LIVRO+PORTAS+ABERTAS

  • Upload
    renato

  • View
    85

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Maria CeClia Frana loureno rodrigo ChristoFoletti andr Mller de Mello

UNIVERSIDADE DE SO PAULO S uely V ilela F ranco M aria l ajolopr-reitor de cultura e extenso universitria vice-reitor reitora

r uy a lberto c orra a ltaFiM PR-REITORIA DE CULTURA E EXTENSO UNIVERSITRIAassessor tcnico de gabinete

Paulo c Sar X aVier P ereira c eclio de S ouza M arilena P ireS e duardo a lVeS Valdir P reVide

assistente tcnico de direo

assistente tcnico de direo

diretor acadmico

diretor administrativo e financeiro

MONUMENTO NACIONAL RUNAS ENGENHO SO JORGE DOS ERASMOS M aria c eclia F rana l oureno W itold z MitroWiczcoordenao executiva vice-diretor diretora

M arilena P ireSeducadores

a ndr M ller de M ello r odrigo c hriStoFoletti h eloiSa S tella V eiga M achado b ianca o liVeira a ndrprojeto grfico secretria

Copyright 2008 Runas Engenho So Jorge dos Erasmos

Ficha catalogrfica

LOURENO, Maria Ceclia Frana, CHRISTOFOLETTI, Rodrigo e MELLO, Andre Mller. Portas Abertas: um programa em debate. PrReitoria de Cultura e Extenso Universitria da Universidade de So Paulo Monumento Nacional Runas Engenho So Jorge dos Erasmos USP, 2008.

Runas Engenho So Jorge dos Erasmos Bens Culturais Educao Interdisciplinaridade Educao Ambiental Histria do Brasil Quinhentista

Direitos reservados Universidade de So Paulo

11 1315 18

I. Balano

e vIsualIdades: programas e trocas

II. preservar lutas

e testemunhos

Fundamentaes e conceitos Aes e transformaes

2525 27 29 34 37 41 49

III. runas engenho so Jorge dos erasmos 50 anos de admInIstrao uspDe Portas Abertas para comunidade, o avano e o saber Abrindo as portas para uma Educao em movimento A Base Avanada de Cultura e Extenso abre as portas para o futuro das Runas Usos de um espao em construo O depoimento como sustentculo da memria: runas que se reagrupam pea por pea

Depoimento do prof. Julio R. Katinsky Depoimento do arquiteto Bechara Abdalla

5357 63

Iv. cartas, planos e tomada

de

conscIncIa

Estmulo Pesquisa, ao Ensino e Informao

Depoimento da prof Zildete Prado

Sumrio

9

6769

V. Portas abertas: democratizando esPao, conhecimento e lazerHistrico de um programa bem sucedido 2005 Tateando um projeto possvel Edio Vero de 2005 Edio Inverno de 2005 2006 Um laboratrio a cu aberto Edio Vero de 2006 Edio Inverno de 2006 2007 Crescendo com as experincias Edio Vero de 2007 Edio Inverno de 2007 2008 A consolidao de um modelo Edio Vero de 2008

85 91

Depoimento do poeta Eguinaldo Hlio de Souza Depoimento da prof Maria Jos Barbierato

96 106 107 108

Vi. cronologia Vii. consideraes Finais notas de rodaP Fontes de imagens reFerncias cartas, recomendaes, conVenes Patrimoniaise sobre o meio ambiente

10

Sumrio

I.

Balano e visualidades: programas

e trocas

por Maria Ceclia Frana Loureno, Rodrigo Christofoletti e Andr Mller de Mello

Esta publicao marca mudanas mpares, relativas ao Monumento Nacional Runas Engenho So Jorge dos Erasmos: a Universidade de So Paulo/ USP inaugura a primeira etapa da Base Avanada de Cultura e Extenso Universitria, em Santos. Hoje o bem se constitui em um rgo da Pr-Reitoria de Cultura e Extenso Universitria/ USP, tendo sido doado universidade, h exatos 50 anos. Ns, educadores, trazemos o resultado de uma ao significativa: o balano do Programa Portas Abertas, direcionado ao pblico em geral, visando preservar o bem, ou seja, estud-lo, suspender silenciamentos aqui ocorridos e trocar inquietaes com distintos pblicos. A primeira parte desta edificao abrange um auditrio e espao de servios, sendo uma obra do arquiteto e professor Jlio Roberto Katinsky, inaugurada no exato momento em que se inicia a parte derradeira, representando um passo decisivo para cumprir suas finalidades. Como ex-gestor das runas e autor de obra pblica, em Santos o professor bem sabe a importncia em se oferecer condies harmoniosas para enraizar ainda mais o bem.

O Monumento Nacional, na condio de rgo da Pr-Reitoria de Cultura e Extenso Universitria, antes mesmo de adquirir este status iniciou atividades programadas para diferentes pblicos no Vero 2005. Como educadores da USP criamos o Programa Portas Abertas, que ora apresentamos, com depoimentos e relatos das experincias de ilustres personagens, em diversas reas, bem como a documentao do processo de criao, realizao e avaliao deste programa, em todas as suas edies. Acreditamos na educao como motor transformador da vida, aprofundador do humanismo e abertura para um dilogo entre diferentes, da agregarmos este conjunto de textos. A educao em um bem tombado se fundamenta em experincias e em inquietaes, que procuramos trazer para debate dos caminhos aqui adotados e que o Programa Portas Abertas se constitui em excelente diferencial. Aguardamos sua visita!

Balano

e visualidades: programas e trocas

13

II. I.

preservar lutas e testemunhos

por Maria Ceclia Frana Loureno

O ser senhor de engenho ttulo que muitos aspiram, porque traz consigo o ser servido, obedecido e respeitado de muitos.Andr Joo Antonil. Cultura e opulncia do Brasil, p.75.

O Monumento Nacional Runas Engenho dos Erasmos se constitui, na atualidade, em um patrimnio alargado e complexo, abarcando mltiplos campos. Inicialmente, ao ser passado para a USP imediatamente se identificou a importncia arquitetnica, por meio de pesquisas acuradas nas reas histrica e arqueolgica. As trs disciplinas seguem com contribuies distintas, porm, desde 2001 se vem buscando alargar o arco, com projetos que reconheam o monumento como agente para muitos no cenrio urbano, fabril, educacional, ambiental, econmico e cultural. O remanescente do antigo engenho se encontra em lugar privilegiado, como bem tombado nas instncias municipal, estadual e federal. Alude aos processos culturais vividos e marcados pela ao de senhores e escravos, posses e lutas, interesses e disputas, vitrias e aoites, ao e resignao, criao e destruio, risos e prantos, estando desde data recente com mltiplas atividades e programas distintos para dividir to valiosa herana.

At o sculo antepassado pertenceu ao municpio de So Vicente, no entanto, desde o sculo XX se acha em territrio santista. Entre ns, poucos so os bens culturais que detm o triplo reconhecimento e, ainda mais, abrigam remanescente Quinhentista, a saber o antigo Engenho, ento o denominado do Governador, erigido por Martim Afonso de Sousa, em sociedade com outros companheiros aqui aportados, quando de sua estada entre ns, desde 1532 e por dois anos. O Engenho passou a ser designado So Jorge dos Erasmos quando o banqueiro, comerciante em vrias praas e ilustrado senhor da Anturpia, Erasmus Schetz adquiriu-o em sociedade com outros. Este, catlico em tempos de Contra Reforma e com vizinhana protestante, possivelmente selecionou cuidadosamente a referida figura de santo, dentro de sua cultura religiosa para homenagear, recaindo neste degolado em 23 de abril de 303 d. C.. Como se consagrou, o jovem, Jorge se alou a esta condio, aps declarar-se fiel aos princpios cristos, quando

Preservar lutas

e testemunhos

15

o Imperador Diocleciano professava outra f, o que pode remeter prpria biografia de Schetz, quem sabe projetada na escolha do nome. Entre ns, a prtica de produzir acar com base na cana se deve aos portugueses, que introduziram essa cultura, sendo ento altamente rentvel e introdutora de uma primeira atividade em escala aproximada do que se denominar posteriormente, capitalismo industrial. Afinal, o capital destes contratava o trabalho distncia, vigiado por feitores e com plena adeso dos Jesutas, talvez em face do apoio dado pelos Schetz aos negcios e interesse da Igreja Catlica, como atestam documentos. Entre tantas missivas de Padre Jos Anchieta, uma no deixa dvidas quando toma a iniciativa de rezar uma missa ao falecer um dos Schetz, revelando a proximidade das relaes e a estima por serem catlicos. A importncia da terra, o acar como moeda corrente, o chamado ouro branco, a possibilidade de utilizao de mo de obra indgena, em trocas pessoais e a escravizao de negros renderam ampla produo e, conseqentemente, atraram conflitos e lutas, passando a ser mira de ataques e de confrontos. Modificamse tambm os proprietrios, lembrando que Erasmus Schetz falece a 30 de maio de 1550, passando a propriedade exclusivamente para os herdeiros, tendo seu filho Gaspar assumido os negcios e vindo a falecer em 1568, mas mantendo-se o negcio na famlia, at princpios do Sculo XVII.

Como se observa j na origem se caracteriza como uma plataforma de encontros, simbologia adotada em projetos investigativos e ao educacional. Entretanto, a outra face vem sendo lembrada, porm a USP tem procurado no repetir os mesmos erros, uma vez que foi ao mesmo tempo cenrio letal, competitivo, excludente e destrutivo, j que h claros indcios de lutas, violncias e queimadas, verdadeiros testemunhos dos equvocos para no serem esquecidos tampouco reproduzidos. Alterando-se este quadro internacional, o bem cultural esteve vinculado s vrias famlias paulistas por adoo, entre as quais de Braz Esteves, Pedrosa, Gis, Muniz Guimares, Viana, Marques do Vale, Graa Martins, Toledo e, finalmente em 1943, Octvio Ribeiro de Arajo adquire j em runas. Este, no ano de 1958 doa as atuais Runas para a Universidade de So Paulo, portanto h exatos 50 anos, inaugurando uma prtica seguida por outros particulares, que entendem a importncia de se abrigar testemunhos materiais relevantes para uma universidade pblica e de qualidade. Tal prtica traduziu-se num espao de atuao educativa, a partir de uma plataforma denominada: Sophia.

16

Preservar lutas

e testemunhos

Fundamentaes e conceitos

O patrimnio que recebemos na verdade foi tomado emprestado de nossos filhosConceito grafado em uma parede atribuda aos ndios Yanomani, de Ushuaia/Argentina, em outubro de 2007.

Ribeiro de Arajo legou em vida o Monumento Nacional Runas Engenho So Jorge dos Erasmos para a USP, pouco aps ser elaborado na Organizao as Naes Unidas para Educao Cincia e Cultura (Unesco) conjunto de medidas para coibir a destruio de patrimnio, em especial na Segunda Guerra Mundial. A Unesco criada em 1945 j em 1954, reunida em Haia/Holanda, propugna a Conveno sobre a proteo dos bens culturais em caso de conflito armado, um forte clamor para deslocar o patrimnio das questes blicas e territoriais, apontando para o valor humanstico, de modo a entend-lo como bem cultural da humanidade, logo, fora de disputas. Reconhece-se nos pressupostos o desastre diante do incremento da tcnica militar, o carter unificador dos humanos e a necessidade de estender uma proteo internacional para assegurar a permanncia para distintos patrimnios. Define-se no Artigo 1. de forma direta tal conceito ao estabelecer o que se considera um bem cultural: Os bens mveis ou imveis que sejam importantes para o patrimnio cultural dos povos .

Ressaltem-se nesse quadro as motivaes lcidas da USP para acolher o patrimnio, com base em pesquisas pioneiras na rea. Entre estas cito a dirigida pelo arquiteto e historiador, Lus Saia identificando se tratar do Engenho So Jorge dos Erasmos, na qualidade de diretor da 4. Diviso do Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, regional paulista. Note-se que desde a atuao do poeta, escritor, crtico, musicista e professor modernista Mrio de Andrade em So Paulo, j se elaborava uma srie de medidas para a proteo dos bens culturais, organizando-se setores na esfera federal e das capitais, desde 1936. Uma importante reunio internacional realizada em 1931, na cidade de Atenas/ Grcia estimula tais realizaes e conta com profissionais de diferentes reas. O encontro promovido pelo Servio Internacional de Museus, rgo da ento denominada Sociedade das Naes d origem a uma prtica at a atualidade continuada, ou seja, aps acalorados debates firmam-se princpios, doutrinas e compromissos visando posturas comuns no cotidiano dos bens herdados do passado, respeitando-se as

preservar lutas

e testemunhos

17

18

preservar lutas

e testemunhos

peculiaridades, individualizadoras da variedade e da pluralidade cultural. A chamada Carta de Atenas dividida em sete partes mantm atualidade, em muitos aspectos, dentre tantos, aquele que demanda uma conservao escrupulosa no caso de runas (VI); a necessidade de preservao do entorno do bem (III); a cooperao intelectual entre vrias disciplinas (VII a); a condenao do interesse privado sobrepujando-se sobre o da coletividade (II); e, particularmente, o papel decisivo do uso educacional para garantir o respeito e a proteo aos legados do passado e, assim, viabilizar uma preservao efetiva (VII, b).(...) A melhor garantia de conservao de monumentos e obras de arte vem do respeito e do interesse dos prprios povos, considerando-se que esses sentimentos podem ser grandemente favorecidos por uma ao apropriada dos poderes pblicos. [Art.VII b.]

Maria Regina da Cunha Rodrigues, orientada pelo diretor da unidade, o historiador Eurpedes Simes de Paula. Esta abalizava a identidade do antigo Engenho e de que fora palco de lutas de tantos povos, o que dava para a USP segurana na incorporao desse patrimnio como uma forma de conhecimento acerca do passado, como os livros e as pesquisas, um dos fundamentos do ensino. Outro marco significativo ocorre logo aps o ato de tombamento dos Erasmos na esfera federal, em 1963. Decorridos quase dois anos, em 1964, durante o 2. Congresso Internacional de Arquitetos e de Tcnicos de Monumentos Histricos reunidos na cidade de Veneza/ Itlia, reafirmam-se os princpios humanistas, j nas consideraes inaugurais, bem como o dever dos rgos pblicos se envolverem com a guarda e a preservao de remanescentes significativos para se entender as origens e as posteriores etapas vivenciadas pelo humano, organizado em diferentes quadrantes, condies e sociedades.

Em 1956 a Conferncia Geral reafirma tais princpios, ao debater especificamente os temas correlatos educao, cincia e cultura. Aprofunda ao chamar a ateno que o pretendido interesse pelo passado pressupe a participao de estudantes em determinadas pesquisas acrescentando a ne, cessidade de difuso, organizao de circuitos tursticos, exposies e conferncias. Assim sinaliza que apenas experincias para um nico pblico e passivas, pouco produziriam de efetivo para despertar um sentimento de pertencimento daquele bem para diferentes pblicos. Ao lado desses fatores, acrescente-se que j havia investigao da USP no mbito da Faculdade de Filosofia Letras e Cincias/ USP da pesquisadora

preservar lutas

e testemunhos

19

Aes e transformaes

Monumentos histricos constituem testemunhos de uma civilizao particular, de uma evoluo significativa ou de um evento histrico.Carta de Veneza, artigo 1. 1964.

A Carta de Veneza/ 1964 confere ateno aos bens do passado e define o que ento se entende por monumento histrico, relacionando-o contribuio deste para interpretao dos processos culturais, das transformaes e dos fatos histricos. Observe-se ento que no caso das Runas estas podem compor a categoria de monumento histrico, englobando os trs aspectos, como se ver. Aspecto muito significativo do documento se volta para a necessidade permanente de disponibilizar documentos, relatrios e pesquisas, publicando-se os resultados para sociabilizar metodologias e estimular investigaes, uma das metas a que a USP no se furtou em todos estes anos. Entre as vrias razes, no caso do Monumento Nacional Runas Engenho So Jorge dos Erasmos destaquem-se: os remanescentes ensejam recursos para o estabelecimento de povos europeus no territrio; marcam profunda transformao na vida cotidiana do antes estabelecido; tornaram-se palco de lutas e de saques, por piratas; abrigam vestgios arquitetnicos do antigo engenho; mantm em seu entorno resduos da Mata Atlntica, to aviltada em

nosso meio. Inicialmente o referido Engenho se implantou na Capitania de So Vicente e, como tal, ele guarda em suas entranhas evidncias deplorveis de escravizao humanas, focos estes decisivos para alte-lo ao lugar de um stio monumental, a ser preservado, um marco contra o olvido. A Carta de Veneza aborda, igualmente de maneira inequvoca, outra questo relevante quanto ao aspecto material, em relao aos monumentos como as Runas e que se tem procurado levar adiante. Assim inmeras gestes vm tomando medidas necessrias conservao e proteo permanente dos elementos arquitetnicos e dos objetos localizados (Artigo 15) com sistemtica visita aos fragmentos localizados e monitoramento do entorno, no sem conflitos e dificuldade de acesso. Acrescentem-se, entre as intervenes, desde a consolidao das encostas at a efetivao da primeira parte da Base Avanada de Cultura e Extenso Universitria. Note-se que a criao de um organismo especfico para proteo dos monumentos e stios no mbito internacional ocorreu na seqncia da elaborao

20

preservar lutas

e testemunhos

da Carta de Veneza, ou seja, em 1965. Em Veneza se reafirma a importncia de organismos internacionais trabalharem conjuntamente gerando o International Council of Monuments and Sites (Icomos). Consolida-se esta tendncia como reza o Estatuto inaugural do rgo, chamando a ateno de que visa promover a conservao, a proteo, a utilizao e a valorizao dos monumentos, conjuntos e stios . No caso das Runas Engenho So Jorge dos

Erasmos inmeras reas de conhecimento vm emprestado o melhor dos empenhos para vivificar o bem, sem esquecer os lados sombrios de que o bem foi testemunha. Sublinho que este esforo se volta para acolher todo e qualquer visitante e interpretao do monumento, contudo sem jamais escamotear as mltiplas significaes culturais. Ao contrrio, se simplesmente se restaurasse o antigo engenho, este seria condenado a se reduzir a parque temtico, esvaziando-o das espessas camadas formadas por lutas de tantas vidas, ali sentenciadas.

Desenho de Maria Ceclia Frana Loureno

preservar lutas

e testemunhos

21

Preferiu-se no quesito utilizao abrir para todas as faixas etrias, as diversas camadas sociais e as mltiplas reas e, para tanto, a USP programou projetos especficos para criao conjunta de inmeros valores e significados. Estes esto voltados para a construo, a conservao, a proteo e a ampliao de saberes; tambm se luta para respeitar a comunicao com distintos pblicos sobre vrios temas como as caractersticas fsicas, as expresses culturais e os valores imateriais acu-

mulados por mais de 470 anos de permanncia do bem cultural e de parte do ambiente, por esforo de geraes de seres humanos. Os significados simblicos acumulados nesta longa durao histrica consolidaram-se na atualidade em distintos vetores. Alguns de valor universal, como repdio escravizao do humano, responsvel por um verdadeiro holocausto de ndios e de negros. Igualmente a permanncia tem ensejado a

22

preservar lutas

e testemunhos

ampliao da dimenso social, procurando trocas e respostas. Entre estas uma se impe, gerando um grupo que se rene sistematicamente e reivindica a criao de uma Unidade de Preservao Ambiental (UPA) no anfiteatro ao fundo das runas, procurando barrar a disseminao de reas particulares de lazer e questionar: por que somente alguns se beneficiam do entorno e em carter privado? Outro aspecto das Runas versa sobre a utilizao e fruio natural, aliadas a algumas tradies culturais, um convite para se meditar sobre os acertos e muitos erros do humano na Terra. Vale musealizar o cemitrio encontrado e veiculado nos na dcada de 1940? A cultura voltada exposio de cadveres se associa s prticas desejveis? Novos valores tambm esto neste cenrio na atualidade e em vrios cantos do mundo, como as paisagens naturais e culturais e as perspectivas para se incentivar a ecologia e a biodiversidade, vetores estes fortemente assinalados na chamada Carta de Turismo/Icomos/1976. A par desses valores coexiste o de cunho internacional, se considerar que aqui aportaram, alm dos portugueses, comerciantes da Anturpia flamenga, italianos como feitores do engenho, piratas de vrias nacionalidades em busca do chamado ouro branco, o acar. Acrescentem-se a importncia nacional, porquanto se constitui em ltimo remanescente entre os engenhos mandados erigir pelo dono da Capitania de So Vicente, Martim Afonso de Sousa, quando de sua estada entre ns. De outra parte h valores regionais, para toda a Baixada Santista, acumulando lembranas e todo o imaginrio daqueles muros, que agora se alaram a categoria de programas e portes abertos.

No obstante outro valor significativo se avoluma, tambm impregnado de interesses e de conflitos: os programas no Monumento no podem mascarar os desvios irradiados, desde as Runas. Afinal precisam se manter como um exemplo dos descaminhos do humano, quando se move por interesse de apenas alguns no para muitos; quando se vale de estratgias para massacrar seres em situao de alteridade, pois no se pode imaginar que seria possvel conduta similar com irmos ou pares, sendo a educao de diversas faixas etrias essencial para construir tal diversidade, em conjunto. A Declarao do Mxico, gerada em 1985, evidencia como a educao e as culturas contribuem na atualidade para rever um universo monculo e corporativo, liberando o indivduo para uma sociabilidade mais aprofundada. Assim se expressa:O mundo tem sofrido profundas transformaes nos ltimos anos. Os avanos da cincia e da tcnica tm modificado o lugar do homem no mundo e a natureza de suas relaes sociais. A educao e a cultura, cujo significado e o alcance tm se ampliado consideravelmente so essenciais para um verdadeiro desenvolvimento do indivduo e da sociedade. [Declarao do Mxico. 1985.]

Os projetos interpretativos por vis educacional procuram proporcionar anlise crtica incluindo diferentes tradies culturais, ao mesmo tempo, em que se tm buscado fontes e revises relativas ao passado que o bem encerra, mas tambm, direcionando-se para a realidade atual. Os Programas vm sendo traados pela USP tendo como marco postular a presena de uma diversidade cultural plural, na vizinhana alargada, do bairro e da regio, com quem tem procurado trocar saberes

preservar lutas

e testemunhos

23

e fazeres, sem esquecer as minorias culturais ou os grupos desprotegidos, presentes na regio, outra constante nas cartas desde 1976. Com muito empenho, lutamos para criar diferentes programas, focados para as singularidades dos vrios segmentos, desde os pioneiros Vou Volto e o Programa Portas Abertas iniciado no Vero de 2005, que se procura fazer um balano nesta edio. Cabe reiterar que ao se concluir a construo da Base Avanada, o direcionamento do pblico em datas e horrios no mais ser necessrio, ficando aberto sem nenhuma interrupo, entretanto permanecendo os vrios projetos, sempre avaliados e renovados, como exige a educao. O Programa Portas Abertas permanece como uma plataforma experimental e renovada a cada uma das edies ocorrida nas frias, tanto de meio de ano, quanto no vero. A caracterstica da Baixada Santista como uma regio turstica tem originado uma srie de aprendizagens com pblico em geral e com segmentos especficos. Isto se deve ao fato de que h sensvel aumento de populao nesse perodo, diferenciando o pblico habitual. Planejamos depoimentos, saraus, festivais e atividades, estando nossa equipe sempre aberta ao dilogo. Acrescentem-se outros programas que se voltam para traos diversificados de fruidores, a citar o Fim de semana temtico; mas tambm ao pblico especializado, nacional e internacional (UPA e Plataforma Sophia) e particularmente com projetos educacionais para estudantes nos mais diversos nveis. Estes compreendem: Nvel Superior (Laboratrio de Memrias e Territrio/

transformao); Nvel Pr-Escola/ Fundamental e demais: (Vou Volto e I-Papo) Nvel Tcnico: (Engrenagem); Educao de Jovens e Adultos: (Eleja). Finalmente temos efetivado uma srie de estudos editados sobre todos os esforos em torno do bem, agregando vrias reas e publicaes. Marco exponencial tem sido aprender e intercambiar com associaes, grupos, autoridades pblicas e, especialmente, com o pessoal ligado ao patrimnio e com os educadores da Secretaria da Educao de Santos e de So Vicente, num total de dez, sendo dois concursados pela USP. Estes ltimos vm criando novos programas e atendem ao pblico de domingo a domingo, de janeiro a janeiro. A finalidade mpar dos programas reside em dar curso ao esforo hercleo e coletivo de geraes para interpretar de forma crtica o bem, assim de fato preservando-o e ampliando sentimentos e valores. Deseja-se que no futuro as prximas geraes sigam com o repto de disponibilizar o patrimnio para seus filhos e para os demais. A relao com o passado poder ajud-las a viver com muita dignidade e generosidade, longe do universo de senhores e servos. Como propugna a Carta Nara/ Japo, 1994/ Internacional Council of Monuments (ICOMOS) h um grande desafio para os bens culturais para que a herana cultural de cada um se perpetue como patrimnio cultural de todos . Cia, Vero de 2008.

preservar lutas

e testemunhos

25

III. runas engenho so Jorge dos erasmos50 anosde administrao

usp

por Rodrigo Christofoletti

De Portas Abertas para a comunidade, o avano e o saberA celebrao o dnamo que acende as lembranas, Mas tambm o lpis corretor das necessidades no cumpridas....Eurpedes.

O Engenho So Jorge dos Erasmos , provavelmente, um dos trs primeiros engenhos erigidos em solo brasileiro ainda no sculo XVI, na ento Capitania de So Vicente. Sua construo remonta expedio de Martim Afonso de Souza, de 1532 e fundao do primeiro ncleo de ocupao portuguesa. De incio denominado engenho do Governador, foi provavelmente construdo em 1534. Depois, recebeu o nome de engenho dos Erasmos, ao ser adquirido pelo comerciante flamengo Erasmos Schetz, da Anturpia. Mais de quatro sculos depois, em 1943, os terrenos onde se encontram as Runas foram adquiridos por Otvio Ribeiro de Arajo, que loteou a propriedade e doou o Engenho So Jorge dos Erasmos USP em 1958. Portanto, h cinqenta anos teve incio, por ao da pesquisadora Maria Regina da Cunha Rodrigues (pioneira nos estudos sobre o engenho), a participao da Universidade de So Paulo na histria das Runas Engenho So Jorge dos Erasmos, pas-

sando pela autenticao do bem histrico ao arquiteto Lus Saia (diretor do distrito paulista do Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional) que, em documento pblico datado de 26 de fevereiro de 1958, manifestou-se por um agenciamento adequado do bem, com o objetivo de consolidao e valorizao das runas Nestas cinco dcadas muitas aes . foram empreendidas, objetivando sua preservao e seu uso como elemento de ensino e pesquisa. Professores e pesquisadores estiveram envolvidos com a questo, no mbito da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas rgo que administrava o bem anteriormente. Em consonncia, as questes relativas s Runas tambm tiveram o apoio direto da PrReitoria de Cultura e Extenso Universitria, entidade agora responsvel por sua guarda. Geraes de pesquisadores, alunos e docentes da Universidade de So Paulo tm contribu-

Runas EngEnho so JoRgE dos ERasmos 50 anos dE administRao usP

27

do para suspender o silenciamento, redigindo pareceres, ofcios, recomendaes, trabalhos acadmicos sobre a regio e o prprio Engenho, textos para seminrios, escavaes arqueolgicas, pesquisas em fontes primrias, levantamento bibliogrfico e solicitaes para garantir a integridade do bem, ao lado da existncia de convnios, comisses e aes dispendiosas para sua consolidao. Assim, a USP fornece um paradigma relevante sobre a importncia em debruar-se sobre o passado, valendo-se de princpios, saberes e mrito para preservar a propriedade do bem cultural. A Universidade, ento, associa-se comunidade local de Santos e de So Vicente para trazer o que melhor faz ensino, pesquisa e extenso comunidade, convidando todos a uma troca de saberes e construo de significados, para consolidar a humanidade e solidariedade existente h muito no local. Reside neste complexo de aes a vontade poltica da USP em disseminar este lugar na condio de identitrio, relacional e histrico, promovendo-se uma ao voltada para a memria. Portanto, o ano de 2008 marca mais uma etapa deste processo dinmico: o cinqentenrio da administrao uspiana junto s Runas Engenho So Jorge dos Erasmos, etapa em que o Monumento Nacional torna-se, enfim, um rgo da Pr-Reitoria de Cultura e Extenso Universitria, deciso que representa reconhecimento do esforo coletivo empreendido por geraes de interessados em sociabilizar o bem cultural e os significados simblicos acumulados.

De maneira bastante abrangente os resultados alcanados ao longo dos ltimos quatro anos (2004-2008 perodo de desenvolvimento dos programas educativos nas Runas) reproduziram a unio de foras em prol de uma meta bastante significativa: tornar as Runas um local pblico de fruio, aprendizado e preservao, respeitando suas capacidades e colaborando para que os esquecimentos do passado no reproduzam mais a negligncia, o abandono e a perda de identidade. De outro prisma, valoriza-se o longo caminho percorrido por figuras preocupadas em salvaguardar este bem, tal como seu desejo de verem brotar deste terreno sementes que resultassem em preservao e produo de conhecimentos.

28

Runas EngEnho so JoRgE dos ERasmos 50 anos dE administRao usP

Abrindo as portas para uma Educao em movimento

Eu fico aqui pensando... pensando... matutando...sobre esse negcio de aprender... porque no pode ser como pular, nadar, jogar, correr?Reinaes de Narizinho, Monteiro Lobato, 1959

Nos ltimos quatro anos o Monumento Nacional Runas Engenho So Jorge dos Erasmos tem se notabilizado por ser um bem cultural diferenciado de seus congneres, devido ao seu carter eminentemente educacional. Os programas educacionais implementados pela equipe de educadores vm solidificando a inteno primordial do Plano Gestor, que busca ampliar, divulgar e produzir conhecimento, de uma perspectiva coletiva. O ano de 2005 marcou definitivamente a vocao das Runas como campo aberto para as interpretaes interdisciplinares e consolidou a sua presena no conjunto dos mais atuantes e conscientes domnios pblicos voltados para a educao formal/no formal do estado de So Paulo. Os esforos da Pr-Reitoria de Cultura e Extenso Universitria somados s incansveis buscas por melhorias levadas a cabo pelo Conselho Curador nos ltimos quatro anos, estimularam a equipe de educadores a executar programas que buscassem, antes de tudo, uma concepo educacional libertria, emancipadora e constante, em que o espao, o patrimnio e o visitante fizessem parte

de um mesmo organismo: o da educao como troca, como partilha. Educao faz-se em movimento, e no gerndio, como bem nos lembra o educador Paulo Freire, para quem a forma indicativa no fazer educao est fadada a reproduzir uma educao bancria, hermtica e no libertadora, pois j nasce pronta, pr-fabricada. Fazer educao no gerndio significa aprender com a continuidade, superar os eventuais percalos que possam existir, e mais que isso, crescer com as diferenas, pelo simples fato de justamente o diferente possibilitar no indivduo a identificao. Os projetos educacionais implementados nas Runas seguem fiel e convictamente esta compreenso de que educao s se faz no gerndio: construindo, partilhando, somando, dividindo responsabilidades, buscando dimensionar as potencialidades, capacidades e habilidades de cada educando. Nenhuma transformao real se efetiva por alquimia, por toque de mgica. Por isso essa mudana s possvel mediante o movimento, a ao efe-

runas engenho so Jorge dos erasmos 50 anos de administrao usp

29

tiva, pois a educao em que acreditamos uma construo coletiva, pela ao do coletivo e para o coletivo. Cada qual com suas funes, seus espaos de atuao definidos. As Runas cumprem bem este papel de espao plural das coletividades, de suas construes e transformaes. A transformao de uma criana que, ao vislumbrar pela primeira vez o espao das Runas, imagina estar diante apenas de pedras amorfas e sem vida. Ao final da visita, porm, modifica suas interpretaes por verificar, se estimulada em sua criatividade, que tais pedras falam, contam histrias, explicam fatos, agitam curiosidades e nos deixam ainda mais dvidas do que antes de conhec-las.

desta modificao que nos aproximamos, protagonizada pelo visitante enquanto v, sente, e muda sua maneira de perceber o entorno. A educao em movimento se faz pelo gerndio, mas deve concordar com a forma que for possvel: s no pode ser pretrita (passada, esquecida no toque do tempo), pois seno no educao, saudade. Neste sentido, entre os milhares de visitantes nestes quatro anos de trabalho, muitos dos participantes de nossas visitas reflexivas voltaram a visitar as Runas ao menos mais uma vez nos fins de semana, e mesmo nos perodos de frias confirmando a premissa de que a pessoa termina por apropriar-se de determinado espao ao qual se sente pertencente.

30

runas engenho so Jorge dos erasmos 50 anos de administrao usp

A Base Avanada de Cultura e Extenso abre as portas para o futuro das RunasA vida pode mudar a arquitetura. No dia em que o mundo for mais justo, ela ser mais simples.Oscar Niemeyer

Eu uso o simples, justamente porque sei que a forma mais justa de se juntar, utilidade, beleza e funo.Julio R. Katinsky

Nascida de um desejo acalantado h mais de 10 anos, fruto de esforos solidificados ao longo das ltimas gestes da PrReitoria de Cultura e Extenso Universitria e do Conselho Universitrio do patrimnio, a primeira fase de construo desta Base Avanada de Cultura e Extenso Universitria encontra-se praticamente terminada. A proposio de um projeto arquitetnico pelo Prof. Jlio Roberto Katinsky, que no competisse com as Runas estabelecidas com grandiosidade e exuberncia (caractersticas da arquitetura militar colonial) foi o ponto de partida para a criao desta Base Avanada, num patamar mais baixo que as prprias Runas. Assim, dentro do prdio ser sempre possvel vislumbrar o conjunto histrico-arquitetnico, como um tributo a este espao que fora, antes de tudo, terreno vivo de resistncia e de construo dos alicerces do Brasil no universo do capital, admisso esta forjada a fogo e sangue pelos povos escravizados. Admirar as Runas do patamar da

Base Avanada como contemplar uma acrpole: solo frtil para interpretaes, imaginaes e concretizaes de desejos. Em contraposio, uma vez no patamar das Runas, admirar a construo da Base e sua absoluta integrao com o sitio remanescente estimula esperanas de este local permanecer um espao onde a construo e a preservao so mais que um binmio de propaganda: fazem parte de uma concepo de vida e trabalho que apenas a educao pode oferecer. Da altivez do vidro que no censura nada, do aconchego do auditrio e da perspectiva animadora do conjunto restante da obra que ainda est por ser realizado surgem a certeza de que o Monumento Nacional Runas Engenho So Jorge dos Erasmos hoje, de maneira definitiva, um espao de construo e partilha de conhecimentos para a comunidade (funo fundamental da extenso), sobretudo a populao adjacente, habitantes de uma localidade perifrica e por isso pouco assistida.

runas engenho so Jorge dos erasmos 50 anos de administrao usp

31

32

runas engenho so Jorge dos erasmos 50 anos de administrao usp

Desenho de Julio Roberto Katinsky

runas engenho so Jorge dos erasmos 50 anos de administrao usp

33

O desejo acalantado por anos apresenta-se agora como realidade. A construo da Base Avanada representa o primeiro passo rumo a eternizao das histrias e vidas vinculadas a este espao. Sonhos, pranchetas e tijolos que daro, a partir de ento, concretude a uma aspirao coletiva: a preservao deste espao , hoje, mais realidade do que promessa. O ano de 2008 marca esta transformao. A infra-estrutura alcanada com a Base Avanada facilitar o atendimento dos visitantes, a criao de programas educacionais mais bem instrumentalizados e, principalmente, estabelecer por definitivo a presena da Universidade de So Paulo como parceira efetiva e afetiva da construo de uma educao mais prxima e presente, mais democrtica e menos excludente, numa das regies mais povoadas e menos assistidas econmica e culturalmente da Baixada Santista. Assim, a docncia, a pesquisa e a extenso encontram terreno frtil e promissor para sua prtica na Base Avanada de Cultura e Extenso Universitria do Monumento Nacional Runas Engenho So Jorge dos Erasmos.

34

runas engenho so Jorge dos erasmos 50 anos de administrao usp

runas engenho so Jorge dos erasmos 50 anos de administrao usp

35

Usos de um espao em construo

Nesta Base eu busquei enterrar ao mximo o prdio, de maneira que as Runas no fossem prejudicadas por um obstculo qualquer. A segunda coisa que eu me preocupei foi voltar interinamente o edifcio para as Runas. Isso faz parte da educao das pessoas que freqentam o prdio, pois eles sempre olharo para as runas. E, em terceiro lugar, evidentemente, pensei num mnimo de conforto para as pessoas.Julio R. Katinsky, Premissas para a construo da Base Avanada.

O sentido de pertencimento a um grupo e simultaneamente a um local faz com que os seres humanos se tornem parte de uma identidade coletiva, que vivem e se transformam diante de um dado espao. Este sentimento identitrio o que assegura na escala de valores de dada comunidade, os direitos e deveres sociais, a utilizao, a fruio e a preservao plenas de certos espaos que se tornam pblicos, dada a sua natureza intrnseca. As cidades so palcos de reproduo das relaes humanas, que ocorrem ora nos seus espaos construdos (habitaes, indstrias, hospitais), ora nos espaos livres (parques, praas, bens culturais os mais diversos, runas). Nesse sentido, certos lugares recebem e incentivam o exerccio da vivncia social e servem de suporte ao exerccio da cidadania, enquanto espaos pblicos, pois contam com uma expressiva acessibilidade e acolhem simultnea e passivamente os mais variados usurios e as mais diversas formas de uso, seja na sua funo educativa (de onde se desdobra a noo de cidadeescola, bem-escola etc), seja na sua possibilidade ldica de existir.

Desde os gregos a valorizao do locus pblico sobre o privado, tm demonstrado ser uma perspectiva acertada no sentido de reverter injustias sociais, com relao fruio de cultura e cidadania, modo coletivo de qualificao e mobilidade social que postula trocas simtricas entre os cidados. A criao da Base Avanada de Cultura e Extenso Universitria da USP, junto ao Monumento Nacional Runas Engenho So Jorge dos Erasmos, sinaliza o desejo acalantado por geraes de estudiosos deste bem cultural no sentido de criar os parmetros para sua utilizao. O usufruto coletivo e democrtico objetivando a construo de um novo paradigma que fuja do existente e reiterado modelo de excluso e privilgio de uns em detrimento de outros. Desta forma, entendemos o espao pblico como o principal local de reproduo da vida coletiva e social, que age com seu carter transformador e igualitrio. Objetivou-se, em um primeiro momento, a construo de um auditrio de mltiplas utilidades, que pudesse servir de locus para as mais diversificadas

36

runas engenho so Jorge dos erasmos 50 anos de administrao usp

Ao contrrio da prxis daqueles partidrios do saber centralizado, mantidos por geraes em algumas instituies de reconhecimento renomado, a equipe do Monumento Nacional Runa Engenho So Jorge dos Erasmos, assessorada pela Pr-Reitoria de Cultura e Extenso Universitria, vem buscando reverter a conscincia de que o conhecimento de qualidade algo restrito aqueles de melhor condio scio-econmica. Visando mudar o foco desta realidade to nociva construo de um pas menos desigual, a Base Avanada se mostra como uma possibilidade vivel de democratizao, alocada para servir com qualidade, todo visitante destas Runas. Para tanto, a construo do auditrio climatizado, dotado com mais de sessenta assentos, e as posteriores entregas do bloco educativo, em que estaro disponveis salas de aula, uma reserva tcnica cuidadosamente pensada para guardar a riqueza da cultura material retirada do solo das Runas, bem como uma biblioteca pblica de funcionamento ininterrupto, laureiam este projeto que tem a assinatura de uma arquitetura socialmente comprometida: atividades, estando disposio de toda a comunidade, prxima ou distante do bem, sem distino. Assim, a comunidade envoltria ao Monumento, tanto quanto a comunidade uspiana, ou de outras instituies, ou at mesmo o visitante comum, encontra neste espao pblico de construo, produo e divulgao de saberes, uma oportunidade de vivenciar o que premissa bsica em todos os programas educativos aqui em desenvolvimento: o conhecimento se faz no e para o coletivo, respeitando a individualidade como essncia primeira desta ao.(...) busco proporcionar um espao em que muitos possam usufruir do mesmo: alimentando de cultura, conhecimento e lazer a vida daquele que jamais disporia de um espao destes, no fosse uma iniciativa como a da Base Avanada. [Julio R. Katinsky. Depoimento. Portas Abertas, vero 2006].

Levando-se em considerao que se trata de uma das regies da Baixada Santista, menos assistidas econmica e socialmente, dada sua caracterstica geograficamente perifrica, a Zona Noroeste, regio

runas engenho so Jorge dos erasmos 50 anos de administrao usp

37

em que se situam as Runas, ter a possibilidade de usufruir de um centro coletivo de cultura, lazer e aprendizado. A populao em geral (vinculadas ou no a uma instituio de ensino) ganha, com a entrega da Base Avanada, um consistente apoio na produo de aes afirmativas de carter educacional.

38

runas engenho so Jorge dos erasmos 50 anos de administrao usp

O depoimento como sustentculo da memria: runas que se reagrupam pea por peaMuitas vezes, de diversas maneiras, a relao entre o depoente e o pesquisador acaba se plasmando, variando entre uma aproximao amigvel ou uma desconfiana mtua. Mas a interpretao do registro e no o prprio registro que auferir ao depoimento bases slidas de anlise.Maurice Halbwachs

O manejo das evidncias orais vem sendo amplamente utilizado e discutido em diversas publicaes. Como seu estatuto ainda est em elaborao, tais trabalhos envolvem, muitas vezes, posies diferentes e at antagnicas sobre a natureza das evidncias orais e sobre as diversas formas e possibilidades de seu uso na pesquisa histrica. Dentre os tipos de entrevista empregados pela metodologia3 das evidncias orais termo que suscita problemticas quanto a sua interpretao, dois merecem destaque: a entrevista temtica e a de histria de vida. Nesta oportunidade, objetivou-se a interseo de ambos os tipos, embora atribuindo maior relevo ao trabalho temtico por se entender que a oralidade e a memria trabalham tanto na dimenso individual quanto na coletiva4. Por isso, aqui o entendimento baseia-se nos escritos de Maurice Halbwachs, para quem a memria coletiva um conjunto de lembranas ativadas pelo filtro do presente, e que por isso passam a constituir um patrimnio que, vivenciado por um grupo de pessoas, revitaliza-se e atualiza-se no momento de cada rememorao5. No se trata,

portanto, de rever o passado pura e simplesmente, mas de verificar como este foi apreendido a partir do presente. Na direo deste enunciado, outro debate aparece com importncia anloga: o que aproxima as relaes entre memria e histria, tendo informado os historiadores sobre o aprofundamento e a pluralidade com que estas categorias de analise tm sido construdas. A atualidade do que se denomina discursos memoriais por conseguinte, sinaliza , a discusso sobre a densidade desta homilia e o entendimento dos porqus tais discursos memoriais voltaram a ser temas centrais nas discusses das cincias humanas. Neste sentido, a dinmica do produtor de memrias diante desta profuso de memorialismos recuperados (sobretudo nestes ltimos 50 anos) corrobora a idia de que nunca antes a memria foi to historicizada e a histria se memorializou tanto. No bojo das discusses sobre a perenidade ou a efemeridade da memria a discusso sobre a sua

runas engenho so Jorge dos erasmos 50 anos de administrao usp

39

relevncia e papel nos dia atuais sinaliza a escolha, por parte considervel de historiadores, de eleger como foco de suas preocupaes no mais os silenciamentos, mas seus registros; o ato repetido de rememor-los, entend-los, luz de uma dada historicidade(...) o que redundou num desdobramento das memrias subterrneas, lembranas dissidentes, lembranas proibidas, memrias enquadradas, memrias silenciadas, mas no esquecidas. [Seixas, apud Pollack, 115, 1989].

Assim, os chamados lugares da memria nascem e vivem do sentimento que no h memria espontnea, e que por isso torna-se urgente criar arquivos, manter aniversrios, organizar celebraes, justamente porque estas operaes no so naturais. , portanto, a defesa de uma memria preservada que buscamos fazer nesta publicao. Pois, como afirma o historiador francs, Pierre Nora, sem vigilncia comemorativa, a histria depressa varreria as lembranas So eles, os lugares da memria, . portanto, basties sobre os quais se escora toda a escolha do lembrar.(...) Estes lugares de memria so antes de tudo, o que secreta, veste , estabelece (...) pela vontade uma coletividade fundamentalmente envolvida em sua transformao e renovao. Valorizando, por natureza, mais o novo que o antigo, o jovem que o velho, o futuro que o passado. Assim, museus, arquivos, cemitrios, festas, aniversrios, tratados, celebraes so os marcos testemunhais de uma outra era... so elas, sacralizaes passageiras numa sociedade que dessacraliza, e nivela, sinais de reconhecimento e de pertencimento de grupos numa sociedade que s tende a reconhecer indivduos iguais e idnticos (...). [Nora, p.13].

Concomitantemente a esta proposta de se entender o passado para se conceber o presente, o ensaio de Marc Aug (1994) sobre os lugares antropolgicos nos parece complementar. Os lugares antropolgicos (tal como os lugares de memria) permitiriam, ento, uma experincia inusitada: as pessoas se sentiriam solidrias exatamente na medida em que cada uma delas vivencia um acontecimento gerado a partir de uma dada troca seja esta simblico-emocional, mnemnico-histrica ou simplesmente relacional. Esta reflexo remete conseqentemente para a definio de como construdo este lugar e como apropriado pelos indivduos e grupos que o compem, segundo o significado social que os indivduos lhe conferem. Os lugares antropolgicos so, portanto construdos a partir da juno entre os olhares e vivncias plurais e as relaes sociais decorrentes destas percepes. Assim, medida que vo sendo descortinadas tais relaes sociais, as redes de comunicaes, de associativismos, de conflitos, de experincias entrelaadas conferem um estatuto mais claro ao lugar antropolgico. Posto que, lugares e memrias fazem parte de uma mesma engrenagem:existem nos atos, nas comemoraes, nos artefatos mais variados, preciso reconhec-los tambm em seu prprio movimento, sempre descontnuo e atual (...) [Aug, p.52].

Lugares de memria e lugares antropolgicos: categorias interessantes no entendimento da dinmica celebrativa de um dado grupo que divide noes e vises de mundo bastante comuns. A constante evoluo desta memria incentivou a ao da ana-

40

runas engenho so Jorge dos erasmos 50 anos de administrao usp

mnese (ato proposital de rememorar) por parte dos agentes sociais em questo, pessoas que afetiva ou intuitivamente tiveram suas vidas entrelaadas por eventos relacionados estas Runas. Do ponto de vista do tratamento das informaes conseguidas com os depoimentos gravados para o Programa Portas Abertas, em todas as suas edies, cabe ressaltar que estes foram todos transcritos, encontrando-se parte destes editados nesta publicao. Com o intuito de lanar luz s discusses dos que estiveram presentes, descreveremos ao longo desta publicao cinco destes depoimentos. Neste sentido, a eficcia dos mecanismos de representao da imagem das Runas pode ser mais bem verificada utilizando a metodologia das evidncias orais. Aqui, estas evidncias sero utilizadas como registro das percepes dos agentes sociais em questo, pessoas que de alguma maneira participaram ativamente da construo desta nova fase, no que tange s obras e aos projetos educacionais das Runas Engenho. Assim, por possibilitar o acesso ao universo das experincias vividas, tal fonte busca ser um recurso valioso para a discusso da recepo e interiorizao das idias sobre este importante bem cultural. Portanto, transcrevemos partes editadas de depoimentos que ajudaram a construir etapas significativas do Programa Portas Abertas. Os depoentes: um professor universitrio, idealizador do projeto da Base Avanada de Cultura e Extenso Universitria; um arquiteto representante da Prefeitura Municipal; um poeta/escritor; uma engenheira e professora universitria e uma professora do ensino fundamental de uma escola paulistana. Os temas: convergentes

e plurais. A ao docente num espao como o das Runas, a interveno arquitetnica e poltica e o olhar literrio refletindo as nuances destes ltimos cinco sculos de histria. Cinco experincias bastante diferentes, mas complementares. Memrias que sinalizam como profissionais de universos to variados vem a educao e a preservao nas Runas Engenho So Jorge dos Erasmos. O lado do empreendimento, da conscincia poltica, da militncia do magistrio e do olhar artstico em dimenses que apenas o depoimento capaz de congregar. Nesta edio, pegadas e pistas em busca de um entendimento: o que so as Runas Engenho So Jorge dos Erasmos? Pontos de vista que se complementam e se divergem, numa mistura que faz das Runas Engenho um lugar de memria e de ao histrica por natureza.

runas engenho so Jorge dos erasmos 50 anos de administrao usp

41

Prof. Dr. Julio roberto KatinsKy

(...) ns nos relacionamos com o passado esperando aprender alguma coisa com o futuro e o presente... e eu acho que isso continua sendo verdadeiro (...) isso porque acredito fielmente que cultura no se faz com 10 merris... h de garantir a cultura, mas com muito dinheiro... o dinheiro que falo a manuteno disso(...) a preservao dissoJulio R. Katinsky

com grande satisfao que recebemos vocs aqui, hoje, inaugurando o programa Portas Abertas de julho de 2006. Alguns de vocs j conhecem o Engenho, outras pessoas trabalham conosco aqui, outros ainda esto aqui pela primeira vez, e para ns tremendamente satisfatrio, pois esta a primeira vez que estamos tendo um evento como este. Embora o projeto j exista h trs edies, a primeira vez que relatarei minha experincia profissional e afetiva com o Engenho, de maneira que, uma honra receb-los para dividirmos este momento que sem dvida, de virada de pginas nos projetos e eventos elaborados por esta equipe. Para ns que militamos pela preservao e a educao sempre muito prazeroso aprender cada vez mais com as histrias que vivenciamos. Sobretudo, porque nos ensinam cada vez mais a olharmos para este espao com questes diferentes, olhares diversos. Ento, com entusiasmo que aceitei a esta convocao, honrosamente! Eu vejo isso mesmo: quando fui convidado pela gestora para vir falar com vocs eu fiquei pensando o que seria interessante conversar. Uma srie de coisas vocs j sabem: isso aqui monumento nacional. Isto no um monumento da cidade de Santos. Eu considero at um pouco mais: um monumento internacional, da humanidade. Por qu? Porque com a instalao do imprio portugus nesta rea se inicia um captulo novo da histria da humanidade, qual seja: este que todos metem o pau, mas que dependem dele para tudo: o surgimento do capitalismo moderno. Isso aqui est ligado com este fenmeno: o surgimento desse capitalismo. Isso porque nenhum portugus que tivesse um pouco de bom senso sairia de l para vir para c. Ento para vir para este territrio a Coroa imaginou que precisaria de portugueses aqui para garantir a posse da terra. E precisava haver um grande incentivo para que eles viessem. E tudo isso, a despeito de Portugal estar numa decadncia imensa desde 1530. Ento, Portugal quando comea ocupar esse territrio, j pensa em jogar nas costas da populao a conservao do imprio. Como fazer isso? Dando incentivos para que eles viessem aqui: um deles, a indstria de acar, mas por qu? Porque a in-

depoimento

43

dstria de acar era uma espcie de monoplio de portugueses e espanhis, pois em contato com o mundo rabe, eles passaram a aprender a fazer acar. O modo ibrico de produzir acar j era manufatureiro, com grandes instalaes, em oposio ao modo corporativo de produzir bens, mais comuns nas cidades europias da poca e com uma produo muito reduzida. O resto da Europa no! Alm disso, a cana de acar uma planta que s se d bem em um tipo de territrio: como este de So Vicente, por exemplo. Agora, note! No se trata de terra apenas! A terra no tem tanta importncia, seno (veja, um homem ganhou o premio Nobel por causa disso) a cana, por incrvel que parea, usa pouco da terra. Ela no precisa de uma terra frtil, precisa de gua, muita gua e carbono, porque a sacarose um produto orgnico: ento uma frmula de carbono, hidrognio e oxignio. Tudo isso est no ar. Carbono est no ar, inclusive nosso problema agora tirar o carbono no ar, ns temos que capturar toneladas e mais toneladas de carbono que foram soltos pela combusto da gasolina. Naquele tempo, evidentemente, havia menos carbono no ar, mas tambm era bem carregado de carbono. O nordeste, por exemplo, nunca botou um real em adubo nos terrenos e eles produzem o acar h 500 anos. Por causa disto, o que se precisa gua, e em abundncia. E isso ns temos. Vejam: nessa regio chove quase tanto no inverno quanto no vero, e no vero chove mais do que na Amaznia, essa regio toda do litoral que comea aqui em Iguape e vai at Campos no Rio de Janeiro, onde tambm uma regio que produz acar: toda ela recebe muita chuva. Aqui h muito carbono. Ento foi muito fcil instalar a indstria do acar aqui. Portanto, ele passa a ter importncia internacional, tanto que a maioria da documentao sobre este engenho no est no Brasil. Os documentos mais importantes esto na Blgica, principalmente l, isso porque a terra dos ltimos grandes donos deste engenho. Porque o Martim Afonso era um personagem controvertido. Ele veio aqui e era amigo de infncia do rei, mas, quando ele viu que aqui teria que suar a camisa para produzir riqueza, ele se mandou, se foi para as ndias, onde o dinheiro era garantido, numa civilizao enorme e um mercado estabelecido. Portanto, deixou tudo nas mos de administradores no Brasil, os loco tenentes. Porque o imprio portugus, j em 1540, comea um processo de decadncia, corrupo. Veja: o que percebemos hoje no Brasil, l j havia. Ento, ns temos uma tremenda tradio no ! (risos) Mas, isso aqui, at certo ponto, como tudo no imprio portugus, ficou meio abandonado, tanto que ainda no sculo XVI este engenho (no este prdio), mas o original, que foi trazido pelo Martim Afonso, por uns holandeses, na verdade no so holandeses, flamencos (falam um dialeto quase holands, ligados Igreja Catlica) compraram este engenho. Uma famlia que se chamava Schetz e havia um monte de pessoas com o nome de Erasmus, ento o engenho ficou conhecido como Engenho So Jorge dos Eramos, Schetz. Por isso que os documentos mais importantes deste engenho esto l nos arquivos belgas. Ns estamos agora com a atual gestora fazendo um grande esforo para recuperar estes documentos para ns.

44

depoimento

Mas o que eu queria falar para vocs uma coisa diferente: queria dizer como esta coisa est presente no nosso dia a dia. Vocs esto aqui presentes nas Runas, que afinal de contas, so nicas no Brasil. Do sculo XVI nada mais h, ento, isso interessante: como aconteceu isso? Bom, isso ficou abandonado, depois que os Schetz tambm perceberam que haviam cado no conto do vigrio, estes passaram isso para frente, e assim, vem desde o sculo XVI ou XVII. Este engenho passou por muitas mos e tambm, no entendi ainda porque, mas a indstria de acar no prosperou nesta regio, apesar desta manter os primeiros engenhos de acar do Brasil. A maioria s guarda uma meia dzia de pedrinha, o que restou deles, mas, eles foram instalados na ilha de Santos, e no prosperaram. Ento, o que eu queria dizer para vocs sobre outra aventura maravilhosa que no tem nada a ver com explorao da indstria do incio do capitalismo moderno, porque esse lugar j foi feito para a produo visando o mercado. Ningum iria produzir acar para consumo interno, s para a Europa. J haviam feito isso nas ilhas atlnticas, tanto os portugueses, quanto os espanhis e isso bonito tambm. Uma histria da chegada dos portugueses nos arquiplagos das Canrias pelos espanhis e da Ilha da Madeira pelos portugueses, isso no comecinho do sculo do XV. Foram os primeiros navegadores que enfrentaram o oceano. A coisa que eu mais gostei foi ter me envolvido com o Engenho dos Erasmos. Durante muito tempo, no por vontade minha (eu fui empurrado para isso aqui), mas, porque isso o produto da idia de se fazer uma universidade aberta para todos, acabei vindo parar neste belo empreendimento. Por que quem descobriu essas runas foi uma colega, s que h muitos anos atrs. E ela se apaixonou por essas runas e afirmava na poca que eram mesmo do Engenho So Jorge dos Erasmos, do sculo XVI. Ficou torrando a pacincia dos professores dela l na USP e dos alunos da FAU, porque engenho coisa para arquiteto, l nos idos de 1950 e poucos. Ento, ela ia l, ns ramos estudantes de arquitetura e dizamos assim: olha l vem a Rodrigues, a Maria Rodrigues, de novo com a histria do engenho e todo mundo desaparecia do grmio, fugia porque ela ia l pedir a ajuda da gente para salvar este engenho... tamanha era sua insistncia. E ela conseguiu uma coisa maravilhosa: que a famlia que era proprietria desta regio, que por sinal, tinha um professor l na universidade, doasse um pedacinho de terra para a USP, salvando isso aqui...ento, doou-se uma parcela pequena (3mil m2) dentro dessa gleba imensa que era tudo floresta. Ento, a USP atravs de seus mais ilustres professores, pesquisadores e cientistas, como o Srgio Buarque de Holanda, o historiador que escreveu Razes do Brasil, ele e o Eurpides Simes de Paula se empenharam em salvar este lugar. Qual a maneira de salvar um bem nacional? pedindo o tombamento do lugar, pelo ainda Servio de Proteo ao Patrimnio Artstico Nacional. E eles, pelo empenho e prestgio, acabaram trazendo o Luis Saia que era o engenheiro/arquiteto responsvel

depoimento

45

por restaurar e preservar os bens culturais brasileiros, ao menos os primeiros, quais sejam: os prdios! De uma maneira geral, qual outro bem importante a no ser a arquitetura? Os documentos escritos. Mas isso nunca foi muito a preocupao do Brasil, no ... agora mesmo tem at os bens imateriais, mas isto tema pra outra conversa... Mas, os prdios sim, h por isso falhas enormes na documentao do Brasil. E ento transportem essa histria para o Engenho. Quando vem para c o Luis Saia e v essas runas, ele resolve rearranjar algumas coisas aqui. Ento, repensa a disposio dos pilares, nitidamente uns pilares que esto indicando que isso aqui foi uma construo de duas guas. Existem fotografias que mostram isso. Ento, este pilarzo que j estava a na poca marca a efetiva interveno. Mas, a entra o problema da nossa ignorncia e da pobreza de informaes que dispomos, pois aquela parte l tem documentao mas, outras partes no. Bom, ento, diante disso o que aconteceu: esse pedacinho de terra foi doado para a Faculdade de Filosofia porque no acreditavam que o governo brasileiro tivesse competncia para cuidar disso. E doaram para essa instituio, e logo depois, chamaram o Luis Saia, que verificou os pilares e resolveu uma coisa interessante: vocs olhem para cima e vejam que no h nenhuma tesoura (alis, vocs sabem o que tesoura?). uma estrutura articulada que vence esses vos, aqui no h isso e quando o Saia chegou aqui, provavelmente no havia esse telhado que olhamos agora.. tanto que a gente chama isso de telhado do Saia, porque o que tinha eram os sinais que havia um telhado, mas at onde ia? Ningum sabe. Mas, verificou-se que o vo era muito grande e no tnhamos mais vigas to grandes como na poca do engenho, ento, criou-se a soluo da tcnica, de no se usar isso aqui. No se usava tesoura nas construes de trabalho, s nas edificaes de igrejas, at hoje. Ento, a tesoura era muito especial... as tesouras so at hoje (eu no sei o que vocs pensam, mas eu reputo) de grande qualidade arquitetnica. Seno vejamos: outra coisa a gente pensar essas questes com os olhos de hoje, com a percepo de um arquiteto de hoje, e mesmo uma pessoa que trabalhasse com construo no sculo XVI. O arquiteto de 40 anos atrs no tinha a mesma preocupao de um arquiteto de hoje em dia. O homem daquela poca abarcava a construo ao seu objetivo social. Ento, a fortaleza no era para ser bonita, mas eficiente. Ento a fortaleza servia ao que interessava. Vocs vejam essa construo aqui, quem trabalhava nela eram escravos, portanto, no se precisava de janelas ou outros adereos. No havia nada. E quando o mesmo construtor chega na igreja: ah! Aqui tudo muda, pois Jesus Cristo ficaria (bom, uma boa parte de vocs catlica e sabe que a hstia consagrada no seu interior precisa de um lugar para ela ficar, no ). Ento, nem a residncia do senhor de engenho teve tanta preocupao esttica como a igreja, a no ser a partir do sculo XVIII. Mas, paralelamente a esta discusso andei pensando sobre algo que queria compartilhar com

46

depoimento

vocs: do ponto de vista da atuao profissional de um arquiteto eu vejo com muito bons olhos a interveno da universidade, em um bem cultural como este. Mas no posso analisar isso de maneira genrica. S posso analis-la de acordo com minha experincia pessoal. O que acontece que a minha gerao alm de ter se criado junto com a criao da Universidade So Paulo, a Faculdade de Arquitetura fundada em 1948 e era uma segunda coisa dentro de uma viso universitria, diferenciada daquela antiga que reinava na antiga Escola de Belas Artes do modelo francs. Ela j se cria dentro de uma viso nova. E veja: esse prdio veio parar nas mos da Universidade, Luis Saia que conseguiu com o Jnio Quadros, governador, o dinheiro para reconstruir este telhado andou intervindo numas coisas a que a gente no tem certeza, mas tambm como a gente no sabia como era antes, fica no talvez, deixa como est. Mas, a veio a ditadura, e ela foi uma tragdia. Porque ela destruiu coisa pra burro e atacou como toda a violncia, ela atacou a inteligncia, a universidade sofreu muito, setores inteiros da Medicina desapareceram e a faculdade de Arquitetura, Filosofia e toda a rea de Sociologia foi dizimada. E isso evidentemente conduziu ao estancamento das preocupaes em torno deste prdio. Veja: o intuito da poca era sobreviver, no s fisicamente, mas fazer sobreviver todo um esforo de cultura que to difcil de se guardar. Porque se voc derruba uma arvore de 500 anos, ter que esperar outros 500 para ter outra, mas no caso da cultura no. No plano da cultura era inda pior. E o que a ditadura fez aqui foi mais ou menos a mesma coisa. Quem comeou a preservao no Brasil foram os arquitetos modernos. paradoxal, mas assim mesmo! Os arquitetos modernos tinham uma compreenso de que era preciso estudar cientificamente o edifcio. No sabiam fazer, mas tinham a preocupao e comeam a fazer estudos mais rigorosos, a pedir para que os historiadores fizessem pesquisas, tais como as de Srgio Buarque de Holanda que trabalhou sempre por conta dele, por prazer. Ele trabalhou com o patrimnio, e assim, essas runas foram avalizadas pelo Srgio Buarque. Ele era consultado pelo Servio do Patrimnio Histrico, Artstico Nacional sobre as obras, sobre o que valia a pena proteger. Infelizmente, cometeram erros, como todos ns, mas em geral correu tudo bem. E precisamos lembrar no que acertaram no no que erraram. De maneira que esta anlise minha no pode ser genrica sem levar em considerao todos estes episdios. Mas, voltando ao Engenho, h ainda o forte apelo que a educao tem encontrado neste espao. Retomando ento, os projetos desenvolvidos aqui tm focos diferenciados, escolas de ensino fundamental so privilegiadas nos programas dos educadores, programas de visitas diferenciados do o tom semana a semana. H, portanto, uma legtima preocupao e uma efetiva presena dos professores que decidem o que abordar. Eu fico at pensando como eu gostaria de ser recebido numa prxima vez que eu viesse aqui. Desculpe agora, mas vou ser crtico! Eu sei o que eu gostaria de

depoimento

47

encontrar aqui sim! O que eu no encontrei! Claro, quando eu cheguei aqui pela primeira vez (risos) Alis, eu vim para c a contra gosto, voc veja a gente comete um erro na universidade.. que o falar. Falou, os caras te pegam e enviam para os lugares e eu fiz uma proposta de preservao e o resultado foi que me puseram como gestor durante alguns anos. Isso foi muito bom! Ento, foram quatro anos. Depois me aposentei e ento no podia continuar. Eu gostaria de encontrar aqui a Base Avanada pronta e funcionando. O que isso: funcionando significa dando apoio para esta construo aqui, isto , com exposies permanentes e com exposies temporrias, com palestras, monitores e educadores como so vocs! E com publicaes de alto nvel, porque cultura no se faz com 10 merris! preciso muito dinheiro. Por isso eu digo, que beleza que livros bons possam ser postos a disposio das pessoas aqui, isso vai me orgulhar muito. Ler j um processo de desenvolvimento. Ento, essa coisa que eu espero encontrar aqui. Nesse sentido, eu acho, quando estiver funcionando a base avanada, ns teremos que trazer os cientistas brasileiros para c para pesquisar. Para terminar, gostaria de falar um pouco sobre o projeto desta construo, a Base Avanada de Cultura e Extenso. O meu ponto de partida foi o seguinte: o que importante e, isso foi levado em considerao no projeto, fazer a seguinte questo: at quando a gente intervm? At tal interveno no obstruir o objeto que queremos. Ento minha preocupao fundamental foi enterrar ao mximo o prdio, de maneira que esta construo que est elevada (as Runas) no fosse prejudicada por um obstculo qualquer. Uma edificao que no concorresse na paisagem, que ele no ficasse na frente das Runas. Por isso at a caixa dgua no vai ficar l, mas sim aqui em cima, escondida no meio do mato, para evitar a perturbao do que se v. A segunda coisa que eu me preocupei foi voltar o interior do edifico para as Runas. Ento, em todo o lado voltado para as Runas voc sempre visualiza o engenho. Isso faz parte da educao das pessoas que freqentam o prdio, pois eles sempre olharo para as runas, sempre presente, e, em terceiro lugar, evidentemente, pensei num mnimo de conforto para as pessoas. Pensei ento, em impedir que este prdio tivesse (como muito comum aqui) uma rea ociosa. Ento, ela foi pensada para um local que abrigasse os pesquisadores e outro que abrigasse a todos: um auditrio que abrigasse a todos. Vejam, para mim no, mas para vocs que esto no sol isso pssimo. Pensarmos na comunidade carente a em volta, a escola do lado, etc e voc pode me perguntar: voc pode garantir isso? claro que no posso, mas precisa-se pensar nisso. Pois bem: essas eram as premissas deste projeto. E esta premissa foi aceita pela USP. Tanto que no comeamos a construir pela parte administrativa, mas pelo auditrio que garante a comunidade aqui dentro. O resto uma questo de qualidade de construo que tem que ser boa! Eu estudei numa escola que era o Caetano de Campos que tinha um auto-falante em cada sala e quando terminava a aula, um bedel batia com uma madeirinha e o som avisava que acabava aula, agora, se for hoje, h uma sirene absurda. Veja: se tratar as pessoas com respeito

48

depoimento

voc ter como retribuio, respeito tambm. isso que queremos aqui: uma troca disso. Teremos que fazer o mesmo esforo que as pessoas que montaram a universidade e fizeram os engenhos: exigindo coisas boas. Eu agradeo a ateno de vocs, e um dia a gente se encontra de novo.

depoimento

49

v

v

arquiteto bechara abDalla Pestana neves

(...) bem cultural no preservamos para ser um cenrio, ns preservamos para que tambm tenha um uso, porque s o uso garante a sustentabilidade de qualquer proteo.Bechara Abdalla

O trabalho que est sendo desenvolvido pela Universidade muito importante abrindo as portas do Engenho e trazendo a comunidade para conhecer e defender este importante Bem Cultural. Tenho uma relao muito forte com esta rea. Represento a Prefeitura Municipal de Santos, atravs de um Termo de Compromisso Tcnico, que h com a Universidade de So Paulo, visando uma srie de questes desenvolvidas aqui e que necessitam de aprovaes e providncias por parte do rgo pblico. Estou no momento na presidncia do Conselho de Proteo ao Patrimnio Cultural de Santos, Condepasa que um colegiado municipal protetor de Bens Culturais do municpio de Santos. O universo de imveis que trabalhamos no municpio fantstico. Na realidade e aqui eu quero focar as relaes com o Engenho eu, particularmente, me sinto vontade na coordenao dos trabalhos, por parte da Prefeitura, porque sou um funcionrio de carreira h 22 anos e, enquanto apreciava as imagens dos cadernos de apresentao do engenho, me vem mente o incio deste processo. Essa caminhada foi longa. Envolvi-me muito a partir de 1985 quando foi iniciada uma ampla discusso sobre este assunto. Estamos em rea urbana desta cidade e tnhamos proprietrios das reas vizinhas quando foi iniciado um processo de negociao e compromissos, no sentido de conseguir atender a uma solicitao da Universidade de So Paulo que sempre pleiteou a ampliao da rea envoltria. Temos aqui o limite das Runas, aproximadamente 3.250 m, mas sempre colocado pela Universidade o interesse em ampliar esta rea face a necessidade de desenvolvermos um trabalho competente e abrangente, principalmente quanto arqueologia. Da o processo de negociao com o proprietrio vizinho no sentido de adquirir toda a rea no entorno das runas que vocs podem ver hoje, cercada por alambrados, possibilitando que a Universidade tivesse condies de melhor desenvolver seus projetos, como alis esto realizando com bastante brilhantismo. Estamos agora num processo que muito interessante porque havia uma reivindicao antiga por

depoimento

51

parte da Prefeitura para que tivssemos as portas do Engenho abertas e, durante um longo perodo, isso no foi possvel porque tnhamos uma situao de instabilidade, eram partes das Runas que no estavam estabilizadas e vegetao que estava muito alta. E hoje estamos aqui aps estas inmeras conquistas. E por isso que estou muito contente, porque vejo que estamos chegando onde tanto sonhvamos. Estarmos abrindo as portas para grupos de pessoas interessadas, que embora no seja em grande nmero vital, pois somos importantes agentes multiplicadores no sentido de divulgar um pouco desta histria, trazendo as pessoas para conhecer este lugar, cuidando dele. O santista de modo geral conhece muito a orla, as praias, a Zona Leste da cidade, e pouco conhece a Zona Noroeste. O Engenho dos Erasmos a primeira indstria brasileira e representa o primeiro ciclo econmico que o Brasil teve: o do acar. Precisamos desenvolver trabalhos que tragam as crianas para c, para conhecerem este processo, pois a partir deste contato eles podero se transformar tambm em agentes multiplicadores visando preservao deste importante Bem Cultural. Costumamos achar bonito quando temos bens preservados e constatamos que os rgos pblicos esto fazendo a sua parte, sim, mas de responsabilidade dos rgos os instrumentos legais que viabilizem a recuperao e preservao, mas principalmente papel da sociedade, da nossa comunidade, a luta pela preservao de nossos bens culturais. Ns s vamos realmente conseguir preservar se todos estivermos juntos nesta batalha, cada um na sua rea, mas trabalhando em conjunto. Caso contrrio, sem a populao junta nisso, ser muito difcil. Agora, como um arquiteto que luta pela preservao h pelo menos duas dcadas percebo mesmo um avano muito grande! Nesse sentido, merece ser registrado um triste exemplo quando tivemos uma ao danosa, h anos atrs, pela utilizao de mquinas que acabaram por interferir de forma comprometedora todo o solo onde hoje est sendo construda a Base Avanada. E ns tivemos um problema grave a despeito de conseguirmos reverter a situao. Se hoje temos 43 mil m de reas recebidas em doao devido, no boa vontade dos empreendedores vizinhos, mas tambm s tratativas decorrentes da ao dos rgos Pblicos que determinaram compensaes ambientais face ao sinistro ocorrido. Foram criadas reas para a preservao do patrimnio cultural considerando a necessidade de ampliarmos as reas envoltrias as runas, assim como preservarmos o cone de visualizao mapeando reas no edificantes. Patrimnio Cultural tambm uma questo econmica e social. Santos, hoje, comea a ganhar divisas com isso. Estamos recuperando nossos bens culturais e temos nossos acervos divulgados em todo o territrio nacional e no exterior. Com isso se consegue trazer para a Cidade turistas o ano inteiro e no apenas no vero, em que a procura enorme por nossas maravilhosas praias, mas divulgarmos Santos alm das praias e dos jardins, que passa pelo conhecimento do municpio como um todo. Estamos caminhando muito positivamente: com aperfeioamento de equipes tcnicas, legislao, enfim, um conjunto de iniciativas que valorizam todo o territrio santista destacando o nosso Centro Antigo que,

52

depoimento

atravs do Programa Alegra Centro, que tem como objetivo Revitalizar e Desenvolver Economicamente a Regio Central Histrica de Santos vem contabilizando resultados extremamente positivos. Se eu fizesse um paralelo entre as condies desta rea a 15 ou 20 anos atrs, destacando as pssimas condies das runas e a falta de infra-estrutura, hoje, aps o belssimo trabalho que est sendo desenvolvido e administrado pela universidade, com a estabilizao das runas, melhoria da acessibilidade e agora com a construo da Base Avanada da USP j possvel abrir as portas comunidade e permitir que as pessoas, muncipes, turistas, enfim, qualquer cidado possa conhecer e se encantar por este belssimo Patrimnio com segurana e conforto. Para finalizar, saber que h pessoas pensando e protegendo este bem e elaborando projetos que guardem este local um alento. O prefeito Joo Paulo Tavares Papa est empenhado em contribuir para que este local seja cada vez mais valorizado, e tem a certeza que est sendo realizado um grande trabalho. Se eu estivesse vindo aqui hoje, pela primeira vez, estaria tendo a mesma satisfao que estou tendo agora, pois apesar de j ter vindo aqui diversas vezes, sempre me surpreendo e fico cada vez mais otimista. Sonho em poder chegar aqui e conseguir ver os professores da universidade e das escolas da regio trabalhando, fazendo suas pesquisas arqueolgicas ou no, mas permitindo que todos possam acompanhar: o importante ver os trabalhos sendo realizados. Como digo sempre: bem cultural no preservamos para ser um cenrio, preservamos para que tambm tenha um uso, porque s o uso garante a sustentabilidade de qualquer proteo. Muito obrigado.

depoimento

53

IV.

cartas, planos e tomada de conscinciaDeveriam ser mobilizados a criatividade, os ideais e os valores dos jovens do mundo para forjar uma aliana mundial orientada a obter o desenvolvimento sustentvel e assegurar um futuro melhor para todos.Carta do Rio, Conferncia Geral das Naes Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento. Junho de 1992.

por Andr Mller de Mello

O Monumento Nacional Runas Engenho So Jorge dos Erasmos, rgo da Pr-Reitoria de Cultura e Extenso Universitria da Universidade de So Paulo, hoje inestimvel ponto de convergncia de olhares e de sistemticas pesquisas e atividades culturais que visam aproximao, intercmbio e entendimento entre a trama comunitria de interessados, autoridades, grupos e indivduos envolvidos nas atividades de conservao. Est sediado na Base Avanada de Cultura e Extenso Universitria, cuja inaugurao de sua primeira fase a reunio destes artigos vem registrar e comemorar. Apresentando-se como um dos raros conjuntos histrico-arquitetnicos remanescentes da ocupao europia em solo brasileiro, assume, inevitavelmente, um papel marcante tambm para os desafios da educao ambiental, alm da patrimonial. Tombado pelos rgos preservacionistas em todos os mbitos e identificado como lugar de resistncia e de memria, testemunho passvel de ser encarado sob distintos ngulos, possui ainda configuraes paisa-

gsticas, estticas e afetivas, o que nos leva a considerar constantemente a profunda interdependncia que h entre o patrimnio cultural e o natural. Situado estrategicamente, quando da iniciativa de Martim Afonso em construir, em 1532, o engenho de acar um dos primeiros e o mais antigo assim preservado suas runas encontram-se no macio insular de MonteSerrat-Santa Terezinha, no centro da Ilha de So Vicente, em Santos. Tais runas esto inseridas entre os poucos e representativos remanescentes da floresta atlntica, cuja paisagem primitiva tal bioma ocupou, imponente em biodiversidade, mesclado aos manguezais e restingas. Graas ao material utilizado na construo do engenho blocos semitalhados de rochas muito resistentes, provenientes de pedreiras quinhentistas das cercanias ainda resta um conjunto ltico no qual possvel observar tcnicas construtivas da Idade Mdia.

Cartas, planos

e tomada de ConsCinCia

55

Tudo indica que a dita fbrica de acar, ao contrrio das engenhocas que surgiram depois, utilizou tecnologia avanada para a poca, na forma de uma moenda movida pela fora das guas, de acordo com registros documentais, vestgios materiais e uma evocativa queda dgua, hoje um tanto desfigurada, presente na soleira rochosa adjacente construo.

questionar, ainda enfrentam dificuldades prticas dentro das mquinas administrativas de mbito federal, estadual e municipal. Ameaas de desflorestamento e degradao atingem tanto florestas de reservas legais, onde a sua diversidade biolgica oferece recursos diretos como bancos genticos ou biomassa, quanto fragmentos de mata secundria cujos maiores valores so os indiretos, como o controle da Justamente tambm por estas caractersticas eroso do solo, da sedimentao dos cursos geomorfolgicas e fitogeogrficas mpares, que dgua, a manuteno de microclimas regiodo maior amplitude leitura e interpretao nais, entre outros. Ambos os casos merecem paisagstica do Monumento Nacional, a USP, ateno das autoridades responsveis por sua em parceria com as Secretarias da Educao proteo e das comunidades beneficiadas por de Santos e So Vicente, atravs de conv- sua manuteno. O Monumento Nacional em nios firmados, e em parceria tambm com a questo est unido de forma muito clara s Universidade Catlica de Santos via Termo duas situaes, dada sua estreita ligao histde Cooperao Tcnica, vem desenvolvendo ria e espacial a uma pequena ilha de floresta aes educacionais mltiplas e sistemticas. da regio dos morros, alm da proximidade do Os enfoques, diversos, apontam desde o incio Parque Estadual da Serra do Mar, contendo a das atividades para aspectos histricos, cultu- maior rea contnua de mata atlntica preserrais, produtivos, legais, urbanos e arqueolgi- vada no pas. cos, alm dos ecolgicos e ambientais. Estes ltimos abordados de forma a transformar o As metas propostas nas gestes curatoriais local em laboratrio para o estudo e o exerccio das Runas durante os ltimos anos incluindo, de dilogos a respeito das relaes seculares entre inmeras outras, obras de consolidao do homem com o seu ambiente. Relaes do conjunto e de seu entorno, publicao de construdas e, vale lembrar, ainda em constru- estudos, debates e pareceres sobre as alternao, pois o futuro dos remanescentes de mata tivas para perenizar o bem, contatos sistematlntica, de suas guas e do conhecimento ticos com rgos preservacionistas, projetos emprico das comunidades ligadas a eles ainda educacionais, aproximaes com a comuniest em jogo. dade, investigaes cientficas, levantamentos de flora e fauna, articulaes com as secretaMecanismos legais de proteo do ecossis- rias municipais visando a criao do Parque tema mata atlntica, cuja importncia para as Municipal nos arredores, intercmbios com a atuais e futuras geraes no se ousa mais comunidade cientfica dentro e fora da USP

56

Cartas, planos

e tomada de ConsCinCia

esto em sintonia com as recomendaes maiores das chamadas Cartas Patrimoniais, documentos dos quais o Brasil signatrio e que resultaram de conferncias sob iniciativa da Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura. Na consagrada Recomendao de Paris, de 1962, na qual se discute a administrao de paisagens e stios, o Conselho Internacional dos Museus j considera a negligncia do homem em relao beleza e a carter das paisagens e dos stios que fazem parte do quadro natural de sua vida registrando , que tais aes empobreceram o patrimnio cultural, esttico e at mesmo vital de regies inteiras O documento diz ainda que esse . fenmeno tem repercusso no apenas no valor esttico das paisagens e dos stios naturais ou criados pelo homem, mas tambm no interesse cultural e cientfico oferecido pela vida selvagem e que altamente desejvel estudar e adotar as medidas necessrias para salvaguardar a beleza e o carter das paisagens e dos stios em toda a parte e sempre que possvel O desmatamento, a poluio do ar e . da gua e a captao de nascentes so citados como atividades suscetveis de causar dano s paisagens e aos stios, solicitando uma proteo especial que deveria ser assegurada s proximidades dos monumentos . As sistemticas reunies de articulao entre secretarias municipais de Santos e organizaes que desempenham papel preponderante nas decises urbanas, encontros mensais

demandados a partir de iniciativa da USP, visam conceder status de Unidade de Conservao rea de mata em torno do stio, cuja administrao seria do prprio municpio. Desta maneira a fragilidade da floresta, invadida aos poucos, porm incisivamente, ganharia novas alternativas legais de proteo e de uso pela comunidade, carente de espaos destinados ao lazer e contemplao da natureza. Tal iniciativa apia-se no conceito de ambincia dos conjuntos histricos ou tradicionais, colocado na Recomendao de Nairobi (UNESCO, 1976) como o quadro natural ou construdo que influi na percepo esttica ou dinmica desses conjuntos, ou a eles se vincula de maneira imediata no espao, ou por laos sociais, econmicos ou culturais , devendo ambos, o conjunto histrico e sua ambincia serem considerados em sua globalidade, como um todo coerente cujo equilbrio e carter especfico dependem da sntese dos elementos que o compem e que compreendem tanto as atividades humanas como as construes, a estrutura espacial e as zonas circundantes O documento segue por concluir . que todos os elementos vlidos deveriam, portanto, assumir,em relao ao conjunto, uma significao que preciso respeitar, devendo ser protegidos ativamente contra quaisquer deterioraes, particularmente as que resultam em uma utilizao imprpria, de acrscimos suprfluos e de transformaes abusivas ou desprovidas de sensibilidade que atentam contra sua autenticidade, assim como provocadas por qualquer forma de poluio. (...) Do mesmo modo, uma grande ateno deveria ser dispensada

Cartas, planos

e tomada de ConsCinCia

57

harmonia e emoo esttica que resultam da conexo ou do contraste dos diferentes elementos que compem os conjuntos e que do a cada um deles seu carter peculiar.

Antes mesmo da criao da ONU, na Carta de Atenas de 1931, o Conselho Internacional dos Museus j adverte que a valorizao dos monumentos passa tambm, entre diversas aes, pelo estudo das plantaes e ornamentaes vegetais convenientes a determinados conjuntos de monumentos e recomenda a colaborao em cada pas dos conservadores de monumentos e arquitetos com os representantes das cincias fsicas, qumicas e naturais para a obteno de mtodos aplicveis em casos diferentes . Com seus princpios reexaminados em 1964, na Carta de Veneza, no II Congresso Internacional de Arquitetos e Tcnicos dos Monumentos Histricos, o 13 artigo deixa claro:Os acrscimos s podero ser tolerados na medida em que respeitarem todas as partes interessantes do edifcio, seu esquema tradicional, o equilbrio da sua composio e suas relaes com o meio ambiente.

utilizada, com planos para incio imediato da segunda etapa. Auditrio, rea de exposies, dependncias com acessibilidade absoluta, escritrios, biblioteca e reserva tcnica estaro em breve disponibilizadas sem que se tenha ferido a paisagem6 e a configurao ideal do conjunto, alm de terem sido respeitadas todas as prioridades visuais em relao ao monumento histrico, ficando o novo prdio bem abaixo da cumeeira do antigo.

o caso dos estudos preliminares para a proposio do projeto da Base Avanada de Cultura e Extenso Universitria, sede do atual rgo nas Runas Engenho, soluo do arquiteto e professor da FAU/USP Jlio Roberto Katinsky para abrigar com dignidade o crescente pblico e os projetos educacionais em andamento. As obras tiveram incio em 2006 e uma primeira parte do edifcio j pode ser

58

Cartas, planos

e tomada de ConsCinCia

Estmulo Pesquisa, ao Ensino e Informao

Compreendemos nossa identidade como uma forma de pertencer e participar.Carta de Braslia, Documento Regional do Cone Sul sobre Autenticidade. 1995.

Alm de trazer advertncias concernentes tcnicas de restaurao, administrativas e legais da gesto de monumentos, as Cartas Patrimoniais versam ainda sobre o papel da educao e o respeito a stios histricos, alm de sua estreita relao com o turismo. De maneira geral, persiste o entendimento de que a melhor garantia de conservao de stios histricos e patrimnios naturais vem do respeito e o interesse dos prprios povos e que atividades educativas deveriam ser estimuladas dentro e fora da escola para despertar o interesse pblico pelas paisagens e stios, como estratgia de salvaguarda. Em outras palavras, uma destinao til sociedade favorece a conservao do patrimnio, enquanto uma poltica de revitalizao deveria converter os conjuntos histricos em plos de atividades culturais, atribuindo-lhes um papel fundamental no desenvolvimento cultural das comunidades circundantes. Um encontro histrico da Organizao das Naes Unidas para o Meio Ambiente deixou tambm para a posteridade um importante documento, a Declarao de Estocolmo (1972), no qual tais consideraes a respeito da educao so aprofundadas

e contextualizadas para as questes ambientais:(...) indispensvel um trabalho em questes ambientais, visando tanto s geraes jovens como aos adultos, (...) a fim de criar as bases de uma opinio pblica bem informada e de uma conduta responsvel dos indivduos, das empresas e das comunidades, inspiradas no sentido de sua responsabilidade em relao proteo e melhoria do meio ambiente em toda a sua dimenso humana.

Nos projetos educacionais implantados no rgo, sem exceo, ocorrem abordagens ambientais quando do estudo e fruio do bem cultural, sendo as cincias da natureza tratadas com mais maturidade e especificidades nos projetos Imaginrio e Prticas Aproximativas do Patrimnio (I-PAPo), no Projeto Educacional VouVolto no Laboratrio de , Memrias e no Portas Abertas . No primeiro citado, destinado ao ensino fundamental, utilizando a pedagogia de projetos e valendo-se de um conjunto de jogos, dinmicas e atividades que visitam durante algumas semanas as escolas, um dos trs temas geradores (ou chaves de compreenso conforme convencionado na publicao do ,

cartas, planos

e tomada de conscincia

59

professor) denominado Espetculo da Natureza , que sugere apreender o Monumento Nacional como cone de uma era de transio e transformaes, emblema de conquistas, empreendedorismo europeu, conflitos, devastao, miscigenao e mudanas de paradigmas ocorridos no incio da era moderna . Prope que revisitemos o perodo em que o engenho foi construdo para lembrarmo-nos do encontro de grupos tnicos, da intensificao do comrcio ultramarino, das obras dos imortais renascentistas, das grandes invenes que revolucionaram a imagem que o homem medieval tinha do Universo. Evoca ainda as transformaes dos hbitos alimentares com o uso das especiarias, a migrao dos vegetais e os avanos a respeito do conhecimento sobre os mares e as novas terras. O I-PAPo, desta forma, trouxe um convite aos jovens para o estudo da biologia das florestas aqui presentes, da geografia descritiva desta singular paisagem, da reviso histrica das outras cincias da natureza como a matemtica e a fsica, com suas divises na contemporaneidade, da histria do cosmo e do desenvolvimento da arte. Ao contrrio, no segundo programa citado, VouVolto, as questes relativas ao ambiente vm tona numa perspectiva que foge da abordagem cronolgica, linear, medida em que, num estmulo interdisciplinaridade, prope ao professor e aos alunos abordar a histria e o ambiente de maneira indissociveis, seja qual for o perodo em discusso. Os ciclos da cana, tanto o do sculo XVI, utilizando mo de obra escrava e exportando riquezas para a metrpole, quanto o atual, com a gramnea no

60

cartas, planos

e tomada de conscincia

nas cartas de Anchieta, paralelamente dificuldade atual das ltimas geraes em manter de p menos de 10% da mata atlntica restante. J no Laboratrio de Memrias, programa que tem a participao de alunos universitrios, a prtica scio-histrica e a emerso da memria que esto em foco, qualificando o discurso de apropriao