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Livro – Veredito em O Crime do Silêncio – Sossi Amiralianconsuladodaarmenia.com/wp-content/uploads/2015/02/O-VEREDITO.pdf · francês para o inglês, e a nós, a do inglês para

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VEREDITO EM

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O CRIME DO SILENCIO

O Genocídio Armênio

2011

© Sossi Amiralian

Capa e prepararão: EDUARDO DE PROE1'ÇA

Tradução: Sossi Amiralian (professora universitária) Revisão: Sonia Amiralian (advogada) Revisão: Elias Katudjian (advogado)

Paginação: As páginas 11 a 39 deste texto traduzido correspondem às páginas 211 a 227 do capitulo "Verdict of lhe Tribunal~ em "A Crime of Silence: The Armenian Genocide"

Diversos, Veredito nn o Crin1e do Silêndo: Genoddio Ar111ê11io. São Paulo. 2011

fan11ato 14x21 cm -40 páginas

1. História 2.H istória da Armênia 3.Direitos H11n1a11os I. Tí!ttlo

Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, de qualquer forma ou meio eletrônico e mecânico, inclusive por meio de processos xerográficos, sem permissão expressa da editora.

(Lei nº 9.610 de 19.2.1998)

CONTATOS:

ZORYAN INSTITUTE e-mail: [email protected] site: www.zoryaninstitute.org

Sossi Amiralian e-mail: [email protected]

Elias Katudjian e-mail: [email protected]

Sonia Amiralian e-mail: [email protected]

AGRADECIMENTOS

Aos ilustres representantes do Instituto Zoryan do Canadá, Dr. K.M.Greg Sarkissian, Presidente, e George Shirinian, Diretor Executivo, quero externar meus agradecimentos pelo honroso convite em participar de seus projetos para o Brasil, assumindo a tradução para o português, do capitulo "Verdicf' (Veredito), do livro "A Crime of Silence: The Armenian Genocide" (O Crime do Silêncio: o Genocídio Armênio), de autoria de especialistas em genocídios, envolvidos em Direitos Humanos.

Coube à equipe do Instituto Zoryan a tradução do original francês para o inglês, e a nós, a do inglês para o português.

Por se tratar de um livro de teor jurídico, em muitos de seus momentos, tive o prazer de ter como companheiros de trabalho, os revisores e advogados Dr. Elias Katudjian e Ora. Sonia Amiralian, aos quais estendo meu profundo reconhecimento. Não podia deixar de expressar também minha gratidão aos que cooperaram na produção desse livreto. Realizamos este trabalho com a dedicação de armênios que respeitam sua História e lutam por ela, mantendo-a viva, através da Linguagem.

Sossi Amiralian

DEDICATÓRIA

A memoria dos armênios sacrificados, aos descendentes, e a todos aqueles sensíveis à Causa e conscientes do seu compromisso com os Direitos Humanos.

INTRODUÇÃO

O Tribunal Permanente dos Povos (sucessor do Tribunal Bertrand Russell, sobre o Vietnam) foi criado para julgar os principais crimes internacionais, que nenhum organismo jurídico nacional ou internacional dispunha-se a conhecer, dando-se por competente para processar e julgar. Assim, um processo especial foi aberto e teve curso em Paris, de 13 a 16 de abril de 1984, para apurar a denúncia do Genocídio Armênio. Ao final do processo, esse Tribunal foi o primeiro a proferir decisão, julgando plenamente caracterizada a ocorrência do Genocfdio (segundo definição jurídica) Armênio. Um dos pontos principais da decisão do Tribunal consistiu na declaração de culpa do Governo do Partido dos Jovens Turcos, durante a Primeira Guerra Mundial, como autor da prática do Genocídio, pela qual o atual Estado Turco deve assumir responsabilidade.

Decisão que deu respostas cabais e definitivas às questões suscitadas por entidades internacionais, que pleitearam ao Tribunal Permanente dos Povos se dignasse designar uma Sessão Especial, dedicada à apreciação do tema concernente ao Genocídio Armênio.

As perguntas foram formuladas pelas seguintes entidades:

GROUPEMENTS POUR LES DROITS DES MINORITÉS (Paris, France)

CULTURAL SURVIVAL (Cambridge, Massachussetts, USA)

GESELLESCHAFT FÜR BEDROHTE VÕLKER (Gottingen, West Germany)

Solicitaram que fossem respondidas estas questões:

- Está confirmado que o povo armênio foi vítima de deportações, massacres e outras violências , no Império Otomano?

- Esses fatos constituem "GENOCÍDIO", tal como definido na "Convenção Internacional Pela Prevenção e Punição do Crime de Genocídio" (1948) e, consequentemente, eles estão sujeitos às normas da "Convenção (1968) que tratou da Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade?

- Quais são as consequências de ambas situações para a Comunidade Internacional e para as partes envolvidas ?

O Presidente do Tribunal acolheu o pedido para processamento, com fundamento no disposto pelo artigo 11, e o Governo Turco foi notificado, nos termos do previsto nos artigos 14e15, todos do Estatuto do Tribunal.Aseguir, o Governo Turco foi convidado para enviar representantes ou apresentar documentação, por escrito, para expressar sua posição.

Como o Governo Turco não respondeu, o Tribunal decidiu incluir no processo os dois documentos citados adiante (Vide Item 4) que consubstanciam os argumentos do partido turco, sustentando sua negação do Genocídio dos Armênios. Foi respeitado, assim, o principio do

contraditório, universalmente adotado, de observância do "due process of law".

O Tribunal realizou audiências públicas em 13 e 14 de abril de 1984, na Sorbonne, em Paris, e o júri prolatou sua decisão em 15 de abril de 1984.

MEMBROS DO TRIBUNAL PERMANENTE DOS POVOS, INCLUINDO O JÚRI PARA A SESSÃO DO GENOCÍDIO DOS ARMÊNIOS, DE 13 A 16 DE ABRIL DE 1984, PARIS

Madjid BENCHIKH (Argel), Professor de Direito Internacional da Universidade da Algéria;

Georges CASALIS (França), teólogo, Professor honorário do Instituto Protestante de Teologia, Paris;

Harold EDELTAM (Suécia}, primeiro Embaixador para o Chile e Algéria;

Richard FALK (Estados Unidos), Professor de Direito Internacional, da Universidade de Princeton;

Ken FRY (Austrália}, membro do Parlamento; Andréa GIARDINA (Itália), Professora de Direito

Internacional da Universidade de Roma; Sean Mac BRIDE (Irlanda), jurista, Presidente do

Escritório da Paz Internacional, laureado Prêmio Nobel da Paz e vencedor do Prêmio Lênin da Paz, ganhador da Medalha Americana pela Justiça.

Leo MATARASSO (França), advogado do Tribunal de Paris;

Adolfo PEREZ ESQUIVEL (Argentina), laureado com o Prêmio Nobel da Paz, coordenador geral do Serviço de Paz e Justiça na América Latina;

James PETRAS (Estados Unidos), Professor de Sociologia da Universidade Pública de Nova York;

François RIGAUX (Bélgica), Professor da Faculdade de Direito da Universidade Católica de Louvain;

Ajit ROY (fndia), economista e jornalista; George WALD (Estados Unidos), Professor Emérito

de Biologia, na Universidade de Harvard, Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina, 1967.

Passemos, pois, à leitura da íntegra do VEREDITO

.....

O CRIME DO SILENCIO Veredito

Tribunal Permanente dos Povos. "A Crime of Silence: TheArmenian Genocide". Londres: Zed Pub. 1985, 249 p.

A DECISÃO DO TRIBUNAL

Preâmbulo A pior violência que se comete contra o direito dos

povos é o crime do genocídio. Nada é mais grave, do ponto de vista criminal , do que a política deliberada de um estado, em exterminar sistematicamente um povo, visando, exclusivamente, sua identidade étnica. O genocídio é o assunto central das atividades do Tribunal Permanente dos Povos, incorporado em sua estrutura básica, conforme lei definida na Declaração Universal dos Direitos dos Povos (Argel, 4 de julho de 1976).

O artigo 1° da Declaração de Argel dispõe: 'Todo povo tem o direito à existência." E o artigo 2°: "É inviolável a todo povo o direito ao respeito à sua identidade nacional ou cultural." Acrescenta o artigo 3°: 'Todo povo tem o direito de manter a posse pacífica do seu território e voltar a ele, se tiver sido expulso." E, finalmente, o artigo 4° confronta diretamente a realidade do genocídio: "Ninguém será submetido, por sua identidade nacional ou cultural , a massacre, tortura, perseguição, deportação, expulsão ou

a condições de vida que possam comprometer a identidade ou integridade do povo ao qual pertence."

Ainda é válido perguntar-se por que, depois de tantos anos após o alegado genocídio, deveria o Tribunal dedicar­se ainda em investigar as alegações do povo armênio. Afinal, a principal injustiça, a de massacre e extermínio, está fixada no tempo, há sessenta e nove anos, em 1915. (*)

O Tribunal está convencido de que sua competência inclui a avaliação das injustiças históricas, mesmo que estas jamais tenham sido adequadamente trazidas perante a Corte, nem devidamente reconhecidas pelo governo envolvido.

Neste caso, um exame e avaliação das alegações armênias são inevitáveis. Todos os governos do estado turco, desde 1915, têm recusado a assumir a acusação de responsabilidade pelos eventos genocidas.

Em recentes fóruns internacionais e encontros acadêmicos, o governo turco tem feito um empenho redobrado para bloquear a investigação ou reconhecimento do genocidio armênio.

Além disso, o governo turco não está tomando conhecimento das gravíssimas acusações de responsabilidade pelo extermínio do povo armênio. Ao contrário, as acusações mais recentes reportam-se à continuação das políticas de extennínio do governo turco atual.

Assim, são de especial relevância as acusações de destruição deliberada, dessacralização e negligência dos monumentos culturais e construções religiosas. O Tribunal adota o ponto de vista de que a acusação de crime de

(*)A citação acima é de 1984, data da audiência especial em Paris, onde foi escrita esta Decisão pelo Tribunal Permanente dos Povos. (Nota da tradutora).

genocídio continua sendo uma realidade atual que deverá ser examinada e, uma vez firmada, terá que ser adequada e abertamente reconhecida pelos líderes do estado responsável. As vitimas de um crime de genocídio têm o direito de um amparo legal, mesmo após longo lapso de tempo, considerando-se, também, as circunstâncias atuais.

Aqui também são relevantes as atitudes dos sobreviventes armênios e seus descendentes. Todo povo insiste no seu direito e procura conseguir um reconhecimento formal pelas autoridades, dos crimes e injustiças cometidos em seu prejuízo. Quanto pior for a injustiça e por mais tempo encoberto, mais profundo é o desejo por seu reconhecimento. O Tribunal declara, com pesar, que a frustração originada pela negação do reconhecimento tenha, evidentemente, contribuído para o recurso a atos de terrorismo contra os diplomatas turcos e outros. A esperança do Tribunal é facilitar um processo construtivo para que haja um acordo sobre a questão armênia, o que poderá levar a uma resolução ou moderar conflitos que possam surgir.

O Genocídio é o pior crime de estado que se possa imaginar. Frequentemente, o estado responsável é protegido da responsabilidade por outros estados e pelas organizações internacionais, incluindo a das Nações Unidas, composta exclusivamente de estados. Um aspecto surpreendente da experiência armênia é a responsabili­dade de outros estados que, por razões geopolíticas, aliam-se ao governo turco com esforços para prevenir, mesmo tardiamente, uma investigação completa e recompensa de amparo legal.

O Tribunal Permanente dos Povos foi criado, em parte, para julgar falhas políticas e morais dos estados, como instrumentos de justiça. O Tribunal investigou as

reclamações armênias, precisamente por causa do longo silêncio da sociedade organizada internacional e, especialmente, pela cumplicidade dos principais estados ocidentais (atualmente, com exceção da França) que têm relações econômicas, políticas e militares com o estado turco.

O Tribunal atua, também, com séria inquietação pela frequência dos genocídios e dos intentos genocidas em nosso mundo. Como membros do Tribunal, nós cremos que a revelação e documentação objetiva das alegações de genocídio contribuem para o processo de reconhecimento. Revelar e expor a realidade do genocídio dificultam aqueles cujos motivos são os de acobertar os fatos para manter suas posições. Ao validar os danos das vítimas, o Tribunal contribui para dignificar seus sofrimentos e dar-lhes apoio para que continuem suas lutas.

O reconhecimento do genocídio é, sem dúvida, o recurso principal para se lutar contra o próprio genocídio. O reconhecimento, em si, é a confirmação do direito de um povo de se proteger pelo Direito Internacional.

Os Fatos 1. Introdução Histórica

A presença do povo armênio na Anatólia oriental e no Cáucaso é atestada desde o século VI A.C. Por dois milênios, o povo armênio teve períodos alternados de independência e sujeição. A sucessão das dinastias reais terminou com o colapso do último reinado armênio, no século XIV. Tendo adotado o Cristianismo como sua religião oficial, no início do século IV, bem como seu alfabeto próprio, quando então obtiveram sua identidade nacional, os armênios foram frequentemente perseguidos por causa de sua fé, por diferentes invasores e senhores. Embora ocupassem uma posição geográfica que, como

encruzilhada estratégica, era particularmente vulnerável, os armênios foram capazes de até a Primeira Guerra Mundial, criar e preservar no seu território histórico - que os turcos chamavam de Errnenistan - uma língua, uma cultura e uma religião: em suma, uma identidade.

Após o desaparecimento do último reinado armênio, a maior parte da Armênia caíu sob o domfnio turco, enquanto as regiões orientais ficaram primeiro, sob o domínio da Pérsia, depois sob o dos russos, aos quais foram anexadas no século XIX.

Como outras minorias religiosas, a comunidade armênia ("millet") desfrutou de autonomia religiosa e cultural dentro do Império Otomano e foi deixada relativamente em paz, durante o período clássico da história do Império, apesar dos armênios serem, quanto ao status, considerados cidadãos de segunda classe ("rayahs").

Mas com o declínio do Império no século XIX, as condições foram piorando continuamente e o clima tornou­se opressivo. O crescimento da população e a chegada de ondas sucessivas de refugiados turcos da Rússia e dos Bálcãs, bem como a fixação dos nômades (curdos, circassianos, etc.) descontrolaram o equilíbrio das populações e aumentaram a pressão sobre a competição por terras, criando numerosos problemas de posse no setor agrário. O resultado foi a deterioração das condições da população arrnênia, na maioria camponeses e agricultores. A modernização e as reformas foram dificultadas pela estrutura fossilizada do Império. As poucas tentativas de reforma (formação de um exército moderno, taxação de moedas) simplesmente empobreceram a classe agrária. Ao mesmo tempo, emergiam sentimentos nacionalistas nos Bálcãs, crescendo com vistas à independência dos povos que até agora estavam sob o domínio otomano. O

Império estava enfraquecendo sem cessar, também devido às dívidas externas.

Desde 1878, logo após a guerra Russo-Turca, a questão armênia tomou-se um fator na questão do Oriente. O artigo 16 do Tratado de Santo Estéfano (1878) estipulou que uma série de reformas teriam que ser executadas nas áreas armênias, com a garantia dos russos.

Porém, com a reversão das alianças, o Tratado de Berlim (1878) liberou a Turquia de parte de suas obrigações e responsabilizou a Grã-Bretanha a supervisionar as reformas: mas elas nunca foram realizadas.

Um movimento revolucionário começou a se desenvolver dentro da comunidade armênia, com os partidos Tachnag e Hentchak. Após a insurreição de Sassun em 1894, aproximadamente 300.000 armênios foram massacrados nas províncias orientais e em Constantinopla, sob as ordens do Sultão Abdul Hamid. Protestos das potências levaram a mais promessas de reformas que, novamente, não foram cumpridas; as lutas através de guerrilhas ("fedais") continuaram. À virada do século, os revolucionários armênios também começaram a cooperar com o partido dos Jovens Turcos, no contexto de um plano federalista para o Império. Depois das esperanças geradas pela revolução constitucionalista de 1908, de ideologia jovem turca, sob a pressão do exercicio do poder e eventos externos, bem como por causa da ala radical do movimento, foi crescendo uma forma de nacionalismo exclusivo que encontrou expressão no Panturquismo e Turanismo.

A situação dos armênios nas províncias orientais não mudou nem com os resultados da revolução, nem pela destruição provocada por Abdul Hamid, nos massacres de Adana, em 1909; exigências de reformas foram novamente decretadas pelas potências aliadas. Estas

exigências foram atendidas em fevereiro de 1914 e indicados dois inspetores para supervisionar sua execução. Estas indicações foram consideradas pelo governo otomano como intervenção inaceitável.

À eclosão da Primeira Guerra Mundial, o Império Otomano hesitou em que lado se posicionar. No começo de novembro de 1914, sob pressão alemã, ele se aliou às potências centrais. Isto colocou os armênios numa situação difícil. Estes ocupavam um território que era considerado pela Turquia como vital para a realização de suas ambições imperialistas turanistas, concernentes aos povos da Transcaucásia e Ásia Central. Além disso, a divisão do povo armênio entre o Império Otomano com 2.000.000 de armênios e a Rússia, com 1.700.000, inevitavelmente fez com que as duas partes da população ficassem em lados opostos. No 8° Congresso da Federação Revolucionária Armênia em Erzerum, em agosto de 1914, o partido Tachnag rejeitou os pedidos dos Jovens Turcos para se engajarem numa ação subversiva entre os armênios da Rússia. Desde o começo da guerra, os armênios da Turquia se comportaram, em geral, como cidadãos leais, inscrevendo-se no exército turco. Os armênios da Rússia, por outro lado, eram regularmente alistados no exército russo e mandados para lutar nas frentes europeias. Nos primeiros meses da guerra, os armênios da Rússia alistaram-se no corpo de voluntários que atuaram como patrulheiros para o exército Tsarista - foi a resposta russa para o plano que os turcos tinham proposto aos armênios em Erzerum, meses atrás.

A recusa em Erzerum e a formação desses batalhões voluntários foram usados como argumentos pelos Jovens Turcos, para alegarem traição aos armênios. Enver, que havia sido apontado Comandante Supremo das forças

turcas, conseguiu romper com as forças inimigas na Transcaucásia, durante o inverno, mas foi derrotado em Sarikamish pelo exército russo e pelas condições do tempo. Do 3° Exército Turco de 90.000 homens, restaram somente 15.000. Após a deprimente derrota no Cáucaso, medidas antiarmênias tiveram início.

2. O Genocídio Inicio em janeiro de 1915. Soldados e policiais

armênios foram desarmados, reagrupados em brigadas de 500 a 1000 homens, para trabalharem na manutenção de estradas, ou como carregadores, levados, por etapas, para áreas remotas, e executados. Não foi antes de abril que a implementação de um plano começou, em fases sucessivas, realizadas em uma sequência disciplinada. O primeiro sinal dado foi a deportação que começou em Zeitun, no começo de abril, numa área sem importância estratégica imediata. Só posteriormente, as medidas para deportação foram estendidas para as províncias de fronteiras.

A resistência dos armênios em Van serviu de pretexto para fazer da deportação uma medida geral. O vali (governante turco) de Van, Jevdet, ordenou saquear as aldeias mais afastadas, porém os armênios de Van organizaram a autodefesa da cidade. Eles foram salvos por um ataque de russos ajudados por voluntários armênios do Cáucaso. Depois de tomarem Van em 18 de maio, os russos continuaram em frente, mas no final de junho, foram detidos por uma contra-ofensiva turca. Desta forma, os armênios da aldeia de Van conseguiram retirar-se e escapar do exterminio.

Quando as notícias da rebelião de Van chegaram a Constantinopla, o Comitê União e Progresso ("lttihad")

aproveitou a oportunidade. Cerca de 650 personalidades, escritores, advogados, médicos, padres e políticos foram presos em 24 e 25 de abril de 1915, deportados e assassinados nos meses seguintes. Assim foi realizada a eliminação completa e deliberada de quase toda uma "intelligentsia" armênia da época.

De 24 de abril em diante e seguindo um programa preciso, o governo expediu ordens para deportar os armênios dos "vilaietes" orientais. Já que Van estava ocupada pelo exército russo, as medidas foram aplicadas somente aos seis "vilaietes", Trabizonda (Trabzon), Erzerum, Bitlis, Diarbekir, Kharput e Sivas. A execução do plano foi delegada a uma "organização especial" (SO), composta de criminosos comuns e condenados treinados e equipados pelo Comitê União e Progresso. Esta organização semi-oficial, dirigida por Behaeddin Shakir, estava sob a autoridade única do Comitê Central lttihad.

Constantinopla emitiu normas para os valis, kaimakans, bem como aos homens da SO local, que tinham plenos poderes para mudar ou demitir qualquer policial ou oficial que não cooperasse. Os métodos usados, a ordem pela qual os bairros eram evacuados e as rotas escolhidas para as fileiras de deportados, todos confirmam a existência de um ponto de comando centralizado para controlar o desenrolar do projeto. As ordens de deportação eram anunciadas publicamente ou postadas em cada cidade ou município. As familias tinham permissão de dois dias para recolher seus pertences; suas propriedades eram confiscadas ou rapidamente vendidas. O primeiro passo era geralmente o da prisão das personalidades, membros de partidos políticos armênios, padres e jovens, os quais eram forçados a assinar confissões forjadas e depois discretamente eliminados em pequenos grupos. Os

comboios de deportados eram compostos de idosos, mulheres e crianças. Nas aldeias mais remotas, familias eram trucidadas e suas casas queimadas ou ocupadas. Nas costas do Mar Negro e ao longo do Tigre, perto de Diarbekir, barcos eram abarrotados de vítimas e afundados. De maio a julho de 1915, as províncias orientais foram saqueadas e pilhadas por soldados turcos e policiais, bandos da SO ("tchetés"), etc. Estes roubos, saques, torturas e assassinatos eram tolerados e encorajados, enquanto qualquer tipo de proteção aos armênios era severamente punido pelas autoridades turcas.

Não era possível manter a operação em segredo. Alertados por missionários e cônsules, as potencias aliadas ordenavam ao governo turco, desde 24 de maio, a pôr um fim aos massacres, pelo que mantiveram membros do governo pessoalmente responsáveis. A Turquia oficializou a deportação e editou um decreto, que acusava os armênios por traição, sabotagem e atos terroristas como pretexto.

A deportação era, na verdade, apenas uma forma disfarçada de extermínio. Os mais fortes eram eliminados antes da partida. A fome, sede e chacina dizimavam os comboios. Milhares de corpos estavam empilhados ao longo das estradas. Defuntos estavam pendurados nas árvores e postes telegráficos; corpos mutilados flutuavam rio abaixo ou eram arrastados para as margens. Dos 1.200.000 armênios dos sete vilaietes orientais, aproximadamente 300.000 foram capazes de tirar vantagem da ocupação russa para alcançar o Cáucaso; os remanescentes foram mortos onde estavam, ou deportados; cerca de 200.000 mulheres e crianças raptadas. Não mais que 50.000 sobreviventes chegaram ao ponto de convergência dos comboios de deportados em Alapo.

No final de julho de 1915, o governo começou a deportar os armênios de Anatólia e Cilícia, transferindo a população das regiões as mais distantes das fronteiras e onde a presença dos armênios não era vista como ameaça para o exército turco. Os deportados foram levados para o sul, em fileiras que foram dizimadas no caminho. De Alepo, sobreviventes foram mandados para os desertos ao sul da Siria e para o sudeste da Mesopotâmia. Na Síria, campos de concentração foram estabelecidos em Hama, Homs e perto de Damasco.

Estes campos acomodaram cerca de 120.000 refugiados, a maioria dos quais sobreviveram à guerra e foram repatriados para a Cilícia em 1919. Por outro lado, os armênios ao longo do Eufrates, foram conduzidos para Deir-el-Zor; aproximadamente 200.000 alcançaram seu destino. Entre março e agosto de 1916, vieram ordens de Constantinopla para liquidar os últimos sobreviventes que estavam nos campos ao longo das estradas e nas margens do Eufrates.

Porém, havia ainda alguns armênios remanescentes na Turquia, algumas famílias armênias nas provincias. Protestantes e Católicos foram, em grande parte, salvos da morte pelas missões americanas e pelo Núncio Apostólico. Em alguns casos, os armênios foram poupados, ora devido a uma intervenção decidida por oficiais turcos, ora escondidos por amigos curdos e turcos. Os armênios de Constantinopla e Esmirna também escaparam da deportação. Finalmente, houve casos de resistência {Urfa, Shabin-Karahisar, Musa-Dagh ). Ao todo, incluindo aqueles que se refugiaram na Rússia, o número de sobreviventes, em fins de 1916, pode ser estimado em 600.000, de uma população total estimada em 1914, de 1.800.000, de acordo com A. Toynbee.

Na Anatólia oriental, a população armênia inteira desapareceu. Alguns sobreviventes da chacina refugiaram­se na Síria e Libano, enquanto outros chegaram à Armênia Russa. Em abril de 1918, afim de tirar proveito das cláusulas do Tratado de Brest-Litovsk, estipulando que a Rússia Bolchevista cedesse Batum, Kars eArdahan para a Turquia, a Transcaucásia declarou independência, formando uma breve Federação que foi desdobrada em três repúblicas, em maio de 1918: a Geórgia, a Armênia e o Azerbaidjão. Na sua derrota de novembro de 1918, a Turquia reconheceu o estado armênio e até mesmo cedeu, no ano seguinte, os vilaietes de Kars e Ardahan.

Todos os governos aliados prometeram solenemente, em diferentes ocasiões, através da declaração de seus representantes Lloyd George, Clemenceau, Wilson, etc., garantir que ajustiça fosse feita ao "povo armênio martirizado".

Em abril de 1920, a Conferência de San Remo propôs que os Estados Unidos aceitassem um mandato armênio e que, qualquer que fosse a decisão dos Estados Unidos, o Presidente Wilson deveria definir as fronteiras do estado armênio, e que o tratado de paz com a Turquia deveria designá-lo como árbitro, na questão das fronteiras turco­arrnênias.

Mas o Tratado de Sévres (10 de agosto de 1920) que reconheceu o estado armênio e ratificou as fronteiras traçadas pelo Presidente Wilson, não resolveu o problema. Este Tratado que foi assinado pelo governo de Constantinopla e que dividiu grandes áreas da Anatólia entre os italianos, ingleses e franceses, favorecendo também os gregos no Mar Egeu, não foi aceito por Mustafá Kemal. Ele rejeitou o Tratado.A República da Armênia, sob a liderança da Federação Revolucionária Armênia

socialista (Tashnag), foi logo tomada pela ofensiva Kemalista e a Rússia Bolchevista.

Quando em 20 de novembro de 1920, o Presidente Wilson fixou oficialmente os limites territoriais do novo estado, o colapso da República foi uma questão de dias. Os vilaietes de Kars e Ardahan foram retomados pela Turquia (Tratado de Alexandropol) e o que restou da Armênia (30.000 km2

) tornou-se soviética em 2 de dezembro de 1920.

Em 24 de julho de 1923, o Tratado de Lausanne foi assinado pelas potências aliadas e a nova República da Turquia, sem sequer fazerem menção da Armênia ou aos direitos dos armênios. A questão armênia foi encerrada.

3. A Evidência Recorreu-se ao Tribunal para proceder ao julgamento

da acusação de genocídio, baseada nos eventos de 1915-1916.

O Tribunal considerou que os fatos acima alegados têm fundamento em provas substanciais e coerentes. Estas provas resultaram da análise de vários relatórios pelo Tribunal, acompanhados de numerosos documentos comprobatórios.

Uma bibliografia quase que exaustiva destas fontes foi relatada pelo Professor R.G. Hovannissian, em The Armenian Holocaust. Cambridge, Massachussets, 1981.

Não contando com os arquivos otomanos - que são inacessíveis - os documentos principais são os seguintes:

•Os arquivos alemães, tendo em vista o status da Alemanha ter sido aliada do Império Otomano, são de máxima importância. Especialmente dignos de nota são os relatórios e observações oculares de

Johannes Lepsius, do Dr. Armin Wegner, da instituição caritativa "Deutscher Hilfsbund", do Dr. Jacob Kunzler, do jornalista Stuermer, do Dr. Martin Niepage, do missionário Ernst Christoffel e do general Liman von Sanders; este último relatou como as populações armênias de Esmirna eAdrianópolis foram poupados como resultado de sua decisiva intervenção pessoal.

•Os relatórios do pessoal diplomático e consular da Alemanha que foram testemunhas oculares das condições da dispersão dos armênios em Erzerum, Alepo, Samsun, etc.

•Os arquivos americanos, que também contém amplo material confirmando o acima citado (relatórios de missionários, cônsules e instituições caritativas) e "lntemalAffairsofTurkey, 1910-1919, Race Problems", State Department, e as memórias do Embaixador americano em Constantinopla, Henry Morgenthau.

•O "Blue Book" (Livro Azul) das autoridades britânicas sobre estes eventos, publicado em 1916 pelo Visconde Bryce.

• Os registros do Julgamento dos Unionistas ("lttihads") com acusações trazidas pelo governo turco após a derrota do Império Otomano. Na época deste julgamento que aconteceu entre abril e julho de 1919, o governo turco juntou provas da deportação e massacres e julgou os responsáveis - a maioria em sua ausência - por uma corte marcial. A corte condenou a maioria dos réus, incluindo Talaat, Enver e Jemal, que foram sentenciados para morte "in absentia".

• Os relatórios submetidos ao Tribunal por quatro sobreviventes dos massacres, que vivenciaram os eventos na sua infância.

4. Os Argumentos Turcos O Tribunal examinou os argumentos turcos, como

declarados nos documentos a ele submetidos. A recusa do governo turco em reconhecer o genocídio

dos armênios fundamenta-se, essencialmente, nos seguintes argumentos: apresentação de uma estimativa mais baixa de perdas (de mortos); responsabilidade dos revolucionários armênios; contra-acusações; negação da premeditação.

•O número dos habitantes armênios no Império Otomano, em 1914, tem sido estimado de várias maneiras: 2.100.000 pelo Patriarcado Armênio; 1.800.000 por A.Toynbee; e cerca de 1.300.000 pelos turcos. Apesar das estimativas diferentes quanto ao número de vítimas, os armênios e quase todos os peritos ocidentais concordam com a proporção de aproximadamente dois terços da população. Os turcos afirmam que as consequências da "transferência" foram em muito menor escala, resultando no desaparecimento de 20-25% da população, devido à precariedade das condições em tempo de guerra. O estado turco salienta também que as perdas foram grandes no lado muçulmano. Este argumento parece omitir o fato de que os armênios desapareceram da Anatólia quase que totalmente. A população da Turquia atual é de cerca de 45 milhões, dos quais menos que 100.000 são armênios.

•Procurando eximir-se da responsabilidade, o governo turco alega que os armênios cometeram atos de sedição e mesmo de traição em tempo de guerra. Porém, o Tribunal verificou que os atos de lutas armadas ocorridas no Império Otomano foram a revolta de Sassun e a resistência de Van, em abril de 1915.

• Outro argumento apresentado pelo estado turco foi a acusação de que foram os armênios que cometeram genocídio contra os turcos, intencionalmente. De fato, em 1917 (isto é, quase dois anos depois de finalizados o extermínio e a deportação dos armênios), algumas aldeias turcas foram destrufdas pelas tropas armênias. Embora o Tribunal entenda que esses atos, embora censuráveis, não podem ser considerados como genocídio. Além disso, o Tribunal lembra que tais atos foram praticados em tempo consideravelmente posterior aos massacres sofridos pelos armênios.

• Por derradeiro, o estado turco rejeita a acusação de premeditação, contestando a autenticidade de cinco telegramas enviados pelo Ministro do Interior, Talaat, que foram atestados como autênticos pela perícia determinada pela Corte, no julgamento de Soghomon Tehlirian, em Charlottenburg - Berlim, em 1921. Tehlirian foi absolvido do assassinato de Talaat, tendo em vista os crimes contra a humanidade perpetrados pelo governo dos Jovens Turcos. O Embaixador alemão Wangenheim, por sua vez, não deixou dúvidas sobre a premeditação dos eventos de 7 de julho de 1915: "essas circunstâncias e a

maneira pela qual a deportação foi executada, demonstram, sem dúvida, que o governo está persistindo no seu objetivo de exterminar a raça armênia no Império Otomano." (Carta referente à extensão das medidas de deportação para as províncias não ameaçadas de invasão pelo inimigo (Nº 106 na coleção Deutschland und Armenien, 1914-1918) nos arquivos de Wilhelmstrasse e publicada pelo Rev. Lepsius.)

Em 1971, a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas solicitou à sua Sub-Comissão, constituída para lutar contra as medidas discriminatórias e de proteção das minorias, incluindo peritos independentes, para realizarem "um estudo sobre a questão da prevenção e punição do crime de genocídio".

Em 1973 e 1975, os dois relatórios submetidos preliminarmente à Sub-Comissão pelo relator especial, continham o parágrafo 30, vazado nos seguintes termos: "Nos tempos modernos, deve-se atentar à existência de farta documentação sobre o massacre dos armênios, considerado como o primeiro genocídio do século XX".

No relatório final, encaminhado à Comissão em 1979, o parágrafo 30 acima mencionado foi omitido.

O Presidente da Comissão constatou que essa omissão suscitou uma onda de protestos, de tal proporção que, provavelmente,

não haviam sido previstos pelo autor. Assim, o Presidente sugeriu ao relator, que antes de encerrar o relatório, tivesse em mente tais reações, bem como as declarações dos delegados da Comissão.

O relator especial nunca chegou a concluir essa missão. Dando prosseguimento à Resolução 1983/33 do

Conselho Social e Econômico, a Sub-Comissão indicou outro relator especial, com instruções para uma revisão completa e atualização do estudo sobre a questão da prevenção e punição do crime de genocidio.

O Tribunal verificou que a delegação turca, opondo­se à adoção do parágrafo 30 acima mencionado, apresentou os seguintes argumentos:

•que os fatos alegados foram uma distorção da verdade histórica; • que o termo "genocídio" não se aplica, uma vez que os eventos ocorridos não foram massacres, mas atos de guerra; •e, finalmente, que a volta a eventos tão antigos do início do século, servem somente para suscitar ressentimentos.

Quanto aos dois primeiros itens, relativos aos fatos e à legalidade, o Tribunal examinou os argumentos submetidos em caso anterior, acreditando que assim fazendo, contribuiu em atender aos anseios da Comissão de Direitos Humanos, isto é, envidar esforços para possibilitar a Sub-Comissão à complementação de sua tarefa, levando em consideração todo o material que lhe foi submetido.

Quanto ao terceiro item, o Tribunal só pôde concluir que a recusa em adotar o parágrafo 30 acima citado, longe de atenuar preocupações, despertou reações apaixona-das.

DO DIREITO 1. Sobre os direitos do povo armênio

O Tribunal observa que grupos da população armênia, vitimas dos massacres e outras atrocidades

relatadas, constituem um povo que se integra no âmbito do Direito Internacional.

Hoje, este povo tem o direito de autodeterminação, de acordo com o artigo 1.82 da Carta das Nações Unidas e as cláusulas da Declaração Universal dos Direitos dos Povos adotados em Argel, em 4 de julho de 1976. É competência da comunidade internacional e principalmente, da Organização das Nações Unidas, adotar todas as medidas necessárias para assegurar a observância desse direito fundamental, medidas essas cujo objetivo principal seja possibilitar o exercício efetivo desse direito.

O Tribunal pretende assegurar o cumprimento das obrigações impostas ao estado turco, elencadas nas normas gerais do Direito Internacional, bem como nos tratados dos quais participaram, há aproximadamente 100 anos. Neste segmento, o Tribunal destaca

o fato de que, por força do artigo 61 do Tratado de Berlim, em 1878, aquele estado assumiu o compromisso de prover aos armênios do Império Otomano, um regime que garantisse seu direito de prosperar num clima de segurança, sob a supervisão da comunidade internacional. O Tribunal menciona também que as promessas de autodeterminação que foram feitas ao povo armênio à ocasião da Primeira Guerra Mundial, não foram cumpridas, uma vez que a comunidade internacional permitiu injustamente, o desaparecimento do estado armênio que, no princípio, fora claramente reconhecido pelas potências aliadas e associadas, assim como, pela própria Turquia, no Tratado de Batum.

O fato de não ter sido observado o direito desse estado a uma existência pacifica, dentro de fronteiras reconhecidas, como membro da comunidade internacional,

bem como o da população armênia, de viver pacificamente no Império Otomano, não é motivo para extinguir efetivamente os direitos do povo armênio, ou desobrigar a comunidade internacional de sua responsabilidade para com este povo.

O Tribunal afirma que o destino de um povo não pode jamais ser considerado como um assunto meramente interno, sujeito aos caprichos dos estados soberanos, mesmo que sejam bem intencionados. Os direitos fundamentais deste povo são de responsabilidade direta da comunidade internacional, que está autorizada e obrigada a assegurar que os mesmos sejam respeitados, principalmente quando são claramente negados por um de seus estados membros.

Neste caso particular, esta conclusão é corroborada mais adiante, pelo fato de que, mesmo antes do direito de autodeterminação dos povos ter sido explicitamente afirmado pela Carta das Nações Unidas, os direitos do povo armênio já tinham sido reconhecidos pelos estados envolvidos, sob a supervisão dos representantes da comunidade internacional.

2. Sobre a Acusação de Genocídio a) Regras gerais aplicáveis a acusações de genocídio

De acordo com a Convenção sobre Prevenção e Punição do Crime de Genocidio, que foi adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 9 de dezembro de 1948, o genocídio "é um crime sujeito à lei internacional", quer seja "cometido em tempo de paz ou em tempo de guerra" (artigo 1).

Genocídio significa qualquer dos seguintes atos cometidos com intenção de destruir total ou

parcialmente, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tais como: a) Matando membros de um grupo; b) Causando danos ffsicos ou mentais sérios aos membros de um grupo; c) Infligindo, deliberadamente, sobre o grupo, condições de vida planejadas para efetuar sua destruição física total ou parcial; d) Impondo medidas com intenção de prevenir nascimentos dentro do grupo; e) Forçando a transferência de crianças de um grupo para outro. (artigo li).

Nos termos do artigo Ili: Os atos que seguem são passíveis de punição: a) Genocídio; b) Conspiração para cometer genocldio; c) Incitamento direto e público para cometer genocídio; d) Tentativa de cometer genocídio; e) Cumplicidade no genocfdio.

Por fim, o artigo4º estabelece que pessoas culpadas de quaisquer atos acima mencionados deverão ser punidas: "mesmo que sejam, de acordo com a Constituição, governantes, funcionários públicos ou indivíduos (civis)".

O Tribunal considera que estas cláusulas devem ser acatadas como regras definidoras, em· que o genocf dio deverá ser julgado de acordo com o Direito Internacional, apesar de existirem definições mais amplas.

Essa Convenção entrou em vigor, oficialmente, em 12 de janeiro de 1951, e foi ratificada pela Turquia em 31 de julho de 1950. Contudo, não se deve inferir daí que atos

de genocidio não sejam passíveis de objeto de uma acusação formal, se foram cometidos antes da Convenção ter entrado em vigor ou no território de um estado que não tenha ratificado a Convenção. Enquanto a Convenção impõe obrigações aos estados signatários, para prevenir ou punir um crime que não esteja definido em nenhum outro instrumento, ele, contudo, deverá ser julgado para ter força de lei desde que condene o próprio genocidio.

Essa força declaratória do instrumento provém do texto da própria Convenção. No preâmbulo, as partes contratantes "reconhecem que, ao longo da história, o genocídio tem infligido severas perdas para a humanidade" e confirma no artigo 1 que o genocídio constitui um crime perante o Direito Internacional. Tal confirmação implica na existência deste crime antes de 9 de dezembro de 1948. É, além disso, amplamente conhecido pela doutrina internacional que reflete a inegável realidade de uma consciência coletiva de estados. Que o termo "genocídio" tenha sido recentemente criado, não tem maiores consequências. O único ponto relevante está em que os atos que ele descreve foram condenados há mais tempo.

Uma vez que tal força declaratória é aceita, não se requer do Tribunal que informe a data precisa da origem da lei que condena o genocídio, já codificada pela Convenção. Para a Convenção, é suficiente firmar que essa lei já estava em vigor, na época em que os massacres descritos foram cometidos. Realmente, aparecem nos documentos e declarações feitas sobre a Questão Armênia, justificáveis ou não, por várias razões, que "as leis da humanidade" condenaram a política de extermínio sistemático executado pelo governo otomano. O Tribunal enfatiza que tais leis, embora hoje se ressalte a necessidade de sua formalização, não refletem meramente

normas éticas e morais imperativas; elas também expressam obrigações que não podem ser ignoradas pelos estados, sob pretexto de que não foram expressas formalmente nos tratados, o que se confirma pelo exemplo da cláusula de Martens, relativa à lei de guerra. Além disso, a condenação dos crimes cometidos durante a Primeira Guerra Mundial reforça a convicção dos estados, que tais crimes não podem ser tolerados legalmente, mesmo que leis não escritas os proibam explicitamente. O Tribunal lembra que tal condenação foi declarada sobre os crimes contra a humanidade, como também os crimes

de guerra; ademais, deve ser destacado que o artigo 230 do Tratado de Sévres

invocou expressamente a responsabilidade da Turquia nos massacres perpetrados em território turco. De fato, esse tratado não foi ratificado; assim, a obrigação de punição nele contida nunca foi cumprida; porém, tal fato não prejudica a manifestação clara a nós transmitida hoje, por seu conteúdo, de que os estados daquele tempo, estavam realmente conscientes da ilegalidade do crime que agora chamamos de genocídio.

Por estas razões, o Tribunal considera que o genocídio já tinha sido proibido por lei, desde os primeiros massacres do povo armênio, uma vez que a convenção de ·J 948 serviu somente para dar expressão formal e qualificada a uma norma aplicável aos fatos que fundamentaram a acusação apresentada ao tribunal.

b) A Acusação de Genocídio do Povo Armênio As seguintes observações parecem ter sido

necessárias para o exame das evidências que foram submetidas ao Tribunal, de conteúdo aqui relatado.

Não pode haver dúvida de que os armênios constituem um grupo nacional, nos termos da definição de ilegalidade do genocídio. Esta conclusão é mais do que evidente, uma vez que eles constituem um povo protegido pelo direito de auto-determinação, o que necessariamente implica na ilegalidade de sua destruição como grupo constituído, por força de lei pertinente ao genocídio.

Não há dúvida quanto à realidade dos atos físicos constituiremo genocidio. O assassinato dos membros de um grupo, os ataques graves à sua integridade física e mental, e a sujeição deste grupo a condições que irão conduzi-lo à morte, estão sobejamente comprovados pelas inequívocas e completas evidências submetidas ao Tribunal. No exame dos casos, o Tribunal enfatizou, principalmente, os massacres perpetrados entre 1915 e 1917, que foram exemplos extremos de uma política claramente prenunciada pelos eventos de 1894-1896.

A intenção primeira de destruir um grupo, que é a principal caracteristica do crime de genocfdio, está também confirmada. Os relatórios e documentos comprobatórios que foram submetidos, apontam claramente para uma política de extermínio programado do povo armênio, revelando a intenção específica referida no artigo 2° da Convenção de 9 de dezembro de 1948.

Essa política resultou em ações que foram atribuídas, indiscutivelmente, às autoridades turcas ou otomanas, particularmente durante os massacres de 1915-1917. Por outro lado, o Tribunal observa que, em adição às atrocidades cometidas por autoridades oficiais, estas usaram também de propaganda de má fé e outros meios para instigar as populações civis a cometerem atos de genocidio contra os armênios. Mais tarde, foi observado que as autoridades geralmente evitavam interferir na

prevenção de chacinas, embora tivessem poder para fazê­lo, ou punir os culpados, com exceção do julgamento dos Unionistas. Esta atitude resulta no incitamento ao crime e à omissão penal, que devem ser julgados tão severamente quanto os crimes efetivamente cometidos e enganosa­mente acobertados pela lei contra o genocídio.

Quanto às evidências submetidas, o Tribunal considera que as várias alegações (rebelião, traição, etc.) feitas pelo governo turco para justificar os massacres, não têm fundamento. Em qualquer evento, é enfatizado que mesmo que alegações nesse sentido sejam convincentes, não podem, de maneira alguma, justificar os massacres cometidos. O Genocidio é um crime que não admite nenhum pretexto para desculpas ou justificação.

Por estas razões, o Tribunal conclui que a acusação de genocidio do povo armênio, levantada contra as autoridades turcas, é confirmada por ter fundamento nos fatos.

c) As Consequências do Genocídio O Tribunal salienta que, como no caso de todos os

outros crimes contra a humanidade, o genocídio é por definição um crime ao qual nenhum estatuto de limitações pode ser aplicado, por força das normas do Direito Internacional, como confirmado pela Convenção da Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade, adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em 26 de novembro de 1968.

Todos os responsáveis pelos massacres, mesmo que "sejam, de acordo com a Constituição, governantes, funcionários públicos ou cidadãos comuns", estão sujeitos às penalidades, cujos estados são obrigados a aplicá-las,

a fim de se cumprir as garantias relativas ao exercício das determinações da justiça.

Independente da questão das penalidades, o genocídio é, além disso, uma violação do Direito Internacional, pelo qual o estado turco deve assumir a responsabilidade. Seu primeiro dever, por sua posição, consiste na obrigação de admitir os fatos, sem procurar disfarçar ou lamentar a perpetração deste ato. Isto, por si mesmo, constituiria uma compensação em relação ao incalculável dano moral sofrido pela nação armênia.

O Tribunal quer dedicar uma atenção especial ao fato de que a prática internacional, como aplicada ao estado turco, desde o tempo da verificação desses eventos, fornece suficiente base legal para firmar que a identidade e a continuidade do citado estado não foram afetadas pelas sublevações da história do pais, desde a dissolução do Império Otomano. Nem suas perdas territoriais, nem a reorganização do seu sistema político, prejudicaram sua identidade, como questão de Direito Internacional. Consequentemente, não se pode admitir que os sucessivos governos turcos, desde a constituição da república kemalista, justifiquem a recusa da sua responsabilidade de estado que representam na comunidade internacional.

O Tribunal ressalta, ainda, que nada, • nas declarações ou conduta do povo armênio, e nos estados que compartilham a responsabilidade de resguardar seus direitos • pode ser interpretado como desistência da acusação aos culpados do genocídio. Portanto, como seus predecessores, o atual governo turco está obrigado a assumir esta responsabilidade.

Um crime dessa natureza viola os deveres essenciais à comunidade internacional, como descrevem tão

corretamente os autores de uma recente minuta de artigo sobre a responsabilidade dos estados, como sendo "um crime internacional de estado" dentro da definição da lei sobre a responsabilidade dos estados, em outras palavras, não mais dentro do texto de uma lei criminal comum. Como resultado, e como confirmado pelas obrigações especiais da comunidade internacional para com o povo armênio, nenhum membro dessa comunidade tem o direito de cobrar do estado turco o cumprimento de suas obrigações e, especialmente, insistir no reconhecimento oficial do genocídio, se esse estado persistir em negá-lo. Porém, está autorizado a tomar providências de ajuda e assistência a favor do povo armênio, como estipulado pelo Direito Internacional e pela Declaração de Argel , sem ser acusado de interferência ilícita nos negócios de outro estado.

Fina lmente, é incumbência da comunidade internacional como um todo, mais especialmente através da Organização das Nações Unidas, reconhecer o genocídio e dar assistência ao povo armênio neste sentido. Na verdade, não se justifica permitir se cometa crime contra um desses povos que ela é obrigada a proteger, da mesma maneira que em relação a quaisquer outros de seus estados, nem tolerar a negação injusta de um crime de tal porte, até hoje ..

O genocídio armênio que ocorreu durante a Primeira Guerra Mundial foi o primeiro ato deste tipo, num século durante o qual o genocídio e os horrores associados a ele, infelizmente, espalharam-se em grande escala.

A perpetração de tais atrocidades não se limitou a sociedades que alguns povos considerariam como subdesenvolvidas. Ao contrário, em alguns casos, eles foram cometidos por nações geralmente consideradas

como as mais desenvolvidas e mais avançadas, cientificamente. De fato, o exemplo mais significativo em todo o século XX incluiu a aplicação de tecnologia avançada e a organização sofisticada do genocídio dos judeus europeus pelos nazistas, um genocídio que causou um sofrimento humano inconcebível e que, finalmente, levou ao extermínio de aproximadamente seis milhões de pessoas.

Em sessões de julgamento anteriores, o Tribunal teve oportunidade de condenar genocídios cometidos contra o povo de EI Salvador (decisão de 11 de fevereiro de 1981 ), o povo Maubere do Timor Leste (decisão de 21 de junho de 1981) e os índios da Guatemala (decisão de 31 de janeiro de 1983 ).

O Tribunal sustenta que uma das mais sérias consequências e um dos mais perturbadores efeitos de genocídio-acima e além dos erros irreparáveis infligidos sobre suas vítimas imediatas - é a degradação e perversão da humanidade como um todo.

Pelas Razões Expostas Em resposta às questões que lhe foram colocadas,

este Tribunal, neste ato, decide que:

•a população armênia constituiu e constitui um povo cujos direitos fundamentais, tanto os individuais como os coletivos, deveriam ter sido e deverão ser respeitados, em conformidade com o Direito Internacional; •o extermínio de grupos da população armênia, através da deportação e massacres, constitui um crime de genocídio não sujeito a limitações estatutárias, como consta da definição da Convenção sobre Prevenção e Punição do Crime de Genocídio

de 9 de dezembro de 1948. No que se refere à condenação desse crime, a Convenção acima citada é declaratória de lei vigente, na qual se destacam normas já aplicáveis à época dos atos incriminados: •o governo dos Jovens Turcos é culpado desse genocídio, tendo em vista os atos perpetrados entre 1915 e 1917; •o genocídio armênio é também um "crime internacional" pelo que o estado turco deve assumir a responsabilidade, sem usar o pretexto de qualquer descontinuidade na existência do estado, para esquivar-se de tal responsabilidade; •tal responsabilidade implica, primeiramente e sobretudo, na obrigação de reconhecer oficialmente a realidade desse genocídio e os consequentes danos sofridos pelo povo armênio; •a Organização das Nações Unidas e cada um de seus membros têm o direito de exigir esse reconhecimento e ajudar o povo armênio para a consecução de seu objetivo.