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FACULDADES INTEGRADAS DO BRASIL UNIBRASIL ANGELO ANTONIO STROPARO LIVRO-REPORTAGEM SOBRE ANACLETO DE OLIVEIRA MOURA. OS CÃES CALAM E O DEMÔNIO PASSA: A JORNADA ASSASSINA DE ANACLETO VARGEM Curitiba 2013

LIVRO-REPORTAGEM SOBRE ANACLETO DE … · Aos meus quatro filhos: Rebeca Stroparo, João Lucas Stroparo, José Augusto Stroparo e Giordano Antonio Schimitz Gomes Stroparo – amo

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FACULDADES INTEGRADAS DO BRASIL – UNIBRASIL

ANGELO ANTONIO STROPARO

LIVRO-REPORTAGEM SOBRE ANACLETO DE OLIVEIRA

MOURA.

OS CÃES CALAM E O DEMÔNIO PASSA: A JORNADA

ASSASSINA DE ANACLETO VARGEM

Curitiba

2013

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ANGELO ANTONIO STROPARO

LIVRO-REPORTAGEM SOBRE ANACLETO DE OLIVEIRA.

OS CÃES CALAM E O DEMÔNIO PASSA: A JORNADA

ASSASSINA DE ANACLETO VARGEM

Projeto apresentado à banca examinadora do curso de Comunicação Social, como requisito para obtenção do grau de Bacharel em Jornalismo junto à escola de Comunicação Social das Faculdades Integradas do Brasil- UniBrasil.

Orientadora: Profª. Viviane Rodrigues

Curitiba

2013

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Agradecimentos

Agradeço à VIDA, por permitir-me experimentar a maravilha de

reconstruir uma história, cuja autoria e propriedade, são DELA. O meu nonno,

Frederico Stroparo(in memoriam), porque legou-me a história de Anacleto,

além do amor pelo contar “causos”. Aos meus quatro filhos: Rebeca Stroparo,

João Lucas Stroparo, José Augusto Stroparo e Giordano Antonio Schimitz

Gomes Stroparo – amo vocês e, se ando feliz por ai, isso é muito por conta da

existência de vocês! A Ricardo, Cláudia, Jorge e Guilherme. Amo a todos. Meu

sincero agradecimento à Viviane Rodrigues, minha orientadora, jornalista,

professora e, principalmente, ser humano, que muito auxiliou-me e ensinou-me

nos últimos seis meses. Aos professores, Jefferson Franco, Hugo Abati, Victor

Folquening(in memoriam), Paulo Camargo, Maura Martins, Valter Fernandes,

Felipe Harmata Marinho, Sandro Teixeira, Luiz Alberto Kuchenbecker Pena,

Elaine Javorski e todos os demais que me ajudaram nessa jornada de quatro

anos, até aqui, meus agradecimentos. E, finalmente, agradeço à minha

companheira e amiga, Magáli Genero, com quem compartilho todo meu amor.

Te amo, moça! Sem você, tudo se perderia pelo caminho.

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"Tenho me esforçado por não

rir das ações humanas, por

não deplorá-las nem odiá-las,

mas por entendê-las."

(Baruch Spinoza)

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RESUMO

Este trabalho tem como objetivo propor a possibilidade de reconstruir parte da história do assassino Anacleto Vargem, morto há mais cinquenta anos, por meio do jornalismo literário e subgêneros, dentre os quais, o New Journalism e o Gonzo são os principais; tendo como suporte midiático o livro-reportagem. Apesar da falta de registros documentais, o resgate dos muitos detalhes que também constituem o fato pode ser concretizado por meio do aparato jornalístico(entrevistas, checagem etc). E, consequentemente, demonstrar as ampliações do tema abordado na pesquisa, oferecendo, assim, massa de conteúdo expressiva aos leitores.

Palavras-chave: livro-reportagem, Gonzo e memória.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO............................................................................................. 7

1.1 MITO E REPRESENTAÇÃO SOCIAL NA PESQUISA E NO PRODUTO... 9

2 DELIMITAÇÃO DO TEMA E PROBLEMATIZAÇÃO................................. 12

2.1 O CASO....................................................................................................... 13

2.2 CONTEXTO HISTÓRICO............................................................................ 14

2.3 A HISTÓRIA VAI SE PERDER.................................................................... 17 2.3.1 O PAPEL DO JORNALISMO....................................................................... 17

2.3.2 O NEW JOURNALISM: ORIGEM, CARACTERÍSTICAS e DEFINIÇÃO.... 19 2.3.3 O GONZO JOURNALISM............................................................................ 23

2.3.4 O PAPEL DO JORNALISMO LITERÁRIO................................................... 25 2.3.5 O PAPEL DO LIVRO-REPORTAGEM........................................................ 26

2.4 JORNALISMO LITERÁRIO E A MEMÓRIA................................................ 28 2.5 O PROBLEMA............................................................................................. 29

3 OBJETIVOS................................................................................................. 30 3.1 OBJETIVOS ESPECÍFICOS........................................................................ 30

4 JUSTIFICATIVA........................................................................................... 32 4.1 POR QUE A HISTÓRIA DE ANACLETO, O NEW JOURNALISM E O

GONZO?......................................................................................................

33

4.2 LIVRO-REPORTAGEM................................................................................ 35

4.3 JORNALISMO LITERÁRIO.......................................................................... 36

5 REFERENCIAL TEÓRICO.......................................................................... 38

5.1 REPRESENTAÇÃO SOCIAL....................................................................... 38

5.2 ANACLETO, O OUTSIDER.......................................................................... 41 5.3 CONCEITO DE REPORTAGEM.................................................................. 42

5.4 TÉCNICAS DE ENTREVISTA...................................................................... 44 5.5 A HISTÓRIA ORAL...................................................................................... 46

6 METODOLOGIA DA PESQUISA................................................................ 49 6.1 PESQUISA BIBLIOGRÁFICA...................................................................... 49

6.2 PESQUISA DE CAMPO............................................................................... 50

7 DELINEAMENTO DO PRODUTO............................................................... 53

7.1 O PROJETO GRAFICO DE "O DEMONIO PASSA E OS CAES CALAM: A JORNADA ASSASSINA DE ANACLETO VARGEM"...............................

53

7.2 PERSONAGENS.......................................................................................... 57

7.3 FOCOS NARRATIVOS................................................................................ 57

7.4 PÚBLICO ALVO E VEICULAÇÃO............................................................... 57

7.5 RECURSOS MATERIAIS E ORÇAMENTO................................................. 58

8 CRONOGRAMA DE ATIVIDADES.............................................................. 59

9 CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................... 60

10 REFERÊNCIAS............................................................................................ 62

11 APÊNDICE................................................................................................... 64

11.1 ENTREVISTA DE JOÃO MAGATÃO........................................................... 64

11.2 ENTREVISTA DE LICINEO DE LARA......................................................... 77

11.3 ENTREVISTA DE LIDIA CAPELIN DE LARA.............................................. 89

11.4 ENTREVISTA DE JOSÉ STROPARO......................................................... 97

11.5 ENTREVISTA DE WALDOMIRO DE LARA................................................. 105

11.6 ENTREVISTA DE JOSÉ MARIA ORREDA.................................................. 111

11.7 FOTOS......................................................................................................... 120

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1. INTRODUÇÃO

A história de Anacleto de Oliveira Moura, vulgo Anacleto “Vargem”,

chegou até o conhecimento do pesquisador por meio do avô, há vintes anos.

Com o passar do tempo veio o aumento do conhecimento a respeito do tema,

pois, os crimes de Anacleto, sempre lembrados nas reuniões familiares,

despertavam grande interesse e curiosidade em todos que ouviam os relatos.

De modo que a ideia de contar tal história pareceu inevitável. Assim: no início

da década de 1950, em um distrito de Irati, Região Centro-Sul do Paraná,

Anacleto Vargem se envolve em uma briga em um rancho situado na colônia

onde vivia. No incidente, Vargem mata a facadas o opositor que, à exceção

deste ocorrido, jamais teve rixas com o executor. O assassino foge e, a partir

de então, passa a matar com frequência tornando-se amplamente conhecido

como um tipo1 de matador destemido.

Em função dos distritos e cidades onde os fatos se desenrolaram

estarem localizados geograficamente em regiões de difícil acesso2, a polícia e

os jornais, por exemplo, não deram cobertura satisfatória, quanto ao registro

desses acontecimentos. A própria localização temporal (meados do século

passado) também se constitui como fator dificultador à conservação da

memória histórica, posto que tanto técnicas de apuração quanto plataformas de

suporte, eram, ainda, bastante precárias à época dos assassinatos. Porém,

algumas pessoas jamais esqueceram completamente dos fatos: amigos,

conhecidos e colegas, tanto das vítimas, como de Anacleto, são exemplos de

portadores dos fragmentos de acontecimentos que, pela emoção demandada,

perpetraram a transmissão parcial das informações, em reminiscências, às

gerações futuras. São dessas observações que descende o tema desta

pesquisa e, consequentemente, o livro-reportagem: Os cães passam e o

demônio cala: a jornada assassina de Anacleto Vargem.

1Aqui, o pesquisador acrescenta que busca explorar a noção sobre o estereótipo personificado por Anacleto, ou seja, a

representação social atribuída a ele, segundo o ponto de vista, conceito e descrição de Serge Moscovici, dentro da obra “Representações Sociais”. Pois, segundo Moscovici(2011, p.216)”representar significa, a uma vez e ao mesmo tempo, trazer presentes as coisas ausentes e apresentar coisas de tal modo que satisfaçam as condições de uma coerência argumentativa, de uma racionalidade e da integridade normativa do grupo”. 2 O pesquisador vai discorrer sobre tal contexto e situação, mais adiante, na delimitação do tema(item 2).

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A escolha pela plataforma midiática(um livro-reportagem), técnicas,

estilo jornalístico(jornalismo literário), será discutida na delimitação do tema,

porém, de antemão, o pesquisador relaciona essas questões à melhor

capacidade quanto à ampliação da notícia que tais escolhas possibilitarão,

posto que o jornalismo cotidiano, segundo Lima(1998), “prende-se

demasiadamente aos fatos e à superficialidade nas apurações” (p.22). Assim,

Belo(2006), diz que “o livro-reportagem é um instrumento aperiódico de difusão

de informações[...]no qual se pode reunir a maior massa de informação

organizada e contextualizada sobre um assunto” (p.41). E são tais

características dessa plataforma – livro-reportagem – à qual se abarca o

máximo de elementos de uma história, que se justifica a escolha do autor.

Porque o caso pesquisado não se limita ao aprofundamento de um ou poucos

fatores a serem aprofundados - a história é um universo de possibilidades a se

observar e retratar. Regionalismos linguísticos, desdobramentos que tocam a

vida do próprio repórter etc.

O pesquisador não encontrou fontes documentais que satisfizessem a

demanda por informações, como necessita um livro-reportagem. Segundo

Orreda(2007), “ocorria uma produção amadora, das pautas à distribuição dos

jornais, tudo era precário. Inclusive, os impressos eram feitos de forma

artesanal, pois, a energia elétrica só foi abastecer o município de modo

satisfatório a partir de 1978” (p.31). A circulação não possuía frequência diária,

na maior parte dos casos. “Os jornais eram publicados apenas duas vezes na

semana e ficavam restritos quase que totalmente ao distrito Sede”, disse José

Maria Orreda, pessoalmente3, quando entrevistado pelo pesquisador. Como

editor de um pequeno jornal, Orreda deixava uma cópia por semana com o

respectivo inspetor de ensino de cada colônia, a fim de que o exemplar

circulasse pela comunidade.

Ou seja, existiam jornais, contudo, pouco lidos. O mundo das regiões

interioranas do Paraná, naquela época, ainda se baseava largamente na forma

mais seminal da comunicação de massa: a tradição oral. Ou seja, cada povo,

cada região, a seu modo, preservava as histórias diretamente e principalmente

na memória das pessoas. “As características narrativas de cada indivíduo se

3 Entrevista realizada em julho de 2013, na casa de José Maria Orreda, pelo pesquisador. O conteúdo está registrado

em gravação, no formato mp3 e sob a posse do pesquisador.

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somava a de outros narradores e, com o passar do tempo, se estabelecia uma

espécie de memória coletiva daquilo que a comunidade considerava como a

notícia”, disse Orreda4.

Assim, a entrevista, dentro dessa pesquisa, visando a composição da

reportagem que abastecerá o livro, se constitui como fonte principal à captação

de informações, tendo, assim, uma seção (dentro do item 5, seção 5.5)

dedicada a breves discussões. Porque, segundo Pena(2007), “é por meio dela

que melhor se consegue explorar detalhes de fatos reservados na memória dos

entrevistados” (pág. 3). Ou, como diz Lage(2008), se ”está diante de pessoas

reais, com representações variadas e peculiares dos acontecimentos, percebe

como essas pessoas[...]reagem, o quanto estão envolvidas[...]e o que cada

episódio significa no contexto”(p.27). Ou seja, sentir as maneiras como os

entrevistados falam a respeito do que sabem, torna-se elemento indispensável

à construção da tensão nas narrativas.

O caso dos assassinatos cometidos por Anacleto Vargem pareceu ao

pesquisador como oportunidade à mescla do jornalismo literário com outros

gêneros – o Gonzo Journalism, por exemplo, como opção narrativa. Ou seja,

não se pretende fazer uso de um estilo a rigor, como num exercício de perícia

técnica. Antes, pelo contrário, o pesquisador faz uso esporádico, intercalando

estilos e gêneros, a fim de melhor acomodar a história no texto jornalístico.

1.1 MITO E REPRESENTAÇÃO SOCIAL NA PESQUISA E NO PRODUTO

Demonstrar as etapas da reconstrução de fatos e trajetórias a serem

narrados sob as descrições das cenas, dos personagens e do contexto

histórico, por meio de um livro-reportagem, baseado, amplamente, na história

oral/entrevistas, ao pesquisador pareceu um enorme desafio. As noções a

respeito da mitologia e das representações sócias se relacionam ao trabalho

por conta, principalmente, de dois aspectos.

O primeiro é percebido quando consideramos que a figura de Anacleto

se sustenta exclusivamente na memória, posto que a pessoa já morreu. Assim,

tudo que é possível descobrir a respeito do personagem é feito por informações

4 Idem a nota “3”.

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afetadas pelas leituras que cada indivíduo faz da realidade, daquilo que é

representado em sua mentalidade.

E, o segundo é notado porque a forma pela qual o livro-reportagem será

narrado possui demonstra o uso da primeira pessoa, numa tentativa de

interpretar algumas informações para assim viabilizar a reportagem. Há algo de

caráter experimental nisto, posto que faz uso das características narrativas do

jornalismo literário, mas, também, do subgênero Gonzo Journalism. O autor, às

vezes, narra a história com o objetivo de revelar a própria versão para os fatos.

Nosso sentimento, frente a tal objetivo da pesquisa, assemelha-se,

possivelmente, ao de Roland Barthes, expresso já na introdução de sua obra

"Mitologias":

O ponto de partida desta reflexão era, as mais das vezes, um sentimento de impaciência frente ao “natural” com que a imprensa, a arte, o senso comum, mascaram continuamente uma realidade que, pelo fato de ser aquela em que vivemos, não deixa de ser por isso perfeitamente histórica: resumindo, sofria por ver a todo momento confundidas, nos relatos da nossa atualidade, Natureza e História, e queria recuperar na exposição decorativa do-que-é-óbvio, o abuso ideológico que, na minha opinião, nele se dissimula. (BARTHES, 2001, p. 7)

Porque sempre que assumimos algumas faces de determinada realidade

em caráter absoluto, tal obviedade, exposta por meio da própria opção, com o

passar do tempo será ainda mais irradiada por excessos ideológicos. O modo

como se descreve um personagem dentro de uma reportagem pode ser um

exemplo.

Para Vilas Boas(2002), “na imprensa, prefácios, críticas, resenhas e

notas costumam ater-se ao personagem biografado e como ele viveu, às

informações reveladoras, às vezes sensacionalistas, sobre o sujeito, as obras,

os familiares e amigos. Existe a crença de que o biógrafo sobrevive pelo que

revela e não pelo modo como revela”(p. 12). O pesquisador percebeu tal fato

nas construções sociais que as fontes reservavam na memória a respeito de

Anacleto Vargem, assim como na rigidez de algumas normas técnicas na

prática jornalística. E considera a própria tendência em se exceder. Porém,

também notou que a obviedade aceita como plena realidade a respeito do

invólucro que reserva personalidade, ações, índole e todas as demais

características de um assassino, por exemplo, seja, possivelmente, uma das

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forças que estabelece e consolida o preconceito, quanto ao mesmo

estereótipo, e afasta as pessoas da compreensão mais profunda do que é o ser

humano e as mais sombrias atitudes que adota.

2. DELIMITAÇÃO DO TEMA E PROBLEMATIZAÇÃO

O pesquisador entendeu que a plataforma do livro-reportagem aliada às

técnicas do jornalismo literário, entrevista e da história oral seria uma forma

satisfatória de reescrever parte da vida de Anacleto. Há certamente muito mais

a se revelar sobre e por via dessa história do que foi capaz a mídia até agora.

Mais adiante, trataremos da questão com mais afinco, porém, agora, o

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pesquisador gostaria de estender um pouco mais a linha de raciocínio que

iniciou na seção 1.1(Mito e representação social na pesquisa e no produto).

Na sociedade, por conta da forma representativa(as representações

sociais) que a informação se propaga, tudo que está abarcado nos discursos,

sejam midiáticos, religiosos ou políticos, tende a se banalizar, a ser

extremamente simplificado. Seria, de certo ponto de vista, o excesso ideológico

descrito por Barthes(2001) dissimulado na obviedade. Segundo Moscovici:

Constatamos a banalidade do fenômeno5 quando ele é visto e

observado como um efeito descritível e constatamos sua complexidade quando ele é uma questão de uma corrente ascendente que flui em direção ao que constitui o “núcleo semântico” de alguma concepção generalizada no corpo social e o estrutura em algum momento ao ponto de motivar histórias, ações, acontecimentos. Isto porque, uma vez mais, o conceito

6 é apenas

evocativo. Devemos extrair da massa considerável de índices de uma situação social e de sua temporalidade e esses índices tomam a forma de trações linguísticos, arquivos e, “pacotes” de discurso; examiná-los atentamente permitirá que alguma luz seja lançada sobre o que repetem – de um lado, sobre o que eles repetem permanentemente – o problema da redução semântica – e, por outro lado, sobre o que os motiva e os fundamenta – o problema daquelas “ideias” que de algum modo possuem o status de axiomas, ou princípios organizativos, em determinado momento histórico para certo tipo de objeto ou situação.(MOSCOVICI, 2011, p. 217)

Ou seja, nosso tema está relacionado a essa necessidade de examinar

mais a fundo um fato social, um acontecimento da vida cotidiana e então

reportá-lo, a fim de dispor à sociedade massa mais elaborada de informações.

Uma forma de, talvez, oferecer alguma resistência à redução semântica

promovida pelo jornalismo tradicional, por exemplo, conforme se descreve nas

citações usadas até aqui e que mais adiante daremos continuidade na

discussão, em outro item dessa pesquisa.

2.1 O CASO7

Depois de matar Alcebíades “Bidóca” Machado, Anacleto Vargem vagou

algum tempo por várias cidades8. Estima-se que, durante esse hiato de mais

5 Fenômeno relacionado à representação social. Nos parágrafos anteriores ao citado, Moscovici explica que as

representações promovem as interações que acabam por constituir as mentalidades e crenças que influenciam comportamentos. 6 Mais uma vez, Moscovi se refere à representação social, só que aqui, num sentido prático, demonstrativo.

7 As informações presentes nesta seção foram retiradas das decupagens das entrevistas que o pesquisador fez nos

últimos meses, nas viagens à Região Centro-Sul do Paraná. Todas as entrevistas cujas informações foram usadas neste trabalho estão anexadas ao item “Apêndice”.

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ou menos sete anos, o número de assassinatos cometidos por Vargem tenha

ultrapassado a marca de uma centena. Porém, em certa ocasião, retorna à

casa de um velho companheiro9 de bocha e de truco, em segredo. A esse

conhecido, o assassino conta um plano medonho: pretende invadir, numa

mesma noite, algumas residências daquela localidade, roubar a máxima

quantia em dinheiro que puder - e armamento -, matar todos e fugir para outro

estado.

A primeira residência que Vargem chega, no início da decisiva noite, é a

do próprio cunhado – um homem tido por todos como extremamente pacato10 –

sob o pretexto de tomar emprestado um revolver. No meio da conversa ele

revela o motivo real de sua visita e, já numa arremetida com um facão, parte

para cima das vítimas. O agressor é ferido por um de seus sobrinhos, enquanto

trava luta com o cunhado e, depois disso, recebe mais de quarenta facadas do

mesmo, segundo informações concedidas por Licineo de Lara11.

Anacleto Vargem não cumpriu pena pelo assassinato de Alcebíades

“Bidóca” Machado. Um dos homicídios praticados por Vargem, e que foi

descrito em uma crônica12 para o jornal “Tribuna do Município”, em Irati, pelo

jornalista e historiador José Maria Orreda, vitimou uma jovem mãe e a filha

ainda criança.

Anacleto deixou como lembrança às pessoas daquela comunidade o

medo. Segundo Licineo de Lara, Vargem sempre representou ameaça, mesmo

antes de matar a primeira vítima, Alcebíades “Bidóca” Machado, um ex-

delegado do Guamirim13. Tendo na família histórico de violência e

criminalidade, Anacleto não se limitou às matanças.

Houve uma ocasião, durante o autoexílio, devido ao assassinato desse

mesmo Bidóca, na qual Vargem corrompeu uma menor de idade, Aracy

Strobel. No entanto, após ser descoberto pela família da jovem, persuadiu a

8 Pitanga, Reserva, Teixeira Soares, Foz do Iguaçu, no Paraná. Concórdia em Santa Catarina e Aratiba, no Rio Grande

do Sul. 9O colono Jorge Magatão, descendente de uma linhagem de imigrantes italianos, cuja genealogia atesta parentesco

com o bisavô do autor desta pesquisa. 10

Relatos a respeito de Evandro Capelin de Lara, sobre caráter e comportamento, foram concedidos pela própria neta,

a Sra. Marcia Maria Capeline de Lara, pessoalmente, ao pesquisador. 11

Licineo de Lara, ex-agricultor, vizinho e amigo dos dois protagonistas da história. Atualmente, com 89 anos de idade,

de Lara, é aposentado e residente no município de Colombo, região metropolitana de Curitiba. 12

Tanto a crônica, como o registro das entrevistas de Licíneo de Lara, Waldomiro de Lara, Lídia Capelin de Lara e

João Magatão, filho de Jorge Magatão, estarão anexadas no item “Apêndice” deste trabalho. 13 O município de Irati, Região Centro-Sul do Paraná, é dividido em quatro distritos, a saber, Sede, Itapará, Gonçalves Júnior e Guamirim. Este último, é onde se localiza a colônia do Pirapó.

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mesma a declarar, junto às autoridades locais, que o autor dos abusos sexuais

teria sido não ele, Anacleto, mas, sim, o próprio pai da vítima, José Jacó

Strobel.

A denúncia foi feita de acordo com a vontade de Vargem e o pai da

adolescente, mesmo inocente, cumpriu pena de seis anos de reclusão. A maior

parte de seus assassinatos, no entanto, não foi praticado no Pirapó, colônia

localizada no município de Irati, Região Centro-Sul do Paraná. Pitanga e Foz

do Iguaçu, também no estado do Paraná, segundo relatos e depoimentos14,

teriam sido os lugares onde muitos dos assassinatos atribuídas a Vargem

ocorreram.

2.2 CONTEXTO HISTÓRICO

A pesquisa considera o contexto histórico, também: o assassino viveu

numa localidade cujo regime era muito próximo ao das sociedades rurais,

portanto, livre de policiamento, quase sem influência nenhuma de meios de

comunicação de massa, relativa facilidade à aquisição de moradia e alimentos,

além de desfrutar de laços afetivos extremamente comuns a todos.

Segundo o lavrador Elias Brandalize15, de 70 anos, que é morador na

colônia do Mato-Queimado em Irati, vizinha à do Pirapó, sempre foi possível se

viver na região com quase dinheiro nenhum. Brandalize afirma que mesmo os

moradores mais pobres não encontravam grande dificuldade à moradia,

vestimenta e alimentação, pois, ainda segundo o lavrador, as colônias até hoje

produzem muitos alimentos; e as paróquias auxiliam com eficiência os

carentes, quantos às suas necessidades diversas.

No entanto, escolas, naquela época, eram bastante precárias. Segundo

Aranha(1996), “a educação seria um meio de espiritualização do homem,

fazendo que esse, aja de forma objetiva na sociedade, tanto mais livre de sua

subjetividade”(p.141). Nestes termos, poderíamos mesmo dizer que tal indício,

quase ausência da educação, dentro do contexto histórico ao qual se

14

Informações oriundas das fontes, Licineo e Waldomiro de Lara, ambos ex-agricultores e ex-moradores da colônia do Pirapó, oferecidas em declarações nas entrevistas concedidas ao pesquisador em abril de 2013. 15

Declarações feitas pessoalmente ao pesquisador, quando em recente visita à localidade citada no texto. A entrevista

está anexada no item “Apêndice”.

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desenrolaram os fatos, é um apontamento ao aprofundamento da investigação

acerca dos personagens e do próprio Anacleto Vargem.

O termo apropriado que designava a escola era Grupo Escolar. Segundo

Clark(2003), “os grupos escolares surgiram como estratégia da elite

republicana paulista, sendo logo após implantados por outros estados do país.

Porém, ainda em 1920, vários grupos escolares continuaram sendo

inaugurados, tanto no interior paulista como na capital, e também escolas

isoladas, escolas preliminares, escolas provisórias, ambulantes”(p.4). A

exemplo de Irati, que teve seu Primeiro Grupo Escolar inaugurado em 1924.

Tal panorama, pode, sim, sugerir carência orientativa, dentro daquilo que

entendemos como parcela de contribuição da educação no processo

civilizatório. Não que isso, colocado dessa forma pelo autor, pretenda sugerir

algum tipo de justificativa às ações violentas promovidas por quem quer que

seja, antes, pelo contrário, é apenas um apontamento do contexto social ao

qual estavam inseridas aquelas pessoas e, dentre elas, a figura de Anacleto

Vargem.

Segundo Orreda(2007), “uma Associação de Pais e Mestres na Escola

do Pirapó, seria fundada apenas em 1965, sediada em sala de uma das duas

igrejas existentes na comunidade: São Benedito Grande e São Benedito

Pequeno” (p.1). Sendo que a primeira, serviu de sede até a década de 1980.

Conforme José Maria Orreda16, a polícia não possuía nenhum tipo de

meio de transporte naquela época (final da década de 1940). O historiador

relata que quando surgia necessidade do uso de força policial, o Comando da

PM solicitava, junto aos próprios membros da comunidade, o empréstimo de

tratores e, até mesmo, cavalos e carroças, para conduzir os policiais até a

localidade do conflito.

Em recente visita à localidade onde Anacleto foi morto por Evandro

Capelin de Lara, o próprio pesquisador verificou a precariedade das estradas

na região do Pirapó – na grande maioria, carreiros de barro, salpicados por

escassa quantidade de cascalho. O homem17 que ficou encarregado do

transporte do corpo de Vargem até o cemitério relatou ao pesquisador que a

16 Informações captadas pelo pesquisador junto ao historiador e jornalista José Maria Orreda, via telefone. 11 José Stroparo, lavrador de 74 anos que é residente no Pirapó, o qual também foi lugar de nascimento e vivência, até o presente momento.

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polícia não veio ver o ocorrido. Ao invés disso, um chefe de quarteirão18 colheu

algumas declarações e liberou o corpo para o sepultamente – que, aliás,

sequer foi depositado em um caixão, sendo enterrado diretamente na cova,

embrulhado pela capa que costumava trajar.

Outra particularidade daquele local era a cultura belicista. Todos os

homens, em geral, portavam armas e andavam ostentando as mesmas,

publicamente. Licinio de Lara, em dada ocasião, presenciou a cena na qual um

famoso bodegueiro do Pirapó, chamado Amandio Vaz de Lima, ensinava seus

dois filhos menores como se manusear um facão, num combate. De Lara,

temeroso quanto ao destino daquelas crianças, tentou aconselhar o

comerciante a não estimular tal prática - ao que fora severamente repreendido

por Lima, sob a afirmação que aquela era a conduta adequada para “homens

de verdade”. Anos mais tarde, quando aqueles garotos se tornaram adultos,

ambos foram assassinados em circunstâncias violentas – um numa briga de

bar por motivo torpe e outro numa emboscada, possivelmente por questões de

posse indevida de alguma propriedade – nos dois casos, sob o uso de

armamento de fogo.

2.3 A HISTÓRIA VAI SE PERDER

Desde que decidiu qual seria o tema de seu livro-reportagem, o

pesquisador já havia notado a falta de registros documentais, físicos ou

virtuais, acerca dos homicídios relacionados a Anacleto Vargem. Como foi

demonstrado neste trabalho, devido à baixa produção de conteúdos midiáticos

na região à qual Vargem viveu sua história, o registro documental ficou

severamente comprometido. Já durante o pré-projeto, o autor verificou19 a

inexistência de conteúdos, aqui, em Curitiba, na Biblioteca Pública do Paraná -

única fonte usada naquela fase do trabalho. Nos meios digitais midiáticos,

tampouco fora encontrado algum registro sobre Vargem.

18 É um tipo de autoridade policial que não possui, necessariamente, vínculos com instituições tais como a Polícia Militar e/ou Civil. No entanto, desempenha funções coercitivas e de vigilância, junto à população de um determinado, por assim dizer, “quarteirão”. Numa cadeia hierárquica, o chefe de quarteirão é superior ao inspetor de quarteirão e subordinado ao ministro da justiça, ao juiz de paz e ao chefe de polícia. Normalmente, é um membro da própria comunidade, tido como idôneo e capaz de excercer funções moderadoras, junto à comunidade. Anacleto Vargem, antes de se tornar assassino, foi Inspetor de quarteirão, no mesmo Pirapó, onde se iniciaram os crimes(Segundo informação concedida por Licineo de Lara, cuja entrevista está anexada ao item “Apêndice”). 19

Mais detalhes no item 6, metodologia da pesquisa.

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Sendo assim, se delineou, já de início, a necessidade de um resgate

histórico amplamente apoiado na História Oral, pois, segundo Rouchou(2003),

“recorre-se à metodologia da História Oral para ouvir as narrativas de vida dos

entrevistados. Ouvir e conhecer as vivências, suas lutas e significados”(p.1).

Imediatamente a essa constatação, veio a identificação dessa inevitalibidade: a

história vai se perder. Em decorrência da morte das testemunhas, obviamente.

Afinal, à medida que o tempo passa, a memória vai se apagando e se

perdendo (a maioria das fontes trata-se de homens e mulheres cuja idade é já

bastante avançada).

2.3.1 O PAPEL DO JORNALISMO

Basicamente, o jornalismo, cumpre a função social de levar informação

acerca dos acontecimentos cotidianos, tanto regionais, quanto mundiais, às

pessoas. De acordo com Lima(1998), “seu papel principal é relatar os

acontecimentos, de maneira que as pessoas tenham conhecimento do que

ocorre nos diversos campos da realidade social e da existência humana,

orientando-se assim em relação ao fluxo dinâmico da nossa complexa era”

(p.9). O jornalismo tradicional apoia a produção dos conteúdos que veicula

essencialmente no factual, na realidade concreta - a fim de reproduzir esses

mesmos fatos reais e concretos; e transmitir, por meio de múltiplas plataformas

midiáticas, as mensagens no seio da sociedade. Informar as pessoas, por

assim dizer, com periodicidade regular, o que acontece no mundo, é, por

princípio, papel do jornalismo.

Recortes da atualidade, portanto, se constituem no objeto de busca do

jornalismo, como principal fomento à produção dos conteúdos noticiosos. De

acordo com Lima (1998), “é assim que posso, enquanto leitor, acompanhar as

dramáticas e aceleradas transformações políticas e econômicas do mundo

atual. Mais prosaicamente, é também pelos veículos [...] do jornalismo que sou

informado da estreia, nos cinemas da cidade, do filme ganhador do Oscar”

(p.9). Tais fragmentos da atualidade, às lentes do jornalismo, demandam, em

tese, caracteríscas imprescindivelmente relacionadas com o interesse público.

De outro lado, o público, se encontra impossibilitado em promover uma

seleção, rigorosa ou não, que seja, dos acontecimentos diários de seu

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interesse. Para Belo(2006), “[...] esse trabalho de garimpagem de informações

(para o público) é completamente inviável. O papel do jornalismo é promover

essa seleção. Impedir que as pessoas percam tempo procurando por assuntos

interessantes” (p.38). Cabe, então, ao jornalismo, tal tarefa: garimpar

informações.

Dentro do panorama mostrado, o papel do jornalismo vai sendo

delineado pela função de informar, mas, também, pela de orientar o público.

Permitindo, assim, que esse público tome posição ou assuma uma atitude em

relação aos acontecimentos. Naturalmente, essa função social do jornalismo é

muito mais complexa do que a apresentada nessa seção de nossa pesquisa.

As matizes são tão múltiplas e cheias de nuances quanto o próprio tecido

social, o qual observa e representa, é. Vale ainda comentar que, se a natureza

da atividade jornalística, quanto às suas principais e mais básicas

características, informa e orienta, não obstante, inexoravelmente, exerce

influência.

O jornalismo não apenas reproduz os acontecimentos, registrando-os, disseminando-os para a população. Na verdade, essa ação realiza-se carregada de uma intenção, de uma complexa rede de fatores que condicionam a maneira como a notícia ou a reportagem 'enxerga' o mundo. O repórter que sai à rua para cobrir um acontecimento está intrinsecamente condicionado a 'ver' aquela realidade de acordo com seus valores culturais, com sua formação escolar, com a mentalidade básica vigente em sua época ou em seu grupo racial, até mesmo de acordo com sua herança genética. (LIMA,1998, p. 11)

O pesquisador percebe, nesse ponto, uma referência importante; porque

estabelece um diálogo entre autores de áreas distintas.(ver item 5, seção

"representações sociais"). Para Moscovici, as representações sociais

convencionalizam os objetos, pessoas ou acontecimentos que encontram.

Lima(autor da citação), por sua vez, diz que o repórter que sai à rua para ver

um acontecimento, o fará sob as "lentes" de sua própria cultura e recriará tais

fatos de acordo com representações sociais constituintes dessa mesma própria

cultura.

Destacamos aqui, ainda baseados na citação, essa característica

mediadora do jornalismo junto à sociedade nos debates públicos. Tal ação fica

evidente e perpetra em dada medida estereótipos e representações sociais na

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memória das pessoas e na coletividade. Assim, o papel do jornalismo também

se relaciona à construção social da realidade.

2.3.2 O NEW JOURNALISM: ORIGEM, CARACTERÍSTICAS e DEFINIÇÃO

O New Journalism surgiu nos Estados Unidos, na década de 1960. Não

há uma obra que sirva como um marco, estabelecendo datas e decretando um

criador. No entanto, assim como Balzac, Victor Hugo e Stendhal, segundo

Pena(2007) “podem ser considerados como precursores do jornalismo literário,

se classificarmos como tal um gênero que se caracteriza pela publicação de

literatura nas páginas de jornais” (p.6), Tom Wolfe, Truman Capote e Norman

Mailer podem ser considerados “pais” do New Journalism, por fundirem

literatura ao jornalismo e publicarem o resultado, também, em páginas de

livros.

O contexto20 no qual surgiu o subgênero do jornalismo literário em

questão estava impregnado pela essência da revolução. Andy Warhol chocava

no mundo das artes subvertendo latas de sopa em pop art. Houve o festival de

Woodstock, no qual Jimi Hendrix, diante de uma plateia alucinada pelo

consumo de LSD, incendiou sua guitarra. Hippies21 contrários à guerra

tomavam as ruas vestindo camisas com os dizeres “Make Love, not war22”. O

American Way of Life23, era questionado por revoluções sexuais, artísticas e

20 Fonte: http://hunterthompson.wordpress.com/2009/06/13/1-o-new-journalism/ 21

O movimento hippie surgiu nos Estados Unidos, no ano de 1966. Tinha maior concentração de adeptos em São Francisco, Califórnia. Na maioria estudantes de classe média, alguns de família abastada, entre 17 e 25 anos, contestadores dos valores que os pais acreditavam. A origem do nome hippie não é exata, pode ser derivada de hip (quadril), em referência às blusas que usavam amarradas à cintura. Outra origem seria a palavra happy, que significa feliz. Os hippies tinham uma filosofia orientada por mestres espirituais, cultuavam a natureza, viviam em comunidade e apreciavam a utilização de drogas como LSD, maconha e mescalina. Eram contra a propriedade privada, viajavam em trailers ou viviam em conjunto, em comunidades. Pregavam a inexistência de nações ou fronteiras separando os países. Para eles, o mundo seria de todos e cada um deveria buscar sua própria paz espiritual. Contrários à religião cristã, acreditavam que o paraíso deveria ser encontrado durante a vida, daí, o lema adotado, “Paradise Now” (Paraíso agora). Eram contra punições e a favor da busca pelo prazer, fosse pela espiritualidade ou pelas drogas. Outro de seus lemas mais conhecidos era “Peace and Love” (Paz e Amor), um dos mais difundidos da cultura hippie em todo o mundo. Entre os gurus da comunidade hippie naquela época, o de maior destaque foi Timothy Leary, conhecido como o guru do LSD. Leary era professor da Universidade de Harvard, mas foi proibido de lecionar por incentivar os alunos a fazerem experiências com a droga. Por outro lado, uma parte do próprio movimento hippie era contra a utilização de alucinógenos na busca pela paz espiritual, que deveria ser alcançada de outras formas.(Fonte: http://www.infoescola.com/cultura/hippies/) 22 Numa tradução livre, “faça amor, não faça guerra”. 23

Segundo definição do Cambridge Dictionary, Sonho Americano é a crença de que qualquer cidadão americano tem a chance de ser bem-sucedido, rico e feliz, se trabalhar duro. A expressão se tornou popular quando, em 1867, Horatio Alger lançou o livro “Ragged Dick”, que contava a história de um órfão trabalhador que poupou seu dinheiro e acabou tornando-se rico. Desde então, acredita-se que através da honestidade, determinação e trabalho, o Sonho Americano está disponível a qualquer um que o desejasse.(Fonte: http://hunterthompson.wordpress.com/2009/06/13/1-o-new-journalism/)

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políticas. Em meio a tal espírito revolucionário e livre, Tom Wolfe, no ensaio

intitulado The New Journalism escreveu:

Duvido que muitos dos que irei citar neste trabalho tenham se aproximado do jornalismo com a menor intenção de criar um novo jornalismo, um jornalismo melhor, ou uma variedade ligeiramente evoluída. Sei que jamais sonharam que nada do que escrevessem para jornais e revistas fosse causar tal estrago no mundo literário... provocar pânico, roubar da novela o trono de maior dos gêneros literários, dotar a literatura norte-americana de sua primeira orientação nova em meio século... no entanto, foi isso que aconteceu. (Wolfe, 2005, p.9)

Ou seja, o New Journalism surge do questionamento da ordem e da

ausência de compromisso com normas vigentes, mas, também, segundo

Czarnobai(2003), “nasce para, de certa forma, satisfazer a necessidade que

muitos jornalistas possuem: o sonho de escrever um grande romance”(p.6).

Ou, conforme apostava Wolfe(2005)"não há muito tempo, a metade das

pessoas que iam trabalhar na imprensa o faziam na crença de que o seu

destino real era o de ser romancistas"(p.16). Por que Wolfe e outros jornalistas

da época viam no romance uma espécie de status de superioridade ao

jornalismo, considerado vulgar24 – enquanto literatura.

A citação de Tom Wolfe expressa o espírito que moveu aqueles

jornalistas, cujas características comuns, visíveis nas publicações jornalísticas,

provocavam o novo estilo de produzir reportagens. A nova maneira, ou, novo

jornalismo, penetrou diversas revistas americanas de prestígio, tais como

Esquire e Time. Além de jornais como o Herald Tribune25. Reportagens longas

cujos textos, leves, soavam como histórias simples. Continham diálogos e

reflexões, características que não se ajustavam aos jornais tradicionais da

época.

A parecença das narrativas dos fatos com uma espécie de conto ou

romance mesmo, fazia com que muitos tivessem dificuldade em acreditar na

veracidade dos fatos. Segundo Wolfe(2005), “a reportagem realmente estilosa

era algo com que ninguém sabia lidar, uma vez que ninguém costumava

pensar que a reportagem tinha uma dimensão estética”(p. 22). Tais

características do novo estilo, inicialmente, e, mesmo hoje, geram muita

24 O emprego em uma redação era, para muitos, uma cena passageira, que os levaria um dia a escrever um grande sucesso literário. (Fonte: http://hunterthompson.wordpress.com/2009/06/13/1-o-new-journalism/) 25

Fonte: http://hunterthompson.wordpress.com/2009/06/13/1-o-new-journalism/

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polêmica, dada a controvérsia. ”Esse novo jornalismo, como passou a ser

chamado por alguns críticos a partir de 1966, nunca teve aceitação unânime no

jornalismo, muito menos na literatura” (LIMA, 2009, p.196) Afinal, alguns

repórteres começavam a se relacionar com a produção da reportagem de

forma nunca antes pensada, talvez.

Em determinada ocasião, o Daily News mandou Mok e um fotógrafo cobrirem uma história sobre um homem extremamente obeso que pretendia perder peso isolando-se em um barco a vela ancorado no meio de Long Island South mas a lancha que alugaram para chegar até lá quebrou antes de chegar ao destino. Era inverno mas Mok jogou-se na água e nadou cerca de um quilômetro e meio até o barco a vela para conseguir sua reportagem, que foi publicada com fotos do próprio Mok nadando.(CZARNOBAI, 2003, p.8)

O efeito de todo esse experimentalismo e ousadia, segundo (Wolfe,

2005) culminou em "um novo e curioso conceito, vivo o bastante para inflamar

os egos, havia decidido invadir os diminutos confins da esfera profissional da

reportagem. Esta descoberta [...] consistiria em tornar possível um jornalismo

que fosse igual a um romance" (p.18). Assim, provocador e desafiador, não

apenas ao jornalismo tradicional e estabelecido, mas, aos próprios jornalistas e

à sociedade, surgiu o New Journalism.

Mas o que caracteriza o New Journalism? O que o torna diferente das

produções jornalísticas baseadas na estilística do jornalismo literário, praticado

por Ernest Hemingway, Joseph Mitchell e Lilian Ross26? As escolas de

comunicação ensinam que o jornalismo literário foca pessoas, dando vida aos

acontecimentos. O narrador, através do ponto de vista pessoal, promove a

individualização da história no texto, contudo, sem deixar a veracidade do fato

de lado.

De acordo com Sato(2005), “o caráter ficcional é uma das marcas

distintivas mais importantes da literatura; a fidelidade factual, do jornalismo” (p.

79). E, ainda em Sato(2005), “das narrativas jornalísticas espera-se, afinal, que

sejam factuais, de sua linguagem, que seja contida” (p. 81). Lima(2009), na

contramão do que disse a educadora Nanimi Sato, explica que ”Tom Wolfe

trouxe para o jornalismo a técnica do fluxo de consciência, enquanto Norman

Mailler criou a técnica do ponto de vista autobiográfico em terceira pessoa.

26

Fonte: http://hunterthompson.wordpress.com/2009/06/13/1-o-new-journalism/

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Assim, o New Journalism caracteriza-se como uma versão própria e

renovadora do jornalismo literário”(p.199). Contudo, existem outros elementos

que melhor caracterizam o New Journalism. Construção cena a cena,

detalhamento do status de vida e o diálogo; além do já comentado ponto de

vista da terceira pessoa, constituem as quatro principais e imprescindíveis

características do referido subgênero.

O básico era a construção cena a cena, contando a história cena a cena e recorrendo tão pouco quanto possível à narração puramente histórica. Daí as extraordinárias proezas de reportagem que os novos jornalistas às vezes realizavam: podiam testemunhar efetivamente as cenas nas vidas das outras pessoas à medida que aconteciam – e registrar o diálogo por completo, que era o recurso número dois. Os redatores de revista, assim como os primeiros romancistas, aprenderam por tentativa e erro algo que os estudos acadêmicos demonstram: que o diálogo realista envolve o leitor mais completamente do que qualquer outro instrumento. Também situa e define o personagem mais rápida e efetivamente do que qualquer outro recurso(Dickens tem uma maneira de fixar o personagem na sua mente de tal forma que você tem a sensação de que ele descreveu cada polegada de sua aparência – mas ai você volta e descobre que ele, de fato, cuidou da descrição física em duas ou três frases; o resto ele conseguira com o diálogo). Os jornalistas estavam trabalhando com o diálogo a todo vapor, revelando um estilo completo no mesmo instante em que os romancistas retrocediam, usavam o diálogo de formas mais e mais enigmáticas, excêntricas e abstratas.(WOLFE apud LIMA, 2009, p197, 198)

O New Journalism, portanto, se define como uma espécie de

instrumento eficaz – surgido espontaneamente – à sofisticação da expressão

jornalística e elevação do potencial de captação da realidade. Ou, segundo

Lima(2009), “a chance que o jornalismo poderia ter para se igualar, em

qualidade narrativa, à literatura, seria aperfeiçoando meios sem porém jamais

perder sua especificidade”(p.191). E, de acordo com o que lemos em obras

como “Radical Chic e o Novo Jornalismo”, “À sangue frio” e “Fama e

Anonimato”, foi o New Journalism quem delineou esse caminho, rumo à

qualidade de excelência narrativa no jornalismo.

2.3.3 O GONZO JOURNALISM

A transposição da barreira que separa o jornalismo da ficção, ou seja, o

compromisso com a verdade. Essa foi a proposta do jornalista free-lancer

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Hunter Stockton Thompson, em meados da década de 196027, nos Estados

Unidos. Em 1966, por meio do livro Hell’s Angels: The Strange and Terrible

Saga of the Outlaw Motorcycle Gangs28 – reeditado mais de 35 vezes –,

Thompson inaugurava o subgênero jornalístico que ficou conhecido por Gonzo

Journalism.

Segundo Czarnobai(2003), o Gonzo é ”também chamado de jornalismo

fora-da-lei, jornalismo alternativo e cubismo literário”(p.26). O gênero, ainda em

Czarnobai(2003), “baseia-se fortemente na desobediência e desrespeito aos

padrões e normas estabelecidas, além da insistência em quatro grandes

temas: sexo, drogas, esporte e política”(p.26). É bastante comum se fazer

ligações referentes às origens e postulados do gênero à vida do próprio

Thompson.

Nascido em Louisiville, Kentucky, Estados Unidos, aos 18 de julho de

1939, quando criança, segundo Czarnobai(2003), Thompson, ”além de ser

conhecido na vizinhança pelo hábito de atirar pedras e disparar armas de

pressão, [...] ele e seus amigos reproduziam batalhas da Guerra Civil norte-

americana”(p.27) A presença de drogas, transgressões e violência seria

frequente na vida do jornalista. O primeiro registro de um ato de Thompson

contra a lei ocorreu na infância, aos 10 anos.

Ele e um grupo de garotos vandalizaram um banheiro masculino do Parque Cherokee, atirando latas, espalhando lixo e pichando as paredes. O grupo foi pego pela polícia e levado à delegacia, onde uma ocorrência chegou a ser preenchida. (GIANNETTI apud CZARNOBAI, 2003, p.27)

Por conta das características de Thompson, descritas até aqui, fica

evidente os problemas que o jornalista enfrentaria dentro de uma redação

tradicional na década de 1960. Segundo Czarnobai(2003), Thompson “queria

escrever ficção mas via-se obrigado a buscar refúgio na sobriedade do

jornalismo enquanto não alcançasse algum êxito literário”(p.29). Em 1965 a

fama da gangue de motoqueiros Hell Angel’s estava bastante alastrada.

27

Fonte: http://hunterthompson.wordpress.com/2009/06/13/2-hunter-s-thompson-e-o-jornalismo-gonzo/ 28

No Brasil, o título foi simplificado para “Hell’s Angels: Medo e Delírio sobre duas rodas”.

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Thompson foi convidado a escrever uma reportagem sobre os Angel’s para a

revista Nation.(CZARNOBAI, 2003).

O surgimento do New Journalism veio renovar as esperanças de todos os aspirantes à romancistas - com Thompson não foi diferente. Utilizando técnicas de imersão semelhantes às de Dickens descritas anteriormente neste trabalho, ele decidiu viver durante dezoito meses entre os membros da gangue de motociclistas Hell's Angels para escrever um artigo publicado em 1965, na revista Nation. (CZARNOBAI, 2003, p.29)

Na busca pelo contato próximo com o objeto a ser reportado, Thompson

se envolveu com drogas e, depois do tempo que passou junto aos Hell Angel’s,

se tornou usuário. Não buscou redimir a gangue junto à sociedade, antes,

revelando que, de fato, os Angel’s eram foras-da-lei, expôs a razão da

marginalidade. Contudo, o texto resultante da experiência vivida com os

motoqueiros não seria ainda considerada Gonzo.(CZARNOBAI, 2003) Apenas

em 1971, depois da publicação de Fear and Loathing in Las Vegas: A Savage

Journey to the Heart of the American Dream29, é que o Gonzo Journalism se

popularizou. Aliás, os dois30 célebres textos, citados nesta seção, aos quais

muito se atribui o termo “Gonzo” como subgênero, não foram, pelo próprio

Thompson, considerados como tais. Para o criador da modalidade jornalística a

escrita Gonzo está relacionado ao modo descontrolado e livre de se expressar.

(CZARNOBAI, 2003)

Gonzo Journalism é um formato extremamente peculiar de se fazer uma reportagem, desde a captação dos dados até a sua redação. Assim como o New Journalism, o Gonzo Journalism é um movimento que carece de manifestos ou regras. Desta forma, existem várias definições para o estilo de reportagem criado e desenvolvido por Hunter S. Thompson a partir do seu artigo sobre o Kentucky Derby para a Scanlan's Monthly. O próprio Thompson tem mais de uma definição para Gonzo Journalism. (CZARNOBAI, 2003, p.34)

No entanto, segundo Czarnobai(apud, GIANNETTI, 2002), “Thompson

acredita que tanto a ficção quanto o jornalismo são categorias artificiais e que

as duas, quando feitas da melhor forma possível, são caminhos diferentes para

um mesmo fim: informar alguém sobre alguma coisa(p.34). Cabe ao

jornalista/escritor, então, que intente se aventurar pelo subgênero, a tarefa de

29

No Brasil foi lançado com o título “Medo e delírio em Las Vegas” 30

“Medo e delírio em Las Vegas” e “Hell’s Angels: Medo e Delírio sobre duas rodas”.

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conferir verossimilhança às narrativas que construir, baseado nas experiências

que viver.

2.3.4 O PAPEL DO JORNALISMO LITERÁRIO

Segundo Lima(2009), “de todas as formas de comunicação jornalística, a

reportagem, especialmente em livro, é a que mais se apropria do fazer

literário”(p.40). Obviamente que a escrita, lugar comum para ambas as

práticas, quer jornalística, quer literária, já denota essa apropriação. Como

trataremos da questão da amplitude da notícia na próxima seção, agora,

focaremos na principal função do jornalismo literário: uma ferramenta para

reconstrução da realidade, cuja especialidade é atributo irrefutável da literatura.

Essa modalidade jornalística vai conferir aos textos contornos mais

criativos. Cria-se, portanto, possibilidades à surpresa do leitor. O fato continua

importante, embora possa ser abordado de forma menos objetiva e simplista, e

é dado ênfase aos detalhes – o que resulta numa construção de personagens,

cuja complexidade, fica exposta.

O jornalismo literário, de acordo com Pinto(2009), “como técnica

construtiva de uma realidade abordada, fixa-se sobre quatro pilares

fundamentais, a saber:

- Construção do texto cena a cena, dentro de uma perspectiva narrativa o

menos histórica possível, sempre fazendo o uso de diálogos, como nos

romances e contos;

- Construção de personagens tridimensionais, complexos e com uma história

própria, com passado e presente;

- Uso de mais de um ponto de vista narrativo, apresentando, por vezes, cada

cena da perspectiva de um personagem distinto. Isso se torna possível por

meio de entrevistas mais íntimas e pessoais, detalhadas;

- O quarto recurso, talvez o mais sutil e difícil de ser compreendido, é o registro

esmiuçado de gestos, hábitos, maneiras, costumes, estilos de mobília, roupas,

decoração, comportamentos e outros aspectos tanto dos personagens quanto

do espaço geográfico (físico, social, econômico) onde estão inseridos. Isso se

torna possível por meio de observação atenta e entrevistas extensivas”(p.132).

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2.3.5 O PAPEL DO LIVRO-REPORTAGEM

Estender, ampliar o alcance da função informativa e orientadora do

jornalismo cotidiano. Esse seria, basicamente, o papel do livro-reportagem na

sociedade. Segundo Lima(1998), "a imprensa regular deixa muitos vazios

encobertos, que podem ser e são desvendados pela reportagem na forma de

livro". Mas é ainda mais que isso, "não fica limitado aos fatos isolados do

cotidiano que geram as notícias dos outros veículos jornalísticos"(p.12). O livro-

reportagem contribui para esse entendimento mais próprio e ampliado acerca

do nosso tempo porque, quase sempre, amplia a notícia, buscando os

desdobramentos e a complexidade dos conflitos.

Para produzir tal efeito, entretanto, será imprescindível ao livro-

reportagem o uso de toda gama de recursos jornalísticos - e, que esses

mesmos recursos, sejam aplicados ao máximo de suas propriedades e

possibilidades. Quando a limitação recursiva se mostrar, extravasar às novas

fontes será uma necessidade fundamental. Para Pena(2007), “tem a ver com

potencializar os recursos do jornalismo, ultrapassar os limites dos

acontecimentos cotidianos, proporcionar visões amplas da realidade, exercer

plenamente a cidadania, romper as correntes burocráticas do lide31, evitar os

definidores primários32 e, principalmente, garantir perenidade e profundidade

aos relatos”(p.7). O que, naturalmente, não demonstra a pretensão de esvaziar

o tema e assumir a postura de domínio sobre alguma prática, mas, sim,

problematizar um pouco mais sobre o tema e indicar um caminho.

Para começo de conversa, esse veículo jornalístico, por ser um trabalho de autor, produzido individualmente ou em equipe, ganha uma liberdade de gestação e confecção inexistente na grande imprensa, aquela dos grandes meios de comunicação, voltada para vastas audiências. O primeiro grande vôo é o rompimento com dois carrascos conceituais nas redações convencionais: a atualidade e a periodicidade. (LIMA, 1998, p. 18)

E, ainda:

A prisão do jornalismo comum em torno da atualidade o impede de buscar raízes, um pouco mais distantes no tempo, que explicam melhor as origens dos acontecimentos, bem como as motivações dos atores envolvidos. Em lugar da atualidade, o jornalismo de profundidade deve buscar ler a contemporaneidade, um conceito

31

Fórmula de sucesso e famosa que, objetiva, prega a necessidade de o texto jornalístico responder às principais perguntas da reportagem ainda no primeiro parágrafo. 32

Aqueles entrevistados que sempre falam para os jornais, como autoridades e especialistas famosos.

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muito mais elástico do tempo presente, que transcende o meramente atual para focalizar com grande pertinência as implicações, hoje, de eventos que não se deram apenas ontem, mas sim, há anos, décadas, talvez. Isso porque a contemporaneidade abrange muito mais do que meros fatos, tendências que se formam ao longo do tempo nas mais diversas esferas da vida social, muitas vezes combinando-se e se relacionando nesse desenrolar. É esse trabalho de paciência detetivesca, encontrando ligações entre as coisas, que permite constatar o quanto do passado persiste no presente." (LIMA,1998, p.20)

O pesquisador considera, assim, que a produção de conteúdo

aprofundado, como essência da existência do livro-reportagem está

intimamente relacionada ao tema do trabalho. Porque entende que um fato,

quando narrado de modo simplificado, contribui para o estabelecimento de um

debate público raso e de pouca capacidade reflexiva. Pena(2007) explica que,

“ultrapassar os limites dos acontecimentos cotidianos, em outras palavras,

significa ao jornalista romper com duas características básicas do jornalismo

contemporâneo: a periodicidade e a atualidade33”(p.7). Sem se preocupar com

a novidade do momento, o livro-reportagem assume esse papel: oferecer

semântica rica aos leitores a fim de que estes saibam, e, acima de tudo,

expressem complexidades em decorrência de enfrentamentos mais

desafiadores dentro do ambiente social.

2.4 O JORNALISMO LITERÁRIO E A MEMÓRIA

Jornalismo literário e memória estão, irremediavelmente, ligados à

história oral – e essa, à nossa pesquisa. Ou, como diz Lima(2009), “entendido

como resgate de riquezas psicológicas e sociais, esse método de captação

encontra melhor aplicabilidade no livro-reportagem (e, consideravelmente, sob

a técnica do jornalismo literário)”(p.56). Porque abre mais pontos a serem

desdobrados, revela mais acontecimentos periféricos e detalhes. Tais

informações, fomentam um texto muito extenso, que demanda de muito mais

espaço físico para ser acomodado em uma plataforma. Um livro, no caso.

A História Oral é uma ferramenta tanto para captação de informações

históricas, quanto para técnica de apuração – e é quando entrevista(técnica

imprescindível ao jornalismo literário) e a história oral se tocam. No entanto,

33

Essas duas características, aliadas à publicidade e à universalidade, formam a base de identificação do jornalismo moderno.

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julgamos necessário criar esta seção, a fim de delimitar um pouco mais, e,

assim, no contexto geral do trabalho, o máximo possível, essa conexão entre o

jornalismo literário e o registro histórico apoiado na oralidade que se apresenta

pelo acionamento da memória.

2.5 O PROBLEMA

Como reconstruir uma história ocorrida há mais de cinquenta anos, cujas

fontes, quando não mortas, muito idosas – algumas, senis; e vivendo reclusas,

muitas vezes, indispostas a conceder longas entrevistas? Pressupostos para

uma reconstrução histórica com base na história oral34, não são, justamente:

tomadas de depoimentos, relatos e entrevistas? A pesquisa leva em conta,

naturalmente, o uso, ao máximo, de fontes, segundo ensina a técnica

jornalística35. Não obstante, a pesquisa contará, basicamente, com fontes

conquistadas. O que, praticamente, encerra o trabalho, no tocante à coleta de

informações, numa espécie de dependência metodológica à história oral.

34

Há uma seção dedicada a esta metodologia de pesquisa, no referencial teórico (item 5)da pesquisa. 35

O jornalismo conta com diversas modalidades de fontes. As voluntárias, que se dividem em duas categorias, a

saber, oficiais (assessorias de imprensa de orgãos públicos, como: Secretarias, ministérios, universidades e entidades de classe) e privadas(assessorias de imprensa de empresas. Essas assessorias podem ser terceirizadas ou funcionarem dentro da própria empresa). Existem, ainda, fontes conquistadas, que, quanto às possibilidades categóricas, se constituem num universo de possibilidades. São pessoas, de modo total, as mais diversas. Desde porteiros de prédio a delegados, de empresários a juízes e promotores. E, finalmente, as fontes contratadas (Correspondentes, free-lancers, colaboradores e agências noticiosas - nacionais e internacionais).(PINTO, 2009, pág. 57)

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3. OBJETIVOS

Reconstruir a história de Anacleto Vargem a partir das técnicas do

jornalismo literário e do New Journalism, fazendo uso, às vezes, do subgênero

Gonzo Journalism, além de todo aparato jornalístico(dados gerais, pesquisa,

viagens e entrevistas). O livro-reportagem será o tipo de plataforma usada.

3.1 OBJETIVOS ESPECÍFICOS

- Analisar características dos homicídios, considerando em grande parte os

pontos de vistas dos entrevistados, assim como um crime, em específico, cujas

informações estão contidas em inquérito policial36, e, a partir disso, construir

narrativas na primeira pessoa, divididas em capítulos, e intercalá-las à

reportagem, ligando-as. Algo como o efeito produzido pelo jornalista Caco

Barcelos em “Rota66”. Ferreira (2003, p. 208) mostra que Barcelos intercala a

narrativa com fatos da própria vida conseguindo, ao mesmo tempo, relatar a

trajetória dos personagens.

- Construir o perfil do personagem baseado nas descrições dos

entrevistados, mostrando os conflitos de Anacleto, criando um contraste entre a

representação social à qual Anacleto, Evandro e demais personagens chave da

história se enquadram, e como o crime37 é entendido na sociedade;

- Produzir um livro-reportagem sob o estilo e técnica do jornalismo literário,

porém, fazendo uso, às vezes(ou, em parte), do subgênero Gonzo Journalism.

36

Copias de inquéritos, assim como outros documentos e registros serão anexados ao item “Apêndice”, no entanto,

apenas em Julho, quando o pesquisador poderá comparecer ao Fórum de Irati, para obter cópias desses registros. 37

Sob o nome de crimes e delitos, são sempre julgados corretamente os objetivos jurídicos definidos pelo código.

Porém, julgam-se também as paixões, os instintos, as anomalias, as enfermidades, as inadaptações, os efeitos de meio ambiente ou de hereditariedade. Punem-se as agressões, mas, por meio delas, as agressividades, as violações e, ao mesmo tempo, as perversões, os assassinatos que são, também, impulsos e desejos. Dir-se-ia que não são eles que são julgados; se são invocados, são para explicarem os fatos a serem julgados e determinar até que ponto a vontade do réu estava envolvida no crime. Resposta insuficiente, pois são as sombras que se escondem por trás dos elementos da causa, que são, na realidade, julgadas e punidas. Julgadas mediante recurso às ‘circunstâncias atenuantes’ do ato, mas coisa bem diversa, juridicamente não codificável: o conhecimento do criminoso, a apreciação que dele se faz, o que se pode saber sobre suas relações entre ele, seu passado e o crime, e o que se pode esperar dele no futuro.” (FOUCAULT, 2011, p. 22)

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Isso significa dizer que entrevistas, levantamento e interpretação de dados,

bem como pesquisas documentais e de campo, estarão, sim, combinadas.

- Ilustrar um fato singular que é composto por vários acontecimentos

extremamente significativos dentro de qualquer comunidade humana e em

qualquer período temporal ou época: assassinatos.

- Incentivar a discussão sobre o tema, uma vez que, o estereótipo do

assassino, de modo geral, é, também, representado na mídia de forma

insatisfatória ao esclarecimento de uma característica universal a respeito do

ser humano: somos todos assassinos por natureza38.

4. JUSTIFICATIVA

38

À luz de teorias freudianas, por exemplo, acerca do comportamento agressivo, cito, como instrumento à reflexão da

questão proposta: “Sob circunstâncias propícias, quando estão ausentes as forças anímicas contrárias que a inibem, [a agressão cruel] se exterioriza também espontaneamente, desmascara os seres humanos como bestas selvagens que nem sequer respeitam os membros de sua própria espécie... Em consequência, o próximo não é somente um possível auxiliar e objeto sexual, mas uma tentação para satisfazer nele a agressão, explorar sua força de trabalho sem ressarci-lo, usá-lo sexualmente sem seu consentimento, despojá-lo de seu patrimônio, humilhá-lo, infligir-lhe dores, martirizá-lo e assassiná-lo.” ( FREUD, 1929, p. 57) Desta feita, o pesquisador se deparou com a questão: que forças anímicas estavam em jogo, naquele contexto, e, que, uma vez ausentes, permitiram que tamanha brutalidade se manifestasse nas pessoas de Anacleto e Evandro? E, ainda: quais as partes de tais forças que, geralmente, não se apresentam na sociedade, dia a dia, enquanto, distraídos, planejamos coisas e ações futuras?

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Construir uma narrativa que ofereça ao leitor os elementos necessários

à experiência de apreciação de um fato, porém, com escassez de fontes e

informações materializadas em registros, como jornais, por exemplo. Aqui,

possivelmente, tenhamos um pressuposto relevante à reflexão sobre a

importância do registro histórico por meio do livro-reportagem.

No entanto, “seu enquadramento temporal(...)é necessariamente

limitado ao presente e ao passado recente. Por isso, ele precisa ser

complementado pelo trabalho historiográfico.”(MOREIRA; MORENO, 2004, p.

99, apud QUADROS, 2005) O esquecimento de um fato pode ser entendido

como uma imprensa inepta, como comenta Andreas Huyssen(2004). “[...] a

memória pode ser considerada crucial para a coesão social e cultural de uma

sociedade. Qualquer tipo de identidade depende dela. Uma sociedade sem

memória é uma sociedade reprovável.” (HUYSSEN, 2004, apud QUADROS,

2005) Nestes termos, a atuação do jornalismo, e, neste caso específico, do

jornalismo literário, em razão do aprofundamento na apuração, se faz notável à

construção de memória.

O problema surge e se intensifica, à criação literária do jornalista, à

medida que o fato, em si, fica mais distante do presente. Ou seja, como

reportar, ou, mais ainda, reconstruir trajetórias e cenários, de um fato ocorrido

há cinquenta anos? Apoiado em bancos de dados digitais, o jornalista vê seu

campo de pesquisa ampliado e mais acessível39, por assim dizer; esta é uma

característica da atualidade jornalística: acessibilidade à informação.

”Favorecido pelas tecnologias contemporâneas, de forma quase instantânea, o

jornalista encontra dados que podem ser relacionados aos fatos recentes,

proporcionando uma narrativa mais profunda ao leitor.” (QUADROS, 2005) E,

ainda, “nesse processo, (o jornalista) redefine o seu papel, buscando apoio na

sua própria história e na história que constrói.” (MENDEZ, 2002, p. 101, apud

QUADROS, 2005) Ou seja, toda informação digitalizada se transforma,

imediatamente, em banco de dados, em memória extensiva ao jornalismo. Não

obstante, fatos que, seja por ausência de tecnologia, ou, pela simples falta de

cobertura e respectiva produção de conteúdo, deixaram de ser registrados,

obviamente, serão memória, exclusivamente, nas mentes das testemunhas.

39 Vide seção 6.1 do item “Metodologia da Pesquisa”.

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Com o passar do tempo, então, tais informações, possivelmente, sucumbirão

junto a seus portadores e serão perdidas, esquecidas, definitivamente.

Como a memória é parte imprescindível à coesão social e cultural da

sociedade (HUYSSEN, 2004, apud QUADROS, 2005), resgatar o passado, não

documentado, na memória das testemunhas, confere à entrevista, atributo

inquestionável do jornalismo, e, mais particularmente, do jornalismo literário,

um papel elucidativo junto à questão: como o jornalismo pode contar uma

história ocorrida há 50 anos? “O passado condiciona e determina o presente na

justa proporção em que pode ser recuperado e, de novo, presente à atenção”

(FIDALGO, 2003, pág. 5, apud QUADROS, 2005) E, recuperar o passado para

reapresentá-lo à sociedade, além de ser um desafio e uma necessidade, é um

papel muito bem desempenhado pelo jornalismo, quando nas suas

ramificações do livro-reportagem e do jornalismo literário.

4.1 POR QUE A HISTÓRIA DE ANACLETO, O NEW JOURNALISM E O

GONZO JOURNALISM?

A história de Anacleto Vargem tem muito a revelar. A violência e a

agressividade demonstram ser uma inerência humana, que, independente de

época e seu respectivo código moral, emergem, e, simplesmente, acontecem

no seio da sociedade. Tendo em vista o papel da comunicação social neste

processo, o pesquisador viu na história de um único assassino a chance de

expor pontos de relevância à discussão sobre a violência, tanto nos meios de

comunicação como, principalmente, no cotidiano das pessoas. Afinal, o livro-

reportagem é, também ou acima de tudo, um produto cultural. Mas existe outra

razão, e, talvez, a mais importante, para que o pesquisador veja no desafio de

reportar a história de Anacleto Vargem, uma justificativa.

Ao tratar de um fato, convém entender qual a conjuntura em que ele se deu, quem são, como agem e vivem os protagonistas. Se for um personagem, é necessário familiarizar-se com seus hábitos, seu modo de vida, seus amigos, seus relacionamentos pessoais e profissionais, sua cultura e maneira de pensar de falar, de vestir e até sua idade e seu tipo físico. (BELO, 2006, p.91)

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Isso pode parecer bastante contraditório, a princípio. Posto que Anacleto

foi assassinado em 22 de abril de 1956. Como seria possível de verificar

alguma relação entre o que diz a citação e as possibilidades investigativas do

repórter? Isso se justifica na razão de que o avô do pesquisador foi amigo

muito próximo de Anacleto. Descendente de italianos, Frederico Stroparo

nasceu e viveu até os 22 anos de idade na mesma colônia onde vivia Anacleto.

E o pesquisador passou mais de vinte anos na convivência diária com

Frederico. Já seria o tipo de relação próxima o suficiente à transmissão de boa

parte dos elementos culturais descritos por Belo na citação.

No entanto, o contato entre neto e avô foi diária e intensa, por muitos

anos. Afora o fato de que muitos conterrâneos, ao longo dos anos, passaram

em visitas, demonstrando regionalismos linguísticos quase à exaustão do

pesquisador. Naturalmente, visitas a Irati, dentro da pesquisa de campo, foram

feitas, conferindo ainda mais propriedade ao pesquisador acerca dos requisitos

já comentados. Isto, segundo Belo(2006) tem a ver com lançar olhares mais

humanos sobre o assunto.

No livro-reportagem “Rota 66”, o autor, Caco Barcelos aplica o conceito

proposto na citação de Belo. Coloca-se, dentro da narrativa, no lugar das

personagens. Certamente se trata de um recurso contrario aos encontrados

nos manuais de jornalismo. No entanto, Barcelos contraria as normas e os

preceitos jornalísticos dos manuais, narrando a história a própria versão dos

fatos. Segue um trecho de “Rota 66”:

Revolução Sandinista, Nicarágua. O franco-atirador dispara a metralhadora em movimento circular. Nos jogamos no chão. Somos salvos nos arrastando em direção ao abrigo frágil de um carro, enquanto as balas tiram lascas do muro... Terremoto da Guatemala. A cada novo tremor de terra, que se repete de hora em hora, nossas vidas correm perigo. A cidade já está destruída, mas pedaços dos prédios em ruína ainda desabam perto de nós... Acidente nuclear, Three Mile Island, EUA. Faz dezoito horas que a tragédia começou. Estamos a 300 metros da usina, que continua emitindo radiação de forma incontrolável. É o maior acidente nuclear americano e ainda ninguém sabe o que pode acontecer. A radioatividade é um perigo invisível: um monstro que não se vê, não se ouve, não se sente... Contrabandistas de Hernandaria, Paraguai. Fomos condenados à morte num julgamento sumário, no meio da mata. São cinqüenta contrabandistas que apontam as armas contra nós e nos obrigam a ficar de joelhos ao lado do carro de reportagem...(BARCELOS, 2006, p.22)

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Foi pela possibilidade de encontrar o rumo de uma narrativa baseada

nesses moldes e pelo que já foi exposto nesta seção, quanto à proximidade

que o pesquisador possui das particularidades de Anacleto, que se justifica a

escolha pela história. Bem como pelo New Jornalism e o uso eventual do

Gonzo Journalism40.

4.2 LIVRO-REPORTAGEM

O livro-reportagem é um veículo de comunicação e produto cultural de

circulação não periódica, cuja característica principal, talvez, seja a de ampliar

o trabalho cotidiano da imprensa. Segundo Lima(1998), o livro-reportagem

"penetra em campos desprezados ou superficialmente tratados pelos veículos

jornalísticos periódicos, recuperando para o leitor a gratificante aventura da

viagem pelo conhecimento da contemporaneidade." Dentro de uma mesma

linha de raciocínio, confere mais durabilidade, junto à sociedade, aos assuntos

mostrados pelos demais veículos de comunicação tradicionais. Para

Belo(2006) ”O mundo mudou depressa na segunda metade do século XX. O

jornalismo teve de mudar também. Apesar da proposta de fruição do texto

pregada pelos autores do New Journalism e das várias publicações criadas

para dar conta de tantas novidades, nada foi capaz de desacelerar tal

processo”(p.37). E, mesmo agora, início do século XXI, percebemos que a

tendência à aceleração é ainda um fato.

Fica uma interrogação incômoda neste ponto: se desde a década de

1950/60 o jornalismo, por meio do jornalismo literário, oferece informações

mais aprofundadas, por que diminui o número de leitores? Segundo dados41 da

pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, na edição de 2012, encomendada pela

Fundação Pró-Livro e pelo Ibope Inteligência, os brasileiros cada vez mais,

trocam o hábito de ler jornais, revistas e livros por atividades como ver

televisão, assistir a filmes em DVD e navegar na rede de computadores por

diversão. Tal pesquisa revelou queda no número de leitores no Brasil: de 95,6

milhões, registrada em 2007, para 88,2 milhões, com dados de 2011. Uma

40 A delimitação do uso de ambos os sub-gêneros se encontra no item 2 deste trabalho. 41

Fonte: http://g1.globo.com/educacao/noticia/2012/03/numero-de-leitores-caiu-91-no-pais-em-quatro-anos-segundo-pesquisa.html

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queda de 9,1% no universo de leitores ao mesmo tempo em que a população

cresceu 2,9% neste período.

4.3 JORNALISMO LITERÁRIO

Se a proposta de nossa pesquisa se relaciona ao resgate histórico e se

dispõe, sim, como produto cultural que é o livro-reportagem, a reconstruir,

registrar e difundir uma história que o tempo já há muito deteriora e apaga,

escolher o jornalismo literário como gênero ao nosso produto nos pareceu

justificável. Essa escolha pela estética, estilo e técnica do jornalismo literário,

está ligada à principal característica: a excelência quanto à reconstrução da

realidade.

Uma vez que o livro-reportagem se constitui em um tipo de suporte que

abarca várias características de qualidade comprovada, quanto à apuração, por

exemplo - vide seção anterior -, o jornalismo literário, por sua vez, é a

ferramenta que vai possibilitar construções ricas, desde descrições de cenas

até condução da narrativa. Ou, como afirma Lima (2009), “[...]hoje é possível

perceber três categorias de obras quanto ao emprego de recursos literários: as

de ficção, que tratam dos produtos do imaginário elaborados pelo escritor; as

jornalísticas, que se apropriam dos recursos literários apenas para reportar

melhor a realidade”. (p. 52) O jornalismo literário, desde seu surgimento,

demonstrou essa proximidade à literatura. Obras consagradas como “Fama e

anonimato” de Gay Talese, por exemplo, dão conta da demonstração do

quanto o jornalismo literário é capaz de oferecer uma construção de realidade

aprofundada e significativa, com semântica ampliada.

Destacamos que a essência de nossa escolha, por tudo que

propusemos à discussão, sem dúvida, também está relacionada a essa

apropriação, descrita por Edvaldo Pereira Lima, acima, na citação, que intenta

reportar melhor a realidade, pois, acima de tudo, nosso produto tem sua matriz,

no jornalismo.

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5. REFERENCIAL TEÓRICO

As representações sociais se constituem como um fenômeno de difícil

compreensão. Portanto, dentro do nosso trabalho, nos limitaremos à

apropriação de alguns conceitos que, contextualizados às nossas propostas,

tragam algum esclarecimento sobre o tema, os objetivos e a justificativa do

mesmo. Segundo Moscovici:

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Representações sociais são sempre complexas e necessariamente inscritas dentro de um “referencial de um pensamento preexistente”; sempre dependentes, por conseguinte, de sistemas de crença ancorados em valores, tradições e imagens do mundo e da existência. Elas são sobretudo, o objeto de um permanente trabalho social, no e através do discurso, de tal modo que cada novo fenômeno pode sempre ser reincorporado dentro de modelos explicativos e justificativos que são familiares e, consequentemente, aceitáveis. Esse processo de troca e composição de ideias é sobretudo necessário, pois ele responde às duplas exigências dos indivíduos e da coletividade. Por um lado, para construir sistemas de pensamento e compreensão e, por outro lado, para adotar visões consensuais de ação que lhes permitem manter um vínculo social, até mesmo a continuidade da comunicação da ideia. (MOSCOVICI, 2011, p. 216)

Porque, como tentamos demonstrar na delimitação do tema, se o

jornalismo cotidiano é superficial e ajuda a criar o senso comum, o Jornalismo,

por meio de ramificações como o livro-reportagem e o jornalismo literário, pode,

ao mesmo tempo, ajudar a desequilibrar tal processo, num sentido de

promover o equilíbrio de forças no processo da comunicação: contribuir para o

melhor esclarecimento das pessoas.

5.1 REPRESENTAÇÃO SOCIAL

A nossa escolha pelo referencial teórico se deu pela seguinte linha de

raciocínio: quanto ao produto: decidimos contar a história de Anacleto Vargem

por meio de um livro-reportagem, servindo-se largamente da entrevista e da

história oral. Ao assumir tal plataforma, nosso trabalho se delineou como um

produto cultural e, assim, nos pareceu bastante coerente propor discussões

acerca das representações sociais. Quanto à pesquisa: o pesquisador

precisaria construir os personagens baseados nos depoimentos e no contexto

ao qual os mesmos viveram os dramas e conflitos. Para obter noções

coerentes quanto à estrutura dessas construções sociais e estereótipos, o

pesquisador optou, também, pelo ponto de vista da psicologia social e da

representação social.

Para Moscovici(2011), “nossas reações aos acontecimentos, nossas

respostas aos estímulos, estão relacionadas a determinada definição, comum a

todos os membros de uma comunidade à qual nós pertencemos”(p.224) Isto

nos leva à reflexão de que tudo que entendemos dentro do contexto social

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depende de um complexo de informações – fora, contudo, do alcance de

qualquer padronização intencional, num sentido de fixar um paradigma linear

às nossas reações às respectivas percepções individuais – que vai ser base

estrutural à formação de conceitos, ideias.

Ainda em Moscovici(2011), veremos que “se, ao dirigirmos pela estrada,

nós encontramos um carro tombado, uma pessoa ferida e um policial fazendo

um relatório, nós presumimos que foi um acidente. Nós lemos diariamente

sobre colisões e acidentes nos jornais a respeito disso”(p.225). Afinal, é

também o jornalismo, uma representação social.

Um assassinato, então, como se relaciona ideia à prática perpetrada por

Anacleto Vargem, não será percebido pelas pessoas de modo distinto à

exemplificação de Serge Moscovici. Todo o conhecimento que se relaciona ao

cotidiano – e, no caso das massas e do homem comum, principais

consumidores dos conteúdos jornalísticos tradicionais - parte de uma

construção social da realidade, ou, como aponta Berger e Luckman:

O ponto inicial deste processo é a interiorização, a saber, a apreensão ou interpretação imediata de um acontecimento objetivo como dotado de sentido, isto é, como manifestação de processos subjetivos de outrem, que desta maneira torna-se subjetivamente significativo para mim. Isto não quer dizer que compreenda o outro adequadamente. (BERGER e LUCKMAN, 1985, p. 175)

Diante disso, ou, melhor, de tal fundamentação teórica, o assassino e

suas ações cotidianas sob representação do “homem de bem”, ou, do

“criminoso” é uma construção social de realidade que, como todas as demais

noções que “pairam” na atmosfera social, pode ser moldada, reformada.

Assim, proposto deste modo, o tema da pesquisa e a relação com os

assassinatos cometidos por Anacleto Vargas - e com a maneira pela qual fora

assassinado, pelo “calmo, benevolente e tranquilo” Evandro Capeline de Lara,

devidamente apoiado numa pesquisa social e transposto a um veículo

midiático, se constitui num instrumento de construção social da realidade

poderoso. Além disso, se relaciona à pesquisa, também, como fenômeno da

comunicação; pela representação social dos tipos de assassinos, por

exemplo(como eles eram retratados na quase inexistente mídia local).

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Não obstante, a pesquisa busca, a fim de reconstruir trajetórias, as

reações da comunidade, da mídia e das autoridades locais às ações e,

principalmente, à figura do assassino. Assim, partimos do ponto de vista que

vislumbra o fato de as percepções apreenderem o mundo tal como é; e nossas

distinções se relacionam às diferenças, existente entre os indivíduos, quanto às

necessidades de avaliar seres e objetos corretamente. Ou, como demonstra

Serge Moscovici, no texto que segue:

Em outras palavras, nós percebemos o mundo tal como é e todas nossas percepções, ideias e atribuições são respostas a estímulos do ambiente físico ou quase físico, em que nós vivemos. O que nos distingue é a necessidade de avaliar seres e objetos corretamente, de compreender a realidade completamente [...] vieses cognitivos, distorções subjetivas, tendências afetivas obviamente existem. Como nós, todos estamos cientes disso, mas eles são concretamente vieses, distorções e tendências em relação a um modelo, a regras, tidas como norma. (MOSCOVICI, 2011, p. 30)

Gostaríamos, baseados nas exposições, naturalmente, que se fizesse

clara esse nosso conceito de que o livro-reportagem nada mais é que outra

representação da realidade. E que, ao usarmos ferramentas jornalísticas e

suas respectivas técnicas, o fazemos num esforço pela busca do

aprofundamento acerca dos fatos a serem reportados. A fim de que nossa

contribuição junto aos leitores e, consequentemente, à sociedade, signifique

uma provocação contundente a respeito das certezas e convicções que os

leitores normalmente dispõem à formação de suas próprias opiniões.

5.2 ANACLETO, O OUTSIDER

Outra abordagem às representações sociais que gostaríamos de apontar

dentro de nossa fundamentação teórica é a do estereótipo que Anacleto, além

do de assassino, ostentava junto àquelas pessoas do Pirapó. Havia nessa

comunidade, situação parecida com a estudada por Norbert Elias – e descrita

em seu livro “Os estabelecidos e os outsiders”, na cidade cujo nome, fora, pelo

sociólogo alemão, chamada “Winston Parva”.

Assim, encontrava-se ali, nessa pequena comunidade de Winston Parva, como que em miniatura, um tema humano universal. Vez por outra, podemos observar que os membros dos grupos mais poderosos que outros grupos interdependentes se pensam a si mesmos (se auto-representam) como humanamente superiores. O sentido literal do termo “aristocrata” pode servir de exemplo. Tratava-

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se de um nome que a classe mais alta ateniense, composta por guerreiros que eram senhores de escravos, aplicava no tipo de relação de poder, que permitia a seu grupo assumir a posição dominante em Atenas. Mas significava, literalmente, “dominação dos melhores”. (ELIAS, 2000, p. 19)

A comunidade do Pirapó foI fundada no século XIX, período no qual a

Região-Centro Sul do Paraná começava a ser colonizada com maior presença

do estado. A exploração da madeira era o fomento maior da economia do

lugar. E, os madeireiros, se tratavam de, na maior parte, membros da elite

proprietária de grandes áreas de terras.

No entanto, no início do século XX, imigrantes alemães, italianos e

poloneses se estabeleceram em grande número na comunidade. Como o lugar

não era desenvolvido, e as poucas famílias que ali viviam eram de origem,

comumente chamada, cabocla entre os próprios, esses imigrantes, logo, se

tornaram a classe dominante do lugar, ou seja, segundo Norbert Elias, os

estabelecidos.

Até hoje, o termo “nobre” preserva o duplo sentido de categoria social elevada e de atitude humana altamente valorizada, como na expressão “gesto nobre”; do mesmo modo, “vilão”, derivado de um termo que era aplicado a um grupo social de condição inferior e, portanto, de baixo valor humano, ainda conserva sua significação neste último sentido – como expressão designativa de uma pessoa de moral baixa. É fácil encontrar outros exemplos. (ELIAS, 2000, pág. 19)

Anacleto Vargem era caboclo. Vivia de trabalhos esporádicos e seu

perfil, numa análise rápida que seja, aponta para um modelo outsider. Porque

vivia às margens da prosperidade disponível aos moradores da colônia: não

possuía terreno próprio, tampouco casa. Vivia de trabalhos esporádicos e da

troca de animais de criação – quando não, do escambo42. Ao fazer essa

interferência no fluxo dialético da seção o pesquisador tencionou criar um

diálogo entre autores que abordam o tema das representações e achou

pertinente mostrar tal curiosidade acerca do contexto histórico e social do

Pirapó.

5.3 CONCEITO DE REPORTAGEM

42

As características descritas sobre a situação sócio-econômica do personagem podem ser verificadas em qualquer das entrevistas anexadas no item “Apêndice”.

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A reportagem é, talvez, a prática mais importante dentro do jornalismo e

é ela que promove a humanização do texto jornalístico. Segundo Lage(2008),

“se perguntarmos às pessoas em geral que figura humana é a mais

característica do jornalismo, a maioria responderá, sem dúvida: é o repórter. Se

interrogarmos um jornalista sobre quem é mais importante na redação ele dirá:

é o repórter.” No entanto, em toda história da imprensa, a reportagem existiu

apenas num tempo que representa não mais que a metade dessa mesma

história.

Quando o jornalismo surgiu, no início do século XVII, o paradigma de texto informativo era o retórico, empregado desde tempos remotos para a exaltação do Estado ou da fé. As línguas nacionais europeias vinham surgindo, cada qual com seus grandes autores literários (Camões em Portugal; Cervantes e Quevedo na Espanha; Shakespeare e Milton na Inglaterra; Racine e Molière na França) e, este, era o padrão que se buscava imitar. (LAGE, 2008, p. 9)

Nesse contexto, o jornalismo funcionava mais como difusor de ideias

burguesas e um promovedor de relatos a respeito de festas de casamento,

viagens de príncipes e festas de corte – assuntos caros, portanto, à aristocracia

e à burguesia. E os leitores, em geral, funcionários públicos, comerciantes e

seus auxiliares imediatos, eram em número pequeno. Segundo Lage(2008),

“fazer jornal era atividade barata: bastavam uma prensa, tipos móveis, papeis e

tinta. As tiragens possíveis – centenas, talvez poucos milhares de exemplares

– correspondiam a um público leitor restrito de funcionários públicos,

comerciantes e seus auxiliares imediatos.” Nesse contexto nasce a imagem

mais antiga e renitente do jornalismo, o publicismo43.

No século XIX, este cenário se modificou muito pois graças à revolução

industrial o jornal, ou melhor, as tiragens dos jornais, que no outro contexto não

ultrapassavam à de poucos milhares, agora, chegavam às centenas de

milhares, até de milhões. Pluralidade cultural – os jornais passaram a ter

leitores de diversas classes sociais – e a perda do interesse pela guerra de

opiniões – já não havia a aristocracia tão poderosa quanto antes, a opor-se aos

ideais burgueses -, aos poucos, ajudaram a mudar o estilo das matérias

publicadas. É o momento no qual os jornais entram em crise devido aos altos

43

Segundo Nilson Lage, por muitas décadas o jornalista foi essencialmente um publicista, de quem se esperavam orientações e opiniões políticas.

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custos de produção decorrentes da mecanização. Segundo Lage(2008), “já não

eram financiados pelos seus leitores como antes: o mercado publicitário nascia

e com ele a integração da imprensa com os interesses gerais da economia.” E,

ainda:

(os jornais) Precisavam de anúncios e estes dependiam do número de leitores. A luta pelo mercado desataria, nas décadas seguintes, forte concorrência entre gêneros distintos que os jornais passaram a abrigar: as novelas ou folhetins – textos literários extensos, que se publicavam em capítulos, nos rodapés de páginas; os desenhos alegóricos ou satíricos, que dariam origem ao cartum, à charge e às histórias em quadrinhos; as novidades com ênfase ora na vida real e na realidade imediata, ora em países remotos, cujos estranhos costumes e paisagens oferecia a dose necessária de fantasia.” . (LAGE, 2008, p. 14)

Essa descrição de contexto histórico que apresentamos até aqui, nessa

seção, se deve pela razão de termos achado importante demonstrar alguns

pontos importantes à compreensão do conceito de reportagem e o porquê do

seu surgimento. Como vimos, com a necessidade cada vez maior por recursos

financeiros, os jornais passam a ceder o espaço à publicidade e outras formas

de texto que não o jornalístico. Com espaços cada vez menores – e a

tendência de aceleração da vida cotidiana e a inevitável falta de tempo dos

leitores – as redações tratavam de sintetizar cada vez mais o teor das notícias,

e, com isso, a superficialidade e a parcialidade, decorrente da influência do

patrocínio, encontraram terreno fecundo.

Foi nesse momento decante do conteúdo jornalístico que nasce a

reportagem. Foi então que títulos ganharam importância, que os textos foram

revolucionados pela necessidade de ajustar a linguagem textual às linguagens

orais, surgem os furos, ou, notícias em primeira mão – por conta, naturalmente,

da necessidade de ganhar o público e, assim, garantir os recursos financeiros

oriundos dos anúncios publicitários. Essas mudanças acabaram por gerar

conflitos de interesses, pois, à medida que os relatos dos fatos sociais,

produzidos pelos repórteres, contradiziam os valores dos mantenedores dos

jornais, a atmosfera da organização acabava por se intoxicar. A realidade,

então, graças à reportagem, passa a ser retratada como jamais fora.

Poucos documentos relatam, por exemplo, a liquidação sistemática do povo inca, asteca e maia, na América espanhola, nos séculos XVI, XVII e XVIII. O século XIX, pelo contrário, foi um tempo de

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revelações. Todos ficaram sabendo das motivações reais de aventuras bélicas como a guerra do ópio, que impôs comércio de entorpecentes na China sob controle inglês, ou de estratégias covardes, como o uso de metralhadoras contra o exército zulu, na África do Sul, pela mesma Inglaterra[...]Em meio à propaganda de sempre, surgiam por via da reportagem, os fatos reais. (LAGE, 2008, p. 16)

Assim, como foi apresentado pelo pesquisador, o conceito de

reportagem, se valida dentro deste trabalho menos pela intenção de mostrar a

realidade do que pelo fato de que se esforça, acima de tudo, em fazê-lo. Como

essência, tem a busca pelo objeto a ser reportado e a relação do mesmo com o

máximo possível de variáveis que emergem dos conflitos e contradições do

ambiente social.

5.4 TÉCNICAS DE ENTREVISTA

A entrevista é parte muito importante dentro do processo da apuração

que o repórter fará a respeito de um tema, uma pauta, um assunto, enfim, a

reportar. A checagem das informações, naturalmente, será ação indispensável,

posto que, como vimos na seção anterior, uma reportagem é, essencialmente,

uma tentativa de retratar a realidade. Segundo Ana Estela de Souza

Pinto(2009), “uma boa entrevista depende também de pesquisa, observação e

documentação que se fazem antes dela, e da observação que se faz durante.”

E, ainda em Pinto(2009): ”Outro aspecto importante a ser lembrado é que a

entrevista é um relacionamento. Depende da sua capacidade de conversar. De

interessar-se pelo que o outro tem a dizer. Não se trata de uma máquina de

refrigerantes, em que você enfia uma moeda e ela devolve uma lata. Não basta

ter uma lista de perguntas e ficar esperando as respostas.” Estes pontos de

vista acerca da entrevista acabam estabelecendo uma conexão, um diálogo,

com o que apresentaremos na seção seguinte, ao tratarmos da História Oral.

Mas, desde já, o pesquisador destaca:

Entre as duas tendências extremas da entrevista, há um antagonismo. De um lado, a entrevista aberta, sem questões colocadas pelo entrevistador. Do outro, a entrevista fechada, feita por questionário ao qual basta responder sim ou não. De um lado, as respostas complexas e numerosas; do outro, as respostas claras e simples. De um lado, uma entrevista de longa duração; do outro, um questionário rápido. Sob um aspecto as pessoas implicadas –

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entrevistado e entrevistador – têm uma importância capital, assim como a natureza psicoafetiva do encontro. (MORIN, 2007, p. 63)

Se existe esse antagonismo, decorrente de uma situação que possibilita

a manifestação de duas extremidades, o pesquisador entende que há

necessidade de um esforço de atenção e sensibilização, tendo tais teorias em

mente, no sentido de captar da melhor forma possível aquilo que, na qualidade

de repórter, foi tratar de buscar. Porque tanto uma configuração extremista

quanto a outra trazem suas respectivas demandas prescindíveis e

indispensáveis. Como afirma Morin(2007), ”estes dois tipos extremos podem

competir: o pesquisador terá que escolher entre o risco da

superficialidade(questionário) e o risco ‘ininterpretabilidade’(entrevista

aprofundada); entre dois tipos de erro, entre dois tipos de verdade.” O que nos

leva a dizer que dentro de tudo que se discute sobre jornalismo literário, por

exemplo, sempre há o foco quase dominante sobre o aprofundamento. E, isso,

nos coloca diante de um terrível problema: segundo o que acabamos de

propor, via Edgar Morin44, existe uma incerteza inerente ao processo de

produção de uma reportagem por conta dessa dualidade que se impõe frente à

necessidade de simples escolha.

Entretanto, essa dificuldade que surge em decorrência das limitações

humanas frente ao desafio de retratar a realidade, não redunda em

impossibilidade, posto que a produção de livros-reportagens demonstra, ano

após ano, que tais técnicas de entrevista, apesar das dificuldades

demonstradas, fazem-se eficazes e úteis, tanto ao que se dispõem, quanto ao

que servem – no caso, primeiramente, ao jornalismo, mas, em maior amplitude,

à sociedade. Exemplos não faltam: desde clássicos, como “À sangue frio” de

Truman Capote e “O segredo de Joe Gold”, de Joseph Mitchell, a produções

mais recentes – e, igualmente significativas – como “Gostaríamos de informá-lo

de que amanhã seremos mortos com nossas famílias” de Philip Gourevitch e

“O rei do mundo”, de David Remnick. Em todos os livros citados, a entrevista

foi, indubitavelmente, usada como importante ferramenta à coleta das

informações e, portanto, como auxiliadora à reconstrução da realidade.

44 O mesmo Edgar Morin, ainda sobre a entrevista, no mesmo texto, no entanto, vai dizer:”há toda uma gama de entrevistas, entre esses dois tipos extremos, cada um com uma problemática e eficácia próprias.”(MORIN, 2007, p. 65)

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5.5 A HISTÓRIA ORAL

A História Oral, diferente da entrevista – dentro do jornalismo cotidiano -,

não procura buscar a notícia, antes, pelo contrário, numa etapa seguinte à

coleta de informações, o historiador que usa tal metodologia, como ideal, vai se

preocupar com a busca pela fidelidade àquilo que o significado das palavras

reserva(ALBERTI, 2007, p. 42). Essa, talvez, seja a principal diferença entre o

método da reconstrução histórica, tendo como base a oralidade, e a produção

jornalística cotidiana.

No entanto, é justamente nessa distinção que surge a principal

semelhança entre história oral e jornalismo literário – principalmente, quando

suportado no veículo livro-reportagem. Pois, como já foi discutido na

delimitação do tema deste trabalho, o livro-reportagem sob a forma estilística

do jornalismo literário, confere amplitude aos fatos expostos nas suas

narrativas. E o jornalista, sim, muito se assemelha ao historiador, quando

incumbido da tarefa de reconstruir a realidade, dispondo de tais ferramentas e

metodologia. Segundo Rouchou(2003), “não sobram dúvidas que o jornalista

detém técnicas que a rotina lhe forneceu para fazer boas e completas

entrevistas, com todos os limites éticos que essa tarefa encerra”, justamente

por conta da prática que tal profissional adquire por meio das demandas diárias

do ofício, no veículo que seja.

Sobre a subjetividade, que tal técnica de coleta de informações possa,

para alguns, trazer intrínseca à sua natureza, consideramos que a realidade

não pode ser observada a uma, ou seja, nossas percepções, invariavelmente,

captam apenas parcelas dessa mesma realidade. Ou, como aponta

Portelli(1997apud ROUCHOU, 2003):

A história oral oferece menos uma grade de experiências padrão do que um horizonte de possibilidades compartilhadas, reais ou imaginadas. O fato de que essas possibilidades raramente estejam organizadas em [...] padrões coerentes indica que cada pessoa entretém, a cada momento, múltiplos destinos possíveis, percebe diferentes possibilidades e faz escolhas diferentes de outras na mesma situação. Esta miríade de diferenças individuais [...] serve para lembrar que, além da necessária abstração da grade das ciências sociais, o mundo real é mais semelhante a um mosaico ou patchawork de diferentes pedaços, que se tocam, superpõe e convergem, mas igualmente acalentam uma irredutível individualidade. (PORTELLI, 1997, apud ROUCHOU, 2003, p. 88)

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Outra observação pertinente, posto que nossa escolha pela metodologia

da história oral a coloca como fundamental dentro do processo de produção do

livro-reportagem, é que, assim como no jornalismo, a entrevista se faz presente

e imprescindível. Dessa maneira, o jornalista se coloca numa função bastante

semelhante a do historiador, com requintes de apuração e acurado senso de

investigação. “O trabalho com a metodologia de história oral compreende todo

um conjunto de atividades anteriores e posteriores à gravação dos

depoimentos. Exige, antes, a pesquisa e o levantamento de dados para a

preparação dos roteiros das entrevistas.” (ACERVO FGV, História Oral, 2013)

Outrossim, quanto a essa importância da história oral em nossa

fundamentação teórica, é a proximidade que ela estabelece com a entrevista

intensiva45, apesar de demonstrar traços cuja semelhança remete à extensiva.

É um método que visa conhecer a vida, ou melhor, a experiência que as

pessoas extraem das suas respectivas vivências. Segundo Rouchou(2003),

baseados nas entrevistas podemos estabelecer “correlações entre os campos

de forças sociais” e, mais:

Entrevistar testemunhas dos fatos, privar de sua intimidade, frequentar sua casa, passear por seus álbuns de fotografias, tomar, talvez, um cafezinho, ou ainda emprestar um lenço para secar algumas lágrimas é absolutamente fascinante. Apesar da necessidade de um olhar crítico sobre os depoimentos, é inegável também o envolvimento com esses indivíduos. Agora não são mais frios documentos que se analisa, mas os personagens da História, ao vivo, com a contextualização necessária para o melhor entendimento das pequenas Histórias que vão compor o projeto maior. (ROUCHOU, 2003, p. 12)

Em nossa pesquisa, essa proximidade do entrevistador com os

entrevistados se demonstrou extremamente eficaz, posto que várias das

testemunhas conheceram Anacleto. Assim, segundo Lidia Capelline de Lara46,

por exemplo, “é uma história ruim, que aconteceu há tanto tempo, não é bom

lembrar daquilo”. Ou seja, para Lídia, o fato de alguém querer escrever algo

sobre a história que se reserva, em parte, na sua memória, representa um

esforço de sua parte em passar por lembranças dolorosas. Desta feita, disparar

45

Segundo Edgar Morin, “a entrevista intensiva pretende aprofundar o conteúdo da comunicação – diferente da extensiva, que aprofunda informações, a fim de extrair dados estatísticos com maior precisão – e a nova psicologia social caminha neste sentido. É quando o tetê-à-tête torna-se o elemento central da entrevista.”(MORIN, 2007, p. 63) 46

Declaração feita em entrevista concedida ao entrevistador, dia 30 de maio de 2013.

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uma série de perguntas elaboradas e predeterminadas em um roteiro, poderia,

sim, indispor a testemunha. O que seria péssimo à coleta de dados e à

tentativa de resgate histórico.

6. METODOLOGIA DA PESQUISA

O pesquisador se valeu dos métodos de pesquisas exploratórias e

bibliográficas, na busca pelas informações necessárias à construção do

trabalho. Exploratórias porque, segundo Gil(1985), ”têm como principal

finalidade desenvolver, esclarecer e modificar conceitos e ideias, tendo em

vista, a formulação de problemas mais precisos ou hipóteses pesquisáveis para

estudos posteriores.” Ou seja, a reconstrução da história de Anacleto Vargem,

por todas as particularidades que já foram expostas neste trabalho, demanda,

sim, tais características metodológicas ao seu desenvolvimento. E, ainda

segundo Gil(1985), “pesquisas exploratórias são desenvolvidas com o objetivo

de proporcionar visão geral, de tipo aproximativo, acerca de determinado fato.”

Na seção 6.2 deste item, será demonstrado que há uma grande carência de

informações documentais acerca do nosso objeto de investigação.

Por se tratar de um tema pouco explorado, vimos essa necessidade de

aproximação do fato pela metodologia da história oral, que é um exemplo de

pesquisa de nível exploratório. Entrevistas não padronizadas, levantamento

bibliográfico e documental, portanto, foram os métodos usados à exploração do

tema. Sendo que as entrevistas e a pesquisa bibliográfica de modo especial,

uma vez que quase não há documentos sobre os fatos observados.

6.1 PESQUISA BIBLIOGRÁFICA

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No início da pesquisa, a fim de suprir a carência de conteúdos referentes

ao tema, como diz Duarte(2011)”para estabelecer as bases em que se vai

avançar, alunos precisam conhecer o que já existe, revisando a literatura

existente sobre o assunto”(p.52). Até por conta do grande volume de

informações sobre temas que poderiam se relacionar à nossa pesquisa, se fez

necessário revisar o que se apresentou como referência.

Visando manter-se em contato com o máximo de publicações feitas

sobre o tema desse trabalho, o pesquisador, ainda segundo Duarte(2011),

adotou o sentido restrito de pesquisa a fim de “identificar, selecionar, localizar e

obter documentos de interesse”(p.54). Além do uso de transcrições de dados

que permitissem ter os dados à mão quando necessários. Essa metodologia foi

aplicada tanto no desenvolvimento da pesquisa quanto na produção do livro,

posto que até a finalização do trabalho, o pesquisador revisava as leituras e

buscava por mais informações.

6.2 PESQUISA DE CAMPO

Inicialmente, o pesquisador realizou buscas na Biblioteca Pública do

Paraná, em jornais e revistas da década de 1950, basicamente. Como as

investigações não revelaram nenhum dado relacionado a Anacleto Vargem,

usamos, também, a pesquisa em plataformas digitais (o pesquisador do site

Google). Ao iniciar a busca, tendo as palavras “Anacleto” e “Vargem”

encerradas juntamente entre aspas, não indicou nenhuma relação com a

pessoa de Anacleto Vargem.

A pesquisa, a título de registro, foi realizada no dia 4 de junho de 2013.

Esse mesmo método havia sido aplicado há um ano, quando o autor

desenvolvia a pesquisa em caráter de pré-projeto. Os resultados indicados

àquela época se mostravam idênticos aos observados nesta, mais recente.

A pesquisa sobre Anacleto Vargem foi dividida em duas etapas. A

primeira, o autor realizou nos cinco primeiros meses desse ano. Foi quando o

pesquisador usou a metodologia da história oral e fez, portanto, entrevistas

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segundo o tipo descrito por Morin(2007) como abertas47, ou seja, sem questões

colocadas pelo entrevistador. Apenas se indagava a respeito do que a fonte

sabia sobre Anacleto Vargem, e o entrevistado falava livremente sobre suas

memórias. Esse conteúdo foi gravado e transcrito durante os últimos seis

meses. No item “Apêndice”, o pesquisador anexou algumas entrevistas. Deu

preferência, naturalmente, apenas àquelas que usou neste trabalho, não

incluindo, portanto, todas as entrevistas produzidas.

Contudo, na segunda fase da pesquisa, tendo o pesquisador entrado em

contato com o historiador José Maria Orreda, recebeu orientações detalhadas

referente aos veículos impressos que poderiam conter informações sobre

Anacleto. Até essa fase, baseada quase que exclusivamente em depoimentos,

a pesquisa não identificar a localização temporal de alguns acontecimentos em

decorrência de imprecisão nas informações coletadas.

Por exemplo, a data da morte de Anacleto: 22 de abril de 1956. Essa

informação precisa foi colhida junto ao inquérito policial que encontra-se no

Fórum de Irati. Até encontrar tal dado, houve apenas controvérsia a respeito da

data. Ou seja, em função de um cruzamento de informações – o dado contido

no inquérito e o conhecimento do historiador acerca das publicações

contemporâneas ao fato – é que foi possível se chegar à checagem.

O pesquisador identificou novas possibilidades quanto à coleta de

dados, porém, novas viagens se fariam necessárias. Porque ao viajar até Irati,

acabou encontrando novas informações que apontam para possibilidades de

registros documentais em outras cidades da Região Centro-Sul. Além de

nomes e endereços de outras pessoas que se descobriu por meio do próprio

processo de investigação. Abaixo, o nome dos entrevistados para a

reportagem.

Relação com nome das fontes:

1)Juvenal Stroparo, 79 anos, Curitiba/PR;

2)Waldomiro de Lara, 81 anos, Curitiba/PR;

3)Licineo de Lara, 88 anos, Colombo/PR;

47

Conforme pode ser lido na citação do autor, no Referencial Teórico.

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4)Lidia Capelin de Lara, 76 anos, Irati/PR;

5)Maria de Lara, 86 anos, Curitiba/PR;

6)José Stroparo, 76 anos, Irati/PR;

7)José Maria Orreda, 82 anos, Irati/PR;

8)Elias Brandalize, 67 anos, Irati/PR;

9)Dilson Brandalize, 41 anos, Curitiba/PR;

10)Maria Marcia Capelin de Lara, 41 anos; Cordoba/Argentina;

11)Pedro Capelin de Lara, 73 anos; Pinhão/PR;

12)Lucia Stroparo, 64 anos, Curitiba/PR.

13)Francisco de Almeida Ferraz, 95 anos, Pitanga/PR.

14)Amirto Menon, 80 anos, Irati/PR.

15)Natalin Dyniewiez, 59 anos, Irati/PR.

16)João Dyniewiez, 63 anos, Irati/PR.

17)Adélia Parteka, 74 anos, Irati/PR.

18)Gisléia Ferrante, 35 anos, Irati/PR.

19)Amilto Jachuk, 45 anos, Irati/PR

20)Telma Stroparo, 36 anos, Irati/PR

21)Fernando Von Rym, 85 anos, Irati/PR

22)José Francisco Stroparo, 89 anos, Irati/PR

Na segunda fase, o autor mapeou tais fontes e encontrou outras

possíveis de serem ouvidas. Houve o momento em que a entrevista aberta

dividiu espaço com a fechada, naturalmente. Afinal, não se pode esperar o

surgimento de datas, nomes e endereços completos de um relato espontâneo e

livre. Nas entrevistas anexas no apêndice é possível observar vários exemplos.

Ou seja, questões fechadas forma incluídas para obter dados precisos a

respeito dos personagens.

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7. DELINEAMENTO DO PRODUTO

O autor sentiu a necessidade de escolher algumas das opções que

seguem nos tópicos abaixo, a fim de elaborar o livro-reportagem “Os cães

calam e o demônio passa: a jornada assassina de Anacleto Vargem”. Ou seja,

há um esforço na tentativa de buscar mostrar a história de Anacleto Vargem,

assim como sua trajetória, desde o primeiro assassinato que cometeu, até a

reconstrução detalhada do último: o próprio.

De acordo com o projeto original, duas orelhas serão colocadas. A

primeira vai conter um breve resumo com informações sobre o há no livro-

reportagem, e, a segunda com descrições de quem é o autor.

7.1 O PROJETO GRAFICO DE "O DEMONIO PASSA E OS CAES CALAM: A

JORNADA ASSASSINA DE ANACLETO VARGEM"

A parte conceitual do projeto foi desenvolvida a partir da construção do

personagem principal do livro, Anacleto Vargem. A cada capítulo ocorrem

descobertas acerca do personagem, daí nas capas dos capítulos nos quais o

próprio personagem assume a narrativa, partes do rosto se construindo. Uma

sugestão ao leitor, que vai descobrindo um pouco a.

Os capítulos foram divididos em duas estilísticas(nas imagens da página

55 deste trabalho é possível ver os exemplos do falamos nesta seção) -

quando há a troca de personagens no livro: os capítulos numéricos são o

repórter e, nas tituladas e com páginas pretas e fontes brancas, o assassino. O

autor determinou que a troca tinha ser de fácil percepção ao leitor, por isso a

troca de cores e de fonte de cada capítulo(infelizmente na impressão

apresentada à banca não houve possibilidade de colocar as páginas pretas por

indisponibilidade de gráfica que aceitasse o projeto dentro tempo determinado.

Assim, exclusivamente por problemas técnicos da grpafica, a versão que os

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avaliadores da banca tem em mãos é inteiramente impressa em páginas na cor

brancas e fontes na cor preta).

As fontes utilizadas foram: geórgia para a reportagem e helvética para o

assassino, franchise bold para as capas. A capa do livro seria o assassino sem

os olhos - não foram encontradas fotos que registrassem o rosto, então, foi a

partir das características gerais da população do local onde se passa a história

e de descrições feitas pelo autor ao designer gráfico.

O icone é parte importante do livro, pois é uma interpretação metafórica

do livro, não se encontra o diabo dentro do livro, mas sim o medo que Anacleto

provocava nas pessoas(na página 56 deste trabalho é possível observar o

trabalho do designer na capa – com a imagem fictícia de Anacleto –; na

abertura do livro – com a imagem real do autor – e o ícone, presente em todas

as páginas da obra).

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7.2 PERSONAGENS

Há anos a história de Anacleto Vargem vem, fragmentada, sendo

contada ao autor da pesquisa. Como já foi falado, os parentes do pesquisador

por parte de pai são oriundos do Pirapó. Assim, quando era ainda criança, o

autor, ouviu muitas coisas a respeito das ações de Vargem, por meio de breves

relatos ditos por tios, tias, primos e, principalmente, por seu avô, Frederico

Stroparo. Portanto, as mesmas características dos primeiros contatos com a

história, se repetem agora, no entanto, sob técnicas jornalísticas do New

Journalism e do Gonzo Journalism.

7.3 FOCOS NARRATIVOS

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Toda, ou, quase toda a narrativa se dá na primeira pessoa. No entanto,

o narrador assume duas personalidades: a do repórter e a do assassino,

Anacleto Vargem. Os demais personagens são descritos por estes dois

narradores que interagem nos diálogos e abrem espaço para o ponto de vista

da terceira pessoa.

7.4 PÚBLICO ALVO E VEICULAÇÃO

O público alvo são pessoas que desconhecem a realidade do Pirapó de

Anacleto Vargem. Seja pelo deslocamento geográfico ou pelo afastamento

temporal, pois, como já foi dito, a história se encerra no ano de 1956, com o

assassinato de Vargem. Um público interessado por leitura, e, principalmente

por jornalismo literário e história do Paraná – mais particularmente, da região

central. Estudantes da área da comunicação social dos municípios de Irati,

Rebouças, Ignácio Martins e Pitanga, além de professores, basicamente. O

ambiente acadêmico é o lugar mais favorável a esse tipo de discussão que o

livro tenciona provocar.

A veiculação, visando atingir esse público alvo, será feita por meio de

eventos acadêmicos que abram espaço para feiras e exposição de livros. O

autor pretende inscrever o livro na lei de incentivo à cultura, visando produzir

tiragens maiores e poder, inclusive, promover um evento de lançamento e

distribuir em diversas regiões do Paraná, a princípio.

7.5 RECURSOS MATERIAIS E ORÇAMENTO

O pesquisador possui os equipamentos necessários à captação de

entrevistas: câmera fotográfica, gravador e filmadora digitais. Por outro lado,

existe a necessidade logística que, neste tipo de produção, inclui hospedagem,

passagens de ônibus e despesas com taxi. Numa estimativa recente,

abarcando todas as demandas, o pesquisador chegou ao valor de R$ 3.600.

Nessa cifra, já estão incluídos os gastos com diagramação e as três cópias do

livro.

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8. CRONOGRAMA DE ATIVIDADES

Descrição da Atividade Mês (relativo ao último ano de curso)

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12

Revisão da bibliografia X X X

Pesquisa de campo X X X X X X X

Elaboração do relatório

monográfico X X X

Banca de qualificação X

Mapeamento de fontes X X

Entrevistas X X

Edição e verificação dos

dados X X

Elaboração do livro-

reportagem X X

Diagramação X

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Revisão e impressão X

Apresentação do

produto/banca final X X

9. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho visou fomentar uma pesquisa, cujo objetivo principal foi

embasar um livro-reportagem sobre a história do assassino Anacleto Vargem,

morto pelo próprio cunhado no ano de 1956, no Pirapó, distrito de Irati, Região-

Centro do Paraná. Assim, depois do período de leituras o pesquisador

descobriu que a prática força o território da teoria, como a invadisse. As

viagens, as entrevistas e a composição do livro são experiências muito ricas,

as quais, caso fosse a pretensão de agora exprimi-las, outro livro se faria

necessário.

Quanto ao resultado do trabalho, o livro-reportagem: tendo em vista à

resolução do problema proposto, o pesquisador buscou o resgate da memória,

a fim de escrever, ou seja, reproduzir jornalisticamente, a história de Anacleto

Vargem. Buscando demonstrar como o estereótipo se propaga de forma

dissimulada de obviedade pelo senso comum enquanto produto, e como a

comunicação participa nesse complexo processo, pela pesquisa. Mas, acima

de tudo, escrever com sentimento a respeito de uma história, buscando revelar

a emoção, antes de qualquer coisa.

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Sendo o jornalismo, por tudo que se pode apreender, um instrumento

que atua fortemente na construção social de realidade, o pesquisador percebeu

não uma possibilidade de algum tipo de acerto de contas com o passado, como

que se intentasse corrigir algum tipo de injustiça, quanto à maneira que a

história se estendeu pelo tempo, basicamente na memória das pessoas. Pelo

contrário, o aprofundamento da pesquisa, ouvindo pessoas próximas do

assassino, apontou para o desvendamento de um ser humano apenas, cujas

ações, cobertas pela mítica representação do assassino sanguinário e

hediondo, possivelmente, tenha influenciado em parte imensurável o desfecho

da trajetória, tanto de Anacleto, como na de todas as outras personagens as

quais se relacionaram à dele.

Então, a intenção desta pesquisa foi buscar o máximo de informações e

também estabelecer um nível de comunicação mais profundo com as fontes. O

pesquisador, enquanto escritor de uma obra de jornalismo literário, buscou ser

a voz do personagem central. Pretensioso demais? Talvez. Mas, como se lê no

primeiro capítulo de “Os cães calam e o demônio passa...”, “Há uma ponte[...] e

só um jeito de descobrir se é realmente um meio de acesso: se arriscar de

peito aberto”. Quem sabe, mesclar gêneros, subgêneros e técnicas e os aliar

ao desejo de inovar não seja um meio de abrir novos caminhos à

comunicação? Por fim, nos esforçamos em vislumbrar não o que é evidente -

ou, entendido como evidência – mas a complexidade dos personagens e o que

nos aproxima, como pessoas, apenas. O mais livre possível dos estereótipos

perpetrados por, entre outras coisas, o jornalismo.

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10. REFERÊNCIAS

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LIMA, Edvaldo Pereira - Páginas ampliadas: o livro-reportagem como

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LIMA, Edvaldo Pereira - O que é livro-reportagem. - São Paulo: Brasiliense,

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WOLFE, Tom. Radical Chique e o Novo Jornalismo. Tradução de José

Rubens Siqueira – 2ed. – São Paulo – Companhia das Letras, 2005.

11. APÊNDICE

O pesquisador reservou este espaço para anexar entrevistas que

tenham servido como base a alguma sustentação argumentativa dentro deste

trabalho. Os textos, que são decupagens de entrevistas gravadas no decorrer

dos meses de abril, maio, junho e julho de 2013, possuem as iniciais de cada

entrevistado como identificação que antecede a respectiva resposta. A palavra

“EU” identifica as perguntas e colocações do pesquisador.

11.1 ENTREVISTA DE JOÃO MAGATÃO

JM: Você quer saber a história desde o começo? Interessa, assim?

EU: Sim, pode ser...

JM: Então vou te contar desde o começo... ‘cê veja uma coisa: o Anacleto não

era um bandido. Ele era uma pessoa normal, igual nós somos trabalhadores,

ele era assim, igual nós... mas, depois daquele dia, perto da sapataria do Doca

Martins, que ele matou o Bidóca, a coisa mudou demais... porque, no Pirapó

mesmo, assim...de sair por ali, andando...cumprimentando todo mundo nunca

mais. Ele veio, num espaço ai...duns cinco ou seis anos...umas vezes, que a

gente ficou sabendo, pra visitar a mulher e os filhos, mas, escondido. Voltou

por último pra matá o Evandro.

EU: E o senhor o viu alguma vez?

JM: Pois então...foi nesses tempos que ele andava fugido. A gente morava lá

no Rio do Coro...ele aparecia lá, de vez em quando, pra pedi dinhero

emprestado do papai. E, depois, vi ele morto...eu tinha uns nove anos, na

época. Então, tudo que eu sei, na maioria, foi contado pra mim pelo meu

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pai(Jorge Magatão)... ele era muito amigo do meu pai. Ele aparecia lá e dizia:”-

Jorge, me dá a tua cartera, aqui...” e ai meu pai dava a cartera pra ele, que

dizia: “- tá fraco de dinheiro, hein, Jorge?” e, daí, dizia o papai que ele tirava as

notas mais graúdas e deixava as miúdas...depois dizia: “- Tá, isso ai fica pra

você dá de comer os teus pançudos...”

EU: Mas...

JM: Ele fazia assim com quase todo mundo que ele conhecia. Fazia assim no

papai, mas fazia assim na casa do Basílio Valus, do nôno Stroparo... de todo

aquele povo, lá. E não desse pra vê! Depois, nos mudamos pra colônia Boa

Vista e, mesmo assim, ele ainda veio mais uma vez, na casa do papai, que eu

me lembre. Nessa vez, ele chegô pro meu pai e disse: “- você me dá um cavalo

forte, ai, Jorge. E me dexa posá na tua casa hoje...” sabe Deus o que tinha

aprontado. E, ele tinha fama também de sempre dexá um cavalo seco, magro

de fome e leva, em troca, um gordo. O papai dizia: “- Mas, Anacleto...eu to

fazendo a lavora ai...e você vai me dexá c’um cavalo fraco, home...” e ele

respondia: “- me veja o nome de argum que te queira mar, por aqui, que ficamo

quite, ué...mato quem for, pra te pagá...” e lá ia ele co cavalo bom do papai...

EU: Sabe alguma história de crime que ele tenha contado pro seu pai, João?

JM: Agora tava lembrando da vez que ele diz que matou um amigo, a mulher e

o nenê... parece que ele tava corrido, fugindo da polícia e paro na casa desse

pessoal, pra se escondê. Daí não sei comé que foi lá, acho que o amigo não

queria que ele ficasse lá...deve de ser, mas, na hora da janta, ele comeu, e o

amigo disse que ia emprestá um revorve pra ele, e que depois ele devia ia

embora. Daí quando o amigo truxe a arma, o Anacleto carrego e deu um tiro no

cara, outro na mulher e diz que a criancinha começou de choradera... ele

penso: “- essa casa é uns quinze quilômetro da vila...se eu dexá essa criança

aqui, sozinha com os pais mortos, agora...ela vai morrer também...”, daí diz que

ele foi lá no berço e sangrou o nenê...imagine? Matou o nenê e depois se

arrancou de lá... ele sempre falava pro papai, nessas épocas, que já tinha

matado 25 pessoas...

EU: Isso foi quando?

JM: Ah...uns tempo antes dele vir pro Pirapó dizendo que ia matá o nôno Santo

e o Ervandro...acho que em 54, decerto...mais ou menos por ai... eu era

pequeno demais, nessas época. Ele conto duma veiz que ele vinha fugido nuns

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matagal perto da Pitanga e deu com uma mulher que vinha com a filha

pequena trazendo a marmita pro marido que tava na roça... diz que ele pediu a

comida pra ela e ela disse que não, que era por marido aquela, mas que ele

esperasse ela voltar que ela levava ele até em casa e dava de comê pra ele lá,

daí... diz que ele saco do revorve e deu um tiro na cabeça da mulher e outro na

filha pequena. Ainda disse que jogou os corpos no rio e que quando passou

numa bodega, uns cinco quilômetro pra frente, avisou o pessoal que viu um

homem matar uma mulher e uma criança em tal lugar e jogar o corpo no

rio...pros cara irem procura que eles iam achá...pense? Ele disse pro papai que

no norte ele matou muita gente que tinha terreno lá...lavrador, decerto...gente

que usava as terra quenem o pessoal das colônia, ali, no Irati... então, pra criá

porco, galinha, plantá uns pezinho de milho... e, os grandão que queriam

plantar café, num podia compra os terreno, pois essa gente não vende, né? Daí

eles empreitava com bandido feito o Anacleto de ir lá e matar o chefe da

família, porque depois eles chegavam junto da família – das viúva, na

certa...tudo sem estudo e pobre, ainda - e ofereciam uma quantia lá e

compravam as terra. Tinha caboclo daqueles lá que chegava a ter 100, até 500

alqueires de terra...e usando um pedacinho só, pois era plantação no mais pra

vivê, ali, com a família... então o Anacleto dizia que se arrependia desses que

ele matava no meio do caminho, sabe? Mas, nas empreitada, dizia que nem

ligava, matava com gosto, até...

EU: Mas quem mandava esses crimes? O senhor sabe? Ele contava?

JM: Ah...ele dizia que era fazendeiros ricos, né...que tinha muitas terras,

mas...como o café crescia demais, precisavam de mais terra ainda...devia de

ser político...gente poderosa...vai saber. Ele só dizia que eram fazendeiros

muito ricos... gente do dinheiro gordo, ele dizia.

EU: Alguma outra...

JM: Você veja como é que são as coisas...parece que foi uma sina do meu

pai...que acabou sendo a sorte de tudo aquele povo, lá..da Boa Vista e do

Pirapó... eu vou contar pra você, mas acho que vô lembrar de um décimo

só...dai você tira as partes melhor e vê o que consegue fazê...

EU: Deixa comigo, João, mas...você dizia...

JM: Então... o papai carneava sempre algum boizinho e elevava ali no Rio do

Coro, pra vende, né? Pois eram tudo conhecido dele, sabe... e, ele chegou na

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bodega do Pedro Bernardo, lá, de tarde...tinha vendido tudo a carne do

boizinho e tava sentado, tomando os trago dele... dali a pouco, encostou um

cavaleiro lá fora, papai foi olhá: era o Anacleto Vargem. “- Ô, amigo Jorge!

Você tá ai, é?” e diz que abraçou bem forte meu pai... e falou: “- Nem acredito

que é você, depois de tanto tempo...”, e o papai respondeu: “ – Pois é...quem é

vivo se vê, né?” diz que o Anacleto fico olhando pra ele, depois que o papai

disse aquilo e falou pro meu pai assim: “- Pois é, Jorge... eu to indo fazê uma

viagem, agora...ma, a coisa ainda num tá boa, sabe? Proique, despois que um

home põe uma ideia na cabeça, é meio ele executá essa ideia... eu já te conto

o que é, ma, vamo lá pra fora, vamo...vamo tomá uns trago comigo, meu

amigo!” Nisso, diz que ele arrancou de um baralho e jogou em cima dos

pelegos e disse: ”- Óia, Jorge...só tá dando os contra nessa minha viagem,

sabe? Só to perdendo, moí tudo meu dinhero. Então, to indo lá no Evandro...vô

matá ele...” e o papai se assustou, claro, e disse: “- Que qué isso, rapaiz?! ‘Cê

tá loco? Quando ‘cê matô o Bidóca, no Pirapó, aquela veiz, por acaso num foi o

Ervandro que crio a tua famía, home?” e o Anacleto respondeu que era bem

por isso que ia matar o cunhado. “- Porque ele pensa que ele é o pai dos meus

fio...o pai sô eu, que fiz...ele pode tê dado de comê, ma, o pai sô eu...e o

Ervandro morre hoje, Jorge!” O papai me contou, que uns dois anos antes,

ele(o Anacleto) havia mandado uma carta pro Evandro dizendo... “- Óia,

Ervandro...eu logo, logo, chego ai, no Pirapó, de novo...e dessa veiz, vô pra te

matá!” e coisas assim. O Evandro, decerto, pensou que era brincadeira, né?...

EU: E depois?...

JM: Bom, daí, nessa noite, ele ainda disse pro papai que além de matar o

Evandro, ele ia passar na casa do Dimas, que era um cunhado dele, e no nôno

Santo. Esses Dimas, dizia o Anacleto que não ia matar, porque ele achava o

cara tão imprestável que ia só dar uma surra. Só que ele dizia que ia ser uma

surra daquelas, não uma qualquer. Ia surrar esse Dimas pelado, na rua, pra

humilhar bem e machucar bastante, mas não matar. E no nôno Santo, era pra

pegar uma Winchester e dinheiro. Depois no Basílio Walus, pra trocar o cavalo

magro por um mais forte e gordo e, por último, na casa do veio Pedro Izidoro,

de quem ele sempre arrancava dinheiro, também. O papai disse que o

Anacleto ia fazer isso tudo e, conseguindo, aquela ia ser a última vez que

alguém dalí teria visto ele...ele dizia “- Ói, Jorge, despois que’eu pegá tuda

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essa dinherama e matá quem tenho que matá, vô me desligá dessa gente.

Nunca mais vorto pra cá e ninguém daqui vai me vê. Você vai sê o úrtimo,

Jorge!”

EU: Mas...e o que seu pai dizia sobre esse fato do Anacleto ter contado tudo

isso e não tê-lo matado, em seguida?

JM: Pois é... o papai achava que ia morrer, também. Ele acredita que foi pra

não ter que matar mais um, que o Anacleto incentivou tanto um porre para os

dois, naquela noite. O papai dizia que o Anacleto praticamente obrigou ele a

beber umas duas garrafas de pinga – e ele tomou junto. O papai dizia que eles

saíram junto da bodega. Como dalí até a Boa Vista dava uns cinco quilômetro,

papai ficou com medo e achou que ia ser ali mesmo, no caminho, que o

Anacleto matava ele. Era até engraçado de ouvir o papai contar, sabe? Ele

dizia que ficava pensando assim ”- Desgramado...agora, sozinho co’esse diabo

aqui...ele vai me matá! Ele vai me matá!”(risos) Daí tinha um compadre do

papai que morava na saída do Rio do Coro e eles iam passar bem na

bifurcação dessa saída. Diz que o papai falou pro Anacleto: “- Óia,

Anacreto...eu vô ali no compadre José Manera, tomá um chimarrão co’ele, ‘cê

pode segui sozinho daí...”(risos) diz que o Anacleto falou pra ele: “- Escuita,

Jorge! “Cê tá com medo d’eu, é? Pode ir lá, num tem pobrema. Te espero lá no

portão da Boa Vista! Óia aqui, ó!”, e diz que mostrou dois litrão de pinga pro

papai, “- Nóis tem tudo isso aqui pra bebê ainda hoje, Jorge!”...Olha, foi a

alegria de todo aquele povo lá, essa do papai, sabe?

EU: Mas, e daí, João, o que aconteceu depois?

JM: Pois o papai foi nesse compadre dele e demorou o mais que pôde – eu

acho que ele não falou nada pro José Manera, pois, todo mundo se cagava de

medo do Anacleto. Sei lá que história que ele andou dizendo pro compadre

dele, lá..., ele dizia que tinha contado tudo; e o José falou pra ele não voltar lá

de jeito nenhum. Diz que o José dizia pra ele: “- Jorge, ele se arrependeu de tê

te contado do prano dele...ele vai te matá, num vorte lá...” Só sei que ele saiu

da casa desse homem era tipo uma meia noite, já. E, bem certinho, como o

Anacleto havia prometido, tava lá ele – o Anacleto – numas hora daquelas –

daí já devia ser uma hora da madrugada -, esperando meu pai, lá na entrada

da Boa Vista, com as garrafa de pinga. Diz que tava com o pelego largado no

chão, os arreios...tudo largado. E mandou o papai amarrar os burros da

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carrocinha que ele tava porque eles iam beber toda aquela pinga antes de mais

nada. O papai disse que tentava convencer o Anacleto com umas conversa de

“- Ma, se nóis tomá tudo essa pinga nóis vai caí, home! Então vamo lá pra

casa. Bebemo essa pinga lá e você posa lá, tamém. Daí nem percisa ir lá matá

o teu cunhado...” e o Anacleto não queria nem saber dessa conversa...diz que

dizia que matar o Evandro ia ser uma satisfação que ele não abria mão. Daí ele

fazia meu pai tomar aquela pinga meio que na marra – porque o papai fazia

que tomava, mas cuspia.”- Ah! Você num tomo nada!” Pois, diz que o Anacleto

fazia ele tomá no gargalo da garrafa pra ver as borbulha e o nó da garganta

mexer. E ele tomava, também. E foram tomando até acabar com toda aquela

pinga. Meu pai ficou quase desacordado e, quando acabou a cachaça, papai

dizia que só lembrava do Anacleto colocando ele na carroça, porque nem

andar o papai conseguia mais, naquelas altura. Estava chovendo muito,

também, naquela noite. O Anacleto ia tocando, do cavalo que ele estava,

mesmo, os burrinho que puxavam a carroça do papai. Ele só deixou meu pai

quando chegaram no portão de casa. Daí, decerto, ele não quis descer, largou

a carroça com o papai dormindo dentro lá na frente. Mas os burros

empurravam a porteira com a cabeça e fez barulho. Eu era pequeno, mas

lembro: a mamãe acordou, também e veio me chamar: “- João, levante que a

carroça do teu pai tá lá na frente, ma, só tá a carroça, que o teu pai num tá lá...”

porque ela não via o papai, pois...tava deitado, dormindo. Sei que fomos lá, eu

e mamãe...os burro com a cabeça enfiada entre as trave do portão e o papai

caído, lá, dentro da carroça... daí recolhemos os burros e a carroça debaixo

duma cobertura, tipo duma garagem, e a mamãe nem tirou ele de lá: colocou

umas coberta por cima e deixou ele dormindo lá mesmo. No outro dia, era

umas seis horas da manhã, o papai entro em casa e chamou a mamãe.

Mamãe levantou, fez um chimarrão e eu escutei quando o papai falou pra ela:

”- Óia...o que vô tê contá pode tê acontecido, ma, pode que não...” e, ele pra

minha mãe, foi assim, assim e assim...e conto tudo...a história inteira que o

Anacleto tinha contado pra ele, e como que foi com a carroça e as garrafas de

pinga e tudo...

EU: E qual foi a reação da sua mãe? Afinal, era filha de um dos ameaçados, o

Santo Stroparo...

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JM: Ah...mamãe ficou quase loca...imagine!? Agora, eu fico pensando se meu

pai não tivesse aparecido lá, na bodega, aquele dia...hein? Pense! Ou,

qualquer outra coisa que acontecesse...sei lá...o Anacleto já matar ele por ali,

mesmo... não beber até ficar totalmente embriagado... meu Deus! Ia ser uma

matança naquele Pirapó, disso você pode ter certeza! Tá na cara que ele ia

matar o Evandro, depois ia matar o nono, depois o Basílio Valus, o Dimas...o

Pedro Izidoro... fora as mulherada, as criançada, moça, moço...que tivessem

pela frente, nas casas. Ele ia fazer uma chacina ali naquele lugar. Eu acho que

isso é coisa de Deus, sabe? Ter colocado meu pai, ali, naquela hora, naquela

bodega... só pode ser Deus. E o papai era inspetor de quarterão... daí, quando

deu umas sete horas, um pouco mais, chegaram lá em casa pra avisar da

tragédia. Disseram pra ele que o Anacleto tinha sido morto pelo Evandro e que

o corpo tava lá...e tal...que era pro meu pai ir com eles pra lá.

EU: E você foi junto de seu pai, até lá? Você viu o Anacleto morto.

JM: Uhum...fui. Chegamos lá eu meio que de longe já vi o Anacleto estirado,

todo sujo de sangue, embolado numa capa...tava que parecia um porco

enlameado no chiqueiro. Colocaram o corpo na carroça do papai e o José

Stroparo foi junto, também. Pois sabe que depois o papai foi limpar aquela

sanguera das tábuas da carroça, teve que raspar com o machado, porque não

parava de verter sangue. Daí foi uns dias assim, no final, arrancou todas as

tabuas e pôs outras, novas. NÃO PARAVA MAIS DE VERTER SANGUE DAS

TÁBUAS, VOCÊ ACREDITA? Isso eu vi, ninguém me contou. Fora que depois

começou a acontecer umas coisas bem estranhas. Era um tal de carroça

amanhecer tombada...bateção de balancinha pelas parede daquela

garagem...o papai chegava a abrir a janela com a espingarda na mão, pra se

acontecesse de ser alguém já estar preparada, mas, daí, não era ninguém...

ele já deixava a carroça sem nada dentro, livre, vazia...pra ver se acabava o

barulho de noite. Não adiantou, os barulhos continuavam...

EU: Mas, e daí? O que aconteceu?

JM: O papai foi lá no Pirapó, atrás de um tal de compadre...não!, compadre

não...era o padre Vitório. Pois o papai andou até vendo o Anacleto, numas

noites, lá...perto da carroça...

EU: E o que você acha que era?

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JM: Ah...tinha que ser uma “visage”, né,... papai não ia mentir. Ele tremia

inteiro, quando essas coisas aconteciam. E a gente mesmo, escutava os

barulhos, lá, na carroça...de noite...

EU: E o que disse o tal Padre?

JM: Ele não era do Pirapó, sabe? Ele vinha ali, uma vez ou outra...porque já

tinha fama de ser bom com esse tipo de aparição. Um mês depois, dois, no

máximo...ele apareceu por lá e o papai levou ele até em casa. Rezou umas

rezas lá...fez a gente rezar junto e queimou uma vela, debaixo da carroça...

EU: E?

JM: Parou com tudo. Nunca mais tivemos problemas. O padre disse que aquilo

era porque o Anacleto não tinha paz...tinha uma vida atormentada...essas

coisas. Sei lá.

EU: E quem você acha que matou o Anacleto? O Evandro ou o Nico?

JM: Pois é... eu acho que... eu cheguei bem cedo lá. Eu não vi o Evandro

porque ele já estava escondido no paiol, quando chegamos. Mas o pessoal já

estava dizendo que o próprio Evandro dizia ter sido o Nico, quem deu a

primeira facada. Só que ele, Evandro, ia assumir o crime, como autor. Bêbado

que tava o Anacleto, mas, era de briga. Tava em cima do Evandro, que só

conseguia se defender, segurar o punhal. Dizem que o Evandro contava que o

punhal que o Anacleto usou, tinha um cabo em “S”. E foi bem numa dessas

curvinhas do “S” que o Evandro encaixou a mão, sem querer, quando o

Anacleto desferiu o golpe – que teria sido fatal, na certa, caso não acontecesse

mais essa coincidência em favor de todo mundo. O pessoal dizia também –

dois colonos lá, no dia, falavam isso e eu escutava – que o Evandro, assim que

deu as facadas finais no Anacleto, saiu na porta e começou a gritar: ”- Venham

aqui! Venham ver o tatu cavalo beeem gordo que eu matei! Venham!” Os

colonos se chamavam Osvaldo Berger(“Vardão Berg”) e Nicolau Wioretchuka.

Daí, diziam também que mesmo depois do monte de facadas que o Evandro

deu o Anacleto ainda se batia e ameaçava se levantar de novo. Foi daí que

saíram com a história que o Evandro deu mais de cinquenta facadas nele,

porque, ao ver que o homem se levantava, o Evandro foi lá e, daí com as duas

mãos – em uma, a faca e na outra, o punhal – desferiu uma enormidade de

golpes.

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Sabe, ele tinha o costume de dizer algo, mais ou menos, assim: “- Óia, eu

tenho muito medo de uma ponta de faca, proique de bala de revorve num tenho

medo nenhum!”, porque, segundo ele mesmo, cansou de ser alvejado e nunca

foi ferido. Mas, isso não é bem verdade, proque ele também contou de um tiro

no pé, que levou certa vez. Ele dizia ter feito um feitiço, num desses canto que

ele andou, por ai, e ficou com o corpo fechado.

EU: Teu pai contou de alguma situação na qual Anacleto teria se envolvido em

outro estado, como no Rio Grande do Sul, por exemplo?

JM: É...ele disse isso pro meu pai, sim. Disse que foi até lá, mas as coisas não

deram certo...foi dessa vez que ele veio pro Pirapó. Mas nunca contou pro

papai... pra dizer a verdade, ele só falou que foi a partir de Campo Mourão,

pertinho de Pitanga, que a matança começou. E, de lá, foi pro Norte. Pra fazer

os crimes encomendados, que, segundo ele mesmo, foram muitos. E pensar

que era um cara amigo de todo mundo, segundo dizem, até, boa gente... antes

de matar o Bidóca. E por causa de um jogo de baralho, ainda. Parece que ele

ficou doido, depois...não parece? Eu acho que tem...

EU: E qual é a lembrança mais clara e forte, talvez, que o senhor tem, do dia

que Anacleto morreu?

JM: Ah...é a da vista dele deitado, né...naquela sanguera. Da capa, do

chapéu...tudo aquilo junto, eu acho. A cara dele tava muito inchada... tava

beiçudo, narigudo...carudo... nem sei se aquela não era a cara dele, mesmo,

porque eu não tenho lembrança dele vivo. Lembro de escuta o papai conversa

com ele, mas...nem via a cara dele, direito...sempre de chapéu...olhando pra

baixo e de saída ligeira, sabe? Eu lembro muito bem do sepultamento. O papai

contou pro Dimas o que havia acontecido e o Dimas veio, pra ver... não sei

quem foi que cavou a cova, mas, era uma cova bem rasa, sabe? E, o pessoal

jogava terra, em cima do corpo...nisso esse Dimas veio e começou a pisotear

aquela terra meio fofa ainda, que tava sobre o cadáver...ele pisava e falava: “-

Você queria surra eu pelado, desgraçado? Agora sô eu que to aqui te

sovando!”, disso eu nunca esqueci, dessa cena do Dimas sapateando em cima

do Anacleto.

EU: E você sabe o por que do apelido “Vargem”?

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JM: Ouvi dizer que é porque ele passava muito tempo com uma família que

tinha ali no Pirapó, os “Vargem”, mas,... já ouvi também dizerem que é a cidade

deles...quer dizer, de onde vieram. Não sei com certeza.

EU: E como era essa amizade dele com seu pai?

JM: Muito amigos. Ele posou algumas vezes lá em casa. Por isso que te digo:

esse homem, antes de matar o primeiro, era uma pessoa boa, ninguém

imaginava que ia se tornar num assassino, mais tarde. Era meio folgadão, é

verdade, porque lembro de uma vez que apareceu lá e o papai tinha matado

um porco. Papai convidou ele pra ficar e comer o assado, mas, ele tava era

atrás de grana. “- Que comê porco que nada, eu não vim aqui pra comê tua

comida, Jorge, ma, se tive uns trocado na cartera ai, eu quero!”, ele disse. A

polícia, sabe, quando ouvia contarem onde tava o tal do João Moraes, o

Anacleto e o Jorge Martins, desviava. Não sei se por medo ou o quê, mas,

acontecia, sim, desse jeito. O primo dele, esse Jorge Martins de Lima, era

bandido pior até e começou bem antes do Anacleto, a matar. Só que

desapareceu rápido. Eu soube de umas dele, também. Dizem que só numa

pegada, na Reserva, matou seis ciganos, a troco de nada. Na certa discussão

boba lá, por causa de qualquer coisa, mas...o filho desse Jorge casou com

minha irmã, inclusive, a Luiza. Mas, sei que ele foi lá na Barra do Gavião, pra

matar um sujeito e deu com a cara na porta. O homem não estava em casa. Só

que atendeu foi um irmão do encomendado. Pois, esse Jorge, olhou pro cara e

falou: “- Ah, ma, se teu irmão num tá, vô matá você mesmo, pra num perdê a

viagem!” e deu um tiro na cabeça do rapaz, já penso? Tinho Deda, era o nome

do homem que ele procurava. Eu acho que aquelas épocas eram tão violentas

porque o pessoal andava muito armado, sabe? Todo mundo andava com um

revolver na cinta, com um facão... e nos bailes, então? Até que morria pouco,

se for pensar bem. Era costume das pessoas, lá, andar armado. Veja meu pai,

por exemplo: nem cagar ele não ia sem o revolver na cinta. Andava direto com

o trabuco. Ainda ele era inspetor, mas...não tinha essa. Eu ia nas festas da

igreja e via aqueles velhos com aqueles revolvões na cinta, dançando no salão,

armados... pra que? Até quando a polícia chegava... você pensa que eles

falavam alguma coisa? Era normal exibir armamento, naquela época, lá

naquele lugar. Por isso que quando saía alguma briga era certeza que alguém

morria.

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EU: Seu pai morreu do que e quando, João?

JM: Ele morreu de infarte. Faz uns trinta e poucos anos, ai...ele morreu em

1975. Morreu novo... devia ter uns 55, no máximo. Ele era agricultor, como a

maioria das pessoas lá. Eu ajudava. Depois fui embora. Porque naquele tempo

a lavoura não dava nada, era só pra viver. Hoje tá bom, o pessoal consegue

crescer no campo. Existem equipamentos e tem como comprar. Naquele tempo

era só na base do aradinho... imagine?!

EU: E você saiu de lá quando?

JM: Quando eu tinha uns 27 anos, mais ou menos...28, no máximo. Casei com

20, então...ainda vivi um bom tempo lá. Se eu soubesse que não ia valer de

nada, tinha saído antes, teria vindo bem antes pra Guarapuava. Vendemos

tudo o que tínhamos lá. Eram 12 alqueires, no total. Mas todo mundo naquela

época tinha mais ou menos isso, sabe? Daí os que foram ficando e compraram

as terras baratas de quem ia saindo, hoje, por exemplo – se plantou soja -, tá

montado na grana. Em 1975, quando saí de lá, vendi 300 sacos de feijão. Era

bastante, pro nosso tipo de produção e eu trabalhava muito, também. Eu era

um produtor médio, pra região. Eu tinha sempre dois camarada me ajudando,

só que o arado era na base do animal, né?! Então...era um tipo bem atrasado

de produção, não tinha jeito. Pra você ter uma ideia, eu juntava todo o dinheiro

de uma safra e colocava no banco. Daí você ia usar aquela verba pra viver e

comprar mais coisas pra semear uma nova safra. Antes, bem antes – nos

últimos tempos – de colher novamente aquele dinheirinho já tinha acabado.

Pense na dificuldade que não era. Ano atrás de ano, a mesma coisa. Mas, a

gente dava um jeito e ia vivendo. Eu até tinha um Jeep e já ia comprar uma

roçadeira. Os Camilo e os Grubowsky, hoje são “bicho-véio48”, lá, mas, no

meu tempo, eram menores que nós. O que mais me motivou a ir embora, foi

um atrito com meus cunhados. Eu não poderia continuar lá, porque, do

contrário, podia acabar em morte. Daí, falei com minha mulher e decidimos nos

mudar para Guarapuava. Escolhi viver a vida sem me preocupar tanto com a

posse, ou com as conquistas materiais. Eu acredito que escolhi bem, estou

satisfeito.

EU: Vocês eram em quantos, João?

48

Expressão equivalente à nossa “por cima da carne seca”, ou, “rei da cocada preta”. Significa que a pessoa está muito bem, principalmente, na área financeira.

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JM: Papai, mamãe...quatro filhos homens e duas mulheres. Apenas a Lúcia

Magatão, dos irmãos, já morreu. A Lúcia Brandalise, depois que se casou com

o Daniel Brandalise, no Rio Preto. Os nomes, são: Lúcia, Luiza, Adão, eu –

João, Silvio e o Antonio.

EU: Não teve um de vocês que explodiu um frasco com pólvora...?

JM: Sim! É o filho do Adão, o Augusto – dizem “pórvinha” pra ele. Na época ele

ficou muito mal, quase perdeu a visão de um olho – quase arrancou o olho, na

verdade. Mas fez tratamento e recuperou 30%. Sabe que esse rapaz está

riquíssimo, hoje? Tem fazenda, uma empresa com mais de sessenta

funcionários...tá cheio de dinheiro.

EU: E ele foi brincar com pólvora, quando garoto? E...

JM: É...como dizem: piá é piá, né? Eles moravam nas proximidades de uma

fábrica que fazia uso de explosivos. Essa empresa cedia casas pros

funcionários – para uns poucos, apenas. Mas era grande a rotatividade, sabe?

Então, num desses “entra e sai”, algum ex-funcionário “deixou” um vidrinho

cheio de pólvora no quintal. E ele foi com uns amiguinhos brincar lá e acharam

a pólvora. Diz que tentou explodir várias vezes com fósforo, mas a pólvora não

explode assim, na chama direta. Daí ele levou o frasco pra casa e colocou uma

brasa de carvão em cima. No que ele se aproximou pra assoprar a brasa a

pólvora explodiu e jogou ele contra a parede. E partiu a cara dele no meio,

claro. Mas o pai dele, que é o meu irmão mais velho, o Adão, também fazia

dessas. Decerto que o “Pórvinha” puxou o pai, na traquinagem... uma vez a

mãe tava no tanque, lavando roupa – acho que tava com a Lúcia bebê, se não

me engano – e o pai tinha espingarda tipo bacamarte, sabe?, daquelas que se

soca a pólvora direto no cano...então...sempre tinha pólvora em casa. E o Adão

nesse dia aproveitou a hora que a mãe foi lá pro tanque – que ficava bem longe

da casa, perto do mangueirão dos porcos – e pegou um punhado daquela

pólvora que o papai reservava pra usar na espingarda e fez um rastro, no

assoalho da cozinha. Impressionante, eu acabei de lembrar: ele fez a mesma

coisa que o filho depois ia fazer: pegou uma brasa, depois de muito tentar com

o fósforo, e jogou em cima daquele rastro... e foi só o POWWWWW na cara

dele. Partiu a testa...queimou bastante o rosto...olha, você tinha que ter visto.

Daí você pense no susto da minha mãe...ouviu um estrondo daqueles e daí a

fumaceira saindo da casa, com a filha bebê lá dentro...e daí dá de cara com

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filho tudo arrebentadado, sangrando com a cara desfigurada...hoje a gente ri,

mas na época pelamordedeus, viu? Ela passou mal, mesmo. Quase morreu

com o susto...pois, quebrou vidro das janelas, nas prateleiras...aquelas

compotas que faziam antigamente...

EU: E você sabe o por que desse “ão” no seu sobrenome? Porque em italiano

não existe esse “~”, certo?

JM: Ah...isso ai, é... o pessoal dos cartório que já iam acabando com a vida

antiga dos imigrantes já na chegada, né(risos)? É até de admirar que existam

nomes de poloneses escritos de modo correto... os italianos ainda eram mais

fáceis. Só que nesse caso, pelo menos pro pessoal do cartório em Campo

Largo, não foi. Acho que o nome original era “Magatoni”, ou algo parecido. Mas

no Brasil virou “Magatão”...(risos)

EU: Então, acho que é isso seu João...

JM: Ah! Lembrei: escute essa: tinha o veio Pacífico, zelador do cemitério, lá no

Pirapó, que contava de um rastro de pegada que ele viu no carreiro, mas que ia

até a entrada só, depois voltava. Porque quando chovia lá naquele lugar virava

um barreiro desgraçado. Ele achou estranho aquilo, sabe? Do rastro que não

entrava no terreno do cemitério. Daí, tinha o canto onde enterraram o

Anacleto,... um pedaço que ninguém chegava perto, ninguém ia lá. Não sei se

você sabe, mas, o Anacleto havia colocado dentes de ouro em toda a boca. Sei

lá por que ele fez isso, mas, dizem que era assim mesmo. Dentição completa

de ouro. E um dia, depois de ter visto as pegadas, esse Pacífico chegou no

cemitério e viu que haviam retirado o corpo do Anacleto e cortado a cabeça!

Imagine?! Deve ter sido os policiais de Irati, que sabiam dos dentes... vieram

de madrugada, desenterraram o corpo, deceparam a cabeça e a levaram

embora, pra extrair os dentes, depois. Pode? E não foi já, ali...pelos dia da

morte...isso foi uns três meses mais tarde. Desenterrar um corpo já não é coisa

pra qualquer um. Só ai, no desenterrar alguém, já é loucura e ninguém faz uma

coisa dessas. Mas, daí, além de desenterrar, cortar a cabeça de um corpo já

apodrecido e levar essa cabeça embora, pra depois, arrancar os dentes! É

muita maluquice e coisa macabra junto, não?... e esse zelador, o Pacífico, era

foda, também.

EU: Por que?

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JM: Lá em Irati dá um tipo de tatu, o tatu cavalo. E esse bicho cava onde tem

cemitério, nos túmulos. Não sei se come alguma imundice dos cadáveres,

mas...que entra lá, entra. E esse veio matava esses tatu, e comia!

Pelamordedeus, homem!!!! Tá loco, me dá um ruim só de pensar...

11.2 ENTREVISTA DE LICINEO DE LARA

EU: O senhor está em Curitiba há quantos anos seu Licinio?

L: Há 52 anos, já. Eu vim de lá com 34, 35 anos...

EU: O que o senhor a respeito da história de Anacleto?

L: ...LEMBRO DE MUITAS COISAS. Ele matou um homem no Pirapó,

chamado Alcebíades Machado. Conhecido por Bidóca. Esse homem foi

delegado em Gonçalves Júnior. Quer dizer, delegado “calça curta”, sabe?

EU: Hum...

L: é..., mas, essa história foi o seguinte: “eles” eram acostumados a jogar

“truque”, daí esse Bidóca veio ao Pirapó e se achou com o Anacleto e

começaram a jogar... como ficaram até altas horas e o Anacleto ganhou muito

dele... agora eu nem sei se ele não quis pagar ou não podia pagar...sei lá,

como foi bem certinho o rolo, mas, que foi no jogo, porque perdeu e não pagou,

foi... o Anacleto deu só uma facada no peito. O Homem morreu sentado no

canto da cerca. Daí, dizem que o matador fuçou nos bolsos do morto e o que

achou levou...então, “cobrou a dívida”.

EU: o senhor conheceu bem o Anacleto?

L: Conheci, sim...ele vivia por lá(no Pirapó)...

EU: mais ou menos...vcs teriam hj a mesma idade, seu Licineo?

L: não, não... ele era mais velho. Ele era picareta, entende? Vendia cavalos...

fazia negócios, pequenos negócios... tinha um italiano lá, o Pedro Florindo –

até é parente do teu Bisavô, o véio Santo Stroparo...acho que primo,

mas...bom! – o Anacleto foi inspetor de quarteirão(uma espécie de Xerife)...e

esse italiano – que lutou na segunda guerra mundial – estava lá no Guamirim.

Eu comecei a escutar aquela gritaria... um sai aqui, outro ali...e, no que eu

pude sair pra ver o que era... era esse Anacleto, arrastando o Pedro Florindo

pra cadeia. O delegado do distrito era o Angelo... Angelo... esqueci o resto do

nome desse delegado, pegou e... “Mas não há motivo pra prender esse

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homem, Anacleto...”, e, eu, acredito que ele disse isso porque era italiano

também e meio de acordo com os cara lá, da segunda guerra...meio que amigo

do Pedro, eu acho. Inclusive um alemão com o qual trabalhei, tinha isso

também, sabe?... simpatizava com os nazistas. Quando matavam um oficial

inglês ou americano, por exemplo, ele oferecia um jantar pros parceiros. Por

outro lado, se os aliados matassem um general alemão, ele prestava uma

homenagem pública. Bom. Sei que daí, esse Angelo não queria dar

autorização pro Anacleto prender o Pedro. E o italiano gritava assim: “Me sorte,

Anacreto! Me sorte...eu não devo nada, eu não fiz nada! Eu não sou comunista,

eu não sou nada disso...” e o Anacleto gritava junto: “Você é um vagabundo,

não quero saber se é judeu, comunista, nazista...você vai é pra cadeia!”. E o

Pedro, daí, apelava: “Você se lembra, Anacreto? Que eu matei a fome da tua

famía!? Matei a fome dos teus fio, lá em casa!! Lembra quando vocês não tinha

comida e eu mandei um monte de coisa pra vocês?!” Isso tudo em praça

pública. Então, isso aí, mostra que ele era meio vadiozão, né? Não levava em

conta essas coisas de família...

EU: O Anacleto?

L: É, o Anacleto... ele vivia lá, com uns negócio estranho com um, coisa

enrolado com outro... ele nunca matou ninguém antes do Bidóca. Mas sempre

foi valentão. Todo mundo tinha medo dele.

EU: como ele era fisicamente, como era o tipo físico dele, seu Licineo?

L: um tipo moreno, tipo bugre. É, tipo um bugrinho... não era alto, mas era

muito forte, parrudo. Ele era casado com uma parente minha, sabe? A

chamava-mos de Nega. Ela era irmão de um homem chamado Evandro

Capelin de Lara, que foi quem o matou, e matou pra não morrer...

EU: depois que o Anacleto matou o Bidóca, ele fugiu?

L: Não, ele ficou lá mesmo, escondido...

EU: E por que ele não foi preso?

L: a polícia nem veio.

EU: Mas não tinha policias no lugar?

L: Tinha, com certeza, mas ninguém veio...

EU: Hum...

L: Então... ele foi lá pras água mineral...no terreno do Abib Mansur. Perto de

Irati...uns oito quilômetros. E ele ficou lá, escondido... Depois, ele veio de novo

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pro Pirapó, uns três quilômetro retirado do centro; e o Evandro mandava

comida pra ele. O piá que levava. Esse piá era afilhado dele, inclusive.

EU: E como se chamava esse piá?

L: Nico. Tonico. Era o Antonio, apelidado de Nico, Tonico...

EU: esse mesmo ajudaria...

L: Foi esse mesmo que depois ajudaria o pai a matar o Anacleto, sim. Eles

estavam se atracando na luta, porque o Evandro também era forte. Só que o

Anacleto tava por cima. Daí esse guri, o Nico, veio com um pedaço de pau e

deu na cabeça do padrinho. Depois o Evandro picou ele de facada. O Anacleto

dizia, antes da briga começar: “eu não vou dormir nessa casa. Eu vou dormir

no paiol, porque se alguém vier atrás de mim, eu tenho tempo de escapar.” E o

Evandro dizia pra ele: “Mas, você, Anacleto, fugindo num cavalo branco

desses? A gente quando tá fugindo de alguma coisa usa cavalo escuro...” e

Anacleto disse pra ele: “É...MAS, COMIGO NÃO TEM! Se aparecer qualquer

coisa eu viro no guede!

EU: Viro no guede!? O que é isso?

L: Ah...é...”Eu viro num bicho!”, coisa assim, entende?

EU: Ah, tá...

L: Foi aí que o Evandro o convidou para entrar. A Moça(Isabel, esposa de

Evandro e irmã do Anacleto) tava fazendo café. Isso foi na páscoa, né?,

então... na cozinha tinha o leitão, pra assar no outro dia, porque isso foi à

noite, de madrugadinha, dizem... então, tava tudo meio que por ali, faca,

facão... tudo meio que por cima da mesa. E eles se sentaram pra esperar pelo

Café. Nisso, a Moça deu uma cuia com chimarrão por Anacleto e disse: “Toma

esse chimarrão enquanto eu faço o café. Tava viajando, deve de tá com fome.

Faço um pedaço de carne e você come com pão e toma o café que to fazendo.

Toma esse chimarrão, aí, enquanto espera.” E o Anacleto nessa hora, olahndo

pro Evandro, deu um tapa na cuia e gritou: “Eu não vim aqui pra toma café nem

chimarrão, eu vim aqui pra te matar!” E se atracaram numa luta. O Analeto

armado com revolver e com a faca na mão. O Evandro segurava, tentava ir

segurando as mãos do cunhado pra não levar um tiro, ou uma facada... a casa

era sem pintura, sabe? Então, era bem escura, e naquele tempo era só luz de

lampião, fraquinha...devia de ta muito escuro lá dentro, naquela hora. A Moça e

a criançada, sabendo com quem tavam lidando, quando viram aquilo, saíram

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pro terreiro e começaram a gritaria: “Socorro, socoro, socorro!” e grito e mais

grito...pra ver se algum vizinho escutava, mas...naquela distância...uma casa

ficava bem longe uma da outra...e no meio do mato, ainda... não sei se o Nico

foi o único a ficar dentro da casa, nessa hora da briga. Mas, foi ele que veio por

trás e deu uma paulada na cabeça do Anacleto. O Evandro, depois, me disse

isso...disse que escutou quando o Nico gritou: “quero ver o que esse bandido tá

fazendo co meu pai!” No canto da cozinha havia um pilão, sabe como é?, esse

pilão?

EU: sei, sim, dos grandes...

L: Isso. Então o Nico passou pelo pilão e pegou o soquete, que é um pedaço

de pau, e veio, devagarzinho, do meio escuro, sondando, pra ver o que tava

acontecendo. Daí quando viu o Anacleto montado no pai, com a faca naquele

jeito, não teve dúvida... “sentou” uma cacetada na nuca do padrinho... então ele

fraquejou, deixou a faca cair e, nisso, o Evandro saiu debaixo dele, se levantou

e passou a mão numa daquelas facas que estavam em cima da mesa...o resto

você já sabe, né? Deu um monte de facadas no Anacleto... disse que enquanto

o Anacleto se mexia, ele esfaqueava... sem parar... sabe, o Anacleto tinha

mandado uma carta pra muier...uns dias antes, nem sei onde é que ele tava...

nessa carta, ele dizia: “Nêga, eu to voltando pra casa pra te matar. Vou lá no

Pedro Isidoro, pra pegar dinheiro. Se ele der, deu, se não der, eu mato ele e

pego o dinheiro do mesmo jeito. Vou lá no Basílio Vargas... e pego dinheiro

também, ou mato...vou passar no veio Santo Stroparo, também. Eu vou pegar

o Dimas, o teu irmão, e vou dar uma surra tão grande nele que as costa vai fica

mais mole que a barriga. Esse eu não quero matar, ele não vale nem isso. Eu

vou é moer no cacete. E vou te matar, Nega...você vai morrer...” isso me

contaram, né?, eu nem li essa carta. Isso é o que me contavam, na época. A

mulher dele, essa mesma Nêga, aí...me contou isso, um dia... ela me disse que

recebeu essa carta em Irati, e saiu pra avisar o Evandro. Mas naquele tempo,

pra ir de um lado pro outro aqui nessa região não era bem assim. Tudo era na

base do cavalo, da carroça...às vezes a estrada tinha virado atoleiro, quando

chovia. Isso quando tinha um cavalo...muitas vezes era a pé mesmo...

inclusive, a Nêga me disse que andou um pedaço de oito quilômetros a pé, pra

poder contar essas coisas pro Evandro...mas, nas condições em que viajou,

acabou chegando tarde demais. Porque além da demora em ir, ela recebeu

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essa carta muito tempo depois que o Anacleto havia escrevido a dita...e, o

Anacleto, veio a cavalo, pelo meio do mato, quando não tinha estrada e, vc

sabe, um sujeito do tipo dele, se vira... então...ela chegou tarde demais... você

veja: eu recebi, nessa mesma época, uma carta de um amigo que foi viver em

Israel. Levou quatro dias. Se pensar bem, foi rápido. Quatro dias de Israel até o

Pirapó... mas, de um lugar “sabedeus” onde – que, segundo diziam, o Anacleto

estava pros lado do Rio Grande, quando mandou a carta pra Nêga.

O Dimas, era meio irmão da Nêga. Era do segundo casamento. Foi lá que ela

acabou ficando, por uns tempos, depois do que aconteceu...

O Evandro começou com uma conversa de “vou me entregar” e eu dizia “não

vai fazer isso...”, “se esconda em algum canto e fique quietinho por um

tempo...” eu ainda dizia, me lembro bem que todo mundo estava a favor dele, é

claro... e que não se preocupasse que havia feito o que devia de ter sido feito,

e pronto. Mas, ele...já viu, né? “Não, porque eu quero me entregar, quero falar

com o delegado...”. Eu cheguei a griatr com ele “LARGA MÃO, Evandro!!!” e

cheguei até a segurar a porta do paiol aonde ele se escondia... e os “home”,

sabe como é, né?!, tava por ali com um “tem que pegar esse bandido que

matou o homem, nhe-nhe-nhe”...mas eles sabiam que o Evandro tava ali

escondido. Mas não dava pra deixar pra lá, assim...na frente de todo

mundo...eles são a lei, né?

(risos) quando o médico liberou o corpo, ninguém queria levar o home pra ser

enterrado... mas, não sei como é que foi lá...pegaram os cavalos e uma

carroça, carregaram e meio que jogaram numa cova de qualquer jeito, lá no

Pirapó, mesmo.

EU: eu vi o lugar...

L: Viu?

EU: uhum...eu estive lá durante o corpus Christi, fui aonde foi sepultado...não

há sepultura. Apenas uma cruz, que, me pareceu, está lá desde 1956...

L: É...eu... nunca fui lá. Nunca vi o lugar aonde o enterraram...

EU: O Senhor sabe algo sobre o episódio do encontro entre o Anacleto e o

Jorge Magatão?

L: Uhum...é verdade. Eles se encontraram na noite em que o Anacleto foi

morto. Agora...não sei o que eles conversaram, só sei que o Jorge quase se

cagou nas calças...

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Olha... depois que o Anacleto matou o Bidóca...eu tava lembrando... depois

daquilo, ele ficou longe do Pirapó por muito tempo. Uns dizem que viam ele,

aqui e ali. Não sei. Mas, o certo mesmo é que ele ficou, assim...oficial, né...que

todo mundo pensava, pelo menos... foragido. Ele foi pra Pitanga. Eu lembrei de

uma história... lá em Pitanga, ele havia ido a um baile. E, lá, começou a cortejar

uma mulher casada. O marido, é claro, já veio em cima dele... “e como que é

isso...essa ai é minha esposa...isso tá errado...o senhor respeite ela”,e coisas

assim... bem, daí, o que me contaram é que o Anacleto sacou do revolver e

deu um tiro no pescoço do coitado. Matou o homem, na frente da mulher e de

todo mundo que tava no baile. Eu ainda soube que depois disso, desse crime

ai que te falei, ele fugiu pra SC. Lá, fiquei sabendo, ele matou um tenente da

polícia. Não sei como foi...só correu o boato lá, no Pirapó... se duvidar, ele

mesmo que contou isso...

Teve uma vez, sabe... ele passou lá pelas bandas donde eu morava. Eu tinha

um rancho de madeira..., eu estava nesse rancho naquele dia. Quando eu vi

ele vindo, pela estrada, montado naquele burrinho, eu disse a mim mesmo,

baixinho: “...esse cara não pode me ver aqui de jeito nenhum...” e, passou. Lá

na frente, adiante da gleba oito e da gleba nove... vindo dos Martins...são

grandes os terrenos lá, sabe? Você anda quatro mil alqueires, é a gleba oito,

mais nove mil alqueires, é a gleba nove... é grande o lugar, lá... daí é picado

tudo em lotes, né?...loteado, tudo... e esse cara que falei tava saindo do

esticadão, viu que o Anacleto passava e deu com a mão e saudou: “Oi,

Anacleto!” e o Anacleto: “TÁ ENGANADO, HOMEM! TÁ ENGANADO!”, e

passou de cabeça abaixada. Eu ouvi que ele ficou ali na gleba oito. Haviam

poucos moradores. Uma ou duas famílias. E ele ficava fazendo uns

servicinhos...ajudava com alguma coisa aqui, outra ali...e ia ficando. Contam

que nesse tempo apareceu uma viúva, lá... de um sapateiro. Ele – MUITO

CONQUISTADOR – se afrouxou pra cima da viúva(risos) “ He He He...sabe

como é, me arruma um par de botas” e coisa e tal... e, a veia, claro, deu bola

pra ele. Foi, foi e conquistou a veia. Ficou com ela. Daí nem mosquito pousava

na veia, né? Imagine... tava lembrando... o marido dessa mulher, o falecido

sapateiro, tinha o sobrenome Marins Springer. E não é que me aparece lá,

depois de uns tempinhos, uma sobrinha da veia!?, só que dessa família, Marins

Springer, da parte do finado marido então.... essa moça morava lá na gleba

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nove e de vez em quando passou a vir, né, passear na casa da tia... não

preciso dizer no que deu, né? Menina boba...parece que tinha dezesseis anos,

na época. Aconteceu que de repente todo sábado a menina tava lá. E foi até

que todo mundo começou a desconfiar. Quando foram ver, era mesmo o que já

se pensava: o Anacleto tava de coisa com a menina.

EU: Mas, e daí? Como é que ficou o negócio...isso naquela época, lá naquele

lugar devia ser complicado, não?

L: Sim, sim. Bom...daí... foi que ele disse pra ela que gostava muito dela e que

amava ela...e disse pra ela que os dois iam se casar. Então, ela deveria dizer

que quem fez “aquilo” com ela tinha sido o próprio pai, e não o Anacleto, como

todos diziam.

EU: Uau...

L: É... Olha, rapaz, eu conheci muito bem o pai daquela moça. Era um homem

de primeira linha. Trabalhador e honesto. Tratava a família na palma da mão.

Zeloso, sabe? José Jacó Strobel, era o nome dele. O delegado chegou pra ela

e perguntou: “Quem foi que te fez isso, menina!?” e, ela:“foi meu pai”, na cara

dele! Na frente do pai, pode? Ah... o homem quase morreu... dizem que ele

dizia pra ela: “do jeito que eu te criei, do jeito que eu zelei por você, e você vai

me fazer uma coisa dessas?! Me entregar assim? Quando que ia me passa um

negócio desses pela cabeça?!, de você dizer que fui eu quem te bolinou...”

EU: E depois?

L: Bom...depois... depois ele foi preso. Ficou na cadeia lá...nem sei quanto

tempo. Porque depois nunca mais soube que fim levou aquela gente. Acho que

foram embora, de certo. Não sei.

EU: Mas, seu Licineo... quando foi isso?

L: Isso foi durante o tempo em que o Anacleto já tava nas andança dele.

EU: Mas, ninguém entregava ele pra polícia? Por que?

L: Ah... porque todo mundo lá se cagava de medo dele, ué. Voavam pelo

buraco da fechadura pra fugir dele. Acho que por isso... veja, ele não era só um

assassino, ele era trapaceiro, vil...um homem perigosíssimo. Eu conheci quatro

irmãos dele. Eu conheci o Honorato, o Sérgio e o Juca.

EU: Mas não eram quatro?

L: Não. Quatro contando com ele.

EU: havia uma irmã, não?

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L: uhum...se não me falha a memória, essa irmã, se

chamava...Anacleta(risos)...parece que era isso, sim. Ou algum nome meio

estranho, assim...

EU: E o Evandro? O que o senhor sabe sobre o Evandro.

L: Conheci muito bem o Evandro. Bom demais. Não seria capaz de fazer mal a

ninguém. Manso, manso. Mas, esse Anacleto...deixa eu pensar...ele,

antigamente, lutava com o filho de um negociante...o Euclides, na frente da

bodega. Era um rapazote, esse filho do Euclides. E os dois lutavam... meio que

de brincadeira, assim, mas...viviam se atracando e, o piá – que agora não me

lembro mais o nome – derrubava ele...o Anacleto. Um guri daqueles ganhava

do Anacleto na luta(risos)... pense! Um matador daqueles apanhava dum piá...

mas, de vez em quando, ele dizia: “cuidado, pessoal...qualquer hora dessa eu

viro num picanço e vocês vão vê só uma coisa!”

EU: Ah, ele prometia, assim, é?

L: Prometia, prometia... pouco. De vez em quando, mas dizia. Quando alguém

fala assim: “cuidado que eu viro num picanço”, quer dizer “saia fora, que a

coisa tá ficando perigosa pro teu lado”... eu e o Evandro fomos obrigados a

correr dele, uma vez...

EU: Quando?

L: Ah...quando ele ainda era só valente, não havia matado ninguém...só

prometia.

EU: E, como foi isso?

L: Nós(ele e o Evandro, o qual assassinaria Anacleto, anos mais tarde) fomos

até a bodega do véio Stroparo, do teu bisavô, Angelo...pra tomar cachaça.

Tava uma garoazinha... era noitinha, já. Tinha três cavaleiros parados na frente

da bodega... eu e o Evandro entramos. Mas, foi bater os copo de cachaça no

balcão, e aquele pessoal entro...e não é que um deles era o Anacleto. Quando

nós vimos aquela capa toda molhada, o chapéu enterrado na cabeça e os

cabelo escorrendo na frente dos olho...o Evandro olhou pra mim e falou por

entre os dente: “vamo dá o fora daqui que esse home tá co diabo no coro,

hoje...”...saímos de fininho e, no caminho, nós se cagava de medo que ele

viesse de atrás da gente. Teu bisavô de certo, no que saímo já fechou as

porta... porque foi pensar que ele podia vir atrás... que começamo a escutar

barulho das ferradura. Eu e o Evandro se escondemo no mato, na frente de

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uma entrada de um sítio, naquela escuridão. E não é que o home para com o

burrinho dele bem na nossa frente. Ele desceu do burro, passou a mão num

lamoião e começou a bater aquele lampião pra tudo que é lado, como se

tivesse nos procurando. Eu e o Evandro chegamo a deita no chão, de medo

que o cara visse a gente. O Evandro meio que chorando me dizia que ele ia

nos matá. Depois que procuro bastante, ele largou aquele lampião no chão,

catou as duas orelhas do burro e tacou uma mordida. O bicho tentava escapa e

ele se agarrava mais ainda e puxava a cabeça do burro pra baixo. Xingava

umas coisarada lá que eu nem conseguia entender direito...daí, largou do

bicho, junto o lampião, montou de novo e se mandou... eu e o Evandro

levantamos dalí e corremos pra casa...mas, um pouco pra frente, vimos que ele

vinha voltando! Se enfiamo no mato de novo, o Evandro parece que se mijou,

até... olha, o homem era feroz. Ele já dava essa impressão, assim...naquela

época, que era capaz de chegar assim...te falar qualquer coisa e você

respondendo ou não, levar uma facada, um tiro...

EU: O que sempre me deixou instigou nessa história, seu Licineo, é esse

enredo irônico: um homem tão frio e agressivo, foi acabar morto pelas mãos de

um pacato, feito o Evandro...

L: Sim! Morto por um homem que nunca sequer levantou a voz pra alguém.

Nunca brigou com a mulher, com um filho... e, provavelmente, se o Tonico não

desse aquela paulada, a história era outra... o estrago ia ser grande. Do jeito

que ele havia planejado, no mínimo. Como ele havia prometido na carta...

como, depois fiquei sabendo, ele contou tudo pro Jorge Magatão. E, por falar

nesse Magatão...os dois ficaram bêbados naquela noite...é isso! O Anacleto já

chegou bêbado no Evandro... por sorte daquela gente toda lá, ele tava bêbado.

Esse Jorge Magatão também não era muito fácil, não... sempre que escutava

de um entrevero, lá tava esse Jorge no meio duma briguinha. Mas nunca foi do

tipo do Anacleto... bom, afinal, esse era meio que o tipo dos homem daquele

lugar... tudo meio valentão, meio bravo, violento... os irmãos desse Anacleto,

também...tudo valente...

EU: Sabe que fim levou cada um deles?

L: Bem...o Honorato morreu por causa da cachaça. O Juca Marcelino, tinha

fortuna grande e morreu... e deixou herança... tem uma história disso aqui.

Esse Honorato, que morreu de tanto beber, recebeu parte dessa herança,

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sabe? Então, foi assim... ele tinha só uma filha,... esse Honorato. Daí, ele

adotou um guri... o Onofre. Onofre...Martchuk,... era de origem russa. A mulher

do Honorato, não lembro bem se chamava Judith, mas, morreu e ele ficou com

as duas crianças, viúvo. Sozinho e meio velho já...esse homem começou com

a bebedeira e a jogatina. Foi um tal de botar fora...coisa de loco. As crianças

cresceram vendo ele nessa gastança desenfreada. Quando já eram

grandinhos, o Onofre, que era o adotivo, diz que chegou pra irmã e...”escute,

desse jeito que o pai vem queimando tudo que tem, daqui um poquinho a gente

vai ficar sem é nada! Vamo matá ele?” e a irmã, por mais que fosse de sangue,

sabia que a coisa tava perdida já, sei lá... o fato é que os dois se combinaram e

decidiram por matar o próprio pai pra garantir alguma coisa que ainda tinha

sobrado daquela herança...

EU: E o que foi que eles fizeram?

L: Bom... eles compraram uma garrafa de cachaça, tiraram a pinga e no lugar

encheram com veneno, de uso na lavora, sabe? O Honorato, nesse dia, já

chegou em casa chumbadão, olhou pra garrafa e disse: “O que é isso!?”, e o

filho: “é cachaça...”, ele, dizem, abriu, cheirou e ainda disse: “É mesmo! É

cachaça...” Foi tomar e tombar. Caiu morto. Daí, chamaram o inspetor de

quarteirão...levaram o corpo... fizeram um velório. O Honorato já quase não

tinha família, além do filhos. Os irmãos, ou estavam fugidos, que era o caso do

Anacleto, ou estavam mortos...por morte morrida ou matada, estavam mortos.

Resultado: não tinha quase ninguém no velório do pobre... mas, agora, veja

que coisa: veio uma parteira, ali, do Pirapó, também, e... e essa parteira, notou

que do cantinho da boca do defunto escorria um líquido esverdeado. Ela se

enfezou com aquilo...”mas, não pode...que negócio é esse!?” Chegou pro

compadre Herculano: “Escuita, mecê chame um médico, hein? Esse homem

morreu envenenado...” e o Herculano: “Não fale uma coisa dessas!!” e a tal

gritou lá, pro inspetor de quarteirão: “Para com tudo e chama um médico que

esse homem aqui não morreu morrido, não. Esse homem morreu matado!”

Levaram pro médico,... ma, batata! Prenderam os guris, o rapaz e a moça –

que já eram de maior, e... foi a herança, porque filho que mata pai perde a

herança e ainda foram preso. Não sei o que foi deles depois. Mas sei que

acabaram na cadeia, mesmo.

EU: O senhor conheceu mais alguém da família do Anacleto?

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L: só a mãe...ela gralhava com eles, por serem virado tudo num saci...”por que

que vocês vão num baile e acabam co baile? Por que?” “Brigam, discutem,

batem nos outro...mexem com as muié do pessoar...meu Deus, meu Deus,...”

“E pra essas arma!? Andam tudo armado...que é facão é revorve...pra que?” e

a rapaziada gritava com ela, sabe? “É! NÓIS SOMO HOME E HOME ANDA

ASSIM, ARMADO!” Eles não eram de lá...não de onde vieram aquela gente. Eu

nasci no Rio Preto e cresci no Pirapó e nunca ouvi dizer de onde vieram...

Sabe, é... Angelo, né?

EU: Isso...

L: tinha um homem lá...ele se chamava Amandio Vaz de Lima, comerciante...

trabalhei com ele uns tempos. Ele tinha dois molecotes, 11, 12 anos...os dois

quase da mesma idade. E, então...tava lá os dois, um dia, brincando de bate

facão, tipo como fosse espada, sabe? E o Amandio dizendo: “Isso, isso aí...se

defenda” pra um e pro outro “vai nele, vai nele, vai!” Eu vi aquilo e pensei...”isso

ai vai dar errado...não tá direito esse negócio...” cheguei pro patrão e disse:

“Olha, Amandio, não deixe esses guri nisso ai, home! Amanhã ou depois não

acaba bem...” Ele olho pra mim de cima pra baixo “isso ali é home! Quenem eu

sou! Home é assim!” calei minha boca na hora e saí de fininho, pois...pensei

que o home ia me dá uma surra ali mesmo... passo uns tempo, uns

aninho...aqueles piá ficaram mais grandinho...um deles, o Jovino, tava no

boteco de tarde – porque não trabalhava, não fazia nada -, chega um homem

que vinha de São Paulo atrás da mãe: “escuta”, pro Amandio, que tava no

balcão, “você me venda um pão aí, que to andando faz tempo e to com muita

fome” e o Amandio “pois não tem pão, aqui não tem pra quem vender, todo

mundo tem forno em casa e faz” o homem, “tá bom”. Ele já tava de saída

quando o Jovino disse: “toma uma pinga!” o homem olhou, olhou...”não...eu

não tomo pinga” e o Jovino:”e se eu te jogar na cara!?” o homem: “não faça

isso...to cansado e não quero confusão”, pois, não é que ele jogou?

EU: E o homem?

L:Ah...foi embora enxugando a cara... mas passou mais uns dias, veio outro, só

que esse tava tocando um porco desde o Pinhão, imagine?!, naquele sol...o

porco e ele tavam quase morto de cansaço, sede e fome... esse homem

chegou no boteco, a mesma coisa, do mesmo jeitinho: Amandio no balcão, o

Jovino sentado tomando uma pinga... o homem: “me dá um pão ou umas

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bolachinhas...to morto de fome...” mais uma vez, o Amandio:”não tem, por isso,

tá-tá-tá, e porque aquilo” o homem: “tá bom” e, “aonde é que tem outro

boteco?” o Amandio: “ah! É uns três quilômetros, verando essa mesma

estrada”, nisso o Jovino se meteu: “Toma uma pinga que a fome passa!” o

homem: “não...não tomo pinga...” e aquela coisa, sabe!? Pra desconversar e

sair fora... pois o rapaz – esse era um dos pequenos que tavam de folia cós

facão, te falei?

EU: Sim...

L: POIS FALO DE NOVO “E se eu te jogar na cara!?” o homem disse que era

trabaiador e que não se faz isso pra ninguém...pois ele ainda tava falando

quando o rapaz jogou aquela pinga... ah! Pois o home só teve o trabalho de

sacar o 38. Pááá!!! Um tiro no meio da testa... passou mais uns dias, o outro,

voltando de um baile, na encosta de um barranco, levou uma saraivada de

bala: os cara, tudo pinhãoeiro(nativo do hoje município de Pinhão, que, na

época do acontecimento, era distrito de Guarapuava. Uma terra famosa pela

violência e criminalidade) tavam de tocaia. Porque ele tinha participado de um

acerto de terreno grilado... ninguém foi preso e os dois foram pro cemitério...

11.3 ENTREVISTA DE LIDIA CAPELIN DE LARA

L:Você é neto do Frederico e da Rosa?

EU: Sim.

L: Então... meu pai era filho da falecida Porcina... de Lara. Uma bugre. Daí o

vovô Lúcio pegou outra mulher – dos Castanha – e largou o pai(Evandro)...e,

então ele se achegou aos Stroparo. Meio que se criou junto deles... de Nhá

Carlota e Camilo, trabaiando... e a Lúcia? O que vc é dela?

EU: sou sobrinho dela... ela é irmã do meu pai.

L: Quem é seu pai? O Santo ou o Antonho?

EU: Sou filho do Antonio. É o que chamavam “Nêne”?

L: Ah, sim... lembro do Nêne, do Santo... e da Lúcia. O papai era padrinho da

Lúcia... ela me deu muito presente quando eu fui leva uma neta lá no... no

Pequeno Príncipe. Ela me deu um “Milão” dos verde...era um dinheirão na

época. Uma irmã da Rosa, a Maria, esposa do Pacheco...que é professor, veio

aqui em casa, quando estavam fazendo o senso. Eu disse que sabia onde

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ficavam os lugar que eles queriam ir e ela disse que se o que eu dizia era

verdade, ela me enviaria um corte de vestido, como presente. E mandou... será

que ainda é viva?

EU: sim. Vive em Doutor Camargo. Da família, restam, vivos ainda, essa tia

Maria; o tio Jorge, advogado em Londrina; minha avó e a tia Margarida, que

vive em Paranavaí.

L: Minha sogra morreu com 101 anos e meu pai, com 75... morreu novo. Ele

faz 100 anos, esse ano... ele nasce em 1907...

EU: 1907? Mas... então...

L: Não, pera lá...1914! Ele é de 1914... e, se vê!, nem interou 50 anos de

casado. Minha sogra tbm não... teu avô vai, né?

EU: o quê?

L: interar muitos anos de casamento... 70 né?

EU: Ah, sim! Exatamente. Caso estivesse vivo.

L: Ele morreu?

EU: Sim...

L: Credo! Eu nem sabia!!

EU: Há pouco tempo...uns dois anos, não mais...

L: (silêncio)

EU: Conheci uma de suas netas, a Maria Márcia...

L: Moça muito boa, filhona e eu mãezona...ela é minha afilhada, tbm... o irmão

dela, o Sandro, se juntou com uma concubina, sabe... depois, quando foi servir

o exército, caiu uma viga de concreto na cabeça dele. Morreu. Deus limpou a

sujeira da raça...imagina, pegou a mulher do primo e deixou oito filhos com a

esposa abandonada... mas, espera um pouco. Esse Sandro é tio da Márcia.

Não é irmão dela e não é meu filho! Casou com minha filha, essa que ficou

sozinha com um monte de filho... o pai da Márcia se chama Pedro. Vive no

Pinhão com a outra mulher. Ele é separado da mãe da Márcia, que é uma

mulher muito boa. Essa que ele vive agora também é. Muito boas, as mulheres

dele...

EU: Pedro, então, é seu filho?

L: o Pedro é meu irmão!(Risos)...meus filhos são: José Tadeu, Vera Lúcia –

que vive um pouco aqui, outro pouco na Espanha, e tem uma que vive na

França. Foi estudar lá e não vem muito aqui...

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EU: Como essa se chama?

L: (silêncio), eu sou a filha mais velha do Evandro, em junho fiz 76 anos.

Depois, vem o Tonico – que já morreu... eu tive um derrame e agora, sei lá... a

memória me falta, sabe? Deu o derrame...e... a memória anda em falta.... foi há

quatro anos e meio...

EU: meu avô, dona Lídia, me contou que seu pai havia matado um homem...

L: O Anacleto?

EU: Isso!

L: Eles era cunhados...papai matou Anacleto para ele não matar nóis

tudo...pois, o Anacleto, matou mais de centi e poucas pessoas... foi no tempo

que o padrinho Santo era vivo(esse Santo, Viviane, é meu bisavô, Santo

Stroparo), então ele... bom, o Anacleto queria o revolver do papai. Meu pai

disse: “Oi, mas, que tipo? Não dou e não dou!”...isso foi na madrugada do dia

21 de abril de 1956.

EU: Nesse dia a Sra. Estava em casa? Estava dentro da casa?

L: Não... eu já tava esperando a Vera Lúcia... essa minha filha que te falei. Dalí

dois meses eu ganhei ela...

EU: Ah, sei...

L: ...isso já faz 57 anos... você sabe que nesse mesmo dia, 21 de abril, morreu

meu irmão...

EU: no mesmo dia que teu pai matou Anacleto.

L: Não, no mesmo dia, só que anos mais tarde, sabe?... o Santo. Eu tive um

irmão que também se chamava Santo, como o veio Santo Stroparo. Ele morreu

e a concubina dele é que recebe a pensão do governo, agora... mas, então,... o

Pedro e a Vanda, filhos do Anacleto, foram lá em casa pra me contar o que

papai tinha feito...acho que minha filha nasceu com uma pintinha cor de

sangue, na testa, até por causa disso...do susto que eu levei... meu Deus do

céu... ele(o Anacleto) era muito ruim, “marotiava” as moças por ai. Mas primeiro

de tudo, ele matou o Bidóca por jogo, aqui, no Pirapó... o segundo homem que

ele matou, era o irmão de uma moça que ele tirou pra dançar. Ele contava pra

todo mundo que atirou no “zóio” do rapaz pra não estragar o couro. Depois

disso ele matava tudo...mulher, criança... escapava da cadeia, matava os

policia... ele mesmo contou que um dia encontrou com uma polaca que levava

comida pro marido... que vinha no carreiro, enquanto ele roçava uma

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capoeira... e ele “me dá essa comida que eu to com fome!” E ela disse “não, eu

to levando essa comida pro meu marido, na roça, mas o senhor volte comigo, e

eu te dou comida lá em casa... tem sopa de galinha...” O Anacleto não quis

nem saber: atirou na mulher e na criança, por causa daquela comida...

Ele contou pro pessoal, mais tarde, que tinha levado um tiro na perna, tava dias

sem comer...fugindo...tava bravo. Mas, precisava matar a mulher e a criança?

Meu Deus do céu...

A polícia não podia com a vida dele...ele andou por Pitanga, pela Reserva...por

tudo esses lado...matando gente, fugindo... o Jorge Magatão disse que

encontrou com ele no dia da morte...o Anacleto dizia que ia roubar o revolver

do veio Santo, dinheiro... que ia lá no papai, roubar facão, espingarda,

pólvora... escuta: o Santinho é vivo? O Gusto é vivo?...E, ESSE QUE TÁ ALI

FORA, QUEM É? É DOS MAROCHI?

EU: Ele é meu primo. Ele é dos Brandalise, dona Lídia. É primo da minha

“nona” Rosa, na verdade...(ela se referia ao Dilson, parente de minha avó, que

me ofereceu pouso nos dias que estive em Irati)

L: Os Brandalise casavam bastante com os Van Ryn(o marido de Dona Lídia

se chama Fernando Van Ryn, mas, não sei o porquê da observação, assim

como não questionei muitas observações semelhantes, durante toda a

entrevista)... são “holandeis”, esse povo... e vc? Quer almoçar?

EU: Não, obrigado, dona Lídia, acabamos de almoçar ali no José...

L: O José é da minha idade! Minha mãe casou num sábado e a Estefica (mãe

do José que nos ofereceu almoço), no outro. Dia 6 de junho. Ela ganhou o José

nove meses depois, em março e eu, nasci em junho. Vivi minha vida toda no

Pirapó, mas eu tenho casa no Irati. Aluguei pra um guarda. Ele me paga R$

320 reais. É meio baratinho, né? Eu tenho um terreninho ali no cemitério do

Pirapó, também. Não sei se você viu um tumulo amarelinho...(risos)...é o meu

que deixei pronto pra não incomodar os filhos...

EU: Sei, sei...mas, dona Lídia, me diga uma coisa – sobre aquela história do

Anacleto... a esposa dele, era tia da senhora, não?

L: Sim...

EU: Como ela se chamava?

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L: Carolina... mas, diziam o nome “Tia Nêga”, pra ela... Carolina de Lara, era o

nome verdadeiro. Mas depois que se casou com o Anacleto passou a se

chamar Carolina de Souza Moura

EU: Tem certeza de que não era Souza de Oliveira?

L: Não é Oliveira, é Moura. Ele se chamava Anacleto de Souza Moura. Eu

queria bem ele, sabe? Você sabe que meu irmão, o Tonico, ajudou papai?

EU: Como assim?

L: O Tonico ajudou meu pai a matar o Anacleto...ele devia ter uns 15 anos...

daí os “polícia” enterraram ele sem caixão e ele devia ter uns 28 dentes de

ouro e desenterraram pra... e enterraram com a capa. A capa ficou como que

cobrindo a sepultura. A capa e o chapéu. Naquele tempo tinha um “polícia” que

era... morreu agora, faz pouco tempo... ele vendia coisa que tirava do corpo

dos defunto... daí... era madruga que o Pedro, meu irmão mais moço...

EU: ...e o policial desenterrou o corpo...

L:... sabe Deus como foi... tanta gente que quer o ouro...

EU: e, depois que o Anacleto morreu, dona Lídia, sua tia ficou morando, aqui,

no Pirapó com as crianças?

L: Ela foi morar no Irati, trabalhando com os Sabóia e com os Baggio. Essa

casa existe até hoje, fica no centro...é branca e verde, tem uma varanda na

frente. Ela não quis ficar porque começou a ter muita “visage”, as crianças

choravam de noite, com medo...ela não quis ficar... vivia com medo do

fantasma do Anacleto continuasse aparecendo pra ela...e pras crianças...

nesse tempo o Jaime Marcelino* estuprou uma moça e deu dez alqueires de

terra pra não ser preso...coitada da moça. Essa moça ganhou do pai uma

medalhinha de Nossa Senhora Aparecida, quando foi visitar ele na cadeia, que

dizia: “Dai a César o que é de César”, e ela deu essa medalhinha para mim...

ela já morreu, era meio “tonguinha”... meu pai era um homem muito sério,

sabe? Quando meu irmão Santo morreu a amante dele quis pegar os terrenos

e vender tudo. Meu pai que não deixou... esse meu irmão fez uma judiação

muito grande, não respeitou a própria prima... mas, deixa eu servir um almoço

“proceis”?

EU: (risos)...não precisa, não, dona Lídia, eu agradeço.

L: Mas, que coisa linda você, foi Deus que te mandou aqui...

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EU: na verdade eu estou escrevendo um livro sobre essa história do Anacleto,

sabe?

L: Com todas essas besteiras que eu disse?(muitos risos)

EU: ah, dona Lídia, a senhora não disse besteira nenhuma, não, garanto... e,

como seu pai foi quem matou o homem, resolvi vir aqui fazer uma visita e

verificar o que a famosa Lidia Capelin sabia sobre isso tudo...

L: é... e eu sou a filha mais velha e tenho uma ideia muito boa, ainda...

EU: aham...

L: eu gostava de “prosiar” com minha sogra...ela era “veia” mas não esquecia

de nada. Ela ficou sentida e morreu, por causa que morreu um neto dela...que

vinha pra festa de... criança...de Nossa Senhora Aparecida, e, meu pai... não

tinha encrenca com ele, não queria mal pra ele(eu imagino que ela se referia

ao Anacleto, aqui)... quando ele matou o primeiro homem, o Honório

Vargem(irmão do Anacleto) – porque o apelido deles era “Vargem”, ... eu nem

sei porque chamavam eles assim...acho que era porque eles vieram de um

lugar chamado Vargem, em SC ou nem sei “daonde”... ele era um homem

moreno, tão bonito... tipo bugre. A mãe dele se chamava Nhá Coleta. Mulher

muito boa. Eu conheci o pai dele, também...eles moravam ali, perto da casa

laranja onde o Anacleto morreu... é uma casa de Imbuia que existe até hoje.

Era a casa do papai e da mamãe. Depois de matar, meu pai se escondeu no

Doca Martins. Primeiro ele foi à casa da sogra do delegado, a tal da Perpétua.

Mas com a camisa “pinchada” de sangue... o meu irmão viu o sangue no “zóio”

do Anacleto, porque ele foi lá pra matar meu pai, fuçou uma brecha na capa e

enfiou a faca de pão na barriga dele... depois que ele ficou quieto, no chão,

dava pra ver o “torresmo” da barriga dele. Se não fosse o Tonico, meu pai não

podia com ele(Anacleto)...porque ele já tinha cortado a vista do pai...

EU: Ele furou o olho do Evandro?

L: Não...só cortou na “verada do zóio”, mas sangrou bastante. Na hora que ele

pulou em cima do papai ele já riscou a faca lá e quase deixa meu pai cego...

pera que eu vou te mostrar uma foto do papai(alguns instantes depois, sem

foto, ela volta à cozinha e torna a falar no dia do crime). O Anacleto sacou do

“revorve” e foi com o cano na cara do papai. Papai andava com uma faca...tipo

dum “punhar”. Esse “punhar” tinha uma fisga no cabo. Antes que o Anacleto

atirasse, o papai tentou se defender com a faca e enroscou a fisga no “revorve”

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e os dois ficaram lutando, daquele jeito...nisso o Nico(Tonico) veio e furou a

barriga dele...dai meu pai pulou em cima e deu uma porção de facada no peito

dele... isso foi de madrugadinha...minha saiu pro terreiro gritando “acuda,

acuda, acuda...que eles vão se mata”...

EU: Como ela se chamava, mesmo?

L: Maria Izabel. O apelido era Moça... de primeiro, eu tinha muita fé em Nossa

Senhora de Fátima, daí pus o nome de Vera Lúcia, em minha “fia”...mas Vera

Lúcia era “arteeeeera”(risos)... sabe que eu sou partera!? Pelo poder de Deus,

eu tive meus nove filhos sozinha... e ajudei muitos outros a nascer...quantos,

nossa! Quantos e quantos... eu fui buscar madrinha Lúcia(minha bisavó,

esposa de Santo Stroparo) com duas mulas uma vez, “pra mó de imos” na

casa duma que tava pra ganhar nenê... madrinha Lúcia cobrou cinco cruzeiros

e as bandida negaram os cinco cruzeiros porque o nenê nasceu ligeiro...(risos)

‘cê pense!...deixei um piá doente em casa e fui correndo lá, buscar madrinha

na roça...

EU: a senhora faz orações, benzimentos...?

L: sim.

EU: porquê?

L: porque Jesus disse “de graça recebeu, de graça dê”... eu curo “miningite”,

doença de bronquite, mas em segredo...

EU: Por quê segredo?

L: é o segredo pra que a pessoa que sara, não “sabê” o que curou ela... quem

curou ela...fica em segredo. Porque foi Deus que curou...

EU: Entendo, entendo...

L: Veja...pra bronquite... eu ponho língua de raposa. A madrinha Lúcia que me

ensinou... por um pedacinho da língua da raposa no chá e dar pra pessoa

“tomá”, mas em segredo... a “doença do ataque” que falam, você corta um

punhado de cabelo do próprio doente e faz uma defumação. Se tiver “bichas”,

solitária...o que tiver, vomita tudo aquele ar na hora da sororoca e nunca mais

dá. (parei nos 3’22” da entrevista 2 da dona Lidia) Uma das minhas cunhadas

tinha dois filhos. Deu um ataque em um deles tão forte que nem ela podia ver o

piá... fiz essa mistura, coloquei numa bacia e ia dando pro guri. Eu curei ele...

daí, vieram pegar ele...eu avisei: olha, não pisem nessa bacia que passa

“procêis” o “mar” que tava na criança... eu também curei o filho do Almir Licks

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bodegueiro... tem uma neta minha que é filha da dona Emília...conhece o

Miloca? Conte pra ele que a Diva...

EU: Miloca? A senhora se refere ao Emílio de Lara?

L: Sim, esse...

EU: O Emílio já morreu, dona Lidia...há alguns anos...

L: Nossa... bom, conte pra eles, lá, que a Diva é sogra de uma neta minha. É...

andaram procurando, por um tempo...porque diz que deram ela quando era

pequena...ela(a Diva) e a irmã(Alice) foi que deram, quando pequenas, pra

uma mulher lá de São Paulo... meu neto, o Carlinho, que tem uma oficina em

Guarapuava, disse... ele não sabe direito, mas, não é Diva mais...agora é

Judete...

EU: Judete? Como assim, “não é mais”!?

L: Doação, troca de nome... meu pai e o pai do Miloca saiam pra jogatina e iam

perdendo tudo. Meu pai perdeu 7 alqueires de terra no jogo... não é que

perdeu, foi dando baratinho, no jogo... no jogo e na cachaça...e o pai do

Emílio(Miloca) perdeu mais ou menos o mesmo tanto...daí acontecia essas

coisas de doação de “fios”, quando acabava o dinheiro... hoje minha terra mede

42 litros49, só... EU: mas, a senhora lida com a roça ainda, dona Lídia?

L: Sim... arrendo um pedacinho, pra fazer mais um dinheirinho e planto um

bucadinho de milho, feijão e verdura num outro pedacinho...crio minhas

galinhas...e vou vivendo.

11.4 ENTREVISTA DE JOSÉ STROPARO

EU: O senhor sabe quem foi Anacleto, de onde ele veio?

J: Sim...a gente sabe que o nome era Anacleto Vargem, mas...o sobrenome

bem certo, não sei... eles viveram aqui no Pirapó, mas não sei de onde eram.

EU: O senhor conheceu os irmãos de Anacleto?

J: Conhecia de vista...conheci o cunhado dele, o Evandro, que no final matou

ele...a mulher do Anacleto era irmã do Evandro. A gente chamava ela de Nêga.

EU: O que ele fazia para ganhar a vida, José?

49

Isso dá uns 21.000 m2, mais ou menos. O que não vai equivaler muito mais que 2 hectares, que medem 10.000 m2. O alqueire é uma unidade bem variável. Em Minas é uma medida, na Bahia, outra. Em São Paulo, mede pouco mais de 24.000 m2, 2,42 há, portanto. As medidas consideradas na região de Irati, batem com a dos paulistas.

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J: Ele não era homem de trabalhar. Vivia de bicos por ai... até tinha muitos

amigos. Antes de matar o Bidóca era muito amigo do pai dela(indicando a

esposa, dona Dora). Depois, daí... por causa de um jogo de “truque”, fez

aquilo...porque ele(o Anacleto) andava sempre com duas armas, né?...e, esse

Bidóca, não era um homem ruim, mas era desses de coragem, sabe? Ele era

delegado em Gonçalves Júnior. Dizem que o Anacleto tava perdendo o jogo. E,

vc sabe, quem tá perdendo quer embrabecer, né? E quando sacou do revolver,

o Bidóca segurou, mas...com a outra mão, levou a faca e cravou no homem...

do lado esquerdo do peito. Foi ali, pertinho daqui...dá pra ir caminhando... na

época, eu era meio piazão ainda... meu pai foi comigo lá pra ver o defunto. Ele

tava sentado, com a faca enfiada no peito. Na verdade, depois da facada, ele

caminhou até o arroi, verando a cerca...daí, sentou, encostou e morreu.

EU: e o que o Anacleto fez depois disso?

J: Fugiu. Ele se escondia na casa do Evandro. Debaixo do assoalho do paiol.

Mas isso foi uns dias... dali um tempinho se sumiu daqui, porque a polícia se

agarrou dá em cima, né?

EU: Hum...então, veio polícia, nesse caso?

J: Veio. E por isso ele fugiu... depois de um tempo ele voltou, se tornou inspetor

de quarterão. Ele havia ido até o Rio Grande, matou gente por lá...só que

fizeram uma emboscada pra ele, em cima de uma ponte. Só que daí ele se

jogou na água e escapo. Mas acertaram um tiro no pé dele. Então, por causa

disso, ele voltou pra cá...e viro chefe de quarterão...

EU: E como o senhor ficou sabendo disso?

J: Ele mesmo, quando voltou, contava essas histórias, pros amigo e

parente...daí a coisa se espaiava...todo mundo ficava sabendo.

EU: E o que aconteceu depois?

J: Bom...daí ele ficou um tempo na polícia e depois saiu... dizem que ele foi

para a Reserva... e lá ele tomava conta das pessoas, no lugar dos

empossado... e só vorto anos depois, pra morrer nas mão do cunhado...ele

queria tirá umas par de vida ai, sabe?

EU: e porque ele faria isso?

J: Ele queria armamento...dinheiro e animar, né? Naquela época todo mundo

tinha animar encilhado, bom.... ele sabia quem tinha armamento, dinheiro...que

era o nono Santo, o Evandro... apesar que dinheiro mesmo...assim...no paper,

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ninguém naquela época tinha muito, né? Não precisava...e não tinha mesmo.

Era muito poço...

EU: E como as pessoas ficaram sabendo desse plano?

J: Ah... pro tio Jorge Magatão...ele conto, nos dia que ele tinha chegado aqui,

de novo...parece que tavam lá no rio do coro, num boteco, tomando pinga e ele

contou pro Magatão, assim... o que ele queria fazê... mas é que ele encheu o

titio de pinga e daí troxe ele na carroça até a porteira e dexô ele, lá... a portera

era longe e ele bastante bêbado que tava, dormiu lá na carroça mesmo...só

contou pras pessoa depois, que já tinha acontecido a morte do Anacleto. Eu

acho que ele já deu um porrete no Jorge de propósito...pra ele não contar

nada, né...

EU: O senhor me contou que ninguém queria levar o corpo pro cemitério. Por

quê?

J: É que as pessoa ficava assustada, né...diziam que o Anacleto tava

conversando com alguém e ao mesmo tempo oiando pro corpo da pessoa, pra

vê onde enfiá a faca...diziam muito dessas coisa dele, daí, todo mundo morrê

de medo, mesmo depois de morto... nem bem escurecia, o povo já se trancava

tudo em casa. O delegado não queria nem que enterrasse ele no cemitério

daqui...porque... de certo por ser uma pessoa muito ruim, né? Mas como tinha

um canto que era benzido, se resolveu qu ia ser posto lá mesmo, naquele

canto que te levei, naquele dia...

EU: E por que havia um espaço não abençoado no cemitério?

J: Era pra quando uma muié perdia um fio sem batizá...sabe?...nascia morto,

ou morria muito pequeno, sem batizá...morria pagão...dai tinha que ter esse

canto lá, pra essa gente. Mas hoje não é mais assim. Naquele tempo, só...que

era assim...desse jeito.

EU: O senhor sabe quanto filhos Anacleto teve com a Nêga?

J: Três. Dois home e uma muié,... dizem que moram tudo no Irati, não sei...

EU: E a mulher, depois que Anacleto foi morto? O que fez?

J: Ficou uns tempo ai...cos irmão ajudando...depois foi embora...pro Irati.

EU: e os filhos do Evandro?

J: com o tempo foram tudo embora. O Santo morreu acidentado numa

construção, em Curitiba. O Pedro foi pra Reserva. O Nico morreu. Mas tinha

ido tudo embora, já. Aqui ficô só a Lídia... esse Nico, sabe?...foi esse que deu a

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paulada que bendizê apago o Anacleto, pra daí o Evandro trucidá com sei lá

quantas facada... Antonio era o nome, mas, daí...virô Tonico e por fim...Nico.

Ele era da minha idade...esse Nico. Nós se conhecia bem. Se tivesse vivo,

agora, era 76 anos, né...tinha minha idade...nessa época(quando Anacleto foi

morto), tinha um comerciante aqui...um tal Bruno, que mudou-se pra Reserva e

de certo que o Anacleto contou pra esse também o que vinha fazê aqui... diz

que esse home também tentou avisá o pessoar, mas, não sei o que deu que

parece que só chegô a notícia depois do home... não, perá lá...ele veio aqui, no

Pirapó, e aviso o Evandro, sim...foi daí que esse Nico mais o irmão, o Dinho –

que diziam Dinho, mas se chamava João – combinaram de dormi num

ranchinho assim, fora da casa...pro causo do home aparece lá pra fazê

mardade, né? Quando veio o Anacleto e começaram a luta, esses dois

entraram dentro da casa, daí...

EU: E qual era a relação entre o senhor e o Nico?

J: Nós trabaiava junto...tudo dia se via e falava. Mas, por um bom tempo ele

ficou assim meio engraçado... se balançava...andava meio que se torcendo.

Ele contava que foi ele mesmo que deu a paulada no tio(Anacleto). Ah! Ele

dizia que tinha dado é uma facada no Anacleto...dizia que a faca não entrava

por causa da faca e porque eles tavam se rodiando no chão...pois fico tudo as

roda das esporada do falecido no assoaio, marcado... e foi que o Nico acerto a

primeira facada no pescoço, dizia ele... ele dizia que depois que acerto essa no

pescoço, o Anacleto rolou de barriga pra cima e jogou a capa pro lado, porque

tava passando mar, né?!... de certo por causa da facada...e, nisso, com a

barriga livre da capa – que ele usava um capotão grosso...tipo de lona...ruim de

furá aquilo...já de certo pra se protegê – o Nico deu uma em cheio... quando eu

cheguei lá depois, pra vê, podia enxergá tudo as entranha do morto...o Evandro

deu um monte de facada depois, co mesmo punhal dele(do próprio Anacleto)

mas... depois que já tava meio morto... o Nico caso depois de um tempo, meio

que na mesma época que eu, também...ficô por ai, trabaiando...teve os fio

dele...viveu com a muié...

EU: era comum, isso, seu José? Gente violente, assim, por aqui?

J: Não. Do tipo do Anacleto não. Tinha aí o tar do João Moraes...que foi um

baita bandidão, também...matou gente por causa de terra grilada e tudo,

mas...assim de matá por matá...teve o Jorge Martins de Lima...esses Lima ai

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eram perigoso, também... o filho do Anacleto foi morá em Ponta Grossa,

e...tinha uns cunhado meu que conversava com ele direto, porque moravam lá

também, em Ponta Grossa. Era puro Anacleto, assim de feição...mas, não era

bravo, valente, como o pai. Ele se chamava Pedro. O Anacleto era um home

meio baixote, encorpado...meio moreno, tipo de bugre. Cê veja só...ele era um

home, que, antes, fazia baile ai co pai dela(indicando novamente a esposa,

dona Dora), e depois...viro naquele negócio de matança que não teve mais

fim...teve né...(risos) (A dona Dora, nesse ponto da entrevista, fez uma

pequena intervenção: até meu pai que era muito amigo dele, ficou com medo e

evitava falá, vê...passá perto... pois eles era amigo de sorteria[eles dizem isso

quando se referem à época em que as pessoas são jovens e ainda solteiras],

sabe?)...é...e era um tar de “quarqué hora eu vô lá...passeá na tua

casa...e...quarqué hora vô mesmo”...pois, cê sabe, que...depois que morreu,

ando dando umas ventania lá por dentro da casa desse meu sogro?(nova

intervenção de dona Dora: entendeu? É que antes de morrer ele prometia que

ia passeá na casa do meu pai, e já nessa época meu pai tava assombrado, né?

Por que sabe Deus que tipo o home chega ai, né, pois, tinha virado

matador...e, naquela noite[se referindo à noite em que Anacleto foi morto] meu

pai dormiu e teve um sonho co Anacleto...e diz que ele aparecia nesse sonho

pro meu pai e dizia “hoje eu vô te visitá”. Meu pai disse que acordou assustado

e sentou na cama...daí se ajoelho e pediu pra Deus...pra que se fosse pra ele

tirá a vida de um inocente, então que essa pessoa é que tirasse a vida dele...e

essa foi a mesma noite em que o Evandro mato o Anacleto)...sabe...isso é hora

da pessoa que chega, porque o Evandro já ponhava o revorve debaixo do

trabicero...e a muié, o rosário...daí ele queria o revorve e o cavalo do Evandro –

de montaria, que se dizia – e...o Evandro disse pra ele: “O revorve tá lá debaixo

do trabicero, é só pegar” e diz que ele foi. Foi...chegô lá...ergueu o trabicero

errado, só viu um rosário... de certo que fico tão bravo que nem oiô no outro

trabicero...já vorto pra cozinha...e foi nisso que a Moça levo a cuia do

chimarrão pra ele e ele já de um safanão atirou aquela cuia longe e pulo no

Evandro... se ele levanta o outro trabicero...ia achá o revorve e já vinha co a

arma em punha...matava todo mundo, mas isso é certeza! É... como

dizem...coisa do destino da pessoa, de certo, isso aí...

[o pai da dona Dora se chamava Augusto Parteka, descente de ucranianos]

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O Evandro chegô a sê preso...porque deu muita punhalada nas costa e não

pode né... daí o povo se reuniu aqui e foi lá, pedi pra sorta o Evandro...

EU: Então ele foi preso...

J: Foi preso só não: ele ia tirá cadeia. Você já penso?

EU:Hum...então vai ver é por isso que o inquérito desse assassinato Evandro x

Anacleto só está registrado no livro e nas caixas só existe umas poucas folhas

dentro da capa. Pode ser que ele tenha sido apagado...porque se as pessoas

foram lá e exigiram a soltura dele...

J:...pode ser, pode ser...

EU: E, José, como você explica o fato de nunca o Anacleto ter tentado nada

contra o Santo(meu bisavô e avô do José), afinal, ficava vulnerável atrás do

balcão daquela bodega, certo?

J: POIS É... não sei bem o por que, sabe? Mas é fato mesmo...nunca

aconteceu nada, ali... veja que ali o pessoar de tudo lado vinha, jogava truque,

bocha...bebiam cachaça... mas só durante o dia. De noite, nada. O nono

fechava as porta. Não tinha perigo que ele dexasse a bodega cheia de bêbado

noite a dentro. No dia que morreu o Bidóca...eles tinham ficado o dia intero

jogando truque e caxola...despois, quando o nono fecho a bodega, tinha um

ferrero que tava montando a ferraria dele, nesse terreno onde o acharam o

Bidóca esfaqueado na cerca...eles foram tudo pra lá, de noite, continuá co a

jogatina, no rancho do ferrero...

Você,... não sei se você sabe, mas...o Evandro ficou meio variadão, também.

Uma vez tava eu e o Santinho varando a entrada do terreno dele, pois...ele fez

nóis entrá, porque diz que queria mostra como é que foi que ele matou o

Anacleto. Se vimo loco... um medo desgracido...

EU: Mas, por que todo esse medo?

J: Ah...uma pessoa que mata a outra, do jeito que foi, sei lá... já não fica muito

bom da cabeça, eu pensava...só sei que fomo meio que saindo e “vamo!,

vamo!” eu e o Santinho e se mandemo. O Evandro...bem certo ele também não

era, viu? Era bom...mas, meio variadão...atrapalhadão, já desde moço. Sempre

foi meio engraçado o jeito dele. Se metia em tudo que é negócio, negócio que

nem era dele, às veis...

EU: Como assim?

J: Ah, fazia negócio errado... era assim...

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EU: Mas ele tocava a vida dele com roça, não?

J: É...roça também, mas, o dele era a braganha...

EU: O que é isso?

J: Compra e vendê criação, animar... até eu depois de casado comprei animar

dele...

EU: E o senhor sabe qual era o grau de parentesco entre o Evandro e os Lara,

do Licinio e do Waldomiro?

J: Que eu saiba eles não eram parente. Pode até sê o mesmo nome,

mas...acho que não são nada...o pai do Licinio chamava Belmiro de Lara...o

sogro desse home tinha muita terra no Rio Preto. Gente riquíssima...ali era

quase tudo dele. Mataram o casar de veio, os sogro e sogra dele. Dizem que

esse sogro do Belmiro tinha uma soma muito alta de dinheiro guardada no forro

da casa, só que os ladrão não sabia que tava no forro. Mataram pra robá, mas

num puderam achá o que eles foram de atrais. Daí esse Belmiro queria ir trocar

aquele dinheiro em Ponta Grossa...que diziam, era moeda estrangera, ouro,

prata...como fosse um tisoro, sabe? Mas daí ele começou a beber e beber...foi

vendendo barato até que perdeu, dizem que tudo, não sei... eu fui lá uma vez

co papai...ele tava bem veio...olhava pro forro e falava: “Calma, diabo velho!” ...

depois de um tempo, morreu...

Mas eu queria te dizê...o Nico, sabe?...sempre que vinha, parecia que vinha se

mordendo...estranho. Daí ele ficava um poço co a gente, contava um causo eu

contava outro e ele ia se acarmando. A roça deles era do lado da nossa,

então...cada passo que nóis tava roçando, parava pra dá uma descansada, ele

vinha conversá. Mas nunca mais fico bão...tava estranho sempre...ele já devia

tá preocupado porque tavam dormindo no ranchinho que faz fogo pra se

esquentá...

EU: O que é isso? Ranchinho que faz fogo pra se esquentar?

J: é costume brasileiro(ele diz isso porque na colônia do Pirapó haviam muitos

imigrantes europeus e, entre eles, havia, naquela época, tal distinção entre

práticas e costumes de cada povo), né? Fica no ranchinho que é menor, faz um

foguinho lá dentro e se esquenta mais face...então como eu dizia, ele já tava

dormindo lá porque tavam esperando o home chegá quarqué hora... e o

Evandro contava que quando abriu a porta pro Anacleto entrá, levo uma

corredoisada na cara...

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EU: Corre, o quê?!

J: Corredô, açoitera...que nóis usa pra dá nos cavalo, pra fazê eles andá,

corrê...

EU: Eu lembro que em algum momento da entrevista, José, o senhor

mencionou sobre uma escapada do Anacleto, no Rio Grande do Sul...

J: Uhum...ele levou um tiro no pé nessa história...veio se tratar aqui no Irati...eu

nem sei como é que foram dá um cargo de polícia pra ele...

EU: Será que haveria alguma influência política?

J: Daí eu já não sei...só sei que foi estranho ele ficá sorto por ai e ainda como

inspetor de quarterão... ele tinha um primo, o Jorge Martins de Lima...esse guri

fez umas mardade por aqui, tbm...o primero que ele mato – acho que esse

Jorge não tinha mais do que uns 15, 16 ano – eu quase assisti a morte. Veio

uns home, dois home, pra matinê que tinha ali, pertinho...e esse Jorge disse

pra eles: “Se vcs pagarem a dança, vcs dançam, se não, não” e os dois foram

pra bodega. O Jorge foi de atrás. O home já tava co pé no estribo quando esse

rapaz enfiou o facão por trás...ainda lavou o facão no tanque, antes de ir

embora...

EU: Eu vi esse inquérito lá no fórum...

J: É, mas o Edgar, aquele grandão lá de Irati(Edgar Gomes, prefeito de Irati,

por mais de um mandato. Nesse ano. Ao qual José se refere, Edgar exercia

mandato), pegou e abafou tudo...mandou o Jorge pra Pitanga...

EU: E depois esse Jorge voltou para cá?

J: Não, nunca mais... mas agente ficava sabendo, também, que ele matou uma

porção de gente cigana...dizem que matou um casal de veios, na Pitanga.

Também. Daí, parece que andaram machucando ele, por lá... diz que ele vinha

se trata num médico em Guarapuava. Sei que lá na tal da Palmerinha, a turma

esperaram ele e atacaram fogo no carro. Numa pick-up – que aquele tempo era

só o que tinha, pick-up e Jeep... só que ele não tava na cabine, ele tava atrás.

Diz que se machucou bastante mas não morreu. Daí, depois disso, ele foi pro

Mato-Grosso. Daí, lá, mataram ele... a muié dele era conhecida nossa, aqui.

Queriam matá a famia intera dele...daí a muié, e não sei, mas parece que tinha

uns fio, fugiram. Esse pessoar...os Lima, os da famía do Anacreto e os

Moraes...Deus o livre se alguém encrencasse com eles...eles vinham de noite e

“pintavam o caneco”... esse Jorge, matou o tio dela, aqui(indicando a esposa)

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no dia do Natar. Pois o home tava sentado e ele veio na porta, pelas costa e

chamou... no que o tio dela se viro ele(Jorge) carcô um tiro na testa...o coitado

morreu co’a boca cheia de comida... ninguém sabe por que. O home não devia

nada. Não tinha nada com nada... teve um tal de Eloir Rossa, aqui...isso já faz

uns 34, 35 anos que aconteceu. Ele tinha um amigo, eles eram compadre,

parece...mas, muito amigos. E começaram por ai com umas conversa que a

muié desse Eloir tava traindo ele com esse compadre, amigo dele. Então ele

chegou pra mim, um dia, e pergunto, ali, onde nóis tudo jogava bocha e tomava

pinga: “ Escuita, cê não tá sentindo um chero de vela, aqui?” e, eu: “Pois...eu

não...” É porque as pessoa tem esse costume de dizê que quando vai morre

alguém sente chero de vela, sabe? É porque...Daí diz que ele tinha ido numa

vidente, numa cartomante e ela disse que era isso mesmo que tava

acontecendo...entre o amigo e a muié dele. Pois sei que esse compadre tava

co fio roçando um dia, e esse Eloir veio...Diz que o fio que tava junto roçando

falo: “Óia, pai...mas o Eloir tá vindo co revorve na mão...” o pai nem deu bola,

pois eram amigo, os dois. E esse Eloir veio e c’uma mão abriu o quexo do

home e deu tiro dentro da boca do coitado...despois vorto pra casa e mato a

muié. E ele tinha dado ordem pro próprio fio cuida que a mãe ficasse trancada

dentro do quarto, enquanto ele ia matá o compadre...dicerto já tinham

discutido, daí ele resorveu fazê isso... quando ele atirou na muié, diz que ela

pôs a mão na frente e a bala ainda arranco um dedo da mãe dessa muié...

depois disso, não sube de mais nada, assim, tão bruto, aqui, no Pirapó... teve

otras morte. Sempre tem...mas, coisa de bêbado... assim, pranejada com

mardade, nunca mais sube de nada...

11.5 ENTREVISTA DE WALDOMIRO DE LARA

EU: Fale um pouco sobre sua vida, Sr. Waldomiro, quem é, de onde veio, no

que trabalhou, quem foram seus pais...

W: Nasci no Rio Preto e vivi lá por uns 22 anos, até vir pra Curitiba. Minha

mulher conheci lá e lá me casei. Sua afiliado de crisma de seu avô, o Frederico

Stroparo. Eu tenho dois filhos com mais de 50 anos, e uma outra, que fará 49...

e, sabe? Por falar no seu avô: eu nunca esqueço daquela família, pelo que eles

me deram, pelo que recebi deles... tenho uma gratidão muito grande,

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porque...sabê comé? Além das amizades,... tem coisas tipo, a história do

padrinho: eu devia ter uns 12 anos, quando fui crismado pelo Frederico. Isso é

uma tradição da Igreja, a crisma, um homem terá um padrinho e, a mulher,

uma madrinha. Meu pai se chamava Belmiro Pereira de Lara e, minha mãe,

Emília Horn de Lara. O sítio dos meus pais, fazia divisa com o dos Stroparo.

Era os Lara, os Capelin de Lara, e os Stroparo. Nessa ordem, como quem vai

do Rio Preto para o Pirapó.

EU: qual é o parentesco dos Lara com os Capelin de Lara?

W: O Evandro, dos Capelin, era um primo do meu pai. O pai do Evandro, Lucio

Capelin de Lara,, na verdade, era o primo do meu pai. O Evandro era de

segundo grau. Eu me criei junto com os Capelin de Lara e com os Stroparo. Só

que no Rio Preto, os Stroparo era os da linhagem Duda Stroparo. E, quando

nos mudamos para o Pirapó, conhecemos a família do Santo Stroparo, pai do

teu Nôno, e teu bisapó. Esses Duda Stroparo, eram da cidade de Irati. O José

Duda Stroparo foi quem comprou a propriedade do meu pai, lá no Rio Preto.

Ele era dono de uma funerária, única da região que fabricava urnas e caixões,

sabe? Meu pai era brasileiro. Minha mãe era austríaca. Veio no tempo da

primeira guerra. Como, para os austríacos, naquela época, não era possível

imigrar para nenhuma região fora do país, eles fugiram para a Ucrânia. Porque

a ideia, sempre foi, imigrar para a Itália. Não puderam entrar na Ucrânia, daí,

se obrigaram a ir para a Lituânia. Mamãe dizia que era uma região cheia de

morros, aonde o sol aparecia só umas três horas por dia. Acho que por causa

da proximidade com o polo norte. Lá, segundo mamãe, fazia um inverno de dez

meses. Muito gelo... aquela coisa, bom! Daí... com muito esforço, finalmente

eles conseguiram autorização do governo Italiano, para migração. Só que eles

tiveram que ir até a Noruega, pra só então poder viajar pra Itália. Mas parece

que houve uma denúncia contra o navio que eles estavam...disseram que havia

muita gente doente etal...e que não era pro governo italiano aceitar aquele

povo. O governo italiana, daí, por causa dessa denuncia, suspendeu a

autorização que havia concedido à minha família.

EU: E daí?

W: Daí que eles abasteceram o navio e encaminharam o povaréu todo pra

América do Sul. Então o navio ia despejando as pessoas a partir de Recife...e

vieram...até que a família da mamãe desceu em Morretes, na colônia Pereira –

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que é italiana – pra depois subir a serra, vir parar em Piraquara. Minha mãe e

parte, apenas, da sua família. Porque teve duas irmãs dela, por exemplo, que

foram a diante. Uma parece que foi pra Argentina, e outra parou no Uruguai.

Voltando ao caso da mamãe e dos que ficaram em Morretes...de Piraquara,

uns foram pra São José dos Pinhais, outros pra Prudentópolis...gente muito

trabalhadora e precisava, também, né, trabalhar... e, pra esses nossos lados,

naquela época, ainda era muito índio, né... e os europeus tinham mão de

pobra, tinham técnicas agrícolas...o caboclo daqui...era fazer o buraco no chão,

jogar meia dúzia de sementes de milho e só. Por isso que eles deram tão

bem(os imigrantes), veja o caso de Irati, por exemplo. Eu gosto muto de leitura

sabe, então, lá na casa da praia, eu tenho um livro que cota essa história da

colonização de Irati, pelos imigrantes. É uma história muito complicada, cheia

de idas e vindas, mas, é interessante. Eu também acho engraçado – e, um

pouco trágico, é verdade - uma coisa que sempre observava, lá, naquela

região. Veja, eu nasci em Rio Preto, fui registrado no Guamirim, Waldomiro

Pereira de Lara, filho de Belmiro e Emília de Lara, no ano tal e tal...e, tudo isso,

via uma declaração dos próprios pais. Naquele tempo, lá no Irati, pelo menos,

isso era assim. Daí, recentemente, precisei fazer um novo R.G. Qual não foi a

minha surpresa ao ler: local de nascimento: Rebouças. Isso não foi erro de

digitação. Desculpe. Isso é algum defeito, assim como era, há anos, um defeito

registrar crianças baseados numa declaração simples dos pais. Esses cartórios

bagunçaram documentos. Agora eu te pergunto: e se a informação da

localidade do meu nascimento fosse algo importante para uma pesquisa, como

essa que você está fazendo? Do mesmo modo que meu registro foi parar em

Rebouças, não poderia ir parar em Guarapuava, São Mateus do Sul? Ia dar

bastante trabalho extra. No mínimo.(Risos)

EU: É, tenho sentido essa dificuldade em minha pesquisa...

W: Mas, sabe... você pode procurar pela família Mansur, como fonte. No Pirapó

não tem mais ninguém, porque eles venderam tudo e foram embora.

EU: Esses Mansur são da parte do Abib Mansur?

W: Isso! O filho dele, o João Mansur, depois foi governador...nos criamos

juntos, brincávamos de tiro ao alvo, nas andorinhas...ele e o Emílio Gomes,

vieram aqui e tomaram café com polenta frita, nessa mesa, aqui.

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EU: E, como era a relação entre o ciclo de amizades ao qual o Sr. fazia parte, e

o Anacleto?

W: Bom...todo mundo era amigo dele. Era bandido, mas era amigo. Ele e toda

a irmandade, bandidos. Todos violentos, valentões e ameaçadores. Mas eu

não sei o que aconteceu com os irmãos...sei o fim que levou o Anacleto, só...

sabe que havia um grupo que jogava baralho direto, direto... na noite que o

Bidoca foi morto, pelo Anacleto, estavam na ferraria, o meu pai, o Ervandro, o

Anacleto, e o Bruno Kubinski – esse, aliás, era o pato da turma. Todo mundo

pelava ele. O camarada trabalhava muito! Era vendedor... ele tinha uma

carroça com quatro cavalos e ia por tudo, vendendo umas coisarada lá que

nem lembro... já o Evandro, você veja, era o mais controlado. Vivia

emprestando dinheiro pros devedores.

Mais tarde, depois que ele fugiu pra Pitanga(o Anacleto) – tinha um irmão dele

lá...agora não lembro se era o Honorato ou o Sérgio – soube que ele começou

a aceitar empreitadas. Assassinatos por encomenda. Olha, todo mundo sabia

da violência e da periculosidade desse homem. Mas, ele vivia por lá, perto da

gente. Ele era briquero, vivia de rolos...trocas... com animais e essas coisas.

Essa gente, além do mais, bebia. Todos. Anacleto e seus irmãos. Bêbado e

violentos. Mas, a família do meu cunhado, também não era muito diferente

disso, não. O interessante é que quase todos eram compadres, viu... e, uns,

desse meio, eram mais violentos, outros menos, naturalmente. Teve, como

você bem sabe, ainda, aqueles que foram para um extremo de agressividade.

Minha irmã mais velha mora em Pitanga, e é por isso que ela também conhece

muito bem essa história. Ela se chama Amélia de Lara. O marido dela tinha um

irmão, o tal Jorge Martins de Lima. Esse também se criou com a gente lá no

Pirapó. Se você fizer um levantamento da ficha criminal desse homem, vai ficar

impressionado. Ele matou um homem no dia de Natal, num lugar chamado

“Empossados”, enquanto o coitado almoçava com a família, sem nenhum

motivo que as pessoas, pelo menos, soubessem. Veja só, certa vez fui à

Pitanga, visitar minha irmã. E, esse Jorge, tava preso, lá, na delegacia. Quando

ele soube da nossa visita e que estávamos na casa do irmão, ele pediu licença

pro delegado e foi lá, passar o dia conosco, tomar um café...(risos) o homem

era um assassino!!! Como que pode, assim...”pedir licença” e o delegado

conceder?!... com o Anacleto aconteceu o mesmo: eu estava passeando em

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Irati, e, quando olhei, vi ele, a mulher e as crianças, andando pela praça... o

que se comentava era que ele estava “morando” na delegacia. Então quer

dizer...é a mesma situação, né? O sujeito mata, brutalmente – e, mesmo que

matasse sem querer: matou? A lei infringe uma pena. Se está na cadeia

aguardando julgamento, ainda não foi sentenciado?, fica preso até sair o

parecer do juiz... sei lá. Mas, isso era comum, como até hoje é, pois, a gente

sempre vê na TV coisas assim...presos na delegacia fazendo churrasco...e

aquilo tudo.

EU: O senhor ficou sabendo de algum outro crime cometido pelo Anacleto, em

detalhes?

W: Olha...depois que ele matou o Bidóca, nunca mais matou lá no Pirapó.

Então, a gente nunca ficava sabendo porque não tinha, assim, como hoje, né?,

TV...Jornal a vontade...rádio...quer dizer, ter, tinha, mas, lá?...não... muito era

na base do “ouvi falar, alguém me contou...”, entende? Que eu soube, ao longo

do tempo, o Anacleto, só na Região de Pitanga, matou mais de dez pessoas.

Mas...é como disse: fiquei sabendo...

EU: O senhor, como morador do Pirapó, à época do homicídio que vitimou

Anacleto, sabia da ameaça que ele havia feito, tanto por carta – remetida à

esposa, Nêga – quanto por recado – comunicado pessoalmente ao Jorge

Magatão?

W: Eu sabia dessa ameaça. Eu achava que era apenas contra o Evandro. Não

sabia que ele pretendia matar, entre outros, o seu bisavô, Santo, por exemplo.

Isso, todo mundo, pode-se dizer, foi saber apenas depois do fato consumado.

Ou seja, depois que ele foi morto. Sei que o Anacleto apareceu mesmo, como

prometido, na casa do Evandro. Chegou tarde da noite e foi muito bem

recebido, pelo que me contaram. A esposa do Evandro, a Isabel, se levantou –

como era tarde, já estavam todos dormindo – e foi fazer um café ou um

chimarrão, pra oferecer pra “visita”. Dizem que o Evandro falou pro Anacleto: “-

Ô, compadre!”, porque eles eram compadres, “ Vamo tomá um café, ai, fazê

um lanche...” e foi daí que o Anacleto levantou e pulou no Evandro já dizendo:

“- Eu não vim aqui pra tomá café! Eu vim aqui pra te matá!” O que me contaram

é que ele foi pra cima do Evandro com o punhal. O Evandro segurou a mão do

Anacleto – porque o Evandro era forte, também(ele teve aqui em casa, uns

anos atrás e me contou essas coisas, sentado aqui, nessa mesa, aí onde você

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está sentado agora, Angelo). Com os gritos de socorro, alguém da família veio

ajudar na luta... uns dizem que foi a mulher, mas...eu acho que não poderia ter

sido a Moça, porque ela saiu da casa, pro terreiro, pra gritar por socorro,

também. Mas, gritar e não gritar, naquele lugar dava quase que na mesma

coisa... as casas muito longe umas das outras e todo aquele mato entre

elas...enfim!, sei que... alguém pegou um porrete e deu uma porretada nas

costas do bandido. E...daí foi aquilo: o Evandro passou a mão no punhal e

picou o Anacleto, massacrou. Depois disso, o Evandro pegou o Anacleto pelas

pernas e arrastou o corpo lá pra fora... dizem que ele saiu arrastando o corpo e

gritando: “- Venham aqui! Venham vê o animar que eu matei!!”...assim, desse

jeito. Daí, depois de tanto grito, por tanto tempo, os primeiros vizinhos

começaram a chegar...já de madrugadinha. Depois veio a polícia...mas, o

Evandro não foi preso. Ele foi “convidado” a prestar depoimento na delegacia –

porque todo mundo conhecia a história do Anacleto. Quando foram enterrar o

corpo, fizeram um buraco, lá, de qualquer jeito, no cemitério do Pirapó e

jogaram ele com capa, bota e tudo. Até o chapéu, parece, foi junto.

EU: E o que aconteceu com o Evandro depois disso tudo?

W: Ele precisou fazer tratamento...ficou muito abalado... afinal, eram amigos e

compadres. Cunhados, quase que antes de tudo.

11.6 ENTREVISTA DE JOSÉ MARIA ORREDA

JMO: Então, tem um autor... de um livro chamado “Profecia Celestina”, no qual

ele sustenta que, à medida em que identifica as coincidências, o indivíduo tem

a possibilidade de experimentar uma nova espiritualidade. E será ainda melhor,

se mais pessoas ao seu redor fizerem o mesmo, formando assim, uma espécie

de massa crítica. Veja...certa vez, eu voltava de Gonçalves Júnior – não sei se

você passou por essa região -, e... ali, na Barra Mansa, vivia um amigo, que

recentemente havia morrido. Ele benzia as pessoas dos povoados,...das

colônias, enfim. Ele possui um grande conhecimento acerca daquela sabedoria

ancestral dos povos antigos referentes aos benzimentos...simpatias... porque

as pessoas no interior, com pobreza, sem médicos ou remédios e tal... elas

precisam se agarrar em alguma coisa, acreditar nos benzimentos para curar

suas enfermidades e males, entende? Então eu vinha passando naquela

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região, sozinho em meu carro, e...de repente, eu falei em voz alta: “- Ô, Turibio,

‘cê foi embora e deixou o povo na mão, rapaz! O que é isso? Você não tinha

autorização pra ir embora, assim, de repente! Como é que vai ficar, agora,

aquele povo todo...as crianças, os velhos?” e, passei. Segui meu caminho. No

dia seguinte, ou, nos dias seguintes, não me recordo com tamanha exatidão,

fui fazer uma palestra – aqui, no Colégio Nossa Senhora das Graças – e,

depois que terminei de falar, uma menina pediu pra ler um poema. Acabada a

leitura, essa menina – que eu nunca havia conhecido – chegou pra mim e

disse: “ – Professor, o senhor sabe quem eu sou? De quem eu sou filha?” eu

disse que não e ela me contou ser uma neta daquele meu amigo Toribio... “- O

senhor sabe o que aconteceu?”, me perguntou... e eu falei que não, então ela

me contou que ”- antes de morrer, meu avô ensinou minha mãe a fazer o que

ele fazia àquelas pessoas, em Gonçalves Júnior...e, agora, é ela quem faz todo

o trabalho que antes era dele.” Eu não sabia se eu chorava...ou...eu...o que eu

fazia. Fiquei parado, ali, imaginando como seria possível, uma coisa

daquelas... meu amigo me responder, já em seguida, assim. Aquela menina ler,

espontaneamente aquele poema pra depois vir me dar o recado, de livre e

espontânea vontade, sobre um assunto tão desconectado ao abordado na

palestra. É algo impressionante, não acha?

EU: Sim, acho. Acho que foi algo muito impressionante, mesmo, professor...

JMO: Então eu conto essas coisas, sabe... em meu livro – aquele sobre o qual

comentávamos, dias atrás – falo algumas... não particularizando com Irati,

sabe? Eu não quero produzir um trabalho que fique ligado, preso à Irati, me

entende?

EU: Uhum...

JMO: Mas, eu...de repente descubro lá, num texto...que alguns escritores

portugueses...o Alexandre Herculano, o... Antero de Quental...e um outro de

sobrenome Braga, chegaram a conclusão de que Portugal nunca saiu da Idade

Média. E, ai...você deduz que se Portugal não saiu da Idade Média – e acho

até que o Pombal expulsou os jesuítas em função daquela educação defasada

que eles ofereciam, em relação a todo o resto da Europa -, e..., bom, até me

perguntava como isso teria sido possível, afinal, naquela ocasião, a Igreja

ainda era tão forte... mas, de repente, achei um texto em um jornal antigo, aqui,

do estado do Paraná, no qual se dizia que muitas instituições estavam

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denunciando os portugueses em razão da prática de ensinar índios a ler e a

escrever sem conferir muita atenção à catequese. E nesse texto ainda dizia

que não iria demorar muito para que esse índios expulsassem os portugueses

daqui. Vi nisso alguma relação com a tal ação do Pombal, mas... eu falava

sobre a conclusão que alguns autores chegaram sobra a não saída de Portugal

da Idade Média, não? Pois é... então como à época ainda era extremamente

forte a influência de Portugal sobre o Brasil, chego a pensar que o modo como

fazemos política e como se governa no Brasil, ainda é muito segundo os

preceitos medievais, só que “aqui e agora”. É isso que digo em meu livro. Veja,

a nossa história é sempre sonegada aos nossos jovens, não? Por exemplo: por

que nunca se conta para os jovens do ensino fundamental o que foi a expulsão

dos holandeses, ou, o que foi a Batalha de Guararapes? E a segunda Batalha

de Guararapes? O heroísmo daqueles português...daquelas mulheres...a Clara

Camarão, que liderou um grupo de mulheres, com armas em mãos, atuantes,

de modo expressivo na batalha. Tem a Maria Quitéria... e tantas outras

mulheres que fizeram um trabalho fantástico... dentro da história desse país.

Sabe...isso é sonegado das nossas crianças e jovens, todos os dias... privam

nossa juventude do vislumbre d’um cenário que expõe o quanto nosso país

sempre foi governado por gente “bunda mole” e incompetente, na contramão

do espírito das pessoas que citei anteriormente, no tocante e relacionável à

capacidade de governar. Escondem os verdadeiros heróis que criaram essa

nação, entende? São coisas assim que tento dizer no meu trabalho, sabe?

Tento dizer de forma indireta...uso metáforas... no trabalho. Justamente para

aproximar o livro da literatura e afastá-lo do relatório...do documento, registro...

EU: Tudo muito interessante, José. Enquanto você falava eu pensava que... só

fui saber de uma outra história do Brasil, na faculdade, pelo Sérgio Buarque de

Holanda – que no ensino fundamental – pelo menos na minha época – nunca,

sequer, ouvi falar...

JMO: Sim, sim...e, deixa eu te dizer uma coisa: esse meu trabalho – até tenho

que fazer umas duas ou três revisões, pra deixá-lo mais enxuto – se baseia um

pouco no “Profecia Celestina” pra mostrar uma ideia de que, uma pessoa, por

mais inteligente que seja, jamais dará o máximo, o melhor de si, para si próprio

e para a coletividade, se não estiver baseado num pensamento ancestral, num

pensamento dos antigos... os americanos, a meu entender, tem isso que

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acabei de dizer como um princípio fundamental. Do contrário, não seria

possível ver, mesmo no pior dos filminhos produzidos em Hollywood, um quase

onipresença da bandeira americana. Aqui no Brasil, só veremos algo

semelhante no caso dos gaúchos. O Rio grande do Sul, para mim, é o mais

brasileiro de todos os estados do Brasil. Apesar de eu não ter lido muita coisa a

respeito do povo nordestino, à exceção desses períodos que já mencionei, da

nossa história. Claro que não levo isso tão a sério, em demasia. Considero os

conflitos dos gaúchos, durante a consolidação daquele povo e como evolui até

a atualidade. As coisas não são tão simples...não é isso que tento dizer, que

devemos ser assim, ou assado, esgotando um tema tão complexo. Eu tento

mostrar que a visão de direita que possuímos – e que acaba sendo aplicada -,

na verdade, é a visão de uma direita burra... sem esquecer que tanto direita

quanto esquerda possuem problemas... vícios e virtudes. Mas eu não entendo

muitas vezes – como certas coisas que vejo em redes sociais – quando dizem

que o PT é um partido de vagabundos...e que precisa o quanto antes ser

extirpado...banido do governo...essas coisas, sabe? Claro que as relações

políticas e a “governabilidade” continuam mantendo toda esta palhaçada que

vemos...e, o PT mesmo, sabe que não fez muito do que prometeu, mas...te

pergunto: houve algum outro período na história do Brasil que tenha sido, nem

digo igual, mas, próximo a este, no qual o PT governou? Nessas horas, de

tanta contradição nos discursos públicos e políticos...penso na revolução

francesa e na Joana D’arc...o povo, depois que conquistou o poder e a

possibilidade de uma vida melhor, cortou a cabeça da mulher que teve um

papel tão importante na própria conquista desse poder popular...que a mataria.

Lembro de Jesus, no sermão da montanha, que dizia que os justos serão

condenados pela sua justiça. Eu...falo de tantas coisas...não sei se as pessoas

vão entender esse meu livro, mas...

EU: Me pareceu bem interessante e depois que o senhor o lançar, certamente

tentarei ler...mas, em nossas últimas conversas, professor, o senhor havia

mencionado algo sobre a estagnação do crescimento de Irati...

JMO: Eu penso que, na verdade, o que aconteceu, foi o seguinte:

historicamente,... e... escrevi uma espécie de paródia da frase “Pobre México,

tão longe de Deus e tão perto dos EUA”, certa vez, e a digo agora, pra tentar

ilustrar melhor o que quero te dizer, Angelo... eu dizia “Pobre Irati, tão longe de

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Deus e tão perto de Ponta Grossa”... então, como eu iria dizer inicialmente,

sempre que Irati conquistava algo realmente grande, Ponta Grossa vinha e

tomava isso de nós. Lá sempre existiu mais votos, sempre foram,

politicamente, mais fortes... existiam pessoas mais atuantes lá, portanto, uma

massa crítica mais concisa...então, era meio que uma disputa da “cidade

grande” contra a “aldeia”. Perdemos a estrada, ou melhor, o trajeto da BR-277,

para eles – e isso custou 50 anos de esforços do município, pra tentar voltar o

trajeto para cá -, veja, o desvio provocado por Ponta Grossa foi de 40

quilômetros. E mesmo depois de ter conseguido recuperar o trajeto da 277, o

trecho Irati/Relógio, não é o caminho mais correto, ele é oito quilômetros mais

extenso. O caminho melhor seria Irati/Itapará, mas... ficou essa ai mesmo, que

está nos servindo hoje. O motivo disso acontecer, até hoje não entendo muito

bem. Talvez, pelo fato dos “grandões” possuírem terras naquela região...não

sei. Aliás...o trecho Irati/Relógio se justifica pelo fato que dali, se vai à Pitanga.

E, quando a Sambra veio se instalar em Irati, o prefeito deu um “chá de banco”

neles. Esse prefeito era um madeireiro, e, ele só vinha trabalhar às 11hs15 –

tinha que tomar o chimarrão dele, antes, entende? -, porém, o pessoal havia

chegado perto das 9hs... e, durante a reunião, ele perguntou a razão do

interesse da empresa em instalar-se em Irati. O pessoal explicou que era em

função da estrada Irati/Relógio dar acesso à Pitanga. Provavelmente, depois da

recepção “exemplar” do nosso prefeito e da demonstração de desinteresse e

ignorância acerca do próprio quintal, a Sambra não pode resistir à recepção

com banda de música, jantar com mais de 200 empresários da Região e outros

acertos promovidos pelo Ciro Martins(prefeito de Ponta Grossa, na época). Foi

pra Ponta Grossa – que, inclusive, ofereceu o terreno e a terraplanagem, de

graça. Resultado: todo o complexo da soja, Cargil, Irmãos Pereira e “num-

quem-mais” está todo ali, em Ponta Grossa. Ou seja, nós, os iratienses,

representados por aquele madeireiro, fomos incompetentes. E, com o fim do

ciclo da madeira e a abertura da região norte e o início dos cafezais, essa

nossa região, ficou como... abandonada, sabe? Inclusive, meio que foi atribuído

um apelido nada animador pra nós: Ramal da fome. O que também se constitui

num exagero, porque se você observar um pouco, notará sem dificuldade que

não existem favelas em Irati. Ainda que nós atravessamos todo o ciclo da

madeira sendo vergonhosamente roubados pelo Percival Farquar , ou seja, a

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riqueza que movimentou o desenvolvimento dessa cidade, foi de menor

intensidade. Pra ter uma ideia, a estrada de ferro, que ligava São Paulo ao Rio

Grande do Sul era desse homem. Então, muito dessa nossa riqueza, foi

escoada para fora, para os EUA, no caso. Havia um grupo econômico

desinteressado no público E INTERESSADÍSSIMO no privado, que comandava

Irati, nessa época. No início dos anos 1980, esse grupo se desmantelou. E, a

partir de então, servidos, sempre muito mais pelas coincidências, os iratienses

viram o plano do Ney Braga, para eleger o Saul Raiz, desmoronar e, com a

ascensão do José Richa, contratos de financiamentos, engavetados durante

décadas, foram postos em vigor. A muito custo, vale observar. O Richa não

estava muito interessado em investir no desenvolvimento dessa nossa região,

não. Na verdade, ele resistiu o máximo possível - cerca de um ano, depois de

assumir, é que foi assinar os contratos. Esses empréstimos já haviam sido

acordados de antemão pelo Ney Braga, dada a certeza de vitória, veja que

ironia. De qualquer maneira, o dinheiro foi aplicado em melhorias na

infraestrutura de Irati e dos seus distritos; a vida da população melhorou um

pouco. Hoje a situação é completamente diferente. Há dois anos, haviam 600

construções em andamento nessa cidade. Atualmente, estou um pouco

desinformado, quanto a esses números. Para termos um marco: início dos

anos 2000, eu diria. Foi a partir daí que as grandes transformações tiveram

início. Antes dessa década, era comum as pessoas daqui irem fazer compras

em Curitiba, Ponta Grossa e Guarapuava. Houve, não posso deixar de

mencionar, nos anos 1990, a criação de uma extensão da Centro Oeste – da

Universidade Centro Oeste – no governo do Álvaro Dias. Isso ajudou, com

certeza. Por causa da vinda de muitos estudantes de todas as partes do Brasil.

EU: Então, podemos dizer que dois foram os fatores principais à construção da

realidade sócio-política-econômica atual de Irati: o surgimento da Região Norte

e a administração pública, digamos, patriarcal observada, até o início dos anos

1980?

JMO: É... acho que sim. Quanto à colonização do norte...veja: surgiam cidades

“da noite pro dia”, por lá, podemos dizer. Então, houve um pequeno êxodo,

sabe? Muitas famílias daqui, se mudaram pra lá. As atenções foram todas pra

lá. Me refiro, principalmente, à atenção dos governantes, claro. Onde não há

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muito voto, haverá certamente pouco, senão, nenhum interesse da parte dos

políticos para com a população.

EU: Quanto ao grupo que possuía o controle político de Irati: de que forma se

deu a influência desse grupo nos fatores já apontados pela questão anterior? -

excetuando a incompetência administrativa. Porque o senhor deu destaque, a

meu ver, um tanto demasiado àquele aparente desinteresse da classe política

iratiense.

JMO: Veja, Angelo...acontecia o seguinte: o ciclo da madeira se definiu, mais

ou menos, assim: logo que acabava a matéria-prima, os madeireiros

transferiam as serrarias de localidade. Isso parece natural, no entanto, não foi o

que aconteceu no caso exclusivo de Irati. Em Teixeira Soares, assim que

acabou a madeira, o povo das serrarias vieram embora – ou, foram embora -

com as empresas, rumo às novas frentes de corte. Aqui foi o contrário: acabou

o corte, os madeireiros foram atrás de matéria-prima, porém, suas famílias

permaneceram, dessa vez. Algo parecido ocorreu com os construtores da

estrada de ferro. Inclusive, voltando ao exemplo dos madeireiros, o faturamento

era feito aqui. Isso foi fantástico. Entenda: se cortava a madeira em Pinhão, por

exemplo, mas, o faturamento era feito por aqui, ou seja, a arrecadação

tributária revertia-se em fundos para o município de Irati. Claro que não

demorou muito pra essa lei mudar, no entanto, durante as décadas de 1950 e

1960, foi assim. Então, por toda a região norte e oeste do Paraná, naquele

tempo, tinha madeireiro de Irati serrando. E, esse grupo econômico, ao qual me

referi, se formou nessa época. Era liderado pelo Agostinho Zarpellon Júnior –

que era muito amigo do Ermírio de Moraes. Aliás, essa relação próxima entre

os madeireiros de Irati e empresários paulistas é um fato peculiar. Numa época

mais antiga, por exemplo, o Caetano Zarpellon, se tornou muitíssimo amigo do

Conde Matarazzo – que o financiava, evidentemente, com o intuito de que

Zarpellon abastecesse as demandas das empresas Matarazzo. Mas...eu dizia

que o Agostinho Zarpellon era a cabeça desse grupo político que mandou em

Irati por três décadas, não? Então...o Zarpellon se mantinha muito informado

acerca dos acontecimento concernentes ao estado de São Paulo. Tudo que o

Ermírio fazia lá, ele fazia, também, aqui, no Parana, em Irati. Quando o Ermírio

começou a produzir fósforo, por lá, ele, o Zarpellon, fez o mesmo aqui. Houve

até um conflito de interesses entre os amigos: a fábrica de fósforo que veio pra

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cá, inicialmente, ficaria dentro do grupo do Ermírio. Com a definição da vinda

para cá, os ânimos se alteraram. Mais tarde, quando o Ermírio iniciou a

produção de cimento, o Zarpellon criou a Itambé. Mas, daí...os velhos

começaram a morrer, sabe... Edgar Gomes, Virgílio Moreira e o próprio

Agostinho Zarpellon...todos morreram, naturalmente, com o passar dos anos e

o grupo ficou sem cabeça. E se desmantelou. Pode ser, então, que essas

pessoas, motivadas muito mais pelos negócios, em uma ocasião ou outra,

tenham tomado decisões de moda a favorecer mais um lado privado do que o

público. Seria uma longa análise sobre uma não menor pesquisa, então... não

me arriscaria a nada além de uma sugestão, em caráter especulativo, apenas.

Oficialmente? Eu diria que houve incompetência e desinteresse na

administração pública de Irati nos anos de domínio desse povo. Os conflitos

humanos são muito complexos, sabe? O interesse particular uma hora ou outra

extravasa os limites e, aparentemente, esses excessos, deságuam sobre o

público. Tinha um alemão, o Carlos Tows, empresário ascendente aqui na

região...e, numa ocasião, ele resolveu criar uma fábrica de MDF. Após

concluída a pesquisa de mercado, os técnicos o aconselharam a não instalar a

fábrica aqui, disseram que seria melhor em Guarapuava. Pois esse alemão não

quis nem saber. Disse que se não fosse pra ser em Irati ele não faria. E acabou

que não fez, mesmo. Veja, que conflito era esse? Se por um lado ele

demonstra algo de consideração para com Irati, ao mesmo tempo, não criou

uma empresa, em Guarapuava, que fosse, capaz de oferecer trabalho a muitas

pessoas. É complicado, sabe...

EU: E por falar em complicado: ontem, durante uma entrevista que fiz com um

senhor que por muitos anos foi proprietário de um açougue, aqui, em Irati,

também, acabamos entrando no assunto do reflorestamento – porque nos anos

’70 ele deixou do açougue pra se dedicar a produção de madeira reflorestada –

e ele me falou que o real devastador das florestas nativas foi o colono. O

senhor concorda?

JMO: Sim, foram os colonos. A minha esposa vem a ser neta de um grande

madeireiro. O maior, na verdade, aqui da região de Irati. Foi o João Baptista

Anciutti, ele teve sete serrarias. E hoje...uma parte de uma das áreas na qual

se extraia madeira, veio, como herança, para posse de minha mulher. Se eu te

levar lá, Angelo, você ficará espantado: verá pinheiros cujo tronco, para ser

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abraçado, seria necessário dois ou três homens. E, ele cortava muitos iguais a

esta, lá, nas décadas de ’50 e ’60. Não é uma área muito grande, mas,

estimasse existirem 8.000 araucárias, lá. É uma floresta tão densamente

fechada por essas árvores que eu não sei se algumas mudas que plantei, lá,

há uns sete anos, conseguirão se desenvolver. Há trinta anos eu já cultivava a

prática de semear novas plantas. Então, acabei “povoando”, talvez, em

demasia aquele lugar. Mas, o fato, é que já existiam muitos pinheiros lá, porque

o madeireiro cortava os grandes e deixava os menores. E como a demanda

não dava conta de estreitar o prazo no qual novas árvores chegavam à fase de

corte, a floresta ia se reciclando. Por outro lado, os colonos chegavam pra esse

meu sogro e diziam: “- Batista, dê um jeito na vida da gente...corte esses

pinheiros, pra gente podê fazê lavora...” e ele, deixava a reserva dele e ia lá

comprar pinheiro desse povo – que precisava, mesmo, pra poder abrir áreas de

cultivo. Fora que o colono não ia apenas cortar: ele ia destoquiar . Ou seja,

limpar pra valer o solo, pra não haver nada além dá planta semeada, da

determinada cultura desejada. E foi assim que destruímos 90% das florestas

nativas paranaenses.

EU: Uma parte da Idade Média presente nas técnicas agrícolas, professor?

JMO: Sim, sem dúvida. Se você for na região de Cascavel, por exemplo, notará

que não há árvores como aqui. Porque apesar de tudo, essa região ainda está

mais preservada. Lá, eles plantaram soja até perto dos umbrais das casas. É

uma loucura.

EU: E porque o senhor acha que isso aconteceu? Me refiro ao fato de ser esta

a região mais preservada do estado, justamente onde estavam as serrarias e,

por assim dizer, a indústria madeireira do Paraná.

JMO: Porque aqui não houve o que aconteceu no norte com o café, e no oeste,

com a soja, entende? Aqui, as lavouras não pretendiam o mercado exterior. O

cafeeiro queria vender café para o mundo inteiro, assim como o produtor de

soja. Altíssima produção, portanto. Muita demanda por solo, por áreas. Falo

dessas duas, porque, talvez, tenham sido as principais, mesmo. Mas, pode

haver outros e melhores exemplos, quem sabe? Agora não me ocorre outro

mais apropriado. Você sabia que foi uma mulher que trouxe as primeiras

sementes de soja para o Brasil. Era uma jornalista. Ela foi à China e voltou com

amostras...pro Brasil...

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11.7 FOTOS

A seguir, o autor anexou algumas fotos que mostram vistas que se tem

do exato ponto onde está enterrado Anacleto Vargem, no cemitério da

comunidade do Pirapó.

Figura 1

Vista a partir do túmulo de Anacleto na direção do portal do cemitério.

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Figura 2

Vista a partir do túmulo de Anacleto Vargem na direção do poente

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Figura 3

Túmulos: o de Anacleto Vargem é o indicado pela cruz maior, à esquerda.

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Figura 4

José Stroparo frente ao túmulo: o homem que transportou o corpo e o depositou na sepultura rústica – que permanece do mesmo modo como foi selada em 1956.