Livro - Elementos Básicos de Direito Internacional Privado - José Garcez

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Elementos Bsicos de Direito Internacional Privado

Elementos Bsicos de Direito Internacional Privado

Jos Maria Rossani Garcez

CAPTULO PRIMEIRO - INTRODUO

1. CONCEITO, AUTONOMIA E OBJETO DO DIPr; 2. O DIPr COMO DIREITO PBLICO OU PRIVADO. 3. DENOMINAO. 4. A LEI NO TEMPO E NO ESPAO; 5. A POSIO DO DIPr NA VIsO DOS NACIONALISTAS E INTERNACIONALISTAS - DUALISMO E MONISMO: A TEORIA DUALISTA DE TRIEPPEL; AS TEORIAS MONISTAS DE JELLINEK E KELSEN; 6. EXEMPLOS DE CONFLITOS INTERESPACIAIS DE LEIS; 6. DIREITO UNIFORME: DIFERENAS ENTRE DIREITO UNIFORME E O DIPr; O DIPr E O DIREITO COMPARADO; 7. FONTES DO DIPr: LEIS, COSTUMES, TRATADOS E CONVENES, JURISPRUDNCIA E DOUTRINA; 8. TENDNCIAS A UNIFORMIZAO DO DIPr E DAS LEIS E COSTUMES COMERCIAIS INTERNACIONAIS.

1. CONCEITO, AUTONOMIA E OBJETO DO DIPr.

De um modo geral as relaes entre os Estados ou entre as pessoas internacionais como as organizaes intergovernamentais ou multilaterais (ONU, OEA, Banco Mundial, BID, OMC e outras), ou entre tais entidades e os indivduos, constitui o objeto e define o campo de atuao do Direito Internacional Pblico. De outro lado, a ordem internacional que se localiza na rea de interesse das pessoas privadas (fsicas ou jurdicas) marca a rea de atuao do Direito Internacional Privado (DIPr).

Como os Estados exercem autoridade sobre as pessoas s quais se dirigem as regras que emitem, no caso do DIPr so, na maioria das vezes, formuladas pelas legislaes internas dos mesmos Estados e cumpridas por seus tribunais, havendo, assim, uma legislao de DIPr brasileira, norte-americana, argentina, japonesa, e tambm uma jurisprudncia a esse respeito produzida em cada um dos diferentes Estados.

A definio clssica do DIPr partia sempre do ponto de que esse direito oferecia mecanismos para tratar os conflitos de leis privadas, ou seja, entre as leis civis e comerciais (Asser). Este conceito, porm, bastante restritivo. O conflito de leis, ainda que dos mais importantes elementos do DIPr representa apenas um de seus objetivos. Outros existem. Professor Jacob Dolinger2 JACOB DOLINGER - Direito Internacional Provado - Parte Geral - Ed. Renovar, p.1.2 comenta que a mais ampla concepo sobre o objeto do Direito Internacional Privado a francesa, que entende que a disciplina envolve quatro matrias distintas: a nacionalidade; a condio jurdica do estrangeiro; o conflito das leis e o conflito das jurisdies, havendo ainda uma corrente, liderada por Antoine Pillet, que adiciona, como quinto tpico, os direitos adquiridos, na sua dimenso internacional.

Para muitos autores existem pelo menos cinco como possveis objetos do DIPr:

a) uniformizaco das leis;

b) regulamentao da nacionalidade;

c) tratamento da condio jurdica do estrangeiro;

d) soluo dos conflitos de leis e;

e) reconhecimento internacional dos direitos adquiridos.

A funo principal do DIPr indicar uma conduta harmnica, quando no for possvel que seja uniforme, a ser seguida nas relaes internacionais que envolvam pessoas fsicas ou jurdicas privadas. Como as legislaes no apresentam as mesmas caractersticas, sendo, ao contrrio, dessemelhantes e at, por vezes, antagnicas, os conflitos de lei, os conflitos de jurisdies e os conflitos entre as convenes internacionais nessas matrias formam um elemento peculiar s organizaes polticas constitudas em Estados.

Os Estados, ao formularem suas regras materiais de DIPr, ou seja, aquelas que oferecem definio, em termos de vinculao ou conexo com um princpio terico que permita aplicar em determinado caso a legislao estrangeira ou a nacional de um pas, procuram dotar as relaes ultranacionais de uma regulamentao em sintonia com as exigncias internacionais de certeza, segurana e justia, tal como o Estado em questo as concebe3 O Embaixador CARLOS FERNANDES, em sua obra Da natureza e funo das normas de conflitos de leis (Coimbra Editora, 1992, p. 229/230), comenta que como as normas de conflitos so formais, no regulando diretamente as relaes, e como quer a norma material nacional quer a estrangeira so aplicadas pelo mesmo ttulo e pela mesma razo prtica, no cumprimento de idntica funo, no so meio de criao de normas nacionais por intermdio de processos originariamente estrangeiros, mas antes regras que permitem providenciar a regulamentao de fatos e relaes de carter internacional por meio do reconhecimento de eficcia a normas estrangeiras, que se aplicaro como mais adequadas para disciplinar a hiptese regulada. Consegue-se desta forma, diz ele, uma coordenao, embora unilateral, das vrias legislaes materiais, permitindo a aplicao da regra mais justa - quer nacional quer estrangeira. uma modalidade de cooperao internacional. 3.

Essas normas solucionadoras de conflitos, que os Estados elaboram unilateralmente, destinam-se, no entanto, mesma finalidade: procurar facilitar a aplicao e disciplinar da forma mais adequada o relacionamento internacional. Assim, sua funo ser oferecer aos operadores do Direito de um determinado Estado os princpios regulamentares selecionadores que permitam a aplicao da legislao estrangeira ou nacional a casos que guardem alguma conexo internacional, fazendo-o de forma harmnica, para que se evite a possibilidade de julgamentos contraditrios nos diferentes Estados, sendo, assim, capazes, teoricamente, de disciplinar simultnea e sintonizadamente a mesma relao social.

Assim, numa viso mais abrangente, o DIPr pode ser apresentado como o conjunto de normas ou princpios aplicados ou admitidos por cada Estado, destinadas a regular os direitos, atos ou fatos que tenham conexo internacional e se destinem a ter efeitos sobre pessoas naturais ou pessoas jurdicas privadas, ou entre estas, ou, ainda, quanto a entidades pblicas ou privadas no exerccio de atividades jusprivatistas.

Na doutrina brasileira pode ser considerada, dentre outras, a definio abaixo, de Gama e Silva, como abrigando os elementos bsicos necessrios a definio de DIPr:

Direito internacional privado um conjunto de princpios sobre qual a legislao aplicvel soluo de relaes jurdicas privadas que, por um, ou alguns de seus elementos, se estende a normas de dois ou mais sistemas jurdicos.

2. O DIPr COMO DIREITO PBLICO OU PRIVADO.

Preliminarmente discute-se se o DIPr realmente um direito privado ou se seria um direito pblico. E, ainda, se abrangeria todas as categorias de leis, tanto de direito pblico quanto de direito privado. Na verdade a discusso terica neste campo acontece porque alguns afirmam no se tratar de um direito privado e sim pblico pois nele aplicam-se leis de direito pblico. Assim como outros afirmam que no internacional e sim nacional pois que se baseia na legislao normativa interna dos Estados.

Alm do interesse terico por tais aspectos, a nosso ver, na prtica os mesmos perdem muito de sua intensidade e contedo quando pensarmos que o DIPr se aplica em geral a questes de natureza privada, em que o interessado no um Estado soberano ou rgos de representao deste Estado, mas sim pessoas, fsicas ou jurdicas de direito privado, que necessitam definir seus direitos em face de legislaes soberanas, no subordinadas entre si, e que, eventualmente, possam apresentar conflitos espaciais ou espaciais/temporais. Assim, sobressai o aspecto privado da matria, circunscrevendo-a no rol dos direitos privados.

Numa concepo ampla o DIPR tem como objeto, o estudo e a aplicao das leis e princpios de interesse privado que envolvam conflitos de lei no espao, sejam elas nacionais, estaduais, municipais, provinciais, civis, comerciais, outras disciplinas como direito constitucional, comercial, processo civil, direito do trabalho, penal, direito administrativo ou outras, e as normas que regulam, internamente, a nacionalidade e a situao e tratamento que o pas dispensa aos estrangeiros.

O Supremo Tribunal Federal brasileiro, em acrdo mais do que centenrio, de 1895, assinalou que o Direito Internacional Privado , na opinio dos publicistas, o complexos de leis positivas, atos, precedentes, mximas, e princpios segundo os quais as naes aplicam suas leis ou consentem na aplicao das leis estrangeiras nas questes de carter particular , que afetam sditos estrangeiros em matria de direito civil, comercial, criminal e administrativo...

3. DENOMINAO

Tambm quanto a sua denominao existem ou existiram vrias proposies e teorias. Amilcar de Castro cataloga vrias expresses propostas em substituio ao nome tradicional: conflito de leis (Hertius, Ruber, Story, Beale, Stunberg e Goodreich), normas de coliso (Hert), escolha da lei (Dicey), regras de ligao ou direito intersistemtico (Arminjon), direito de delimitao ou direito dos limites (Leonard e Frankenstein), direito internacional jurisdicional (Riquelme), direito interestatal privado (Pontes de Miranda), direito polarizado (Baty).

Jacob Dolinger registra existir um prazer generalizado entre os estudiosos do DIPr em demonstrar que esta denominao da disciplina incorreta e ao mesmo tempo manter-se fiel a ela. As crticas denominao predominante so vrias: a) como a principal fonte do DIPr seria a legislao interna de cada sistema no caberia falar em internacional e b) por no se encontrarem includas na disciplina questes de Direito Processual, Fiscal; Direito Monetrio, Financeiro, Penal. Administrativo, no haveria como falar-se em direito privado.

Irineu Strenger informa que entre ns Haroldo Vallado, por exemplo, desde 1930 aceitou a denominao Direito Internacional Privado, por ser mais usada na Europa Continental, Amrica Latina e Brasil, mas ele prprio preferia a expresso Conflito de Leis.

O jurista norte-americano Joseph Story, representante de uma verdadeira escola internacional anglo-sax, foi quem primeiro utilizou a expresso mais consagrada - Direito Internacional Privado - Private International Law, ainda no sculo passado.

4. AS LEIS NO TEMPO E NO ESPAO

As leis fazem parte da expresso de soberania dos Estados, que as emitem como normas de comportamento, tendo sua eficcia restrita ao territrio do Estado. Por outro lado, os princpios de soberania dos Estados no admitem que um Estado soberano e independente possa exercer jurisdio sobre outro igualmente soberano e independente, dentro do princpio par in parem non habet jurisditionem.

Acontece que um Juiz de um pas, para decidir uma questo com conexo com direito estrangeiro, poder ter de aplicar ao invs da lei ptria a lei estrangeira. Se o fizer dever observar os princpios e mecanismos internos de DIPr de seu pas que, por assim dizer, recepcionam a lei estrangeira - e aplicar, sempre, a sua lei processual, pois esta tem suas formas obrigatrias (ordinatoria litis) que so universalmente respeitadas, por integrarem a ordem pblica do Estado e sua organizao judiciria em que a questo decidida.

Existem, portanto, os efeitos territoriais da lei, em contraposio aos seus efeitos extraterritoriais. Como existe uma legislao e uma jurisprudncia de DIPr francesa, brasileira, italiana, etc.., alguns concluem que, neste aspecto, no existiria, em verdade, um Direito Internacional Privado mas sim um Direito interno para tratar as questes privadas com conexo internacional.

A verdade que, ainda que ultimamente se venha acentuando o fenmeno da abdicao ou enfraquecimento do conceito de soberania entre os Estados, o DIPr encontra-se alicerado nas regras da legislao interna de cada Estado, que servem para orientar a aplicao da legislao, nacional ou estrangeira aos casos conectados a mais de um sistema legal.

Mas, embora o fato de que a recepo e aplicao da legislao estrangeira por um Estado e os conflitos entre as leis deste Estado e de outro sejam resolvidos pela aplicao da lei interna de um deles e que, em alguns casos, inclusive, tais dispositivos possam remeter-nos a aplicao da legislao interna de um terceiro Estado, isto no implica, evidentemente, que as solues que apresentam possam ser estranhas ordem internacional. Ao contrrio, neste campo frtil inovao e criatividade que se d a composio cosmopolita entre os diversos sistemas legais, num mundo cada vez mais interligado pela comunicao e pela interao dos povos.

As regras de DIPr no se limitam, porm, s leis de produo interna de cada Estado. Ao lado delas se colocam as regras ou disposies tambm relacionadas ao DIPr que so internacionais ou supranacionais na origem, oriundas das estipulaes feitas atravs das convenes e tratados internacionais celebrados e ratificados entre os Estados, que passam, assim, tambm a incorporar-se a sua legislao interna.

No mundo de hoje as fronteiras entre os pases se vem tornando cada vez mais invisveis e o fenmeno da globalizao da economia e do aumento do fluxo das correntes migratrias vem aproximando os pases e indivduos, proporcionando, assim, uma crescente miscigenao de povos, etnias, culturas e problemas, em que se acham identificadas leis de vrios Estados que apresentam, entre si, elementos de conexo.

Sob outro aspecto, as relaes mercantis internacionais permitem um campo amplo de ao para a autonomia da vontade dos contratantes em termos legais. Nos contratos internacionais, por exemplo, comum que as partes escolham a lei material do domiclio de uma delas para reger os aspectos substanciais das obrigaes contratuais (lex contractus), no sendo incomum, por exemplo, aplicar-se ainda outra lei, a do pas em que se execute a obrigao (a lex fori ou lex ordinatoria litis) aplicando-se, s vezes vrias leis para o mesmo pacto, o que a doutrina francesa chama de dpeage (despedaamento) do contrato. Alm disso nesses contratos aplica-se freqentemente a arbitragem internacional para solucionar as questes deles oriundas, podendo a mesma reger-se pelas leis do pas de domiclio de uma das partes, pelos princpios gerais de direito ou de acordo com os costumes internacionais, e, ainda, realizar-se em pas neutro em relao ao das partes, sob as normas procedimentais de uma instituio arbitral internacional.

Um caso tpico de aplicao de nosso DIPr ocorre, por exemplo, quando, no esplio de um mexicano falecido no Brasil, casado com brasileira, a esposa brasileira concorre herana com a me do falecido, ainda viva, residente no Mxico, hiptese em que a lei brasileira faculta a aplicao da lei mexicana, que se mostra mais favorvel aos interesses do cnjuge e dos filhos do casal domiciliados no Brasil (no Mxico a me dividiria com a viva a parte disponvel da herana).

Vrias outras situaes so tambm registrveis neste sentido. Por exemplo, numa questo oriunda de um contrato regido pela lei brasileira, entre partes domiciliadas no Brasil e nos Estados Unidos, que venha a ser solucionada, por ajuste entre elas, de acordo com os princpios gerais de direito do comrcio internacional, atravs de arbitragem realizada em Nova York, sob as regras da Corte Internacional de Arbitragem da Cmara de Comrcio Internacional de Paris. Nesta hiptese a sentena arbitral estrangeira (proferida no exterior) ter de ser homologada pelo STF para surtir efeitos no Brasil, nos termos do art. 35 da Lei 9.307/96 (lei de arbitragem), e se nota a aplicao das normas de DIPr brasileiras quanto a escolha da lei de regncia do contrato, escolha da frmula arbitral ou da lei processual de Nova York para eventual conhecimento de matria ligada ao processo arbitral pelo Juiz daquela cidade (lugar da arbitragem) e, ainda, da chamada lex mercatoria (princpios gerais e consuetudinrios, alm dos antecedentes das solues arbitrais e por mediao dos contratos no comrcio internacional).

Tambm num contrato de financiamento firmado entre parte brasileira e outra norte- americana, tendo como lei de regncia as do Estado de Nova York e a constituio de garantia hipotecria de imvel situado no Brasil, esta que ter de ser executada de acordo com as formalidades, legislao e a competncia jurisdicional exclusiva das autoridades brasileiras para este tipo de garantia real, apresentando-se como mais um caso a ser solucionado de acordo com as regras do DIPr brasileiro.

Diz-se, assim, que mltiplos so os fatos que tm de ser interpretados de acordo com a conexo internacional de leis de diferentes Estados, que, em sentido genrico, apresentam ou podem apresentar conflitos interespaciais ou intertemporais ou, ainda, interespaciais/intertemporais.

Se, a respeito de um mesmo fato temos duas leis de regncia editadas em momentos diferentes mas aplicando-se, simultaneamente, a um mesmo fato, no havendo subordinao entre elas, estaremos diante de um conflito intertemporal de leis. E haver um conflito interespacial de leis, quando mesma hiptese podem aplicar-se simultaneamente duas leis de Estados ou unidades diferentes e autnomas entre si, geogrfica e politicamente.

E, ainda, ocorrero, simultaneamente, os dois tipos de conflitos, interespacial/ intertemporal quando as leis teoricamente aplicveis ao mesmo fato tenham sido editadas em momentos diferentes e emanem de Estados ou unidades polticas distintas e independentes entre si.

Para efeitos de selecionar os conflitos espaciais (ou espao-temporais) antes referidos e em que interferem as regras de regncia do DIPr interessante lembrar que eles no ocorrem somente quando duas leis de pases diferentes se aplicam mesma situao, mas tambm quando se verificam conflitos entre leis de unidades legislativamente autnomas de um mesmo Estado, ou, ainda, entre leis de um pas dominante e as de suas colnias, casos estes de conflitos digamos internos, que ocorrem, por exemplo, entre leis em matria civil, penal, comercial, societria etc.. promulgadas entre os Estados-membros de um nico pas como os Estados Unidos da Amrica, onde os Estados tm autonomia para legislar sobre matrias consideradas de competncia federal em outros pases, ou entre as leis das colnias ou pases satlites em relao a suas metrpoles.

O elemento espacial ou geogrfico que confere o vnculo de ligao com o DIPr. Quando o conflito interespacial (ou interespacial/intertemporal) de leis ocorre entre legislaes de Estados diversos estaremos diante de conflito a ser solucionado com o auxlio das normas inerentes ao DIPr3Haroldo Vallado exemplificava o conflito interespacial/temporal de leis com o testamento conjuntivo feito na Alemanha em 1915 (onde o Cdigo Civil - BGB - o admite) ao tempo, no Brasil, das Ordenaes do Reino de Portugal, que tambm o admitiam, e que fosse aberto para ser cumprido no Brasil em 1940, na vigncia do atual Cdigo Civil, cujo art. 1.630 o probe4. Como existem atualmente mais de 190 Estados soberanos, cada um com sua ordem jurdica prpria, da qual faz parte o direito privado e a mobilidade crescente da populao e das relaes comerciais entre os povos vem tornando gradualmente, cada vez mais comuns, os casos de direito privado com conexo internacional e o estudo do DIPr vem atingindo um volume crescente de interesse e importncia.

Acrdo do Supremo Tribunal Federal enfoca o aparente problema de terem as partes casado no Brasil quando aqui no se admitia o divrcio, sendo, porm, ambas estrangeiras, pertencentes a pas que admite o divrcio a vnculo, que permite convolar novas npcias, ao requererem a homologao no Brasil da sentena de divrcio estrangeira (in Lei de Introduo ao Cdigo Civil brasileiro interpretada, Maria Helena Diniz, Saraiva, p. 241):

EMENTA: de ser homologada para produzir todos os seus efeitos no Brasil a sentena estrangeira de divrcio a vnculo entre cnjuges estrangeiros pertencentes a pas que o admite, pouco importando que o casamento haja sido efetuado no Brasil, uma vez que a capacidade nupcial dos nubentes foi regida pelo seu estatuto pessoal, que se estende tambm aos direitos de famlia, inclusive a dissoluo do vnculo matrimonial.

As regras que possibilitam a descoberta seletiva desse direito material e que se destinam a solucionar os casos de conflitos de leis, oriundas do ordenamento jurdico interno de dois ou mais Estados soberanos e que entre si podem, teoricamente, requerer aplicao simultnea a uma mesma questo, representam o mais importante mecanismo de que se utiliza o DIPr. A este sistema normativo de pesquisa e aplicao, existente nas legislaes ou decorrentes da sedimentao da jurisprudncia dos Estados, Wilson de Souza Campos Batalha5 WILSON DE SOUZA CAMPOS BATALHA - Tratado de Direito Internacional Privado, Ed. Revista dos Tribunais, 1977, p. 4 5 e Jacob Dolinger6 Direito Internacional Privado - Parte Geral - Ed. Renovar, p. 9 e segs.6 referem-se como a um sobredireito, cujos mecanismos permitem a seleo e determinao do direito a ser aplicado quando presentes os elementos extraterritoriais acima referidos.

Uma referncia interessante a respeito da aplicao das leis internacionais para soluo de conflitos em matria contratual se encontra no livro de William F. Fox Jr.7 International Commercial Agreements(Kluwer, Law and Taxation Publishers, The Netherlands).7, quando o autor, que exerce a advocacia internacional com base em Washington, D.C., e professor da Faculdade Catlica de Direito naquela cidade, informa que a intrincada articulao de alguns contratos internacionais pode ser sugerida por um deles, que serviu como objeto de um de seus trabalhos e que deu incio a uma questo judicial perante um tribunal federal norte-americano, para confirmar uma sentena arbitral proferida na Sua, sobre questo proposta por empresa grega contra uma companhia de petrleo do Oriente Mdio, que fora constituda como uma subsidiria integral de uma empresa norte-americana.

Partindo da recepo pelo direito interno das normas de direito privado estrangeiras e vice versa, Pontes de Miranda formulou a seguinte e preliminar definio: o direito privado nacional, quando tem de ser obedecido ou aplicar-se fora das fronteiras, e o direito privado estrangeiro, quando se obedece ou aplica dentro do territrio nacional, constituem contedo de certas regras de obedincia e aplicao, ao conjunto das quais se deu o nome de direito internacional privado. Sobre a definio anterior atentemos apenas para o fato de que nem sempre a rea de influncia do DIPr abrange apenas as normas de direito privado dos Estados que tenham sido recepcionadas ou aplicadas extraterritorialmente ou as chamadas normas de conflito, devendo ser conceitualmente incorporada a esta definio as normas internas reguladoras da situao do estrangeiro em cada pas, como a doutrina francesa abriga.

Werner Goldschmidt8 WERNER GOLDSHMIDT - Derecho Internacional Privado- Derecho de la tolerancia, Ed, De Palma, Buenos Aires, Octava Edicin, 1995, p. 4 e 138 conceitua o DIPr como o conjunto de casos ou situaes jusprivatistas com elementos estrangeiros e suas solues. As solues em que esses casos se baseiam e sua sistemtica tm sempre ligao com o elemento estrangeiro. Os casos, diz o citado autor, pertencem, de acordo com seus elementos, a um pas ou outro, ou a vrios ao mesmo tempo. Seu tratamento deve, assim, levar em considerao esta vinculao, porque durante o seu desenvolvimento seus protagonistas, muitas vezes a levam em conta e adaptam o caso ao Direito do pas, assim como cada pas possui um direito a regulamentar as questes que a ele se vinculam. Em outras palavras, necessrio distinguir entre casos (ou elementos de casos) prprios e casos (ou elementos de casos) estrangeiros e, com vistas a estes ltimos, respeitar o Direito do pas a que eles pertenam.9 WERNER GOLDSCHMIDT (opus cit. p. 13), acrescenta ao texto a seguinte nota: El mencionado princpio de justicia, si bien esequible directamente a una intuicin eidtica, puede igualmente deducirse de los tres principios fundamentales de la justicia formulados por Ulpiano. El princpio del neminem laedere (no lesionar a nadie) impone el respecto ao Derecho objetivo extranjero, en razn de que su repudio perjudicara al pas extranjero. El princpio del suum cuique tribuere (a cada uno atribuir lo suyo) exige en nostro pas reconocer los derechos subjetivos adquiridos en otro, puesto que rechazar este reconocimiento daaria a sus titulares. Por ltimo el princpio del honeste vivere ( hay que vivir honestamente) limita tanto el respeto al Derecho objetivo, como el respeto de los derechos subjetivos extranjeros, por considerar como lmite de ambos lo que nosotros estimamos la honestidad de la vida social. 9

5. O DIPr NA VISO DOS NACIONALISTAS E INTERNACIONALISTAS - DUALISMO E MONISMO

Ao longo dos sculos diversas teorias, escolas e vertentes a respeito das normas de DIPr foram sendo desenvolvidas. Algumas defendiam a prevalncia do jus fori, outras a prevalncia do direito estrangeiro. A rigor, firmaram-se neste sentido duas grandes correntes jurdicas a que se filiaram vrios tratadistas: a dos nacionalistas e a dos internacionalistas.

Segundo a escola nacionalista o direito internacional privado representa um conjunto de regras estabelecidas pelos legisladores de um Estado determinado, formando parte do direito nacional interno de cada pas. O argumento principal dos nacionalistas o de que as regras de DIPr constituem parte do ordenamento jurdico nacional, portanto direito estatal, com suas fontes de produo jurdicas localizadas internamente, igualmente nacionais.

Para os internacionalistas, ao contrrio, o DIPr faria parte de um conjunto de regras internacionais que teriam como fundamento a vontade coletiva dos Estados. Estas permitiriam que as normas jurdicas de um desses Estados pudessem, em determinados casos, serem recepcionadas e obedecidas por outro. Nesta hiptese, o nvel crescente das relaes jurdicas internacionais colocaria os diversos Estados em regime de coordenao legal com os particulares, no s quanto a aplicao dos Tratados e Convenes mas tambm quanto a produo dos direitos internos no que se refere aos negcios comerciais e competncia jurisdicional.

Na viso geral dos internacionalistas, porm, reconhecido que embora os ordenamentos de direito internacional privado emanem da vontade unilateral interna dos Estados, representam, em ltima anlise, o cumprimento de um dever internacional de reconhecimento da personalidade jurdica ou do direito dos estrangeiros, quer pessoas fsicas ou jurdicas, e definem tambm uma atitude perante outros Estados, no devendo haver dvidas, como coloca Irineu Strenger, de que as referidas leis, internas que sejam, constituem o que se poderia chamar de direito interno internacionalmente relevante ou direito aplicvel internacionalmente, no s at o ponto em que traduzem o princpio do reconhecimento da personalidade jurdica dos estrangeiros, mas em toda a sua extenso, quando definiriam a atitude do Estado em relao aos estrangeiros e seus interesses.

A TEORIA DUALISTA DE TRIEPPEL

Heinrich Trieppel10 HEINRICH TRIEPPEL, Volkerrecht und Landsrecht, Peipzig, Verlag C. L. Hirschfeld 1889 - traduo francesa (de Brunet, Paris, 1920).,10 ao estudar as relaes entre o Direito Internacional e o Direito Interno, o que fez de forma sistemtica em 1899, na obra Volkerrecht und Landsrecht, sustentou que o direito no se cria por uma s linha de vontades mas por um conjunto de vontades e o Direito Internacional pela vontade coletiva dos Estados, no na forma de um contrato mas na forma de um acordo para uma verdadeira unio de vontades. Segundo Marotta Rangel11 VICENTE MAROTTA RANGEL - Os conflitos entre o Direito Interno e os Tratados Internacionais, in BSBDI no 44-45, p. 29-64, 1967 (p.31-32). O autor v na teoria de Trieppel a vontade de um s ou de vrios Estados como fundamento respectivo dessas ordens: relao de subordinao na primeira e de coordenao na segunda. Distinguem-se outrossim, relaes, sujeitos, fontes e estruturas diversas. Citando o prprio Trieppel o autor acrescenta que as ordens pelo mesmo visualizadas constituem-se como duas esferas, quando muito tangentes, mas jamais secantes.11 a sntese da teoria de Trieppel consiste na ciso rigorosa entre a ordem jurdica interna e a internacional, a tal ponto que nega a possibilidade de conflito entre ambas.

Desenvolvendo estas idias Trieppel fundou a chamada teoria dualista, ou pluralista, sobre as relaes do direito internacional com o direito interno de cada pas, declarando serem eles opostos quanto s relaes sociais que regulam. O direito internacional regeria apenas relaes entre Estados iguais, coordenados, o direito interno as relaes entre indivduos ou entre esses e os Estados. Quanto s respectivas fontes, decorreria o direito internacional da vontade coletiva dos Estados, atravs dos Tratados ou dos costumes, e o direito interno da vontade de um Estado, com a lei.

Assim, Trieppel concluiu que os dois sistemas, sendo distintos, jamais se superpem, no podendo concorrer, no influindo juridicamente um no outro, no modificando a norma internacional a interna nem esta aquela, e assim a promulgao e a publicao oficial de um Tratado pelo Estado para ser observado pelas autoridades e os sditos s obriga o mesmo Estado perante os outros Estados, internacionalmente, no tendo qualquer eficcia interna, no obrigando os sditos, autoridades e juizes, dependendo para isto de uma outra norma interna de transformao ou de execuo daquela norma internacional, princpio que envolve a teoria da incorporao. Alm disso, a ordem jurdica interna estaria baseada num sistema de subordinao e a ordem internacional na coordenao.

A doutrina dualista, pois, atribui valor jurdico maior ao direito interno quando em comparao com o direito internacional.

AS TEORIAS MONISTAS DE JELLINEK E KELSEN

Oposta teoria dualista encontra-se a monista. Nesta se sustenta a existncia de apenas uma ordem jurdica, coexistindo nela duas posies: a que defende a primazia do direito interno e a que julga prevalente o direito internacional.

A parte do monismo que sustenta a prevalncia do direito interno tem base nos estudos de Hegel, que considerava o Estado absoluto em sua soberania, no se sujeitando a qualquer sistema jurdico que no aquele originrio de sua prpria vontade. Assim, o Direito Internacional resultaria da obrigatoriedade do Direito Interno, sendo, pois, um direito estatal, inexistindo neste campo duas ordens jurdicas autnomas que possam manter relaes entre si.

Esta teoria tem Jellinek como formulador, e Wenzel, Deciencire-Ferrandire e Georges Burdeau como seguidores, sustentando o ltimo ser o Direito Internacional um direito nacional para uso externo.

O tese do monismo que defende a primazia do Direito Internacional foi desenvolvida em especial pela chamada Escola de Viena, integrada por Kelsen, Verdross e outros. Hans Kelsen, criador do purismo jurdico em sua Teoria Pura do Direito - 12 Traduo de Joo Batista Machado (Martins Fontes Ed.,SP).12, se refere estrutura escalonada da ordem jurdica, dizendo (p. 246) que dado o carter dinmico do Direito, uma norma somente vlida na medida em que determinada por outra norma, representando esta outra norma o fundamento imediato da validade daquela, relao esta que cria a imagem espacial da supra-infra-ordenao, no dizer de Kelsen, teoria que ficou conhecida por sua estruturao, como pirmide da normatividade.

Haroldo Vallado13 (obra cit. p. 53)13 explica que Kelsen propugnava a unidade do Direito com o normativismo, identificando o Estado com o Direito e sustentando que cada norma jurdica se valoriza por outra superior, em pirmide, e assim um ato individual tiraria sua eficcia do regulamento, este da lei, esta da Constituio, etc.. at chegar-se a uma norma-base hipottica, meta-jurdica, comportando duas hipteses, a do primado do direito interno, em que a norma bsica a do Estado e a do primado do Direito Internacional, em que a norma bsica a internacional, da comunidade das naes, valorizadora dos diversos direitos internos, hiptese que Kelsen preferiria, por razes filosficas pessoais.

6. EXEMPLOS DE CONFLITOS INTERESPACIAIS DE LEIS

Alguns exemplos de aplicao no Brasil da legislao estrangeira decorrem no exatamente da soluo do conflito mediante deduo analtica e escolha da lei material a aplicar, mas do prprio comando do dispositivo legal interno, de DIPr, que determina, em certas circunstncias, a aplicao da lei estrangeira.

o caso relativo aplicao do 1o do art. 10 da LICC combinado com o inciso XXXI, art. 5o da CF, que disciplinam que: a vocao para suceder em bens de estrangeiros situados no Brasil ser regulada pela lei brasileira em benefcio do cnjuge brasileiro e dos filhos do casal, sempre que no lhes seja mais favorvel a lei do domiclio. Ao aplicar o princpio do 1o do art. 10 da LICC (por requerimento da parte interessada) e aplicar a lei estrangeira, do domiclio do de cujus de nacionalidade estrangeira, o Juiz brasileiro estar, simplesmente, aplicando a soluo dada pela lei estrangeira (mais favorvel aos interesses da viva ou herdeiros brasileiros) e no deduzindo qual lei dever ser aplicada em face de um confronto internacional de leis.

Outros pontos a serem considerados devido a freqncia com que ocorrem casamentos entre estrangeiros domiciliados, s vezes, em diferentes pases, que embora em todos os pases haja autorizao na legislao interna para que os estrangeiros possam casar-se perante suas autoridades consulares competentes, quer sejam da mesma ou de nacionalidades diferentes e at quando tenham domiclios diversos, realizando-se o seu casamento perante as autoridades locais h que ser observada a legislao nacional ( 1o do art. 7o da LICC) quanto s formalidades impostas pela lex loci celebrationis, como preceitua tambm o art. 41 do Cdigo Bustamante, mesmo se forem diversas das formalidades existentes na lei pessoal dos nubentes e devam tambm ser observadas os impedimentos dirimentes (Cdigo Bustamante art. 38) absolutos ou pblicos (art. 183, I a VIII, do CC) ou relativos (CC, art. 183, IX a XII).

Assim, por exemplo, um estrangeiro nacional de um pas que admita a poligamia no poder casar-se uma outra vez no Brasil nem poder casar-se aqui o adotado com o cnjuge do adotante nem o podero os colaterais, legtimos ou ilegtimos, at o terceiro grau.

Um exemplo extrado da jurisprudncia internacional comparada e citado pelo Professor Jacob Dolinger14 (Obra cit. p. 29).14, apresenta uma soluo no mbito do DIPr a uma questo que foi solucionada pelos tribunais franceses, envolvendo aspectos da aplicao temporal/espacial das leis:

Um casal espanhol, cuja lei proibia o divrcio, domiciliado na Frana, cujo Cdigo Civil determina a aplicao da nacionalidade para questes de famlia, no podendo divorciar-se na Frana obteve, em 1971, separao judicial numa corte francesa. Advindo em 1975 a mudana do Direito Internacional Privado francs sobre o divrcio, que passou a ser regido pela lei do domiclio das partes, o marido requereu perante a corte francesa a converso da separao em divrcio, que lhe foi negada pela Corte de Apelao de Rouen, que qualificou a questo como de Direito Intertemporal Internacional, ou seja, de conflito temporal de Direito Internacional Privado, que deveria ser solucionado de acordo com as regras de Direito Intertemporal da Lei interna da Frana.

A Lei francesa de 1975 (que passou a admitir para reger o divrcio a lei de domiclio das partes) disps, em seu art. 24, alnea I, que sempre que a ao de separao de corpos tivesse sido requerida antes de sua vigncia, aplicar-se-ia a lei antiga, j tendo a Corte de Cassao decidido que o mesmo deve ocorrer para a converso da separao em divrcio, ou seja, se a separao fosse requerida antes da lei nova, tanto este pedido de separao quanto sua futura converso em divrcio, continuariam a ser regidos pela lei antiga.

Como este critrio de Direito Intertemporal interno francs se estende ao Direito Intertemporal Internacional, o Tribunal de Rouen deu provimento apelao do cnjuge mulher, reformando a sentena da instncia inferior que dera provimento ao pedido do cnjuge varo de converso da separao em divrcio. Na espcie, segundo o Tribunal de Rouen, havia de se aplicar a regra antiga da aplicao da lei nacional, a espanhola, que no admitia o divrcio.

Outro exemplo, este abordando a questo do retorno ou devoluo (quando a lei de um pas faz remisso ou devolve questo para ser solucionada de acordo com a lei interna de outro pas) envolve o clebre caso Forgo, que marca a introduo dessa hiptese do retorno ou devoluo no direito internacional e representa, a sua vez, um caso clssico de conflito internacional de leis:

Forgo, natural da Baviera, foi levado por sua me para a Frana, onde viveu grande parte de sua vida, deixando grande herana de bens imveis. A lei aplicvel sua sucesso seria a de seu domiclio de origem, a da Baviera. Assim, decidiram os tribunais da Frana que Forgo conservara seu domiclio de origem na Baviera, devendo ser consultado o Cdigo bvaro a respeito das disposies relativas a sua sucesso. De acordo com a lei sucessria bvara a herana de Forgo passaria a seus herdeiros colaterais naturais (irmos, sobrinhos, tios e primos) caso, ao invs dela, se aplicasse a lei sucessria francesa, que exclua os herdeiros colaterais da herana, esta seria declarada jacente e deveria ser recolhida pelo Estado francs conforme os arts. 713 e 718 do CC francs.

Tendo, ento, surgido o problema da procedncia ou improcedncia da remisso a Administrao do Patrimnio Pblico francesa (LAdministration des Domaines) apresentou ento um oportuno argumento, fazendo com que a remisso ao direito estrangeiro tivesse ingresso, pela primeira vez, na jurisprudncia. que o Cdigo Civil bvaro (Cap. II, 17 e cap. XII, 3a parte, 1o) aplicvel evidentemente ao caso continha uma disposio segundo a qual as sucesses imobilirias eram submetidas lei do lugar do domiclio efetivo do defunto. Sendo este a Frana a lei bvara competente remetia a soluo do assunto lei sucessria francesa e de acordo com esta o Estado francs deveria recolher a herana.

7. O DIPr, O DIREITO UNIFORME E O DIREITO COMPARADO;

Muitos tm sustentado que um dos principais objetos do direito internacional privado criar um direito uniforme, embora Haroldo Vallado, por exemplo, sustentasse que seria uma soluo simplista a tentativa de eliminao da adversidade entre os sistemas jurdicos pela sua padronizao, o que iria, a seu ver, conflitar com a personalidade cultural e com as tradies de cada pas. No existem dvidas, porm, que este objeto - o da uniformizao das legislaes dos pases- embora neste momento possa ainda parecer muito distante, tem sido alvo de vrias tentativas atravs da doutrina, dos movimentos de integrao econmica entre Estados de que so exemplo a Unio Europia - UE, o Mercosul e o NAFTA, e da conseqente uniformizao de suas legislaes e atravs do trabalho de organismos internacionais, como o caso tpico do Institut International pour lUnification du Droit Priv (UNIDROIT), ou da UNCITRAL - United Nations Comission for International Trade Law, antes citada, ambos organismos ligados ONU, que no tm poupado esforos neste sentido.

claro que direito uniforme e DIPr so inconfundveis, resumindo-se o primeiro na convergncia das normas emanadas de duas ou mais ordens jurdicas estatais, ou na equalizao das legislaes de alguns Estados para se aproximarem ou igualarem, enquanto que o direito internacional privado envolve o estudo dos sistemas de seleo das leis e das normas internacionais de conflitos existentes nas diferentes ordens jurdicas mundiais.

Um memorvel e histrico esforo de uniformizao do DIPr foi feito atravs do Cdigo de Direito Internacional Privado, conveno internacional com 437 artigos, firmada sob os auspcios da Unio Panamericana, entre Argentina, Brasil, Bolvia, Colmbia, Costa Rica, Chile, Cuba, Equador, Estados Unidos, Guatemala, Haiti, Honduras, Mxico, Nicargua, Paraguai, Per, Repblica Dominicana, Salvador, Venezuela, na 6a Conferncia Internacional Americana realizada em Havana, Cuba, em 20 de fevereiro de 1928. Projeto do jurista cubano Antonio Sanchez de Bustamente y Sirvn, que foi tambm delegado de Cuba naquela Conferncia. Este cdigo, conhecido como Cdigo Bustamente, aplicvel a\os Estados contratantes e queles que viessem a ele aderir posteriormente (art. 2o ) e tem como objeto a mais ampla codificao de princpios e normas de DIPr de que se tem notcia.

A no ser quanto aspectos especiais, como as normas do direito comunitrio e as regras do comrcio e das finanas internacionais, no parece neste momento atingvel a mdio prazo uma uniformidade legislativa, uma vez que, inegavelmente, o direito tem se mostrado refratrio uniformizao, mantendo-se vinculado regio, raa, s tradies, aos costumes, lngua, religio e aos recursos e necessidades de cada povo.

Existe, no entanto, uma pretenso generalizada e ambiciosa da comunidade internacional de negcios, no sentido de harmonizar as regras legais visando atender as exigncias de velocidade e racionalizao do comrcio internacional. Devem ser mencionados, neste sentido, os trabalhos da UNCITRAL, que foi criada pela Assemblia geral da ONU em 1966 (Resoluo 2.205) com o objetivo de possibilitar s Naes Unidas uma atuao mais ativa na reduo ou remoo de obstculos ao fluxo do comrcio internacional. A Assemblia Geral da ONU ao cri-la reconheceu que os conflitos e divergncias entre as leis de diferentes Estados em matrias relativas ao comrcio internacional constituem um obstculo a evoluo do comrcio mundial, considerando, assim, conveniente que o processo de harmonizao e unificao da legislao do comrcio internacional fosse coordenado, sistematizado e acelerado assegurando-se uma ampla participao dos Estados nesse processo.

Em sua primeira seo, de 1968, a Comisso adotou nove itens como base para o seu programa de trabalho futuro: (1) venda internacional de mercadorias; (2) arbitragem comercial internacional; (3) transportes; (4) seguros; (5) pagamentos internacionais; (6) propriedade intelectual; (7) eliminao da discriminao de leis relativas ao comrcio internacional; (8) agenciamento e (9) legalizao de documentos. Dentre esses itens foi dada prioridade a venda internacional de mercadorias, a arbitragem comercial internacional e a questo dos pagamentos internacionais, tendo como resultados a assinatura da Conveno de Viena, de 1980 sobre a compra e venda internacional de mercadorias e a redao de leis-modelo sobre arbitragem comercial internacional e sobre transferncias internacionais de crdito. A Conveno de Viena foi firmada por mais de 50 Estados e a Lei-Modelo sobre arbitragem adotada por mais de 22 pases at 1995.15 A comisso adotou um sistema flexvel e funcional com respeito s tcnicas de harmonizao e unificao da Legislao Comercial Internacional, usando as tcnicas legislativas abaixo:

(i) Convenes Internacionais - idealizadas como meio de unificao da legislao em Estados-Membros, estabelecendo-se a obrigao internacional dos Estados em adotarem uma legislao de acordo com as Convenes. A aderncia de um Estado a Conveno implica numa declarao formal do Estado, normalmente ao depositrio da Conveno, de que deseja a ela aderir. Um modelo universalmente reconhecido de Conveno neste sentido o da Conveno de Viena sobre a compra e venda internacional de mercadorias;

(ii) Leis-Modelo - idealizadas como um texto legislativo recomendado para adoo pelos Estados em, termos de lei nacional. Diferentemente da Conveno, a Lei-Modelo no requer que o Estado que a adote tenha de notificar algum organismo como o depositrio da Conveno. Ademais, o Estado pode, ao incorporar o texto da Lei-Modelo a seu sistema legal, modificar ou deixar de aplicar algumas das suas provises. Assim, o grau de unificao e certeza sobre a extenso da harmonizao a ser produzida atravs de uma Lei-Modelo bem menor do que no caso de uma Conveno, mas a Lei-Modelo oferece maior flexibilidade, podendo o Estado adaptar seu texto s suas necessidades. Um exemplo importantssimo encontrado na Lei-Modelo da UNCITRAL sobre Arbitragem Comercial Internacional;

(iii) Modelo de Estipulaes para Convenes - Quando certo nmero de Convenes tratam de uma questo especfica, de um modo que mostre a convenincia de unificao, pode ser til a adoo de um modelo de estipulao convencional. A UNCITRAL, em 1982, estabeleceu um modelo de unidade contbil de valor constante que pode ser usada, em particular, em contratos de transporte internacional e Convenes obrigacionais para expressar valores em termos financeiros;

(iv) Recomendao de trabalhos legislativos - s vezes, na impossibilidade de apresentar uma forma adaptvel de incorporao aos sistemas nacionais de uma Conveno ou Lei-Modelo a tcnica da comisso consiste em oferecer uma recomendao de legislao aos pases-membros;

(v) Tcnicas contratuais (Normas Uniformes) - a redao de contratos, especialmente no comrcio internacional, pode ser enormemente facilitada, modernizada e unificada se as partes puderem incorporar a seus contratos Clusulas-Modelo preparadas a nvel internacional. Exemplos relevantes dessas Clusulas so encontrados nos regulamentos modelos de arbitragem e de conciliao da UNCITRAL.15

O movimento ecumnico da comunidade internacional de negcios pretende no precisar fazer maiores referncias a direitos nacionais, surgindo este novo direito do conjunto de mltiplos vetores compostos pelos fatores consuetudinrios, convencionais, jurisprudenciais e decorrentes das arbitragens internacionais administradas por mltiplas entidades que atuam de forma desvinculada das estruturas estatais. Este movimento se incorporaria, no ressurgimento da idia de uma lex mercatoria, de natureza supranacional, imaginada inicialmente na idade mdia, quando as fronteiras entre os pases no se mostravam ainda bem definidas e a comunidade internacional desejava o surgimento de regras supranacionais para regular seus negcios.

O direito comparado a cincia ou o mtodo cientfico pelo qual se faz o estudo comparativo dos direitos no espao como uma geografia jurdica, ao lado da histria do direito cuja dimenso o tempo. Tem ele como funo o estudo, simultneo, dos vrios direitos e legislaes, para conhecer as respectivas semelhanas, diferenas, e, sobretudo, relaes e assim, contribuir para a cincia, a produo interna e externa, em especial para o aprimoramento das regras e para a melhor interpretao do direito. Desta forma, se constitui num elemento auxiliar do DIPr e do direito uniforme, pois, conhecendo e comparando as leis divergentes das vrias naes que se poder, primeiramente, coorden-las, harmonizando-as atravs das normas solucionadoras de conflitos, ou tentar uniformiz-las, identificando-as por uma norma nica e universal, supressora das colises.

8. FONTES DO DIPr: LEIS, COSTUMES, TRATADOS E CONVENES, JURISPRUDNCIA, DOUTRINA

Os antigos romanos dividiam o direito em jus non scriptum e jus scriptum. Os costumes constituam as fontes do direito no escrito e o direito escrito tinha como fonte as leis, fossem as votadas pelas assemblias de todo o povo romano (centuriata) fossem as resolues das assemblias de plebeus (plebiscita), ou, ainda, as consultas ao senado (senatus consultae), as sentenas dos juizes (edita magistratum), ou a doutrina (responsa prudentium) alm dos princpios constitucionais (constitutiones principium), lista esta que referida nas Institutas do Imperador Justiniano.

Alguns distinguem as fontes materiais das formais. As primeiras representariam as tendncias do direito e as ltimas a materializao desta tendncia em termos de normas objetivas, que constituiriam as fontes formais do direito. Clvis Bevilqua29 CLVIS BEVILQUA - Princpios elementares de direito internacional privado - 2a edio - pginas 121-12216 classificava as fontes do DIPr segundo o ponto de vista de sua energia coativa como: (a) a lei especial de cada pas; (b) os tratados e convenes e (c) a tradio e os costumes.

A complexidade dos problemas versados pelo DIPr conduz a uma variedade de fontes produtoras de regras que objetivam indicar solues, mais ou menos eficazes em cada caso. Jacob Dolinger assinala que enquanto no Direito Internacional Pblico preponderam as regras produzidas por fontes supranacionais, no DIPr ntida a preponderncia das fontes internas: a Lei; a Doutrina e a Jurisprudncia. A conhecida divergncia em torno da classificao da doutrina e jurisprudncia como fontes formais do direito no se encontra no DIPr, onde h unanimidade na aceitao dessas fontes.

A maioria dos autores aceita a seguinte classificao das fontes do DIPr:

a) as leis internas que regulam o sistema para seleo e aplicao ou no no pas de leis estrangeiras, ou que disciplinam a situao dos estrangeiros no pas;

b) os tratados internacionais normativos relacionados ao DIPr;

c) os costumes internos de natureza privada internacional ;

d) a jurisprudncia de DIPr;

e) a doutrina envolvendo questes de DIPr.

As leis internas

Talvez a principal fonte do DIPr se encontre na legislao interna dos pases com aplicao sobre fatos e circunstncias conectados a diversos sistemas legais e aquela especialmente criada para regular a situao dos estrangeiros no pas.

Uma primeira distino prtica neste tema consiste em apontar as regras materiais existentes nas legislaes internas dos pases que dizem respeito, diretamente, questo a ser esclarecida ou regulamentada e no norma solucionadora de conflitos. Neste sentido podem ser citadas as leis que determinam, diretamente, regras sobre o ingresso, conduta, expulso ou deportao de estrangeiros, sobre as condies que envolvem a perda e aquisio da nacionalidade, sobre pagamentos ao exterior, sobre transportes internacionais e assim por diante

Foi na Itlia, em princpio, que surgiu historicamente, na idade mdia, a teoria do conflito de leis. Henri Battifol e Paul Lagarde31 HENRI BATTIFOL e PAUL LAGARDE - Trait de Droit International Priv - Tome 1 - 8e. edition - Paris - pg. 2717 registram que toda a Europa feudal da idade mdia conheceu a faina dos mercadores de diversas origens que efetuavam suas transaes sob o imprio de regras costumeiras aceitas por todos, mas que tal sistema, como o ius gentium dos romanos, evocava a possibilidade da permanente aplicao de um direito prprio s relaes privadas internacionais, tendo, assim, suas limitaes.

Assim, aconteceu que, pouco a pouco, a variedade das relaes civis, patrimoniais e familiares, assim como a diversidade das condies sociais em cada cidade, sobretudo nas cidades do norte da Itlia, pujantes em termos de comrcio, acabaram por impor a legislao dos estatutos, cuja proposta implicava na soluo dos conflitos de leis entre os diversos povos europeus atravs de normas especficas, aplicveis a cada caso.

As normas legislativas internas sobre conflitos de leis so encontradas ora nos cdigos civis, como matria introdutria aos mesmos, como o caso do critrio seguido pelo Cdigo Civil alemo, no que foi acompanhado pelo brasileiro, ora em normas dispersas ou, ainda, em ordenamentos legislativos que no se enquadram aos Cdigos ou a leis introdutrias aos mesmos, como o caso do sistema de conflitos de leis dos Estados Unidos, que, afastando-se da orientao dominante na Europa, consiste numa condensao da jurisprudncia sobre o tema, preparada pelo American Law Institute, sendo assim estruturado o Restatement of the Law of the Conflict of Laws, cabendo o trabalho inicial dessa condensao ao professor de Harvard, Joseph Beale.

Tratados e Convenes Internacionais

Os tratados e convenes internacionais constituem, a seguir, sem haver nesta ordem nenhuma hierarquia, a mais fecunda e importante fonte do DIPr. atravs da ratificao dos mesmos que se insere na legislao interna dos pases as normas a que o pas, convencionalmente, se obriga internacionalmente no mbito do DIPr.

O princpio do primado do direito internacional, a partir da assinatura e ratificao dos tratados e convenes internacionais, no mbito americano encontra-se refletido em dispositivos da IV Conferncia Internacional Americana, que resultou na Conveno sobre Tratados de Havana, de 1928, a qual dispe no art 5o que os tratados so obrigatrios depois de ratificados pelos Estados contratantes, ainda que esta clusula no conste dos plenos poderes dos negociadores, nem figure no prprio tratado.

O art. 26 da Conveno de Viena sobre Tratados, de 1969, que tem como emblema o sacrossanto princpio do pacta sunt servanda, dispe que todo tratado em vigor obriga s partes e deve ser cumprido por elas de boa f.

Fauchille33 (Trait de Droit International Publique, Paris, 1926, p. 32618 sustentava que a ratificao de um Tratado produz os seguintes efeitos para o respectivo pas que o ratifique e homologue internamente: a) faz cessar a eficcia da lei interna contrria a qualquer norma do Tratado, porque o direito constitudo na ordem jurdica internacional seria superior ao direito autnomo emanado de uma das partes do tratado34 Esta opinio representa posio da chamada corrente monista, que prega a primazia dos tratados e convenes internacionais sobre a legislao interna dos pases, mas que esbarra na teoria e prtica dos Estados, como o Brasil e os Estados Unidos, por exemplo, onde, via de regra, tratados ratificados e legislao interna ocupam a mesma posio na hierarquia legislativa, podendo uns revogar e ser revogados por outros em virtude de sua cronologia. 19; b) os Estados vinculados ao Tratado tornam-se responsveis por qualquer ato da Administrao ou do Poder Legislativo contrrios aos compromissos internacionais assumidos. Tal entendimento se encontra consagrado no art. 27 da Conveno de Viena e acha-se implcito no prembulo da Carta das Naes Unidas e no art. 3o da Carta da OEA.

No Brasil a integrao da conveno ou tratado internacional tambm se d depois que o mesmo ratificado, ou seja, depois de negociado, deve ser firmado pelo Presidente da Repblica e referendado pelo Congresso Nacional, nos termos do art 84, VIII, da atual Constituio Federal, constituindo matria de competncia exclusiva do Congresso Nacional (art. 49, I da CF) resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimnio nacional.

Os tratados ou convenes a ela incorporados formariam, segundo a corrente monista mais extremada, um direito especial , que a lei interna, comum, no poderia revogar. A teoria monista, porm, nem sempre aceita e existe grande diversidade de posies a esse respeito.

No Brasil, para o bom entendimento da matria, tm importncia fundamental as manifestaes do Supremo Tribunal Federal. Nossa Constituio omissa a respeito do status que o Tratado ou Conveno internamente ratificado desfruta em relao legislao produzida pelas vias legislativas internas. Porm, em que pese a falta de dispositivo constitucional, nosso Cdigo Tributrio Nacional - CTN, que lei complementar Constituio, prev, em seus arts. 96 e 98, que a expresso legislao tributria compreende alm das leis, decretos e normas complementares os Tratados e Convenes internacionais, os quais revogam ou modificam a legislao tributria interna. Tambm a lei 9.307, de 23.09.96, que dispe sobre arbitragem, dispe no art. 34 que a sentena arbitral estrangeira ser executada no Brasil de conformidade com os tratados internacionais com eficcia em nosso ordenamento interno e s na sua ausncia, estritamente de acordo com os seus termos. Fora essas duas leis, nenhum outro dispositivo legal nacional estabelece a supremacia hierrquica do tratado sobre a norma legal interna.

Na Frana, a Constituio de 4 de outubro de 1958, no art. 55, prev que os tratados internacionais prevalecem sobre o direito interno, se bem a condio para isto ocorrer a aplicao recproca do mesmo critrio pelo outro Estado Parte. J na Constituio da Holanda o art. 94 dispe que as normas legais do pas no devero ser aplicadas em conflito com disposies universalmente obrigatrias contidas nos Tratados e ou Resolues de organizaes internacionais.

Nos Estados Unidos, a sua vez, impera a regra de que a lei posterior derroga a anterior (later in time) prevalecendo a regra ou norma mais recente, seja a decorrente dos Tratados ou Convenes ou da legislao Federal norte-americana, uma vez que certo o reconhecimento de que as normas dos Tratados ou Convenes ratificados pelo pas prevalecem em qualquer caso em relao legislao interna.

No Brasil, ao menos no atual estgio, pode ser resumido, com base na jurisprudncia dominante do STF, que as normas decorrentes dos Tratados e Convenes que tenham sido ratificados pelo pas se equiparam s da legislao ordinria interna, podendo a norma mais recente revogar a mais antiga. A nica exceo feita neste tpico pela jurisprudncia do STF sobre a posio da legislao interna em relao aos chamados tratados contratuais que se distinguiriam dos chamados tratados-lei ou tratados normativos. Nos tratados contratuais cujos exemplos mais evidentes se encontram nos tratados bilaterais sobre bi-tributao, ou nos tratados comerciais em que as partes estabeleceriam obrigaes recprocas em torno de interesses especficos, criando um negcio jurdico, no haveria a prevalncia da legislao interna superveniente em relao aos termos do tratado. J nos tratados-leis ou normativos, tambm chamados legisferantes, que criam normas gerais e abstratas, com vistas ao estabelecimento de dispositivos de direito objetivo a serem seguidos de forma uniforme entre os Estados, haveria a equiparao entre o tratado e a norma legal interna.

A jurisprudncia

A jurisprudncia relativa a questes de natureza internacional ou em casos conectados a mais de um sistema jurdico nacional ou, ainda, que envolvam a situao do estrangeiro no pas, de extraordinria relevncia para estabelecer cnones que apontem as solues do DIPr nessas questes.

O reconhecimento do direito estrangeiro, dentro dos domnios e das tcnicas do nosso DIPr d-se atravs da jurisprudncia, como no exemplo adiante:

Deve ser mantida no cargo de inventariante a viva de nacionalidade italiana que se casara com italiano, pelo regime de separao de bens, desde que lhe caiba o usufruto de dois tero do patrimnio do de cujus, assegurado pela lei da Itlia e desde que esteja a viva de posse dos bens. (Tribunal de Justia de So Paulo, RT 275/445)

8. TENDNCIAS DE UNIFORMIZAO DO DIPr E DAS LEIS E COSTUMES DO COMRCIO INTERNACIONAL

So dignas de registro as tentativas, algumas malogradas outras nem tanto, de serem estabelecidos padres uniformes de DIPr atravs de tratados e convenes internacionais, de que so exemplo, em primeiro lugar, o Cdigo de Direito Internacional Privado, cognominado Cdigo Bustamente, e a Conferncia da Haia de Direito Internacional Privado, as diversas convenes aprovadas no mbito das Conferncias Interamericanas Especializadas de Direito Internacional Privado (CIDIPs), alm das convenes europias uniformizadoras dos direitos decorrentes da aplicao do Tratado de Roma, que criou a Comunidade Econmica Europia.

De outro lado, o fenmeno da globalizao das prticas mercantis internacionais, inclusive com a integrao regional de pases44 Essas macroassociaes esto criando blocos mercadolgicos mundiais que devero refletir-se na crescente homogeinizao das legislaes dos pases que os integram. Em 1991 os Estados Unidos e Canad, na Amrica do Norte, contriburam com 15,85% das exportaes mundiais (somente os EEUU participaram individualmente com 12, 26% dessas exportaes. A CEE - Comunidade Econmica Europia participou em 1991 com 39,82% das exportaes mundiais e o Japo, sozinho, participou com 9,14%. 20, atravs de convenes internacionais, como o caso da UE - Unio Europia, do MERCOSUL - Mercado Comum do Sul, do NAFTA - North American Free Trade Agreement, ou da estrutura que poder resultar da ALCA - rea de Livre Comrcio das Amricas, vem trazendo uma sistematizao de procedimentos que tende a resultar na progressiva, ainda que parcial, homogeinizao das legislaes dos Estados-Membros, visando a integrao de suas economias45 Os programas de integrao apresentam algumas gradaes. Numa escala em que se vo colocando outros laos apresentam-se assim: ZONA DE LIVRE COMRCIO - em que se caracteriza a reduo ou eliminao de taxas aduaneiras e restries ao intercmbio. Exemplos: NAFTA - North American Free Trade Agreement - Criado em 1994 entre os EUA, Canad e Mxico; UNIO ADUANEIRA - zona de livre comrcio + o estabelecimento de uma Taxa Externa Comum (TEC). Exemplo: Pacto Andino - criado em 1969 foi a primeira tentativa de integrao do continente, entre Bolvia, Colombia, Equador, Per e Venezuela; MERCADO COMUM - unio aduaneira + livre circulao de bens, servios, pessoas e capitais. Exemplo: Comunidade Econmica Europia antes de 1993 (Tratado de Maastricht) e MERCOSUL, criado em 1991 entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai; UNIO ECONOMICA E POLTICA - mercado comum + sistema monetrio comum + poltica externa e de defesa comum. Exemplo: a Comunidade Econmica Europia depois do Tratado de Maastricht, de 1993. Os principais Programas de Integrao Econmica surgiram na Europa, aps a Segunda Guerra Mundial, sob a influncia do Primeiro Ministro Francs ROBERT SHULMAN, que foi o primeiro Presidente do Parlamento Europeu. Dentre eles podem ser citados, na Europa: o Benelux - a Unio Econmica Belgo-Luxemburguesa; a Comunidade Europia do Carvo e Ao (CECA-1951); a Comunidade Econmica Europia (CEE-1957); a Comunidade Europia de Energia Atmica (CEEA - 1957); a Comunidade dos Estados Independentes (CEI - 1991); Nas Amricas: o Pacto Andino (1969); a Comunidade do Caribe e Mercado Comum (CARICOM - 1973); a Associao Latino-Americana de Integrao (ALADI - 1980); o Mercado Comum do Sul (MERCOSUL - 1990); o Mercado de Livre Comrcio Norte-Americano (NAFTA - 1992); a rea de Livre Comrcio das Amricas (ALCA - 1994) . Na frica; A Comunidade Econmica da frica Ocidental (UDEAC - 1975); A comunidade Econmica dos Pases dos Grandes Lagos (CEPLGL - 1976); a Zona de Comrcio Preferencial da frica Oriental e Meridional (ZCP - 1981). No Oriente: a Liga dos Estados rabes (LEA - 1945); a Associao das Naes do Sudeste Asitico (ASEAN - 1967); a Cooperao Econmica da sia e do Pacfico (APEC - 1989);.21.

O MERCOSUL, de que fazem parte a Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. constitui exemplo relativamente recente, com bons resultados j visveis de integrao regional de pases objetivando uma meta econmica comum. Foi ele criado com a assinatura em 26 de maro de 1991 do chamado Tratado de Assuno aprovado pelo Congresso brasileiro em 25 de setembro de 1991 e promulgado pelo Presidente da Repblica em 21 de novembro de 1991 (pelo Decreto no 350, DOU de 22/11/91). O Tratado entrou internacionalmente em vigor em 29/11/91, quando foi feito o depsito de suas respectivas ratificaes pelos Estados-Partes.

Tambm a crescente necessidade de uniformizao das prticas e princpios internacionais do comrcio vem impondo a equalizao de aspectos legais das prticas mercantis internacionais. Neste campo so dignos de nota os esforos das Naes Unidas, atravs de sua Comisso para a Legislao Comercial Internacional (United Nations Comission on International Trade Law - UNCITRAL), com a criao, por exemplo, da Lei Uniforme para a venda de Mercadorias46 Conforme consta de seus consideranda, os Estados, ao firmarem a Conveno das Naes Unidas sobre a Compra e Venda Internacional de Mercadorias, fizeram-no na crena de que a adoo de regras uniformes aplicveis aos contratos de compra e venda internacional de mercadorias e compatveis com os diferentes sistemas sociais, econmicos e jurdicos, contribuiria para a eliminao dos obstculos jurdicos s trocas internacionais e favoreceria o desenvolvimento do comrcio internacional. 22 e da Lei-Modelo sobre Arbitragem Comercial Internacional, alm da criao, pela Cmara de Comrcio Internacional de Comrcio - CCI, com sede em Paris, dos INCOTERMS para sintetizar termos contratuais relativos a responsabilidades sobre transporte, frete e seguro na compra e venda internacional de mercadorias e das regras sobre Crditos Documentrios, adotadas pelos bancos da maioria dos pases.

CAPTULO SEGUNDO - EVOLUO HISTRICA DO DIPr - DO DIREITO ROMANO AT A LEI DE INTRODUO DO CDIGO CIVIL, DE 1942.

1. O DIREITO ROMANO: SURGIMENTO DO IUS GENTIUM ; 2. O REGIME DA PERSONALIDADE DAS LEIS; 3. REGIME FEUDAL E A TERRITORIALIDADE DAS LEIS; 4.. A ATIVIDADE COMERCIAL DAS COMUNAS ITALIANAS NOS SCULOS XII E XIII; OS GLOSADORES; 5. AS ESCOLAS ESTATUTRIAS - SUA IMPORTNCIA COMO BERO DO DIPr - ESCOLA ESTATUTRIA ITALIANA, FRANCESA, HOLANDESA E ALEM; 6. AS ESCOLAS MODERNAS - PANORAMA GERAL: ESCOLA ANGLO-AMERICANA (JOSEPH STORY); ESCOLA DO DOMICLIO (SAVIGNY); ESCOLA DA NACIONALIDADE (MANCINI); 7. O DIREITO BRASILEIRO - A CODIFICAO CIVIL: TEIXEIRA DE FREITAS E O ESBOO DO CDIGO CIVIL; CLVIS BEVILQUA E O CDIGO CIVIL; A LEI DE INTRODUO DO CC DE 1916, A LICC DE 1942;

1. O DIREITO ROMANO: SURGIMENTO DO DO IUS GENTIUM.

em Roma que se situa a primeira manifestao de ordenamento cujos traos poderiam ser tomados como a gnese de um sistema de direito uniforme para tratamento do estrangeiro em solo romano.

Todos os escritores de direito internacional pem em relevo o desprezo e talvez mais que isto, o verdadeiro dio que os povos primitivos tinham pelos estrangeiros. Este sentimento devia-se a princpios xenfobos como os da defesa extremada da terra, da economia interna, do trabalho, dos costumes, e das prticas e princpios religiosos, das quais os estrangeiros estavam excludos, no podendo, assim, gozar dos mesmos direitos que os nacionais.

Certos povos, no entanto, desenvolveram, em menor ou maior proporo, a prtica da hospitalidade, movidos que fossem por interesses comerciais, polticos ou mesmo culturais. Mas a situao de inferioridade dos estrangeiros em solo grego e depois romano tinha razes profundas e decorria da srie de fatores acima enumerados, sobretudo das antigas regras que a religio estabelecera. Os estrangeiros no podiam ser proprietrios, nem herdar dos cidados ou os cidados deles, no possuam o jus connubii, nem o jus commercii.

O estrangeiro admitido em territrio romano, a no ser que fosse protegido por algum tratado celebrado entre Roma e seu Estado de origem, vivia ao total desabrigo em termos legais. Os tratados, porm, cedo comearam a criar regras de proteo mtua entre cidados romanos e de outros Estados e mesmo quando no havia tratado, os crescentes interesses comerciais de Roma comearam a tornar necessrio criar proteo, atravs de alguma forma de justia, para os cidados que ingressavam em seu territrio.

Assim, surgiu o jus gentium como um sistema jurdico especial, a que se achavam submetidos os estrangeiros em Roma. O jus gentium consistia num conjunto de regras comuns admitidas pelo direito romano para regular os direitos reconhecidos aos povos estrangeiros e as relaes entre estes e os cidados romanos.

Acresce dizer que o jus gentium, incompleto e fragmentrio a princpio, tomou grande desenvolvimento e, pouco a pouco, graas s concesses que os imperadores romanos foram fazendo aos peregrinos, especialmente depois do Edito de Caracalla, que concedeu o direito de cidade aos peregrinos, com excluso dos deditcios, penetrou no jus civile, passando a ser, no dizer de Eduardo Espnola1 (Elementos de Direito Internacional Privado, Ed. 1925, p. 81),1 um verdadeiro direito nacional romano, existente ao lado do jus civile 2 Haroldo Vallado (obra cit., p. 25) considera que a tcnica do jus gentium era a de um direito romano, do Estado romano, direito novo, criado para os estrangeiros em face do exclusivismo do jus civile e da inadmisso do jus peregrinum, vista dos princpios romanos incompatveis com o reconhecimento da personalidade jurdica do estrangeiro e a autonomia do direito estrangeiro, ignorando a possibilidade de incidncia de outra ordem jurdica na relao, ao considerar o aliengena, juridicamente desvestido.2.

Haroldo Vallado comenta que o jus gentium inicialmente restrito a aplicao quanto aos aptridas (estrangeiros sem leis) e a certos negcios, de preferncia mercantis, ao se estender e progredir representou uma tentativa uniformizadora, supressora, do jus civile e do jus peregrinum, para que se confundissem os trs direitos num nico: o romano, embora no tivesse sobrevivido ao prprio direito romano e sua tcnica, peculiar ao imperialismo romano, no perdurasse atravs dos tempos.

Ilmar Penna Marinho3 (Direito Comparado, Direito Internacional Privado, Direito Uniforme, Ed. 1938, p. 319/320)3 expressa a opinio de que o ius gentium no deve ser referido como gnese da tentativa de criao de normas de DIPr pois quando regulava a condio do estrangeiro o fazia por meio arbitrrio, imperativo, e quando solucionava um conflito de leis no escolhia entre a lei romana e a peregrina em choque qual a competente, mas apenas decidia por uma norma jurdica nica todos os casos litigiosos que aparecessem e, ao invs de representar um complexo de regras de soluo de conflitos legislativos, como exemplo de um nascente direito internacional privado, constitua apenas direito romano interno.

Neste ponto parece, alis, parece no haver dvida de que o ius gentium era direito exclusivamente romano. No se cogitava atravs de sua aplicao o tratamento tpico do DIPr consistente no conflito de leis e na seleo da lei aplicvel, porque simplesmente no havia seleo (conforme, alis, Julian G. Verplaetse, Catellani, J. H. Beale, Wilson de Souza Campos Batalha)

2. O REGIME DA PERSONALIDADE DAS LEIS

Uma nova fase histrica se instaura a partir da queda do Imprio Romano. O hegemnico direito romano cede lugar a reunio de costumes e direitos fracionados dos povos brbaros, que haviam invadido o espao territorial antes ocupado pelo territrio daquele Imprio. Assim, com o domnio dos brbaros, vrios povos de costumes diferentes ao se fixarem numa extensa rea geogrfica formaram as tribos brbaras, compostas de homens ligados em regime de solidariedade, com diversos nomes.

Assim, aps a conquista da Glia pelos brbaros, os galo-romanos passaram a reger-se por suas leis pessoais, que eram a lex romana visigothorum e os brbaros pelas suas, que eram a Lex Salica, a lei dos ripurios, a dos burgundos e a dos visigodos. A utilizao personalstica de diversos sistemas legais passou desta forma a imperar: aos romanos cabia o direito romano, aos francos o direito frncico, aos borguinhes, aos saxes, aos frises, aos lombardos, o direito da tribo a que pertencessem.

No chamado sistema da personalidade do direito (ou das leis), valia a origem do cidado. As pretenses existentes, portanto, eram propostas de acordo com o direito de cada um, isto , pelo direito do povo a que o cidado pertencesse, independentemente de onde se encontrasse o interessado ou a parte. Como fcil de imaginar, os costumes eram os mais variados, assim como os direitos a serem resolvidos. Para impedir contradies o regime jurisdicional vigorante exigia que cada pessoa fizesse o registro do sistema legal pelo qual era regida, qualificao esta denominada professio legis ou juris e que representava a nica possibilidade de atender aos interesses das partes, quando eram desconhecidas as naes e os respectivos direitos pelo Juiz.

Nos atos extrajudiciais a pessoa declarava o direito pelo qual se governava, assim tambm o fazendo quando ia a Juzo. O Juiz formulava ento a pergunta clssica : sub qua lege vivis? e o interessado respondia, indicando o direito que deveria ser observado. De notar que a professio era uma declarao feita a cada vez e repetida sempre e quando necessrio, pois no existia poca lei territorial e sim uma srie de leis pessoais, aplicveis aos que pertencessem este ou aquele povo ou tribo.

Nesse perodo ainda no se pode ainda vislumbrar a gnese de regras de DIPr, o que somente ocorreu mais tarde, quando se compreendeu a necessidade de harmonizao de leis diversas, com o objetivo de solucionar o conflito de leis concorrentes para regerem determinada relao. De resto, com o regime brbaro da personalidade das leis ocorreu o que seria previsvel: a maioria dos Juizes no tinha condio para conhecer e aplicar o direito de todas as naes localizadas no Imprio Romano, de tradio oral na sua grande maioria, vindo muitos e muitos casos a serem julgados com injustia, o que fez que a professio juris fosse sendo deixada de lado, encerrando o perodo de aplicao do sistema da personalidade das leis.

3. O REGIME FEUDAL E A TERRITORIALIDADE DAS LEIS

Uma das causas que mais contriburam para o advento do regime territorialista foi a implantao do sistema feudal. O indivduo passou a preceder sociedade e as integraes sociais dependiam das relaes entre o homem e a terra. Para Michelet o regime feudal se caracteriza, justamente, pela religio da terra. O senhor feudal passa a ser, ento, o supremo mandatrio dos seus sditos.

O direito se circunscreve assim aos feudos, aos territrios onde domina o senhor feudal, e por isso chamado perodo da territorialidade do direito. A autoridade do senhor, em seu territrio, no admitia concesses. Por isso, como bem assinalou Amilcar de Castro, o feudalismo representou a negao da personalidade do direito e nenhum vassalo poderia invocar direito estranho ao que vigorava no feudo a que pertencesse, pois, em homenagem a seu senhor, se sujeitava a seu direito. Registre-se tambm que a poltica do senhor feudal era a de desprezar todos os direitos, menos o seu, e de recusar proteo a quaisquer direitos adquiridos em feudo estranho.

Nessas circunstncias todos os costumes eram reais, no sentido de que s eram observados no prprio feudo. A pessoa tornara-se algo inerente possesso fundiria e era resguardada nesta condio. Os costumes e outras normas jurdicas eram ditados no tanto para os homens como para os territrios. Por exemplo, estabelecia-se o modo de gerir uma tutela ou sistema de sucesso hereditria de modo a que a coisa principal pudesse garantir, pro tempore, aps a morte do possuidor, a prestao necessria aos servios feudais, ao pagamento dos tributos etc... Isto se compreende pois poca dizia-se que a pessoa somente poderia ser bem amparada se mantida em bom estado a terra que a alimentava.

Mas o regime feudal, que acabou se estendendo por toda a Europa e tomando conta dos pases baixos, foi criando certos elementos de antagonismo a seus prprios objetivos. Assim que no manteve muita influncia ao norte da Itlia onde cidades ricas, prsperas e com um grande fluxo de comrcio, a ele no se adaptaram. E assim que, a partir do sculo XI, as cidades italianas mais importantes j tinham seus prprios governos e desenvolviam regimes jurdicos diversificados.

4. A ATIVIDADE COMERCIAL DAS COMUNAS ITALIANAS NOS SCULOS XII E XIII; OS GLOSADORES.

Na mesma poca, enquanto perdia densidade o sistema legal feudal, por circunstncias especiais, os juristas italianos entregavam-se ao reestudo do direito romano.

Quando a Itlia caiu em poder dos lombardos, encontrava-se em Pisa magnfico exemplar do Digesto ou Pandectas, cuidadosamente corrigido no ano 600; este precioso traslado, denominado Digesto Pisano, ficou preservado naquela cidade durante sculos, sepultado no esquecimento. Muito mais tarde foi levado para Florena e descoberto na segunda metade do sculo XI, fato que foi determinante na chamada renascena do direito romano.

Em Bolonha, no ano 1100, Irinerius, que aprendera direito em Constantinopla, foi o primeiro que se interessou pelo estudo das normas e descobertas do Direito Romano, construindo um aparato de glosas ou notas marginais de explicao ao texto da compilao romana. Nascia, assim, a escola dos glosadores, juristas que, nos sculos XII e XIII, faziam anotaes margem ou entre as linhas dos textos de direito romano componentes do Corpus Juris Civilis.

Martin Wolff4MARTIN WOLFF - Internationales Privatrecht, traduzido para o espanhol sob o ttulo Derecho Internacional Privado, por Jos Rovira y Emengol em 1936, p. 3214 comenta que os pequenos Estados-cidades da Itlia (Gnova, Pisa, Milo, Bolonha, Mdena, Florena..) tinham em parte estabelecido, h j algum tempo, seus statuta, na sua maioria provindo do antigo Direito consuetudinrio das cidades e dos comerciantes mas, tambm em parte, haviam introduzido direito novo. O trafico dos negcios de cidade a cidade e com o estrangeiro colocava, cada vez com maior intensidade, o problema da aplicao dos estatutos estrangeiros5WILSON DE SOUZA CAMPOS BATALHA em sua obra j citada, Tratado de Direito Internacional Privado, p. 314, diz que o conceito de estatuto, em 1215 correspondia ao da norma costumeira cotidiana, de domnio do homem vulgar - Statutum est arbitraria mundi norma quae a vulgari hominum consuetudine procedi 5.

De meados do sculo XII at o sculo XIV existiu na Itlia, com sede nas cidades de Perusa, Pdua e Pisa a escola dos ps-glosadores, ou comentaristas. Estes j no cuidavam apenas de explicar o texto romano mas de revelar direito novo.

5. AS ESCOLAS ESTATUTRIAS - SUA IMPORTNCIA COMO BERO DO DIPr - ESCOLA ESTATUTRIAS: ITALIANA, FRANCESA, HOLANDESA E ALEM.

Antes dos estudos das doutrinas dos estatutos, com as chamadas escolas estatutrias, discutvel ter existido algo que sugerisse a estrutura de um Direito internacional privado. Este direito, com mtodo e carter cientfico, nasceu em realidade na Itlia do sculo XIII. Como assinala Wilson de Souza Campos Batalha6 WILSON DE SOUZA CAMPOS BATALHA - Tratado de Direito Internacional Privado - I, 1977, p. 311 6 a caracterstica das teorias estatutrias consiste em que, ao invs de estudar a natureza das relaes e das situaes jurdicas, para investigar o direito aplicvel, os estatutrios procuravam estabelecer as notas de territorialidade ou personalidade dos estatutos, que eram definidos como pessoais, reais e mistos.

As escolas estatutrias que, a partir do sculo XIV at o sculo XVIII, apresentaram estudos a respeito, em especial, da apreciao de conflitos interespaciais de leis, so quatro: a) a italiana, do sculo XIV; b) a francesa, do sculo XVI; c) a holandesa, do sculo XVII; d) a alem, do sculo XVIII.

Se anteriormente no chega a ser notado qualquer intuito sistemtico de criao de mecanismos inerentes ao DIPr, no existem dvidas de que isto ocorreu na Itlia, no sculo XIII. So as escolas estatutrias, a comear pela italiana, do sculo XIV, que construram o arcabouo do DIPr, representando um marco importantssimo na fixao dos elementos componentes desse direito.

A ESCOLA ITALIANA ( SCULO XIV)

A escola estatutria italiana tem como principal representante Brtolus (ou Bartolo) de Sassoferrato. Nascido em 1313 e falecido em 1357 Bartolo teria sido o maior jurisconsulto da poca. Bartolo exps sua doutrina em comentrios a famosa glosa: Quod si bononiensis (feita provavelmente por Acursio a margem de chamada Lex Cunctus Populus7A tradio atribui a autor desconhecido, possivelmente Accursius, a glosa margem da constituio Cunctos Populos a glosa seguinte: Quod si Bononiensis Mutinae conveniatur no debet judicari secundum statuta Mutinae quibus non subest cum dicat: quos nostrae Clementiae regit imperium , ou seja, Se um habitante de Bolonha se encontra em Mdena, no deve ser julgado segundo os estatutos de Mdena, aos quais no est submetido, como exprime a frase: aqueles aos quais rege o imprio de nossa Clemncia. 7). A Lei Cunctus Populus, do prprio Imperador Justiniano, declarava se impor aos sditos do Imprio, isto , tinha uma aplicao oposta lex fori ou lei territorial, estabelecendo, assim, um dado comparativo entre legislaes quanto a situao do estrangeiro, o que j apresentava um trao caracterstico do DIPr. A analogia estabelecida na doutrina desenvolvida por Bartolo, com base na glosa feita por Acursio, se fazia com relao a legislao do Estado de Mdena, que no poderia obrigar a um Bolonhs, que estaria sujeito sua lei nacional.

Foram por esta escola estabelecidos os seguintes princpios, que j apresentam os aspectos contemporneos dos mecanismos de soluo de conflitos em DIPr:

a) uma diviso especial para adotar a lei da situao do Juzo (lex fori) quanto ao processo e a lei do lugar (locus regit actum) - onde o ato jurdico se teria constitudo - para a deciso (decisoria litis) e para a forma dos negcios jurdicos;

b) os estatutos foram divididos em pessoais (quod disponit circa personam - dispondo sobre as pessoas) e reais (quod disponit circa rem - dispondo sobre as coisas), fixando-se o princpio da territorialidade para o estatuto real e o da extraterritorialidade para o estatuto pessoal. Entre os estatutos pessoais fez-se a distino entre os permissivos e os proibitivos; entre os proibitivos distinguiu-se os favorveis e os odiosos. Os odiosos no poderiam ser invocados fora do territrio, ao passo que os favorveis teriam efeito extraterritorial;

c) a aplicao da lei do lugar (locus rei sitae) para reger a situao dos bens imveis (immobilia sequuntur lege loci - os imveis seguem a lei do lugar);

d) a aplicao da lei do lugar de constituio da obrigao ou celebrao do contrato (lex loci celebrationis) para validade dos contratos e seus efeitos e a do lugar de sua execuo (lex loci executionis) para os efeitos da inadimplncia ou atraso na sua execuo;

e) para a sucesso a lei do domiclio do de cujus (lex domicilii);

f) a lei do local em que tivesse sido cometido o delito (lex loci delicti commissi) para regncia da lei a aplicar-se aos mesmos.

A ESCOLA ESTATUTRIA FRANCESA ( SCULO XVI)

na Frana que vai surgir Charles Dumoulin (1500/1566) o ltimo e grande continuador e tambm renovador dos elementos da Escola Italiana.

Dumoulin pretendia separar a forma e o fundo dos atos e, dentro deste, as matrias regidas pela vontade das partes e as reguladas pela lei. At Dumoulin a doutrina mais aceita para a regulamentao das obrigaes contratuais levava em conta que ao contratar em local diverso de seu domiclio, a pessoa tacitamente se submetia, para efeitos do pacto, lei do lugar em que este fora celebrado. Dumoulin foi alm e especulava que se os contratantes se submetem a essa lei porque possuem a faculdade dessa opo, que poderia tambm atuar em favor de outra lei. Ocorreria, assim, que os contratantes poderiam pactuar a submisso a uma lei diversa do lugar da celebrao do contrato.

Foi ele que formulou, assim, o princpio da autonomia da vontade, estabelecendo uma distino quanto ao fundo dos contratos e ao regime de bens do casamento para as disposies que dependessem da vontade das partes ou que por estas pudessem ser alteradas. Se as partes nada pactuassem neste sentido seria necessrio investigar qual seria sua vontade tcita ou presumida, investigao que poderia resultar pela aplicao do princpio da lex loci contractus, ou ainda outro.

Bertrand DArgentr (1519/1590) foi outro fundador e legtimo representante da escola francesa. Influenciado pelo sistema jurdico feudal no qual prevalecia o princpio de que todos os costumes so reais, foi com base neste pressuposto que elaborou sua teoria da territorialidade do direito. DArgentr ps nfase absoluta no princpio territorialista, combatendo a escola italiana de Bartolo e sucessores.

Apresentou DArgentr, em substituio aos princpios da escola italiana, dois princpios: o primeiro, bsico, de que os costumes so absolutamente reais, territoriais, quando se trata de coisas ligadas ao solo, aos imveis, seja em matria de contrato, de heranas, de testamento, de quaisquer atos a eles relativo, pois vigora a respeito, e sempre, a lex rei sitae - e o segundo, relativo, de que os costumes so pessoais, extraterritoriais, se versam sobre o direito das pessoas ou dos mveis no fixados ao solo, pois ento se aplica a lei do domiclio, qual a pessoa fica permanentemente submetida. Esta doutrina no obteve sucesso imediato na Frana, onde a escola italiana perdurou na doutrina e na prtica, durante os sculos XVI e XVII. Encontra, porm, sucesso no sculo XVII nos pases baixos, Blgica, Holanda, Finlndia e Batvia, provncias ciosas de sua autonomia e da aplicao de seus direitos. E ressurge autenticamente em solo francs, neste sculo, com Louis Lucas e J. P. Niboyet, por volta de 1944.

A ESCOLA ESTATUTRIA HOLANDESA (ULRICH HBER) E A NOO DE COMITAS GENTIUM. SCULO XVII

A Holanda tinha idias de emancipar-se, da sendo bem-vinda a teoria territorialista de DArgentr, de fundo nacionalista. Paulus Voet (1619 - 1677), Johanes Voet (1647 - 1714) e Ulrich Hber (1636 - 1694) so as figuras principais do DIPr holands no sculo XVII. Eles comentaram as idias da escola estatutria francesa, principalmente a doutrina de DArgentr, evoluindo para um territorialismo ainda mais acentuado. Dada a extremada territorialidade dos estatutos na concepo da escola holandesa, a aplicao das leis extra territorium s poderia decorrer de critrio de natureza poltica (convenincia) caracterizador da comitas gentium (cortesia internacional).

Hber notabilizou-se por seu escrito De conflictum legum diversarum in diverses imperiis, em que enunciou trs princpios:

a) as leis de cada Estado imperam dentro de suas fronteiras e obrigam a todos os sditos deste Estado, mas no produzem efeitos alm desses limites;

b) os sditos de cada Estado so aqueles que se encontram em seu territrio;

c) os soberanos de cada Estado devem conduzir-se de modo a tornar possvel que as lei de cada pas, alm de serem aplicadas dentro de suas fronteiras, conservem sua fora e eficcia extra fronteiras, o que ocorre pela teoria da comitas gentium, cortesia internacional, que permite a aplicao extraterritorial das leis internas.

Eventualmente, a idia da absoluta territorialidade das leis mitigada pela comitas gentium iria reaparecer na escola anglo-americana (Story e Phillimore) mas ento a comitas passa a ser interpretada no como mera cortesia, mas como aplicao do direito estrangeiro, como que constituindo a satisfao de uma exigncia da prpria justia que se deseja alcanar na soluo do caso.

A ESCOLA ESTATUTRIA ALEM - SCULO XVIII

Os mais importantes integrantes da escola estatutria alem so Heinrich Cocceji e Johannes Hertius (ou Hert), nomes que influenciaram Savigny e Frankestein.

Hertius apresentou uma trilogia baseada na escola estatutria holandesa, do seguinte teor:

a) o estatuto pessoal se baseia no domiclio;

b) o estatuto real o da situao da coisa, no importa onde o ato for celebrado; e

c) o estatuto regulador da forma o do lugar da celebrao do ato, e no o do domiclio nem o da situao da coisa.

6. AS ESCOLAS MODERNAS; PANORAMA GERAL; ESCOLA ANGLO-AMERICANA (JOSEPH STORY); ESCOLA DO DOMICLIO (SAVIGNY); ESCOLA DA NACIONALIDADE (MANCINI)

Panorama Geral

Ao final do sculo XVIII manifestaram-se as tendncias objetivando codificao do Direito, para colocar ordem no conglomerado de costumes locais, estatutos e normas de Direito romano, mescladas com as interpretaes dos glosadores e outras fontes jurdicas, tal como comenta Wilson de Souza Campos Batalha8WILSON DE SOUZA CAMPOS BATALHA - Obra cit. p. 3368. Este movimento colocou um termo definitivo s diversas doutrinas estatutrias.

O sculo XIX abrigou, ento, as grandes codificaes civis, com o advento do Cdigo Civil francs (Cdigo Napoleo), em 1804, e o Cdigo Civil alemo (BGB), em 1896, que influenciaram uma quantidade enorme de cdigos que proliferaram em todo o mundo inclusive o brasileiro, que teria recebido uma maior influncia do segundo. Foi a Lei de Introduo ao Cdigo Civil alemo que, pela primeira vez, dedicou minuciosos dispositivos aos problemas decorrentes dos conflitos de leis. Paralelamente, houve uma ecloso de textos de DIPr inseridos nas demais codificaes, inclusive no Cdigo Civil brasileiro, editado em 1916 para entrar em vigor no ano seguinte.

Foi tambm no decorrer do sculo XIX que surgem no mundo trs doutrinas sobre a matria que se tornaram clssicas. So as chamadas teorias modernas do DIPr, cujos mentores so trs vultos de grande projeo jurdica: JOSEPH STORY, nos Estados Unidos (Boston) em torno de 1834; FRIEDRICH CARL F. SAVIGNY na Alemanha (Berlim) em 1849, e de PASQUALE S. MANCINI, na Itlia (Turim) em 1851.

JOSEPH STORY (Escola Anglo-Americana)

Este proeminente jurista norte americano, graduado pelo Harvard College, advogado e poltico, publicista, foi membro da Suprema Corte dos Estados Unidos e Professor de Direito da Universidade de Harvard, tendo sido um sistematizador, um dos primeiros comparatistas das Amricas, defensor e instituidor naquele pas federativo, da uniformidade legislativa.

Story viria a obter consagrao com a publicao, em 1834, do primeiro tratado sobre DIPr com o detalhado e longo ttulo de Commentaries on the Conflict of Laws, Foreign and Domestic, in regard to Contracts, Rights and Remedies, and especially in regard to Marriages, Divorces, Wills, Succesions and Judgements. Desde o seu aparecimento que o Conflict of Laws.. se transformou numa verdadeira bblia para a jurisprudncia e a doutrina, tanto nos EUA quanto na Inglaterra.

Entre outras questes Story referiu-se a fixao do domiclio no estrangeiro, dos casamentos, divrcios, e dos crimes que contm um elemento de estraneidade; as questes dos testamentos e das sucesses; das liberdades e dos contratos; do efeito da prescrio estrangeira, do processo estrangeiro e dos julgamentos estrangeiros. E tambm, de forma incidental, como analisa Jacob Dolinger9 (obra cit. p.120)9, a questo da natureza e da extenso do poder de jurisdio dos tribunais na administrao de justia aos estrangeiros e sobre o valor e o efeito a ser reconhecido s ordens dos tribunais estrangeiros.

Story, como antes dissemos, foi o primeiro a empregar a denominao Direito Internacional Privado (PIL - Private International Law), no aceitando a diviso da matria em estatutos reais, pessoais e mistos, como o faziam os autores europeus de sua poca. Estabeleceu ele regras sobre a lei a ser utilizada para cada setor do direito, dentre as quais podem ser relacionadas as seguintes:

(a) para o estado e a capacidade das pessoas fixou a regra geral do domiclio, excetuada a capacidade de contratar; para a qual adotava a lei do local d