bens materiais rentáveis" para os filhos não é suficiente para garantir o sucesso escolar. Logo a família constata que seu esforço foi em vão. Os gastos que as famílias dos sujeitos pesquisados têm para manter os filhos nas escolas públicas têm um peso considerável no orçamento familiar, que já é tão minguado. Diante do impasse entre abandonar a escola - tão logo se tem acesso a ela - devido à falta de sucesso, os pais buscam alternativas fora do contexto escolar para solucionar os problemas de seus filhos.Os recursos procurados e encontrados entre os moradores pesquisados para tentar sanar o problema do fracasso escolar não são pedagógicos e, sim, médicos. Os pais, ao procurarem encaminhar os filhos para fazer exame médico, têm o respaldo da escola. Em geral, é a escola que fazo diagnóstico, participa (ou transfere?) aos pais o problema e faz encaminhamento para uma avaliação médica e psicológica. Este é um dos momentos em que a família e a escola se tornam aliadas.Os pais, em geral, não questionam o veredicto escolar; isso pode ser comprovado com o alto índice de pais que procuram na medicina, principalmente na área neurológica, a solução dos problemas de aprendizagem. Nesse caso, inicia-se o processo de biologização e patologização das questões sociais e políticas.Essa molecada aqui tá tudo registrado lá na escola, mas que tá indo é só uma. Só a mais velha (Sandra, 14 anos, 2 ª série); a terceira (Patrícia, 12 anos, 1ª série) estava indo tão bem... até melhor que a outra (referindo-se à Sandra), mas não quer saber... já mandei fazer um exame nela, mas o médico falou que ela não tem nada... não sei não... (Paulina)A iniciativa da mãe - já mandei fazer exame nela -pode ser explicada como uma tentativa de prevenção do fracasso escolar. Essa declaração demonstra que o conceito de dificuldades de aprendizagem está tão cristalizado na perspectiva patológica, que os pais chegam a questionar os médicos, verbalizando desconfiança com relação à competência deles como profissionais: mas o médico falou que ela não tem nada... não sei não...Outros depoimentos corroboram o de Paulina e revelam a internalização dos conceitos de medicalização, principalmente entre as camadas populares:Eu acho que eles precisam é de remédio para o cérebro da cabeça. (Maria)Tem gente, minha filha, que fica no estudo o resto da vida enão aprende... Tem que tomar muito remédio pra a idéia chegar... (Toninho)Na realidade, a amplificação do problema do fracasso escolar direcionada para a área da saúde, ou seja, a medicalização do fracasso é uma resposta que atende a uma demanda da própria sociedade, e é exatamente por isso, e por seu caráter simplificador, que se difunde tão rapidamente (COLLARES E MOYSÉS, apud VALLA, 1992, p. 19).O sentimento manifestado por pais analfabetos de querer a alfabetização para os filhos traduz o discurso ideologizante da sociedade letrada, que estigmatiza o analfabeto como um marginal e idealiza a instituição escolar como forma de ascensão social. A irrealidade da fantasia presente nos depoimentos foi e continua sendo muito trabalhada pelas propagandas oficiais e pelas políticas educacionais.No entanto, contrapondo-se ao discurso dos pais, que justificam o fracasso escolar dos filhos com um discurso ideologizante da aprendizagem da leitura e da escrita, o que os filhos dizem sobre o seu próprio fracasso e abandono da escola?

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A escola e o trabalho: tempo e contratempo na vida dos filhosA situação de vida escolar dos filhos dos analfabetos sujeitos desta pesquisa me faz lembrar e parodiar o poema Ou isto ou aquilo, de Cecilia Meireles: em geral as crianças são muito infreqüentes à escola, porque não sabem se ficam na rua em busca de esmolas, ou se vão para a escola; ou compram o caderno com o dinheiro adquirido na rua e não têm o lápis, ou têm o lápis e o caderno e o tempo já passou. E não conseguem entender por que não aprendem a ler e escrever.Acompanhando de perto a trajetória escolar de dezesseis crianças filhas dos analfabetos pesquisados, constatei que doze delas não chegaram ao final do ano letivo. Em meados de abril, saíram da escola cinco, três dos quais são irmãos; os outros sete foram abandonando a escola ao longo dos meses de junho, setembro e outubro. Para os quatro que chegaram ao final do ano letivo, o resultado não foi animador, pois não conseguiram vencer a primeira etapa do ciclo básico de alfabetização.Vale a pena indagar qual é a pertinência de estratégias para garantir a continuidade da aprendizagem, como é o caso do ciclo básico, das turmas aceleradas, quando não são precedidas de estratégias para manter o aluno na escola: como e para quê garantir continuidade, se os alunos não chegam a freqüentar o primeiro semestre de um ano letivo?Não restam dúvidas de que a infreqüência é um atalho para o fracasso escolar. No entanto, ela não deve ser vista como causa, e sim como conseqüência de vários fatores que acabam por distanciar e até mesmo expulsar as crianças da escola.Na fala dos pais, uma das causas do fracasso escolar de seus filhos é a malandragem, são as brincadeiras. No entanto, a observação do cotidiano das crianças mostrou-nos que elas trabalham informalmente e ainda contribuem para o orçamento familiar: co-responsáveis pelo "ganhame" na rua, levam para casa o que ganham para ser dividido entre os familiares. Quando criancinhas, ficam no colo da mãe ou do irmão, compondo o quadro de miséria em que vivem; crescidos, já sabem defender seu espaço entre os amigos, na disputa das esmolas.Um outro tipo de trabalho comum entre as crianças -independente do sexo - são as funções e obrigações domésticas, enquanto a mãe trabalha fora, em algum serviço extra. A vida obriga as crianças a exercerem as atividades - a lida - dos adultos. E assim, mães e filhos executam os mesmos serviços, com uma grande diferença: as mães têm os seus serviços domésticos remunerados, e as crianças executam as tarefas como uma obrigação. Os afazeres domésticos exigem que as crianças se tornem "adultas" e se dificultem a ida à escola.Rodrigues (1987) analisa a relação escola/trabalho a partir da representação do aluno excluído/evadido de 5ª e 8ª séries do primeiro grau, considerando os limites que o mundo do trabalho impõe a muitos jovens, impedindo-os de serem estudantes. Essa tensão permeia todo o trabalho da autora, que sintetiza: "ou se estuda ou se trabalha. E alguns estudam porque muitos trabalham". Entre as crianças pesquisadas, não posso afirmar que exista a tensão escola/trabalho encontrada na pesquisa de Rodrigues (1987), no entanto, a ambigüidade entre escola e trabalho está sempre presente no cotidiano dessa gente.Dauster (1992), ao analisar a relação criança/escola/ trabalho, aponta-nos outros significados que o trabalho pode ter na vida desses pequenos-grandes

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trabalhadores (pequenos em tamanhos, e grandes em número). Baseada nos dados de sua pesquisa, a autora não só atribui a inserção da criança no trabalho às condições socioeconômicas das famílias das camadas populares, como também reconhece a família como principal formadora da ideologia do trabalho - valor cultural, social e econômico - que coletivamente se impõe às crianças das camadas populares a partir dos sete anos. Nesse sentido, ele (trabalho) é obrigatório por ser prática cotidiana coletiva, (DAUSTER, 1992).O trabalho como prática cotidiana exercida entre as meninas centraliza-se nas funções domésticas (lavar, cozinhar, arrumar); entre os meninos é mais diversificado: quando não assumem as tarefas domésticas, vão ajudar o pai:(...) não tenho ido na escola por causa que alguma vez eu estou ajudando o pai, quando eu não estou indo é porque eu estou fazendo alguma coisa, pode ser uma capina, ou rebocar casa, ou carregar areia do rio... aí não posso, não dá tempo. (Eder,13 anos, 1ª série)O fazendo alguma coisa está diretamente relacionado à desqualificação profissional do pai, isto é, como o pai não tem uma profissão e/ou emprego fixo, ora ele pode capinar, ora rebocar casa, ou carregar areia do rio... O tipo de ajuda no serviço do pai depende do que vai aparecer naquele dia.De acordo com Oliveira (1983), as soluções dadas a cada situação são sempre temporárias, sujeitas a mudanças radicais a qualquer momento. Os indivíduos mudam de casa, trocam de emprego, entram na escola e saem dela muito freqüentemente. Essa constante mudança nos arranjos demonstrou ser resultado da precariedade das condições nas quais as pessoas vivem.Essa temporariedade propõe uma questão que mereceria ser pesquisada e analisada: no decorrer da pesquisa de campo, e mesmo através dos relatos dos sujeitos pesquisados, nota-se que o passado é uma marca forte, carregado de símbolos e que traz poucas saudades; o futuro é difícil de ser vislumbrado, pode-se falar dele, mas utopicamente (ser rico, ter filho advogado, ter muitos bens); resta, então, viver o presente, garantir a sobrevivência do aqui e agora. Acredito que a maneira com que os sujeitos da pesquisa lidam com o tempo reflete-se na vida escolar de seus filhos, através da descontinuidade.No discurso das crianças, constata-se que muitas delas têm consciência de que a falta de continuidade/assiduidade às aulas compromete todo o processo de aprendizagem. Começar a semana faltando às aulas acaba por desmotivar a ida à escola nos outros dias:(...) ir na escola a gente gosta, mas se a gente falha na segunda, na terça, aí na quarta-feira a gente não gosta de ir. Agora se a gente começa direito na segunda e vai até na sexta, ai é bom demais. (Angela, 15 anos, 1ª série)Ao lado de crianças que trabalham e não podem freqüentar assiduamente a escola, há outros que não gostam de estudar e chegam a questionar o saber escolar:Eu não gosto de ir na escola não, a mãe manda eu ir, mas eu não vou. Prefiro ficar na rua.(Claylton, 14 anos, 1ª. série)Estudar eu não gosto, e também não vale de nada, estudar para quê? ( Sergio, 15 anos, 1ª série)As falas acima ilustram as contradições vividas pelas crianças analisadas. É importante ressaltar que os pais, na situação de sujeitos analfabetos, não negam a

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escolaridade aos filhos, pois sempre estão "disponíveis", recomendando a ida à escola, mas, afirmam, "os filhos é que não querem..."O menino Sérgio, ao questionar os conhecimentos transmitidos pela escola, estaria antecipando seu futuro, tal como descreve Antoine Proust, citado por Zago (1993) quando diz: "o sucesso escolar não garante nada: o diploma não é uma condição suficiente. Ele abre as portas, oferece oportunidade; em seguida, a vida corta."Sabemos que, para as camadas populares, e especificamente para essas crianças, a escola é o único espaço possível para a aprendizagem da leitura e da escrita; como garantir a permanência nela e uma aprendizagem significativa?O que a escola poderá fazer por essas crianças? Ficou explícito nos discursos dos pais e delas próprias que o trabalho é uma necessidade interiorizada, enquanto a escola continua a fazer parte das aspirações sonhadas, mas com pouquíssimas possibilidades de se tornarem realidade efetiva, uma vez que o domínio da leitura e da escrita não faz parte do habitus como dimensão de um aprendizado passado (BOURDIEU: 1983). E como pensar a escola como um processo de desestruturação do habitus(Habitus entendido como um princípio que gera e estrutura as práticas e as representações que podem ser objetivamente "regulamentadas e igualadas"sem que por isso sejam o produto de obediência de regras objetivamente adaptadas a um fim. (ORTIZ,1983, p. 15) primário?Alfabetização: um bem em si mesmo?Nesta pesquisa procuramos fazer um exercício de reflexão e interpretação sobre a forma como os pais analfabetos analisam o seu estado de analfabetismo, através de uma "leitura" de sua vida, e de como percebem, no momento presente, o fracasso escolar de seus filhos. A natureza da pesquisa levou-nos a indagar também os filhos, para conhecermos qual era a "leitura" que faziam de sua condição de aprendizes da leitura e da escrita.A análise e as reflexões aqui expostas não são as únicas possíveis. Elas divergem, por exemplo, dos argumentos utilizados por setores da sociedade no encaminhamento de políticas educacionais voltada para o problema do analfabetismo e do fracasso escolar das camadas populares.Entretanto, um dos grandes desafios que a pesquisa impõe é a necessidade de se desmitificar a alfabetização como um bem em si mesmo, como fazem em geral essas políticas. A alfabetização não pode ser considerada a mola propulsora do desenvolvimento pessoal, social e/ou econômico. Lembrem-se as pesquisas de caráter histórico de Graff (1990), que comprovam que as demandas sobre a força de trabalho na Europa raramente foram de natureza intelectual ou cognitiva. Por que setores da sociedade e grande parte dos políticos insistem nessa mistificação e mitificação? Retomando a citação de Baroja, apud Frago (1993): "o mito é favorável ou desfavorável, segundo quem o utiliza"; neste caso, não estaria ideologicamente reforçando o estigma do analfabetismo?Outro desafio que a pesquisa impõe refere-se à dificuldade de uma definição de analfabetismo, sobretudo se consideram a natureza e o grau da necessidade de alfabetização na vida dos analfabetos. Assim como é impossível ter uma definição única de alfabetização (SOARES, 1992), que abranja todos os segmentos da sociedade, com esta pesquisa constatamos também que não se pode falar de analfabetos como um bloco homogêneo.

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Como conseqüência dessa diversidade, deparamos com o seguinte problema: é possível pensar uma política única de alfabetização de massa? O Brasil é um pais de grandes contrastes, e o grau de envolvimento e expectativas dos analfabetos com a alfabetização está diretamente relacionado a seu contexto socioeconômico e cultural; não se pode, pois, falar de necessidades de leitura e de escrita como se fossem universais.A pesquisa alerta-nos ainda para o problema do analfabetismo geracional, não na perspectiva de que o analfabeto gera o analfabeto, e sim, na perspectiva de que o analfabetismo passa de uma geração a outra porque suas raízes estão nas condições sociais; portanto, o discurso político que se limita a advogar a alfabetização de todos é mais uma vez inconseqüente, pois, enquanto não se alterarem simultaneamente as condições sociais de vida e de trabalho, qualquer esforço de alfabetização de massa será inútil.A pesquisa comprova ainda, mais uma vez, a interferência do trabalho na escolarização: a história tanto dos pais analfabetos quanto de seus filhos demonstra que as crianças das camadas desprivilegiadas são mais do que estudantes: elas trabalham. Apesar de reconhecerem a importância da aprendizagem da leitura e da escrita, a demanda do trabalho em suas vidas, na luta pela sobrevivência, é prioritária em relação ao dever de ir à escola. De novo são as condições sociais e econômicas condicionando a escolarização.E são ainda essas condições sociais e econômicas que explicam por que a pesquisa não corrobora os tão enfatizados efeitos negativos do analfabetismo na vida dos analfabetos e de seus filhos, nem confirma a responsabilidade tão freqüentemente atribuída aos pais analfabetos pelo fracasso dos filhos na escola. Em síntese, os dados evidenciam que os problemas do analfabetismo e do fracasso escolar ultrapassam os limites da ação educativa, e devem ser vistos e solucionados no quadro de suas determinações sociais, econômicas, políticas e ideológicas.Nossa expectativa é que a análise da vida e da lida dos analfabetos e de seus filhos pesquisados possa contribuir para esse "ver'' e esse "solucionar", se e mostrar válida para outras populações, colaborando para que os analfabetos do Brasil deixem de ser/estar à beira e à margem da sociedade brasileira.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASBOURDIEU, Pierre. Economia das trocas simbólicas. In: ORTIZ,R.(org.) Sociologia. São Paulo: Ática, 1983, p. 156-83.DAUSTER, Tânia. Uma infância de curta duração: trabalho e escola.Cadernos de Pesquisa. São Paulo, ago.1992, p. 32-36FRAGO, Antonio Viano. Alfabetização na sociedade e na história. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.GRAFF, Harvey. O mito do alfabetismo: teoria e educação. Porto Alegre: Pannônica, n.2, 1990, p. 30-64.MACIEL, Francisca Izabel Pereira Maciel. O analfabeto: vida e lida sem escrita. Belo Horizonte: Faculdade de Educação/UFMG.1994. (Dissertação de mestrado.)OLIVEIRA, Marta K. Inteligência e vida cotidiana; competências cognitivas de adultos de baixa renda. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, fev.1993, p. 45-54.RODRIGUES, Ana Tereza. Ou bem estuda, ou bem trabalha; a relação

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escola/trabalho. Belo Horizonte: Faculdade de Educação/UFMG, 1987. (Dissertação de mestrado.)SOARES, Magda. Literacy assentementand its implications for statistical measurement. UNESCO, March, 1992.VALLA, Victor Vincent. A escola pública do 1 grau é um serviço público por oito séries em oito anos. Caderno Cedes, n.28. São Paulo: Papirus, 1992, p. 11-22.ZAGO, Nadir. Classes populares e a questão escolar, um estudo sobre as trajetórias de escolarização a nível de 1 grau(Texto mimeografado apresentado na ANPED), 1993.

Dificuldades de aprendizagem na alfabetizaçãoOrganizadorasMaria de Fátima Cardoso GomesMaria das Graças de Castro SenaDificuldades de aprendizagem na alfabetizaçãoªAutêntica Belo Horizonte 2000Copyright 2000 by OrganizadoresCapa Jairo Avarenga Fonseca (sobre ilustração de Mirella Spinelli)Coordenação CEALE/FaE - UFMGEditoração eletrônica Luiz Gustavo MaiaRevisão Maria Lina Soares Souza ,Bárbara Sampaio C. FlechaG633d Gomes, Maria d Fátima CardosoDificuldades de aprendizagem na alfabetização/ organizado por Maria de Fátima Cardoso Gomes, Maria das Graças de Castro Sena. - Belo Horizonte : autêntica, 2000.168p. (linguagem e educação, 6)ISBN 85-865583-63-41. Aprendizagem- avaliação. 2. Sena, Maria das Graças de Castro . 1. Título. 2 série CDU - 371.262000