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Origens e concepções de autoridade e educaçãopara a liberdade em Paulo Freire:

(re)visitando intencionalidades educativas

São Luis/MAEDUFMA

2009

Gomercindo GhiggiSandro de Castro Pitano

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“A posição dialética e democrática implica (...)a intervenção do intelectual como condiçãoindispensável à sua tarefa. E não vai nistonenhuma traição à democracia, que é tão

contraditória pelas atitudes autoritárias quantopelas atitudes e práticas espontaneístas,

irresponsavelmente licenciosas.”

Paulo Freire

GHIGGI, Gomercindo; PITANO, Sandro de Castro. Origens econcepções de autoridade e educação para a liberdade emPaulo Freire: (re)visitando intencionalidades educativas. SãoLuis/MA: EDUFMA, 2009, 94p.

ISBN 978-85-7862-069-1

CDD 378.17 - Educação

Capa: Imagem de Paulo Freire

Impresso no formato eletrônico - e-book

De acordo com a Lei n.10.994, de 14/12/2004,foi feito depósito legal na Biblioteca Nacional

Este livro foi autorizado para domínio público e está disponível paradownload nos portais do MEC [www.dominiopublico.gov.br] e

do Google Pesquisa de Livro

FICHA DE CATALOGAÇÃO

Projeto gráfico: Paula Trindade da Silva SelbachEdição desenvolvida através do projeto e-ufma

Visite www.eufma.ufma.bre saiba mais das nossas propostas de inclusão digital

Universidade Federal do MaranhãoGabinete da Reitoria - Administração Natalino Salgado Filho

Diretor da Imprensa Universitária: Ezequiel Antonio Silva Filho

Conselho Editorial para esta edição:

Avelino da Rosa Oliveira/UFPel, Balduino Antonio Andreola/UNILASALLE,Beatriz Maria Boéssio Atrib Zanchet/UFPel, Celso Ilgo Henz/UFSM,

Cleoni Maria Barbosa Fernandes/PUCRS, Danilo Rmeu Streck/Unisinos,Elomar Antonio Callegaro Tambara/UFPel,

Fábio Purificação de Bastos/UFSM, Felipe Gustsack/UNISC,Humberto Calloni/FURG, Jaime Zitkoski/UFRGS, Luiz Gilberto Kronbauer/

UNISINOS/UNILASALLE e Odeli Zanchet/IFSUL

Auxiliar de pesquisa: Rogéria Garcia (BIC/FAPERGS)

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SUMÁRIO

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ANUNCIANDO DESAFIOS

FRAGMENTOS HISTÓRICOS EA CONSTITUIÇÃO DA AUTORIDADE:PREPARANDO DIÁLOGOSCOM PAULO FREIRE

Introdução

Tradição: autoridade, liberdade eintencionalidades educativas

Do mundo antigo

Do mundo medieval

Mundo moderno

Observações iniciais

Descartes e a filosofia da razão

Locke: autoridade e liberdade na perspectiva daformação da classe burguesa

Rousseau e a autoridade diante da liberdadenatural, individual e da coletividade

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ANUNCIANDO DESAFIOS

O presente texto objetiva retomar a origem do conceito deautoridade, em sua relação com a liberdade, na biobibliografia dePaulo Freire. A questão que se coloca é: é sustentável a tese dacoexistência da liberdade, da autonomia e da autoridade? A busca,portanto, enfoca e problematiza a possibilidade das pessoas poderemser criativas, autônomas, livres, quando envolvidas em processosde construção coletiva de relações sociais, ante o exercício daautoridade de alguém.

A dimensão ontológica, evidentemente, está posta nestetrabalho, na formulação do presente. Mas o ponto de partida desdeo qual retomamos Freire é a historicidade dos conceitos, em especialde liberdade e de autoridade. Ou seja, a condição histórica na qualos humanos estão inseridos, não determinados, mas condicionados,desde a qual constroem, nos limites da possibilidade queexperienciam, o jeito que vão descobrindo de serem, a cada dia,mais livres, diante da autoridade, é a dimensão a partir da qualdesenvolvemos esta reflexão. E é nesta perspectiva e do contextohistórico que adiante apresentamos que aparece o conceito deautoridade em Freire, afirmando que é necessário, desde a condiçãoposta, não pouco desumana, que a mão esperta do homem interfirana formação das pessoas para a solidariedade e não para oegocentrismo.

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Kant: o imperativo moral e a educação que “faz ohumano ser homem”

Hegel: epistemologia, educação e a realização daHistória

O MOVIMENTO DA LIBERDADE, A SUPRESSÃOE A REINVENÇÃO DA AUTORIDADE E SEUSREFLEXOS CONTEMPORÂNEOS: RETOMANDOFREIRE

Dewey: autoridade ou a tensa relação entreas perspectivas educacionais tradicional enova

Autoridade e liberdade na biobibliografia deFreire

Trilhando caminhos contemporâneos

Freire e a condição de possibilidade da liberdadena necessária presença da autoridade

Freire: cruzando autonomia com a liberdadee a autoridade

Referências

Gomercindo Ghiggi e Sandro de Castro Pitano6

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em que o processo educativo opera pela transmissão e aprendizadodas técnicas culturais produzidas e pertencentes a um determinadogrupo social de referencial simbólico dominante. Como conciliarliberdade individual e projeto coletivo? Enfim, quais os mecanismose as teorias que possibilitam compreender e construir alternativasaos problemas educacionais que enfrentamos, tendo como tarefa agestão democrática do trabalho educativo em meio a tão profundascontradições?

Ao retomar Kant e a sua reflexão em torno do “imperativomoral” que recai sobre cada indivíduo na busca pela maioridadeintelectual e humana através da liberdade, entendemos que esteautor é uma das fontes que pode nos acompanhar na difícil tarefade compreender a dimensão político-epistemológica dos processoseducativos atuais. Então, retomando Kant, ousamos aproximá-lo deFreire desde uma reflexão que cerca o problema da liberdadeindividual e da responsabilidade coletiva, com a sociedade, comprojetos que envolvam outros sujeitos. Freire, no final do século XX,coloca um desafio: de que maneira é possível conciliar liberdadeindividual e a coerção necessária à realização de um projeto coletivo?Kant, já no século XVIII, expõe preocupação semelhante em tornoda liberdade, da liberdade individual e do necessário “imperativomoral”, sempre que o objetivo colocado é construir essa mesmaliberdade, tarefa maior do agir humano. Portanto, há, aqui, um estudode aproximação e distanciamento entre os autores citados quepossibilita voltar à tradição e dela extrair elementos para acompreensão do presente.

Anunciamos, ainda, na abertura desta reflexão, que no tempopresente enfrentamos, com freqüência, a deformação do conceitode coletivo. Como na fala de Adorno (1995, p.129), lidamos comsituações em que pessoas “que se enquadram cegamente no coletivofazem de si mesmas meros objetos materiais, anulando-se comosujeitos dotados de motivação própria...”. Segundo o autor, “inclui-se aí a postura de tratar os outros como massa de amorfos. Umademocracia não deve apenas funcionar, mas sobretudo trabalhar oseu conceito, e para isso exige pessoas emancipadas.”

Talvez o problema posto deva-se ao fato de que os sujeitosenvolvidos mudam, surpreendem, positiva ou negativamente,conforme o comportamento desejado.

Anunciando desafios 9

Na história do pensamento humano, em particular a partir damodernidade, encontramos tanto em Locke como em Kant, porexemplo, a defesa da importância do processo educativo para aformação dos humanos que, inseridos na história, têm a tarefa deconstruí-la. Assim, afirmam os autores: “Acredito poder assegurarque de cem pessoas há noventa que são o que são, boas ou más,úteis ou inúteis, devido a educação que receberam. É daí dondevem a grande diferença entre os homens “(LOCKE, 1986, p. 31-2).Ou, “o homem não pode tornar-se um verdadeiro homem senãopela educação. Ele é aquilo que a educação faz dele.” (KANT, 1996,p. 15). Portanto, está posta a possibilidade de compreensão dahistória humana como luta permanente a favor da emancipação1. Aeducação, por essa razão, torna-se, além de competência humana,uma busca incansável pela superação do estado de ignorância emque se encontram os humanos. A questão que deve serpermanentemente posta em evidência é: por que nem todos oshumanos têm o direito de participar e usufruir efetivamente dosprojetos de emancipação?

É possível afirmar que há intencionalidade educativa nasproduções dos grandes pensadores da humanidade. Se háintencionalidade educativa é porque a educação é tarefa humana e,como tal, exige qualificada e competente presença de outrem,homens e mulheres, educadores e educadoras, para propor direção,organizar, fundamentar, enfim, para pôr em andamento o processode permanente realização da humanidade. Daí, concluímos pelaindispensável presença da autoridade, particularmente legitimada,não apenas pela superação do autoritarismo e da licenciosidade,mas pela ética, num mundo marcado por graves desigualdadessociais, econômicas e culturais e por opressões diversas.

Embora aparentando certezas, questionamos, sempreacompanhados por grandes dúvidas: como conciliar interessesdiversos, expressos por pessoas singulares que participam, nummesmo momento histórico, de determinado projeto de formaçãoque impõe uma universalidade preconcebida? Universalidade que,por ser sutilmente imposta, revela-se opressora, a partir do momento

1 Emancipar, do latim emancipare, equivale a promover alguém a uma condiçãosuperior, superando a dependência em relação a alguma incapacidade estabelecida.

Gomercindo Ghiggi e Sandro de Castro Pitano8

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FRAGMENTOS HISTÓRICOS EA CONSTITUIÇÃO DA AUTORIDADE:

PREPARANDO DIÁLOGOSCOM PAULO FREIRE

Introdução

Para Freire, na teoria dialógica a liderança não tem “o direitode impor arbitrariamente sua palavra”, o que não significa “deverassumir uma posição liberalista, que levaria as massas oprimidas -habituadas à opressão - a licenciosidades”. A teoria dialógica “negao autoritarismo como nega a licenciosidade. E, ao fazê-lo, afirma aautoridade e a liberdade. Reconhece que se não há liberdade semautoridade, não há esta sem aquela.” Para o autor, a “fonte geradora”,que constitui a “autoridade autêntica, está na liberdade que, emcerto momento se faz autoridade.” (FREIRE, 1982, p. 210-11).

Esta é a reflexão que buscamos desenvolver: considerando ahistória humana, objetivamos construir reflexões que deem contada problemática relação e coexistência, sempre tensa, porquehumana, entre liberdade e autoridade, que Freire coloca tambémem relação à disciplina e à autonomia. É o que afirma ao observar aausência de disciplina tanto “no imobilismo, na autoridade indiferente,distante, que entrega à liberdade os destinos de si mesma”. O mesmoocorre “no imobilismo da liberdade, à qual a autoridade impõe suavontade, suas preferências como sendo as melhores para aliberdade.” (FREIRE, 1993, p. 115-6).

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chama a atenção para o perigo do individualismo ou dos processoslicenciosos, o que pode tornar a liberdade individual mecanismo denegação da própria liberdade e/ou da liberdade dos que com elaconvivem. Por esta razão é que uma proposta coerente com aeducação para a liberdade inclui, necessariamente, a discussão emtorno da autoridade, buscando superar tanto o autoritarismo quantoa anomia, autoridade esta que não se alicerça na figura pessoal doeducador, por exemplo, mas em sua atitude ética e competente,conforme Freire (1997), sem deixar-se levar por comportamentosfáceis como os tirânicos. Este processo de “riscos” éfundamentalmente marcado pela criação de condições para que oeducando faça o seu caminho.

A relação entre liberdade e autoridade considera, aqui,fundamentalmente, a condição histórica contemporânea, ou seja,vivemos numa organização social que nega a liberdade de ser sujeitoa muitas pessoas2. Freire fala que o “mundo da cultura que se alongaem mundo da história é um mundo de liberdade, de opção, dedecisão, mundo de possibilidade em que a decência pode ser negada,a liberdade ofendida e recusada.” (id, p. 62). Mais ainda, lembraque “a desproblematização do futuro numa compreensão mecanicistada História (...), leva necessariamente à morte ou à negaçãoautoritária do sonho, da utopia, da esperança.” (id, p. 81).

Afirma, por outro lado, que somos seres “condicionados, masnão determinados. [...] Mulheres e homens, seres histórico-sociais,nos tornamos capazes de comparar, de valorar, de intervir, de escolher,de decidir, de romper, por tudo isso, nos fizemos seres éticos” (id.p.36), afirmação esta que possibilita ao autor rejeitar as teses dainevitabilidade, da inexorabilidade e da fatalidade. Mas como agir afim de que a liberdade criativa dos oprimidos possa ser respeitada?E como admitir a presença da autoridade no campo da construçãode alternativas para a vida digna a todas as pessoas,preferencialmente aos oprimidos? Freire lembra que “não resolvemosbem [...] a tensão que a contradição autoridade-liberdade nos colocae confundimos quase sempre autoridade com autoritarismo, licença

2 Sujeito emergente do movimento histórico, que nega o determinismo das posiçõesestáticas no interior da realidade social, diante da qual o mesmo se coloca comoinfluência possível, não renunciando ao seu papel histórico: produto e produtor demundo.

Fragmentos históricos e a constituição da autoridade 13

A liberdade, é razoável admitir, é uma conquista do serhumano ao longo do seu amadurecimento na história. O ser humanoaprende a ser livre. Mesmo assim, é fundamental admitir, pelaeducação, que a conquista da liberdade é tarefa permanente e desdeo que o processo pedagógico legitima-se e tem um critério para asua realização e avaliação. Mas, teria o ser humano liberdadeincondicional ou viveria em determinismo absoluto? Na perspectivada liberdade incondicional, o humano poderia escolher qualquer atopara realizar, independentemente de constrangimentos externos.Na perspectiva determinista, no entanto, o ser humano sofreriaconstrangimentos internos e externos e apenas teria a ilusão deescolha livre.

A perspectiva dialética de liberdade pode ajudar a superar oimpasse acima exposto, ou seja, o ser humano encontra-se envoltoem determinações, mas enquanto ser consciente, (re)conhecendo asituação de contradição em que se encontra, é capaz de atuar sobrea realidade e operar mudanças. A questão, portanto, resolve-se,como afirma Freire, no campo da experiência da prática humana.Mesmo admitida a tese de que o ser humano é ontologicamentevocacionado à liberdade, a mesma é tarefa e construção cotidiana.

O texto que busca refletir a problemática da autonomia desdeFreire, na próxima etapa deste trabalho, retomará a discussão daliberdade, oportunidade em que buscamos mostrar que a criançafaz longo aprendizado da liberdade para chegar à autonomia1. Numprimeiro momento a criança aceita as normas postas pela autoridade,seja ela familiar, religiosa ou escolar. A fase da denominadaheteronomia é superada pela percepção racional do mundo atravésda abstração e da reflexão crítica, tornando-se capaz de revisarvalores herdados e implementar mudanças. A passagem daheteronomia para a autonomia, então, significará um processo deconstrução da liberdade individual de cada indivíduo. Mas Freire

1 A autonomia concebida como relativa, jamais plena, constitui o princípio fundanteda atividade do sujeito que se volta para a própria conservação. Conservar-seinclui defender-se, em qualquer situação, seja de uma agressão física iminente, oude uma situação de opressão, quando o sujeito, auto-referente, investe em seupróprio interesse. É quando afirma a esfera do eu, referência única que faz, mas,ao mesmo tempo, integra o nós, correspondentes outros, com os quais nosconstituímos.

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Mas, estará a liberdade sujeita às condições de possibilidadede sua existência? Ou será ela constitutivamente presente noshumanos desde que eles se reconheceram como humanos, ou seja,a partir do olhar, da palavra que dirigem ao seu semelhante, noreconhecimento do e com o outro, na elaboração cultural que vãoinstaurando? Fato é que no plano da ação a afirmação ou a negaçãoda liberdade dá-se desde a ausência ou a presença da coação. Naausência de coação ou da violência externa é que se afirma que ohumano é livre. Coagido ou não livre é o humano quando forçado aagir de maneira contrária à sua vontade ou é impedido de realizar oque deseja. Parece que a ausência de coação é como que umacondição necessária, mas não suficiente para o exercício da liberdade.A ausência de toda a coação ou condicionamentos externos e, damesma forma, a possibilidade de ação totalmente livre por parte doindivíduo, não são possíveis dada a finitude e a condição históricaem que vive o humano. Mas há a condição de adesão consciente avalores propostos que, no caso do educando, por exemplo, é parteconstitutiva de sua formação, o que possibilita, ao mesmo tempo,uma interferência externa na produção da sua consciência de sujeitoe uma adesão consciente a valores entendidos como legítimos.

Uma das questões relacionadas às condições de possibilidadeda liberdade dos seres humanos é, conforme o próprio liberalismoclássico, a justa articulação entre os poderes da sociedade e os doEstado e a consequente instauração da autoridade política. É aquestão do jogo-limite entre a liberdade pessoal dos indivíduos e anecessária autoridade do Estado ou qualquer outra instituição socialpara a garantia das liberdades individuais. É a grande discussão quese instalou na Modernidade, conforme adiante retomamos desdeLocke, um dos principais sistematizadores da constituição dasociedade civil a partir da criação do Estado como representante daautoridade mediadora na sempre conflituosa relação entre oshumanos. A tese defendida é que sem a autoridade, de um lado, aliberdade tende ao extremismo do livre arbítrio e, de outro, torna-se frágil, inconsistente e restrita a grupos ou indivíduos cujas posiçõesna sociedade têm, na relação de poder, hegemonia.

O mundo humano é essencialmente tarefa cultural, ou seja,é desafio permanente para a reconstrução do já construído e aconstrução de novas práticas culturais, parte integrante do mundo

Fragmentos históricos e a constituição da autoridade 15

com liberdade.” (id, p. 68). Por isso é que o autor fala que a liberdadeé “uma conquista, e não uma doação [...] ninguém tem liberdadepara ser livre: pelo contrário, luta por ela precisamente porque nãoa tem. Não é também a liberdade um ponto ideal, fora dos homens,ao qual inclusive eles se alienam.” (FREIRE, 1982, p. 35).

Entendemos que Freire chama atenção para o processohistórico a partir do qual é possível identificar a negação sistemáticada liberdade a muitas pessoas, afirmação que embasa a sua reflexão:“é que esta luta não se justifica apenas em que passem a ter liberdadepara comer, mas ‘liberdade para criar e construir, para admirar eaventurar-se [...]” (id, p. 59-60).

Portanto, a liberdade é dimensão exclusivamente humanaporque envolve decisão. É no fenômeno humano que a liberdadetem sentido, ganha estrutura e é possível identificar a sua gênese eaté a sua negação.

Das afirmações acima derivam questionamentos: todos oshumanos sempre foram ou são livres? A consciência da liberdade ouda sua ausência é fundamental para que os humanos possam refletira respeito da sua própria história. Isto é, a consciência daspossibilidades e dos limites de dispor de si, com os outros, para acriação no mundo em que vivem, é condição indispensável para queos humanos possam agir conscientemente na história. Essa é adimensão dialética da busca desperta e livre da liberdade, ou seja,“os homens [...] porque são consciência de si e, assim, consciênciado mundo, porque são um ‘corpo consciente’, vivem uma relaçãodialética entre os condicionamentos e sua liberdade.” (id, p. 105-6).

Mas ocorre que o exercício da transgressão do limite, daconstrução de possibilidades criadoras relativas ao ato de poder disporde si, dá-se em situação relacional. Então, o que está em jogo é acondição de possibilidade da liberdade, ou seja, necessária se faz areflexão em torno dos modelos ou ações “coletivizadas” e/ou ainfluência da opinião pública e dos meios de comunicação na formaçãoda consciência das pessoas, com a criação de processos de controlee de criação de ideologias, situações em que a liberdade pessoal,social, psicológica e moral, progressivamente diminui. O que énecessário admitir, segundo Freire (1982, p. 94), é que a “[...]liberdade não pode ser pretexto para a manipulação, senão geradorde outros atos de liberdade. A não ser assim, não é amor”.

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de limites à liberdade humana, são, também, condição depossibilidade para o tornar-se livre do humano. Limites epossibilidades: é nesta aparente aporia que a possibilidade da açãolivre ganha sentido e viabilidade. Há um jogo tenso e dialético entreo que poderíamos denominar opções negativas e opções positivasdiante das possibilidades de liberdade. A negatividade da liberdadeconsiste em um indivíduo fazer o que entende ser correto realizar,independentemente dos outros ou, ainda, buscar a realização dedesejos individuais. A positividade da liberdade encontra-se na açãolivre e consciente de indivíduos na relação com os outros, naconstrução desperta da autonomia e das liberdades singulares.

Conforme Mounier (1976, p. 109 e ss), importante referênciapara Freire, “a liberdade não é uma coisa”, mas é existenciada porquem, na determinação histórica a que é submetido, pode decidir-se projeto, capaz de mudar os rumos da história que vive. Por isso,liberdade é conquista e não manifestação espontânea, da mesmaforma que a liberdade absoluta ou é criação ideológica de forças a-históricas ou é mito. Sem a defesa da liberdade na condição históricaem que ela se desenvolve não há defesa da liberdade abstrata. Estaé, sim, referência para a defesa das liberdades cotidianas. Para tanto,é indispensável a construção da linguagem da possibilidade que “...comporta a utopia como sonho possível...” e não “o discurso neoliberal[...], segundo o qual devemos nos adequar aos fatos como estão sedando [...], como se não devêssemos lutar [...].” (FREIRE, 1994, p.90-1).

A liberdade, tanto considerada em si como em sua história,para a filosofia em particular, sempre foi uma discussão complexa.Em si mesma, foi e é entendida, em muitas situações, como apossibilidade de autodeterminação, ausência de interferências,libertação de impedimentos, possibilidade de realização denecessidades e autonomia4. Na sua historicidade, é possível distinguira liberdade privada ou pessoal, a pública, a política, a moral, a social,

4 A libertação implica que devemos, antes de tudo, considerar como ponto de partidaa análise histórico-existencial da condição humana, reconhecendo oscondicionamentos culturais e estruturais que entravam a realização de um projetopessoal e comunitário efetivo, de igualdade, justiça e solidariedade. É um vir-a-serque passa, necessariamente, por um complexo processo de superações, elementarespara a sua obtenção, sem limites ou ponto final.

Fragmentos históricos e a constituição da autoridade 17

em sociedade. É a dimensão de inacabamento3 do humano, mesmoque sejamos levados a reconhecer condicionamentos diversos. Aação humana livre dá-se quando os humanos agem conscientemente,ou seja, quando sabem o que fazem e por que fazem o que fazem,mesmo enfrentando os limites que as relações sociais impõem.

Discutindo a questão da liberdade, um dos temas centraispara a filosofia é: como é o ser humano para poder ser livre? Ou,como se constituem o mundo, a natureza, a cultura para que a açãohumana livre, nos limites das possibilidades, seja viável?

O ser humano é tanto mais livre quanto mais responsávelfor, ou seja, quanto mais razão inteira (não instrumental!) houverna constituição dos atos praticados. Assim, o humano, como ser derazão, é um ser capaz de ser livre. É pela racionalidade (sem negara dimensão da afetividade, por exemplo, presente na dimensão aquitematizada) que o humano torna-se capaz de transcender o mundoda cultura e da sociedade já estabelecidos, enquanto instânciaslimitadoras, reconhecendo que é nas situações-limite que estão aspossibilidades de realização.

Em relação à dimensão liberdade e situação ou à relaçãoentre liberdade, contingência e determinismos, a reflexão gira emtorna da impossibilidade da liberdade sem limites. Ser livre é poderagir num mundo posto em determinada situação, composta deobstáculos, com existência apenas se referidos à liberdade. Ou seja,sem intencionalidade e projeto não há como algo ser consideradoobstáculo à liberdade. A questão é, portanto, o humano ante o mundojá dado: material, biológico e natural; o tempo e a história; oscondicionamentos culturais etc. Mas tais situações, porque já dadas,são desafios à ação humana. A liberdade é construída e saboreadanas ações ante os determinismos naturais e sociais.

A influência da cultura sobre os ideais, individuais e/oucoletivos, é bastante acentuada. A cultura, condição para a nossahumanidade, é, também, limite. Sociedade e cultura, na condição

3 O inacabamento se revela abertura ao mundo histórico e, polifonicamente, construído,que possibilita ao homem se tornar sujeito em processo de vir-a-ser, aonde cadaum vai “se complementando e se construindo nas suas falas e nas falas dos outros”(GERALDI, 1996, p.19).

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Tradição:5 autoridade, liberdadee intencionalidades educativas

Do mundo antigo

À medida que perguntamos pela origem do conceito deautoridade, particularmente em Freire, ou, de onde vem a autoridadede ou em Paulo Freire, entendemos que é imperioso revisitar tempose espaços, dos quais existem registros, para entender o modo comorelações sociais e particularmente processos formativos sedesenvolveram.

A instalação de formas de governo encarregadas de organizaras relações sociais, da qual falamos anteriormente, não anula a lutapermanente dos seres humanos por liberdade, nem sempreadministrada pelo Estado. É o que aparece na organização de relaçõessociais do mundo grego, por exemplo, quando se institucionaliza aluta dos humanos contra a ignorância. É o que de forma contundentenos mostra Sócrates, para quem o homem é mau por ignorância. Asua transformação em ser bom, sábio e virtuoso é adquirida “pelaextração da verdade de dentro de si próprio”. É o parto das idéias oua maiêutica, método ou “atitude epistemológica” que tem no diálogocom seus discípulos o caminho para chegar à verdade. E é, também,o que confere autoridade e liberdade aos humanos, liberdade namedida em que há superação do estado de ignorância, e autoridadequando, pela maiêutica/diálogo, o mestre desafia, problematiza ooutro/discípulo para que abandone a situação de ignorância em quese encontra. Os diálogos socráticas mostram o quanto é vigorosa ainterferência do mestre na formação do discípulo.6

A interferência na formação humana passa pela organizaçãoda sociedade. E foi com os gregos que nos acostumamos acompreender a democracia como a forma de governo na qual opovo, titular da soberania, ou a exerce diretamente ou o faz pormeio de representantes, sendo, esta última, a forma mais legítima

5 Tradição aqui entendida não apenas como conjunto de elementos culturais produzidospelo mundo antigo e medieval. Trabalhamos aqui com o sentido amplo ehermenêutico do termo, ou seja, como componente constitutivo da historicidade ecompreensão humanas, exigência para a localização crítica no presente.

6 Os mesmos diálogos que inspiraram Freire:”aprendi o diálogo epistemológico como velho Sócrates...” (in ARAÚJO FREIRE, 1998, p.36)

Fragmentos históricos e a constituição da autoridade 19

a liberdade de ação, de comércio, de palavra, de culto, de expressãoetc. Daí conceitos como livre-arbítrio, autonomia, dever,determinação, determinismo etc., fazendo parte, confusamente, denossos cotidianos.

Apresentados alguns apontamentos sobre liberdade, com asquais a filosofia tem se ocupado historicamente, atemo-nos a“momentos” históricos, caracterizadores, acreditamos, da condiçãode compreensão e de práticas da liberdade em nossos dias,especialmente a compreensão que dela temos através de processosde escolarização, sempre em sua relação com o exercício daautoridade. Assim, considerando a reflexão até aqui anunciada, naprimeira parte deste capítulo buscamos apresentar alguns elementoshistóricos que possibilitem compreender o conceito de autoridade esua relação com liberdade e autonomia. Partimos de umquestionamento: qual a origem do conceito de autoridade em Freire?Ou, de onde vem a autoridade de ou em Freire? Buscamos, na históriada constituição do conceito, indicadores de respostas às questõesacima.

A autoridade, desde a sua constituição histórico-etimológica,no plano das relações entre as pessoas, deve visar o bem e ocrescimento dos que a ela estão subordinados: é o que sugere overbo latino augère, que dá origem ao termo autoridade, ou seja,trata-se de aumentar, fomentar, promover a capacidade de fazercrescer, de dar origem a mais, capacidade essa resultante de algomais em relação ao posto ou conquistado. O verbo, ainda, refere-sea autorizar, a ajudar alguém a se tornar autor. Ou seja, a autoridadeata-se ao exercício do poder que alguém adquire através dequalidades que demonstra na defesa do grupo ou destacando-seem relação ao conhecimento que disponibiliza aos demais.

Por outro lado, a constituição da autoridade formal deu-se,historicamente, por meio da instalação de formas de governoencarregadas de organizar as relações sociais.

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É um projeto iluminista que dará suporte ao mundo ocidentalmoderno, em que pese as críticas a tal modelo de compreensão eorganização da vida humana. É legítimo afirmar, que Platão pleiteiauma teoria aristocrática segundo a qual a autoridade deve pertenceraos melhores, seguindo critérios da natureza, reforçada peloconhecimento que os humanos são capazes de adquirir. Por essarazão Platão divide os homens em dois grupos: os capazes de setornarem filósofos e os que não o são. Os primeiros são movidos poruma tendência natural à verdade. Os segundos nada têm em comumcom a filosofia. Portanto, a divisão entre os destinados a exercer aautoridade e os destinados a sofrer seus efeitos é realizada pelaprópria natureza. A educação dos filósofos não tem outra tarefasenão salvaguardar e desenvolver o que a natureza já estabeleceu.

Essa radical desigualdade dos homens como fundamentonatural da autoridade é também a doutrina de Aristóteles (sd.): “Aprópria natureza ofereceu um critério discriminativo fazendo comque dentro de um mesmo gênero de pessoas se estabelecessem asdiferenças (...); e entre estes a uns incumbe obedecer, aos outrosmandar...”

Ou seja, há um pequeno número de cidadãos dotados devirtudes políticas, encarregados do governo, que irão mandar e amaioria dos cidadãos destinada a obedecer. Há, portanto, uma divisãonatural (embora culturalmente invocada) dos cidadãos em duasclasses, das quais apenas uma pode exercer a autoridade. O critérioda divisão tem pouca importância. O que é fundamental é a distinção.O aristocratismo em geral utiliza esse conceito e essa prática a partirdo que estabelece os critérios de constituição da autoridade. A mesmacompreensão aparece quando Aristóteles sustenta que a escravidãoestá na natureza das coisas e que os trabalhadores manuais nãosão aptos à virtude e ao exercício do poder. É por essa razão queAristóteles produz a histórica sentença a respeito da perenidade daescravidão: “quando os teares funcionarem sozinhos e as cítarastocarem por si mesmas, então já não necessitaremos de escravos,nem de patrões de escravos” (id, p. 13), estabelecendo, assim, afonte originadora da autoridade, organizadora das relações sociais.

No processo formativo, Aristóteles também busca resolver oproblema do saber e, logo, da liberdade humana, através dainterferência externa. O que dá status de legitimidade à interferência

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na constituição da autoridade. Do conceito grego de democraciasurgem desdobramentos que influenciam, ainda hoje, muitosprocedimentos político-pedagógicos.

Porém, sempre existiram vozes discordantes em relação àorganização da sociedade democrática. Platão, por exemplo, naRepública - Livros VIII e IX - chama a atenção para os desvios queas formas de governo tomam, tanto o Governo de um só (Monarquia),podendo chegar à tirania, como o Governo de poucos (Aristocraciaou Oligarquia), que busca defender os interesses de pequenos grupossocial e economicamente hegemônicos. Mas também há distorçõesna aplicação da forma de governo de muitos (democracia) onde, nasua degeneração, pode chegar à demagogia, que é o conjunto deprocessos políticos, hábeis, tendentes a captar e a utilizar, comobjetivos menos lícitos, a excitação e as paixões populares. E é poresta razão que Platão propõe uma autoridade que se constitua desdeo princípio da razão, exercida pelos filósofos, em detrimento tantoda classe subalterna (os trabalhadores) quanto da classeintermediária (os guerreiros). É da figura do rei-filósofo que surge opoder político com o conhecimento necessário à sobrevivência dogrupo. O governo/autoridade, constituído pelos filósofos, nasce e sesustenta no conhecimento daqueles que são capazes de tirar dastrevas os que nelas se encontram. É o que Platão expõe no Mito daCaverna, tendo presente a idéia de dois mundos: o sensível e ointeligível.

O mundo inteligível, fonte de todo o bem, é acessível aosfilósofos, aos libertos do mundo sensível ou que conseguiram libertar-se dos grilhões que os prendiam ao fundo da caverna. A autoridade,então, para Platão, tem origem na sabedoria ou no conhecimento. Eé desde essa confiança que o povo deixa-se guiar pelo filósofo.(PLATÃO, 1987). Mas Platão mostra que os humanos são resistentesà verdade, tornando necessário que haja vigorosa interferência dealguém/filósofo para que esses mesmos humanos possam “ver ascoisas para além das aparências”. Os humanos, para Platão, preferemas cadeias da aparência à liberdade da essência, que é o que lhesdaria liberdade. Alguém mostra o caminho a quem está “voltadopara o fundo da caverna”. Ao filósofo, que interfere na vida de quemsó vê aparências, pode custar a própria vida.

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modo que aquele que se revolta contra a autoridade, opõe-se àordem estabelecida por Deus.” (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 1973, p.438-9).

Na filosofia medieval, portanto, autoridade é uma posiçãofundamentada na graça divina e é capaz de dirigir o trabalho deindagação teológico-racional. A autoridade pode estar na decisão deum Concílio, em uma sentença bíblica, na palavra dos representantesde Deus na terra (Papa, Bispos, Padres...). O recurso ao argumentode autoridade é um dos elementos típicos da filosofia escolástica, apartir do que estrutura-se a nova proposta de tarefa/competênciahumana na formação da espécie.

Uma das centrais influências desse período é Santo Agostinho(354/430). Mesmo ainda não fazendo parte do que se denominouIdade Média, Agostinho, considerado o principal representante daPatrística, escreve que a filosofia não deve ser encarada como simplesespeculação racional. Ela é necessária ao ser humano como meio deencontrar a felicidade, a qual se chega pela revelação. Assim, faz-senecessário conciliar duas ordens distintas: os procedimentos da razãoe a iluminação da fé. Ainda que a verdade mostrada pela fé não sejapassível de provas, pode-se argumentar, pela via racional, o acertoda crença nesta verdade. Assim, é necessário compreender paracrer e crer para compreender. Como “crença em Deus”, a fé é oacesso iluminador àquilo que transcende toda a inteligência; é oacesso ao fundamento onde se assentam os argumentos e os objetosda razão, a possibilidade da liberdade e do exercício de todaautoridade. A iluminação divina, intervindo no humano, é o quegarante a este alcançar a verdade e onde se encontra a dimensãode liberdade do homem. Criado por Deus, o mundo é obra perfeita.Liberdade, neste caso, é a adequação dos atos humanos ao PlanoDivino. Justamente quando o humano decide ser contrário ao PlanoDivino, pensando-se, assim, ser livre, é que se torna, além de não-livre, responsável pelo mal, pois ser é necessariamente “ser bom”.Isso porque é impossível que o mal provenha de Deus, uma vez queele (Deus) é considerado o Absoluto Bem. Tampouco o mal podeprovir de outro poder, pois este, ao efetivar-se, suplantaria o poderdivino, o que é impossível porque Deus é onipotente.

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de uns sobre outros no processo formativo é a capacidade que alguémtem de viver conforme os critérios da sophia, o que possibilitaexplicitar o que as coisas são e por quê são o que são. Quem ageconforme tal faculdade é livre e está em condições de exercer suaautoridade sobre outrem.

Para o mundo romano, diferentemente da compreensão dosgregos e, particularmente de Platão, o conceito de autoridaderelaciona-se à importância da experiência dos antepassados e a suacapacidade de produção de legado às gerações seguintes. Os dotadosde autoridade eram os “anciãos, o Senado e os patres, os quais aobtinham por descendência e transmissão [...]”. (ARENDT, 1997, p.162 e ss). O poder é do povo e a autoridade manifesta-se nas figurasjurídicas instituídas para organizar a sociedade, além da força daexperiência dos anciãos nos processos formativos cotidianos, tãoimportantes quanto os formais e institucionalizados.

Do mundo medieval

Na Idade Média a luta pela emancipação humana já não tembases racionais tão fortes como é possível encontrar junto aos gregos.A revelação divina é fonte e critério de toda a ação humana. Aescravidão já não se explica pela ignorância, mas a partir das paixõesdo corpo. Controlar os instintos é o que garante liberdade ao humano.Interferir para que isto ocorra é tarefa de quem se põe a serviço daformação humana e é o que dá a esse alguém autoridade sobreoutrem. É desde tais princípios que a Idade Média, diante doesfacelamento das organizações sociais7, buscou um elo para oretorno à unidade. A religião surgiu, com o cristianismo, comoesperança para a nova unidade (religar). A fé em Cristo e a autoridadepapal passaram a ser referências para a constituição das diversasrelações sociais. O fundamento da autoridade passou a ser adivindade, idéia que está exposta, por exemplo, na Epístola de SãoPaulo aos Romanos: “Todo homem se submeta às autoridadesconstituídas, pois não há autoridade que não venha de Deu [...]. De

7 O fim do Império Romano, a constituição de inúmeros outros reinados e impérios,invasões diversas...

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relação aos dogmas teológicos e metafísicos e o segundo, em especial,em relação ao modo como havia sido institucionalizada a fé. Osmovimentos citados colocaram-se criticamente em relação a qualquerautoridade dogmática e imposta. A realização espiritual do homemdeve ser buscada no seu íntimo e não em doutrinas impostas doexterior.

Em relação às mudanças ocorridas é possível destacar queenquanto a educação humanista buscava a construção de umaperspectiva de liberdade cada vez maior e a serviço dos interessesdos indivíduos em particular, a Reforma Protestante acentuava caráterde rigor e da severidade em relação à fé, como elementos quepassariam a guiar os processos formativos, particularmente osreligiosos. A Reforma buscou, como estratégia fundamental,promover o acesso à leitura da Bíblia, o que requereu saber ler,surgindo o interesse pela educação para todos. Isso colocouelementos que possibilitaram avançar na discussão da problemáticada constituição da autoridade e sua relação com a liberdade, sobnovos patamares. É assim que Lutero desestrutura certezas e dogmase, como tal, abala as autoridades constituídas, buscando recuperara possibilidade da liberdade, que é fundamentalmente uma condiçãoque se conquista por meio da fé em Deus. É a justificação pela fé. Afé é pressuposto e consequência da mesma (LUTERO, 1968 e 1979).

A idéia de autoridade secular está alicerçada na dimensão depoder divino, ou seja, ela existe no mundo por vontade e designaçãode Deus, a partir da afirmação de São Paulo aos Romanos (já citada),à semelhança do que faz Santo Agostinho. E é desde essa concepçãode autoridade que Lutero teoriza a separação entre os que pertencemao Reino de Deus e os que pertencem ao Reino do Mundo. Osprimeiros são todos os que, “como verdadeiros crentes, estão emCristo e sob Cristo” (LUTERO, 1979, p. 17), os quais não necessitamda autoridade e da espada seculares, mesmo que a ela devamsubmeter-se. É assim que “... essas pessoas não precisam de espadaou direito secular. Se todo o mundo fosse formado por cristãosautênticos [...] não haveria necessidade de príncipe, rei ou senhor,nem espada, nem lei. [...] Por isso é impossível que a espada e a leitemporal encontrem algo a fazer entre os cristãos...” (id, p. 18).Mas, admite o autor, no reino do mundo, ao qual pertencem todosos não cristãos, é necessária a autoridade secular e a espada. “Porisso Deus criou para estes não cristãos, ao lado do estamento cristão

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Diante dessas impossibilidades, Agostinho concebe o malcomo privação, ou como movimento em sentido contrário ao Ser, àCriação e a Deus. Mas admite: a alma humana é dotada de livre-arbítrio. É assim, portanto, que o humano pode afastar-se do Criador.Mais: não é pelo mesmo caminho, isto é, pela escolha humana, quea alma se reaproxima de Deus. A salvação somente pode vir mediadapela graça divina, uma vez que Deus é a única e absoluta fonte detodo bem. O homem é capaz de, por si mesmo, distinguir o certo doerrado; mas somente a graça permite ao homem consumar o bem,transformando-o em fato. Portanto, a liberdade está inteiramentedependente da autoridade divina, representada pela hierarquiaeclesiástica (SANTO AGOSTINHO, 1956 e 1984). E é dessepressuposto que nasce a proposta de Agostinho para a educação,enquanto tarefa de homens inspirados por Deus, exposta na obraDe Magistro, onde aparece a qualificada intencionalidade humana,dependente da divina, na formação da espécie.

Ao final da Idade Média há uma segunda influência que buscasuperar tantos os dogmas metafísicos e teológicos como as posturasautoritárias daí decorrentes. É Lutero (1483/1546), teólogo alemão,responsável pela Reforma Protestante. Em 1517, diante da práticada venda de indulgências para o financiamento da construção danova Basílica de São Pedro, em Roma, forma de remissão dospecados, Lutero escandaliza-se e elabora, fixando-as na porta daCatedral de Wittenberg, as suas 95 teses. Trata-se de um instrumentoatravés do qual atingiu fortemente a legitimidade dos dogmas daIgreja Católica, afirmando, substancialmente, que a salvação eradada pela fé e não pelas obras. Tal atitude rendeu-lhe a excomunhão,diante do que não se retratou e passou a trabalhar para reformularo Cristianismo. Tendo que se esconder devido às perseguições quesofria, em 1522, Lutero reaparece em público e, sob o manto depríncipes alemães, interessados em livrarem-se do domínio doImperador, apoiado pela Igreja Católica, encontra espaço para adivulgação das suas idéias. Para Lutero, a salvação é dada pela fé enão pelas obras. Estas deveriam ser consequência daquela e nãocontrário.

Lutero, assim, torna-se uma figura que faz parte domovimento humanista que logo adiante se instala na Renascença.Tanto o Humanismo quanto a Reforma Protestante buscam apersonalidade autônoma e a individualidade livre: o primeiro em

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nem sua liberdade, nem sua maldade e servidão são corporais ouexternas.” (id, p. 12) E acrescenta: “Mas como é que havendo aSagrada Escritura prescrito tantas leis, mandamentos, obras e ritos,somente a fé pode justificar o homem sem necessidade de tudoaquilo, e mais ainda, pode conceder-lhe tais benefícios?” (id, p. 17).

Lutero avança e afirma a liberdade cristã “na fé, única quenão nos converte em ociosos ou maldosos, antes, em homens quenão necessitam de obra alguma para obter a justificação e salvação”(id, p. 20). E o cristão é livre? Sim, responde Lutero, mas deverátornar-se de bom grado servo, a fim de ajudar a seu próximo,tratando-o e obrando com ele, como Deus tem feito com ele mesmopor meio de Cristo. Quem procura agir em função de si próprio ouque busca realizar obras em seu benefício, pensando, com isto, expiaros seus pecados e conseguir a salvação, é por ignorância em relaçãoà fé e à liberdade cristã que assim age. Mas admite que taiscomportamentos podem derivar de “prelados cegos que induzem aspessoas a obrar de tal modo, exaltando e coroando tudo comindulgências, mas esquecendo-se de instruir na fé” (id, p. 50-1),defesa que faz da autoridade negativa.

A grande questão, como em Agostinho, é o pessimismo deLutero em relação às possibilidades da liberdade, ou seja, o humanosó será livre se obtiver a graça divina. A própria idéia de autoridadesecular está alicerçada na dimensão de poder divino, ou seja, elaexiste no mundo por vontade e designação de Deus, a partir daafirmação de São Paulo aos Romanos (13,1-2): “Toda a alma estejasubmissa ao poder e à autoridade; pois não há poder que não sejade Deus: onde quer que haja poder ele foi ordenado por Deus.”

É assim que Lutero estabelece normas para o exercíciotemporal a serviço do Reino de Deus, o que possibilita às pessoas,nele inserido, mas tendo Deus como critério para a sua ação, averdadeira liberdade cristã para ser vivida. O ponto de partida paraa reflexão de Lutero está na idéia de homem interior, espiritual,condição para que seja justo e livre. Ou seja, nada de externo podetornar o homem justo e livre, “pois nem sua piedade ou justiça,nem sua liberdade, nem sua maldade e servidão são corporais ouexternas” (1968, p. 12). A esse respeito dever-se-á ter bem emconta, sem esquecer nunca, “que só a fé, sem obras, justifica, libertae redime...” (id, p. 17).

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e do Reino de Deus, outro domínio, e submeteu-se à espada” (id, p.20). A espada é defendida por Lutero como o instrumento para amanutenção da paz. É por esta razão que os cristãos a ela devemsubmeter-se, submetendo-se, assim, à necessária autoridade. “Porisso o cristão se submete de bom grado ao domínio da espada: pagaimpostos, honra a autoridade, auxilia e faz tudo o que pode e que éútil para a autoridade, a fim de que sejam preservados o seu poder,honra o temor” (id, p. 26), submetendo-se a tal comportamentoapenas porque outros precisam da autoridade e é dando exemplo aesses outros que à ela precisam submeter-se.

Assim justificada, a autoridade, servidora de Deus, não deveser usada apenas para os gentios, mas para todos os homens. Éassim que o cristão é livre: fazer o que é útil e necessário para opróximo. E conclui que a autoridade secular deve existir na terra,não para governar a alma, a qual deve ser guiada apenas por Deus.Crer ou não crer é assunto da consciência de cada um, o que emnada diminui o poder da autoridade secular. Uma das questõescentrais a isso ligadas devia-se à obediência ou não ao Papa. Ouseja, a autoridade secular não pode a ninguém obrigar para obedecerao Papa, por exemplo. Os humanos necessitam de príncipes paraque a autoridade possa organizar o mundo. Mas príncipe cristão nãoage com violência para impor a ordem. A inspiração deve ser o amore o serviço e não o proveito próprio, a honra, a comodidade e asalvação de sua própria alma (id, 1979, p. 64-5). Apenas o príncipea quem falta inteligência adota a violência para governar. O príncipecristão deve trabalhar com habilidade e com seriedade, levando “emconsideração seus súditos e conseguir a correta disposição de seucoração.” (id, p. 66).

As bases sólidas a partir do que Lutero pensa a autoridadesecular guiada pelos princípios cristãos são as mesmas que dãosuporte ao seu conceito de liberdade cristã. A concepção de liberdadematerial ele a constrói desde a particular necessidade de liberdadedo jugo romano e a liberdade espiritual desde o critério da fé. Elebusca na Bíblia os fundamentos de sua concepção desde um aparenteparadoxo: “Um cristão é senhor livre sobre todas as coisas e nãoestá sujeito a ninguém. Um cristão é servidor de todas as coisas esujeito a todos” (LUTERO, 1968, p. 11), reflexão que elabora desdea afirmação de São Paulo aos Coríntios, 9,19. Nada de externo podetornar o homem justo e livre, “pois nem sua piedade ou justiça,

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metodologias de apreensão da realidade diferentes, ambos têm ohomem como fonte capaz de realizar tal objetivo. Nesse contexto, ademocracia, por exemplo, para além de possíveis distorções quepodem ocorrer, como as discutidas por Platão e outros pensadores,pode ser entendida como a doutrina ou regime político baseado nosprincípios da soberania popular. Um regime de governo que secaracteriza pela liberdade do ato eleitoral, pela divisão de poderes epelo controle da autoridade constituída, ou seja, dos poderes dedecisão e de execução de ações próprias da atividade exercida8. É oque ocorre com o movimento que se instala a partir do Renascimentoe da Idade Moderna, particularmente com o pensamento liberal quesurge para fundamentar novas relações sociais, originando, emespecial, as revoluções burguesas.

Além das concepções de autoridade que têm origem natradição clássica e em Deus, há uma terceira perspectiva, cujofundamento encontra-se nos seres humanos, mortais, ou seja, quese constrói sobre consensos (não pouco frágeis) dos que vivem ummesmo contexto de espaço e tempo. Nessa proposta, não está naforça o fundamento da autoridade, mas na ação a favor da negaçãodas desigualdades entre os homens, pois todos são livres e iguaispor natureza. Assim, só dos homens, da sua livre vontade originam-se e constituem-se o fundamento e o princípio da autoridade. As leispassam a ter como fundamento o juízo do povo. Em termos deorganização do Estado, portanto, a primeira e efetiva causa da lei éo povo ou o conjunto dos cidadãos, ou a parte predominante delesque manda e decide por sua escolha ou vontade, constituída pelarepresentação, onde se conclui que certos atos humanos devem serpraticados e outros não.

Assim é que se passa a trabalhar com a idéia de que seautoritarismos e tiranias estiveram presentes na história dahumanidade, da mesma forma é possível afirmar que existiram epodem existir teses e práticas contrárias à tirania. O modelo despóticodeve ser posto sob crítica para a sua superação. É o que o que faz,por exemplo, Etienne de la Boétie (1530/1563), no seu Discurso da

8 Atualmente é possível defender a tese do esgotamento do modelo representativo-liberal.

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Para Dreher, é possível afirmar que em Lutero a autoridade éinstituída por Deus em seu ministério. Por isso, os cristãos lhe devemobediência. Como é Deus quem dá a autoridade ao governante,“devemos obedecer incondicionalmente a Deus, mas não aogovernante [...]. Quando a autoridade o quer forçar a fazer injustiça,tem o compromisso de desobedecer, de resistir com a palavra [...]”(1989, p. 79).

E é nesse sentido que o homem é livre. É o que reflete Streck,quando aproxima Freire de uma perspectiva de educação cristã:“um dos temas centrais de Paulo Freire é a liberdade. O homem quenão é livre – o homem dominado e oprimido – não ascendeu aindaa sua verdadeira condição humana de experimentar situações-limiteda existência como desafios a serem enfrentados e não comofatalidades.” Para o autor, “provavelmente Paulo Freire diria como ooutro Paulo, o apóstolo, que este homem livre, por excelência, é ocristão. Ele é livre não porque escolheu ser cristão ou livre, masexatamente porque foi escolhido e libertado” (1991, p. 274). Doexposto, pensamos, com Boff, que o homem é capaz de assumir-selivre para a construção da “liberdade solidária do gênero humano(não a liberdade individualista) e a autodeterminação dos indivíduossociais, cada vez mais singulares, diferentes, sensíveis e solidários(não os indivíduos isolados)” (1998, p. 100).

É assim, portanto, que os luteranos são chamados à inserçãono mundo em defesa da liberdade, como afirma Baeske: “desistirdaquilo a que se tem direito para efetuar o que promove o próximo,abandonar a si mesmo para se dar ‘com corpo, bens e honra’ aosemelhante” (1985, p. 12).

Mundo moderno

Observações iniciais

O mundo do renascimento põe diante do homem (ou o homempõe diante de si) a tarefa da libertação de dogmas tanto religiososcomo metafísicos, chamando os humanos à responsabilidade deentender o real e descobrir a verdade pela razão. É nesse movimentoque surgem dois grandes sistemas de compreensão do mundo e defundamentação da ação humana: racionalismo e empirismo. Com

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Descartes e a filosofia da razão

Descartes vive num momento histórico de desenvolvimentodo empirismo, da descoberta de técnicas de fabricação deinstrumentos diversos, como o relógio, do desenvolvimento damecânica, de questionamentos sobre a legitimidade do poder clerical,do incremento do comércio, do florescimento do capitalismo etc..Época de um novo mundo em que as revoluções científicas começama se tornar referência para a organização tanto das relações humanasem geral quanto dos processos de formação. Grandes pensadoresexerceram decisiva influência na vida e na obra de Descartes: deCopérnico herdou a coragem de desafiar a crença dogmáticageocêntrica da Igreja, revolução que representou profundo golpena hegemonia do conhecimento científico, fortemente centrada nasmãos de padres de Roma; de Kepler toma a brilhante formulaçãodas leis empíricas dos movimentos planetários, o que lhe possibilitademonstrar que o conhecimento da natureza poderia ser adquiridopor meio do trabalho humano, independentemente de permissãoreligiosa; de Galileu absorve a consolidação da mudança deperspectiva e visão de mundo da ciência, através do uso do telescópio,o que possibilita provar suas teorias através da combinação entreexperimentação científica e linguagem matemática.

Foi nesse clima de grandes descobertas que Descartes fez-sepensador do seu tempo, construindo “alicerces de uma ciênciamaravilhosa”, cujo método unificaria todo o saber. Tal descobertaestá descrita na obra “O Discurso do Método”, o que garantiu aDescartes a certeza no conhecimento científico por meio damatemática. Mas a crença cartesiana na infalibilidade da ciência é,hoje, ainda muito influente sobre a organização de nossa cultura,particularmente os processos formativos humanos. Senão vejamos:“O método de pensamento analítico de Descartes e sua concepçãomecanicista da natureza influenciaram todos os ramos da ciênciamoderna e podem ainda hoje ser muito úteis.” (CAPRA, 1986, p.53).

O método cartesiano consiste em subdividir todo e qualquerproblema em quantas partes for possível e desse nível percebersuas relações. A inter-relação lógica das partes diversas é que poderápossibilitar uma compreensão do todo.

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Servidão Voluntária, onde rejeita a idéia da obediência a umgovernante e fala da miséria em que está jogado, quanto a sualiberdade, quem está submisso a um só mandatário. Afirma que oproblema é a organização da sociedade onde uns mandam e outrosobedecem, discutindo, assim, a constituição e a legitimidade daautoridade. É uma servidão voluntária, o que o leva a perguntarcomo é possível que milhões obedeçam a um só e não se rebelem?E responde afirmando que isso acontece porque o tirano não estásozinho e porque há uma relação de cumplicidade entre este, seuscolaboradores diretos e integrantes do povo. A defesa do tirano passaa ser a possibilidade de defesa dos interesses privados de membrosque fazem parte ou beneficiam-se do poder. (CHATÊLET, 1985).

A superação dos modelos despóticos tem início com aelaboração de teorias contratualistas, que originam e/ou explicamas associações políticas e, delas, a constituição da autoridadegovernamental e, em geral, a referência para a instalação de novasrelações sociais. Hobbes (1588/1679), na sua obra Leviatã, fala quesó há uma saída: ou os homens organizam-se em sociedade oudestroem-se mutuamente como no estado natural, onde há guerrade todos contra todos, onde há solidão e impera a lei do mais forte.Os homens aceitam trocar sua liberdade pela segurança e instalamo governo civil como instância legítima para a constituição daautoridade (HOBBES, 1983). Espinosa (1632/1677), em seu TratadoPolítico, conclui que permanece o dilema apresentado por Hobbesem sua pergunta alternativa, ou seja, como é possível obedecer àsdecisões do soberano e, ao mesmo tempo, conservar a liberdade?(ESPINOSA, 1983).

E assim outros pensadores representam o que poderíamoschamar de momentos da instauração do grande constructo teóricoda modernidade desde o qual os humanos organizam-se nacompulsória tarefa da vida em comum. Destacamos alguns, maisdemoradamente, a seguir, por reconhecê-los como inspiradoresimportantes na constituição do novo modelo de organização socialque, pensamos, tem seu grande “momento instaurador” em 1688,com a Revolução Burguesa na Inglaterra.

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outra. Contudo, esta não se apresenta em todos os povos, semexceção; além disso, é possível chegar a ela pela via racional,prescindindo, deste modo, de intuições ou noções inatas. Por isso, épossível formular a teoria de que o entendimento é semelhante auma tábula rasa, uma página em branco, pronta para ser preenchidacom os conteúdos trazidos pela experiência, possibilitando,novamente, a alternativa da construção do conteúdo que fará parteda constituição humana. O conteúdo do entendimento é compostopor idéias, matéria-prima de toda razão e conhecimento.

No campo da filosofia moral e política, Locke procede comoem sua teoria do conhecimento, negando qualquer noção de beminata aos homens, ou algum poder ao qual os homens deveriam sesubmeter por natureza, garantindo-lhes liberdade para a organizaçãodas relações sociais. Desde a experiência, confirmada pela razão, épossível constatar a idéia de que os homens são iguais, tendo, damesma maneira, iguais direitos à existência, à liberdade e àpropriedade. Por livre consentimento, devem constituir a sociedade,confiando poder e direitos a um governo. Este possui a tarefa deresguardar os interesses sociais e individuais.

O pensamento de Locke exerceu grande influência na filosofiamoderna, especialmente no século XVIII. Suas idéias políticasserviram de inspiração ao liberalismo político e econômico,embasando teoricamente a revolução burguesa na Inglaterra, omovimento iluminista francês, que emprestou fundamento teórico àRevolução Francesa, e fornecendo os princípios à independênciaamericana.

A reflexão política realizada pelo autor esclarece a sua posturaliberal e nos dá elementos fundamentais para a compreensão desua proposta pedagógica. Mas é a negação da liberdade (absolutismospolíticos e os conseqüentes exílios a que o autor teve que sesubmeter) que leva Locke a se engajar em atividades político-profissionais e a refletir problemas diversos, em especial, o tema daliberdade.

No Segundo Tratado, o autor busca tematizar a origem, aextensão e o objetivo do Governo Civil, instância de organizaçãosocial, a qual devem submeter-se os indivíduos que desejam superaro estado natural injusto. Nesta obra, Locke defende a idéia de queno estado natural os homens nascem livres e racionais. A defesa de

Fragmentos históricos e a constituição da autoridade 33

Esta perspectiva de método analítico firmou-se comocaracterística essencial do pensamento científico moderno, cujapredominância leva à fragmentação, própria das especializações tantonos meios acadêmicos quanto na organização cotidiana de nossasrelações. Em compensação, Descartes tem um projeto de construçãoda liberdade. Vai para a Holanda, justo porque é lá que encontraespaços de liberdade e tolerância. O que o faz cair em desânimo é acondenação de Galileu. Mas é o que o faz buscar, através de ODiscurso do Método, a exposição do caráter objetivo da razão eindicar regras para chegar à objetividade.

É assim que Descartes baseia suas reflexões na divisão danatureza em dois campos opostos: o da mente (res cogitans) e o damatéria (res extensa), reconhecendo o corpo humano como umamáquina, funcionando de acordo com leis matemáticas. O objetivo,sempre era usar o método analítico para descrever de forma precisaos fenômenos naturais. E é com essa proposta que Descartes vaiinfluenciar o mundo moderno e se constitui referência para pensaras relações sociais e os processos formativos, revelando um projetobasilar, para a modernidade, em termos de intencionalidadeeducativa.

Locke: autoridade e liberdade na perspectivada formação da classe burguesa

John Locke (1632/1704), médico, filósofo e político inglês,considerado um dos maiores sistematizadores do empirismomoderno, foi um dos grandes mentores da Revolução Gloriosa ou doParlamento em 1688, que consolidou o regime liberal. Sua obra évasta, contando com vários escritos filosóficos, médicos, pedagógicose políticos.

O pensamento de Locke toma como ponto de partida a críticaà afirmação da existência de idéias inatas, o que já aponta para aconstrução de um regime de verdade baseado em possibilidades daliberdade humana. Para que o inatismo pudesse se constituir emuma concepção verdadeira, seria necessário encontrar uma noçãouniversal em todos os seres humanos, sem exceção. A observação,contudo, mostra que isto não ocorre nem mesmo em relação à idéiade Deus, que, segundo Locke, deveria ser inata antes de qualquer

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restrita, ou seja, até que o filho não tenha entendimento próprio“[...] para dirigir-lhe a vontade, não poderá ter qualquer vontadeprópria para seguir: quem por ele entende terá também de por elequerer; terá de prescrever-lhe a vontade e regular-lhe as ações...”(1986, VI, p. 58).

Falando dos direitos fundamentais dos homens, Locke afirmaque o homem nasce com o direito à liberdade e ao gozo pleno detodo os direitos. Por isso, “[...], tem, por natureza, o poder não sóde preservar a sua propriedade – isto é, a vida, a liberdade e osbens – contra os danos e ataques de outros homens, mas tambémde julgar e castigar as infrações...” (1986, VII, p. 87).

Locke, portanto, admite, na origem, um estado de natureza(não como em Hobbes: brutal e egoísta), mas uma situação em queos homens sentem como que um dever racional de respeitar, nosoutros, os direitos que lhes convêm: à vida, à liberdade e àpropriedade. Mas o drama é que cada um tende a interpretar a leinatural a seu modo, o que requer, então, segundo Locke, um juizcomum a todos, por meio do governo, desempenhando as funçõesde juiz, exercida por quem receba a autoridade da sociedade, devendoprimar pela imparcialidade. Sem a autoridade do governo os homensmergulhariam em um novo estado de guerra. É assim que os homensgarantem a manutenção de suas propriedades. Propriedade essaque não se restringe a bens materiais.

O poder político, portanto, deverá considerar o homem comoum agente moral, isto é, um ser livre. E é por esse caminho queLocke constrói o seu sistema de política liberal e de tolerância,fundamentalmente contra o absolutismo de Hobbes e a defesa doinatismo político de Robert Filmer9. O governo é, apenas, ummandatário do povo.

Na sua filosofia política, portanto, o tema que merece destaqueé o da liberdade. A preservação desse direito decorre de um contratoque os homens fazem e da submissão às leis da maioria a que todosdevem obediência. A decisão da maioria é sempre a mais correta.

9 Contra quem Locke (1966) debate-se, em especial no Primeiro Tratado sobre oGoverno Civil.

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direitos está nas mãos dos próprios indivíduos. Entre esses direitosestá a propriedade, considerada como natural e anterior à SociedadeCivil. A sua origem encontra-se na relação direta entre o homem eas coisas, mediados pelo trabalho. Assim, pelo trabalho, o homemtransforma a natureza e dela se apropria. E surge, dessa forma, apropriedade privada, condição de possibilidade para a liberdade epara a vida, logo, da diferença entre os homens, dado que, na origem,todos nascem livres e iguais.

No estado natural as situações de igualdade e liberdadeapresentam certos inconvenientes. O maior deles, segundo Locke, éa possibilidade de alguém beneficiar a si e a seu grupo, colocandoem risco a propriedade, a liberdade e a igualdade dos outros. Paraevitar tais distorções, o homem natural criou a sociedade política,ou do contrato, não entre governo e governados, mas entre homensiguais e livres. As leis naturais é que deveriam normatizar o pacto,com o objetivo de preservar a vida, a liberdade e a propriedade, ereprimir as violações desses direitos naturais. Portanto, contraHobbes, Locke acredita que este pacto não obriga os indivíduos aabrir mão de seus direitos naturais em favor de governantes.

A aprovação de leis por consentimento mútuo e a existênciade juízes imparciais garantem, na sociedade política, a harmoniaentre todos. Desta forma, infere-se que o poder dos governantes éoutorgado pelos que participam do pacto e, portanto, mutável aqualquer momento. Ainda contra Hobbes, que entendia que oscidadãos só podiam rebelar-se contra o governo se este renunciasseao uso do poder absoluto do Estado, Locke defende o direito àinsurreição, em casos de abuso de poder dos governantes. É umdireito natural estendido à sociedade política, qual seja, punir seuagressor. Por isso é que a razão do contrato social é evitar o estadode guerra. É uma dimensão de liberdade, particularmente dos sereshumanos enquanto cidadãos, não pouco abandonada com o tempo,mesmo pelos que se auto proclamam liberais.

Locke, com estas idéias, influenciou bastante o pensamentoocidental e fundamentou as democracias liberais e, da mesma forma,a concepção de liberdade no mundo ocidental moderno econtemporâneo. A liberdade para Locke, particularmente em relaçãoaos filhos e todos quantos não forem capazes do uso da razão, é

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protestante de boa parte da população inglesa, impunha a religiãocatólica como oficial e obrigatória. Para Locke, o Estado deveriapreocupar-se com o bem-estar material dos cidadãos e não tomarposição a favor ou contra uma determinada religião. Este é, semdúvida, o principal problema posto pelo autor, ao dirigir suas reflexõesem torno da tolerância. E é neste aspecto, também, que podemosinferir, por um lado, a relação desse documento com os demaisescritos do autor e, por outro, particularmente, a importância domesmo para a compreensão de suas reflexões sobre educação e desua concepção de disciplina e liberdade.

Para Locke, mesmo defendendo intransigentemente aliberdade, não há possibilidade de defesa absoluta da tolerância, oque, novamente, indica sua concepção de disciplina, embora semprena perspectiva da produção de comportamentos individuais.

Locke, então, sensível à problemática colocada, buscaargumentos em todos que, antes dele, refletiram e se posicionaramfavoravelmente à questão da tolerância. O autor não defendia aliberdade total ou irrestrita, como contraponto à intolerânciaobservada em sua época. Posicionava-se, isto sim, igualmente contraa anarquia e a tirania, defendendo ao longo de seus textos, respeitoà autoridade e à liberdade. Com seus escritos e com muitasensibilidade em relação a problemas do seu tempo, produziu o quepoderíamos denominar de filosofia da liberdade racional, uma políticaque se obriga a ser moral. E elabora, assim, a teoria de um Estadoque constitui a ordem necessária.

O problema maior reside em que Locke é porta voz daburguesia, classe emergente e com interesses, não apenas desobrepor-se à nobreza em termos políticos, mas, especialmente,em termos econômicos. Luta por liberdade, pela não presença doEstado em assuntos de consciência, pela livre expressão eorganização de culto e credo: esta é a tarefa do filósofo. O que oautor buscou, naquele momento, é a conquista do espaço que osistema liberal-capitalista necessitava para impor-se como modelopolítico-econômico, substituto do denominado sistema feudal arcaico.

Os elementos acima conduzem ao problema da liberdade eeducação. Salvo melhor juízo, Locke busca, pela educação, aformação do cidadão capaz de, livremente e respeitando a liberdadedos outros, construir uma sociedade mais aberta. A disciplina

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Há, pelo menos, dois aspectos positivos a serem considerados,tendo em vista a permanente preocupação do autor com o tema daliberdade: por um lado, sua luta é fundamental para o momentohistórico absolutista pelo qual ainda passava a Inglaterra e a grandemaioria dos povos na época em que o autor escreveu sua concepçãopolítica; e, por outro, o fato de Locke, defendendo a liberdade, nãoadmitir que o homem, livre, tenha a si próprio ou as circunstânciascomo critério para a ação. Isto é, Locke busca estabelecer parâmetrospara disciplinar o indivíduo na sua ação (livre) no mundo. A educação,então, parece transformar-se em vital oportunidade de formação doindivíduo para o livre exercício de sua liberdade. Porém, este tipo deformação e disciplina individuais, desconsidera, além de um projetopolítico que atenda aos interesses do conjunto dos homens e dasmulheres, também as condições em que estes se encontram. Mas,apesar disto, a educação é dimensão essencial para Locke tambémporque o ser humano é tábula rasa e tudo está por ser construído.

A consolidação do sistema político capitalista burguês é, semdúvida, a meta maior que o autor busca alcançar com sua obra.Entendemos, no entanto, que, para o autor, escrever uma obra sobrea organização da sociedade não é suficiente. Necessário é, segundoele, elaborar mecanismos de formação do homem capazes de torná-lo apto a concretizar suas propostas políticas. O gentleman, para oautor, é preocupação maior quanto ao processo pedagógico, quedeve ser formado para a liberdade e a tolerância e para assumir adireção da sociedade, a partir dos princípios traçados no SegundoTratado. Desde pequeno, então, o indivíduo burguês deve ser levadoa adquirir hábitos de conduta pessoal que garantam que, quandoadulto, ele seja um disciplinado mantenedor do tipo de sociedadeque em 1688, na Inglaterra, passou a existir: aberta, livre, mas,ainda, desigualitária em suas relações concretas. A apresentaçãoda questão da tolerância amplia o quadro-teórico de Locke em defesada liberdade e do sistema social daí resultante, bem como fortifica aidéia da necessidade de um sistema pedagógico a ele adequado.

Há uma relação, ainda, que Locke procura tematizar:liberdade, educação e disciplina. Entre outras cartas e documentosa respeito da liberdade, Carta sobre a Tolerância (LOCKE, 1987)provocou polêmicas, pois nela advoga a liberdade de consciênciareligiosa, questão importante para a época em que ele viveu, namedida em que o absolutismo, contrariamente à tendência

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ou seja, liberdade econômica, intelectual, social, exterior, poroportunidades iguais para todos, desde a declaração formal que jáhavia. Neste contexto, homem político não é mais déspota, nemiluminado, nem detentor de autoridade de origem divina, mashumanista, conhecedor das leis da economia e dos direitos doscidadãos. Desse referencial histórico decorre a construção de ummodelo denominado liberalismo, enquanto sistema político eeconômico, hoje neo, que difunde o mercado e os fenômenos naturaiscomo critério para a constituição da liberdade. O mercado é, assim,em essência, a troca de bens e serviços entre as pessoas, associedades e as nações.

O liberalismo, de caráter essencialmente individualista,esforçou-se e esforça-se na pregação a favor da liberdade, seguindoas leis da seleção natural, através do que os mais fracos são superadospelos mais fortes. Assim como a liberdade humana desorientadaconverte-se em licenciosidade e libertinagem e, logo, destrói aliberdade, o mercado, formado e guiado por interesses e desejos depessoas, entregue à própria sorte, converte-se em dominação eabusos diversos. As regras que orientam a liberdade pessoal, nestesentido, deveriam orientar o mercado para a justiça e para asolidariedade. Mas, submetido às regras da oferta e da procura,como fica, por exemplo, o trabalho, tratado como mercadoria? Dequalquer maneira, o fundamental é não adotar as atuais condiçõeshistóricas como determinantes e critério insuperável para organizara vida em geral e, particularmente, a vida humana.

Economia e mercado devem servir aos humanos e não ocontrário. Para além de horizontes éticos e/ou metafísicos, essemodelo tem dificuldades de dar tratamento teórico-prático à questãoda liberdade das gentes. A questão coloca-se em relação às condiçõesa partir das quais as pessoas, em função da formação que receberamou não receberam, põem-se em ação, isto é, estabelecem relaçõescom o mundo. Com certeza, numa perspectiva de globalização dasrelações, dos hábitos, dos comportamentos etc., os meios decomunicação, em especial a televisão, passam a desempenhar papelimportante e tornam-se um desafio para os processos pedagógicosque se desenvolvem através da formação escolar.

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individual é muito importante, pois é dela que depende o sucesso doindivíduo nesta sociedade. A luta pela sobrevivência, dado que todossão livres, é de cada um. Quem é mais competente vence! Nisto, noentanto, para as pretensões e critérios que temos para este trabalho,encontramos graves limitações.

Locke, em sua teoria sobre a tolerância, abre espaços parapensar a liberdade nas diversas relações que os homens estabelecementre si e com as coisas em geral. Mas é uma dimensão voltada paraos interesses da classe da qual é representante, defensor e mentor.E é para a burguesia que o autor direciona a sua produção teórica,em detrimento das demais classes. Tolerância e liberdade de açãopara a classe burguesa, para a ação em geral e, particularmente,para a direção da sociedade, são temas centrais em sua obra. Àeducação, então, está reservada a tarefa de formar o homem nadireção deste novo comportamento, qual seja, para a liberdade epara a tolerância.

A disciplina busca organizar a vida do gentleman para asdimensões acima anunciadas, numa perspectiva individualista. Aliberdade não será e nem deverá ser exercida universalmente, istoé, para todas as classes. Isto, parece, propiciaria confrontos e voltaao estado natural, acrescido do estado de guerra. A educação, livre,individualista e para a liberdade, deve organizar-se em função dosinteresses de classe. Nesta perspectiva a sua concepção liberal estápresente de uma forma muito específica: liberdade em relação aossistemas vigentes, mas muita disciplina quanto à postura do indivíduoante a nova ordem sócio-econômico-política teorizada. Sem que istopossa parecer um paradoxo, Locke postula tempos livres para todasas dimensões humanas, mas, nestas, muita disciplina para que cadaindivíduo possa dar a sua contribuição e construir os novos tempos,mesmo que de forma egoísta e individual. Esta idéia é fundamentalpara a compreensão de seus escritos pedagógicos e sua concepçãode disciplina, pois marca a tese básica de sua filosofia liberal: liberao indivíduo para a ação, ao mesmo tempo em que, para vencer navida, os problemas e os outros, esse mesmo indivíduo deve sercompetente e disciplinado, física e espiritualmente.

Locke oferece ao mundo capitalista o constructo teóriconecessário à intervenção da burguesia no contexto ocidental. Assimé que no século XIX a luta é por conquistas ligadas à liberdade real,

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autobiográfico de nome Confissões, várias obras musicais e poéticas.Na sua obra filosófica e pedagógica destacam-se Emílio, Do ContratoSocial, Considerações sobre o governo da Polônia etc., ressaltando,permanentemente, grande inquietude política, onde reflexões sobrea natureza humana aparecem com destaque.

É assim que aparece o que há de mais expressivo nopensamento de Rousseau, ou seja, a reflexão em torno da oposiçãoentre natureza e sociedade, constitutiva do humano. O homem élivre por natureza, mas a história, realização dos homens, temdiminuído essa dimensão. É necessário trabalhar para buscar areconciliação entre a natureza e a história. O Estado, por óbvio,deve ser construído de acordo com a natureza. Observando as leisda natureza, o homem encontra uma vida auto-suficiente, reguladapor uma moral natural, buscando satisfazer suas necessidades básicasatravés do equilíbrio entre o meio e os outros homens. É deste estadooriginal e primitivo que o homem desenvolve as primeiras sociedadesfamiliares onde o indivíduo pode realizar plenamente como ser social,retirando-o do embrutecimento natural, mesmo mantendo-ovinculado às suas necessidades. A origem dos males da civilizaçãoreside no crescimento destas formações primitivas, com aparecimentoda propriedade privada, que se tornou o principal motivo para osurgimento de uma forma degenerada de conduta moral dosindivíduos, onde o egoísmo e o desejo de posse tornaram-se forçasmotoras nas suas vidas.

A reconciliação proposta é obra não só da política, mastambém da educação. A lei, então será fruto da educação moral, oque mantém, assim, a liberdade, o direito e o dever de cada indivíduo.

A autoridade, política e/ou pedagógica, não será negada porRousseau. Será legítima justamente porque estará a serviço daemancipação das pessoas, como forma de manutenção, mesmo demaneira imposta, do bem público. Sem a presença da autoridadecada indivíduo estará a serviço da sua própria vontade. É nas mãosdo homem que se encontra a origem da degeneração das coisas.

Em termos epistemológicos, Rousseau busca superar osparâmetros iluministas, optando não por uma razão abstrata, maspelo costume, sentimento, sentido e experiência, servindo-se, dentreoutros pensadores, da reflexão que Locke faz sobre a construção do

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Rousseau e a autoridade diante da liberdade natural,individual e da coletividade

Jean-Jacques Rousseau (1712/1778), filósofo iluminista,considerado um dos principais pensadores franceses do século XVIII,nasceu em Genebra, filho de uma linhagem de franceses protestantes,emigrados para a Suíça durante o século XVI. Sua vida foi, desdemuito cedo, marcada pela pobreza, porém liberta das disciplinasclássicas e da imposição das “luzes racionalistas10” em sua formação,a qual deu-se de maneira bastante autodidata. Mesmo nascido emambiente calvinista, converte-se ao catolicismo, mas regressa à suacrença original. Estudou música, do que se tornou professor,escrevendo, inclusive, algumas peças musicais, óperas e balés.Mesmo de origem plebéia, freqüenta ambientes aristocráticos, masdeles afasta-se em seguida. Defensor da igualdade, acaba servindoà desigualdade individualista. Em relação à liberdade, da mesmaforma, acaba elaborando teses a favor da tirania quando admite oprincípio da vontade geral como o princípio a partir do qual deveorganizar-se a sociedade.

Mas é um qualificado contestador do sistema pouco moralfrancês de Luís XV. Dado ao próprio temperamento e necessidadede fuga, viajou para a Suiça, Paris, Inglaterra, Veneza e Prússia, oque lhe possibilita manter contatos, por exemplo, com Condillac eDiderot, sendo encarregado, por este último, dos escritos sobremúsica de sua Enciclopédia. Por toda a parte descobre que o homemestá como preso a um modelo de organização social que nega a suahumanidade. Em suas ligações amorosas, de uma delas, teve cincofilhos, entregues a orfanatos com a justificativa de sua pobreza. Porsentimento de perseguição rompeu relações com Diderot eD’Alembert, tornando-se alvo de censura pública em escrito deVoltaire. Obras suas foram consideradas subversivas, obrigando-o adeixar Paris. À Inglaterra viajou a convite de Hume, rompendo como filósofo inglês dois anos depois, retornando a Paris, onde viveu atémorrer. Escreveu, dentre outros documentos, um Dicionário deMúsica, um romance intitulado A nova Heloísa, um escrito

10 Embora, em sua primeira experiência com as letras tenha enfrentado o rigor dopai que exigia dele saturadas leituras, dentre as quais se destacam Vidas de Plutarcoe Discurso Sobre a História Universal de Bossuet.

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“porque qualquer dependência particular corresponde a outro tantode força tomada ao corpo do Estado, e a igualdade, porque a liberdadenão pode subsistir sem ela” (id, p. 66).

O indivíduo é livre na medida em que o coletivo, justamenteorganizado pelo “bom governo”, é por todos respeitado. Ou seja, oindivíduo é tanto mais livre quanto maior e sólida for a organizaçãosocial da qual ele participa. Indagando-se a respeito da liberdadedos que se opõe às leis que não consentiram, mas que a elas devemsubmeter-se, o autor assim se expressa: “Respondo que a questãoestá mal proposta. O cidadão consente todas as leis, mesmo asaprovadas contra sua vontade e até aquelas que o punem quandoousa violar uma delas.” Para Rousseau, “a vontade constante detodos os membros do Estado é a vontade geral: por ela é que oscidadãos são livres.” Por isso, para ele, “quando se propõe uma leina assembléia do povo, o que se lhes pergunta não é precisamentese aprovam ou rejeitam a proposta, mas se estão ou não de acordocom a vontade geral que é a deles...” (id, p. 120-1).

O poder soberano, por mais absoluto que seja, não podeultrapassar os limites impostos pelas convenções gerais, estas, sim,soberanas em relação à definição dos processos de organização dasrelações sociais, colocando à disposição de cada indivíduo o direitode dispor de tudo quanto foi fixado por tais convenções, seja nonível da propriedade ou da própria liberdade. Por outro lado, desdeo contrato como critério de ação, há o processo em que cada indivíduoaliena algo de si para o coletivo. É o que Rousseau defende quandoafirma: “Relativamente a quanto, pelo pacto social, cada um alienade seu poder, de seus bens e da própria liberdade, convém-se emque representa tão-só aquela parte de tudo isso cujo uso interessaà comunidade” (id, p. 48), admitindo que só o soberano tem poderespara julgar a dimensão de tal importância.

É no contexto político e epistemológico acima que Rousseauescreve Emílio ou Da Educação, através do qual se torna o primeiroa pensar a criança como alguém diferente do adulto, até então vistacomo adulto pequeno. Emílio deve ser compreendido em ambientede instalação de espaços cada vez maiores de liberdade.

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conhecimento. Tudo isso com o argumento de que o domínio darazão não deu conta da perspectiva de aumentar a moralidade e afelicidade do homem, tornando-o, ao invés disso, infiel à sua maisíntima natureza, bastante egoísta. Cita a propriedade privada, adivisão do trabalho e a de classes e as más paixões como frutos doIluminismo, mesmo que admite que a razão pode iluminar os impulsose orientar a liberdade. O ser humano nasce livre e, para manteressa liberdade, vê-se obrigado a estabelecer contratos com os seussemelhantes.

Por isso, o respeito à individualidade de cada educando, desdea observância das leis da natureza, passa a ser o grande critériopara pensar a educação. É por essa razão que a educação deve dar-se em função do desenvolvimento da criança, das suas aptidões,dos seus interesses e das suas necessidades. O educador deveacompanhar o desenvolvimento da criança realizando intervençõesapenas quando necessário e desde que respeitado o ritmo naturaldela. Por isso, a obra pedagógica de Rousseau é a primeira grandetentativa de questionamento da pedagogia da essência e de produçãode uma pedagogia da existência, justo porque o conceito deexperiência ganha destaque. Preparar a criança para o futuro nãodeve ser objetivo primordial da educação, mas deveria ser, aeducação, a própria vida da criança.

Encontra-se em Rousseau uma sensação do humanoconformado às leis da natureza, mas reconhecendo-o comoprimitivamente bom, do que nasceu a idéia do Emílio. Cria um sistemaarrojadamente inovador para Emílio, do sexo masculino, mantendoa mulher em situação de educação em moldes absolutamenterotineiros e tradicionais.

A origem da autoridade aparece explícita no Contrato Social:“Visto que homem algum tem autoridade natural sobre seussemelhantes e que a força não produz qualquer direito, só restamas convenções como base de toda a autoridade existente entre oshomens” (ROUSSEAU, 1983, p. 26). Discutindo liberdade, Rousseauafirma: “Se quisermos saber no que consiste, precisamente, o maiorde todos os bens, qual deva ser a finalidade de todos os sistemas delegislação, verificar-se-á que se resume nestes dois objetivosprincipais: a liberdade e a igualdade.” A liberdade, para Rousseau,

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quando afirma: “Na aldeia um governante será muito mais senhordos objetos que desejar apresentar à criança; sua reputação, suaspalavras, seu exemplo terão uma autoridade que não poderão terna cidade...” (1992, p. 82).

A relação entre liberdade e felicidade é forte em Rousseau:“Antes que os preconceitos e as instituições humanas alterem nossastendências naturais, a felicidade das crianças, bem como a doshomens, consiste no emprego de sua liberdade; mas essa liberdade,nas primeiras, é limitada pela sua fraqueza.” Segundo o filósofogenebrino, “quem quer que faça o que deseja é feliz, se bastar a simesmo: é o caso do homem vivendo em seu estado natural. Quemquer que faça o que deseja não será feliz se suas necessidadesultrapassarem suas forças: é o caso da criança no mesmo estado.”As crianças, para o autor, “... não gozam, mesmo em seu estadonatural, senão de uma liberdade imperfeita, semelhante a que gozamos homens na sociedade.” (1992, p. 68).

Rousseau reconhece a liberdade limitada a que é submetidaa criança desde o início de sua vida, o que o leva a defender, comveemência, a tese da não imposição e da não interferência humanana sua infância. Assim o expressa: “[...] quem não vê que a fraquezada primeira infância acorrenta a criança de tantas maneiras, que ébárbaro acrescentar a tal sujeição a de nossos caprichos, arrancando-lhe uma liberdade tão limitada [...]?” (1992, p. 73).

O regramento em Rousseau aparece, por exemplo, quandodiz (tecendo severa crítica aos modelos institucionalizados deformação): “Instrutores insensatos pensam realizar maravilhastornando-as más para ensinar-lhes o que seja bondade; e depoisnos dizem gravemente: assim é o homem. Sim, assim é o homemque fizestes.” Para ele, “experimentaram todos os instrumentos,menos um, o único precisamente que pode dar resultado: a liberdadebem regrada. Ninguém deve meter-se a educar uma criança se nãosouber conduzi-la para onde quiser através das únicas leis do possívele do impossível” (1992, p. 77-8). Portanto, mesmo que se reconheçaem Rousseau uma perspectiva de formação atrelada às leis danatureza, é fundamental destacar que o autor propõe liberdade comregramento.

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Dos destaques acima, o que importa neste trabalho é discutira histórica relação entre liberdade e autoridade, também presenteneste autor. Rousseau busca a recuperação do homem primitivo,natural, antes de pensá-lo em sua relação social Para além destaperspectiva de concepção de natureza humana, desde a suaexterioridade, Rousseau tem na natureza o critério de construçãodo essencial no humano, ou seja, aquilo que tem valor permanentee substantivo. É necessário pensar em humanismo para compreendera dimensão de natureza no homem. Os homens têm, igualmente, avocação comum que é a de ser homem. Nesta perspectiva deformação e de educação há um elemento que se destaca, sem oqual o homem perde a dimensão que o distingue dos outros seres:a liberdade e/ou a independência em relação aos outros homens.Essa liberdade, no entanto, não é ilimitada, mas regulada pelanecessidade, por condições naturais e por obediências sociais, desdeque estabelecidas através de contrato social.

E é neste contexto que se coloca a atividade como princípiofundamental da pedagogia de Rousseau, isto é, a idéia deaprendizagem associada à própria experiência do sujeito emformação. Defendendo a tese da importância da curiosidade doeducando, o autor aposta no contato com a natureza para que talocorra. A educação, assim, será a instância encarregada, não depreparar a criança para o futuro, mas será a própria vida,particularmente desde a construção de ambientes de liberdade.

Rousseau, abrindo a sua concepção de liberdade e autoridade,agregando a isso uma concepção de autonomia, assim se expressa:“O único indivíduo que fez o que quer é aquele que não temnecessidade, para fazê-lo, de pôr os braços de outro na ponta dosseus; do que se entende que o maior de todos os bens não é aautoridade e sim a liberdade.” Para Rousseau, “o homem realmentelivre só quer o que pode e faz o que lhe apraz. Eis minha máximafundamental. Trata-se apenas de aplicá-la à infância, e todas asregras da educação vão dela decorrer” (ROUSSEAU, 1992, p. 67).

Discutindo a diferença entre a educação na cidade e na aldeia,e optando pela segunda, apresenta elementos para entender a suaconcepção de autoridade, sem negá-la, mas alertando para asdiferentes perspectivas e funções que assume. É o que ele discute

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Ao falarmos de processos pedagógicos e da crítica aosmesmos, não poucas vezes pensamos que as teorias já produzidasestão ultrapassadas justamente porque não resolveram os problemasdo tempo em que foram produzidas e nem do tempo de quem fez oufaz a crítica. Defendemos a tese da revisitação epistemológica epedagógica aos diversos autores como instância de crítica e comoreferência para a ação no presente. As soluções crítico-sociais ou dateoria crítica da educação, mesmo sem abandoná-las, da mesmaforma não têm sido suficientes para encaminhar discussões ealternativas aos problemas educacionais que enfrentamos. Emtempos de redescoberta do singular no humano, semindividualizações (talvez como exagera Kant), é fundamental,apostamos, revisitar o imperativo moral kantiano, como possibilidadede construção de instâncias de diálogo global para o enfrentamentode problemas graves com os quais a humanidade hoje se depara.Ou seja, a possibilidade da universalização de princípios para a açãoe a sua praticidade é o que chama atenção em Kant. Uma dasquestões centrais, para além de relações pedagógicas na atividadeformativa ou no processo formativo que se dá entre educador-educando, é o problema do mundo que depende do homem para serconstruído. A educação, assim, deve dar-se em plena sintonia coma realidade imediatamente vivida para que o homem possatransformá-la.

Os professores de filosofia das universidades alemãs tinhampor tarefa ocupar cátedras de pedagogia, periodicamente. Terá sidoesta a única razão que levou Kant a escrever sua obra pedagógica?Parece que não se considerarmos a primeira afirmação kantiana queexpusemos na abertura desta parte do presente trabalho, ou seja,“o homem só pode tornar-se homem pela educação”, o que significaafirmar que o homem é o que a educação faz dele. Mas as disposiçõespara ser homem devem ser desenvolvidas, isto é, o homem deveser educado. Logo, há todo um processo, ou um conjunto deestratégias que devem ser desenvolvidas para que tal ocorra, o querevela toda a intencionalidade educativa na construção filosófica deKant.

A sua obra pedagógica constitui-se de discussões sobredisciplina, cultura, civilidade e moralidade. A moralidade é o fimúltimo da educação. A educação refere-se aos cuidados - dimensão

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Kant: o imperativo moral e a educação que“faz o humano ser homem”

Retomar Kant, como um dos grandes representantes dafilosofia idealista, na perspectiva da reflexão acerca das concepçõesepistemológica e pedagógica é, sem dúvida, de importânciafundamental, além de grande desafio para o campo da educação.Particularmente para a educação, esta investigação se reveste desentido na medida em que, na perspectiva kantiana, ganha prioridadea “subjetividade do conhecer, por- causa da sobreposição do sujeitoao objeto e do redimensionamento deste em conformidade comaquele” (MONDIN, 1987, p. 196). A relação sujeito-objeto, oconseqüente modo de produção do saber e os próprios resultadosdesse processo, são de fundamental importância pedagógica namedida em que caracterizam a visão do mundo com que se atua e,assim, o próprio projeto de formação humana. Assim, a tarefa éretomar reflexões pedagógicas de Kant desde o seu constructofilosófico, a fim de entender a constituição do “imperativo moral”que recai sobre o indivíduo, elemento fundamental na formação doshumanos. “O homem não pode tornar-se homem senão pelaeducação” (KANT, 1966, p. 73), é a máxima kantiana que colocatoda a dimensão e a importância da reflexão pedagógica para esseautor. Como grande filósofo que foi - a exemplo do que fizeramoutros grandes filósofos e dentre eles os que retomamos nestetrabalho - Kant escreve sobre educação e sobre processos deescolarização.

Kant vê o homem como autor da construção da realidade.Sobre o humano recai grande responsabilidade, particularmentequanto à construção da natureza humana. Trata-se, portanto, deformação do homem para atualizar esse objetivo central da históriada humanidade. E a questão/problema é pensar qual a formaçãoelementar e/ou como é possível a coexistência entre o disciplinamentonecessário a toda formação e o acesso à liberdade, elemento quepossibilita distinguir o humano de outros seres? Justo porque Kanttem uma proposta de construção da liberdade, expressão última damaioridade do homem, a partir do que expõe toda a sua propostade interferência humana na formação.

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fins de cada um” (id, p. 27). Isso deve ser feito tendo em vista aautonomia do homem: “o homem pode ser, ou treinado, disciplinado,instruído, mecanicamente, ou ser em verdade ilustrado” (id, p. 27).A formação para a universalidade da norma moral é o que pode darautonomia ao homem, conforme afirma Martini (1993, p.111): “Namedida em que a experiência educativa orientada é orientada pelaliberdade como busca da autonomia, da emancipação e doesclarecimento do homem, perfaz-se o liame entre a experiênciahistórica, a política e a educação.”

Aqui, pensamos, encontra-se um elemento importante a partirdo qual, diante da dificuldade que o mundo atual enfrenta paraconstituir comunidades de fala, as pessoas poderiam parar e refletirsobre o futuro da humanidade, constituindo, assim, um novo pactosocial, extraindo dele princípios de ação. Assim, a escola poderiatrabalhar com o princípio kantiano da ação moral legítima desdeque universalizável.

Mesmo permeado pelo caráter individualista, pensamos quea máxima kantiana é extremamente oportuna e estratégia para levaros seres humanos à reflexão acerca das ações que empreendem.Mas Kant alerta para problemas que tal proposta pode ocasionar:“Um dos maiores problemas da educação é o de poder conciliar asubmissão ao constrangimento das leis com o exercício da liberdade.Na verdade, o constrangimento é necessário! E Kant continua: “masde que modo cultivar a liberdade? É preciso habituar o educando asuportar a submissão da sua liberdade ao constrangimento de outreme que, ao mesmo tempo, dirija corretamente a sua liberdade” (id,p.34).

Uma das razões que nos levam a retomar Kant é aaproximação possível entre a teoria do imperativo moral kantiano ea construção pedagógica freiriana que cerca a necessidade daconstituição da autoridade. Acompanhamos Freire quando afirma:“É experimentando-me como sujeito moral que vou assumindo oslimites necessários à minha liberdade e não porque, coagido,ameaçado, tenho puro medo da reação do poder que, desrespeitandominha liberdade, não limita sua autoridade.” Para Freire, “o autoritárioé que não se preocupa com o selo moral no comportamento dosujeito (liberdade) a quem sua prescrição se dirige. A ele ou a elalhe basta a palavra de ordem que emite.” É neste sentido que o

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física - e a formação - dimensão espiritual, interior. Embora negativa,a disciplina para Kant é componente necessário à manutenção deum princípio: o homem é homem e não animal. “A disciplina é o queimpede o homem de desviar-se da humanidade, através de suasinclinações animais [...] Mas, a disciplina é puramente negativa,porque é o tratamento através do qual se tira do homem a suaselvageria; a instrução, pelo contrário, é a parte positiva da educação”(KANT, 1996, p. 12). Da disciplina, desde cedo, à instrução, o homemforma-se para o que lhe é naturalmente próprio: a liberdade. Essaliberdade que não é garantida sem a ação formativa e diretiva: “Assimé preciso acostumá-lo logo a submeter-se aos preceitos da razão.Quando se deixou o homem seguir plenamente a sua vontade [...]ele conserva uma certa selvageria por toda vida”. (id, p. 13-4) Naverdade, o autor propõe um processo que engloba a formação(disciplina e a instrução) e a educação: “o homem não pode tornar-se um verdadeiro homem senão pela educação. Ele é aquilo que aeducação faz dele” (id, p. 15). Como a educação só pode serdesenvolvida de um homem para outro homem, a falta da disciplinae da instrução de qualidade pode significar a formação de mestresmuito ruins tomando conta da educação de educandos.

Portanto, a natureza humana é sempre mais desenvolvida eaprimorada pela educação, até ao que convém à humanidade,possibilitando, no futuro, a felicidade da espécie humana. Segundoo autor, os animais cumprem o seu destino espontaneamente. Ohomem, por sua vez, é obrigado a tentar conseguir os seus fins,para o que necessita de um conceito, que será a referência para aação formativa que ele deve sofrer ou praticar.

Uma das questões centrais de todo o processo formativo emKant é se “deve a educação do indivíduo imitar a cultura que ahumanidade em geral recebe das gerações anteriores?” (id, p. 20).O próprio Kant responde: “não se devem educar as crianças segundoo presente estado da espécie humana, mas segundo um estadomelhor, possível no futuro, isto é, segundo a idéia de humanidade ede sua destinação” (id, p. 22-3), colocando-se, o autor, numaperspectiva, ao mesmo tempo teleológica e idealista. A nãoobservância deste princípio ocasiona o mal. Portanto, a educação dohomem deve considerar a formação para a possibilidade da escolhade bons fins: “Bons são aqueles fins que são aprovadosnecessariamente por todos e que podem ser, ao mesmo tempo, os

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racionalismo clássico (é o que se propõe Kant), condição depossibilidade para que se possa “atribuir ao sujeito o trabalho deconstrução do objeto do conhecimento” (FREITAG, 1991, p. 47). Eaí está a tarefa da educação, pois um espírito disciplinado e capazde compreender e superar os limites humanos do conhecimentorequer formação. As reflexões em torno do “como devo e comoposso agir”, remetem o indivíduo para o campo da formação. Processoeste que centra sua atenção na formação do “espírito epistemológico-moral”: reflexões sobre as condições de possibilidade doconhecimento, sobre como devo agir, como julgar a verdade dosfatos e dos conceitos, como julgar a própria ação e a dos outros etc.

Mas, tudo é passível de crítica, como afirma Kant ao final daConclusão da Crítica da Razão Prática: “Somente o caminho críticoainda está aberto” (In Os PENSADORES, KANT, 983, p. 415). Aintenção que temos, ao destacar a observação kantiana acima, émostrar que o próprio Kant admite revisões ou complementos àssuas idéias. Tranquilos, portanto, ao saber do não-dogmatismokantiano, ante suas próprias conclusões, podemos retomar a questãoprincipal deste trabalho, a partir de Kant, que, ao que parece, merececonsiderações: é o seu próprio ponto de partida, como nãosuficientemente crítico. Portanto, as próprias considerações kantianasmostram que há um caminho crítico a percorrer e percorrê-lo énecessário, pois, é fundamental a sua contribuição para a teoria doconhecimento e para a filosofia em geral.

Mas é fundamental, também, que se consiga destacar oslimites de cada reflexão. Embora considerando, em vários momentosde seus escritos, que certos assuntos, com ele, estavam resolvidos,Kant, merece de todos os que se propõem refletir a problemáticahumana em geral e, especialmente, os problemas do conhecimentoe da pedagogia, uma abertura crítica. O grande mérito de Kant éjustamente ter entendido que a mente humana deve ser crítica diantede si mesma para chegar a conclusões válidas. A crítica é, certamente,condição do filosofar, pois a tarefa filosófica expressa um processoconstante para recolocar os problemas que se apresentam aos sereshumanos de cada época, visto que o questionamento é a base doverdadeiro progresso na filosofia. E essa é a tarefa pedagógica dasociedade, enquanto condição de possibilidade para a liberdade desdea maioridade humana. É, em Kant, a explicitação da competênciada espécie no papel formativo que recai de uns humanos sobre outros.

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“autoritarismo é imoral. O autoritário ou autoritária nega não só aliberdade dos outros mas também a sua, ao transformá-lo no direitoimoral de esmagar as outras liberdades.”

Para Freire, “não há verdadeiro limite sem a assunção porparte do sujeito livre da razão do ser moral do mesmo. A exterioridadedo limite só se autentica quando se converte em interioridade. Aautoridade externa há de ser introjetada, tornando-se assimautoridade interna.” (FREIRE, 1994, p. 188-9).

As diferenças político-pedagógicas entre Freire e Kant - sociale individual, respectivamente - não nos impede de aproximar osdois pensadores, em especial no que diz respeito à constituição dascondições de liberdade no humano. Kant defende a liberdade humana,inclusive da criança, desde a infância. Mas o autor coloca umacondição: deve-se mostrar ao aprendiz que ele pode conseguir osseus propósitos desde que permita aos outros conseguir os seus.Essa é, para Kant, a verdadeira educação para a liberdade. E quandose trata de dever, afirma que se deve levar as crianças a conheceros princípios a partir dos quais devem agir, apostando sempre queas crianças adquiram o gosto, o desejo para tal, a fim de que busquempor si mesmas tais conhecimentos. Portanto, “a cultura moral devefundar-se sobre máximas, não sobre a disciplina” (KANT, 1996, p.80). Desde a idéia de que o homem é o que a educação faz dele, oautor discute a origem da moralidade humana.

Um questionamento nos assalta: o homem é moralmente bomou mau por natureza? Não é bom nem mau por natureza, comoensina Rousseau, porque não é um ser moral por origem. Torna-semoral elevando a sua razão até os conceitos do dever e da lei. “Pode-se, entretanto, dizer que o homem traz em si tendências origináriaspara todos os vícios, pois tem inclinações e instintos que oimpulsionam para um lado, enquanto que sua razão o impulsionapara o contrário” (id, p. 102).

As faculdades da mente humana - conhecer (entendimento),julgar (juízo) e querer (razão) - dirigem as ações humanas na buscaincessante pela liberdade. A formação moral, ou a formação da razãoé fundamental para a correta elaboração das leis que devem reger omundo da finalidade. E esta é a tarefa da educação. Na dimensãoepistemológica propriamente dita, da mesma forma, é fundamentalà formação do indivíduo: a superação do empirismo inglês e do

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Francesa praticava a liberdade, ao idealismo alemão restava ocupar-se com a idéia da mesma. A preocupação passou a ser, assim, acompreensão de um tipo de sociedade racional e, logo, a elaboraçãodo conceito de razão “está no cerne da filosofia de Hegel. Estesustentava que o pensamento filosófico nada pressupõe além darazão, que a história trata da razão, e somente da razão” (id, p. 18).

Hegel, no entanto, não toma a razão atada a um puro conceitometafísico, mas busca, mesmo ainda idealista, a construção de umavida livre e racional. A Revolução Francesa, como já dito, inspiraHegel a pensar que o homem é capaz de confiar no seu espírito e,logo, a submeter a realidade aos critérios da razão. O homem dispõe-se e é capaz de organizar a realidade a partir de exigências do seupensamento racional e livre e não se acomodar ao existente. ARevolução Francesa proclamou, segundo o autor, o poder definitivoda razão sobre a realidade. É o pensamento que deve governar arealidade. Hegel, assim, tenta explicar o mundo a partir da Idéia (deforma lógica). Evitou partir dos fatos, como os filósofos materialistasfranceses haviam feito. A idéia preexiste ao surgimento da naturezae do homem. Mas há um elemento fundamental em Hegel, o qualpode diminuir as conseqüências que se originariam seconsiderássemos radicalmente a afirmação acima: é o fato de terpercebido o homem não como simples individualidade biológica, masproduto histórico, criação no processo social, no qual os homensnascem, vivem e morrem.

Hegel refletiu a questão dos elementos contraditórios naunidade representada pelas coisas e concluiu que a contradição existeem todas. O segredo para chegar à verdade está na apreensão docaráter das contradições. É por esse caminho que Hegel chega àconcepção do método dialético, o que lhe permite construir o conceitode relação entre fatos e fenômenos. Se há luta entre coisas opostas,isso revela o movimento das mesmas. Tal movimento origina-se dascontradições. É assim que Hegel introduz em seu sistema(conservador), um elemento revolucionário que é o conceito denegação. Dessa forma Hegel põe em questão tudo o que pareceacabado, pronto. As contradições, pela negação da tese (antítese),provocam ruptura e, após, o equilíbrio retorna, mas qualitativamentediferente (síntese). O problema maior é que Hegel tomou a existênciados contrários, da contradição, portanto, num único plano: da Idéia.Ou seja, a forma ou a idéia do homem que a pensa é que define

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A influência de Kant sobre pensadores e pedagogos que vêm a seguiré facilmente percebida. Assim, o homem, em se tornando moral,relaciona-se moralmente com os outros. As relações entre indivíduosdão-se na justa medida do respeito à lei moral que há no outro(PIAGET, 1994). E é o que aparece em Freire, conforme tentamosmostrar adiante.

Hegel: epistemologia, educação e a realização da História

A vertente do hegelianismo, ponto central do idealismo, éuma corrente filosófica que prioriza o espírito ou a consciência nareflexão a respeito da realidade exterior, chegando, em algunsmomentos, a concebê-la (a realidade) como produto daquele(espírito), considerando a história como concretização do EspíritoAbsoluto (Deus). Além disto, Hegel concebeu a realidade humanaem constante mudança e sujeita a uma lei: a dialética. Toda a idéiaou todo o fato já constitui ou já contém sua própria negação, o queorigina contradição, resolvida na construção de nova idéia ou fato,mantendo elementos da idéia ou fato anteriores, masqualitativamente em estágio superior.

Hegel escreveu seu sistema filosófico a partir do desafio quese coloca desde a França: repensar e reestruturar o Estado e aSociedade em “bases racionais, de modo que as Instituições sociaise políticas se ajustassem à liberdade e aos interesses do indivíduo[...].” Como lembra Marcuse (1978, p. 17): “A situação do homemno mundo, seu trabalho e lazer, deveriam, doravante, depender desua própria atividade racional livre e não de qualquer autoridadeexterna”. Esta é a saudação feita pelo idealismo alemão à RevoluçãoFrancesa, que havia abolido o absolutismo feudal e implantado umsistema econômico-político da e para a classe média, como jáacontecera na Inglaterra, em 1688-9, com a famosa Revolução doParlamento. A industrialização, por sua vez, era saudada como umarealização da razão e capaz de conduzir os homens à felicidade, auma sociedade livre e racional, portanto.

Os filósofos idealistas alemães desenvolveram tal reflexãoporque a Alemanha havia estagnado, diante, por exemplo, daInglaterra e da França, que já haviam consolidado suas Revoluçõese mudanças sociais daí decorrentes. Então, enquanto a Revolução

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indivíduos, isto é, cumprir mais um momento da autoconsciência daliberdade. Assim, a importância de Hegel para a educação não temorigem exclusiva em suas idéias pedagógicas, mas especialmenteem suas reflexões filosóficas.

Tendo influenciado sobremaneira o surgimento tanto dasditaduras de esquerda quanto de direita, Hegel é fundamental paraa compreensão da estruturação de diversos regimes políticos e, daí,a sua importância para a educação. Para Hegel, o que movimenta osacontecimentos humanos são idéias. Os homens vivem por elas,por elas são governados e lutam por realizá-las. Há uma acentuadaintenção idealista na formação dos homens, que parte de um critériodefinido, qual seja, não são as condições em que os homens seencontram que determinam sua conduta, seu modo de ser, suasidéias. Não, Hegel tem o universo como um grande sistema deprocessos ou idéias em eterna mudança.

Nas obras A Filosofia do Direito e Filosofia da História Hegelparece mostrar como o processo evolutivo do Espírito Universalprogrediria através de fases. O Estado corporifica o Espírito total ouideal da humanidade, compartilhada pelos indivíduos. Em sua formamais superior, o Espírito Universal revela-se na Arte, na Ciência, naFilosofia. Nestes processos, o Universal é buscado e realizado. É poresse caminho que Hegel constrói fundamentação para uma teoriaeducacional, sintonizada com o seu Idealismo. A educação é o meiopara espiritualizar o homem. O homem é o que deve ser pelaeducação, pela disciplina etc. Tem de fazer-se a si mesmo comodeve ser justamente porque é espírito; tem de transformar a naturezaa fim de que se transforme num momento do Espírito Absoluto e,portanto, realização da universalidade na diferença. Tal educaçãosó pode ser adquirida através do Estado, que representa apossibilidade de objetivação do Espírito. Só no Estado o homem temexistência racional. A educação, assim, tem por finalidade buscarfazer com o que o homem não continue mais a ser subjetivo, masque se faça objetivo no Estado. Um indivíduo pode, sem dúvida,fazer do Estado um meio para alcançar interesses; mas o verdadeiro,o legítimo é que cada um queira a coisa em si, abandonando oacidental.

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uma coisa, um objeto, a realidade. Mas a novidade, como já dito,está no fato de Hegel privilegiar a temporalidade, a história. O seusistema tenta pensar o devir, a fluidez, como parte do processo dopróprio absoluto. É com esta opção dialética que Hegel refuta tantoa lógica formal de Aristóteles quanto a lógica transcendental de Kant.

A história é progresso. Tudo o que acontece é a história doEspírito Universal desenvolvendo-se e realizando-se, por etapas,buscando a plena consciência de si. No início, o Espírito é como queestranho a si, alienado. Com o tempo torna-se ordem, liberdade,consciência, realizando-se através da história que os homensconseguem realizar. Cada um, cada povo deve procurar realizar umaetapa desse progresso do Espírito. Triunfará a civilização que, noseu tempo, melhor exprimir o Espírito. Em nossa consciência universaltemos, portanto, dois mundos: o da natureza e o do Espírito. Oreino do Espírito é criado pelo homem, pois o mesmo aparece apósa criação da natureza. Portanto, o homem, aparecendo depois dacriação da natureza, constituindo-se o oposto do mundo natural,tem, para si, a tarefa da construção do reino do Espírito, o qualabarca tudo o que interessa ao homem. O homem atua nele e é, aomesmo tempo, condição de atuação do Espírito (HEGEL, 1974). Oque constitui a razão do Espírito em sua determinação é o fim dahistória e do mundo, isto é, que o Espírito tenha consciência de sualiberdade e que sua liberdade se realize. A liberdade é o único fimdo Espírito. Por isso a substância do Espírito é a liberdade do sujeitona medida em que se propõem fins universais.

Do acima exposto, é possível concluir que se a liberdadehegeliana encontra-se no espírito que se realiza na história, aautoridade encontra-se em processos formativos a partir dos quaisos humanos, conhecendo o Espírito Absoluto e as Idéias, o realizamna história. E o processo formativo necessário à realização do objetivoontológico hegeliano, possibilita a seguinte questão: como o indivíduo,subjetivo, não consciente do espírito comum necessário ao povo doqual faz parte, chega ao estágio consciente e, como tal, tornando-se partícipe do espírito do povo, momento de realização do EspíritoAbsoluto? Hegel é um intérprete da história e espera que os políticosorganizem modos, processos, a partir dos quais os indivíduos, aindanão conscientes da ação racional, cheguem a tal estágio e cumpram,assim, sua verdadeira missão histórica, juntamente com outros

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O MOVIMENTO DA LIBERDADE,A SUPRESSÃO E A REINVENÇÃO

DA AUTORIDADE E SEUSREFLEXOS CONTEMPORÂNEOS:

RETOMANDO FREIRE

Desenvolvendo reflexões em torno da problemática daautoridade, Arendt (1997) afirma que a filosofia moderna écaracterizada pelo quase abandono do princípio de autoridade, pelomenos como critério de orientação e disciplinamento da pesquisa,da busca do conhecimento, enfim, da insaciável procura humanapor maioridade e independência. Há uma busca de superação daautoridade tradicional, despótica, autoritária, quer pela força, querpela imposição de um saber absoluto, dogmático, tanto metafísicoquanto teológico. Passado esse período de crítica ao modelotradicional de compreensão da autoridade, surgem novas buscasque intentam dar sentido à sua existência, embora posição nãounânime entre filósofos e pedagogos. Há um autor que pensamosindispensável não apenas para entender as novas reflexões quesurgem sobre autoridade, mas, especialmente em função de suainfluência sobre os novos modelos de educação que surgem no Brasil,particularmente nas primeiras décadas deste século e, muitoespecialmente, pelas influencias que tem na obra de Paulo Freire:falamos de John Dewey.

O homem deve tudo quanto é ao Estado. Tal afirmação deveser compreendida junto à idéia de que o Estado é critério decomportamento; é no Estado que o homem encontra o fundamentopara a sua formação e ação, pois o Estado é a representação objetivado Espírito Absoluto. Mas o Estado não absorve toda a personalidadedo educando, apenas oferece condições e critérios para que este adesenvolva.

Hegel (1995) afirma que a História Universal é a soma daviolência desenfreada com que se manifesta a vontade natural; masé onde pode dar-se a educação da vontade para o universal. Oindivíduo deve educar-se para a idéia de que o substancial para oEspírito de um povo é que o Espírito constitui, para esses mesmosindivíduos, um suposto. Mas tal consciência não é ensinada aoindivíduo, não é mera educação ou conseqüência desta, masdesenvolvida pelo indivíduo mesmo. A educação hegeliana busca,assim, que o homem vá abandonando o eu em estado subjetivo e,objetivando-se, transfira-se, com os demais, que participam comele de um determinado povo, num momento do Espírito Absoluto. Éuma proposta que busca a formação do homem, para além deobjetivos particulares e busca a construção do interesse ou espíritocomum.

Pela escola e pela educação em geral há que se buscar umaformação que garanta que os interesses individuais se submetam àrazão que governa a história. Para tanto, é indispensável que oindivíduo se submeta a critérios de formação de personalidadecapazes de levá-lo a tal comportamento: poder participar da razãouniversal que governa a história. E é desta reflexão que Hegel extraia sua proposta de intervenção na formação humana, concebendo-a, assim, como uma competência da espécie.

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tradicional, que atuava a favor da produção de comportamentos desubmissão e obediência dos educandos, o autor propôs uma inversãode valores que considerassem a iniciativa, a originalidade e acooperação. O que possibilitaria a liberação das potencialidadescriativas do indivíduo, objetivando, não a mudança social, mas oseu aperfeiçoamento. O liberalismo político e econômico, assim, eratraduzido ou aplicado ao campo educacional, sem questionar “asraízes das desigualdades sociais”, enfatizando o aspecto psicológicoda educação. Mesmo assim, conforme comentadores como Gadotti(1993), Luzuriaga (1984), Fullat (1994) e outros, Dewey desenvolveuteorias pedagógicas progressistas, particularmente em relação àinserção do estudante como sujeito no processo de aprendizagem,à discussão em torno da importância fundamental da democracia naorganização tanto da sociedade como da educação, à defesa daescola pública e para todos etc.

E é da concepção acima que Dewey desenvolve um métodode compreensão da realidade, denominado instrumentalismo. O queleva o homem ao conhecimento não é um fim em si mesmo, mas anecessidade de apropriação da realidade. O pensamento não busca,em última instância, saber, mas apropriar-se para ter domínio sobreas coisas. O meio impõe dificuldades, mas o pensamento serve deinstrumento de adaptação dos humanos ao meio. A verdade,fundamento da busca do pensamento, é o que leva o homem asuperar problemas que enfrenta (DEWEY, 1959, p. 166 e ss.), basesque levam Dewey a produzir ampla reflexão política, particularmenteem relação aos fundamentos filosóficos que justificam a defesa datolerância na constituição das relações sociais, quer em sua dimensãopessoal, quer quanto ao seu caráter público organizado pelo estado,a partir do que a democracia é a forma de governo defendida. Aesse respeito afirma Neutzling que, contrario à “... mudançarevolucionária de cunho violento e contra o uso de métodos deviolência, Dewey apoia uma reconstrução social, política e econômicade feitio ora mais radical, ora mais gradual, através da participação,da experiência, do livre debate, da educação, do empenho inteligente,ou seja, através de métodos democráticos.” Tal opção, conformeNeutzling, “... permite a manifestação de todos os segmentos sociais,dos diferentes grupos e indivíduos, articulados por partidos, poreleições, pela lei da maioria, dentro do processo democrático daparticipação.” É, para o autor, “... uma proposta de mudança que

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Dewey: autoridade ou a tensa relaçãoentre as perspectivas educacionais tradicional e nova

Dewey (1859/1952), filósofo e pedagogo norte-americano, àsemelhança dos anteriores, discute a problemática da relação entreindivíduo e sociedade, disciplina e interesse e a formação para oexercício da liberdade. Lecionou filosofia, psicologia e pedagogia eorganizou uma escola experimental ou uma escola-laboratório daqual extrai elementos a favor da defesa do método científico a seraplicado inclusive na educação1. É daí que Dewey adquire experiênciasuficiente para sustentar posições pedagógicas arrojadas, comoadiante anunciamos.

Escrevendo sobre temas do campo da Psicologia, da Lógica,da Ética, da Democracia e da Educação, Dewey ocupa-se e preocupa-se com a noção de experiência, a qual constitui o fundamento darealidade. Esta noção é entendida de uma maneira ampla, o que oleva a romper com a perspectiva tradicional de entendimento desseconceito. A experiência é a relação entre o ser vivo e seu ambiente,tanto na dimensão física quanto social. A análise que Dewey pretendeaprofundar é em relação à experiência em seu aspectoessencialmente dinâmico, ou seja, toda experiência modifica o meioe é por ele modificada. Tal concepção leva o autor a admitir aexistência de um processo permanente de criação de conexões econtinuidades, propiciando permanentes recriações dos elementosenvolvidos. É a experiência que provoca, fundamentalmente,mudanças nas relações do homem com o meio.

Dewey foi um interessado defensor da denominada EscolaAtiva, que apontou para a importância da aprendizagem desde aexperiência pessoal do educando. A partir da crítica à escola

1 É a primeira escola a ser fundada desde o princípio da necessidade “do espíritoexperimental“ na educação, nos EUA. É a University Elementary School, parteintegrante da Universidade de Chicago, através da qual Dewey buscou experimentare/ou comprovar algumas de suas idéias sobre educação em geral e particularmentesobre processos de aprendizagem. A experiência durou pouco tempo, mas osuficiente para extrair importantes idéias para a educação. A experiência tinhacomo fundamento a práxis dos alunos, incluindo atividades com economiadoméstica, tecelagem, fiação até literatura, geografia, história etc. Os participantesjá não eram classificados conforme o seu desenvolvimento físico e mental, masem função dos interesses e das aptidões dos mesmos (LUZURIAGA, 1984).

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É assim que o autor aponta o método científico como oprincipal instrumento a serviço do conhecimento, que deve ter, porparte de quem o almeja, esforço, dedicação e procura sistemática.A adoção deste instrumento justifica-se por duas razões postas comoprincipais: a primeira liga-se ao fato de o método significar “que nãotemos o direito de chamar alguma coisa conhecimento, exceto quandonossa atividade produziu de fato certas mudanças físicas nas coisas,as quais concordam com a concepção adotada e a confirmam.” Aocontrário, segundo Dewey, o conhecimento que dizemos possuir nãopassa de hipóteses, conjecturas, sugestões etc. A segunda razãoque justifica a adoção do método científico de pensar é que “opensamento tem a utilidade, que ele é útil exatamente no grau emque a previsão de conseqüências futuras é feita baseada naobservação completa das condições presentes.” (Ibid., p. 371). Ocorreque isto exige muito dos homens e “... eles ainda querem o apoio dodogma, das crenças impostas pela autoridade, para se livrarem doembaraço de ter de pensar e da responsabilidade de dirigir suaatividade pela reflexão. Por essa razão [...] as escolas prestam-semais para formar discípulos do que pesquisadores.” E Dewey conclui:“mas é certo que todo o progresso da influência do métodoexperimental contribui para o descrédito dos métodos puramenteliterários, dialéticos ou de imposições pela autoridade, paraestabelecer crenças ou convicções, métodos que dominaram nasescolas no passado. (id, p. 372).

Segundo Luzuriaga, o método proposto por Dewey, desde aidéia do aprender fazendo, e tendo a escola não como espaço depreparação para a vida, mas a própria vida, objetiva: “1º) que oaluno tenha uma situação de experiência direta, isto é, uma atividadecontínua na qual esteja pessoalmente interessado; 2º) que seproponha um problema autêntico dentro dessa situação, comoestímulo para o pensamento; 3º) que tenha as informações e façaas observações convenientes para tratá-las; 4º) que as soluções lheocorram e seja ele responsável por que se desenvolvam de modoordenado; 5º) que tenha oportunidade de comprovar as suas idéias,pela aplicação, aclarando-lhes assim a significação e descobrindo-lhes por si mesmo a validade.” (1984, p. 250).

É assim que Dewey busca colocar a serviço da educação e doensino a sua descoberta metodológica: a compreensão científico-instrumental da realidade. Sua filosofia busca a superação da

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não é fruto de fatalidades, dogmas, concepções absolutas ou métodosviolentos, mas de uma mentalidade democrática, onde há lugar paraa liberdade e a tolerância da diversidade” (1984, p.115).

Da concepção filosófica acima citada, Dewey extrai a suaconcepção de liberdade: “... designa mais uma atitude mental doque a ausência de restrição exterior de movimentos, mas que estaqualidade espiritual não pode desenvolver-se sem grande produçãode movimentos para os atos de explorar, experimentar, aplicar, etc.”Para Dewey, “uma sociedade esteada nos costumes utilizará asvariações individuais até certo limite, conformemente aos seus usos;a uniformidade é o principal ideal no interior de cada classe. Umasociedade progressiva considera preciosas as variações individuaisdesde que nelas encontre meios para o seu próprio desenvolvimento.”Por isso. “... uma sociedade democrática deve, em sua interferênciae coerente com o seu ideal, permitir a liberdade intelectual e amanifestação das várias aptidões e interesses.” (DEWEY, 1979, p.337).

Discutindo Teorias do Conhecimento e a perspectiva dualistaque tanto tem marcado presença na história do pensamento(particularmente da educação) e das relações humanas, o autorreflete a sua presença na educação, particularmente na relação entrea autoridade e a liberdade. Partindo de uma concepção de saber,resultante do ato de estudar – “operação ativa e praticadapessoalmente” – o autor afirma que o dualismo pode manifestar-sena concepção de conhecimento “como uma coisa exterior”, objetivae o “ato de conhecer como coisa puramente interna, subjetiva,psíquica”. O autor fala da existência, por um lado, como conjunto deverdades, já pronto e, por outro, um espírito preparado com afaculdade de conhecer. “A separação que não raro vem à baila, entrematéria de estudo e método, é o equivalente educacional destedualismo. Socialmente, a distinção se prende à parte da vida quefica sujeita à autoridade, e à parte em que os indivíduos têm liberdadede progredir” (id, p. 368). Ou seja, o autor trabalha com a distinção,que pode decorrer do processo educacional com o qual cada umesteve envolvido. Tais antagonismos/dualismos em termos sociaisrefletem “... uma separação entre os que são dominados porinteresses diretos pelas coisas e os que têm a liberdade de adquirircultura.” (id., p. 368).

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perspectivas diferentes: uma que considera essencial a disciplina eoutra que tem a liberdade como tarefa principal para a organizaçãodos processos de formação dos indivíduos. O autor entende que“cada uma delas tem noção errada do que significa o princípio queprofessa.” Afirma, ainda, que a disciplina pode ser “... identificadaaos atos mecânicos que têm por fim embutir, com repetidas pancadas,uma substância estranha num material resistente...”. Para Dewey,“chame-se ou não ‘disciplina’ a um adestramento dessa qualidade,o certo é que disciplina mental não o será. Seu fito não são oshábitos de pensar, e sim maneiras exteriores de agir uniformes.”Disciplina é, então, “... um produto, um resultado, uma realização,não coisa imposta do exterior. Toda a educação verdadeira terminaem disciplina, mas procede, ocupando o espírito em atividades úteis,por amor das próprias atividades” (DEWEY, 1959, p. 92-3).

Do equívoco na concepção de disciplina decorre erro naconcepção de liberdade, ou seja, no sentido tradicional de “divisa”.Mas é possível entender a liberdade como “poder de agir e executar,independentemente de tutela exterior. Significa domínio, capaz deexercício independente, emancipado dos cordéis da direção alheia,não simples atividade exterior sem peias” (id, p. 93). Assim, aliberdade “não consiste em manter uma atividade exterior ininterruptae desimpedida; é algo que se consegue através da vitória, pelareflexão pessoal, sobre as dificuldades que impedem uma açãoimediata e um êxito espontâneo” (id, p. 94). Para a construção daliberdade é necessário passar por um processo de formação depensamento e de hábitos mentais, bons ou maus, que possibilita“observar cuidadosamente as coisas, ou de olhá-las por cima, àspressas, com indiferença ou com impaciência; de seguirordenadamente sugestões que ocorrem, ou de adivinhar ao acaso eaos saltos...” (id, p. 96). É assim que “... a verdadeira liberdade, emsuma, é intelectual; reside no poder do pensamento exercitado, nacapacidade de ‘virar as coisas ao avesso’, de examiná-lasdeliberadamente, de julgar se o volume e a espécie de provas emmão são suficientes para uma conclusão e, em caso negativo, desaber onde e como encontrar tais evidências” (id, p. 96).

Na perspectiva da formação para a liberdade intelectual,Dewey desenvolve uma reflexão atualizadíssima sobre Interesse edisciplina (1979). Fundamentalmente o autor fala que disciplinado éo “... indivíduo que se formou aprendendo a exercitar a reflexão

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dicotomia entre teoria e prática, acentuadamente presente naperspectiva clássica. Em que pese o reconhecimento de Dewey deque os homens têm certa dificuldade ou lhes é mais fácil não adotaro método científico, o autor reconhece a falta de liberdade econômicada maioria dos homens, exposta na divisão entre classestrabalhadoras e não trabalhadoras, o que leva a nossa sociedade areduzir muitos homens a uma condição servil. Mesmo assim, Deweypensa a liberdade na escola, a qual foi, para o autor, “... a instituiçãoque patenteou com maior clareza o antagonismo que se presumiaexistir entre os métodos de ensino puramente individualistas e aatividade social, e entre a liberdade e a disciplina social.” Talantagonismo, segundo Dewey, “... refletia-se na ausência deambiente e motivos sociais para aprender, e na conseqüenteseparação, na prática escolar, entre método de ensino e métodos deadministração...” O principal na exigência de liberdade são ascondições que “... habilitem o indivíduo a dar sua contribuição pessoal[...], e a compartir as atividades deste de tal modo que sua orientaçãosocial seja o resultado da própria atitude mental do indivíduo, e nãouma coisa imposta por meio da autoridade...” (id, p. 332-3).

Manifestando-se contrário ao individualismo, o autor afirmaque o mesmo não é resultado da educação científica e moralmentesólida, mas “fruto do afrouxamento da compreensão da autoridadedos costumes e tradições como padrões de crenças e ‘certezas” (id,p. 336). Nesta mesma perspectiva, em relação à disciplina, o autorreforça a tese da necessidade de que o interesse oriente osprocedimentos dirigidos ao disciplinamento dos homens,particularmente em processos formativos. Quando a proposta detrabalho pedagógico vai ao encontro do interesse do educando omesmo participa das atividades com maior intensidade e dedicação,posição muito próxima ao que se busca atualmente com propostasalternativas em educação. Neste sentido, afirma: “a atitude de quetoma parte em alguma espécie de atividade é, conseguintemente,dupla: há o cuidado, a ansiedade pelas futuras conseqüências, e atendência para agir, no sentido de assegurar as melhores e evitar aspiores conseqüências” (id, p. 136).

Dewey, ocupado com a tensa relação entre a disciplina (comoação imposta ou proposta pela autoridade) e a liberdade, expõe talproblemática a partir da reflexão em torno do ordenamento lógicodo pensamento. Toma como ponto de partida as concepções de duas

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equilibrada”. Assevera que a educação não é um simples meio paraessa vida, pois já é essa vida. “Manter a aptidão para essa educaçãoé a essência da moral. Pois vida consciente, vida conscienciosa, éum contínuo recomeçar” (id, p. 395). É assim que Dewey colocatoda a importância na educação e, em particular, no conteúdo que aescola desenvolve.

O mais importante problema da educação moral nas escolasdiz respeito às relações entre o conhecimento e a conduta. Pois se oensino recebido num curso regular não influenciar o caráter, seráinútil conceber-se o fim moral como o horizonte unificador eculminante da educação. Quando não há íntima conexão orgânicaentre os métodos e materiais do conhecimento e o desenvolvimentomoral, recorre-se necessariamente a lições e métodos disciplinaresparticulares; o conhecimento não se integra no viver pelos meiosusuais da ação e da compreensão de seu alcance, e a moral de tornamoralista – isto é, um programa de aquisição de uma lista de virtudesconsideradas isoladamente (id, p. 395-6).

O ser humano é tanto mais capaz de participar nas instânciasde construção e de prática da liberdade quanto mais, de formaconsistente, for educado para a moral. Para Dewey, moral “é toda aeducação que desenvolve a capacidade de participar-se eficazmenteda vida social. Ela forma um caráter que não somente pratica osatos particulares socialmente necessários, como também se interessapela contínua readaptação que é essencial ao desenvolvimento e aoprogresso” (id, p. 396).

Concordamos com Rosa (1982) quando afirma que Deweytrabalha a sua proposta pedagógica em favor da liberdade, propostaque, entendemos, firma-se contrariamente ao constructo autoritárioda pedagogia tradicional e, da mesma forma, contra ao que Freiredenomina “educação para a licenciosidade”. Na perspectivatradicional, o conteúdo foi considerado como um conjunto deinformações e destrezas das quais o aluno, dócil, servil e obediente,deveria apropriar-se. É a perspectiva da aprendizagem de fora paradentro, de cima para baixo. A proposta de Dewey, que passará a serdenominada Escola Nova, funda-se na relação entre experiência eeducação. Mesmo reconhecendo divergências entre as duasperspectivas, não há em Dewey oposição radical entre as propostastradicional e nova, o que faz do autor um exemplo de teórico que,

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sobre suas ações e a empreendê-las de maneira resoluta. Acrescente-se a este dom uma capacidade de resistência, sem uma empresainteligentemente escolhida, à distração, às perturbações e aosobstáculos e tereis assim a essência da disciplina” (id, p. 141).

Defensor da formação intelectual e moral séria, Dewey nãoabre mão da reflexão em torno do interesse vinculado à disciplina.Ou seja, ao defender o disciplinamento, particularmente desde aformação para o ato de pensar de forma séria e consistente, Deweytrabalha a indispensável relação com o interesse. Diferencia o meroespectador do agente que participa efetivamente de uma determinadaação. Cria, para o primeiro caso, a analogia com o homem em umaprisão que fica a apreciar a chuva pela janela, para quem tanto fazchover ou não. Para o segundo, a chuva pode atrapalhar umadeterminada atividade, deixando-o frustrado. Destacando osequívocos ou a falsa concepção de disciplina, o autor fala que “... oproblema da instrução é, portanto, o de encontrar matéria à qual oeducando aplique sua atividade especial, tendo um fim ou objetivode importância ou de interesse para ele, valendo-se das coisas, nãocomo aparelhos de ginástica e, sim, como condições para atingirfins.” Ou seja, “o remédio para os inconvenientes da teoria dadisciplina formal [...] é a descoberta de modos típicos de atividade[...] em que os indivíduos tomem interesse, em cujo resultadoreconheçam ter alguma coisa em jogo, e que não se pratiquem sema reflexão, a análise, o uso do raciocínio no escolher e determinar ascondições e o material a observar e a reter na memória” (id, p.143).

A disciplina posta a partir da definição de interesses queenvolvem os homens exige força de vontade. Dewey afirma que“um homem de força de vontade [...] é o que nem é volúvel nem sedesalenta na prossecução dos fins que escolheu; tem capacidade deação, isto é, esforça-se com perseverança e energia para executarou levar avante seus planos” (id, p. 140).

A disciplina para Dewey, na medida em que for construídadesde interesses dos envolvidos, assume ou deve assumir uma fortecaracterística moral. É o que o autor afirma quando escreve: “Adisciplina, a cultura, a eficiência social, o aperfeiçoamento individual,a melhoria do caráter, são apenas aspectos do desenvolvimento dacapacidade de nobremente participar-se de uma tal experiência bem

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afirma Paulo Freire (1993), a coercibilidade necessária na organizaçãodas relações sociais em geral e a busca desperta da liberdade porparte de cada um dos envolvidos num dado processo, acreditandona possibilidade da materialização da tese de que não há democraciasem liberdade e que não há liberdade sem democracia? Enfim, comopensar tais processos sabendo-se, ao mesmo tempo, que a liberdadee a democracia constroem-se em relação com o mundo e com osoutros?

Buscando responder, pelo menos em parte, às questões acima,é possível afirmar, pelo exposto até aqui, que a autoridade,historicamente, tem-se constituído a partir das referências da idade,da força, da sabedoria do espírito ou da capacidade de legitimaçãoda mesma que alguém obtém desde a competência e a ética, comobem define Freire (1997). Mesmo em sua origem natural ou divina aautoridade nem sempre constitui-se desde uma relação de força,mas no direito de exercê-la: direito que deriva do consenso entreaqueles que sofrem o efeito do seu exercício ou da luta pela negaçãoda desigualdade, mas sempre luta por posição hegemônica nasociedade. Há, nesta dimensão, uma forte relação entre a autoridadee a consciência coletiva. A autoridade, assim, atua como forçamediadora entre o ser humano singular e a sociedade.

É entendida, também, como instância de coação exterior, nãoraras vezes buscando, na consciência coletiva, a perspectivalegitimadora das relações sociais, em detrimento da consciênciaindividual. E é por essa razão que a autoridade é um conceito queem muitos momentos históricos esteve ligado à dominação e aoexercício do poder, enquanto condição de possibilidade de alguémimpor a própria vontade numa relação social.

Vinculado ao conceito de autoridade é que surge o dedisciplina, entendida como um conjunto de estratégias a que umgrupo de pessoas é submetido para que obedeça ao poder instituídoe adote comportamentos adequados ao modelo de relação socialimposto por essa mesma autoridade. Assim, dominação é o exercícioda autoridade que se apóia nos mais diversos motivos de submissão,desde a obediência a hábitos inconscientes, até àqueles que seconfiguram como fins racionais. É dessa forma que existe a autoridadeque se estabelece baseada no caráter racional e que se fundamentana crença da legalidade de padrões e regras normativas postas para

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desde a proposta de método científico a ser aplicado à educação,não descarta, apenas em termos políticos, qualquer outro processo.

Cabe destacar, por fim, que Dewey, assim como outrosfilósofos aqui citados, influenciou o “texto” de Freire. ConformeGadotti “o que a pedagogia de Paulo Freire aproveita do pensamentode John Dewey é a idéia de ‘aprender fazendo’, o trabalho cooperativo,a relação entre teoria e prática, o método de iniciar o trabalhoeducativo pela fala (linguagem) dos alunos...” (1996, p. 92).

Autoridade e liberdade na biobibliografia de Freire

Trilhando caminhos contemporâneos

No Brasil, mesmo na história recente da denominadaredemocratização (metade da década de 80), é possível identificaro quanto se consolidaram tanto concepções autoritárias dedemocracia quanto concepções democratistas de organização dasrelações sociais. É o que nos leva, desde o quadro geral de nossasrelações, a perguntar: o que é a hegemonia de um grupo social napolítica senão a sua capacidade de impor o próprio discurso? É óbvioque a construção da hegemonia pode ser realizada pelo menos deduas formas, mas sempre com a presença forte do Estado: querpelo emprego da força e da violência, quer pelo uso da persuasão.Ambas buscam a obtenção de resultados que dêem estabilidade aopoder constituído.

A democracia atual, onde ela acontece, não raras vezes fazcom que “massas” acreditem que estão decidindo, do que decorremquestões como: por que os homens e as mulheres vivem emsociedade? Por que os seres humanos devem submeter-se às ordens,aos governos, às leis...? Locke (1983) fala do governo, constituído eeleito como funcionário do povo para organizar as relações sociais,concebendo a possibilidade de rebelião desse mesmo povo e aconseqüente destituição do governo, caso este não execute decisõesconcebidas por aquele. Ou, poderíamos questionar, o que é o poderpolítico, considerado como uma relação entre indivíduos que mandame outros que obedecem? Sempre foi assim? É algo inscrito nanatureza? Como organizar as relações sociais que compulsoriamenteexistem e não há como evitar a convivência com elas? Como constituiressas relações de forma democrática? Como conciliar, conforme

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Considerando a fala de Guzzoni, a autoridade do educador/da educadora é legítima e necessária ao se constituir em compromissocom a construção da autonomia do educando/da educanda. Para aautora, o conhecimento é essencial para que a autonomia seconstitua, pois na medida em que os educandos apropriam-se doconhecimento e da cultura vão adquirindo capacidades para exporcriticamente o mundo já estabelecido e identificar possibilidades deorganização social diferentes da vigente (id, p. 22). Em talperspectiva, há, como afirma Freire, um desafio à curiosidadeepistemológica do educando, permitindo e desafiando à pesquisa, àbusca de informações e, mais ainda, à crítica séria e consistente aosmodelos culturais já produzidos. Atitude contrária do educador/aeducadora não traria outro resultado senão a reprodução dahierarquia social, ou seja, se o educador e educadora não estiverema serviço da autonomia do educando e da educanda o exercício dasua autoridade desempenhará papel fundamental na reproduçãosocial.

Furlani (1987), discutindo a problemática da autoridade apartir de professores e estudantes universitários, observa que osmesmos afirmam que a autoridade do educador se dá a partir dasua competência, da sua capacidade de disciplinamento e de avaliaçãodo processo ensino-apredizagem. Snyders, da mesma forma,discutindo a necessidade da autoridade nos processos de formaçãohumana, particularmente em posição crítica às propostas não-diretivas, afirma que é fundamental que os educandos construam,desde o grupo que se constitui em sala de aula, referências deautonomia, de superação do isolamento e do individualismo. Mas,será o grupo, os pares ou o mundo da sala de aula suficientes paraa construção de referenciais para a compreensão da realidade e oconseqüente posicionamento crítico diante da cultura existente? Aautoridade e a diretividade, eticamente constituídas, têm a tarefade desafiar os alunos a construírem a denúncia da realidade socialem que vivem, a partir da escola (SNYDERS, 1974), o que atribuicaráter político-pedagógico à sala de aula.

As teorias acima possibilitam pensar em autoridadeescravizante (mesmo que posta em contexto democrático) e aautoridade libertadora. A dimensão da autoridade, aqui, é assumidaem sua relação com a competência e a ética, ou seja, no caso da

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os indivíduos. É a autoridade legal, propriamente dita. Há, ainda, aautoridade que tem origem na tradição, isto é, que se baseia nacrença cotidiana das tradições e na tese da legitimidade do statusquo, tanto em relação ao modelo social em que vivem os indivíduosquanto em relação ao exercício da própria autoridade.

A questão coloca-se, também, para além da necessidade delegitimação da autoridade, na justificação ou da sustentação damesma, ou seja, autoridade é poder, é probabilidade de alguémimpor a própria vontade dentro de uma relação política. Por isso éque, com freqüência, autoridade representa dominação, imposiçãode normas, limites que se impõem etc., o que, historicamente, apartir da instauração da racionalidade moderna, especialmente, levouintelectuais pensadores a questionar a legitimidade da organizaçãosocial desde “uma autoridade”, seja qual for a sua origem.

Cremos ter discutido até aqui alguns detalhes acerca daautoridade política e pedagógica: sua origem, sua legitimidade esua interferência e realização de intencionalidades educativas.Guzzoni (1995:20) afirma que é possível, a partir da reflexão sobrea autoridade na política, iluminar a discussão em torno do que sepassa na área pedagógica: como se constitui, quais os fatores que alegitimam, aliás, questões essenciais ao tema proposto nestetrabalho. Em relação à presença da autoridade na educação, a autora,citando Laberthonnière, afirma: “A autoridade é tida comofundamental na aprendizagem, podendo ser concebida de modosdiversos: 1) a autoridade que escraviza, que se dá numa relação decoerção e violência e que tem como conseqüente correspondênciauma obediência passiva e servil.” Neste caso, para a autora, “não sepode falar legitimamente em autoridade e, sim, em autoritarismo;2) a autoridade libertadora que, ao inverso, direciona e orienta ojovem, mas para um fim distinto do primeiro caso, ou seja, buscaconferir-lhe autonomia e não dependência ou submissão da ação,alvos da autoridade escravizante.” Confirmando sua opção,Laberthonnière afirma: “a obediência libertadora, bem como aautoridade liberal, são sempre relacionais, pois o poder do educadoré reconhecido pelo educando como legítimo, implicando confiança eaceitação”, pois “visa a autonomia de seus alunos” (GUZZONI, 1995,p. 21).

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Já a autoridade na perspectiva de Paulo Freire é amaterialização de uma relação cuja constituição dá-se desde o diálogoque os sujeitos envolvidos estabelecem. Mas como exercer aautoridade, mesmo baseada em concepções teórico-práticaslegítimas, num contexto cultural organizado para consolidar asubmissão a comportamentos necessários à manutenção eatualização dos modelos de produção e consumo como os vigentes?

Bourdieu (1997), discutindo a condição de possibilidade daliberdade, da autonomia e da ação consciente, aponta quatroproblemas que têm causa no sistema de televisão hoje,particularmente desde o que ele denomina de Tele-jornalismo: adifusão de visão parcial do mundo, a anulação do tempo necessáriopara que os indivíduos (telespectadores) possam refletir acerca deduvidosas e parciais informações que recebem, a destruição daheterogeneidade cultural e o risco a que está exposta a democracia.Ou seja, o que está em questão são as condições dos humanosdiante da carga cultural que recebem e sua relação com outrasinstâncias de constituição de valores ético-morais para pensar econstruir relações sociais. Isto é, o que está em discussão são ascondições de interferência da escola e da autoridade pedagógico-política do/a educador/a e da escola diante do poder da industrialcultural. Bourdieu, então, fala dos meios de comunicação comoinstâncias produtoras de sensibilidade para o consumo e não para acriação.

Assim, vale questionar: como construir a liberdade ou garantira liberdade para todos se o sistema em que vivemos é extremamenteperverso, conforme expressão do próprio Freire? Frei Betto, atravésde artigo intitulado “Fora do neoliberalismo há salvação”?, fala doavanço tecnológico como fator de distanciamento cada vez maisacentuado entre uma minoria privilegiada e a maioria que, no Brasil,sequer dispõe de rede de esgoto, instalações sanitárias, saúde,educação qualificada etc. Empresas duplicam ou triplicam a produçãocortando pela metade o número de trabalhadores. Qual apossibilidade de liberdade que têm as pessoas submetidasconstantemente à angústia da falta de emprego? Segundo Betto, odesemprego desestabiliza os humanos. Para os que ainda estãoempregados, o medo de perder o emprego cria instabilidadeemocional levando as pessoas às drogas, ao alcoolismo, ao estresse

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escola e da sala de aula (mas, da mesma forma, ligada à educaçãoem geral e à organização da sociedade), nas dimensões pedagógica(construção do conhecimento) e política (visão de mundo,compreensão e fundamentação da ação), conforme já anunciamosa partir de Paulo Freire. Isto é, é a autoridade que orienta a criaçãoe a re-criação do conhecimento, na pesquisa independente e formaçãocrítica diante dos valores postos pelo modelo cultural vigente. Talconcepção deve ser filosoficamente fundada, ou seja, o problemada autoridade liga-se à sua necessária justificação ou ao fundamentoque sustenta a sua validade. Embora a tradição seja indispensávelpara recuperar o passado que está em nós, enquanto retomada dasgrandes mensagens de nossa cultura, de recuperação das raízes denosso modo de ser e pensar, para melhor compreender a nós mesmose a história como um todo, tal perspectiva não é suficiente paragarantir legitimidade ao exercício da autoridade. E é por essa viaque a dimensão de poder, sempre presente no exercício da autoridade(acadêmico, político...) aparece de maneira bastante explícita.

Aceitando a histórica afirmação da intrínseca relação entreautoridade e poder, passaremos a tecer breves considerações, asquais, entendemos, embasam as idéias aqui defendidas. Exercitar opoder é atuar para que algo aconteça conforme o esperado ouconforme o que é desejado ou proposto por quem comandadeterminada ação. Ter poder sobre alguém é ter a capacidade defazer com que a sua ação se realize de acordo com um objetivopreconcebido por quem detém posição privilegiada de comando. Maso que legitima o exercício do poder é a condição de possibilidadepara a constituição ética e competente da autoridade. Correspondeao que aparece na proposta freiriana de organização da escola, dasala de aula e da sociedade em geral. É através da legitimidade queas relações de poder vão se estabilizando e consolidando, podendodar origem a relações dialógicas vitais para a constituição daautoridade. A dominação, o autoritarismo e, por que não, alicenciosidade, são componentes de uma relação de poder que seorienta por regras que se quer estáveis (mesmo que não legítimas),mantidas pela força ou pela persuasão, ou seja, são relaçõesencobridoras da concentração do poder no educador/na educadora,no diretor/na diretora etc., no caso da escola.

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também disciplina no imobilismo da liberdade, à qual a autoridadeimpõe sua vontade, suas preferências como sendo as melhores paraa liberdade. Imobilismo a que se submete a liberdade intimidada oumovimento da pura sublevação.” Por isso “... é que a autoridade quese hipertrofia em autoritarismo ou se atrofia em licenciosidade,perdendo o sentido do movimento, se perde a si mesma e ameaça aliberdade. Na hipertrofia da autoridade seu movimento se robustecea tal ponto que imobiliza ou distorce totalmente o movimento daliberdade.”

Da mesma forma, “a liberdade imobilizada por uma autoridadeatrabiliária ou chantagista é a liberdade que, não se tendo assumido,se perde na falsidade de movimentos inautênticos...”. Defende, porfim, “uma democracia que, afinal, persiga a superação dos níveis deinjustiças e de irresponsabilidade do capitalismo. [...] O professordeve ensinar. É preciso fazê-lo...” (FREIRE, 1993, p. 115-8).

É assim que a proposta passa pela crítica à prática produtivado poder autoritário à construção da prática produtiva da liberdadecoletiva e solidária através da pedagogia da esperança e do diálogo.A perspectiva freiriana ultrapassa tanto os limites do autoritarismoquanto da pedagogia da licenciosidade como condição depossibilidade para a superação do senso comum no processo deconstrução do conhecimento e de transformação social. A questão énão negar a liberdade de ser do outro, mas, da mesma forma, nãoabandonar a criança, o jovem, o educando (o/a outro/a) semreferências para a sua formação. Por isso, entendemos que énecessário refazer a reflexão sobre a democracia e o poder político.Esse poder, sim, que existe, mas nem sempre é facilmente percebido.Daí a concepção de poder que, para Freire, como já dito, aproxima-se do conceito de autoridade que desenvolve, correspondendo àcapacidade que humanos têm de, mediados pelo diálogo, aceitandoa diferença (não do antagônico), problematizar o “mundo vivido” oua experiência imediata e desafiar (e deixar-se desafiar) o interlocutorà superação do estágio em que se encontra. É a materialização dapossibilidade da “convivência com os diferentes para que se possamelhor lutar com os antagônicos” (FREIRE, 1994, p. 39), o quepossibilita a construção de uma perspectiva que ultrapassa a visãodicotômica de poder, compreendendo as relações humanas comointerdependentes e concebendo a influência das instituições e daspessoas, umas sobre as outras.

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etc. É assim que vão sendo firmados os mercados e os produtos nabrutal concorrência que o mundo estabeleceu recentemente,baseada, pensamos, fundamentalmente nos pressupostos teóricoselaborados por John Locke, no século XVII (FREI BETTO, 1997).

Freire e a condição de possibilidade da liberdadena necessária presença da autoridade

Diante da relação entre autoridade e liberdade, Freire exploraa questão que anunciamos anteriormente: a autoridade estará naforça ou na persuasão, através do que, instituições diversas - escolas,prisões, manicômios etc. – desenvolvem jogos de poder buscandomaterializar a moral individual e tematizar a idéia de ação erradaligada ao indivíduo originador da mesma e a de ação correta ligadaà orientação institucional que é veiculada? Mais: cabe perguntarqual a autoridade que nos ajuda a olhar o mundo? É a que empregaa força ou a que se constitui desde a ética e a competência político-pedagógica? Como perceber o quanto se está longe do mundo davida, constituído por contradições sócio-históricas que produzemdesumanizações? Como descobrir as causas estruturais quedeterminam a marginalização e a exclusão de muitas pessoas? Comoconstruir referenciais que permitam perceber e analisar as relaçõesde autoritarismo da sociedade, da escola, da família etc.? Comosuperar a dicotomia da participação e da democracia em um sistemaautoritário, às vezes, e democratista em outros? Como garantir,enfim, a liberdade humana diante dos limites e possibilidades que,na condição histórica em que os humanos se encontram, enfrentam?

Defendemos, na provisoriedade própria de uma hipótese, quePaulo Freire elabora o seu texto a partir de experiências de vida,político-pedagógicas, orientadas por um projeto político, o qual partede uma constatação: a sociedade brasileira é injusta e o modelocultural dominante usa mecanismos repressivos e ideológicos paraa sua manutenção. Freire busca, assim, apontar corajosamentecaminhos de libertação, de forma explícita e com direção política. Edaí a necessária presença da “autoridade político-pedagógica” nosprocessos educacionais em geral, defendida quando afirma: “Nãohá disciplina no imobilismo, na autoridade indiferente, distante, queentrega à liberdade os destinos de si mesma. Na autoridade que sedemite em nome do respeito à liberdade.” Para ele, “... não há

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ser, em circunstâncias especiais, (e em níveis existenciais diferentes),autoridades [...] (FREIRE, 1982, p. 210-11).

Ou seja, considerando a história humana, encontrar respostasà problemática da relação e coexistência, sempre tensa, porquehumana, entre liberdade e autoridade, que Freire coloca tambémem relação à disciplina, é trabalho também de educadores/as,portadores da tarefa da formação humana.

Uma das questões relacionadas às condições de possibilidadeda liberdade dos seres humanos é, conforme o próprio liberalismoclássico, como já dito, a justa articulação entre os poderes dasociedade e os do Estado e a consequente instauração da autoridadepolítica. É a questão do jogo-limite entre a liberdade pessoal dosindivíduos e a idéia da autoridade necessária do Estado ou qualqueroutra instituição social para a garantia das liberdades individuais.Eis a grande discussão que se instalou na modernidade. A tesedefendida por Locke é que sem a autoridade a liberdade torna-sefrágil, inconsistente e restrita a grupos ou indivíduos cujas posiçõesna sociedade têm, na relação de poder, hegemonia. Mas esqueceu omesmo Locke que a sua própria proposta acabava por garantirliberdade a um grupo – a classe burguesa – em detrimento de outros.Portanto mesmo as instituições sociais, como o Estado, criadas peloshumanos para a organização de suas relações, não garantiram aliberdade para todos os humanos. Talvez porque esqueceram que omundo humano é essencialmente “tarefa cultural”, ou seja, é desafiopermanente para a (re) construção do já construído e a construçãode novos elementos culturais, parte integrante do mundo da vida dehumanos em sociedade e não dádiva divina, natural ou obra depoucos iluminados.

A ação humana livre dá-se quando os humanos agemconscientemente, ou seja, quando sabem o que fazem e por quefazem o que fazem, mesmo que enfrentando os limites que asrelações sociais lhes impõem. O ser humano, racional, é tanto maislivre quanto mais responsável for, ou seja, quanto mais razão houverna constituição dos atos praticados, considerando que a ação humanadesenvolve-se à luz do conhecimento, proposta de Kant para que oshomens cheguem à felicidade, embora dimensão insuficiente paracompreender a complexidade do humano. Assim, o humano comoser de razão é um ser livre. Livre é quem “é causa de si” na

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O mundo vivido e imediato no qual se situa a escola devepassar por análises aprofundadas em relação aos processos deformação das pessoas em geral. A racionalidade sempre faz desafiosà universalidade ou à globalidade. E não raras vezes os nossosreferenciais de análise pouco contemplam de racional, no sentidooriginal do termo, ou seja, de compreensão ampla e global docontexto desde o qual um determinado fenômeno (neste caso, aescola) é refletido. Recordamos Sünker (1994, p. 107) quando afirma:“Contra todas las críticas postmodernas al logocentrismo, hay quesostener que no há tenido lugar un exceso de Ilustración sino unacarencia de ella. [...].” E segue o autor: “En consecuencia, contralas posiciones postmodernas hay que sostener en forma decisivaque la ‘pluralización de formas de vida’ [...] sólo puede conseguirsesobre el fundamento de un pensamiento universal, que nosproporcione la base para una teoría del sujeto fundamentada teóricae intersubjetivamente, y que nos remita tanto desde la perspectivade la teoría como de la política social a las condiciones de posibilidadde un discurso sobre las ‘diferencias’.”

Por outro lado, as críticas que educadores/as têm feito aoplanejamento, à execução e à avaliação do processo pedagógico, àausência de democracia, à falta de oportunidade de participaçãoetc., são legítimas. Mas democracia não pode ser confundida comluta por licenciosidades. Isto é, lutar por democracia não é suficientee não resolve os problemas com os quais se defronta a escola pública,particularmente. São preocupações importantes, fundamentais, masapenas a partir de um contexto de lutas maiores que envolvem arevisão do constructo axiológico da sociedade como um todo naqual situa-se a escola. A fala de Freire, a seguir, revela o caráter dadiscussão que aqui instauramos: “O fato, contudo, de na teoriadialógica, no processo de organização, não ter a liderança o direitode impor arbitrariamente sua palavra, não significa dever assumiruma posição liberalista, que levaria as massas oprimidas - habituadasà opressão - a licenciosidades.” Para Freire, “teoria dialógica da açãonega o autoritarismo como nega a licenciosidade. E, ao fazê-lo, afirmaa autoridade e a liberdade. Reconhece que se não há liberdade semautoridade, não há esta sem aquela.” Atando a discussão acerca daautoridade, Freire lembra: “a fonte geradora, constituinte daautoridade autêntica está na liberdade que, em certo momento sefaz autoridade. Toda liberdade contém em si a possibilidade de vir a

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problemas que surgem neste processo, pela própria criança, serãoelementos suficientes para que possamos afirmar que estamosconstruindo a autonomia, tendo presente a necessária referência desociedade injusta e desigual na qual estas mesmas crianças vivem?Será que em muitas escolas não estamos trabalhando na direção doconceito de autonomia que, hoje, interessa sobremaneira ao modeloprodutivo e consumidor hegemônico? Autonomia, criatividade,autocrítica etc., conforme as exigências dos novos pressupostos domundo da produção e do consumo: serão tais concepçõesgarantidoras de consciência crítica3 e de independência em relaçãoaos modelos culturais postos hegemonicamente hoje4?

As recentes Políticas de Educação no Brasil propuseram queo aluno ingresse na escola aos seis anos, que o ensino fundamentalaumente de oito para nove anos e que o educando tenha uma jornadacada vez maior na escola, passando das atuais quatro horas (quandoisso acontece) para sete ou mais horas diárias. Na perspectiva domodelo hegemônico parece importante que isto ocorra na medidaem que o aumento da escolaridade favorecerá uma qualificação maissólida para o processo de produção econômica que os novos temposdemandam. A realização de atividades complementares às aulas,na escola, com colegas e com assessoria de pessoal especializado,da mesma forma, garantirá padrão de qualidade, capaz de colocar acriança em condições de igualdade nas diversas relações sociais emque se coloca. Assim, a criança orientada poderá, maisautonomamente e com mais qualidade, desempenhar a sua situaçãode indivíduo em formação. Mas será isto suficiente à formação paraa autonomia consciente, crítica, que habilite pessoas a interferiremnos destinos da história a ser construída, a qual, para o modelohegemônico, já está determinada?

3 Falamos de consciência crítica no âmbito da ação, consciente e coletiva, ou seja, aconsciência do “dever pessoal cumprido” é uma dimensão – ao estilo do imperativomoral kantiano, ou seja, é necessário que eu faça tudo aquilo e tão somente o queeu admito que outros também o façam – fundamental, indispensável, mas nãosuficiente. Adotar uma criança abandonada é importante, mas não suficiente paraque a organização que excluiu a criança adotada e outras tantas possa ser mudada.Isso porque adiante outras crianças serão excluídas, como parte constitutiva domodelo de organização da vida das pessoas que está sendo adotado.

4 Lembramos, aqui, a obra de Bourdieu “Sobre a televisão” e o texto “Sobre asemicultura” de Adorno, obras citadas na Bibliografia.

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autodeterminação. Mas essa tese só se sustenta diante da dimensãode universalidade dessa faculdade, ou seja, ser livre na relação,“infernal” (expressão sartreana) ou não, com os outros. Pelaracionalidade, o humano pode tornar-se capaz de transcender omundo da cultura e da sociedade já estabelecidos, enquantoinstâncias limitadoras, mesmo que aí residam, também, aspossibilidades de realização desse mesmo humano.

Freire: cruzando autonomia com a liberdadee a autoridade

Avançando na discussão proposta para este terceiro capítulo,pretendemos apresentar, a seguir, a problemática da autonomia e atensa relação com a autoridade e a liberdade. O propósito é dardestaque à concepção de autonomia em Freire, buscando aelaboração de indicadores que auxiliem na reflexão sobre a suarelação com a liberdade e a autoridade, dimensões particularmentepresentes na escola. Conscientização, da mesma forma, é temaimportante para o presente estudo.

Para construir uma reflexão em torno da autoridade e daliberdade a partir de Freire, a dimensão da autonomia é umadiscussão que se impõe, pois esta parece ser a meta freiriana noprocesso educativo.

O ponto de partida são as relações político-pedagógicas queocorrem particularmente na escola, onde há, não poucas vezes, umprocesso de ensino-aprendizagem que forma as pessoas para oindividualismo, levando educando, educanda, educador e educadoraàquilo que se denomina de anomia ou mantendo-os em estadoheterônomo. Lembramos encontros2 com professoras em Cursos deFormação Inicial e seus relatos. As professoras afirmam que passarama superar o autoritarismo e que a autonomia dos estudantes vaisendo firmada na medida em que refletem a própria prática à luz deteorias e experiências que trocam e realizam com colegas. Mas,com que conceito de autonomia trabalham? A construção doconhecimento a partir da experiência da criança e a solução dos

2 Programa especial de Formação de Professores em Serviço, organizado pela FaE/UFPel, realizado de 1995 a 2005.

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autonomia. A questão central em Kant parece ser a seguinte: paraalém de relações pedagógicas na atividade formativa ou no processoformativo que se dá entre educador e educando, há o problema domundo que depende do homem para ser compreendido e produzido.

Há uma possível aproximação, a partir de perspectivasepistemológicas e sociais diferentes, entre as reflexões de Kant e deFreire. Destacamos um elemento que tem sido objeto de dúvidas equestionamentos, elaborados e expressados por professoras eprofessores com os quais temos atuado, buscando interlocuções emtorno da relação entre autoridade e liberdade: é possível garantirliberdade, tanto ao educando quanto ao educador, diante do exercícioda autoridade por parte de alguém? As diferenças político-antropológico-pedagógicas entre Freire (“social”) e Kant (“individual”)não impedem aproximações entre os pensadores, em especial noque diz respeito à constituição das condições de liberdade pelo serhumano.

Kant foi aqui retomado porque a sua reflexão, apostamos, éprovocativa e influenciadora de produções seguintes sobre moral,autonomia etc. Mas a discussão que propomos neste texto inverte oponto de partida kantiano e a reflexão é elaborada a partir dascondições de possibilidade dos humanos, isto é, face o mundo danão liberdade, da autoridade autoritária e, não raras vezes, daheteronomia, ou, até, da anomia.

Paulo Freire não se detém no desenvolvimento de um conceitode autonomia, a priori, anterior ao que a experiência refletidapossibilita. A sua reflexão está presente nas incursões que vai fazendoa respeito de “saberes necessários à prática educativa”, conformereflexão exposta em Pedagogia da Autonomia (1997) e outrosescritos. Mais ainda: Freire intitula Pedagogia da Autonomia a umade suas últimas e principais obras refletindo exaustivamente temascomo autoridade, liberdade, competência, ética etc. O que leva Freirea apresentar, assim, a sua reflexão sobre autonomia? É, pensamos,a própria compreensão de autonomia que o faz seguir o caminho dadiscussão sobre ética, competência e autoridade5.

5 Compreendemos, com Freire, a autonomia como um processo de construção quedeve resultar “no amadurecimento do ser-para-si”, o que ocorre pela práticaconstante de “experiências estimuladoras da decisão e da responsabilidade, valedizer, em experiências respeitosas da liberdade” (FREIRE, 1997, p. 121).

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A concepção de autonomia presente neste trabalho vincula-se à independência cooperativa que os sujeitos envolvidos,problematizados pela autoridade legítima, são capazes de realizar,ou seja, vincula-se à capacidade que as pessoas adquirem de,conscientemente, assumirem posições de solidariedade e deconstrução coletiva de projetos que atendam a objetivos comuns,desde as elaborações singulares possíveis. A relação pedagógico-política que se trava entre os sujeitos envolvidos em um determinadoprocesso de ensino-aprendizagem é mediada por jogos de poder. Énestas relações que se constituem ou não as condições depossibilidade para a instauração da liberdade. Por isso é que aautoridade em Freire é uma presença formadora, na perspectiva daconstrução da autonomia crítica e capaz de assumir posiçõesindependentes e solidárias, ao mesmo tempo, na busca desperta daliberdade.

Originalmente, o termo autonomia - autós - significa por sipróprio ou de si mesmo. É a capacidade que alguém adquire de segovernar por si mesmo; direito ou faculdade de se reger (uma ação)por leis próprias; liberdade ou independência moral ou intelectual;propriedade pela qual os seres humanos pretendem poder escolheras leis que regem sua conduta.

Tendo por base a tradição filosófica, autonomia tem sua origemfortemente marcada por Kant, o qual procurou designar aindependência da vontade em relação a todo o desejo ou objeto dedesejo e a capacidade dessa mesma vontade do indivíduo paradeterminar-se, sempre em conformidade com uma lei própria, a darazão. Kant contrapõe a autonomia à heteronomia pela qual a vontadeé determinada pelos objetos da faculdade de desejar. Da mesmaforma, os ideais morais de felicidade ou de perfeição supõem aheteronomia da vontade, supõem que ela seja determinada pelodesejo de alcançá-los e não por uma lei sua e própria. A independênciada vontade em relação a qualquer objeto desejado é a liberdade nosentido negativo, ao passo que a sua legislação própria (como razãoprática) é a liberdade no sentido positivo. A lei moral não exprimenada mais do que a autonomia da razão prática, isto é, da liberdade.

Kant desenvolve as suas reflexões pedagógicas tendo presenteo constructo filosófico acima anunciado, buscando atender àsexigências da constituição do “imperativo moral” que recai sobre oindivíduo, cuja observância garante, a esse mesmo indivíduo,

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numa busca permanente. [...] Minha esperança parte de minhanatureza enquanto projeto. Por isso sou esperançoso, e não porpura teimosia” (FREIRE, 1995, p. 75).

O respeito devido à autonomia de ser do educando, segundoFreire, é um dos saberes necessários à prática educativa, dimensãointeiramente antropológica, pois não é possível pensá-la sem admitira inconclusão do ser que se sabe inconcluso. Defendendo a presençada autoridade legítima do professor e da professora, Freire afirmaque é essa consciência de inacabados e que o “... o professorautoritário, que por isso afoga a liberdade do educando [...], tantoquanto o professor licencioso rompe com a radicalidade do serhumano...”. Por isso, “... a dialogicidade verdadeira [...] é a formade estar sendo coerentemente exigida por seres que, inacabados,assumindo-se como tais, se tornam radicalmente éticos (FREIRE,1997, p. 66-7).

É com esta afirmação que é possível destacar em Freire areflexão sobre “Ensinar exige respeito à autonomia do ser educando”(id, p. 65), onde o que aparece em destaque é a coerência que éexigida de quem busca e defende a autonomia do outro, do educando.“Saber que devo respeito à autonomia, à dignidade e à identidadedo educando e, na prática, procurar a coerência com este saber, meleva inapelavelmente à criação de algumas virtudes ou qualidadessem as quais aquele saber vira inautêntico...” (id, p. 69).

Para o educador que sabe que deve respeitar a dignidade doeducando, a sua autonomia e a sua identidade no processo, Freireaponta uma exigência de realização e não de negação desteconhecimento, o que demanda reflexões críticas permanentes sobrea prática educativa.

Freire não separa a reflexão sobre autonomia, identidade edignidade do educando. Esta reflexão conjunta exige um acentuadoesforço do educador no sentido de diminuir, cada vez mais, a distânciaentre o que é dito e o que é feito.

Ao iniciar esta reflexão apontávamos para a indispensávelrelação entre autoridade e autonomia, ou seja, a autoridade legítima,conforme Freire, que possibilita a instalação de condições para aconstrução da autonomia séria, competente, comprometida etc. Aautoridade, neste sentido, tem a indispensável presença na formação

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O fim da opressão do ser humano e a conseqüente produçãode condição para participar de processos sociais de construção davida, em especial o respeito à dimensão humana do educando,conforme Freire passam pela construção da autonomia do mesmo.Para tanto há que se criticar (no sentido original de “pôr em crise”)permanentemente “à malvadez neoliberal, ao cinismo da ideologiafatalista e sua recusa inflexível ao sonho e à utopia” (FREIRE, 1997,p. 15). Talvez pudéssemos pensar que, ultrapassado o período de“morte” violenta e física, pela força repressiva e pela tortura físico-formal, hoje milhões de pessoas pelo mundo afora, não diferente doque ocorre no Brasil, são diariamente “torturados” face às incertezasdo futuro, não apenas na dimensão existencial, mas, especialmenteem relação às incertezas diante do mundo do trabalho, por exemplo.A luta para mudar o quadro posto, passa pela formação para aautonomia, ou seja, não se justificaria a preocupação com autonomiase a historia apenas fosse reconhecida como dada, previamentedeterminada ou imutável. Portanto, a construção de referenciais parapensar a autonomia depende do reconhecimento de que somoscondicionados, mas não determinados. É assim exposta apossibilidade da construção da própria história.

O que ocorre, segundo Freire, é que a “ideologia fatalista,imobilizante, que anima o discurso neoliberal anda solta no mundo.Com ares de pós-modernidade, insiste em convencer-nos de quenada podemos contra a realidade social que, de histórica e cultural,passa a ser ou a virar ‘quase natural” (id, p. 21). Ou seja, diante detal assertiva, como pensar a construção da autonomia? Não há omenor sentido pensar em formação crítica e autônoma se a históriajá está dada, definida, ou se é feita apenas por alguns iluminados. Eisso interfere no cotidiano da formação das pessoas e, em especial,dos educandos e dos educadores na escola.

A autonomia realiza-se historicamente, no saber-se limitadosdos humanos, programados ou inacabados, mas esperançosos, ouseja, que todo o homem e toda a mulher possam assumir a suahistória: “Nós somos seres indiscutivelmente programados, mas, demodo nenhum, determinados. Somos programados, sobretudo paraaprender... É precisamente porque nos tornamos capazes de inventarnossa existência...” (FREIRE, 1993, p. 126). E Freire continua: “Nãoapenas temos sido inacabados, mas nos tornamos capazes de nossaber inacabados. Aí se abre para nós a possibilidade de inserção

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Ou seja, é decidindo, com os/as outros/as, que se aprende adecidir, por exemplo, num mundo repleto de autoritarismos elicenciosidades. A minha liberdade, a liberdade de cada um(autonomia) cresce no confronto com outras liberdades, com outrasopções etc., com as diferenças, em cuja história de perversão sociale de exclusão exige que se construa elos de encontros na buscadesperta e utópica de relações sociais dignas para todos. É o queFreire reflete diante da relação entre pais e filhos: “O que é preciso[...] é que o filho assuma eticamente, responsavelmente, sua decisão,fundante de sua autonomia. Ninguém é autônomo primeiro paradepois decidir. A autonomia vai se constituindo na experiência devárias, inúmeras decisões, que vão sendo tomadas” (FREIRE, 1997,p. 120).

A humildade permite que, conhecendo os limites, o caminhona direção do ser mais seja iniciado; é a atitude de coragem que ohumano, sabendo dos limites, sabe o que quer e avança no possível;que sabe que nunca “está pronto”, que não se contenta com o quefaz e que busca sempre avançar, analisando sempre as condiçõesque existem como ponto de partida.

Portanto, liberdade, autoridade e autonomia são construçõesinseparáveis em Freire, o que garante um processo, em nível deescola, por exemplo, não descolado do mundo da vida e, por isso,comprometido com a construção de uma história radicalmentehumana, como um ato solidário de intervenção no mundo. Para tanto,Freire é extremamente exigente com a coerência pedagógica, ética,humana, social dos educadores: “Não há nada talvez que desgastemais um professor que se diz progressista do que sua prática racista,por exemplo. É interessante observar como há mais coerência entreos intelectuais autoritários, de direita e de esquerda. Dificilmentecontribui, de maneira deliberada e consciente, para a constituição ea solidez da autonomia do ser do educando” (id, p. 123).

Ele é intransigente na luta apaixonada pela formaçãoautônoma das pessoas, formação esta que “aposta no ser humano”e que não se dá separada de outras lutas. É o que afirma aoapresentar a obra de McLaren (1997): “O gosto pela autonomia, aluta por mantê-la, a busca da criatividade [...], a busca da clareza,a coragem de expor-se, o gosto do risco, a pureza sem puritanismo,a humildade sem servilismo, são aspirações à procura deconcretização... (FREIRE, in MCLAREM, 1977, p. 12).

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dos educandos para a autonomia. É o que Freire afirma na citaçãoabaixo, aqui retomada na perspectiva da construção da autonomia:“Se trabalho com crianças, devo estar atento à difícil passagem oucaminhada da heteronomia para a autonomia, atento àresponsabilidade de minha presença que tanto pode ser auxiliadoracomo pode virar perturbadora da busca inquieta dos educandos...”Da mesma forma se o trabalho é com jovens ou adultos: “... nãomenos atento devo estar com relação a que o meu trabalho possasignificar como estímulo ou não à ruptura necessária com algodefeituosamente assentado e à espera de superação (id, p. 78).

Se a autoridade pode ser presença negativa, isto é, a presençaque inibe a busca inquieta do educando, a que nega a possibilidadeda curiosidade epistemologicamente humana, pode, essa mesmaautoridade, conforme Freire, ser presença desafiadora, competentee ética, capaz de produzir formação autônoma, mas comprometidacom a construção de uma vida humanamente digna para todos. E aautonomia é construída, no âmbito da formação escolarizada, pelacapacidade que o educador tem de atuar com segurança, comcompetência profissional e com generosidade. Esse é o pressupostopara o exercício da autoridade libertadora ou a serviço da formaçãopara a liberdade. O fundamental, “... nas relações entre educador eeducando, entre autoridade e liberdades, entre pais, mães, filhos efilhas, é a reinvenção do ser humano no aprendizado de suaautonomia (id, p. 105).

Partindo da tese de que a “liberdade sem limite é tão negadaquanto a liberdade asfixiada ou castrada” (id, p. 118), é que Freiredefende a possibilidade da construção da autonomia. Autonomiaessa que, além de histórica, constrói-se na criatividade e na tensarelação entre liberdade e autoridade: “Uma pedagogia autoritária,ou um regime político autoritário, não permite a liberdade necessáriaà criatividade, e é preciso criatividade para se aprender” (FREIRE &SHOR, 1996, p. 31). E Freire continua: “... corremos também orisco de, negando à liberdade o direito de afirmar-se, exacerbar aautoridade ou, atrofiando esta, hipertrofiar aquela” (1994, p. 23). Aindispensável liberdade “é uma conquista e não uma doação, exigepermanente busca [...] que só existe no ato responsável de quem afaz. Ninguém tem liberdade para ser livre: pelo contrário, luta porela precisamente porque não a tem” (FREIRE, 1982, p. 35).

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de si, da história, dos outros etc. Freire acentua, neste particular, adimensão política e a formação da subjetividade através das reflexõessobre consciência e conscientização. Quando os/as educadores/asescrevem os seus relatórios, as suas dúvidas, as suas práticas, osseus memoriais, em torno dos quais, felizmente hoje muitas salasde aula constituem-se, descobrem-se como subjetividades, cujasidentidades não ainda estão constituídas. Esse jogo de descobrir-seao recompor a sua trajetória, faz parte da descoberta e da afirmaçãodo educador.

E é nesse contexto que se coloca a compreensão da condiçãode possibil idade para a construção da autonomia e,consequentemente, da relação entre liberdade e autoridadeinterferidora na formação moral do humano, presente em Freire.Mais: a autoridade é positivamente posta como condição depossibilidade para a autonomia e para a liberdade.

Há em Freire uma reflexão sobre a perspectiva da açãoresponsável diante de um mundo que precisa ser construído comreferências éticas universais. Ante tal observação, colocamo-nos emposição de concordância com Canan quando afirma: “Sedesconsiderarmos a idéia de universalismo moral e defendermosum relativismo cultural/moral, provavelmente nossos argumentosem defesa de uma sociedade mais justa, mais humana e igualitárianão existirão.” Para a autora, “relativizar os valores morais, fazendo-os provir unicamente do meio social em que são produzidos, fazcom que a idéia de universalidade seja abandonada como se nela jánão estivessem contidas diferenças produzidas pelos diversos meiossociais” (CANAN, 1997, p. 66).

Retomando, Freire fala da autonomia pela via daconscientização. Na relação de aprendizagem, pensamos, o autornão descarta, na perspectiva da formação para a autonomia,dimensões como educando ativo, mediação pelo diálogo, mudançadas atividades relacionadas com o conteúdo que tenha como pontode partida a própria realidade cultural do educando etc. Em particular,o diálogo, sendo uma exigência existencial, é uma relação de criaçãoque educador, educadora, educando e educanda produzem.Educando, na criação dialógica, encontra-se a caminho da formaçãopara a autonomia. O diálogo é a condição de possibilidade para aproblematização do senso comum, das ingenuidades, tanto do

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Outro caminho, não descolado do que até aqui buscamostrilhar, para construir ou reconstruir a reflexão sobre autonomia emFreire é a relação que esta categoria tem com “conscientização,com construção ou formação da consciência, com a formação doespírito crítico etc., e a busca desperta, pela curiosidade, dacompreensão do mundo”. Assim, coloca-se Freire diante da questão:“A conscientização é o aprofundamento da tomada de consciência,mas nem toda tomada de consciência se alonga obrigatoriamenteem conscientização6.” E é neste sentido, prossegue o autor, “... quea pura tomada de consciência a que falte a curiosidade cautelosa,mas arriscada, a reflexão crítica, a rigorosidade dos procedimentosde aproximação ao objeto fica no nível do ‘senso comum’” (FREIRE,1991, p. 113).

Os seres humanos vivem permanentemente em tensão entreo reino da necessidade e o reino da liberdade. A dimensão física dohumano, reino de necessidades, não está posta, como em algumasteorias clássicas ou contemporâneas, independentemente daliberdade. O ser humano, mesmo que se admita serfundamentalmente sujeito de sua própria história, é condicionadoem sua situação de liberdade pelas circunstâncias em que vive. Amoral, então, que é uma dimensão do social do qual os humanosparticipam, regula as ações dos indivíduos.

Assim, a busca da autonomia está, em Freire, diretamenterelacionada à condição de possibilidade de realização tanto danecessidade quanto da liberdade, dimensões, respectivamente,histórica e ontológica, constituidoras do humano. Mais ainda: ohumano, em Freire, não é um ser pré-existente ou desde sempreconstituído, mas produz-se na medida mesma da construçãohistórico-social que ele vai realizando. A aposta na capacidade dohumano de construir a própria história garante a condição parainterferir na formação de si, na transformação dos objetos com osquais interage e, da mesma forma, na ação com os demais. Paratanto, o ponto de partida para a construção da autonomia do serhumano e do educando em particular são os próprios sujeitosenvolvidos: o seu mundo, a sua cultura, a representação que fazem

6 O processo concreto de busca pela superação é o que Freire chama de conscientização– ação consciente pela libertação.

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permanente. Diálogo que supera o autoritarismo e que é indicadorde uma relação que ultrapassa a própria “atitude licenciosa” e atendência à opressão. É a sempre presente vigilância que todosdevemos nos colocar como tarefa. A autonomia é fruto da superaçãodas condições de submissão que vive o humano.

Os conceitos de tomada de consciência e conscientização emFreire são caminhos que possibilitam pensar a dimensão daautonomia. Há um processo descrito em Freire para que o humanoalcance o estágio da conscientização e, pensamos,conseqüentemente, da autonomia. É como que uma possibilidadede poder transitar por diferentes estágios para chegar a um momentode consciência interferidora e autônoma no mundo. Isto é, estágioem que o humano faz história, cria cultura de forma crítica econsciente (FREIRE, 1980).

A consciência do inacabamento em Freire é dimensãoindispensável ao processo de construção da autonomia. Isso porquetal dimensão permite ao humano inserir-se em um processo de “fazere refazer” a história. Processo, este, desafiador, capaz de provocarno sujeito a necessária tomada de atitude diante do mundo em queele se insere. E isto só é possível na dimensão da autonomia quetorna o sujeito capaz de, sabendo-se incompleto, inacabado, agirteórica e praticamente.

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educando quanto do educador, cuja superação permite-lhes situar-se no mundo de forma autônoma, mas com os outros.

Ainda: Freire fala da ética necessária para que uma ação,autônoma, possa ser considerada moralmente correta. Condenandoa ética pragmatista do capitalismo, ao mesmo tempo neoliberal eselvagem, Freire afirma: “Falo, pelo contrário, da ética universal doser humano. Da ética que condena o cinismo do discurso [...], quecondena a exploração da força de trabalho do ser humano [...] Aética de que falo é a que se sabe afrontada na manifestaçãodiscriminatória de raça, de gênero, de classe” (FREIRE, 1997, p.17).

É possível e fundamental demonstrar que Freire tem umprojeto político-pedagógico a partir do qual entende que deve sedar a ação e a reflexão do educador. A práxis pedagógica a que serefere envolve o mundo das relações mais amplas, nas quais educadore educando atuam. E para capturar essa dimensão não há outrasaída senão entrar em sintonia com essa história que acontececotidianamente. Mas é imprescindível a ação político-pedagógica dealguém para que, nas relações sociais amplas, os sujeitos possamatuar de maneira crítica, criativa, independente, autônoma, massempre solidária. Portanto, as ações de intervenção social a favorda formação dos sujeitos dependem de formação, não apenas deformação escolar. E a questão é que o ponto de partida éextremamente exigente e complexo, ou seja, a situação sócio-econômica em que vivemos é das mais desumanas. Mas esta é areferência a partir da qual se deve iniciar o processo de ação juntoaos sujeitos com os quais buscamos eticamente atuar comoeducadores.

Para tanto, central é a compreensão do mundo complexo dasrelações de poder. O oprimido também é opressor e não apenaspotencialmente um ser que carrega consigo a opressão. No cotidianodas relações que experiencia, o oprimido oprime familiares,vizinhança, colegas de trabalho, de escola etc. Ademais, central éafirmar que o conceito ou o par conceitual opressor-oprimido nãoestá ultrapassado nem pela história que homens e mulherescontinuam fazendo e nem pelo próprio Paulo Freire, visto que emseus últimos escritos, como, por exemplo, Pedagogia da Autonomia(1997) e Cartas Pedagógicas (2000), fala da necessidade do diálogo

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