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Presidente da República Federativa do Brasil João Figueiredo

Ministro da Educação e Cultura Esther de Figueiredo Fenaz

Secretário-Geral do MEC Séigio Mário Pasquali

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Anais do

Seminário Multidisciplinar

de Alfabetização

São Paulo (SP) - 11 a 13 de agosto de 1983

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INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS

Diretora-Geral Lena Castello Branco Ferreira Costa

Diretora de Estudos e Pesquisas Nancy Ribeiro de Araújo e Silva

Diretor de Documentação e Informação Paulo de Tarso Carletti

Coordenadora de Editoração e Divulgação Vera Maria Arantes

S471a Seminário Multidisciplinar de Alfabetização (1983: São Paulo) Anais do Seminário Multidisciplinar de Alfabetização, 11 a 13 de agosto de 1983. - Brasília: INEP, 1984. 158p.

1. Alfabetização. 2. Política educacional. 3. Desen-volvimento cognitivo. 4. Psicolingúística. 5. Método de ensi-no. 6. Formação de professores. 7. Pré-requisito para a aprendizagem. 8. Ensino pré-escolar. 9. Avaliação da educa-ção. I. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacio-nais. II. Título.

CDU 372.415

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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS

ANAIS DO SEMINÁRIO MULTIDISCIPLINAR DE ALFABETIZAÇÃO

SAO PAULO (SP) - 11 a 13 de agosto de 1983

BRASÍLIA 1984

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EQUIPE TÉCNICA

Editora- Assistente Silvia Maria Gal l iac Saavedra

Assistente de Produção Elisabeth Ramos Barros

Revisão Catarina de Carvalho Guerra Elisabeth Ramos Barros Luzitano Garcia C. Filho Maria Thereza L. Nogueira Terezinha Zelinda Werlang

Capa e Diagramação Ana Maria Boaventura

Divulgação e Distribuição Moacyr Ribeiro de Macedo

Comissão Organizadora do Seminário

Eleonora A. M. Maia (Programa de Linguística Aplicada ao Ensino de Línguas, PUC/SP) Leila

Barbara (Programa de Linguística Aplicada ao Ensino de Línguas, PUC/SP) Maria

Regina Maluf (Programa de Psicologia da Aprendizagem, PUC/SP) Mary

Aizawa Kato (Programa de Linguística Aplicada ao Ensino de Línguas, PUC/SP) Mauro

Spinelli (Programa de Distúrbios da Comunicação, PUC/SP) Sérgio

Luna (Programa de Psicologia da Aprendizagem, PUC/SP)

Suzana Vieira (Programa de Distúrbios da Comunicação, PUC/SP)

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO

MESA-REDONDA 1: RELAÇÃO ENTRE ALFABETIZAÇÃO E O CONTEXTO CULTURAL/REGIONAL E SÓCIO- POLlTlCO

Aspectos Sociais e Políticos da Alfabetização ........................................................................ 11 Guiomar Namo de Mello Regionalismo Linguístico e a Contradição da Alfabetização no Intervalo............................... 13 Maria Bernadete Abaurre Alfabetização, Interpretação e Mediação................................................................................. 19 Maurizio Gnerre Algumas Considerações sobre Educação e Contexto Cultural/Regional e Socio político ................................................................................................................................... 26 Sueli Damergian

MESA-REDONDA 2: PRÉ-REQUISITOS PARA A ALFABETIZAÇÃO

Desenvolvimento dos Pré-requisitos para a Alfabetização na Escola ................................. 33 Beatriz Leonel Scavazza Propostas Metodológicas Subjacentes às Cartilhas para Alfabetização de Crianças . 38 Fermino Fernandes Sisto Aspectos do Desenvolvimento Cognitivo e Linguístico e a Alfabetização............................... 40 Lúcia Lins Browne Rego Aspectos Neurológicos ............................................................................................................ 47 Paulo Bearzoti

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COMUNICAÇÃO

O INEP e a Alfabetização....................................................................................... 51 Maria Laís Mousinho Guidi

MESA-REDONDA 3: FORMAÇÃO DO PROFESSOR ALFABETIZADOR

Formação do Professor Alfabetizador.................................................................... 65 Any Dutra Coelho da Rocha A Formação do Professor Alfabetizador: Considerações a Respeito do Ensino de Português................................................................................................................ 69 Luiz Carlos Cagliari 0 Que a Linguística Tem a Dizer ao Alfabetizador ................................................. 80 Míriam Lemle Formação do Professor Alfabetizador.................................................................... 86 Suzana Magalhães Maia Vieira

MESA-REDONDA 4: DEPOIMENTOS DE EXPERIÊNCIAS PROFISSIONAIS EM ALFABETIZAÇÃO

Narrativa da Experiência de Alfabetização nas Escolas Públicas do Estado de Ser gipe ........................................................................................................................ 89 Ana Lúcia Vieira Menezes Judite Oliveira Aragão Leda Sônia Oliveira Linhares Liberaldina Soares da Fonseca Souza Walter Oliveira Ribeiro

Alfabetização numa Creche e Realfabetização numa Clínica................................. 94 Golda Segre Depoimento de Experiências Profissionais em Alfabetização................................. 99 Tereza Roserley Neubauer da Silva

PAINEL: DESCRIÇÃO E AVALIAÇÃO DE PROGRAMAS DE PRÉ-ESCOLA E DE ALFABETIZAÇÃO

Alfabetização: Lendo e Escrevendo e Cartilha da Amazônia ............................... 103 Geraldina Porto Witter

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Programa Alfa ........................................................................................................ 108 Maria Inês Silveira Bueno Formação de Recursos Humanos para a Educação Pré-escolar - Aperfeiçoamen to de Pessoal em Serviço com Vistas à Implantação do PROEPRE ....................... 111 Orly Zucatto Mantovani de Assis 0 Projeto de Alfabetização de Mogi das Cruzes - PROLESTE ............................... 122 S.érgio Antônio da Silva Leite Teorias da Diferença e Teorias do Déficit: Reflexões sobre Programas de Inter venção na Pré-escola e na Alfabetização .............................................................. 133 Cláudia T. G. de Lemos Análise dos Programas de Alfabetização .............................................................. 146 José Geraldo Silveira Bueno Descrição de Programas de Alfabetização ............................................................ 149 Miriam Lemle

CONCLUSÃO

Relatório Final Apresentado pela Comissão Organizadora ...................................... 151

ANEXOS

Expositores Convidados.......................................................................................... 153 Participantes do Seminário ..................................................................................... 156

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APRESENTAÇÃO

Até há pouco tempo, um debate multidisciplinar em torno de assuntos relativos à linguagem parecia uma utopia. Contudo, com toda a expectativa negativa que era de se esperar, o INEP resolveu organizar, em 1982, um Seminário Interdisciplinar sobre a Aprendizagem da Língua Materna, de que fui uma das coordenadoras. O resultado foi surpreendentemente promissor. O que, de início, parecia uma conversa de surdos passou a ser uma conversa amistosa em que termos técnicos de uma área eram usados por participantes de outras áreas, de forma fluente, mas em tom de brincadeira. Lem-bro-me ainda que na despedida do Encontro a saudosa Ana Maria Poppovic chegou-se para mim e disse: "ainda acho difícil conversar com linguistas, mas acho que vale a pena". Senti que o primeiro passo estava dado.

Motivados por esse mesmo espírito, o de abrir fronteiras e quebrar barreiras, e convictos, ainda, de que sugestões educacionais construtivas só poderiam brotar de uma compreensão mais global do objeto a ser ensinado, formamos um grupo de trabalho na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, composto de professores do Programa de Linguística Aplicada ao Ensino de Línguas, de Psicologia da Aprendizagem e de Distúrbios da Comunicação. 0 tema de trabalho foi: Alfabetização. Dos encontros nasceu a idéia de se promover um Seminário Multidisciplinar sobre o tema, com o objetivo de aprofundar um dos tópicos abordados pelo Seminário do INEP sobre Aprendizagem da Língua Materna. O projeto foi submetido à PUC/SP e ao INEP e de ambos tivemos pleno endosso: a PUC concedendo-nos espaço e infra-estrutura e o INEP a ajuda financeira necessária para trazer ao encontro especialistas das diversas áreas com trabalhos que a Comissão julgou relevantes.

O Seminário não se limitou a trazer especialistas e pesquisadores em alfabetização. Foram convidados também personalidades que atuam direta ou indiretamente no processo de alfabetização: professores, técnicos de secretarias de educação, assessores educacionais. 0 Seminário contou ainda com a presença da professora Maria Laís Mousinho Guidi, que, como representante oficial do INEP (área de pesquisa), incum-biu-se de relatar as pesquisas em alfabetização financiadas pelo INEP e a política desse órgão em relação ao assunto. Um dos objetivos do encontro foi ainda discutir as propostas de alfabetização efetivamente implementadas e para isso convidaram-se vários autores de programas de alfabetização, bem como especialistas para debatê-los. Em todas as atividades, amplo espaço foi reservado para a participação do plenário.

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Os Anais que apresentamos, cuja impressão também foi financiada pelo INEP, são o resultado desse encontro. Esperamos que sua divulgação possibilite àqueles que não puderam estar presentes ao Seminário viver um pouco o clima de diálogo e interação que se estabeleceu durante o evento.

Mary Aizawa Kato Coordenadora do Seminário

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MESA-REDONDA 1: RELAÇÃO

ENTRE ALFABETIZAÇÃO E O CONTEXTO

CULTURAL/REGIONAL E SÓCIO-POLÍTICO

Aspectos Sociais e Políticos da Alfabetização*

Guiomar Namo de Mello Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP)

Ao refletir sobre a escola, temos que encarar seus aspectos propriamente técnicos e pedagógicos, especialmente no caso da alfabetização e ver também seus aspectos sociais e políticos, sobre os quais faremos algumas colocações, não estritamente voltadas para a alfabetização, mas para a questão da escola em geral.

A educação de um modo geral é politica, como a escola é política. Não porque lida com relações sociais de maneira ampla, mas sobretudo porque se insere em relações sociais de classes ou grupos diferentes dentro da sociedade e porque lida com um bem que é diferentemente distribuído e não é igualmente apropriado pelas diferentes categorias sociais.

Assim, ela é política porque se insere diretamente em relações que são emoções de grupos diferentes, eventualmente antagônicas. Ora, o processo de alfabetização neste sentido seria duplamente político, porque a entrada na escola para aprender a ler e a escrever se constitui em demarcador claro e nítido desta distribuição desigual de um bem. Aprender a ler e a escrever constitui, nos países de economia dependente, um divisor de águas que separa os que têm condições de se apropriar da habilidade de ler e escrever — cuja utilidade ninguém põe em dúvida — e os que não têm. Isto ocorre sobretudo nos países dependentes, pois naqueles de capitalismo avançado o processo através do qual se seleciona os que vão ou não vão ter acesso ao bem é mais elástico e mais sutil.

No Brasil, como em outros países do terceiro mundo, a exclusão da escola tem sido selvagem e avassaladora. Desde 1930 até hoje as taxas de reprovação em processo de alfabetização são enormes. Isso põe em dúvida que a escola seja um simples reflexo de condições sociais e económicas, na medida em que o país passou por um processo de desenvolvimento bastante acelerado nas últimas décadas e as taxas de reprovação são as mesmas. Não representam portanto um simples fenômeno de deterioração recente por causa de um aumento quantitativo. Há uma tendência estrutural que parece ser rebelde a qualquer influência exterior ao próprio sistema de ensino. O fato está aí para ser explicado.

• Síntese feita a partir de gravação da exposição oral.

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Uma teoria explicativa que predominou durante certo tempo é aquela que se coloca no âmbito da cultura, explicando assim as diferenças entre os grupos que se cruzam na escola. A criança não aprenderia a ler porque vem de uma cultura diferente e domina um universo de vocabulário diferente daquele que a escola trabalha e procura transmitir. Ainda que uma tal teoria não negue que a questão é política, ela a coloca sobretudo no âmbito da cultura, dando assim à cultura uma autonomia que a desvincula das condições materiais e concretas da existência, correndo o risco de supor a existência totalmente separada de uma cultura do rico e uma cultura do pobre. Isto pode estar na raiz, embora com outras versões, das tentativas que vêm ocorrendo de elaboração de cartilhas e materiais de alfabetização que se prendem estritamente ao universo vocabular da clientela a que se destinam. Um aspecto sério desse posicionamento é a suposição de que na relação das classes sociais se dá uma separação estrita entre as diferentes culturas. Ora, se assim fosse, não existiria aquilo que se chama cultura dominante, que por ser dominante obviamente domina e dominando de certa maneira implica dentro dela as diferentes classes sociais, inclusive aqueles que são excluídos da escola. A consequência disto é imaginar que as classes chamadas populares, subalternas, dominadas ou trabalhadoras existiriam dentro de uma redoma de vidro social e seriam imunes não só ao universo vocabular que é dominado na sociedade, mas principalmente aos valores, posturas e concepções de vida que vêm embutidos dentro do universo vocabular. Por aí há uma zona extremamente polémica para se discutir a respeito do que seja o conhecimento, o vocabulário, a linguagem. Argumenta-se que o ponto de partida deve ser a cultura popular, a linguagem popular, que é o material significativo. Porém, não se consegue objetivar suficientemente o ponto de chegada. Não temos clareza sobre como fazer a caminhada deste ponto de partida da linguagem local para o ponto de chegada.

Uma segunda maneira de recuperar o aspecto político da escola, e portanto do processo de alfabetização, segue mais ou menos o seguinte raciocínio: já que a escola é política, já que o processo de alfabetização é político e que esse político implica numa divisão desigual do conhecimento entre as classes sociais, trata-se de explicitar isto ao nível do conteúdo, ao nível do recurso didático propriamente dito que se usa na escola. E aí nós entramos também numa questão extremamente difícil de ser equacionada.

É preciso que os conteúdos da escola sejam vivos, digam alguma coisa para a criança. É preciso ensinar conteúdos significativos, ensinar uma História do Brasil que remeta a problemas realmente relevantes. Mas isso não basta. Quando se escolhe a palavra para iniciar a alfabetização, não basta que a palavra seja significativa. É preciso que ela preencha requisitos que a Psicologia ou a Linguística já nos ensinaram, por exemplo. Onde é que fica o meio termo entre o político que certamente existe e o conhecimento técnico? O fato da educação ser política justifica o equívoco do ponto de vista técnico?

Temos que encontrar a forma de, sem alienar e sem mistificar o conteúdo político da educação, considerar que ela é também uma atividade que envolve conhecimento técnico. Saber que ensinar a ler e a escrever é uma atividade sobre a qual já acumulamos algum conhecimento.

Seriam basicamente esses dois caminhos de recuperação do sentido político da escola que eu gostaria de trazer para debate.

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Regionalismo Linguístico e a Contradição da

Alfabetização no Intervalo

Maria Bernadete Abaurre Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

0 espelho revela os fatos, nunca a poesia.

Graffiti. Campinas. 1983

O tema desta mesa-redonda é bastante amplo. Abrange, necessariamente, aspectos que devem ser levados em conta em qualquer reflexão que se pretenda séria sobre a nunca suficientemente discutida questão da alfabetização. A exiguidade do tempo impõe, porém, uma limitação, e, nas considerações que a seguir farei, abordarei apenas os seguintes problemas, sem dúvida correlatos: a relação entre diversidade linguística regional e alfabetização, a conveniência ou não da utilização de material regional na alfabetização e, por fim, o que chamo de a contradição da alfabetização no intervalo.

Como introdução, gostaria de dizer que entendo educação, de maneira geral, como uma atividade que se realiza no intervalo entre realidades por definição diversas: a do educador e a do educando. Tal concepção, cumpre frisar, pressupõe o reconhecimento de diferenças e não de carências. Pressupõe ainda, da parte do educador, não só a sensibilidade para com a realidade cultural e linguística eventualmente diversa do educando, mas também, se for o caso, o conhecimento mesmo dessa realidade, ponto de partida necessário para um processo educativo eficaz e honesto.

Tomemos como exemplo a situação de alfabetização. Deixo de considerar aqui a questão que antecede, por definição, as que levanto neste artigo, ou seja, a da introdução da escrita em uma sociedade. Lembro apenas ter sido este um dos tópicos discutidos por Maurizio Gnerre nesta mesa-redonda. Parto do pressuposto de que, em uma sociedade como a nossa, a opção pela escrita é uma fatalidade. Pensando, portanto, em todos os contextos possíveis em que alguém desempenha o papel de introduzir crianças ou adultos no mundo da escrita, é lícito afirmar que, por mais homogénea que seja uma turma, por menor que seja a distância linguística e social entre professor e alunos (situação que está longe de ser a típica, em termos de Brasil...), existirá sempre, entre alfabetizador e alfabetizandos, a distância imposta pela própria escrita. Quem escreve, e, particularmente, quem escreve há um certo tempo, tem toda uma prática de reflexão sobre a própria língua mediada pela atividade da escrita, fortemente condicionada por segmentações que essa pressupõe, pela expectativa das estruturas prescritas, das formas "certas" ou "erradas" em termos absolutos. Quem, por outro lado, ainda não entrou em contato sistemático com a escrita, apresenta um desempenho linguístico mais espontâneo, adequado às necessidades do seu contexto imediato. É capaz de refle-tir, se lhe for solicitado, sobre usos da língua, mas dificilmente sobre o seu sistema linguístico. E, por mais socialmente marginalizado que seja, possui, ao iniciar o processo de alfabetização, um repertório linguístico perfeitamente adequado e suficiente para a expressão de seu universo de experiências. Há quem afirme, inconsequentemente,

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que crianças socialmente marginalizadas, como os filhos de favelados da periferia de São Paulo, possuem vocabulário reduzido, constituído de não mais do que cinquenta palavras! Há quem afirme, ainda, que essas mesmas crianças apresentam dificuldades de verbalização, razão pela qual se utilizam prevalentemente de gestos como recurso compensatório na comunicação... Tais afirmações baseiam-se em uma perigosa teoria do déficit cultural e linguístico que tem levado a uma desastrosa e equivocada política educacional. Estão aí, a demonstrar o que se diz, as famosas classes ditas "carentes" e os discutibilíssimos critérios para classificação de crianças em "normais" ou "carentes". Não é casual que os filhos de imigrantes nordestinos em São Paulo sejam frequentemente encaminhados para classes "carentes". A diferença, particularmente em termos linguísticos, vem frequentemente interpretada como um déficit, já que a escola não sabe lidar de maneira sensata com a variação linguística, seja ela regional ou social. Qualquer que seja a situação particular de alfabetização, há, portanto, que considerar realidades linguísticas diversas: a do alfabetizador e a(s) dos seus alunos. No caso de relativa homogeneidade social e regional, a diversidade linguística é, como já se disse, determinada pelo contato ou não com a escrita, o que define diferentes relações com os recursos de um mesmo sistema. Em situações heterogêneas, por outro lado, a diver-sidade é geralmente grande: entre a modalidade escrita, a ser ensinada pela escola, e a modalidade falada pelo professor, de um lado, e a(s) variedade(s) falada(s) pelos alu-nos, de outro, há a distância de sistemas linguísticos, por vezes bastante diferentes, com características fonético-fonológicas, morfológicas, sintéticas e semântico-lexicais específicas. Reconhecida a diversidade, o ideal seria que a escola fosse capaz de definir, para cada situação específica, o intervalo onde se daria a alfabetização, a partir da situação linguística dos alfabetizandos. Infelizmente, a escola não tem condições de definir esse intervalo, em parte porque os professores não recebem, em sua formação, o mínimo necessário de informação linguística que os prepararia para lidar com a variação, e, em grande parte talvez, porque simplesmente não lhe interessa mesmo defi-nir tal intervalo. Afinal, a escola, em nossa sociedade, é uma instituição que reforça as discriminações impostas pelo Estado. Como tal, cabe-lhe acentuar, agudizar as dife-renças sociais, papel que ela vem desempenhando satisfatoriamente, embora, é óbvio, não de maneira explícita. A propósito, não sei até que ponto se poderia afirmar que a escola, enquanto instituição, tem consciência de ser espaço que privilegia o reforço das distâncias sociais.

Com essas considerações iniciais pretendo ter criado o contexto para breve discussão da primeira questão levantada, a da relação entre diversidade linguística regional e alfa-betização. Cabe indagar, inicialmente: como tem a escola, no Brasil, lidado com a varia-ção linguística sócio-regional? De maneira sem dúvida equivocada (ou, eu diria ainda, de maneira, no mínimo, equivocada). Porque, ao reduzir a diversidade linguística aos conhecidos estereótipos regionais e ao considerar o "português padrão" (que, diga-se de passagem, não sabe bem o que seja) não propriamente como meta, mas sobretudo como parâmetro com base no qual se avaliam desempenhos, categorizando-os como mais "certos" ou mais "errados", a escola contribui para reforçar diferenças que a sociedade já estabeleceu. Afinal, falam mais frequentemente "errado" as crianças de periferia, as crianças de zona rural, os filhos de imigrantes nordestinos em cidades como São Paulo, e assim por diante. Poderíamos, sem muito esforço, aumentar esta lista... Por outro lado, falam mais "certo" (entenda-se: apresentam uma variedade oral mais próxima da norma escrita) as crianças de classe média e alta. Como a norma escrita costuma ser o único parâmetro de avaliação, saem-se necessariamente melhor as crianças que têm um percurso menor a percorrer na direção dessa norma. O grande esforço que devem fazer os que dela estão mais distantes não costuma ser levado em

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conta para fins de avaliação. Deixando de lado os problemas ortográficos com os quais temos todos, independentemente de classe social, que conviver (do tipo: uso, na escri-ta, de s, ss, ç, sc, sç, x, xc para representar o som [ s ] ), sobram ainda, para os falantes de variedades socialmente estigmatizadas, problemas decorrentes da maior distância entre essas variedades e a norma escrita. Quem diz [ 'fro ], [ 'beya ], [ muy'e], terá, certamente, maior dificuldade para aprender a escrever em português do que quem diz [ 'flor], [ a'be Xa ], [ mu'Xer J, considerando-se as formas escritas flor, abelha, mulher. Cada variedade de português apresenta especificidades nos vários níveis, fônico, morfossintático e semântico, o que equivale a dizer que as dificuldades para o aprendizado da norma de prestígio (escrita ou, se for o caso, oral) só podem ser definidas a partir de um conhecimento prévio de tais especificidades. O conhecimento da realidade linguística dos alunos deveria, portanto, preceder o trabalho de alfabetização e o ensino de uma variedade de prestígio. A escola, porém, não se dá ao trabalho de indagar a respeito da bagagem linguística que trazem os alunos. Impõe, violenta e arbitrariamente, a norma, classificando procedimentos linguísticos em "certos" e "errados" e, certamente, gerando perplexidades. Em síntese: a escola deveria ter condições de conhecer linguisticamente os alunos, de avaliar as diferenças e a distância entre as diversas variedades sócio-regionais e a norma, de programar o ensino da norma em função das diferenças, de deixar claro que nenhuma variedade é "melhor" ou "pior", "certa" ou "errada" do ponto de vista puramente linguístico, mas que tais avaliações existem e se baseiam em uma discriminação social prévia. Escamotear esta última informação em nome de uma pretensa equivalência de sistemas linguísticos seria, aliás, extremamente desonesto. Variedades diversas não costumam ter o mesmo valor social...

Parece evidente, então, que a escola lida de maneira equivocada com a diversidade lin-guística sócio-regional, porque não a incorpora, de maneira significativa, no processo de alfabetização. Ao ignorar o background linguístico dos alunos prejudica a sua atua-ção como sujeitos do próprio processo. A escola perde, assim, a possibilidade de recuperar o percurso de cada aluno, de interpretar as suas primeiras produções escri-tas, de entender as hipóteses que ele vai formulando sobre a relação fala/escrita, e de trabalhar, enfim, a partir dessas próprias hipóteses.

Teria a escola, no entanto, condições efetivas de conhecimento da realidade sócio-lin-gúística com a qual deveria lidar? Teria ela condições de lidar com tal realidade, nas linhas acima sugeridas? Certamente que não. Os professores alfabetizadores, em sua grande maioria, apesar de grande boa vontade, criatividade, dedicação, dose variável de bom senso, experiência (também variável...), não têm as idéias muito claras sobre o que seja um sistema linguístico, um sistema de escrita (alfabético ou de outra natu-reza), a relação língua falada/língua escrita, a variação linguística, a leitura, enfim, sobre uma série de noções que constituem pressupostos necessários para que um pro-fessor e alunos enfrentem segura e tranquilamente um processo de alfabetização. A for-mação dos professores alfabetizadores deixa muito a desejar e isso se deve, em grande parte, a uma grande omissão das universidades e faculdades responsáveis pelos cursos de Letras. Nos currículos dos cursos de Letras deveria haver espaço para uma reflexão sobre os tópicos acima enumerados enquanto aspectos de uma reflexão mais ampla sobre alfabetização. Afinal, formamos nos cursos de Letras aqueles que serão os pro-fessores dos futuros alfabetizadores e é justamente pensando nessa sua prática futura que não temos o direito de reduzir os nossos cursos universitários à mera especulação teórica. Enquanto não se soluciona o problema da formação dos professores (o que, eventualmente, só se dará a longo prazo), faz-se mister pensar alternativas que ate-

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nuem o problema, a médio ou curto prazo. Há quem proponha grandes investimentos em métodos específicos de alfabetização, de eficácia supostamente garantida, para apli-cação a populações de alunos "carentes" (pressupondo-se, mais uma vez, um déficit...), por professores com qualquer formação. Métodos milagrosos, que poderiam, em prin-cípio, ser aplicados mecanicamente. Acredito que muito melhor seria apostar ainda nos próprios professores, na sua vontade de acertar, de entender o que seja alfabetizar, e investir em assessorias linguísticas a nível de secretarias, delegacias e, de preferência, de salas de aula. Se as escolas da rede pública estadual e municipal do Estado de São Paulo contam já com a assessoria de fonoaudiólogos, dentistas, médicos, psicólogos, por que não contam ainda com a assessoria de linguistas? A dependência que grande parte dos alfabetizadores apresenta, com relação aos métodos, revela, no fundo, uma grande insegurança para lidar com questões linguísticas como as que vimos mencionan-do neste trabalho. Quando não se sabe ao certo o que é escrever em um sistema alfabé-tico, qual a relação entre som/letra, fala/escrita, quando não são claras as atividades que se pode levar uma criança de seis, sete anos a desenvolver com a linguagem, uma cartilha vira "tábua de salvação", os scripts dos manuais do professor se tornam a garantia da sequência das próprias aulas. Uma assessoria linguística bem planejada resolveria grande parte desses problemas, na medida em que o conhecimento de noções linguísticas fundamentais (e são bem poucas!) permitiria que o alfabetizador se sentis-se mais seguro e, consequentemente, em condições de alfabetizar com qualquer méto-do e até mesmo sem método algum, de acordo com as especificidades de cada grupo de alunos. A cartilha, quando utilizada, deixaria de ser camisa-de-força para se trans-formar em mero material auxiliar.

Todas as considerações anteriores permitem concluir que a escola não lida de maneira adequada com a variação linguística sócio-regional. E, já que foram mencionados, de passagem, métodos e cartilhas, cabe introduzir agora a segunda questão que me propus discutir, ou seja, a conveniência ou não da utilização de material regional na alfabe-tização.

A elaboração das chamadas cartilhas regionais é um empreendimento que não data de muito tempo. A vontade de trabalhar com material regional na alfabetização, particu-larmente em zonas rurais e de periferia, com comunidades socialmente marginalizadas, surgiu da constatação de que cartilhas e métodos que pretendiam ser de aplicação mais geral criavam problemas por se basearem em uma temática muito dissociada da reali-dade de tais comunidades. Acontece que, se alguns métodos são gerais demais ou intro-duzem de maneira problemática para uma aplicação regional, alguns temas como "ali-mentação" (há um método, por exemplo, que prevê que a professora discorra sobre cardápios variados para café da manhã, almoço e jantar, o que constituiria um acinte em contextos em que as crianças são meio "mortas" de fome), as cartilhas ditas regio-nais não resolveram de maneira satisfatória a questão do regionalismo linguístico que é verdadeiramente importante para a alfabetização. Isso porque, apesar de bem intencio-nadas, essas cartilhas não vão além de uma temática regional e de um vocabulário regional. O regionalismo fonético-fonológico, morfológico e sintático nunca é trabalhado de maneira adequada, simplesmente porque não há descrições das variedades linguísticas das comunidades socialmente marginalizadas a quem esse material deveria ser destinado. As cartilhas regionais se transformam, assim, em um outro grande equívoco na medida em que, mais uma vez, se peca por excesso: a temática exageradamente regional acaba não dando lugar para temas mais universais e o momento de introdução da escrita transforma-se concomitantemente em momento de explicitação de miséria e subdesenvolvimento. Por não se considerar adequado trabalhar com uma

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palavra como, digamos, framboesa, em uma favela de Recife, propõe-se introduzir na cartilha o siri, a lata velha, o mangue, tudo isso devidamente documentado com repro-duções fotográficas! É óbvio que framboesa não é uma palavra adequada para a alfabe-tização em certos contextos. Mas, meu Deus, as crianças faveladas estão cansadas de saber que são miseráveis, passam fome e têm que trabalhar desde cedo para sobreviver em um mundo feito de injustiças sociais! Será que cabe à cartilha cristalizar, para essas crianças, uma representação que elas seguramente já fazem de si próprias? Me parece oportuno recuperar, aqui, o graffiti que me chamou a atenção em um muro vermelho de Campinas, em letras brancas: "O espelho revela os fatos, nunca a poesia". Por que sair por esse Brasil afora com cartilhas-espelho, explicitando misérias reginais? Existe sem dúvida um vocabulário comum que pode ser utilizado para alfabetização em todo o país. Esse vocabulário pode muito bem ser acrescido de itens regionais e — por que não? - de palavras cujo referente não seja tão óbvio para as crianças. Não era diverti-do, na escola, imaginar como seria uma zabumba ou um xilofone? É bom que não se perca de vista, a partir da alfabetização, a relação lúdica que o falante pode estabelecer com a própria língua. Exatamente por levar muito a sério a relação significante/signifi-cado, a escola censura implicitamente o uso lúdico da linguagem, recurso que poucos conseguem recuperar e utilizar criativamente ao produzir textos. Uma cartilha poderia, portanto, reservar um lugarzinho para a brincadeira, a fantasia, o sonho, a poesia. Poderia dar oportunidades para que a criança desse asas a sua imaginação, aqui e ali, de modo a liberá-la, em algumas páginas ao menos, do compromisso nada emocionante com a realidade do seu quotidiano.

Quero deixar bem claro que não estou fazendo aqui a apologia de uma escola alienada. Muito pelo contrário, acho que os professores realmente sensíveis aos problemas so-ciais dos alunos deveriam se aproveitar dos poucos espaços que a escola, enquanto ins-tituição, oferece para reflexão e conscientização. As cartilhas regionais também não lidam de maneira adequada com a variação social e regional, na medida em que o regio-nal fica aí reduzido ao vocabulário, enquanto se sabe que as pessoas são estigmatiza-das a partir da pronúncia. É nesse sentido que afirmo que os alunos estariam melhor instrumentalizados para lutas futuras se os professores tivessem condições de explicar para eles, desde que ingressam na escola, que não há nada de linguisticamente "ruim" com a variedade que falam, que essa variedade é estigmatizada socialmente por serem eles os discriminados em termos sociais. Este tipo de conscientização cria talvez um contexto mais favorável para uma eventual opção, por parte dos alunos socialmente marginalizados, pela aprendizagem da escrita e da modalidade oral de prestígio regio-nal. Se o professor consegue lidar desta forma com a variação linguística, a cartilha, se necessária, pode tranquilamente ser espaço para atividades mais amenas.

Uma alfabetização natural é aquela que se faz, portanto, a partir do próprio sujeito do processo e da sua realidade linguística. É a que se dá no intervalo entre alfabetizando e alfabetizador, levando em conta o saber linguístico e a vivência cultural de ambos. Pressupõe, por definição, um professor com sensibilidade e formação suficientes para identificar, entender e incorporar no processo a diversidade linguística do aluno. Um professor que tenha o bom senso de criar condições para o desenvolvimento da orali-dade, da arte verbal, como estágio necessário para a introdução da escrita. Que saiba tomar decisões a respeito de momentos e espaços adequados para trabalhar a partir do vocabulário e experiências regionais, mas que perceba também quando se faz impor-tante introduzir informações e conceitos mais universais. Que tenha tranquilidade para utilizar uma cartilha criticamente, como material de apoio, ou mesmo para elaborar uma cartilha a partir da motivação da própria turma, entendendo-a apenas como subsí-

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dio que pode, eventualmente, ser dispensado. Ela pressupõe, enfim, um alfabetizador que torne o aluno consciente da discriminação social de que ele é frequentemente víti-ma e que se apóia, sempre que possível, em diferenças linguísticas. E assim por diante... Mas reside aí, exatamente, a contradição da alfabetização no intervalo, que seria a que se define pelas características acima enumeradas. A escola, como instituição do Estado que ampara as diferenças sociais, não pode criar, institucionalmente, um espaço para a alfabetização que intrumentaria os alunos para uma busca de igualdade e liberdade sociais. Não faria sentido, evidentemente, que a própria instituição adotas-se uma postura suicida. 0 que acontece, como já se mencionou, é que a escola em vários momentos reforça a própria discriminação. Isso se dá de maneira clara, por exemplo, quando ela opta por definir suas políticas educacionais a partir de uma teoria do déficit linguístico e cultural, o que lhe permite, de maneira demagógica, afirmar que se preocupa com as populações carentes, com o alto índice de evasão e repetência, argumentos frequentemente usados para justificar a imposição de métodos de duvidosa eficácia. A essa escola não interessa trabalhar a partir de uma teoria das diferenças culturais e linguísticas, porque tal opção não lhe permitiria pressupor as "carências".

Resta saber que há lugar para contradições dentro da própria escola, onde indivíduos podem optar por uma alfabetização no intervalo, o que vai sem dúvida exigir muita abnegação e uma boa dose de bom senso e trabalho artesanal. Os resultados de tal opção serão, tenho absoluta certeza, muito gratificantes.

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Alfabetização, Interpretação e Mediação

Maurizio Gnerre Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

Quando refletimos sobre a alfabetização devemos pensar que os alfabetizandos, sejam eles crianças ou adultos, são necessariamente membros de grupos étnicos e de classes sociais, assim como os próprios alfabetizadores. Eles compartilham atitudes, crenças, hipóteses sobre a escrita, sua natureza, suas funções e os valores que a ela estão associa-dos, da mesma forma que nós (os alfabetizadores reais ou em termos sócio-históricos) compartilhamos atitudes, crenças, hipóteses sobre a escrita. Só se partimos de uma perspectiva deste tipo podemos perceber que estamos envolvidos num processo de interpretação recíproca: assim como em outras atividades, também na atividade espe-cífica do processo de alfabetização interpretações recíprocas defrontam-se: nós os interpretamos e ao seu mundo, projetamos sobre eles a nossa perspectiva profunda-mente letrada e grafocêntrica do nosso mundo sócio-cultural. Eles nos interpretam como portadores de valores diferentes ou, como mínimo, de uma técnica e de um saber que eles por uma razão ou outra não controlam. Temos assim que pensar num processo dinâmico de interpretação recíproca e de negociação das representações que acontece naquele tipo específico de interação social que é a situação de alfabetização. Se em lugar de pensarmos em termos do processo dinâmico ou de interpretação recí-proca como um conjunto de hipóteses que um constrói sobre o outro, operamos com grandes abstrações histórica e ideologicamente constituídas, tais como "língua", "escrita", ficamos simplesmente restritos ao nosso universo de referência conceituai e não nos relativizamos, mas, pelo contrário, nos assumimos como medida, ou ponto de chegada do processo de alfabetização. Esse processo seria então uma espécie de rito de passagem que reduziria a diferença entre os "outros", sejam eles crianças ou adultos, e nós, ou que construiria um indivíduo o mais possível à nossa imagem e semelhança. Num trabalho muito importante, que é uma contribuição útil para esta linha de inter-pretação, E. Ferreiro e A. Teberosky mostram como as crianças constroem hipóteses diferentes sobre o sistema de escrita, antes de chegar a compreender as hipóteses básicas do sistema alfabético, que os adultos alfabetizadores assumem implicitamente.

No que segue vou dizer algo para estimular a reflexão sobre a natureza desse processo interpretativo recíproco. Temos que refletir tanto sobre as atitudes, as expectativas e as crenças que outros grupos étnicos, outras classes sociais ou outros grupos de idade podem ter sobre a escrita, como sobre as atitudes e as crenças sobre a escrita comparti-

FERREIRO, E. & TEBEROSKY, A. Los sistemas de escritura en el desarrollo del nino. México, Siglo Veinteuno, 1979.

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Ihadas dentro da própria tradição escrita, elaborada por minorias letradas ligadas ao poder político e econômico. Deixaremos de lado aqui o problema da construção da imagem do próprio alfabeto, em contraposição à imagem de outros tipos de escrita, problema este que delineamos em outro trabalho2 e somente falaremos um pouco das crenças implícitas ou explícitas sobre a escrita.

Nos últimos anos muitas contribuições de antropólogos, psicólogos e linguistas discutiram os efeitos da alfabetização no desenvolvimento econômico, social e até mesmo cognitivo. Existe hoje um verdadeiro "mito" da alfabetização, compartilhado pela maioria (ou a totalidade) dos governos, tanto de países em desenvolvimento como de países industrializados, e pela própria UNESCO. Trata-se de uma perspectiva de extrema valorização dos aspectos positivos da alfabetização, vista como o passo central num processo de "modernização" dos cidadãos. A alfabetização seria o passo decisivo para que grandes massas mergulhadas em culturas orais abandonassem valores e formas de comportamento "pré-industrial", tornando-se mais disponíveis para processos de industrialização e cooperando de forma ativa no processo de expansão do poder do estado. A aceitação básica do valor indiscutivelmente positivo da escrita foi intocável durante décadas. Um método de alfabetização como o de Paulo Freire, que inclui a participação ativa e o envolvimento dos membros de pequenas comunidades no processo de discussão e de elaboração dos materiais básicos para a alfabetização, não prevê em nenhum estágio um debate aberto com os alfabetizandos sobre a natureza e as implicações da escrita e da leitura. A capacidade de ler e de escrever é considerada intrinsecamente boa, apresentando vantagens óbvias sobre a pobreza da oralidade. Como tal, a escrita é um bem certamente desejável. É difícil achar qualquer avaliação explícita dos aspectos positivos das culturas orais, às vezes definidas de forma negativa como culturas "sem tradição escrita". Talvez a primeira reflexão crítica relativa â escrita na tradição ocidental é a que encontramos no Fedro de Platão, onde Sócrates põe Fedro em guarda sobre os perigos que o fogos escrito comportaria.

Como recentemente Ricoeur notou:

"Este ataque platónico contra a escrita não é um exemplo isolado na história da nossa cultura. Rousseau e Bergson, por exemplo, estabelecem uma relação, por razões diferentes, entre os males principais que assolam a civilização e a escrita... Com a escrita começou a separação, a tirania, e a desigualdade... A fragmentação da comunidade de falantes, a divisão da terra, a analiticidade do pensamento, e o reino do dogmatismo foram todos originados com a escrita."3

Derrida4 discutiu em profundidade as posições de Rousseau e de outros autores, como Lévi-Strauss, que se preocuparam com a escrita. O que nos importa aqui é deixar claro que a tradição de discussão ou de questionamento teórico da escrita é uma tradição minoritária na cultura européia.

GNERRE, M. O campo de estudo da escrita. In: LÍNGUA, escrita e discriminação. São Paulo, Martin Fontes, s.d. (no prelo).

RICOEUR, P. Interpretation theory: discourse and the surplus of meaning. Forth Worth, Texas Christian University. 1976. p. 39.

4 DERRIDA, J. De la grammatologia. Paris, Les Editions de Minuite, 1967.

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Outro seria o discurso necessário para uma história da perspectiva explicitamente polí-tica sobre a escrita. Podemos lembrar, por exemplo, que:

"os reformadores de imposição leiga tiveram uma atitude dupla com relação à educação popular. Ainda que desconfiando (...) de grande parte da cultura oral tradicional, eles temiam por outro lado que a educação poderia causar nos pobres uma sensação de insatisfação com as próprias condições de vida e teria estimulado os camponeses a abandonarem as terras. Alguns deles, como Voltaire, tinham a opinião que à maioria das crianças não se deveria ensinar a ler e escrever; outros, como Jovenalles, achavam que os camponeses deveriam aprender somente a ler, escrever e contar."s

Certamente falta-nos uma visão de conjunto sobre a posição e o prestígio da escrita em outras áreas culturais do mundo, onde, apesar de existir uma longa tradição escrita, tal como a cultura da Índia, atribui-se grande valor à memorização. Sabemos, por exemplo, que Gandhi nos primeiros tempos da sua militância não foi favorável às grandes campanhas de alfabetização na Índia. Segundo ele, estas campanhas podiam expor grandes massas à difusão de idéias e de valores de tipo ocidental.6

A reflexão sobre as atitudes relativas à escrita me parece particularmente relevante não somente para desvendar a interpretação recíproca presente na situação de alfabetização, mas também para chegar a alguma proposta prática para os processos de alfabetização em geral, na tentativa de superar algumas das dificuldades que os alfabetiza-dores encontram. É bastante óbvio, ou deveria ser, pelo menos, que nas culturas somente ou principalmente orais, onde a comunicação verbal acontece sempre em presença dos que estão comunicando, isto é, face a face, a escrita seja percebida, pelo que diz respeito ao valor de informação que ela carrega nas suas atuações comunicativas, como algo incompleto, parcial, pouco confiável, falsificável. A comunicação face a face é, ao mesmo tempo, verbal e gestual, só acontece na presença da pessoa. É, por assim dizer, viva e tridimensional. Nela não existem palavras na sua versão abstrata: o abs-trato rabisco bidimensional custa a ser levado a sério, a ser considerado tão legítimo (ou mais, como para nós) quanto a comunicação face a face. Certamente a introdução de tipos de comunicação como a telefónica ou a radiofónica representa um passo na direção de uma maior abstração da mensagem linguística de outros canais paralelos, presentes na interação face a face. De qualquer forma, ainda para quem esteja acostumado com este tipo de comunicação, as vantagens da escrita em muitas situações não são nem um pouco óbvias. Em geral, nas culturas orais a escrita não vem a substituir a memória, no máximo ela é usada como um complemento, um suporte visual de informações essencialmente memorizadas.

Deveríamos talvez repercorrer, ainda que rapidamente, o caminho tradicional da Antropologia, o de ir longe, observando a alteridade cultural, a diferença, para poder achar a chave para a reflexão sobre o que está perto, o que nos parece óbvio e o que

BURKE, P. Cultura popolare nell'Europa moderna. Milano .Mondadori, 1980. p. 244-5. 6

BRIGHT, W. Le virtú dell'analfabetismo. La Ricerca Folklorica, 5:15-20, 1982.

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nos parece naturalmente conhecido, isto é, para produzir uma maiêutica das nossas próprias hipóteses implícitas sobre a escrita. Em um recente artigo, Bright7 lembra algumas atitudes de rejeição da palavra escrita encontradas no mundo moderno. Bright conclui o seu artigo afirmando que

"nós, os alfabetizados com uma tradição escrita, não podemos jogar fora a escrita, que veio a ser parte de nós mesmos, mas podemos chegar a ter consciência dos custos da escrita, e podemos tentar conquistar algumas das virtudes perdidas que a falta de escrita apresenta."8

Muitas vezes descobrimos em culturas que não dispõem de uma tradição escrita, ou em classe subalternas das nossas sociedades, uma polaridade de atitudes: ou a rejeição total, ou a aceitação total e acrítica do que está escrito e, ainda mais, impresso, acompanhada, esta última atitude, por declarações tautológicas, do tipo "tudo que está escrito é importante, porque foi escrito"9. Por outro lado, a "rejeição do que está em relação com a escrita, do livro, é desconfiança com relação a tudo que não pode ser controlado, que provém de fora."10

Um caso recente de consciente rejeição militante da escrita é o do líder índio norte-americano Russel Means:

"0 único início cabível numa declaração deste género é que eu detesto escrever. O próprio processo resume o conceito europeu do pensamento legítimo: o que é escrito tem uma importância que é negada ao falado. A minha cultura, a cultura lakota, tem tradição oral e, portanto, eu usualmente rejeito escrever. Um dos meios de que se vale o mundo dos brancos para destruir as culturas de povos não-europeus é impor uma abstração à relação falada de um povo.

Por isso, o que você lê aqui não é o que escrevi. É o que eu disse e outra pessoa escreveu. Permito que assim seja feito porque me parece que a única via de comunicação com o mundo dos brancos são as folhas mortas e secas dos livros."11

Especialmente com relação ao livro impresso existe uma distância incalculável entre o produtor do texto, o escritor e o leitor. Há uma quase impossibilidade para quem é apenas alfabetizado em se imaginar como escritor diante da página impressa.12 A mediação tecnológica entre o eventual manuscrito e o livro impresso é incontrolável. Num depoimento, produzido várias décadas atrás, Tuiávii, um homem Samoano que viajou

7 BRIGHT. W. op.cit. 8 Idem, ibidem, p. 19. 9 8EDUSCHI, L. Atteggiamenti e indeologie delia tradizione orale. La Ricerca Folklorica, 5:92,

1982. 10 SOBRERO, A.M. Problemi di riconstruzione delia mentalitá subalterna: letteratura e circola-

zione culturale alla fine dell'800. Problemi del socialismo, 1979, p. 24. 11 MEANS, R. O marxismo e as tradições indígenas. Religião e Sociedade (7) :49, 1981. 12 BEDUSCHI, L. op.cit., p. 92.

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pela Europa, descreveu o mundo dos Papalagui (homens brancos) nos termos seguintes, no que diz respeito aos livros e à educação formal:

"é particularmente ruim, é nefasto que todos os pensamentos, bons e maus, sejam logo inscritos em umas esteiras finas, brancas. Então, diz o Papalagui que "estão impressos", quer dizer, o que aqueles doentes pensam é escrito por uma máquina, muitíssimo estranha, esquisita, que tem mil mãos e que encerra a vontade poderosa de muitos grandes chefes. E não é uma vez só, nem duas; mas muitas vezes infindáveis, que ela escreve os mesmos pensamentos. Depois, comprimem-se muitas esteiras de pensamentos em pacotinhos, chamados "livros" que são enviados para todas as partes do país. Todos que absorvem estes pensamentos num instante con-taminam-se. Eles engolem estas esteiras como se fossem bananas doces. Levam estes livros para casa, amontoam-nos, enchem com eles baús inteiros, e todos, moços e velhos, roem-nos feito ratos que roem a cana-de-açúcar. É por isto que existem tão poucos Papalaguis capazes ainda de pensar com sensatez, de ter idéias naturais, como são as de qualquer samoano ajuizado."13

Estas palavras de Tuiávii claramente expressam a sensação de que a leitura seria percebida como uma renúncia de si próprio para aderir ao texto. Esta renúncia seria necessária para a conquista de uma suposta condição mais alta dentro da sociedade de classes.

Muitos viajantes, missionários e até mesmo antropólogos que viveram em contato com culturas orais relataram situações de contato de "nativos" analfabetos com a escrita. Infelizmente, só encontramos relatos em que transparece a admiração e a maravilha dos "nativos", nunca sua desconfiança e sua crítica. Por outro lado, é previsível que os que operam como agentes ideológicos e económicos do Ocidente no meio de outras culturas têm a tendência a acreditar que os nativos nutrem uma incondicional admiração pelo nosso mundo. Em muitos relatos nada mais achamos que a mistificadora mesquinhês de Anhangúeras letrados vangloriando suas artes de deixar os "nativos" admirados com as capacidades dos homens ocidentais.

Talvez o primeiro autor a escrever páginas de importantes reflexões sobre a escrita nas sociedades, a partir de experiências com sociedades orais, tenha sido Lévi-Strauss. Com base em uma sua experiência específica entre os Nhambikuara do Brasil Central, o antropólogo francês elaborou uma reflexão de ordem histórico-cultural, numa linha de crítica à atitude corrente e corriqueira de glorificação e louvor da escrita e de suas consequências:

"Depois que eliminamos todos os outros critérios que foram propostos para estabelecer uma distinção entre barbárie e civilização, é tentador preservar pelo menos este: existem povos com e povos sem escrita, os primeiros são capazes de armazenar suas conquistas intelectuais, ... enquanto os outros... parecem condenados a ficar presos numa história flutuante.

Ao contrário, desde a invenção da escrita até o surgimento da ciência moderna, o mundo viveu durante alguns milhares de anos durante os quais o conhecimento flu-

TUlAVIl. O Papalagui. Comentários recolhidos por Erich Schermann. Rio de Janeiro, Marco Zero, 1983. p. 91.

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tuou mais que cresceu... De qualquer forma este é o padrão típico de desenvolvi-mento que observamos desde o Egito até a China, ao tempo em que a escrita apare-ceu pela primeira vez: parece ter favorecido a exploração dos seres humanos, mais que sua iluminação.

Minha hipótese, se correta, nos obrigaria a reconhecer o fato de que a função pri-mária da comunicação escrita é a de favorecer a escravidão... Ainda que a escrita não haja sido suficiente para consolidar o conhecimento, ela foi talvez indispensá-vel para fortalecer a dominação... A luta contra o analfabetismo está então em relação com um crescimento da autoridade dos governos sobre os cidadãos. Todos têm que ser capazes de ler, de forma que o governo possa dizer: a ignorância da lei não é desculpa."14

Desenvolvendo a mesma temática, M. Rahnema escreve, do interior das estruturas das Nações Unidas: "A luta contra o analfabetismo está no ponto de se transformar numa luta contra os analfabetos". E, analisando o conteúdo das grandes campanhas de alfa-betização que foram lançadas em todas as partes do mundo nos últimos sessenta anos, a partir da primeira campanha, a da União Soviética, escreve:

"Estas campanhas, que muitas vezes foram concebidas pelos privilegiados da escrita, foram quase sempre caracterizadas por um estado de espírito de cruzada de que somente hoje medimos toda a gravidade. Seus inspiradores as conceberam como cruzadas de caráter quase que maniqueísta e redentor. No quadro daquelas campa-nhas encontramos referências constantes à vergonha que constitui o analfabetismo.

Por toda parte se tinha a impressão de que se tratava de uma nova missão civiliza-dora, desta vez empreendida por bons "colonos" de tipo novo: uma operação de caridade que devia quase que impor a dignidade às categorias inferiores da popula-ção que viviam mergulhadas na vergonha da oralidade."1S

Esta pressa em alfabetizar, se por um lado responde a exigências muito justas e profun-damente étnicas, por outro lado implica uma visão dos alfabetizandos quase como seres amorfos aos quais, como já disse, sumariamente atribuímos o desejo de serem alfabetizados. Talvez seja justo em termos gerais operar com esta hipótese, mas certa-mente é necessário refletir um pouco sobre ela. Esta hipótese nada mais é que uma interpretação que nós construímos sobre os outros e sua consequência é uma visão da alfabetização bastante técnica: a alfabetização cada vez mais é vista e discutida como um processo técnico no qual o fator tempo é importante para a avaliação dos métodos. Ao contrário, deveríamos lembrar que as aspirações dos alfabetizandos variam não somente de acordo com diferenças de idade, de classe social, de grupo étnico, mas também de acordo com as relações de classe próprias de cada momento histórico. Certamente há momentos históricos que parecem favorecer o sucesso de grandes campanhas de alfabetização. Me parece que podemos buscar estes momentos em situações revolucionárias nas quais existe em grandes massas um tipo de esperança no futuro, na possibilidade de mudar as relações de classe e com elas também os conteúdos da cultu-

14 LÉVI-STRAUSS, C. Tristes Tropiques. Paris, Plon. 1974. p. 336-8. 15 RAHNEMA, M. Pas d'alphabetisation san les "analphabetes". IFDA Dossier (31) :5, 1982.

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ra dominante, esperança esta que certamente falta na maioria das situações de alfabe-tização. Parece, então, que existem raros momentos históricos em que as atitudes com relação à escrita mudam e favorecem o processo de alfabetização.

Motivações fortes para um uso ativo da escrita foram estimuladas algumas vezes em situações históricas de opressão, nas quais se produziu a separação forçada da família e da comunidade. Estas situações foram, na história de vários países europeus, a migra-ção e a primeira guerra mundial. Isto é, em termos mais gerais, a escrita começou a ser usada de forma ativa em situações de necessidade, nas quais já era disponível um tipo de infra-estrutura dos estados modernos, o sistema de correios. Não são muitos os casos conhecidos de usos ativos da escrita quantitativamente significativos em grupos sociais diferentes das elites cultas.

No trabalho de alfabetização rotineiro temos que encontrar estratégias que contribuam para novas atitudes com relação à escrita, que sugiram hipóteses interessantes sobre o seu uso e funções e que, longe de apressar o processo de alfabetização, tratem de preparar o contexto psicológico e sócio-cultural mais adequado para que ele se realize.

Um problema que me parece central na alfabetização de crianças e adultos é o da ausência ou da redução extrema dos momentos e dos instrumentos teóricos e práticos para a mediação entre oralidade e escrita. Na medida em que não damos espaço à fase de mediação entre oralidade e escrita, complicamos de forma desnecessária o momento já intrinsecamente difícil de alfabetização, visto como interpretação recíproca do alfa-betizador e do alfabetizando. É justamente esta fase de mediação que precisa ser forta-lecida de várias formas: temos que tentar devolver o gosto e a confiança na oralidade, o prestígio da arte verbal, a discussão sobre as hipóteses relativas ao que seria a escrita, a leitura oral em voz alta de livros escritos e impressos e a discussão dos seus conteúdos, comparados com conteúdos de histórias da tradição oral. Todas estas, e outras, seriam as práticas necessárias para fortalecer ou até mesmo instituir a fase de mediação entre oralidade e escrita. Desta forma tentaremos evitar que aconteça o que Lord, no seu belíssimo livro sobre a tradição homérica e a tradição oral dos bardos cantores da lugoslávia, escrevia:

"Quando a escrita é introduzida e começa a ser usada com a finalidade de repro-duzir cantos narrativos... a velha arte desaparece gradualmente. Os cantos desapa-receram nas cidades... porque as escolas começaram nas cidades e a escrita enrai-zou-se firmemente na maneira de vida dos moradores das cidades..."16

Repensar nestes termos a riqueza da oralidade implicará em repensar todo o nosso mundo grafocêntrico e, na medida em que vai ser dado um novo espaço à criatividade da oralidade, receberemos resultados na criatividade da escrita, cujos produtos poderão circular e produzir mais criatividade e maior confiança dos indivíduos na expressão dos seus próprios pensamentos.

LORD, A. B. The singer of Tales. Cambridge, Harvard University, 1960. p. 20.

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Algumas Considerações sobre Educação e Contexto Cultural/Regional e Sócio-Político

Sueli Damergian Universidade de São Paulo (USP)

Pensar a questão da diversidade regional que caracteriza a realidade brasileira nos leva a refletir sobre as diferenças culturais, sociais, políticas e econômicas advindas de tal diversidade e quais as implicações que dela decorrem quando se pensa, por exemplo, em contato inter-regional e contexto educacional.

O nosso interesse pelo problema do regionalismo e da fala regional levou-nos a realizar uma pesquisa com crianças oriundas do Norte e Nordeste do país e suas respectivas professoras em escolas de 1° grau da periferia da região do ABC (São Paulo). Os dados foram obtidos através de entrevistas e observações em salas de aula e as reflexões aqui apresentadas são fruto de tal investigação.

Encontramos uma tal rejeição à utilização da fala regional por crianças nordestinas na escola paulista que evidenciou-se a ocorrência de algo maior que uma simples rejeição a uma forma de falar. Num efeito de halo, a rejeição se estendia ao falante como um todo e a vários aspectos de sua vida. Diante do fato, percorremos uma trajetória pas-sando pela Linguística e pela Sociolinguística, terminando na Psicologia Social para tentarmos entender o que ocorre no contexto educacional (sem esquecermos o referen-cial mais amplo, o social) como resultado do confronto entre a veiculação da norma padrão da língua, por parte da escola, e a utilização do português não-padrão, nordes-tino, por parte das crianças migrantes. Em virtude da limitação de espaço e tempo, apresentaremos aqui apenas alguns aspectos da trajetória por nós percorrida.

O enfoque adotado nos deixa entrever a possibilidade de encararmos a relação língua padrão e língua não-padrão não só do ponto de vista da língua como tal, mas também do ponto de vista dos falantes que interagem numa sociedade.

Do ponto de vista estritamente linguístico, segundo John Lyons, O. Ducrot eT. Todo-rov, por exemplo, os dialetos podem ser classificados como línguas regionais que apre-sentam entre si a coincidência de traços linguísticos fundamentais, costumando-se recorrer a motivos extralingúísticos (de ordem psíquica, social ou política) para esta-belecer a língua padrão de uma nação, não havendo, linguisticamente falando, uma língua superior à outra. Neste sentido, pode-se considerar o dialeto (do ponto de vista linguístico) como uma variante regional da mesma língua (exemplo: baiano, carioca). Do ponto de vista político (social, histórico), trata-se da coexistência geográfica de línguas diversas que possuem uma origem comum, sendo possível que um dos dialetos se eleve à condição de língua padrão, como observa Monica Rector.

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O linguista Jurn Jacob Philipson, do Instituto de Psicologia da USP, mais especifica-mente, mostra o aspecto problemático da relação língua padrão e dialeto, conside-rando o português não-padrão nordestino como homogéneo, apesar das possíveis dife-renças regionais e de gradação social. Diz ele: "considero o português não-padrão nor-destino um sistema linguístico diferente do português padrão regional, mas perfeita-mente correto e adequado para todos que o usam e aprenderam como língua ma-terna". A Sociolinguística nos oferece pelo menos dois caminhos de análise, representados pelas posições de William Labov e Basil Bernstein, respectivamente. Apoiamo-nos no primeiro a fim de refletir sobre nosso problema, sem desconsiderar as implicações da teoria de Bernstein. Acreditamos que a variante dialetal nordestina seria vista como uma utilização aproximada daquilo que Bernstein denominou de código restrito, vin-culado às classes sociais de baixa renda, em oposição ao código elaborado, utilizado pela classe média.

Bernstein considera que o código restrito é inadequado no que diz respeito a favorecer a educação formal, e a chave do êxito da criança na escola depende do fato de possuir ou estar orientada para um código amplo. Considera o código restrito como deficiente para expressar abstrações e estabelece distinções sutis de sentimentos, porquanto é orientado para o concreto e situações sociais estereotipadas. Além do mais, é restrito quanto à variedade de significados que podem ser transmitidos, oferecendo alternati-vas sintáticas muito mais reduzidas àqueles que dele se utilizam.

A seguirmos este caminho, teríamos que considerar a variante dialetal nordestina como produto de determinada estrutura social, própria de classes de baixa renda e inade-quada no sentido de não oferecer a quem dela se utiliza muitas alternativas para a comunicação e expressão do pensamento. Ao que tudo indica, tal caminho conduz às justificativas que fazem parte do chamado "mito da privação verbal e cultural", como diz Labov. Isso faz com que se passe a justificar falhas do sistema educacional como sendo devidas à falta de capacidade da criança, restrita que está às delimitações impos-tas por um ou outro tipo de código linguístico. Podemos exemplificar a utilização de tal tipo de justificativa através de algumas das afirmações que nos foram feitas pelas professoras entrevistadas.

"Os alunos que vêm do Nordeste apresentam muito mais dificuldades que os alu-nos daqui. Falam até diferente, têm uns termos que a gente desconhece e acho que isso é uma das dificuldades que atrapalham o seu rendimento." "A origem influencia em todo o rendimento escolar... A taxa de alunos nordestinos que são bem aplicados é bem pequena. O problema não é eles serem pobres, por-que pobre também tem aqui. O problema é eles terem vindo do Nordeste, o que faz com que falem errado..."

"... essas crianças apresentam mais dificuldades que as crianças daqui e têm mais dificuldades para se expressar e comunicar."

Os dados que obtivemos junto às crianças nordestinas mostram o outro lado da situa-ção, muito mais coerente com as observações de Labov.

Labov contesta as afirmações de Bernstein mostrando que este, ao privilegiar o código elaborado (ao afirmar que muito da língua da classe baixa consiste em uma espécie

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de acompanhamento incidental e emocional para a ação aqui e agora) está provo-cando fortes prejuízos contra todas as formas de comportamento da classe operária. Isso faz com que a língua da classe média seja vista como superior em vários aspec-tos, "como mais abstraía e necessariamente um tanto mais flexível, detalhada e sutil".

Labov questiona a noção de "privação verbal" - baseado em seu trabalho com o black english — acentuando que tal noção não apenas não está baseada na realidade social, como esta ainda a desmente. Destaca, para tanto, a necessidade de se observar a crian-ça mergulhada em situações de estimulação verbal, de manhã á noite, assim como a da observação de eventos de fala que dependem de uma exibição competitiva de habili-dades verbais e atividades nas quais o indivíduo ganha status através de seu uso da lín-gua. Acrescenta também a necessidade de se promover uma alteração metodológica nas investigações, modificando-se a situação social de entrevista, quase sempre inibidora e baseada numa relação de poder por parte do investigador, o que acaba por provocar a ocorrência de respostas monossilábicas, atribuídas às limitações do falante.

Alguns exemplos significativos que colhemos junto às crianças nordestinas mostram a procedência das observações de Labov quanto ao fato de que os falantes que se utili-zam da forma não-padrão da língua podem narrar, argumentar, debater, organizar e expressar seu pensamento sem estarem restritos ao incidental e ao aqui e agora. Temos então:

"A professora começou a fala que não era assim que se falava: trem, bota. Que isso era errado. Dizia que a gente tinha que aprende do jeito que eles falava, porque senão ninguém entendia, pensava que era outra coisa. Ela entendia, mas achava feio o jeito da gente fala palavras que até já esqueci. Os colegas que também achava feio. A professora sempre dizia que era errado que tinha que aprende a fala do jeito dela, que as palavra era feia e não servia não.

A palavra que a gente mais gostava de fala era trem e bota. Agora não falo mais. Tanto corrigiro que eu agora não falo mais não. Os daqui acha ignorante fala do jeito de lá. Eu não acredito não porque lá é o costume da gente fala e aqui tem outro costume.

Acho que certo é o costume, mas eles diz que trem é condução e bota é do ovo da galinha. A professora sempre dizia isso prá mim e meus irmãos. Quando ela falava isso, tinha uns que dava risada."

"Dissero que aqui não se usava os nome que eu falava, que prá eles isso era pala-vrão. A professora falou que aqui não se usava essas palavra, que as do Norte era diferente e se usar, as pessoas não entende, ignora.

Achava que era bom esquece o meu jeito, sabendo os dois era bom, mas não tão bom porque aí eu podia esquece e fala as palavra do Norte. Até poderiam dizê que eu era ignorante, soltava palavrão e ficava mais chato. É melhor esquece o jeito do Norte.

A professora dava conselhos prá eu fala direito, porque é errado isto aqui. Aqui tem outros modelo e não tem o jeito que eu usava prá fala. Mas penso que aqui também não é muito certo, porque se eu chega no Norte e fala: dá uma bala. vão fala: eh

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você é criminoso. Lá é confeito que se diz e se eu pedi confeito aqui também igno-ram..."

Acreditamos que esses exemplos são suficientes para mostrar que a utilização da variante dialetal não mutilou as crianças nordestinas do ponto de vista intelectual, nem as tornou incapazes para a vida social. Ao contrário, essas crianças se mostraram perfeitamente capazes de se utilizarem de frases cuja sequência esclareça a organização lógica do significado, bem como de estabelecer uma conversação onde o fluxo de ideias não se apresenta de forma descontínua, desordenada e incidental. Tais exemplos con-trastam também com as afirmações que ouvimos no sentido de que as crianças nordes-tinas têm mais dificuldades para se expressarem e comunicarem.

Na realidade, a rejeição que essas crianças sofrem em função do sistema linguístico que utilizam, não se deve a uma inadequação do mesmo, uma vez que as professoras em geral fazem objeções ao falar típico, que elas corrigem como algo errado, como fazem questão de enfatizar, dizendo que a fala nordestina é errada e que elas a corrigem mes-mo. Assim, temos "... elas falam: fui caçar meu lápis. Aí eu digo: é procurar e não caçar". O que a professora está entendendo aqui como dificuldade de expressão e com-preensão (como nos disse), deve-se a uma confusão ou mesmo ignorância de sua parte a respeito da utilização de significantes típicos da variante dialetal,cujo emprego não compromete o significado.

Assim, se as concepções da Linguística e da Sociolinguística não oferecem suporte que justifique a forma pela qual o falar nordestino é rejeitado, onde encontrar apoio, então, para a seguinte afirmação: "eu não daria dez se um aluno nordestino fizesse uma composição sem nenhum erro ortográfico, mas com o linguajar de seu estado. Apenas eu não deixaria de castigo. Daria uma nota regular, mas dez não"... !?

À medida que um tal tipo de discriminação aparece, em que o falante é visto como me-nos capaz para aprender; como tendo dificuldades herdadas; em que passa a ser isolado em classes de recuperação para não contaminar os demais com o seu falar típico; em que é rejeitado e humilhado, a questão não pode mais ser vista apenas como limitada ao âmbito da língua e do contexto educacional. Ao contrário, acreditamos que os rótulos colocados nessas crianças e a maneira como são tratadas indicam implicações a um nível maior, envolvendo um preconceito manifesto contra as mesmas e que atin-ge os seus costumes, crenças, modo de vida, inteligência, performance escolar, etc.

Temos que considerar, então, alguns aspectos psicossociais que nos parecem relevantes para o tipo de articulação entre língua, contexto cultural regional e sócio-político e educação, que encontramos.

As manifestações etnocêntricas, o processo de estereotipia e as expressões nítidas de xenofobia são elementos que isoladamente não constituem o preconceito propriamente dito mas, da forma como aparecem combinados na nossa investigação, configura-se perfeitamente uma visão preconceituosa em relação ao grupo nordestino. Citaremos apenas alguns exemplos que ilustram tais manifestações:

"As nossas crianças são alfabetizadas pelo método global. Seus erros são normais e a criatividade é muito rica. Os nordestinos não têm criatividade como os nossos alu-nos e acho que uma das causas é devido ao método global..."

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"As crianças paulistas usam termos muito mais elevados, possuem um vocabulário melhor."

"... Os pais são analfabetos e transmitem sua ignorância aos filhos... Eles ainda são muito enraizados nos seus costumes, não têm os nossos modos de paulistas."

"O problema não é eles serem pobres, porque pobre também tem aqui. 0 problema é eles terem vindo do Nordeste... Eles são agressivos também no modo de falar. A gente está costumada com os daqui, que são pobres mas educadinhos."

"... Eles são tão fracos que é difícil explicar para eles o que é o Estado de São Paulo. Imagine que tem até verduras que eles não conhecem."

Não é necessário estender-se muito na ilustração para se observar que, ao mesmo tem-po em que os padrões nordestinos (língua, costumes, tradições, métodos de alfabeti-zação etc.) são rejeitados e negados, há uma tendência em se privilegiar tudo o que é paulista como superior e correto. Pode se observar um mesmo erro ser corrigido no falante nordestino e não no paulista. Passa a haver, então, até uma relativização no que diz respeito ao emprego das regras gramaticais.

Deve-se, então, cogitar das causas que estariam subjacentes a esse preconceito contra os nordestinos e que não parece restrito ao âmbito escolar, segundo referências feitas pelas crianças por nós ouvidas. Isto nos leva a pensar na existência de aspectos outros, políticos, económicos, sociais e psicológicos por detrás daquilo que aparentemente seria um problema educacional, uma questão de inadequação de métodos de alfabeti-zação, de "mau uso da língua". Não se pode esquecer, por exemplo, que os migrantes nordestinos têm crescido em número e que isso pode ser visto como uma ameaça ao grupo majoritário em termos de ocupação de espaço físico e de espaço econômico-social. A situação se configura mais ameaçadora ainda diante do atual panorama político-econômico, onde o desemprego agudo intensifica as disputas pelo já tão saturado mercado de trabalho. Além disso, uma "teoria da inferioridade dos nordestinos" pode servir de justificativa para uma remuneração mais baixa e um tratamento desigual, proporcionando mais lucros a quem emprega.

Não se pode esquecer, também, além dos aspectos já considerados, que a escola (ou pelo menos, parte dela) está se prestando a um tal tipo de situação, pois pudemos cons-tatar uma predisposição negativa em relação aos alunos nordestinos já na 1a escola que pesquisamos. Lá a diretora nos informou que os alunos nordestinos, assim que chegam à escola, são diretamente encaminhados às "classes especiais". Isso ocorre antes mesmo que sejam submetidos a alguma forma de avaliação, por serem considerados suposta-mente inferiores. Ao mesmo tempo, encontramos também quase que uma busca de suporte biológico para tal atitude, contida em afirmações do tipo: "acho que a dificul-dade é herdada..." Ora, se se considerar que a dificuldade é herdada, assim como o temperamento é herdado ("... são valentões, tipo Lampião", "... são briguemos... É o temperamento do nordestino"), não há o que se fazer e assim a escola encontra um mecanismo de defesa que justifica a sua omissão, rejeição, hostilidade e discriminação, construindo um outro mito a respeito dos nordestinos.

Por outro lado, é preciso não perder de vista as consequências que a discriminação con-tra os nordestinos provoca do ponto de vista psicossocial. Essas consequências podem ser vistas pelo menos sob dois níveis: o da identidade individual e o da identidade gru-

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pal. Ao se atingir a identidade do grupo nordestino através da rejeição de seus costumes, crenças, valores, língua, está se atingindo também a identidade individual do nordestino, através de seu referencial grupai, ou seja, atacando-se as raízes culturais e psicológicas do meio em que a criança vive e se desenvolve, as figuras que lhe são mais significativas, pois a língua e os costumes que aprende são os de sua gente, de seus pais, de seus avós. É significativo o que nos disse uma criança a respeito: "a gente não pode esquece a fala da terra da gente, porque é onde a gente nasceu, se criou desde pequena..."

A rejeição e negação de características fundamentais do grupo, ponto de referência para a formação da identidade individual, acabam por produzir uma imagem conflitante para a criança nordestina, que já não sabe mais qual o referencial a seguir. Provoca mesmo uma confusão de identidade e uma situação marginal: alguns não querem mais ser nordestinos, mas também não podem ser paulistas.

Não se está pretendendo que a criança não deva aprender a norma padrão da língua, pois ela terá necessidade de saber manejá-la em um contexto regional diferente do seu. O que é preciso ter-se em conta é que tal aprendizado não pode ser realizado às custas de um verdadeiro processo de "desenraizamento cultural", onde os próprios nordestinos começam a negar a sua língua e seus padrões como forma de se identificarem com o grupo dominante e diminuírem a dor e a frustração derivadas da rejeição de que são alvo. Não se pode admitir, por desconhecimento, omissão ou causas outras, que a escola seja o instrumento de tal processo, semelhante a um doloroso rito de iniciação voltado para a pretensa adaptação a um novo contexto sócio-cultural.

Acreditamos até ser possível levantar-se uma hipótese da perspectiva psicanalítica, no sentido de que ocorrências como as que aqui foram apontadas podem ser o resultado de um split, de um processo de divisão que ocorre no inconsciente nacional, por assim dizer. Em função desse split, o paulista, por exemplo, atribuiria ao nordestino aquelas que são consideradas as características negativas e ficaria com as positivas, em um jogo de identificações e projeções. Só que o objeto dividido, "splitado" em partes "boas" e "más" seria a própria identidade nacional, tão difícil de se constituir, como bem apontou Dante Moreira Leite. É só uma hipótese, mas talvez valha a pena refletir sobre ela, principalmente pensando-se em como a educação pode contribuir positivamente para uma nova atitude a ser desenvolvida quanto às diversidades regionais. Assim, vale a pena tentar trazer ao nível da consciência nacional os mecanismos de defesa subjacentes às formas como são encaradas as diferenças regionais.

As características regionais são parte integrante da realidade brasileira e não podem ser destruídas, negadas ou eliminadas, sem se correr o risco de mutilar tal realidade. É somente a partir do reconhecimento e da aceitação do que é diferente e múltiplo que se pode tentar promover a integração e unicidade, forma madura e adulta de se começar a pensar em identidade nacional.

Referências Bibliográficas

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DAMERGIAN, Sueli. A fala regional e o contexto social: um estudo sobre como são recebidos os falantes que se utilizam do português não-padrão nordestino em um contexto onde só o português padrão é admitido. São Paulo, USP, Instituto de Psicologia, 1981. (Tese mestrado)

DUCROT, O. & TODOROV, T. Dicionário das ciências da linguagem. Lisboa, Dom Quixote, 1974.

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LYONS, John. As ideias de Chomsky. S. Paulo, Cultrix, 1973.

PHILIPSON, Jurn J. Português não-padrão nordestino; ideias educacionais. Seminário de Estudos sobre o Nordeste. 2., Salvador, 1975. s.n.t.

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MESA-REDONDA 2: PRÉ-REQUISITOS PARA A ALFABETIZAÇÃO

C

Desenvolvimento dos Pré-requisitos para a Alfabetização na Escola

Beatriz Leonel Scavazza Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP)

— Como preparar a criança para o processo de alfabetização?

— Quais os aspectos mínimos que a criança deve ter desenvolvido para apresentar um bom rendimento durante a alfabetização?

— Qual o momento "ótimo" para o início da alfabetização?

Questões desta natureza geralmente surgem quando se fala em pré-requisitos para a alfabetização.

O desenvolvimento de tais pré-requisitos — ou seja, o chamado trabalho de Prontidão para a Alfabetização - é feito geralmente pelas pré-escolas ou, quando estas não existem, durante o período preparatório que antecede o início da alfabetização.

O que seria então, a Prontidão para Alfabetização?

Para Ana Maria Poppovic, Prontidão para Alfabetização poderia ser definida como o momento ótimo no desenvolvimento do Sistema Funcional da Linguagem (SFL) — em relação aos requisitos exigidos pela aprendizagem da leitura e da escrita.

Linguagem, ou seja, a capacidade que o ser humano tem de simbolizar, está estreitamente ligada ao desenvolvimento das capacidades sensoriais, perceptuais e motoras, bem como ao das operações cognitivas. Linguagem, entendida como uma forma de organização das experiências vividas, do pensamento; através da linguagem é possível generalizar, pensar logicamente, adquirir, reter e selecionar conceitos e desta forma ir criando novas formas de ação.

A linguagem é, então, um complexo Sistema Funcional.

Fala, leitura e escrita não podem ser vistas como funções isoladas, mas como manifestações de um mesmo mecanismo, mecanismo este que resultado harmónico desenvolvimento e integração de várias funções que servem de base ao SFL desde o início da sua organização, ou seja, desde os primeiros tempos de vida da criança.

O desenvolvimento do SFL não depende unicamente da maturação, do amadurecimento neurológico; o meio social, seja familiar ou escolar, tem um papel fundamen-

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tal no desenvolvimento de certas funções importantíssimas para a aquisição da leitura e da escrita.

Assim, o desenvolvimento de aspectos como a coordenação motora ampla, coordenação viso-motora, imagem e esquema corporal, orientação espacial, ordenação temporal, percepção auditiva e visual das operações cognitivas - como a atenção, observação, concentração, memorização, classificação, ordenação e análise-síntese — e da linguagem oral, deve constar dos objetivos a serem alcançados dentro da escola.

No entanto, o desenvolvimento de cada um desses aspectos não deve ser entendido como uma sequência linear que determina uma evolução cada vez mais complexa.

Envolve também a aprendizagem e exercício num processo dinâmico de interação do invidíduo com o meio. Envolve a ideia de etapa, ou seja, a reorganização das funções a partir da maturação e da interação do indivíduo com o meio.

Não se trata, portanto, de promover o treino puro e simples destas funções num processo pedagógico, mas sim, promover situações que favoreçam o desenvolvimento global da criança.

PRONTIDÃO PARA ALFABETIZAÇÃO: UM TREINO DE ASPECTOS ISOLADOS?

Ao analisarmos propostas de trabalho que geralmente são aplicadas â Pré-Escola ou ao período preparatório da 1a série do 19 grau, constatamos a grande preocupação em treinar a criança em cada uma das diferentes funções necessárias para a alfabetização.

As atividades propostas são divididas em exercícios de percepção visual, percepção auditiva, coordenação motora, linguagem, esquema corporal, matemática e outros, como se fosse possível isolar cada uma dessas áreas em gavetas que não têm comunicação entre si.

Além disso, os exercícios são quase que exclusivamente feitos através de trabalhos gráficos, sem respeitar a grande necessidade desta faixa etária de ter um aprendizado feito através de experiências reais e concretas. A criança é submetida a uma rotina que pode levá-la ao vício de responder padronizadamente a certas situações sem analisá-las previamente. Os caminhos são pré-determinados, o que impede a busca de novas soluções. Os diferentes exercícios pedem sempre o mesmo tipo de resposta — assinalar com um "X", ligar, contornar, pintar — fazendo com que ela passe a ser executora de tarefas, sem participar das propostas.

O tipo de material utilizado — as famosas "fichas mimeografadas" — geralmente é consumido muito rapidamente, já que a criança não emprega nenhum esforço para realizar a atividade proposta, em comparação com o tempo gasto na preparação, distribuição e recolhimento do material.

Outro aspecto a ser mencionado diz respeito ao acompanhamento das crianças feito durante as atividades. Sendo o material consumido rapidamente, ou sendo os grupos muito numerosos, torna-se difícil verificar o trabalho de cada criança no momento da execução. Desta forma, o material é recolhido, e a criança nem sempre recebe o feedback do seu trabalho e, quando o recebe, dias ou semanas mais tarde, a experiência já foi esquecida.

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O trabalho de exploração corporal, quando acontece, é feito em educação física e atra-vés da nomeação e identificação, em desenhos, das partes do corpo.

Reduzir as propostas da escola, nesta faixa etária, á execução de exercícios gráficos, com lápis e papel, sem dar ênfase à estimulação da linguagem e exploração do meio, é limitar o desenvolvimento da linguagem e consequentemente do pensamento — o que pode significar uma barreira ao sucesso do processo de alfabetização.

PRONTIDÃO PARA ALFABETIZAÇÃO: UMA NOVA ABORDAGEM

Nossa proposta de trabalho se insere dentro da concepção da escola que tem como objetivo ensinar A pensar, ensinar COMO pensar e não O QUE pensar; uma escola que visa a formação de um indivíduo consciente e crítico, que atua na realidade que o cerca.

Não tem como objetivo "treinar" a criança, mas propor situações que a mobilizem através de instruções simples e claras, do contacto com material concreto, rico e esti-mulante e das exigências dos exercícios sempre partindo da realidade, evitando verba-lização excessiva por parte do professor, bem como uma fantasia exagerada; propor exercícios onde não existem respostas prontas e não se indiquem procedimentos que facilitem a execução da atividade proposta.

O objetivo é que o trabalho seja vivenciado de forma plena, dando liberdade à criança para a escolha dos meios com os quais vai atuar para executar a atividade, dentro de alguns limites para que a experiência não se perca. Incentivar a utilização da linguagem oral como forma de explorar e conhecer o meio, propiciando situações de comunica-ção em que a criança possa falar espontaneamente, usar a sua própria linguagem e não apenas a linguagem que a escola adota. Respeitar a linguagem que a criança traz de casa, deixar que ela fale e não apenas escute e execute tarefas.

Mostraremos agora como esta proposta de trabalho é desenvolvida em uma escola atra-vés da metodologia Ramain.

O papel do educador, no Método Ramain, consiste em acompanhar o aluno para que ele se coloque na situação e facilite o desenrolar de sua experiência, estruturando-a pouco a pouco. O professor acompanha o trabalho para verificar se as instruções foram compreendidas, mas nenhuma diretriz de execução é dada.

O tipo de material utilizado, que difere muito do usualmente empregado na maioria das escolas, é caracterizado pela simplicidade, pela sua forma própria de acordo com as funções que pretende desenvolver. As crianças trabalham com materiais simples, da natureza - como folhas de árvores, sementes de cereais, madeira etc. — ou com tampas de garrafas, canudos, tecidos, rolhas, fios de vários tipos, plásticos, contas etc.

Logo após o término da atividade, a criança sempre faz a verificação de seu trabalho. Às vezes através de um gabarito, às vezes uma nova proposta de trabalho partindo da atividade executada permite a verificação pela própria criança. Esta verificação repre-senta uma nova tarefa, pois o "fazer" e o "desfazer" se constituem como trabalho. Enfatizar a importância de antes atender às exigências da proposta, do que simples-mente concluir a atividade. O importante é o processo e não somente o produto final.

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Não há exercícios específicos para desenvolver aspectos isolados; em cada um, várias áreas do ser humano, igualmente importantes, são mobilizadas. 0 que deve ser enfatizada é a relação que é estabelecida com a situação que está sendo proposta.

A exploração verbal do material utilizado, suas características, atributos, está sempre presente antes do início de cada atividade.

Assim, em RECORTES, além do ato motor específico, desenvolve-se uma série de conceitos como: entre, ao lado, em cima, sobre, sob, até; trabalha-se as noções de direção, de horizontalidade e verticalidade e de proporção na relação de espaço, tão importantes para a realização da escrita.

Em MOSAICOS, é trabalhada a capacidade da criança de modificar e criar relações modificando os dados iniciais. Envolve o processo de simbolização em que a criança codifica e recodifica os elementos dados. São exercícios de transferência, onde a partir de um modelo dado a criança constrói um novo, obedecendo aos critérios estabelecidos ou criando os próprios critérios.

Em DITADOS, é enfatizada a necessidade de sincronização entre a criança e a apresentação sequenciada do estímulo pelo professor; a adaptação do ritmo interno de cada um ao ritmo externo presente, imposto.

O ditado de sons trabalha a discriminação auditiva de um som, a associação deste som a um símbolo físico qualquer, seja um objeto, uma conta plástica, um pino etc. Trabalha a percepção de tempo fundamental para a aquisição da leitura. Estabelece a mesma relação existente entre um ditado oral e a sua representação gráfica.

Os ditados de sinal e forma, compostos de materiais próprios - formas específicas não geométricas e sinais que lembram os grafemas - trabalham os aspectos de rotação. inversão, simetria, tempo-espaço; envolvem a percepção da forma ou sinal, observação e diferenciação deste para poder localizá-lo entre os vários disponíveis. Trabalham a internalização da direção da escrita, sempre esquerda-direita, cima-baixo, prevenindo a ocorrência dos espelhamentos na escrita.

A TRIAGEM utiliza materiais de sucata e materiais da natureza cuja riqueza e diversificação dependem da criatividade e plasticidade do professor na sua capacidade de exploração de um mesmo material. Procura explorar todas as áreas sensoriais, propondo sempre exercícios que envolvam aspectos viso-motores diferentes (encaixar, enrolar, enfiar, empilhar etc.) enfocando a utilização de uma e outra mão, fazendo com que a criança explore nela mesma a definição ou estabilização da lateralidade. Trabalha a observação, identificação, classificação e categorização de materiais simples.

Os exercícios de ATIVIDADE DIRIGIDA fazem com que a criança, dentro dos limites definidos pela proposta, tenha liberdade para escolher os meios que vai utilizar para éxecutá-la. Assim, na organização de uma horta, os locais possíveis e as ferramentas disponíveis são dados pelo professor, e a organização do grupo, a divisão de tarefas, as sementes a serem plantadas ficam a critério das próprias crianças.

Todo trabalho específico de mesa, sempre que possível, é precedido de uma proposta de vivência corporal. Explorar antes, no próprio corpo, os aspectos que serão objeto de uma proposta de mesa.

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Assim, em MOVIMENTOS, se trabalha a percepção de si e do outro, do tempo e do espaço que cada um tem e ocupa, sendo desta forma responsável por ele; a percepção do tempo e do espaço do outro, respeitando esses limites.

A exploração do espaço é fundamental para a aquisição da escrita, assim como o é a percepção do tempo para a aquisição da leitura. Na exploração do ritmo, a criança vive a percepção de descontinuidade que acontece nas pausas durante a fala e que aparece, na escrita, em forma de pontuação. A exploração da cadência traz a vivência da continuidade necessária para se manter a regularidade na fala, nos gestos, na escrita, na leitura.

O desenvolvimento do esquema corporal através da vivência de movimentos, da percepção do próprio corpo e seus segmentos, leva a um aprimoramento da expressão gráfica. Não trabalha a identificação dos vários segmentos do corpo no nível visual, mas através da interiorização destes.

Identificar os pré-requisitos para a alfabetização e agrupá-los em um rol de atividades organizadas numa sequência de complexidade que a criança apenas executa, não significa que eles estejam sendo desenvolvidos. Da mesma forma que alfabetizar não significa apenas associar determinadas letras formando palavras.

Desenvolver os pré-requisitos para a alfabetização significa propor situações que envolvam a criança no seu todo, para que num processo de interação com o meio possa acumular experiências, vivenciar experiências, obtendo assim o desenvolvimento do seu Sistema Funcional da Linguagem.

Referências Bibliográficas

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Propostas Metodológicas Subjacentes ás Cartilhas para Alfabetização de Crianças

Fermino Fernandes Sisto Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

Os dados aqui apresentados fazem parte de uma pesquisa por enquanto incompleta. Nela procuramos analisar cartilhas para alfabetização de crianças com o objetivo de se chegar às propostas metodológicas dos autores. O aspecto metodológico que pretendemos estudar refere-se a como as propostas combinam elementos tais como: 1) dificuldades da língua escrita (encontros consonantais, digrafos, sílabas complexas e sílabas compostas); 2) categorias gramaticais (verbos, advérbios, substantivos e adjetivos); 3) estrutura das frases (omissão de elementos, enriquecimentos, complexidade); 4) conjunto de frases (conexos, desconexos, repetitivos); 5) ilustração (decorativa, rela cionada ao tema, decodificável); e 6) vocabulário (conhecido, usual, não identificado).

Até o presente momento já levantamos os cinco primeiros elementos, faltando, portanto, saber se o vocabulário existente nas cartilhas é disponível ou pelo menos reconhecível por crianças que deverão ser alfabetizadas.

Apresentaremos alguns resultados que já estão disponíveis e estes se referem a conjunto de frases, ilustração e dificuldades da língua escrita. O material que está sendo analisado compreende 54 cartilhas, sendo 27 publicadas a partir de 1970; 17 publicadas na década de 60; e 15 anteriores a 1952.

Sob a rubrica ilustração procuramos classificar se ela estava ou não relacionada com algo do texto, e, em caso afirmativo, se seria identificável ou não. Em conjunto de frases analisamos a repetição desnecessária ou não de palavras e se havia ou não conexão entre as frases que estivessem dispostas em forma de conjunto. Foram catalogadas todas as dificuldades da língua escrita por palavra.

As conclusões que já podemos apresentar são:

a) A partir dos anos 70 o descuido pela ilustração é dos mais contundentes: apenas 1 cartilha pode ser classificada como boa (menos de 30% de deficiências, isto é, apresentando desenhos decorativos ou não decodificáveis), enquanto as outras podem ser classificadas como inaceitáveis (mais de 60% de deficiências). As cartilhas da década de 60 e anteriores a 1952 possuem proporções semelhantes: 1/3 aceitável ou boa e o restante inaceitável.

b) No que se refere ao conjunto de frases parece acontecer uma situação inversa à da ilustração. Enquanto a partir de 1970 a metade das cartilhas pode ser considerada

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entre boa e aceitável (menos de 60% de inconsistência), mais de 2/3 das cartilhas dos outros períodos podem ser considerados inaceitáveis (predominância de conjunto de frases desconexos e repetitivos).

c) Com relação às dificuldades, surgem três esquemas em termos de maior-menor predominância: o primeiro com ênfase na sílaba complexa, seguida do encontro consonantal, dígrafo e sílaba composta (20 cartilhas);o segundo com ênfase na sílaba complexa, seguida de dígrafo, encontro consonantal e sílaba composta (18 cartilhas); e o terceiro com ênfase na sílaba complexa, encontro/dígrafo e sílaba composta (7 cartilhas). A diferença dos três grupos está na posição intermediária ocupada preponderantemente: ora por encontro consonantal, ora por dígrafo, ora por ambos, sendo que as sílabas complexas e compostas não mudam de lugar. Dois casos ainda precisam ser postos em destaque. Uma cartilha propõe que a sílaba complexa tenha a menor ênfase; e em duas cartilhas a sílaba composta não é a menos enfatizada. Também as épocas das cartilhas parecem não interferir nessa priorização de trabalho com as dificuldades da língua escrita. A distinção que parece irá ocorrer em termos de época é no tocante ao trabalho específico com cada dificuldade, já que os dados evidenciam que uma boa parte das cartilhas negligencia a variedade de tipo de sílaba complexa, dígrafo, encontro consonantal e sílaba composta.

Em termos de proposta metodológica os poucos dados já trabalhados indicam: a) uma forte tendência a colorir e ilustrar sem muito interesse em utilizar esse elemento como parte integrante de um processo, tendência essa muito acentuada a partir dos anos 70; b) uma tendência a dar sentido contextual a frases agrupadas, também mais acentuada a partir dos anos 70; e c) uma tendência marcante em aceitar que a sílaba complexa deva ser a mais trabalhada e a composta a menos, enquanto dígrafo e encontro consonantal disputam os lugares intermediários, ainda que os dados sugiram que nem todos os tipos de dificuldades sejam trabalhados na mesma extensão.

As análises que estão em processamento procuram estudar cada elemento de per si ç como eles se combinam dentro de uma mesma cartilha, para depois executar uma comparação entre cartilhas. A variável época de publicação permeará todas as análises. O trabalho final deverá apresentar além das conclusões algumas informações que caracterizarão cada cartilha estudada.

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Aspectos do Desenvolvimento Cognitivo e Linguístico e a Alfabetização

Lúcia Lins Browne Rego Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)

A partir sobretudo das ideias de Piaget e Chomsky, a criança passou a ser vista como um ser que constrói ativamente o seu conhecimento e busca compreender o mundo de objetos que a cerca. No que concerne ao aprender a ler e escrever, este ser que pensa e elabora hipóteses só recentemente começa a ser conhecido. Abordaremos a questão dos pré-requisitos para alfabetização, focalizando alguns aspectos do desenvolvimento cognitivo e linguístico da criança e sua relevância para a aprendizagem do nosso sistema de escrita.

Começaremos por tecer algumas considerações sobre a natureza da representação alfabética e os aspectos do desenvolvimento do pensamento infantil necessários à compreensão do nosso sistema gráfico. Em seguida, levantaremos a questão das habilidades linguísticas envolvidas no uso da língua escrita, enfatizando alguns aspectos do desenvolvimento da linguagem que podem ter implicações na aprendizagem da leitura e da escrita.

Contrariamente aos sistemas ideográficos, como o da escrita chinesa, cujos símbolos gráficos representam significados, os sistemas alfabéticos são representações de significantes verbais com base numa análise da palavra ao nível do fonema. Dominar este sistema de escrita significa ser capaz de utilizar os seus elementos produtivamente, isto é, um leitor que reconhece as palavras "bota" e "calo" deve ser capaz também de ler "talo", "bala", "cata" e assim por diante, pois utilizando-se dos símbolos gráficos aprendidos, ele pode ler ou escrever novas palavras. Atingir esta produtividade só é possível quando se compreende o funcionamento do sistema.

Entender um sistema alfabético pressupõe dois aspectos fundamentais: uma capacidade para focalizar o significante verbal e uma noção adequada de como a fala está representada naquele tipo de escrita. Este entendimento não é tarefa fácil para uma criança. Tornar a forma linguística um objeto de reflexão em si e perceber como a sequência de sons se encontra representada na escrita alfabética envolve aspectos do desenvolvimento cognitivo da criança.

E. Ferreiro e A. Teberosky (1979) demonstraram que entre 4 a 6 anos as crianças passam por diferentes níveis de concepção da escrita. As autoras salientaram que um marco muito importante desse desenvolvimento é a emergência de uma hipótese silábica sobre a escrita. A criança que afirma, por exemplo, que para escrever a palavra "bola" são

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necessárias 2 letras está demonstrando que sua hipótese sobre a escrita se apoia numa análise do significante verbal ao nível da sílaba, um caminho necessário para a elaboração de uma concepção alfabética.

T. N. Carraher (1978) e T. N. Carraher e L. L. B. Rego (1981a, 1981b, 1982), buscando uma explicação no desenvolvimento cognitivo para a amergência de uma capacidade de refletir sobre a forma linguística e de perceber a relação entre fala e escrita, propuseram que o realismo nominal investigado por Piaget (1929) poderia ser uma variável importante neste contexto. Superar o realismo nominal significa ser capaz de distinguir o significante do significado, tarefa bastante difícil para crianças entre 4 e 5 anos como também já o havia constatado L. S. Vigotsky (1962). Crianças que ainda não superaram o realismo nominal afirmam, convictamente, que "boi é uma palavra grande porque o boi é grande", mostrando assim a sua incapacidade em separar os atributos do nome dos atributos do objeto a que ele se refere.

Nas nossas pesquisas (CARRAHER, T. N. & REGO, L. L. B., 1981a, 1981b, 1982) constatamos que as crianças chegavam à alfabetização em diferentes níveis de realismo nominal. Algumas crianças já haviam superado o realismo e apresentavam uma clara consciência do significante, enquanto que outras se encontravam num nível inicial e eram incapazes de separar o significante do significado. Havia ainda um terceiro nível que seria o intermediário, constituído por crianças que ora apresentavam uma capacidade de focalizar o significante e ora se deixavam ainda seduzir por concepções realísticas. Assim, se em um determinado momento afirmavam que a palavra "aranha" é maior do que a palavra "boi" "porque tem mais som", em outra ocasião consideravam que "bola" e "laranja" são palavra parecidas porque a "bola é redonda e a laranja também".

Verificamos, além disso, a existência de uma relação entre a capacidade de distinguii o significante do significado e o progresso da criança na aprendizagem da leitura e da escrita. Apenas foram capazes de apresentar uma concepção alfabética da escrita e um bom desempenho em leitura e em análise fonêmica as crianças que já haviam ultrapassado o nível inicial do realismo nominal. A superação, portanto, do realismo, permite uma consciência da forma linguística e facilita a compreensão de um sistema alfabético, permitindo que a aprendizagem da criança ultrapasse os limites das respostas memorizadas, possibilitando-lhe a descoberta de correspondências entre som e letra mesmo que não tenham sido treinadas. Comprovamos, nas amostras estudadas, que há crianças que são capazes de ler o que ainda não lhes foi ensinado, enquanto que outras, apesar de bem treinadas no reconhecimento de letras, sílabas e palavras não conseguem ler, ou apenas memorizam os elementos mais praticados. Vejamos, por exemplo, uma mesma frase, lida por uma criança que já havia superado o realismo (criança do nível 2 ) e por uma criança que ainda se encontrava no nível inicial do realismo nominal (criança do nível 1), ambas tendo iniciado a sua instrução em leitura ao mesmo tempo e com a mesma professora:

Criança do nível 2

Frase: 0 barbeiro corta o cabelo do menino.

Leitura:ó barbeiro corta ó cabelo dó menino.

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Criança do nível 1

Frase: O barbeito corta o cabelo do menino.

Leitura: ó (Qual é essa daqui?) ó ba (Oxente, o que é isso?) rr ó ba (Como é que se forma esse daqui com esse?) o ba - r ru - u (Não) r e - i - r o cc co bota r r - r r t a o ca (É prá ler isso tudinho, né?) o rabe l o do ne-ne (não) m me-ni-no.*

Não podemos justificar o desempenho fraco da criança do nível 1, no desconhccimen-to das letras. Ela foi perfeitamente capaz de identificar letras e sílabas, porém não con seguiu realizar as operações de análise e síntese necessárias para que haja leitura. Para ela, a leitura é um exercício de associação de sílabas e letras a determinadas vocaliza ções. O decifrado que consegue produzir é o resultado do seu esforço de memória ao ser submetida a um método fonético de alfabetização. Note-se que o mesmo método provocou resultados bem diferentes na criança do nível 2.

Também encontramos crianças que, em tarefa de escrita, reconhecem as letras que usam sem , no entanto, serem capazes de fazer as correspondências entre fala e escrita, demonstrando assim seu total desconhecimento de como funciona o sistema alfabético.

E. Ferreiro e M. G. Palácio (1982) salientam que as dificuldades gráficas são mais facilmente superadas do que as de ordem conceituai. Numa amostra de 959 crianças, em estudo realizado no México, 90% chegavam à alfabetização sem entender as relações entre fala e escrita. A maioria dos fracassados eram exatamente aquelas crianças que haviam iniciado o ano escolar em níveis pré-silábicos de concepção da escrita. Resultados como estes sugerem que ler e escrever são atividades complexas que envolvem muito mais do que o treinamento das habilidades perceptuais e motoras tão enfatizadas pela escola na preparação para a alfabetização. É também de fundamental importância que se leve em conta o desenvolvimento cognitivo da criança (REGO, L. L. B., 1983).

E que dizer do desenvolvimento linguístico? Se considerarmos, como D. Olson (1977) e Ron Scollon e Suzanne B. K. Scollon (1981), que nas modernas civilizações ocidentais a língua escrita tornou-se fortemente associada ao estilo da prosa ensaísta, estilo este que permeia a comunicação na escola, sendo uma das finalidades dela promovê-lo, podemos afirmar que ler e escrever envolvem também a aquisição de novas habilidades linguísticas. Não se trata, apenas, de compreender a língua expressa por uma nova forma. Ler significa também entender a mensagem de alguém que se encontra ausente da situação imediata e que se expressa através de um estilo de língua cuja informação se apoia num sistema de coesão interna através do qual a língua cria o seu próprio contexto (HALLIDAY, M. A. K. & HASAN, R., 1976).

* Na transcrição da leitura usamos as seguintes convenções: o acento agudo indica que a vogal foi produzida com som aberto; o traço horizontal sobre a vogal indica alongamento da mesma; um traço horizontal entre as sílabas indica pausa breve; dois traços horizontais entre as sílabas indi-cam pausa longa; o espaço em branco, intervalo entre palavras; as frases entre parêntese* comentários da criança e as letras repetidas as repetições da criança.

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Estudos recentes têm demonstrado que as crianças mais bem-sucedidas na escola são aquelas que desde cedo estão expostas a experiências com livros (HEATH, S., 1981). G. Wells (1982. 1983) e B. M. Kroll (1983) encontraram como fator preditivo mais forte do sucesso posterior de uma criança na leitura e na escrita a variável escutar esto-rias lidas em voz alta por um adulto, nos anos que antecedem o ensino da leitura e da escrita na escola. Segundo Wells (1982, p. 184) é através desta atividade que a criança desenvolve uma capacidade para reconstruir o significado com base na própria língua e não no contexto extralingúístico, como é frequente na fala. É através desta experiência, salienta o autor, que "a criança entra em contacto com o potencial simbólico da linguagem e o seu poder para representar experiências através de símbolos que são independentes dos objetos, dos eventos e das relações simbolizadas, e que podem ser interpretadas em contextos outros que aqueles nos quais a experiência ocorreu originariamente". Somando a favor dessas ideias podemos citar o caso reportado por Scollon e Scollon (1981) relativo à sua própria filha, Rachel, que pouco antes dos três anos de idade, já demonstrava uma capacidade para descontextualizar a linguagem. Rachel era capaz de idealizar os papéis de autor, de audiência e do próprio eu nas suas narrativas, bem como de fazer uso de uma coesão interna nas estórias que criava. Os autores contrastam as narrativas de Rachel com as de uma criança indígena de 10 anos que, apesar de escolarizada, era culturalmente marcada por uma tradição oral, apresentando sérias dificuldades em usar uma linguagem descontextualizada.

Em um estudo de caso (REGO, L.L.B., 1983) também nos foi possível constatar a emergência de uma capacidade para elaborar textos utilizando convenções próprias da língua escrita muito antes de uma criança se tornar de fato um leitor. Embora na pré-escola que frequentava a ênfase fosse no treinamento perceptual e motor, as suas oportunidades de explorar a língua escrita livremente com adultos e de escutar estórias lidas em voz alta eram amplas no contexto familiar. Aos 4 anos, ela já era capaz de diferenciar uma estória de uma carta, de uma notícia, de uma poesia, demonstrando algum conhecimento do tipo de língua usada nestes tipos de texto através dos seus jogos simbólicos, isto é, quando fazia de conta que estava lendo um jornal, uma revista, um livro ou uma carta. Onde, porém, revelou um maior desenvolvimento foi na construção das narrativas. Contrastemos, por exemplo, um texto produzido oralmente por esta criança, numa situação em que fazia de conta que lia rabiscos feitos por ela num papel, com uma estória escrita por uma criança já alfabetizada.

"A Menina do Chapéu Verde

Era um dia uma menina que só vivia de verde/ Ela adorava o verde/ a cor verde/ Ela foi para uma praça que tinha um bocado de árvores/ E/ arrancou umas folhas das árvores lindas/ E uma folha tava machucada e ela rasgou/ A folhinha chorou/ A menina do chapéu verde teve pena da coitada da plantinha/ Então/ veio uma ambulância de folhas/ levou a folhinha para o hospital/ e curou-la/ E a menina foi embora/ Viu a cor verde/ Viu muitas cos (cores) verde/ mas não arrancou/ E a menina ficou feliz que só gostava de verde/ A menina do chapéu verde."*

(F., 6 anos)

• Na história "A Menina do Chapéu Verde", o traço vertical indica as pausas da criança ao pronunciar a história oralmente.

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"Era uma vez uma escola que tinha muitas crianças bonitas. Aí a tia da menina tava fazendo muitas tarefas para a menina aí a menina disse tia praque tanta tarefa por que você faltou as aulas."**

(S., 6 anos e 7 meses)

Não há dúvida de que a primeira criança embora ainda não fosse um leitor, conhecia muito mais sobre a linguagem dos livros do que a segunda. Além de uma noção mais apropriada do que seja uma narrativa, como se pode ver pela presença de um título e a própria estrutura global do texto (na sua estória é possível distinguir uma abertura, a colocação de um problema e uma solução final), há também uma certa preocupação com a forma. A ação reprovável de maltratar uma planta é apresentada nos moldes de uma ficção literária, transportando o leitor para um mundo imaginário tal como é apresentado na literatura infantil em que a língua, criando o seu próprio contexto, libera-se das convenções do mundo real e permite folhas chorarem e serem socorridas por ambulâncias.

Quando contrastamos com o texto produzido pela segunda criança, percebemos que neste não chegamos a vislumbrar a estrutura completa de uma estória, nem há uma preocupação com a forma. Os personagens principais são introduzidos de uma maneira que pressupõe no leitor a informação suficiente para identificá-los. A utilização do "aí" aproxima esta narrativa muito mais de um estilo oral do que propriamente das formas escritas. Veja-se que a primeira criança não só eliminou o "aí" como fez uso de paráfrase para evitar a repetição, como quando emprega a expressão "a coitada da plantinha", para se referir à folha. Chama-nos também atenção a anáfora expressa pelo pronome "la", que embora empregado com a forma verbal inapropriada, já demons-tra que a criança começa a perceber a função destas partículas que são muito mais frequentes nos estilos formais de linguagem.

Não é necessário, portanto, esperar que uma criança se torne um leitor para que possa desenvolver um estilo de linguagem mais compatível com os textos escritos. Tanto o exemplo acima apresentado, como o estudo de Scollon e Scollon, mostram que a criança pode estender as suas estratégias de aquisição de linguagem à língua escrita, desde que seja regularmente exposta à linguagem dos textos escritos através de leituras feitas por adultos.

Embora durante a maioria dos processos de alfabetização a língua escrita seja apresentada à criança sob a forma de palavras ou de frases isoladas, sabemos que a maior parte das informações escritas que esta mesma criança terá que processar posteriormente na escola vai estar sob a forma de textos. A criança que já teve oportunidade de adquirir estratégias para processar informações fora de um contexto imediato, desenvolvendo as habilidades linguísticas necessárias, estará muito mais bem equipada para desenvolver estratégias de leituras e para se expressar através da escrita do que a criança que só inicia seu processo de transposição do estilo oral para o escrito após ter dominado o sistema de representação alfabética.

•* A história foi transcrita exatamente corno a criança escreveu.

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Consideramos, portanto, como de fundamental importância na preparação da criança que vai ser alfabetizada, não só o desenvolvimento dos aspectos conceituais relativos ao entendimento de como a fala está representada na escrita, como também o desenvolvimento de aspectos psicolinguísticos relacionados à aquisição da língua escrita. Para concluir gostaríamos de citar Frank Smith (1971, p. 180):

"As crianças aprendem facilmente sobre a língua falada quando estão envolvidas no seu uso, quando a língua tem possibilidade de fazer sentido para elas. E do mesmo modo, as crianças procurarão entender como ler, sendo envolvidas no uso da leitura, em situações em que a língua escrita possa fazer sentido para elas e com isto elas possam gerar e testar hipóteses."

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Aspectos Neurológicos

Paulo Bearzoti*

Pretendemos localizar a participação do sistema nervoso no processo da aprendizagem e/ou em seus distúrbios destacando alguns pontos:

POTENCIALIDADE FUNCIONAL DOS NEURÓNIOS

Período de Formação - Os neurónios se formam através de reprodução até, aproximadamente, o quinto mês de gestação. Daí em diante entram em processo de maturação.

Número dos Neurónios — Para termos uma ideia basta citarmos que só no córtex cerebral existem catorze bilhões.

Variação de Forma e Tamanho - Os neurónios variam muito de forma e tamanho a fim de se adaptarem melhor às funções que vão exercer.

Variação de Função — Fundamentalmente, os neurofisiologistas atribuem quatro funções ao sistema nervoso: 1) motora; 2) sensitiva e/ou sensorial; 3) neurovegetativa; 4) integrativa — uma função é considerada integrativa quando ela não é nem motora, nem sensitiva, nem neurovegetativa, por exemplo: a consciência, a afetividade, a cognição etc.

Arborização Dendrítica - Os dendritos são estruturas neuroniais vinculadas ao corpo celular dos neurónios. O aumento de volume e das ramificações dos dendritos recebe o nome de arborização dendrítica.

Formação das Redes Sinapsiais - O encontro de dois neurónios recebe o nome de sinapse. Nessas estruturas, o estímulo passa de uma célula para outra através de uma ponte bioquímica representada pela liberação dos neurotransmissores ou mediadores químicos. É sabido que dois neurónios podem manter mais de uma sinapse entre si. Em áreas corticais motoras de alguns animais, um só neurônio pode exibir até cem mil sinapses, o que significa que uma só célula pode entrar em contato com outras sessenta mil.

Neurologista.

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Circuitos Reverberantes (Feedback) — Um dos recursos mais usados no sistema nervoso central é a disposição da rede sinapsial de tal maneira que permita uma retroalimentação positiva ou negativa dos estímulos nervosos.

Mielinização — Um grande número dos axônios, que são prolongamentos provenientes do corpo celular neuronal, são revestidos por uma membrana lipo-protéica, a mielina, indispensável ao funcionamento dos neurónios. Embora algumas estruturas já estejam mielinizadas no recém-nascido, a mielinização ocorre de maneira marcante após o nascimento.

MATURAÇÃO DO SISTEMA NERVOSO

Podemos entender o processo maturacional do sistema nervoso como a ocorrência conjugada de três eventos principais: mielinização + arborização dendrítica + formação e ampliação da rede sinapsial.

BASES FUNDAMENTAIS DO APRENDIZADO, DO PONTO DE VISTA NEUROFISIOLÓGICO

As sinapses encerram em si o substrato estrutural e neurofisiológico do aprendizado.

INTEGRAÇÃO TRANSVERSAL DO SISTEMA NERVOSO

Os hemisférios cerebrais se comunicam amplamente entre si, permitindo, até certo ponto, um funcionamento unitário. Em outras palavras: a integração inter-hemisféri-ca ou transversal é praticamente perfeita. Ela ocorre às custas das fibras de associação que trafegam, principalmente, pelo corpo caloso.

INTEGRAÇÃO VERTICAL DO SISTEMA NERVOSO

Este aspecto é o mais difícil de ser abordado e é, também, o mais vulnerável às críticas. Existem naturalistas que clamam pela falta de uma integração vertical mais rígida, mais limitante, a exemplo do que ocorre na transversal. Se existisse esta disposição estrutural, o sistema nervoso funcionaria dentro de um regime de contenção, com menor grau de liberdade. Eles acreditam que dessa maneira o homem não estaria entregue à destruição da própria espécie através de homicídios, violências, guerras etc. Arthur Kóestler, em seu delicioso livro JANO, aborda este aspecto de maneira profunda e interessante. Em última análise, é a velha disputa entre o prazer e a realidade, entre o cognitivo e o afetivo, entre o que desejamos e o que podemos ou devemos fazer. Faremos uma abordagem sucinta desse tópico, aceitando a sugestão dos neuro-fisiologistas quando consideram as quatro funções do sistema nervoso:

Função Motora - Entre os atos motores, os reflexos são os mais rígidos e quase não permitem variações. Os movimentos automáticos já gozam de maior liberdade de expressão. Os atos voluntários são os mais livres possíveis, estando ligados à iniciativa individual. Verticalmente, esses movimentos são regidos pela medula, pelo tronco cerebral, pelo cerebelo, pelo sistema extrapiramidal, pelo piramidal, pela corticalidade etc. Contudo, desconhecemos o modelo neurônico para o ato motor voluntário.

Função Sensitiva e/ou Sensorial - Nesta função, os estímulos aferentes cristalizam-se sob a forma de sensações. Estas, contudo, só adquirem significado com o surgimento

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das percepções. Verticalmente, participam dessa integração a medula, o bulbo, o tálamo, o córtex cerebral etc.

Função Neurovegetativa - Esta função diz respeito à ação eferente visceral levada a cabo através do sistema nervoso autónomo. Quanto à integração vertical, participam cadeias ganglionares, a medula, nervos cranianos e, principalmente, o hipotálamo.

Função Integrativa - Como já vimos, são, por exclusão, as funções não motoras, não sensitivas e/ou sensoriais e não neurovegetativas. Se nas três primeiras existe uma certa vinculação entre a estrutura e a função até certo ponto rígida ou limitante, nas integrativas abre-se um enorme leque de possibilidades. Em outras palavras: a estrutura entra com sua cota da disponibilidade funcional mas será, acima de tudo, a ação do meio que ditará as regras do funcionamento do sistema nervoso. Obviamente, todas as estruturas corticais e subcorticais são envolvidas neste processo. Se houvesse uma integração vertical rígida, estrutural, com certeza não teríamos tantas possibilidades adaptativas e funcionais. Parece-nos que a natureza, dentro de um contexto evolutivo e em relação ao sistema nervoso do homem, teve o seu grande momento de opção paradoxal: ou permitia grande liberdade nas funções integrativas com todos os riscos inerentes a esta escolha, ou a tolhia por meio de uma estruturação restritiva criando, talvez, um mal maior. Daí, alguns autores acharem que a natureza dotou o homem de um sistema nervoso que vai além de suas necessidades e, por isto, os seres humanos ainda não sabem como usá-lo convenientemente. A nosso ver, a natureza optou "inteligentemente" ao fazer esta escolha. Várias estruturas entram nesta integração vertical. Contudo, merece destaque especial a formação reticular por seu caráter de estrutura integrativa através de suas conexões córtico-retículo-corticais. Não é demais, porém, frisar a importância da ação do meio.

UM MODELO DE FUNCIONAMENTO GLOBAL DO SISTEMA NERVOSO

Vamos supor que eu queira pegar um livro que sei estar em um determinado cómodo. Quando eu o vejo, ocorre o seguinte: as aferências visuais (função sensorial) permitirão uma sensação que só adquire significado através da percepção que daí resulta (ainda função sensorial). Ora, a percepção é o meio caminho entre a sensação e o processo do pensamento. Contudo, sensação e percepção correm simultaneamente. Mas o livro só se torna uma realidade objetal porque lanço mão de funções integrativas, como memória, representação etc. Através das vias associativas, outras funções integrativas são deflagradas, como a vontade de pegar o livro. O processo sofrerá uma reversão passando para a função motora e, então, um ato motor voluntário, cujo processo neu-rônico desconhecemos, será desencadeado. Encontrar o livro e poder manuseá-lo, poderá dar-me muita satisfação, o que terá repercussão visceral através do sistema nervoso autónomo (função neurovegetativa).

SISTEMA LIMBICO E COMPORTAMENTO TÍPICO DAS ESPÉCIES

O sistema límbico é constituído por um conjunto de estruturas corticais e subcorticais. A neurofisiologia comparada atribui a ele a regência do comportamento típico de cada espécie. A questão fica problemática quando transferimos esta afirmação para o ho-nem, pois surge a pergunta: qual é o comportamento típico da espécie humana? Não temos a pretensão de responder a este questionamento, mas... a ideia de função

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integrativa ajuda a entendermos melhor as várias possibilidades reflexivas que esta pergunta suscita.

RESUMO E CONCLUSÕES

As espécies no geral e os indivíduos em particular não podem ir além dos limites estabelecidos por seus sistemas nervosos.

O aprendizado depende, em parte, da integridade estrutural que, por sua vez, garante uma potencialidade funcional adequada.

A função está vinculada à maturação estrutural.

A integração transversal, no sistema nervoso, é mais "perfeita" e, por isto mesmo, mais rígida que a vertical.

Na integração vertical merece destaque a formação reticular por causa de suas conexões córtico-retículo-corticais.

Em nível de funções integrativas existe uma grande interação com o meio ambiente.

Os distúrbios de aprendizagem dependem de causas múltiplas.

Embora o sistema nervoso sempre esteja nos bastidores dos distúrbios de aprendizagem, o palco terapêutico deve ser ocupado pelo terapeuta(s) cuja(s) área(s) esteja(m) mais comprometida(s) ou que permita(m) uma melhor abordagem do caso.

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COMUNICAÇÃO

O INEP e a Alfabetização*

Maria Lais Mousinho Guidi Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP)

INTRODUÇÃO

Este trabalho pretende realizar uma análise inicial da participação do INEP, em diferentes momentos, sob influências metodológicas e politicas educacionais distintas, na busca de soluções para o problema da alfabetização. Essa participação se deu de forma direta — execução de projetos — e indireta — apoio técnico e financeiro — e em momentos específicos de organização e funcionamento do órgão.

Trabalhos posteriores deverão aprofundar as questões aqui levantadas, para recolhimento, em perspectiva histórica de estudos e pesquisas, para tomada de decisões quanto a linhas de financiamento a serem estimuladas ou apoiadas.

PRIMEIRO MOMENTO

Em 13 de janeiro de 1937 foi criado o Instituto Nacional de Pedagogia que, no ano seguinte, passou a ser denominado Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP).

O seu primeiro diretor-geral foi o professor Lourenço Filho, que deixou sua marca de alfabetizador nos trabalhos desenvolvidos pela Instituição. Lembremo-nos que ele foi o criador dos Testes ABC para verificação da maturidade necessária à aprendizagem da leitura e da escrita, de cartilha e livros de leitura até hoje utilizados por nossos professores.

Em sua gestão, atribuiu-se à Seção de Inquéritos e Pesquisas a realização de três "investigações conexas" na área da linguagem, a saber: 1) linguagem do pré-escolar; 2) linguagem do escolar; e 3) vocabulário da leitura comum do adulto.

Este trabalho contou com o apoio e a colaboração de José Luiz Domingues e Mariza Vieira da Silva.

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O livro Linguagem na Idade Pré-Escolar1, publicado em 1944, em primeira edição, com introdução de Lourenço Filho, foi produto da primeira investigação. O objetivo era estudar o vocabulário de uma amostra de crianças (6 grupos de 10 crianças cada um) de 2 anos a 6 anos e 11 meses de idade, frequentando classes de maternal e jardim de infância. Conforme depoimento*da Coordenadora de Projeto, professora Heloísa Marinho, não houve utilização de questionários ou formulários. O método empregado foi o registro da linguagem espontânea da criança, em situações naturais de jogos, brinquedos ou desenhos. Nestas eram anotados os comentários ou explicações das crianças. A publicação dos resultados da pesquisa teve apoio do INEP nas duas primeiras edições.

Essa investigação, de natureza psicológica, refletindo a filosofia da "Escola Nova", evidencia uma mudança no setor educacional em direção à democratização (ou expansão) do ensino, estendendo-o a crianças com problemas de aprendizagem e, até mesmo, de excepcionalidade. A propósito, afirmou-nos a professora Heloísa Marinho: "o aluno não pode ficar preso aos currículos. A professora deve olhar para a capacidade de cada um, que este indivíduo possa crescer".

Esta foi, sem dúvida, no INEP, uma etapa que se caracterizou pelo estudo da psicologia da criança brasileira de áreas urbanas, de classe média.2

As outras duas "investigações" realizadas no período não são aqui discutidas por não incidirem diretamente sobre o problema tratado neste trabalho.

SEGUNDO MOMENTO

A fundação do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE) em 1955 e de seus cinco Centros Regionais (CRPE).* *

No CBPE e nos CRPE constituíram-se serviços para estudos e pesquisas nos campos da Educação e das Ciências Sociais, através da Divisão de Estudos e Pesquisas Educacionais (DEPE) e da Divisão de Estudos e Pesquisas Sociais (DEPS), dirigidas por Jayme Abreu e Darcy Ribeiro, respectivamente. Foi criada também a Divisão de Aperfeiçoamento do Magistério (DAM) onde se ministravam cursos de atualização para professores, alunos bolsistas, de todo o Brasil.

MARINHO. Heloísa. A linguagem na idade do pré-escolar. 2. ed., Rio de Janeiro. INEP. 1955. (Apresentamos, em anexo, uma relação dos trabalhos publicados pela autora na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos).

• Este depoimento foi obtido em entrevista realizada por técnico do INEP, em 1983. É o início • de uma série de entrevistas com antigos pesquisadores do INEP, que tiveram atuação significativa

na área de alfabetização.

2 Consultar COSTA, Lena Castello Branco Ferreira. A educação no Brasil. In: HISTÓRIA das ciên-cias no Brasil. São Paulo. EPU. EDUSP, 1981. v. 3. p. 277-346.

••Os Centros Regionais de Pesquisas Educacionais estavam localizados nas seguintes capitais: Recife (PE), Salvador (BA). Belo Horizonte (MG), São Paulo (SP) e Porto Alegre (RSI.

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No desenvolvimento dos cursos, parte importante era atribuída à prática de ensino, inclusive por solicitação das secretarias de estado da educação. Para o ensino desses cursos, o então diretor-geral do INEP, professor Anísio Spínola Teixeira, conseguiu mediante convénio, a cessão da Escola Guatemala, da rede pública do Rio de Janeiro (ex-Distrito Federal). A maior dificuldade apresentada pelos professores-alunos referia-se ao processo de alfabetização, que já se constituía no maior problema das séries ini-ciais do então curso primário.

Em decorrência, o CBPE, através da DAM, iniciou uma série de estudos e experi-mentações sobre a aprendizagem da leitura e da escrita, supervisionados pela professora Lúcia Marques Pinheiro, que exerceu influência marcante nesses trabalhos.

O interesse da professora por alfabetização surgiu fortuitamente em uma de suas via-gens à Itália, onde, visitando escolas públicas, verificou que as crianças que haviam iniciado em outubro a aprendizagem da leitura e da escrita estavam lendo e escreven-do em fevereiro do ano seguinte. O método adotado era o fônico, bem apropriado à língua italiana.

No Brasil, Lúcia M. Pinheiro desenvolveu um trabalho associando o método fônico ao método sintético, resultando o chamado "método misto". Elaborou, então, a cartilha A História da Abelhinha, após três anos de experimentação controlada. Seguiram-se várias pesquisas sobre problemas e soluções para o desempenho de alunos da 1a série do 1° grau.*

As principais conclusões encontradas referem-se a3 :

— preparo do professor para alfabetização;

— expectativa baixa sobre o aluno;

— métodos e recursos de ensino utilizados;

— problemas de saúde e problemas psicológicos dos alunos.

Ao mesmo tempo, no CBPE, faziam-se estudos para aplicação do "método misto" e prosseguiam as pesquisas sobre formação do magistério primário, melhoria do rendi-mento na 1a série do 1° grau, caminhos para a alfabetização, dificuldades dos alunos da 1a série em leitura e ortografia.

No CRPE João Pinheiro, em Belo Horizonte (MG), a Divisão de Aperfeiçoamento do Professor (DAP),que acolhia o Programa Brasileiro e Americano de Assistência ao Ensi-no Elementar (PABAEE) e recebia bolsistas de todo o Brasil, realizava estudos e pes-

• Apresentamos, em anexo, uma relação dos trabalhos realizados ou supervisionados por LÚCÍI Marques Pinheiro.

ESCOLARIZAÇÃO inicial/alfabetização. Debatedores: Zaia Brandão e Lúcia Marques Pinheiro In: ENCONTRO NACIONAL DE DIRIGENTES DE EDUCAÇÃO, CULTURA E DESPOR TO, Brasília, 1982. Documentário. Brasília, MEC, 1982. v. 1. Painel C. p. 74-9. (Série plane jamento)

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quisas sobre princípios básicos da leitura e publicava livros como: A Leitura pelo Método de Experiências de Linguagem numa Classe de Crianças de 6 anos. Meninos Travessos, Barquinho Amarelo (publicado recentemente). Os trabalhos tinham funda-mentos psico-fisiológico-lingúísticos, observadas as características dos alunos e, parti-cularmente, o desenvolvimento da linguagem oral. O objetivo, segundo a professora Maria Yvonne Atalécio de Araújo, que dirigia o Laboratório de Estudos da Alfabeti-zação, era mais o de aprender do que ensinar, elaborar um método de alfabetização para as camadas populares, com ênfase na formação de professores.

A Divisão de Estudos e Pesquisas Sociais (DEPS) também desenvolveu estudos na área da leitura e da escrita. Um de seus primeiros trabalhos foi "A Educação nos Estudos de Comunidade"4 em que se analisava a contribuição dada pelos estudos de comunidade na compreensão de problemas educacionais, como o da leitura e da escrita. Estes estudos, quase sempre, inter-relacionavam fatores escolares com o contexto social, con-forme se depreende da leitura do ensaio supra. Para a autora a escola desempenha um papel na integração das comunidades à sociedade e cultura nacionais. Contudo, a eficá-cia de sua ação depende de outros setores e, por vezes, é limitada, como no caso da assimilação da língua-padrão pelo caipira:

"Èu falo caipira como todo mundo aqui. Eu digo bamo e nóis. Desde pequeno que eu ouço as pessoas falarem assim, e eu me acostumei a falar assim também. Mas eu sei como escrever estas palavras; elas deviam ser vamos e nós. Todos nós que fomos à escola sabemos disso. Mas a professora mostra como se escreve, nunca como se fala. Ela não diz nada quando a gente fala como não deve; mas se a gente escreve uma palavra errada, ela corrige."5

Observa-se, também, que a falta de vestuário, ao lado de outros fatores como pobreza, doença e desinteresse, é apontado como responsável pelas flutuações na frequência escolar.

O material de ensino, precário e reduzidíssimo, não permitia que as escolas observadas funcionassem em condições razoáveis. O pagamento atrasado das professoras con-tribuía para agravar o quadro.

Como se observa, esses mesmos fatores continuam a ser apontados nas pesquisas recen-tes apoiadas pelo INEP como causadores ou responsáveis pelo fracasso escolar.

De 1958 a 1964, a Divisão de Estudos e Pesquisas Educacionais do CBPE planejou e executou o Programa de Pesquisas em Cidades-Laboratório que, em sua primeira formulação, pretendia selecionar municípios-tipo para constituí-los em laboratórios de estudos e experimentação educacional, nas diferentes regiões do Brasil. A equipe de trabalho era formada por professores com nível de pós-graduação no exterior, especia-listas do Summer Institute of Linguistics (SIL) e da UNESCO, bem como por alunos-.estagiários do Curso de Aperfeiçoamento de Pesquisadores Sociais, ministrado pelo CBPE.

GOMES, Josildeth. A educação nos estudos de comunidade no Brasil. Educação e Ciências Sociais, Rio de Janeiro, 112)«3-102, ago. 1956.

5 Idem, ibidem, p. 81-2.

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A esse Programa fundiu-se a Campanha Nacional de Erradicação ao Analfabetismo, promovida pelo Departamento Nacional de Educação (ONE/MEC) e iniciada nas cidades-laboratório de Leopoldina (MG) e Cataguases (MG), estendendo-se mais tarde a Catalão (GO) eTimbaúba (PE).

Concluiu-se, nos debates entre técnicos do Programa e da Campanha que:

"... a escolarização dos milhões de crianças e adolescentes em idade escolar é mais relevante e urgente que a alfabetização da metade iletrada de nossa população adulta, uma vez que, somente através da ampliação da rede escolar, de modo a cobrir toda a população de 7 a 14 anos, se poderá estancar o incremento constante do número absoluto de analfabetos que presenciamos no Brasil. Por outro lado, é ponto pacífico que a alfabetização — enquanto ensino das técnicas básicas do ler, escrever e contar — embora deva constituir o objeto básico da educação elementar, não é, por si só, suficiente." (p. 16)6

Muitos trabalhos foram produzidos pelo Programa e pela Campanha. Neste trabalho faremos referência a apenas dois: "Levantamento Linguístico de Leopoldina-MG"7 e "Uma Comunidade Teuto-Brasileira (Jarim)".8

O primeiro, realizado pelo Summer Institute of Linguistics, fez o levantamento do ma-terial linguístico necessário à elaboração de uma cartilha para alfabetização, dentro de critérios científicos modernos.

O trabalho na comunidade teuto-brasileira de Jarim foi desenvolvido por estagiária do curso de Aperfeiçoamento de Pesquisadores do CBPE. 0 projeto integrava um programa, com uma linha definida de pesquisa, executado nas cidades-laboratório. Da pesquisa mencionada, extraímos o texto que se segue:

"Em Jarim, como já salientamos, as escolas encontram-se distribuídas de modo a permitirem o acesso relativamente fácil a todas as crianças do distrito em idade escolar... Podemos dizer, portanto, que toda a população em idade escolar encontra meios para sua alfabetização, uma vez que nos 2,5% restantes se incluem as crianças que entram mais tarde para a escola e, possivelmente, alguns casos de incapacidade. Em vários casos, notamos que há, por parte dos pais, interesse mais acentuado em relação ao número de anos que a criança fica na escola, e não em relação ao número de séries que chegou a frequentar, considerando suficiente a permanência de 2 a 3 anos na escola, período em que aprende o português e é alfabetizado, o que explica a queda da matrícula a partir da 3? série, especialmente."

RIBEIRO, Oarcy. O programada pesquisas em cidades-laboratório. Educação e Ciências Sociais, Riode Janeiro, 3 (91:13-30, dez. 1958.

LEVANTAMENTO linguístico de Leopoldina. Educação e Ciências Sociais, Rio de Janeiro, 3 (9)31-56, dez. 1958. (Relatório elaborado pelo Summer Institute of Linguistics sobre o estudo realizado em Leopoldina, Minas Gerais, para o Setor de Estudos e Levantamentos da Companhia Nacional de Erradicação do Analfabetismo.)

ALBERSHEIM, Úrsula. Uma comunidade teuto-brasileira (Jarim), Rio de Janeiro, CBPE, 1962. (Série VI - Sociedade e Educação. Colação O Brasil provinciano, 2).

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Em 1964, é nomeado diretor-geral do INEP, o Dr. Carlos Pasquale, ex-Secretário de Estado da Educação de São Paulo, que viria a realizar o "Censo Escolar no Brasil -1964".9 Cumpria o INEP, com esta ação, compromissos internacionais. Estabeleceu, ainda, metas a serem atingidas até 1970, de criação de painéis de informações locais, regionais e nacionais que espelhassem a situação educacional da criança brasileira em idade escolar.

Outro fato importante, na década de 60, foi a implantação do programa "Operação Escola" (OE), a nível nacional, por iniciativa do Ministério do Planejamento, através do IPEA e do INEP/MEC. O Grupo de Trabalho Especial da OE contou com a participação dos secretários de educação de todos os estados* que se responsabilizaram junto aos diretores do ensino primário pela montagem de um questionário para coleta de dados que seriam interpretados pela Central/Rio da OE.

TERCEIRO MOMENTO

Em 1972/73, com a reforma administrativa do MEC, o INEP passou a ser denominado Instituto Nacional.de Estudos e Pesquisas Educacionais, mantendo a antiga sigla, e sua sede foi transferida para Brasília. Sofreu profundas modificações em seu plano diretor, como a extinção dos CRPE, em 1972/73, e do CBPE, em 1977.

Outras mudanças se sucedem face aos Planos Setoriais de Educação, Cultura e Des-porto10 que estabelecem as diretrizes e prioridades da educação nacional, em todos os níveis, e, consequentemente, da pesquisa educacional. O INEP, como órgão vinculado à Secretaria Geral do MEC, passa a ter como finalidade: "coordenar a formulação e a implementação da política ministerial de pesquisa educacional, cultural e despor-tiva...""

Se o momento anterior sofreu a influência dos pioneiros da educação que proclama-vam o advento da Escola Nova, e da fundação das faculdades de Filosofia, Ciências e Letras, o período atual reflete a expansão da pós-graduação, a criação do CNPq, a adoção, pelo MEC, da engenharia de sistema para elaboração dos programas e proje-tos, segundo normas rígidas de input e output, e a utilização da estatística — uma ciên-cia auxiliar - como água milagrosa capaz de situar com precisão os problemas educa-cionais.

9 CENSO escolar no Brasil - 1964. Rio de Janeiro, INEP/IBGE, 1967. 4v.

* Caso pitoresco aconteceu na zona rural de Goiás, quando a SEC/GO convenia com o MEC por ocasião do programa OE um novo acordo para construção de uma escola. Esse acordo foi objeto . de tanta discussão local e a escola construída atraiu tantas pessoas para o lugarejo que este passou a cidade com o nome de Novo Acordo.

10 Consultar BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Ill Plano Setorial de Educação, Cultura a Desporto 1980/1985. Brasília, MEC, DDD, 1982. p. 23.

" BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Secretaria Geral. Secretaria de Modernização Administrativa. Ragimantot e Estatutos. Brasília, MEC. Coordenadoria de Comunicação Social, 1982. v. 1. (Série modernização administrativa)

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Na comunidade acadêmica, a preocupac&b com a metodologia científica passa a domi-nar entre os pesquisadores, quase todos recém-graduados como mestres e doutores. Os projetos de pesquisa apresentados ao INEP, embora demonstrem domínio teórico da literatura científica pertinente, na maioria dos casos, permanecem presos a modelos estrangeiros.

Observa-se, ainda, a desvinculação entre os projetos propostos, os problemas da educa-ção básica e a política de educação nacional, bem como a desinformação referente à necessidade das comunidades e a trabalhos produzidos em outros setores. Como exem-plo, citamos o trabalho "Estudo Avaliativo do Projeto de Novas Metodologias Aplicáveis ao Processo Ensino-Aprendizagem", resultado de um convénio entre o MEC e a UFGO. O relatório do projeto foi publicado em Brasília, em março de 1980. Apesar de tratar-se de um projeto abrangente, envolvendo todas as Unidades Federadas, e analisar um problema fundamental — a alfabetização — para a educação, não aparece citado em nenhuma bibliografia.

Não é grande o número de pesquisas e estudos realizados e menor ainda o dos que estão em andamento tendo a alfabetização como objetivo primordial ou como subpro-duto relevante (ver Anexos). Dentre todos esses trabalhos, distingue-se por sua forma de abordagem "O Estado da Arte da Pesquisa sobre Evasão e Repetência no Ensino de Io Grau no Brasil".12 A revisão bibliográfica, o conteúdo e a metodologia empregada evidenciam o valor e consistência do trabalho e a sua importância como subsídio a outros estudos e pesquisas.

Em algumas pesquisas, os aspectos da alfabetização relacionados aos campos da lin-guagem foram polarizados em torno do léxico das crianças em idade de alfabetização e de suas implicações no processo ensino-aprendizagem, bem como da sintaxe da fala das crianças e da comunicação linguística.

Outros estudos situam-se no campo da psicologia evolutiva piagetiana, tratando de questões relativas à associação entre o nível de compreensão dos conteúdos progra-máticos e as etapas de desenvolvimento psicológico e cognitivo da criança e a alfabeti-zação; ao estudo da avaliação da aprendizagem com resultados na evasão e repetência.

Há que considerar, também, as contribuições das ciências sociais — Antropologia, Sociologia e Economia - sobretudo na utilização de métodos e técnicas de abordagem e análise dos problemas educacionais. Temas como desescolarização, trabalho do menor, fatores escolares e não-escolares intervenientes no ensino de 1° grau etc, são tratados em estudos e pesquisas apoiadas pelo INEP. Apresentamos, em seguida, con-clusões pelos pesquisadores dessa área:

"O saber ler, escrever e contar ainda é fundamental, segundo a opinião dos sujeitos de escolarização."

"Não foram encontradas variáveis que, isoladamente, pudessem responder segura-mente pelo fenômeno em questão. Ao contrário, foram desmitificadas algumas

BRANDAO, Zaia. O estado da arte da pesquisa sobre evasfo e repetência no ensino de 10 grau no Brasil (1971-1981); relatório técnico. Rio de Janeiro, IUPERJ/INEP. 1982. 3v.

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causas simplistas e correntes de reprovação escolar, como as deficiências biológicas e físicas dos alunos, a desintegração de seus lares, o retardamento intelectual e a falta de prontidão entre outras."

"De fato, a única diferença observada entre crianças de escolas públicas e particu-lares foi a melhor compreensão de uma dada formulação verbal (quantos elementos a mais/a menos?) por crianças das escolas particulares."

"Estatisticamente, não foi possível detectar com clareza o peso específico da habili-tação do professor sobre o rendimento de seus alunos. O maior efeito-benefício ainda se encontra primordialmente atrelado à experiência do professor. Contudo, a hipótese de que a experiência acrescida da habilitação produza maiores benefícios do que simplesmente a experiência acumulada, é uma hipótese que permanece sem ser negada. Foram encontradas evidências que sugerem sua corroboração. É esta corroboração que deverá ser buscada em novo estudo, talvez daqui a dois ou três anos."

"Pode-se ainda concluir que o sistema escolar de 1° grau embora se afirme que tem 'capacidade ociosa' (a pesquisa abrangeu o Estado de São Paulo) atende díferen-cialmente à população escolar, ou seja, as camadas mais baixas do meio rural que vêem a escola como um valor primordial e indiscutível, são as menos atendidas pelo sistema escolar."

"Tendo encontrado uma repercussão maior do que a prevista dos problemas sócio-afetivos na alfabetização das crianças, concluímos que a eficácia do trabalho na escola passa pela adesão dos pais não só a nível de discurso consciente (aspirações exteriorizadas), mas a nível mais profundo do desejo até mesmo inconsciente."

"Na percepção de todas as categorias (professores, especialistas, pais e alunos) a culpa maior do fracasso escolar recai sobre a família e mais acentuadamente sobre o aluno."

"A falta de condições dos pais para acompanhar os temas e o conjunto das ativida-des do filho torna a escola o único apoio possível para a criança carente."

No ano passado, o INEP promoveu o Seminário sobre "Aprendizagem da Língua Materna: uma Abordagem Interdisciplinar", em nível académico, onde se discutiu questões referentes à alfabetização, leitura e redação. Um dos principais resultados foi o encaminhamento dos estudos e debates para a área de alfabetização, numa aborda-gem interdisciplinar. O Seminário de que ora participamos pode ser considerado pro-duto, ampliação e aprofundamento do debate já iniciado.

O INEP mantém, hoje, duas linhas de atuação em pesquisa: a de demanda e a de fomento, explicitadas no Informativo n? 5/6, INEP/MEC, 1983 e no Documento C/1983.13

13 INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS. Documento C -anexo á Conferência da Ministra Esther de Figueiredo Ferraz na Escola Superior de Guerra. Brasília. MEC, 2.8.83. (Ill - Perspectivas de atuação).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ainda é prematura uma avaliação dos resultados das pesquisas apoiadas pelo INEP, desde sua criação, por se tratar de um trabalho inicial, como dissemos na introdução.

No entanto, observamos que os estudos e pesquisas não têm contribuído efetivamente para a solução de problemas básicos do sistema educacional brasileiro, como a alfabetização. Em nosso país, 32,7% da população de 7 a 14 anos continua analfabeta, conforme Anuário Estatístico do Brasil, 1982. As razões são várias - isolamento da comunidade acadêmica, falta de representatividade social das pesquisas, o tratamento de fenómenos educativos de forma isolada e estanque - e não pretendemos aqui esgotá-las.

Verifica-se, ainda, a falta de mecanismos de articulação entre a produção científica e as decisões tomadas pela administração dos sistemas de ensino, em seus diferentes níveis.

0 CBPE e os CRPE possibilitavam essa articulação, pois davam uma maior abrangência aos estudos e pesquisas, assim como à aplicação de seus resultados, mas foram extintos, o que é de lamentar-se.

A administração do INEP está, atualmente, analisando e propondo ações para redimensionar essa questão, seguindo a trajetória e os caminhos indicados pelos setores responsáveis pela educação básica, estimulando o intercâmbio entre grupos emergentes e grupos já consolidados.

Nosso país é feito de contrastes de toda ordem. Aqui, neste Seminário, estamos discutindo o problema de alfabetização, da posse e domínio da palavra escrita. Apesar da secular invenção de Gutemberg a palavra escrita ainda não é do domínio de todas as nossas crianças de 7 a 14 anos de idade. Por outro lado, já sabemos de estudos, pesquisas e experimentos que estão sendo realizados para utilização do computador no processo de alfabetização. A linguagem humana e a linguagem computacional coexistem. Contudo, temos prioridades. Em que ponto do progresso tecnológico se encontra a maior parte da população? Como fazê-la avançar, sem saltos que enfraqueçam ou retirem sua identidade cultural? Como prosseguir?

O que foi feito até agora, partindo do INEP, dos centros produtores de pesquisa, das universidades, através de técnicos e instrumentos considerados científicos, não trouxe, de modo abrangente, os resultados esperados. Que este Seminário seja um sinal, como um sonar, que retorne carregado de informações, qualquer que seja a linguagem. Da parte do INEP, esta comunicação é o primeiro sinal de nosso sonar.

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ANEXOS

Pesquisas Concluídas sobre Alfabetização

Causas da Evasão e Repetência nas Classes de 1a Série do 1? Grau de ensino na Paraíba Maria Anita de Medeiros Duarte Secretaria da Educação e Cultura do Estado da Paraíba Setor de Pesquisas Conclusão: agosto/1978

Nível de Escolarização, Educação Informal e Procura Educacional em Populações Rurais e Urbanas do Estado de São Paulo Lia Freitas Garcia Fukui Zeila de Brito Fabrini Demartini Centro de Estudos Rurais e Urbanos - CERU/SP Conclusão: janeiro/1978

Caracterização e Estudo de Fatores Geradores de Aprendizagem Sérgio Goldemberg Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP Conclusão: agosto/1978

Diagnóstico Discriminativo do Escolar com Dificuldade de Aprendizagem Neyde Jorge Isaac Fundação Getúlio Vargas - FGV/ISOP Conclusão: setembro/1977

Fatores Escolares e Não-escolares do Rendimento do Ensino de 1? Grau Alceu Ravanello Ferrari Universidade Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS Conclusão: fevereiro/1975

Evasão, Aproveitamento e Atitudes dos Alunos em Classes Conjugadas versus Alunos em Classes Independentes nos Meios Urbano e Rural Lori Alice Gressler Secretaria Municipal de Educação e Cultura do Municfpio de Dourados/Prefeitura Municipal - MS Conclusão: novembro/1978

A Comunicação Linguística em Meio Rural Paranaense — Evasão e Repetência Escolar no 1° grau Otília Arns Universidade Federal do Paraná - UFPR Pós-Graduação em Letras Conclusão: fevereiro/1979

Estudo da Associação entre Nível de Compreensão de Conteúdos Programáticos e Etapas do Desenvolvimento Psicológico da Criança Laura Cansado Ribeiro

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Instituto Metodista "Izabela Hendrix" - MG Conclusão: janeiro/1976

Repetência na 1a Série do 1? Grau: uma Nova Perspectiva de Análise Euza Maria de Rezende Bonamigo Thereza Penna Firme Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS Faculdade de Educação Conclusão: maio/1980

O Léxico das Crianças em Idade de Alfabetização da Área do Grande Rio e suas Implicações no Processo de Ensino-Aprendizagem — 1a Etapa Sebastião Josué Votre-Universidade Gama Filho Departamento de Letras e Artes Conclusão: 1979

Estado da Arte da Pesquisa sobre Evasão e Repetência no Ensino de 1° grau no Brasil Ana Maria Bianchini Baeta Any Dutra C. da Rocha Zaia Brandão Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro - IUPERJ Conclusão: março/1972

O Léxico das Crianças em Idade de Alfabetização do Estado do Rio de Janeiro e suas Implicações no Processo de Ensino-Aprendizagem — 2a Etapa Sebastião Josué Votre Universidade Gama Filho - Departamento de Letras e Artes Conclusão: setembro/1980

A Sintaxe da Fala das Crianças e dos Materiais Didáticos do Estado do Rio de Janeiro Sebastião Josué Votre Universidade Gama Filho Conclusão: setembro/1982

Proposta Didática Integrada para Alfabetizandos de Periferias Urbanas: Construção e Validação Experimental Esther Pillar Grossi Grupo de Estudos sobre o Ensino da Matemática de Porto Alegre - GEEMPA Conclusão: maio/1983

Pesquisas em Desenvolvimento

Desenvolvimento Cognitivo e Alfabetização Lúcia Lins B. Rego Terezinha Nunes Carraher Universidade Federal de Pernambuco — UFPE Departamento de Psicologia Conclusão: outubro/1983

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Nova Abordagem na Avaliação da Aprendizagem Inicial em Leitura Maria Victória Gusmão de A. Cunha Fundação Getúlio Vargas - FGV/ISOP

Trabalhos Publicados, Realizados ou Supervisionados, por Lúcia Marques Pinheiro

Série Pesquisas e Monografias

PINHEIRO, Lúcia Marques. Fatores que influem no ensino da leitura e da ortografia na escola fundamental. Rio de Janeiro, INEP, CBPE, 1974. (Convénio com a OEA).

----------------Caminhos para a alfabetização. Rio de Janeiro, INEP, CBPE, 1975.

----------------Dificuldades dos alunos da 1a série - ortografia. Rio de Janeiro, INEP, CBPE, 1976.

------- . ------ . Dificuldades dos alunos de 1a série - leitura. Rio de Janeiro, INEP, CBPE, 1976.

--------------- . Dificuldades do professor primário recém-formado em classes de 1? ano. Rio de Janeiro, INEP, CBPE, 1976.

Melhoria do rendimento do ensino no primeiro ano. 2. ed. Rio de Janei ro, INEP. CBPE, 1976.

---------------. Eficácia de métodos e recursos para ensino de leitura, ortografia e reda- ção na 1a série. Rio de Janeiro, INEP, CBPE, 1976.

Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos e Outros

PINHEIRO, Lúcia Marques. Iniciação à leitura. R. bras. Est. pedag.. Rio de Janeiro, 49 (110)285-310, abr./jun. 1968.

_________ et alii. Operação-escola: subsídios para reformulação do ensino primário brasileiro. R. bras. Est. pedag.. Rio de Janeiro, 50 (112)270-84, out. 1968.

. . Por que tanta repetência na 1a série? R. bras. Est. pedag.. Rio de Janei ro. 55 (122)242-53, abr./jun. 1971.

Bases para a reformulação de currículos e programas do ensino funda mental. R. bras. Est. pedag.. Rio de Janeiro, 57 (125):10-31, jan./mar. 1972.

----------------Formação do magistério para a educação fundamental: currículo básico. R. bras. Est. pedag.. Rio de Janeiro, 59 (129) :26-40, jan./mar. 1973.

--------------- Provas de rendimento escolar no curso primário. In: CONFERÊNCIA NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 3, Salvador. 24 a 29 de abril, 1967. Anais. Rio de Janeiro, INEP, 1968. v. 1. p. 179-95.

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PINHEIRO, Lúcia Marques. Bases para uma reforma de educação no período de esco-laridade obrigatória. In: CONFERÊNCIA NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 3, Salvador, 24 a 29 de abril, 1967. Anais. Rio de Janeiro, INEP, 1968. v. 1.p. 197-288.

---------------- & SARAIVA, Maria T. Tourinho. Relatório final do grupo de trabalho especial da operação-escola (criado pelo Decreto n° 63.258). Rio de Janeiro, s. ed., 1968. 163p. mimeo.

Relação dos Trabalhos Publicados por Heloísa Marinho

Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos

MARINHO, Heloísa. A linguagem na idade pré-escolar. R. bras. Est pedag.. Rio de Janeiro, 23 (57)59-122, 1955.

_________& FERREIRA, Marina Bessone da Cruz. Métodos de ensino da leitura. R. bras. Est. pedag.. Rio de Janeiro, 28 (68): 130-50, out./dez., 1957.

--------------Da influência do jardim de infância na promoção da primeira série. R. bras. Est. pedag.. Rio de Janeiro, 34 (73):3-8, jan./mar. 1959.

Missão educadora no jardim de infância. R. bras. Est. pedag.. Rio de Janei ro, 15 (101) 53-72, jan./mar. 1966.

--------------- Formação do professor primário em nível superior. R. bras. Est. pedag., Riode Janeiro, 47 (105) :141-52, jan./mar. 1967.

_________Preparação do professor primário especializado em nível universitário. R. bras. Est. pedag.. Rio de Janeiro, 53 (117):134-50, jan./mar. 1970.

Como a criança aprende a ler bricando. R. bras. Est. pedag.. Rio de Ja neiro, 56 (124):366-79, out./dez. 1971.

INEP e Outros

MARINHO, Heloísa. A linguagem na idade pré-escolar. 3. ed. Rio de Janeiro, INEP, 1955. 87p.

--------------- Vida e educação no jardim de infância. 3. ed. Rio de Janeiro, Conquista, 1967. 254p.

--------------- Estimulação essencial, s. I., Sociedade Pestalozzi do Brasil, CENESP, 1978. 117p.

--------------- O currículo por atividades no jardim de infância e na escola de 1? grau. 2.ed. Rio de Janeiro, Papelaria América, 1980. 300p.

Vida, educação e leitura; método natural de alfabetização. Riode Janei ro, Papelaria América, 1981. 109p.

--------------- & WERNER, Jairo Júnior. Aptidão para a aprendizagem da leitura e da escrita. Niterói, Associação Brasileira de Estimulação, 1982. 55p.

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MESA-REDONDA 3: FORMAÇÃO DO PROFESSOR ALFABETIZADÒR

Formação do Professor Alfabetizador

Any Dutra Coelho da Rocha Secretaria Municipal de Educação e Cultura

do Estado do Rio de Janeiro

No que diz respeito à formação do professor alfabetizador, as questões relevantes, do ponto de vista do pedagogo, são inúmeras. Há algumas que gostaria de destacar. Antes de abordá-las, entretanto, quero esclarecer que me coloco na perspectiva do fracasso da escola: não do fracasso do aluno e nem mesmo do fracasso do sistema socioeconómico e político (o que não significa achar que este sistema seja um sucesso). Acredito que o aspecto mais contundente, a face mais feia do fracasso da escola, está justamente na alfabetização. Os índices alarmantes, já amplamente divulgados - mais de 50% de perdas da 1a para a 2a série, impressionante cifra que se mantém estável há mais de quarenta anos - confirmam, de maneira eloquente, esta afirmação. A alfabetização fracassa não em relação às crianças da classe média: o fracasso atinge os mais pobres.

Ora, parece evidente que não é possível admitir que exista uma explicação a priori, natural, seja genética, física, biológica, nutricional ou até ambiental para que este imenso contingente passe pela escola sem conseguir aprender a ler e a escrever. Será que todas estas crianças possuem alguma espécie de retardamento mental ou incapacidade? É difícil acreditar nesta hipótese. Pelos resultados de muitos países - inclusive países como Paraguai e Bolívia — sabemos que o domínio da leitura e da escrita é um aprendizado possível para a imensa maioria das populações. Acresce que aprender a ler e a escrever é também uma aspiração da maioria. Sabe-se, até a saciedade, que a educação básica é um bem valorizado sobremaneira pelas camadas populares, inclusive concretamente como estratégia de sobrevivência e de melhoria de vida.

Dentro deste enfoque a primeira questão que eu gostaria de abordar é a das lacunas e falhas por parte das teorias da educação quando se trata de instrumentalizar a atuação dos professores junto às crianças das camadas populares.

Sabe-se que o fracasso em parte se deve à inadequada preparação que os professores recebem nos seus cursos de formação. Cabe aqui uma pergunta: será que esta inadequação dos cursos de formação de professores se deve somente à desatualização e a falhas dos currículos e dos professores destes cursos? Ou será que decorre também de lacunas no corpo teórico da educação? Creio que ainda não foi possível, por parte das teorias psicopedagógicas e até mesmo por parte das ciências que as embasam, formular de maneira rigorosa, estruturada e precisa aquilo que os professores, e a escola em geral, precisam saber para enfrentar com sucesso o trabalho com esta criança concreta, que é a criança pobre brasileira.

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Como afirmam T. Carraher, D. Carraher e A. Schlieman1 a escola fracassa porque: 1) é incapaz de aferir as reais capacidades dos seus alunos; 2) desconhece os processos naturais que levam a criança a adquirir o conhecimento; e 3) é incapaz de estabelecer uma ponte entre o conhecimento prático, a competência que a criança já possui e o conhecimento formal que deseja, precisa e deve transmitir.

A estes três itens correspondem outras tantas perguntas a respeito de nossas crianças oriundas das camadas populares que as ciências que embasam a educação não conseguem ainda responder de maneira completa e sistemática, a saber:

1. Quem é esta criança? Que sabe esta criança?

2. Como aprende esta criança?

3. Como ensinar a esta criança?

Quando se cogita desta incapacidade das teorias psicopedagógicas, e até das ciências que embasam a educação, para instrumentalizar a atuação dos professores junto às crianças das camadas populares, é o momento do mundo académico voltar-se para o mundo da realidade escolar, para o mundo dos professores em suas salas de aula, para lá buscar o encaminhamento para os problemas do ensino-aprendizagem das crianças mais pobres.

A questão do fundamento linguístico de uma metodologia eficaz de alfabetização é o segundo ponto que merece destaque."

Com base em minha prática pedagógica atual estou convencida de que o enfoque da teoria linguística contemporânea deve se constituir o principal fundamento de uma metodologia eficaz da alfabetização. Isto significa a aceitação, da minha parte, da hipótese da competência linguística inata. Significa também reconhecer o valor instrumental da linguística para a alfabetização. Dentro deste enfoque a proposta do linguista é a de que na alfabetização se realize uma ordenação dos elementos da língua (relação fonema/grafema) que serão apresentados à criança pela primeira vez. Esta ordenação não pode ser a ordenação arbitrária de uma estorinha, mas deve respeitar o processo de aquisição da linguagem pela criança, que não é casual mas altamente sistemático. A proposta do linguista é, pois, que se trabalhe com o aluno as relações internas da língua, e que estas relações sejam trabalhadas o tempo todo.

O processo de alfabetização, portanto, deve reproduzir o processo de aquisição da linguagem, a partir da significação da língua em si. A tarefa da alfabetização seria levar a criança a tomar consciência de sua capacidade linguística. Necessariamente, neste processo todas as técnicas devem incorporar a contribuição da Linguística.

É preciso desenvolver nos professores uma competência técnica específica para utilizar a contribuição da Linguística que se traduziria, por exemplo, na capacidade de identi-

CARRAHER, Terezinha Nunes et alli. Na vida, dez; na escola, zero: os contextos culturais da aprendizagem da matemática. Cadernos de Pesquisa, São Paulo (42) :79-81, ago. 1982.

• Agradeço a valiosa contribuição de Heloisa Villas Boas para as reflexões que se seguem.

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ficar em que pontos, métodos, cartilhas e outros materiais didáticos contradizem os pressupostos e fundamentos linguísticos.

Um dos principais pontos críticos do sistema, no que diz respeito à alfabetização, está na inexistência de uma ponte entre o linguista e o professor que está na sala de aula.

Temos de um lado o especialista, que domina a área linguística, mas que desconhece o que está acontecendo nas salas de aula de 1a a 4ª séries, e que, paradoxalmente, se expressa numa linguagem incompreensível para o leigo. Do outro lado temos o pedagogo, que sabe o que se passa na sala de aula, mas ainda não domina o conteúdo linguístico. A contribuição teórica do linguista por mais relevante, significativa e perti nente, não garante a eficiência da alfabetização, enquanto prática pedagógica, se não se construir esta ponte. Há que construí-la a nível de massa, através de pessoas que, além de educadores, deverão necessariamente possuir uma fundamentação linguística.

Acredito que muitos linguistas, hoje, estão pensando a prática pedagógica e têm importantes contribuições que não chegam ao professor.

Passemos à terceira questão: adequação da alfabetização à especificidade da clientela. que a meu ver não pode ser colocada em termos de regionalização.

Quando se fala em adequar a alfabetização à realidade dos alunos, remete-se geralmente à questão do vocabulário regional e das palavras chave como "cor local". António Houaiss, entre outros, considera que a preocupação e a insistência com o diferente, neste caso, não é uma estratégia sábia. Segundo ele, a língua possui de duas a quatro mil palavras com as características de serem de uso corrente, simples e com significados conhecidos e compartilhados pela maioria das crianças do país. Além disso, afirma ele, nada impede que, no processo de alfabetização, se ensinem as diferentes pronúncias, caracterizando e valorizando o regional sem deixar de ensinar o universal.

Em recente trabalho, Sebastião J. Votre2 aponta vantagens em cartilhas que levam em conta o nível de desenvolvimento emocional e cognitivo das crianças quando confrontadas com propostas de utilização sistemática de vocábulos regionais.

Parece-me que a colocação do problema em termos de regionalização não somente é equivocada como pode também tornar-se uma maneira de desviar a atenção para o fato de que é entre as classes sociais que existem as verdadeiras diferenças.

A questão da subnutrição e aprendizagem tem se constituído num dos principais álibis para o fracasso da escola, especialmente em relação à alfabetização.

Não coloco em dúvida os efeitos maléficos da subnutrição sobre a aprendizagem. Esta é, porém, uma questão que continua em aberto por dificuldades tanto metodológicas como teóricas. O que fica claro é que a subnutrição não constitui fator impeditivo da aprendizagem. Quando a criança estiver impedida de aprender por desnutrição, o mais provável é que ela esteja igualmente impedida de frequentar a escola. O maior impacto da subnutrição incide sobre as áreas da atenção, participação ou motivação da criança

VOTRE, Sebastião Josué. Um léxico para cartilhas. Rio de Janeiro. INEP/UGF, 1983. p. 6.

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e não sobre a capacidade cognitiva e de aprendizagem. Pesquisas demonstram que crianças subnutridas submetidas a experiências educacionais apropriadas aprendem.

Ainda que só de passagem gostaria de mencionar uma última questão que está relacio-nada de maneira mais indireta com a formação do alfabetizador: a delicada questão do envolvimento da comunidade no processo educacional, questão esta que, do meu ponto de vista, tem sido tratada de maneira equivocada.

A escola precisa criar um novo vínculo com a comunidade e a família pois o que atual-mente existe é baseado geralmente não só na exigência, na reprovação, até mesmo na exploração, mas, sobretudo na omissão da escola de suas responsabilidades e na trans-ferência de tarefas para a comunidade e de culpas, pelo desempenho dos alunos, para as famílias. Esta é mais uma das facetas do processo de culpabilização da vítima realizado pela escola.

Finalmente, gostaria de lembrar que cada uma dessas questões mereceria um trata-mento muito mais profundo. Tentei explicitá-las e sublinhar seus aspectos polémicos com o objetivo de estimular o debate, pois é deste que todos esperamos colher os melhores frutos desse encontro.

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A Formação do Professor Alfabetizador: Considerações a Respeito do Ensino de Português

Luiz Carlos Cagliari Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

PROBLEMAS NAS ESCOLAS DE FORMAÇÃO

O desempenho do professor de alfabetização, como de qualquer profissional, depende essencialmente de sua competência. 0 professor que vai ensinar Matemática tem que saber Matemática. O professor que vai ensinar Português, tem que saber Português. O resto se constitui em meios auxiliares, instrumentais do ensino. No ensino do Portu-guês não há Pedagogia, Psicologia, Metodologia etc. que substitua o "conhecimento" linguístico que o professor deve ter.

As escolas de formação de professores, com o passar do tempo, chegaram ao ponto atual em que há um excesso de preocupação com os aspectos metodológicos, uma obsessão com questões de natureza psicológica, uma estranha visão de problemas fonoaudiológicos, escondendo a questão fundamental e indispensável ao ensino, que é fazer com que o professor saiba o que deve ensinar.

Não faz sentido tanta reclamação quanto às condições deficientes dos alunos como se ouve em toda parte... Os alunos aprendem aquilo que a escola ensina. Acontece, porém, que a escola não sabe ensinar. Ou pior ainda, às vezes ensina errado. Por outro lado o excesso de pedagogia, metodologia e de técnicas (e técnicos) de educação, a meu ver, é em grande parte responsável pela extração do cérebro do professor. Ele não é mais um ser que pensa, mas que aplica um programa cujos mínimos detalhes se encontram num script chamado Manual do Professor. O comodismo do professor se justifica pelo refinamento da técnica. Em vez de se fazer manuais de professor, onde se tira toda a imaginação do professor, alegando, às vezes, às claras ou às escondidas, a incompetência do mesmo, deveria cuidar-se com maior atenção dos currículos das escolas de formação. Aí é que estão as principais causas do insucesso da educação no Brasil.

Nas escolas (e sobretudo nas secretarias de educação...) há muitos pedagogos, psicólo-gos, fonoaudiólogos e às vezes até um neurologista... Porém muito raramente contam com a assessoria de um linguista. E sem um linguista, como é que a escola pode conhe-cer a realidade linguística de seus alunos? Como se pode planejar um ensino de alfabe-tização de alunos cuja vida linguística é completamente desconhecida? Às vezes ensinar uma variedade específica de uma língua (como tenta fazer a escola na alfabetização) é tão difícil quanto ensinar uma língua estrangeira, para quem não é falante daquela variedade. Mas a escola nunca se preocupou com isso. Aliás, isso viria a complicar mui-

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to o ensino. Portanto, é melhor substituir o linguista pelo psicólogo ou pelo fonoau-diólogo. Quem não aprende vai para a terapia, e a escola mantém o seu prestígio...

A REALIDADE LINGUISTICA DA CRIANÇA

A escola não sabe qual é a realidade linguística de uma criança (mesmo falante do dia-leto da escola) que começa sua alfabetização. A impressão que eu tenho, vendo livros e programas, é a de que se considera a criança que entra para a escola como uma "tabula rasa", linguisticamente. Reduz-se a criança a zero, para se começar a construir o homem-novo. Tanta psicologia na escola de formação, tão pouca psicologia na sala de aula!

As crianças de sete anos já dominam a língua que falam. São de certo modo linguis-ticamente maduras. São capazes de usar a variedade da língua de que são falantes nati-vos para expressarem seus pensamentos, para dizerem o que querem. São capazes de entender o que os outros lhes dizem. Ouvem estórias, assistem à televisão, ouvem o rádio, cantam músicas e quando não entendem uma palavra perguntam qual o seu sig-nificado, como, aliás, fazemos todos nós adultos. Certamente o vocabulário de uma criança de sete anos é bem menor do que o de um adulto, mas esse fato é muito secun-dário na estruturação de uma língua e nas exigências de seu uso.

Qualquer variedade linguística usada pela criança é tão complexa como qualquer outra e em sua fala ela se utiliza de regras muito precisas e não raramente de grande complexidade, como acontece com a fala dos adultos de qualquer variedade da língua. Um estudo da fala das crianças nessa idade, e até mesmo antes dos sete anos, compa-rado com um estudo da fala dos adultos, revela isto. Basta ler os estudos de aquisição da linguagem e de psicolingúística. O aluno que fala "craro", "pranta", "paia" simplesmente fala de maneira diferente dos que falam "claro, planta, palha". Não fala errado! Quando dizem "os menino veio", esse enunciado é estruturado de maneira diferente da forma "os meninos vieram". E essa diferença não significa que a primeira forma revela uma incapacidade para aplicar as regras complexas da concordância, porque de fato a primeira versão significa o que significa a segunda, isto é, a primeira versão transmite a mesma ideia de plural, embora de maneira diferente da segunda forma.

É essa visão ingénua e errada da realidade linguística da criança a responsável por absurdos no ensino e na avaliação do rendimento escolar. Como exemplo, gostaria de lembrar aqui o que se faz com a produção e interpretação de textos. É o caso da prá-tica tão estranha e absurda de se ler uma frase do tipo: "João chutou a bola" e se fazer a "interpretação de texto", perguntando-se à criança: "Quem chutou a bola?" ou "João chutou o què?", como se a criança não fosse capaz de entender de imediato uma coisa tão simples como essa frase do texto. Fazer isso é considerar a criança um idiota. Não raramente, diante de fatos como esses, a criança se sente tão perplexa, que não "sabe" responder. Daí o impasse do aluno. Infelizmente, a criança não tem ainda a malícia linguística de entender que aquilo que lhe foi perguntado é um jogo da escola para confundi-lo e depois desconfundi-lo, mostrando que está lhe ensinando algo. Os alunos vivem, não raramente, num clima de terror linguístico, por causa desse uso abusivo do poder exercido pela linguagem e voltado contra eles por pretextos de ensino e avaliação. A situação fica pior ainda nas avaliações do rendimento escolar.

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O QUE É ENSINAR PORTUGUÊS?

O que é ensinar Português para pessoas que já sabem falar o português? As escolas de formação põem essa questão aos futuros professores? O ensino de Português, nas nos-sas escolas, tem como objetivo ensinar como a língua portuguesa funciona e quais os usos que tem, como a linguagem em geral se caracteriza, como os alunos devem fazer para estenderem ao máximo, nas mais variadas situações, os usos que podem fazer da língua pátria na sua modalidade escrita e oral. Ensinar a ler. Isso parece óbvio, mas até hoje não foi corretamente entendido pela escola.

A criança que se inicia na alfabetização já é um falante capaz de entender e falar a lín-gua portuguesa com desembaraço e precisão nas circunstâncias de sua vida em que pre-cisa usar a linguagem. Mas não sabe escrever, nem ler. Esses são usos novos da lingua-gem para ela, e é sobretudo isso o que ela espera da escola. Em muitos casos, há ainda o interesse em aprender uma variedade do português de maior prestígio.

Essa criança não só sabe falar o português como sabe também refletir sobre a sua pró-pria língua. De fato, as crianças se divertem manipulando a linguagem: compõem pala-vras novas, a partir da análise que fazem dos processos de formação de palavras, às vezes criando formas surpreendentes; adora traduzir a sua própria língua em códigos, como a língua do P; falar invertendo sílabas, substituindo certos segmentos por outros, com uma destreza que o adulto dificilmente consegue acompanhar. As respostas que as crianças dão às perguntas que lhes são feitas revelam a incrível capacidade que têm de manipular fatos semânticos de alta complexidade, como a pressuposição, a argumen-tação lógica, sem contar com a expressão de metáforas e o poder de abstração e gene-ralização claramente revelados numa análise de seu comportamento linguístico. Além disso, elas contam ainda com uma capacidade enorme de análise da linguagem oral, coisa que irão perder logo que entrarem na escola, sufocadas pelo modo como se ensi-na o Português, tomando-se a escrita ortográfica como base para tudo. Da análise de muitos erros encontrados em provas e nas avaliações feitas na alfabetização, é fácil observar que, em muitos casos, a criança demonstra um apego às formas fonéticas da língua, em lugar das formas ortográficas, o que, não raramente, deixa o professor per-plexo com a burrice do aluno, devido a sua incapacidade de analisar a fala com a mesma competência que a criança tem. A incompetência dos professores de alfabeti-zação em lidar com a linguagem oral é tão trágica que, a meu ver, é um dos pontos que provocam o impasse ao progresso escolar de muitos alunos.

A escola não parte do conhecimento que a criança tem de sua fala e da fala de seus colegas para daí ensinar o que deve. A escola parte de um abecedário e de uma fala (típica de "professora primária") completamente estranha à criança.

Um tipo comum de exercício nas cartilhas consiste em fazer o aluno identificar "letras" através da escrita de palavras e dos sons que as compõem. Nesses casos, o que conta para a escola não é a representação fonética localizada pela letra em questão conforme aparece nas palavras, mas o próprio som da letra, conforme aparece no abecedário. Observe os seguintes exemplos:

Exercício: assinale as palavras que começam por E.

1. Elefante 3. Edson 2. Estante 4. Encontro

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Como se pode observar, embora todas as quatro palavras comecem com a letra E, nenhuma delas começa com um mesmo som foneticamente: Por isso é que mesmo quando a escola diz que está levando em consideração a escrita e a fala, o que ela entende por fala é uma leitura dos nomes das letras e não a fala real propriamente dita.

Todos nós, sem dúvida, aprendemos na escola a dividir palavras em sílabas. Ainda mais, há regras ortográficas de corte de palavras em final de linha, seguindo a sua divisão silá-bica. E ninguém estranha! Acontece porém que o nosso sistema de escrita não é silábico (por exemplo, como é o japonês). Portanto a escrita do português não tem nada a ver com a sílaba. Esta é uma realidade que só existe na fala do português. Então não faz sentido falar em sílabas, referindo-se à escrita. Em princípio, ninguém sabe quantas sílabas têm as palavras "lápis", "piscina", "antes", "táxi", "poesia" etc. ... É preciso que alguém diga essas palavras para que se possa analisar e dizer com quantas sílabas foram ditas. Veja alguns exemplos a seguir:

Separar as sílabas na fala é algo que qualquer falante consegue fazer com extrema faci-lidade, apesar de opiniões contrárias; preconceituosas e falsas de algumas pessoas, in-cluindo alguns linguistas.

Um outro fato fonético que não é marcado no nosso sistema de escrita é a tonicidade. Uma sílaba pode ser tónica ou átona, mas isso só existe na fala e depende essencial-mente da maneira como alguém pronuncia o que diz. Porém nossas gramáticas norma-tivas dizem até que há palavras tónicas e átonas (por exemplo, o, a, lhe, para, etc. ...), pressupondo, naturalmente, que todas as outras palavras têm uma sílaba tónica... Não é raro encontrar professores que ensinam o artigo "a" como átono, "há" como tónico, e "à" como supertônico, valendo um longo [ a:: ] dito com grande ênfase... O professor pode explicar isso quantas vezes quiser, que jamais um aluno entenderá. E nem pode entender. Quando o professor fala, como é possível distinguir "a" de "há", ditos isoladamente? Um monossílabo falado isoladamente não é tónico nem átono, porque a tonicidade é uma medida relativa, que necessita de um termo de comparação. Pode-se estudar o acento em palavras isoladas, mas o que acontece nos enunciados formados por conjuntos de palavras não é a soma dos acentos das palavras pronunciadas isolada-mente. Um enunciado como o seguinte:

Pedro não comprou o carro novo.

Pode ser dito com uma variedade de esquemas de distribuição de sílabas tónicas e átonas, como se mostra a seguir, onde as sílabas tónicas vem em negrito:

1. Pedro não comprou o carro novo.

2. Pedro não comprou o carro novo.

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3. Pedro não comprou o carro novo.

4. Pedro não comprou o carro novo.

5. Pedro não comprou o carro novo.

etc...

Obviamente, a diferente distribuição dos acentos nos enunciados e sobretudo a posição do acento frasal (sílaba tónica saliente) modifica alguns aspectos do significado total desses enunciados. Não é um aspecto irrelevante da língua portuguesa! No entanto, a escola não ensina isso e o que ensina, ensina errado.

Afirmações equivocadas a respeito da tonicidade no português não se restringem às noções preliminares ensinadas durante a alfabetização. Embora o português seja uma língua de ritmo acentuai, isto é, que tem as sílabas tônicas ocorrendo em intervalos de tempo aproximadamente iguais (ou isocrônicos), a teoria literária ainda analisa os versos metrificados em termos de um falso isossilabismo... Mais uma vez a escrita prevalece sobre a fala e não há licença poética que faça, por exemplo, um ouvinte do português ouvir o soneto "As Pombas" de Raimundo Correia como uma poesia metri-ficada. Está tudo errado para quem ouve e só quem soletra os versos consegue ver o que a teoria métrica tradicional sugere que deva existir. A maioria dos erros de ensino que se estendem por todos os níveis de estudo têm suas raízes na alfabetização mal feita.

As crianças, quando falam, usam natural e corretamente o ritmo e a entoação carac-terísticas da língua portuguesa. Depois que entram na escola, começam a desenvolver uma pronúncia completamente artificial para ler, e às vezes até para fazer um relato oral com certa formalidade.

A soletração exagerada na alfabetização também contribui para essa fala artificial. Revela um desconhecimento completo a respeito da leitura, da escrita e da fala aquele professor que usa uma pronúncia artificial para facilitar o ditado... Se pode-se destruir a fala para facilitar a escrita nos ditados, por que então já não fazer os ditados dizendo os nomes das letras? Seria ainda mais fácil para os alunos...

A ESCRITA

Um dos objetivos mais importantes da alfabetização é ensinar a escrever. A escrita é uma atividade nova para a criança, e, por isso mesmo, requer um tratamento todo espe-cial na alfabetização. Espera-se que a criança, ao final de um ano de alfabetização, saiba escrever, e não que saiba escrever tudo e com correção absoluta. Esse é um ponto importante e que coloca a preocupação com a ortografia num plano secundário durante o primeiro ano escolar. Os alunos aprendem a escrever e não sabem exata-mente o que estão fazendo...

Em primeiro lugar, deve-se dizer que aprender a escrever exige um uso especial do bra-ço, da mão e sobretudo dos dedos. O lápis como qualquer ferramenta tem um modo próprio de uso, sem o qual não se consegue obter o trabalho com a perfeição que se pretende. Por isso sou de opinião de que a escola deve ensinar às crianças como segurar corretamente o lápis (e mantê-lo adequadamente apontado), como traçar as letras,

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num verdadeiro exercício de treinamento de habilidade manual. Muitos dos exercícios de "controle motor" que se encontram nas cartilhas são desprovidos de qualquer planejamento educativo para a escrita, ou, na maioria dos casos, não são elaborados com o objetivo específico de treinar a arte de escrever.

Um outro aspecto é ensinar à criança o equilíbrio das formas das letras, a proporção das partes e a correção dos traços. A criança aprende a desenhar (a seu modo) antes de aprender a escrever... Uma casinha pode ser desenhada de muitas maneiras e perspectivas, incluindo planos inclinados ou até mesmo de cabeça para baixo. A forma das letras tem um equilíbrio com relação a quem lê e por isso não pode ser feita como um desenho. É preciso dizer isso às crianças. As letras d, p e b podem parecer a mesma coisa para uma criança, como o desenho de uma casinha vista de pontos de vista diferentes. Um m com quatro pernas pode lhe parecer semelhante a uma casinha com uma janela a mais, o que realmente não causa nenhum problema no desenho mas torna a letra estranha. A escrita tem regras diferentes daquelas que as crianças usam para desenhar e, muitas vezes, como partimos dos desenhos para a escrita, deixamos as crianças durante muito tempo privadas de uma explicação simples e fácil, que ajudaria a evitar diversos problemas iniciais de representação gráfica das letras. Alguns métodos de alfabetização ensinam a escrever pela escrita cursiva, chegando mesmo a proibir a escrita de forma. A razão que alegam frequentemente é que a criança que aprende a escrever com letras de forma tem que aprender depois de escrever com letras cursivas, e isso representa o dobro do trabalho, com o inconveniente da criança confundir as coisas.

Eu acho que esse tipo de argumento é falso e sem sentido. A escrita de forma é muito mais fácil de se aprender e de se reproduzir do que a escrita cursiva. Ainda mais, é a escrita de forma que aparece nos livros (exceto nas cartilhas...). A escrita cursiva tem um uso muito particular, individual mesmo nos dias de hoje. É de difícil leitura e exige um controle muito refinado dos movimentos na sua escrita, o que representa um esforço muito grande por parte das crianças que nem sequer conseguem segurar o lápis e controlá-lo com facilidade.

Alguns autores fazem tanta questão de enfatizar o uso da escrita cursiva que se esquecem, por exemplo, de ensinar à criança como funciona o mundo da escrita em que irá mergulhar. Por isso, acho conveniente fazer aqui algumas observações que considero fundamentais.

Historicamente sabemos que, à medida em que um sistema alfabético é usado por um número grande de pessoas e em lugares diferentes, para usos diversos, a forma das letras do alfabeto que era única, passa a admitir variantes. No mundo antigo, as variantes das letras se restringiam a uns poucos casos. O Latim, por exemplo, não tinha as letras minúsculas. A escrita cursiva vai aparecer só na Idade Média, mas nessa época o latim já era escrito com muitos alfabetos. Hoje, mesmo numa única folha da cartilha, encontramos uma variedade de alfabetos. Por exemplo: a primeira letra pode aparecer escrita das seguintes formas: etc, cada uma dessas formas pertencen- do a um alfabeto diferente. De fato, A é tão diferente de a, quanto p é de m, por exemplo. As letras p, b, d e g são muito mais semelhantes entre si do que b e B, g e G etc. Vivemos num mundo onde a escrita se realiza através de milhares de alfabetos. Como aprendemos a ler todos eles, não tomamos consciência dessa realidade. Para nós adultos, "A" é "A", seja ele escrito como for. Quando a criança começa a aprender a escrever, ninguém lhe diz isso e ela, muitas vezes, fica perplexa diante das coisas

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que a professora (e os adultos) fazem com as letras. Com o tempo acaba aprendendo indiretamente o que a escola pretende. O grande problema neste caso é que a escola ensina a escrever sem ensinar o que é escrever, joga com a criança sem lhe dizer as regras do jogo. A escrita do Português não põe como problema só o fato de se utilizar de muitos alfabetos, mas, independentemente desse fato, seu sistema já não é tão alfabético quanto muita gente supõe que seja.

Os sistemas alfabéticos foram inventados para se aproximar a relação entre escrita e fala, numa perspectiva mais ou menos fonêmica. Tal vantagem é, em grande parte, ilusória, porque as línguas variam ao longo do tempo e de fatores sociais, geográficos, estilísticos etc, criando obviamente sérios problemas para a relação escrita-fala. Assim vemos hoje em dia línguas escritas com sistemas de base alfabética, mas que apresentam uma relação muito confusa entre escrita e fala. O Português é uma dessas línguas. Os fatos apresentados a seguir mostram o quanto nossa escrita ortográfica, hoje, se afasta do objetivo dos sistemas de escrita alfabética que procuram uma estreita (se possível unívoca) relação entre letra e som e vice-versa. Consideremos a palavra casas, o primeiro S soa Z e é portanto diferente do segundo S. Isto para quem fala como eu. Já um carioca terá uma pronúncia diferente para o final da palavra, pronun-ciando o A como Al e o S como X ([S])- A coisa se complica quando, por exemplo, temos casas amarelas. Neste caso, por causa da junção dessas duas palavras, quer na minha pronúncia, quer na pronúncia do falante carioca, o segundo S da palavra casas soará como Z, igual ao som do primeiro S. Esse é um exemplo simples mas claro de como o nosso sistema de escrita está longe de correlacionar estreitamente letra e som. A dificuldade não está no fato do Português apresentar uma variedade de dialetos com pronúncias diferentes, pois mesmo dentro de um único dialeto o sistema de escrita já não permite, em muitos casos, que se faça uma estreita correlação entre letra e som ou vice-versa. Parece que os sistemas de escrita têm um destino na direção dos sistemas ideográficos. A escrita alfabética parece algo inoperante já a curto prazo, e as transformações que vão se operando tiram o caráter alfabético e imprimem características ideográficas à escrita. Afinal de contas, qual é o objetivo da escrita? O objetivo da escrita é permitir a leitura. É possibilitar que pessoas de épocas diferentes, de diferentes dialetos, consigam ler o que está escrito. Nessa tarefa não se exige que haja uma única forma de ler o que está escrito em termos fonéticos. Pelo contrário, isto é absolutamente secundário. Cada um lê da maneira como fala a língua e esse é o segredo e a riqueza da escrita. É isso o que todo o mundo faz no dia-a-dia da escrita. Porém a escola tem outra atitude com relação a isso, pensando que a escrita é o espelho da fala e, por conseguinte, deve estar intimamente associada á pronúncia padrão do dialeto da escola. A escrita é tão versátil que até admite tal preconceito por parte da escola. Grande parcela dos argumentos a favor de reformas ortográficas se baseia na frustração da escola em ver que a escrita não é uma transcrição fonética do dialeto que quer impor aos alunos.

A transcrição fonética é um sistema de escrita baseado nas possibilidades articulatórias do homem que, por definição, atribui a cada som uma letra e vice-versa, numa relação unívoca. Esse objetivo é necessário para se poder descrever adequadamente as línguas e seus dialetos, sem perigo de confusão para a ciência linguística; como objetivo para se escrever comumente uma língua, é uma ilusão e, portanto, impossível de se realizar na prática.

A transcrição fonêmica que tira do texto muitas propriedades da fala, transforman-do-as em regras de realização alofônica, já é um passo se afastando do objetivo de

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correlacionar univocamente som e letra, indo em direção de uma representação mais ideográfica da escrita. É claro que uma transcrição fonêmica ainda tem compromissos muito forte? entre letras e sons. Mas para se escrever numa sociedade tão heterogénea linguisticamente como a nossa, qual sistema fonêmico vamos escolher para a escrita? Qualquer escolha vai privilegiar um dialeto em detrimento dos demais.

Gostaria de acrescentar ainda mais algumas considerações a respeito de como usamos a nossa escrita. Já vimos antes que nosso sistema de escrita não se baseia em sílabas, mas em letras (alfabéticas...). O curioso é que na alfabetização, a escrita é ensinada em grande parte como se fosse silábica. Ensina-se o abecedário, as sílabas primeiro e depois as letras. Grande parte das atividades escolares, nessa base, tem como ponto de partida a sílaba. Para um sistema alfabético, o ensino de um sistema silábico não é feito sem sérios problemas e às vezes impasses.

Um sistema de escrita morfológico e ideográfico muito comum em nossa experiência é a escrita dos números. Ele tem regras próprias que também devem ser ensinadas pela escola. Por exemplo, "cinco zero" (50) representa uma quantidade que é mais do que um (ou seja, cinquenta), mas "cinco zeros" (00000) representa uma quantidade nula, ou seja, zero. A ideia de singular e plural representada na expressão linguística "cinco zeros" é de referência diferente da expressão linguística de singular e plural repre-sentada na forma "cinco zero". Essas coisas confundem as crianças, mas nem por isso a escola ensina os alunos a lerem os números. Eles acabam aprendendo por si, mas até chegar lá podem se ver em apuros resolvendo problemas de aritmética.Não por causa da aritmética, mas do Português!

O nosso sistema de escrita deixa de lado muitos aspectos fonéticos da língua, como a sílaba, o acento, a duração dos segmentos, certos fenómenos como a nasalidade em alguns casos, a entoação, a velocidade da fala, as qualidades de voz, para citar os aspec-tos mais importantes, além, é claro, de dar conta de maneira muito precária da parte segmentai. Isto não é um mal em si, mas o caráter mágico inerente ao próprio ato de se escrever. Ler é uma obra de iniciados e objeto de muitas interpretações. No momen-to em que se tira essa alma da escrita, se acaba com a própria vida da escrita. Quando se fala, a organização do pensamento segue uma ordem que permite correções momen-tâneas a partir da reação do ouvinte. Isto porém não acontece quando se escreve, por isso quem escreve deve ter o cuidado de transportar através de palavras tudo aquilo que, na fala, pode ser entendido com um olhar, um gesto, uma pausa etc. Um texto transcrito de uma conversa informal, mesmo produzido por "pessoas que falam bem", soa estranho a quem lê, porque em nossa sociedade e cultura a própria elaboração do texto escrito exige regras específicas, diferentes das regras de elaboração de textos de conversa. A escrita facilita a realização de uma argumentação discursiva com uma certa ordem, uma certa lógica, que deve ser ensinada aos alunos sob pena de muitos deles jamais desconfiarem como se escreve um texto. Se por um lado existe esse modo tradicional de se escrever, por outro lado os aspectos mais rígidos desse jogo ficam amenizados pela criatividade do autor. O aspecto criativo é também uma marca regis-trada da produção escrita. Do equilíbrio entre essas duas exigências se constitui um texto bem escrito.

Algumas atitudes da escola, desde a alfabetização, com relação à produção de textos são desastrosas. Sou de opinião de que as crianças devem escrever o que quiserem (em-bora se possa seguir temas...) e como quiserem. E a partir da produção de textos por elas o professor pode passar a fazer comentários a respeito de tudo o que achar relevan-

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te, da ortografia à análise discursiva do texto produzido. Essa prática devia ser muito frequente e é um excelente ponto de partida para todas as outras atividades da escola. Porém para o professor poder fazer isso, ele próprio precisa saber e muito bem como analisar um texto, como aproveitá-lo para orientar o aluno, fazendo-o aprender, através do processo de escrita e leitura, como o Português e a linguagem em geral funcionam e quais os usos que têm. O mesmo vale para a produção de textos orais. Um outro problema que se observa nas atitudes da escola com relação à escrita é que frequente-mente se passa ao aluno a impressão de que escrever frases corretas sintaticamente for-ma um texto correto. Essa prática tem sua origem na alfabetização e é encontrada em todos os níveis subsequentes. Um texto tem uma organização que não é a somatória de frases isoladas. É preciso que haja coesão, um desenvolvimento coerente, um objetivo a ser alcançado e uma mensagem a ser transmitida de maneira adequada. É uma ilusão pensar que a correção gramatical produz automaticamente um pensamento claro ou que um pensamento claro só se expressa através de frases sintaticamente corretas aju-dadas por todas as regras de concordância da gramática normativa. É claro que a escrita tem regras e que elas precisam ser seguidas. Mas isso não é suficiente para se escrever bem. Tem gente que escreve redações sem nenhum erro gramatical ou de orto-grafia, e, no entanto, o texto é uma droga. A obsessão da escola pelas regras da gramá-tica normativa, conveniente para se ter um parâmetro fácil de avaliação do rendimento escolar, deturpa a verdadeira meta do ensino de Português e é um fator de grande frustração na escola. Os alunos devem aprender as regras da gramática normativa á medi-da que forem progredindo na aprendizagem da escrita (textos) e não o contrário, aprender a escrever um texto a partir de um conjunto de regras da gramática norma-tiva. A respeito da escrita, é preciso fazer ainda uma observação. Vimos que o sistema orto-gráfico do Português não tem como função representar a fala, mas permitir a leitura. No entanto, no ensino de Português, e de um modo bastante especial na alfabetização, a escola tem que lidar com a pronúncia. Naturalmente, pode-se sempre comentar fatos da fala através dos próprios mecanismos da fala. Todavia, me parece ser interessante, muitas vezes, escrever diferentes pronúncias da fala sem uma preocupação com a orto-grafia. Muitos alunos, logo que aprendem algumas coisas da escrita, começam a escre-ver o que querem, esbarrando em dificuldades ortográficas que tentam superar apli-cando (erroneamente) certas regras de relação entre letra e som, conforme pensam que seja possível, no sistema ortográfico. Independentemente de explicar aos alunos que uma coisa é a escrita ortográfica e outra as leituras e falas diferentes que as variedades do português apresentam, acho conveniente, necessário mesmo, que a escola ensine a variação fonológica dos diferentes dialetos dos alunos também através de uma escrita. Fazer um aluno escrever como fala ou o modo de falar de um colega é um excelente exercício de análise linguística e muito importante até para se entender como a orto-grafia funciona. Se a ortografia não serve para essa tarefa a escola precisa dispor de um outro instrumento para fazer isto. Acho que nessa atividade não se deve usar um alfa-beto fonético muito detalhado, próprio dos foneticistas, mas um sistema apropriado às necessidades da língua portuguesa, utilizando-se todos os recursos possíveis do próprio sistema de escrita ortográfico do Português. Gostaria de lembrar aqui que o uso desse sistema de escrita só pode ocorrer na análise de um texto falado e de um informante por vez. Por outro lado, servirá para falantes de diferentes dialetos do português se exercitarem a falar à moda desses dialetos, contribuindo, sobretudo, para ensinar a pronúncia do dialeto da escola àqueles alunos que não o sabem.

Discordo dos que acham que o uso de um sistema de escrita da fala diferente do siste-ma ortográfico serve para confundir os alunos e ensinar duas vezes, em vez de uma.

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Quem diz isso não entende nada de como funciona o sistema ortográfico e do que é escrever. A escrita e a fala são realidades diferentes que necessitam de métodos dife-rentes para se concretizarem e serem entendidos. Ensinando isso à criança desde cedo, como se propõe aqui, o aluno já nas primeiras aulas entenderá que a fala e a escrita são diferentes, vivem de maneira diferente. Além disso, contará com um grande instrumental para entender como o Português funciona através de suas múltiplas variedades e en-contrará um caminho melhor para aprender qualquer variedade do português que dese-jar, inclusive aquela do dialeto da escola. Outra vantagem é que nem o professor nem o aluno ficarão com traumas por causa das dificuldades ortográficas apresentadas por palavras. Para o aluno ficará claro que a ortografia não é uma transcrição fonética. Por outro lado, o ajudará a compreender que quando não souber escrever ortograficamente uma palavra, a única saída é perguntar a quem sabe ou olhar no dicionário. Essa é tam-bém uma forma de ensinar o que a escrita realmente é e os usos que tem, uma tarefa completamente esquecida pelas escolas hoje em dia.

Porque a escola não tem usado um método como esse para o ensino da fala, observa-se que as pessoas (incluindo os professores) têm uma dificuldade enorme, gigantesca, para analisar a pronúncia de um falante de sua própria língua, uma vez que sempre pensam a fala em função da escrita ortográfica. Professores que insistem em problemas de dis-criminação auditiva das crianças (por exemplo p/b, f/v etc.) levam um tempo enorme para se convencerem de que o S de "mesmo" soa Z, que o R de "barriga", "sorriso" é pronunciado comumente como uma fricativa velar sonora, ao passo que em palavras como "carro", "erra", é pronunciado comumente como uma fricativa velar surda. Uma vogal sussurrada (ensurdecida) é vista como uma vogal que foi "comida" pelo aluno e portanto indesejável, embora a própria professora use esse fenômeno fonético a todo instante. Ela não percebe como fala e corrige a leitura do aluno. Este, que compara sua fala com a da professora, fica perplexo. Um outro exemplo é o reconhecimento das qualidades vocálicas dos ditongos em português. Para alguns professores, o fato de palavras como "céu" e "vai" terem as qualidades fonéticas apresentadas logo a seguir é algo que só admitem após exaustivos exercícios de demonstração:

As nossas professoras primárias têm uma dificuldade imensa em distinguir uma vogal nasalizada de uma vogal oral, ou em observar a presença ou não de consoantes nasais no contexto pós-vocálico final de sílaba, como nos exemplos abaixo:

As pessoas estudam Português por mais de dez anos e não conseguem nem sequer saber exatamente como falam. Algumas sabem errado e culpam as crianças de terem proble-mas de discriminação auditiva, de serem incapazes intelectualmente, classificando-as de

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"alunos carentes". Que caos é o ensino. Como um professor que nao sabe analisar o que ele próprio diz pode ensinar os alunos a falarem corretamente?

Muitos dos artificialismos da fala da escola têm sua origem no fato da escola não saber ensinar como a fala é realmente, porque as próprias escolas de formação não sabem ensinar isso aos futuros professores. Esses problemas básicos não se resolvem com psicólogos, fonoaudiólogos, neurologistas ou mesmo pedagogos, mas sim com um bom treinamento linguístico.

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O Que a Linguística Tem a Dizer ao Alfabetizador

Míriam Lemle Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Há problemas que só conseguimos ver quando já estamos dentro deles. Assim, a ordem cronológica que decidimos, democraticamente, para as várias partes deste Seminário é agora um problema para mim, pois sinto-me um pouco encabulada de vir deitar falação sobre a formação de alfabetizadores antes de ouvir dos próprios alfabetizadores o que eles têm a nos mostrar sobre as suas experiências de trabalho e o que eles têm a questionar em decorrência dessas experiências.

Sendo esta a ordem que, imprevidentemente, concordamos em estabelecer para os nossos trabalhos, tenho que pedir desculpas aos alfabetizadores concretos e reais aqui presentes, que hoje à tarde farão os seus depoimentos. Desculpas pelo fato de que, por ser a ordem dos eventos esta e não a inversa, sou forçada a dirigir-me a alfabetizadores genéricos e abstratos, e não aos alfabetizadores reais e concretos que aqui estão.

A este meu imaginário alfabetizador abstrato, vou, então, tentar mostrar o que acho que ele poderia desejar saber sobre o seu material de trabalho, a lingua, e sobre os primeiros passos do caminho que o aprendiz da língua escrita terá de percorrer, conduzido pelo mestre.

Não há curso de introdução à Linguística ou manual de Linguística que dispense um capítulo ou aula que poderíamos intitular "psicoterapia ideológica", onde o estudante é levado a despir-se de seus preconceitos linguísticos. Mostra-se, aí, que as crenças na possibilidade de se classificarem as falas humanas em "certas" e "erradas" não têm base em critérios científicos. O estudante aprende a relativizar o certo e o errado em linguagem, compreendendo que os critérios que guiam tais avaliações têm origem nos fatos da estrutura social e não nos fatos da língua.

Essa mesma passagem precisa ser vivida pelo futuro alfabetizador. Para que ele possa respeitar o alfabetizando, precisa estar convencido de que a variedade de língua utilizada pelo grupo social que compõe a clientela da escola merece respeito. O alfabetizador que não respeita a linguagem do alfabetizando não respeita o alfabetizando. Falta-Ihe a estrutura afetiva indispensável ao desempenho do seu trabalho. E sabemos que em toda preparação profissional há um componente cognitivo, um componente afe-tivo e um componente psicomotor. Para que a mudança ideológica acima referida venha a realizar-se, é preciso conhecer um pouco dos mecanismos da variação e da mudança linguística e ter uma ideia clara de qual é a relação entre a língua falada e a língua escrita. O conhecimento adequado dos fatos cria automaticamente a postura

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humana apropriada ao alfabetizador. Vou esboçar um pouco desse repertório mínimo de conhecimentos linguísticos que alterarão o modo de ser do alfabetizador.

O alfabetizador precisa ter as ideias claras quanto à relação entre língua falada e língua escrita. Ele precisa saber que a língua escrita, na nossa sociedade complexa, é uma entidade autónoma, diferente da língua falada por quem quer que seja.

Ele precisa ser ajudado a não assumir a crença de que a língua escrita é o modelo da língua "certa" e a língua falada é uma deturpação ou decomposição do certo. O alfabetizador que compreendeu as duas modalidades de língua como entidades separa-das sabe que a tarefa do aprendiz da língua escrita precisa ser decomposta em várias descobertas, contraditórias entre si.

No momento inicial da aprendizagem da escrita, o alfabetizando tem que descobrir que as letras representam sons da fala. Basicamente, toda metodologia de alfabetização pre-tende conduzir o alfabetizando a depreender na sequência das letras escritas a sequên-cia dos sons da fala, na atividade da leitura, e, na atividade da escrita, a representar por meio de letras em sequência os sons em sequência na cadeia da fala.

Pois bem, deve haver um segundo momento em que o alfabetizando descobre que as letras não representam sons da fala. Quando digo ( pau ] e [ sau ], por que devo escre-ver pau e sal? Se digo ( disputa ] e [ discuido ], por que devo escrever disputa e descuido? Por que roça e possa, girafa e jipe, habitação e agitação, peso e desprezo, queixo e mexo, queijo e bocejo? Tomando de outra variedade dialetal, por que devo escrever clima e crime, se digo [ crima ] e [ crime ]? Por que escrever anzol e cipó, se digo [ anzó ] e [ cipó ]? Por que escrever o baiano dançando, se digo o baiano dançano?

O alfabetizador que parte para o trabalho armado da crença de que a língua escrita é o modelo sobre o qual se deve calcar a língua falada "certa" está fadado ao insucesso, o que é gravíssimo, uma vez que o insucesso do alfabetizador é o analfabetismo do alfa-betizando.

Entretanto, o alfabetizador que compreendeu que a correspondência entre língua tala-da e língua escrita é indireta e em vários casos irregular vai tratar de fazer ver com sis-tematicidade ao alfabetizando todos os casos em que não há uma correspondência de um para um entre os sons das palavras na linguagem falada e as letras na linguagem escrita. O alfabetizador que compreendeu de que maneira se dá a correspondência entre língua falada e língua escrita sabe que, segundo as características específicas da variedade dialetal falada pelo aprendiz, as dificuldades maiores dos alfabetizandos se darão em pontos diferentes do repertório de palavras.

Assim, o alfabetizando que pertence a uma comunidade que pronuncia [ arraia J, [ carnavá ], [ anzó ], terá problemas de escrita diferentes daquele que pronuncia [ arraiau ]. [ carnavau ], [ anzóu ]. A nenhum dos dois tipos de falante o alfabetizador precisa classificar como "falando errado", mas a ambos ele deverá alertar para a discre-pância entre a modalidade de língua falada e a modalidade escrita. Alertar, aliás, é um termo fraco. O alfabetizador deverá inventar meios de ajudar o aluno a fixar a forma padrão escrita, cotejando-a com a falada, mas sem expressar desprezo por esta. São suas variedades dé língua diferentes, para ocasiões diferentes.

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Consideremos agora outro componente essencial para a boa formação ideológica do alfabetizador: o conhecimento dos mecanismos da mudança linguística. Quem compre-endeu bem qual é o mecanismo pelo qual as formas das palavras vão mudando não pode sentir desprezo por uma variedade de língua diferente da língua escrita.

Um pouco de filologia não faz mal a ninguém. Tomemos por um momento um docu-mento filológico do latim vulgar, o chamado Appendix Probi, um documento de autor desconhecido encontrado apenso à gramática de Probus, obra do século III da nossa era. Trata-se de uma lista de palavras do latim falado na época, onde se recomendava a pronúncia tida como correta em comparação com a pronúncia tida como errada. Por exemplo: speculum non speclum, oculus non oclus, cálida non calda, pérsica non pessi-ca, rivus non rius, ansa non asa, auris non oricla.

Em seu estudo A língua do Nordeste, Mário Marroquim, notando a semelhança entre as mudanças ocorridas nas duas etapas do latim e aquelas ocorridas em duas etapas do português, assim escreve: "Quem quiser imitar o gramático anónimo do Appendix Probi terá de dizer ao matuto: espírito não esprito, pássaro não passo, século não secro, sába-do não sabo".' Depois de estabelecer o confronto entre os dois grupos de mudanças, nota ele que é justamente a partir das formas rejeitadas pelo antigo gramático que se formaram as atuais palavras do português (espelho, olho, rio, asa, orelha). E prosse-gue dizendo: "Esse caminho obedeceu às forças inconscientes que presidem à evolu-ção das línguas; não foi tumultuário, como não o foi o do latim falado no ocidente da península ibérica, ao transformar-se no português".

Entendamos a preocupação de Mário Marroquim: mostrar que o caminho seguido pelas mudanças linguísticas que deram origem ao falar do matuto nordestino não foi tumul-tuário, e sim obedeceu às mesmas "forças inconscientes" que presidem à evolução das línguas consideradas "respeitáveis". Havia, atrás do estudo descritivo de Mário Marro-quim, um discurso de apelo ao respeito.

Discursos como o de Mário Marroquim ainda não penetraram, por incrível que pareça às pessoas iniciadas em estudos linguísticos, nos cursos de formação de alfabetizadores. O que se sabe é que os alfabetizadores, salvo honrosas exceções, costumam considerar "problemas de fala", "maus hábitos de linguagem", "modelo de linguagem defeituosa trazido de casa", os traços da fala regional dos alfabetizandos. Neste momento, aqui neste meio bastante sofisticado, é desnecessário tecer considerações sobre o grau de perniciosidade de atitudes desse tipo para a relação alfabetizador-alfabetizando e para todo o processo ensino-aprendizagem. Mas se cada um de nós se transformasse num multiplicador da psicoterapia da ideologia corrente sobre linguagem seria já um bom resultado deste encontro.

Até aqui falamos de conteúdos de informação relevantes para a formação afetiva dos alfabetizadores, por terem consequências nas suas atitudes diante dos usos linguís-ticos dos alunos.

Agora passo a mostrar, em termos muito sumários, uma ordem de informação relevante para a organização do trabalho mesmo da alfabetização.

MARROQUIM, Mário. A língua do Nordeste. Sâ*o Paulo, Nacional, 1934. p. 44.

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Repito: estou falando de alfabetização no sentido mais literal e estreito possível: o saber o bê-a-bá.

Uma coisa que muitos de nossos alfabetizadores parecem não ter ainda percebido é que o bê-a-bá da alfabetização não é um simples bê-a-bá. Na realidade dos fatos linguísti-cos, bê mais a nem sempre dá bá. Bê mais ó dá bó em bola, dá bô em bolo e dá bu em cabo. Mas os alfabetizadores, quando lançam mão daquele procedimento didático tão comum nas primeiras séries primárias, de pronunciar as palavras com artificialidade, como por exemplo, em "ê-lê cô-mê bô-lô dê cô-cô (para "ele come bolo de coco"), o que estão fazendo senão criar um artifício para fazer crer que toda letra deve soar sem-pre com o mesmo som?

Não é mais realista mostrar desde cedo, sistematicamente, que nem sempre é verdade que cada letra representa sempre o mesmo som da fala e que cada som da fala nem sempre é representado na escrita com a mesma letra?

É uma coisa tão simples, um verdadeiro "ovo de Colombo", que os nossos alfabetiza-dores em geral (os abstratos de quem falo, não necessariamente os concretos a quem falo, é claro) ainda não vêem: é que há três tipos de casos diferentes, na correspondên-cia entre o plano grafêmico e o plano fonêmico.

O caso ideal: uma letra representa sempre o mesmo som da fala, um som da fala é representado sempre pela mesma letra. Por exemplo, a letra p corresponde sempre ao mesmo tipo de som, e o tipo de som [ p ] é sempre transcrito pela letra p. São surpre-endentemente poucos os casos em português em que encontramos esse fiel casamento monogâmico entre as unidades da escrita e as unidades da fala.

O segundo tipo de caso: é preciso levar em conta o contexto para formular a regra de correspondência entre as unidades grafêmicas e as unidades fonêmicas. Por exemplo, a letra I corresponde ao som de consoante lateral em posição inicial de sílaba (como em lua) e ao som da vogal [ u ] em posição final de sílaba (como em alto). Indo na dire-ção do som para a letra: o som da vogal [ u ] é transcrito com a letra u quando em posi-ção de sílaba tónica, mas com a letra o quando átona em fim de palavra: pulo. Não é mais racional oferecer esta regra aos meninos do que falsear a pronúncia, pu-lô?

O terceiro tipo de caso: não é possível formular regra de correspondência entre unida-des grafêmicas e unidades fonêmicas, pois a história da língua contém mudanças em decorrência das quais, pela convenção ortográfica, conservadora inevitavelmente, há posições nas quais duas ou mais letras concorrem para representar o mesmo som da fala. Exemplo: ç e ss em roça e fossa, z e s em mesa e certeza. Neste terceiro tipo, a aprendizagem da forma escrita não pode escapar de ser uma memorização de formas.

O claro entendimento desta divisão das relações entre sons da fala e letras da ortografia em três tipos teria consequências práticas muito nítidas no trabalho do alfabetizador.

A primeira dessas consequências é a de que fica claro que toda a discussão, em torno de metodologia didática, sobre a comparação de eficácia de métodos sintéticos (partir das letras para sintetizar palavras) e métodos analíticos (partir de unidades maiores, frases ou palavras para depreender delas as letras) é uma discussão que leva em conta apenas o primeiro dos três tipos possíveis de relação entre sons e letras — a relação de

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um para um. Isso porque, para ambos os métodos, o objetivo final é conduzir o apren-diz a saber qual letra representa qual som e qual som é representado por qual letra.

Reconhecer o segundo tipo de caso, o das correspondências entre sons e letras deter-minadas pelo contexto, levaria o alfabetizador a projetar atividades que visassem especificamente conduzir o alfabetizando a verificar as variações de correspondência previsíveis entre sons e letras. Mais ou menos assim: Vamos estudar a letra I. Que sons ela pode ter? Em lua, sala, alegre, bola, é o som [ | ]. Mas em alto, calma, sal, jornal, é o som [ u ]. Vamos agora estudar como se escreve o som [ u ]. Em lua, pulo, tudo, nu, suja, é com a letra u. Mas em rabo, sapo, pato, amo, falo, pinto, escrevo, é com a letra o. E em alto, sal, jornal, é com a letra I. Posição acentuada, posição final de palavra depois de consoante, posição final de sílaba depois de vogal, são os três contextos do [ u ] que determinam se a escrita que lhe corresponde é u, o ou I. Não fica melhor assumir as regras da língua do que deturpar a língua para forçá-la a caber dentro de um mentiroso esquema de correspondência de um para um? É claro que não vamos dar a regra ao alfabetizando. 0 alfabetizador, sim, tem que estar consciente da regra para planejar as suas aulas.

Reconhecer o terceiro tipo de caso, o das correspondências idiossincráticas, onde duas ou mais letras concorrem na mesma posição para representar o mesmo som, tem como consequência de trabalho a procura de maneiras de ajudar o aprendiz a decorar o que tem que ser decorado, sabendo pelo menos delimitar as posições "perigosas". Por exemplo: a posição entre duas vogais é uma posição perigosa para a representação do som [ z ], pois aí concorrem três letras para representá-lo: z, s e x. Proposta de ativi-dade: pesquisa coletiva. Dividir um papel em três partes, e colecionar palavras, colan-do-as cada uma na sua parte. Então ficará uma parte ocupada com casa, mesa, liso, música, representou, mentiroso etc. Outra parte ficará ocupada com azar, desprezo, azul, dezoito, dezembro, lazer, azeitona etc. A terceira parte ficará com exemplo, exer-cício, exército, exame, exato, êxodo etc.

O alfabetizador que entendeu bem as coisas da língua saberá que os fatos linguísticos estigmatizadores, aqueles característicos das variedades de fala das camadas sociais mais pobres, podem muito bem ser agrupados junto com o estudo deste terceiro tipo de correspondência entre som e letra. Vejam: depois de estudar que [ z ] pode ser epresentado por z, s ou x, que [ s ] pode ser representado por ç, ss, se, xc, que [ s ] pode ser representado por ch ou por x, que [ z ] pode ser representado por j ou por g, estamos bem preparados para estudar, com a mesma atitude objetiva e despida de pre-conceito, que o [ r ] que falamos em crube, Framengo, crima, prano, recramação, crime, praia, frango, praça, tem que se tornar, na língua escrita, às vezes um I (clube, Flamengo, clima, plano, reclamação) e outras vezes um r (crime, praia, frango). Depois •de verificarmos que em hoje, hora, homem, haver, temos uma letra resquício de algum som de outrora, podemos encarar com igual tranquilidade a necessidade de aprender-mos esta outra letra resquício de um som que a evolução linguística de nosso grupo deixou cair: fala, namora, amô, frô. Há um [ r ] que não pronunciamos mas deveremos escrever: falar, namorar, amor, flor. O alfabetizador que entendeu bem as coisas da língua saberá admitir que as variedades da fala das camadas sociais mais pobres podem também ser escritas seguindo as mesmas convenções de relação entre sons e letras utili-zadas pela ortografia convencional.

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Vejam só que mina de dados relevantes para o alfabetizador que trabalha em comuni-dades rurais é este poeta do Nordeste, Patativa do Assaré, cuja poesia a Vozes- publi-cou em 1982 com o título Cante lá que eu canto cá.*

"O poeta da roça

Sou fio das mata, canto da mão grossa, Trabaio na roça, de inverno e de estio. A minha chupana é tapada de barro, Só fumo cigarro de paia de mio. Sou poeta das brenha, não faço o pape De argum menestré, ou errante canto Que veve vagando, com sua viola, Cantando, pachola, à percura de amô."

Acho uma verdadeira preciosidade este livro. Primeiro porque é uma preciosidade poé-tica. O homem é realmente inspirado. Segundo porque a escrita adotada no livro, ao mesmo tempo fiel à linguagem do matuto e obedecendo às correspondências som-letra convencionais na ortografia padrão, é exatamente o tipo de escrita que deveria, a meu ver, ser adotada como transição, nas escolas rurais, entre a primeira etapa da alfabeti-zação, em que o aluno deve ser levado a crer que entre letras do alfabeto e sons da fala há um fiel casamento monogâmico, e a etapa terminal, em que o aluno, resignado com as duras verdades da vida, incorpora ao seu saber de sons e letras as numerosas poli-gamias e poliandrias que sons e letras costumam praticar. Seria esta etapa transitória àquela em que, sem ser uma transcrição fonética (o que está escrito é fio e não fiu, fumo e não fumu, de e não di), a escrita assume como "escrevível" e não como "des-prezível" os traços linguísticos da variedade local da fala da comunidade, diferente de maneira sistemática, e não tumultuaria (para retomar o termo usado por Mário Marro-quim), do sistema da língua escrita convencional.

Assumindo como "escrevíveis" os traços de fala regional, o professor é obrigado a conhecê-los, a compará-los com as ocorrências no sistema do português comum, a tor-nar explícitas para os alunos as diferenças entre os dois sistemas.

Assim, fechamos o círculo. O saber da língua resulta num saber fazer o ensino da lín-gua, e o saber fazer contém um saber amar, amar a língua nas suas variedades, e os usuários da língua com o seu saber nativo.

• Agradeço a Luis António Marcuschi a indicação dessa leitura.

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Formação do Professor Alfabetizador

Suzana Magalhães Maia Vieira Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP)

A inegável deficiência da política educacional desenvolvida a partir de 1964, explica sem nenhuma dúvida, a importância de estarmos discutindo hoje a alfabetização e a formação do professor alfabetizador com tanto interesse, reunindo profissionais de várias áreas, e sobretudo ouvindo a palavra dos próprios professores que têm sua prá-tica educacional voltada para este setor.

A diminuição galopante de verbas destinadas à Educação, a perspectiva instrumenta-lista e funcional da Educação, têm reduzido a ação pedagógica a uma questão mera-mente técnica. A tecnologia educacional se desenvolve de modo dirigido, pois sua fun-ção é ajustar os requisitos educacionais a pré-requisitos de ocupação de mercado de trabalho na sociedade. Neste contexto, a Educação, e especificamente a alfabetização, é encarada como meio para que as pessoas atinjam a igualdade social ou pelo menos a diminuam. Não se fala em coletivização dos meios e instrumentos de produção de conhecimento crítico. Não é por acaso. Tal dado não vale apenas para os adultos, mas também para as crianças, independente de suas classes sociais. Na escola particular, começa-se a alfabetizar cada vez mais cedo; na escola pública, aos 7 anos impreteri-velmente. Porém, que escola é esta? É uma escola que forma vassalos ou cidadãos? É uma escola que instrumentaliza o aluno a ler e escrever mecanicamente, mas não a pensar, a criticar para contribuir na transformação da sociedade.

Estas palavras justificam-se, pois o fracasso observado na aprendizagem da leitura e es-crita, constatado pelos altos índices de repetência e evasão escolar, não pode ser atri-buído exclusivamente à má formação do professor, mas sim a uma política educacio-nal da qual o professor é o propagador e a vítima ao mesmo tempo.

É muito frequente, nos contatos que temos mantido com professores, verificarmos que suas preocupações se localizam nas questões práticas, metodológicas, didáticas. Se isto é válido para os professores que lidam com crianças com alguma patologia, não é menos válido para os professores em geral. Surgem perguntas do tipo: "Como agir neste caso?"; "Como aplicar tal exercício?"; "Como organizar tal atividade?". Ora, à primeira vista, tais indagações poderiam indicar que o professor não tem nenhuma preocupação teórica, mas que conscientemente optou pela separação teoria-prática e cumpre seu papel de técnico eficiente, procurando se atualizar. Mas é necessário se per-guntar, se não são as teorias pedagógicas estudadas por eles, antigas ou não, que contri-buem para gerar este afastamento: são teorias desvinculadas da realidade social ou são instrumentais? Informações adicionais a respeito de áreas importantes para a sua ação,

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oriundas da Filosofia, da Sociologia, da Psicologia, da Linguística, da Biologia, são apresentadas como dados. Meros fatores e como tais, externos ao processo educacio-nal, funcionando como variáveis que podem auxiliar ou impedir, retardar ou acelerar seu desenvolvimento. Então, estes dados são interpretados como variações de grau, em vez de constituírem o próprio processo educacional.

Antes de se discutir métodos de ensino específicos para a alfabetização, ou para o ensi-no de uma disciplina qualquer, é preciso debater com os alunos a sua necessidade. Com base nesta discussão é que se colocaria o problema da procura dos métodos apropria-dos àquela população. O próprio professor, ser criativo, poderia estabelecer um bom método de aprendizagem para os alunos com quem está lidando. È claro que tal pers-pectiva implicaria numa mudança de formação e, consequentemente, na compreensão de que seu trabalho é também político, como toda atividade humana.

A chamada "Escola do Trabalho", de Pistrak, por exemplo, concebia o ensino, a "for-mação básica", como equivalente à soma de conhecimentos e de técnicas adaptados a uma idade determinada, necessários a uma compreensão dinâmica e contraditória da vida moderna. Enquanto que na velha escola "os conhecimentos científicos tinham a qualidade de poder ser esquecidos fácil e definitivamente", mesmo depois dos mais ferozes exames, na nova escola, "a ciência deve ser ensinada como meio para conhe-cer e transformar a realidade, no quadro de seus mais amplos objetivos, isto é, como conhecimentos científicos cuja necessidade seja incontestável, que ajudem os alunos a se apropriarem solidamente dos métodos científicos fundamentais para analisar as manifestações da vida".

Situar a problemática da formação do professor alfabetizador nesta ótica pode causar estranheza já que o fonoaudiólogo é um profissional fundamentalmente clínico. Talvez eu devesse me referir às patologias de linguagem, como se manifestam, como o profes-sor poderia fazer para detectá-las e auxiliar em seu processo de superação. Seria um caminho, mas não o único. Parece que tais conhecimentos já deveriam, inclusive, estar sistematizados no próprio curriculum da formação acadêmica do professor alfabe-tizador, como em poucos lugares ocorre. Mas parece também que há um trabalho maior a ser desenvolvido através da união de professores, psicólogos, fonoaudiólo-gos, linguistas. Examinar com rigor um perfil frequente de crianças que, iniciando, desenvolvendo ou aparentemente finalizando um processo de alfabetização, apresentam-se desmotivadas, desatentas, sem usar seu potencial para lidar com abstrações e, con-sequentemente, com raciocínio matemático, apresentando dificuldades de com-preensão que se expressam através de um mau rendimento escolar. A solução deste problema tem sido buscada no auxílio terapêutico, no acompanhamento escolar feito por especialistas, fora da escola. Esta dita "patologia", cuja etiologia não é nem orgâ-nica, nem emocional, encontra sua origem no processo social do qual todos nós faze-mos parte. É importante que o professor alfabetizador esteja atento a este fato e que se reúna com outros profissionais para que, em igualdade de condições, possa compre-ender e encaminhar as possíveis transformações. Em meu nome pessoal e em nome do Programa de Estudos Pós-Graduados em Distúrbios da Comunicação desta Universi-dade, estamos abertos e interessados nesta discussão.

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MESA-REDONDA 4: DEPOIMENTOS DE EXPERIÊNCIAS PROFISSIONAIS EM ALFABETIZAÇÃO

Narrativa da Experiência de Alfabetização nas Escolas Públicas do Estado de Sergipe

Ana Lúcia Vieira Menezes Judite Oliveira Aragão

Leda Sônia Oliveira Linhares Liberaldina Soares da Fonseca Souza

Walter Oliveira Ribeiro Secretaria da Educação e Cultura do Estado de Sergipe

CAMPO DE ATUAÇÀO: Escolas de 1° grau da rede estadual de Aracaju.

NÍVEL DE COORDENAÇÃO: Coordenadoria Técnico Pedagógica.

NÍVEL DE EXECUÇÃO: Professores da 1a série e Pedagogos das Unidades Escolares. Pedagogos da COTEP.

POPULAÇÃO ALVO: Alunos de 1a série do 1° grau de unidades de ensino da rede estadual de Aracaju.

O trabalho de alfabetização, como experiência alternativa, teve início em sete escolas, sendo que uma fica localizada no centro, quatro na periferia da cidade, em conjuntos habitacionais, e duas em um bairro que teve origem com a classe operária.

Os dados estatísticos de evasão e repetência evidenciam a precariedade do processo de alfabetização e impõem uma resposta.

Diante deste fato, a equipe da COTEP resolveu enfrentar o desafio e partir para o campo de trabalho à procura de uma possível proposta alternativa.

Como primeiro passo, fomos buscar na "fonte" os dados que embasariam nosso trabalho. Nesta "fonte", que para nós foi o contexto existencial do aluno, o seu dia-a-dia, colhemos as evidências de que o mundo das nossas crianças a serem alfabetizadas não é o das "fadas", nem tão pouco dos brinquedos prontos, da proteção dos pais e babás, do acesso a livros, revistas, lápis, caderno e massa de modelar. O mundo das nossas crianças é o "mundo do trabalho", é o da criança que luta para sobreviver, conse-

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guindo através de subempregos o seu ganha-pão. É o mundo da criança que dribla a morte e consegue sobreviver comendo jaca, pedaços de pâ"o "catados" no lixo, restos de frutas podres rejeitadas pelos compradores e jogadas fora pelos feirantes, como imprestáveis para alimentação humana.

A partir dai', chegamos a uma dedução óbvia: este não é o mundo dos "Livros Didá-ticos", logo, a alfabetização dessas crianças deve ter por base situações concretas dentro da sua realidade e portanto livre de livros e cartilhas.

Passamos então a definir os princípios que norteariam o nosso trabalho, ficando assim determinado:

PRESSUPOSTOS BÁSICOS PARA O PROJETO ALFABETIZAÇÃO

a) Respeito ao saber do professor - Não existe um método definido, o professor utiliza aquele sobre o que tem mais domínio e que se identifica com sua prática ante-rio*. A partir dos subsídios teóricos a que ele tem acesso, das discussões e da troca de experiência com o grupo, ele passa a recriar e inovar a sua prática.

b) A criança que chega â escola já tem o domínio da língua materna — Tem um saber linguístico que utiliza inconscientemente em seus atos de comunicação cotidianos, logo, o professor vai trabalhar considerando o saber dos alunos, respeitando a sua fala como sendo reflexo de seu meio, valorizando mais a expressão oral. A escrita é considerada não pelo "primor" ortográfico mas pela coerência lógica do pensamento, transformando esta atividade numa forma de expressão útil e agradável para a criança.

c) Não se pode trabalhar em educação desconhecendo a organização da sociedade -Da forma como a nossa sociedade está organizada, a criança da classe trabalhadora é obrigada a se submeter a várias formas de subempregos em busca da subsistência. Esta participação precoce nas experiências do mundo dos adultos desenvolve na criança um pragmatismo que a afasta bastante da forma de trabalho usado na escola. Considerando este fato, o professor vai desenvolver a ação educativa a partir da vivência do aluno, do que tem maior sentido existencial para ele.

Sistemática de Trabalho

1. Composição das equipes de trabalho - Frente aos citados pressupostos, o grupo da COTEP iniciou a composição das equipes de trabalho nas escolas, formadas por um pedagogo, independente da habilitação, e por professores alfabetizadores. A organização dessas equipes processou-se a partir de consultas feitas aos pedagogos que já tinham demonstrado interesse em desenvolver atividades voltadas para as primeiras séries do 1? grau.

2. Cursos - Com as equipes já formadas, antes do início do ano letivo de 82, em janeiro, foi realizado um primeiro curso para os pedagogos e os professores alfabetizadores na área de Linguística, sobre fonética e fonologia. Este curso representou o primeiro passo para despertar nos professores a necessidade de repensar a sua prática e descobrir novos caminhos no processo de alfabetização.

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No decorrer da experiência, foram surgindo necessidades de outros cursos para dar suporte às ações que vinham sendo desenvolvidas pelos pedagogos e professores. Assim sendo foram utilizados cursos sobre:

— Política educacional

— Matemática

— Alfabetização

— Análise crítica de material didático

— Metodologia da pesquisa

Após os cursos, os temas abordados eram retomados durante as sessões de estudo, realizadas sistematicamente, a nível de unidade escolar e SEEC.

3. Acompanhamento do projeto a nível da equipe COTEP:

a) Visita às escolas - A equipe da COTEP, para dar acompanhamento ao projeto, tenta, por observação direta, perceber como estão as aulas, detectando a problemática das escolas, dificuldades dos professores e alunos, enfim, vivenciar o dia-a-dia dos professores e alunos para, nesta inter-relação, caminhar com eles em busca do aper-feiçoamento da ação pedagógica.

b) Reuniões com os coordenadores das escolas — Todas às quartas-feiras das 14 h às 17h30min, a COTEP se reúne com os pedagogos que coordenam o projeto. Nesse dia, numa primeira fase, o pessoal das escolas traz material dos alunos, proporcio-nando a todos uma visão do conjunto. Num segundo tempo da reunião, os proble-mas são colocados em comum e com o grande grupo procura-se alternativas. A partir daí, a reunião passa a ter um caráter de estudo mais formal, processando-se a leitura de um texto. Normalmente, estes textos são escolhidos tendo por critério as necessidades mais urgentes do trabalho. Assim, em 1982, foram temas de estudo:

— textos de linguística

— textos de alfabetização

— textos de psicolingúística

— política educacional

— filosofia da educação

— educação popular

Em 1983, isto é, de março a junho, prendemo-nos a textos de Sociologia e educação popular.

c) Reunião com os professores — Há sistematicamente reuniões bimestrais com todos os professores do projeto. Nelas se dá o relato de experiências das diversas escolas e

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das diversas professoras. Há nesta troca de experiências uma riqueza enorme de deta-lhes, e a descoberta, por parte dos professores, de "n" caminhos para saírem das dificuldades impostas pela própria condição de professor das 1as séries.

Dinâmica do Projeto na Escola

1. Aula — Para introduzir em sala de aula uma forma de trabalho mais próximo do mundo da criança de periferia e coerente com os princípios norteadores deste traba-lho, antes de mais nada, tem sido necessária "paciência histórica". 0 professor só pouco a pouco vai incorporando à sua prática o que esta nova concepção educativa vai interferir em sua aula. Assim, fica bem claro uma coisa: não tivemos pressa, não tentamos impor um novo saber, nem tentamos travestir o professor com roupagens de novas técnicas, maquiando-o de brilhantes e coloridos "materiais didáticos" e "audiovisuais" por ele desconhecidos. Deixamos que pouco a pouco, tal qual a na-tureza, também as aulas tomassem seu rumo. Confiamos na capacidade criadora do professor. Sabíamos que sem romper com a sua antiga prática, já cristalizada em tantos anos de ensino, iria encontrar um meio de somá-la à nova concepção de alu-no, à nova visão de mundo que estava tendo, recriando daí uma nova abordagem, uma nova aula.

Assim pensamos e assim aconteceu. Não, é evidente, em 100% das salas de aula. Há sempre aqueles que embora querendo mudar, são mais lentos, mais resistentes. Res-peitamos também esta limitação humana. Mas mesmo nestas salas, em relação a anos anteriores, os resultados foram menos calamitosos, isto é, chegando ao final do ano foi constatado que os alunos entraram no processo de alfabetização e que uma grande parte conseguiu ler e escrever compreensivamente e com uma condição de verbalização bem mais elevada.

Como era de se esperar, surgiu, não em cada escola, mas em cada sala de aula, uma variedade de experiências; em todas porém um ponto comum: o aluno passou a ser o falante da sala. O estímulo à verbalização foi intenso. Antes de introduzir o aluno no mundo das letras, papel até então prioritário para o professor alfabetizador, ele foi exercitado em sua condição de falante da língua. Surgiram narrativas dos alunos, relatos de suas vidas, de suas experiências, de suas brincadeiras, dos seus trabalhos, de suas aventuras e fantasias. Estes relatos eram geralmente aproveitados para temas de desenhos com recortes. Só a partir daí, o que durou mais ou menos o primeiro mês de aula, os professores foram se definindo em relação ao método a ser adotado. Naturalmente, a grande maioria optou pelo sintético, pela segurança com que o ma-nejavam. Houve, como sempre, alguns mais corajosos que escolheram o analítico, mesmo sabendo que para eles seria uma experiência nova. Um deles selecionou as palavras geradoras a partir dos relatos diários das crianças. Esta prática foi bastante rica pela participação efetiva dos alunos e consequente motivação para a aula. No quarto mês de alfabetização, surgiu a necessidade incontestável de permitir a essas crianças o acesso â literatura infantil. Era fundamental para a fase em que se encon-travam aguçar a sua imaginação e fantasia introduzindo-as na beleza das letras. Era o ler não por obrigação, não porque a escola é para ler, mas porque era hora dessas crianças perceberem que as letras têm vida, têm beleza, e que o saber tem sabor.

Como enfrentar o desafio se as nossas escolas não têm biblioteca, se nossas crianças não dispõem de qualquer livro em sua própria casa e o nosso projeto não tinha re-curso? Encontramos uma saída. Com base nos relatos das crianças, foram criadas

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três estórias que, mimeografadas, foram para as salas de aula. Para as crianças que já liam eram lidas e ilustradas por elas, que muitas vezes não se conformavam em externar a sua expressão apenas em desenho, escreviam no rodapé frases ou de con-testação ao personagem ou de expressão mesmo de quem faz parte da estória e por isso quer completá-la. Do comentário das estórias surgiram novos textos produzidos e ilustrados pelos alunos. Para as crianças que ainda não liam, as professoras liam em voz alta para elas. Passamos a dramatizar os textos e usá-los como ponto de partida para a narração oral de novas estórias conforme o envolvimento dos alunos.

Com base também nos relatos dos alunos foi composto um livro com texto deles, mimeografado e usado por todas as escolas.

Este ano, como já dispomos de recurso, além destas estórias criadas para eles, intro-duzimos livros de literatura infantil para utilização em sala de aula. Assim estamos tentando estimular o gosto pela leitura e usando-a também como lazer. Esperamos que pouco a pouco a leitura fria e impessoal dos livros didáticos passe a ser substi-tuída por algo mais vivo, mais vibrante.

2. Horário de coordenação — Os professores do projeto aispõem de 40% da sua carga horária, para, fora da sala de aula, estudar e avaliar o trabalho e repensar a sua prá tica.

Nessa tarefa, eles são geralmente acompanhados dos coordenadores que orientam na escolha dos textos e nas atividades em geral.

3. Atuação do coordenador do projeto na escola — Eles atuam intrinsecamente ligados tanto ao professor quanto ao aluno. Isto se dá não só pela presença na sala de aula, o que é positivo para o acompanhamento do projeto, por oportunizar o viver, o cohabitar com o professor e o aluno, experimentando com eles o mel e o fel da sala de aula, mas também pela orientação aos professores nos "horários de coordena ção", quer no acompanhamento dos alunos, quer no preparo de aulas e discussão dos textos de estudos.

O desenvolvimento do trabalho tem encontrado uma série de dificuldades, tanto a nível da Secretaria de Estado da Educação e Cultura, como a nível de unidade esco-lar. Faltam-nos recursos financeiros e como consequência trabalhamos com o míni-mo possível de material; outro entrave tem sido o aparato burocrático, provocador da morosidade nas tomadas de decisões essenciais ao funcionamento das atividades. Em termos do andamento do trabalho, encontramos resistência por parte de peda-gogos e professores já acostumados durante anos a materiais didáticos que lhe ofere-cem a comodidade de não enfrentar o desafio da criação.

Seguindo toda a sistemática de trabalho já descrita, a experiência vem sendo desen-volvida atualmente em doze escolas da rede estadual de ensino, onze localizadas na periferia e uma no centro de Aracaju, envolvendo 1.153 alunos de 1a série, 680 de 2a série, 42 professores e 13 pedagogos.

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Alfabetização numa Creche e Realfabetízação numa Clínica

Golda Segre Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP)

Esta comunicação busca focalizar dois aspectos da alfabetização. O primeiro se refere a uma experiência de alfabetização realizada numa creche de São Paulo com crianças culturalmente privadas. O segundo aspecto visa chamar atenção à necessidade de um encaminhamento "precoce" para um atendimento específico de crianças que apresen-tam dificuldades persistentes após o período habitual da aprendizagem da leitura e escrita.

ALFABETIZAÇÃO NUMA CRECHE DE SÃO PAULO

Há quatro anos está sendo realizado um trabalho numa creche de São Paulo, frequen-tada por 130 crianças de famílias de baixa renda que residem em habitações precárias como cortiços, quartos de pensões do Bom Retiro e adjacências. A Creche UNIBES é conveniada com a Fabes-Programa Creche e mantida pela coletividade israelita. Nesta creche as crianças permanecem no período de 7:30 às 17:30 horas. Durante o período da manhã a creche funciona como qualquer escola, com classes de mini, maternal I, maternal II, jardim e pré, contando com professores especializados. No período da tarde são recreacionistas que trabalham com as crianças (exceto nos minis e maternal I, onde permanece a mesma professora em período integral, em função do vínculo com a criança). O objetivo da creche é atender crianças pertencentes a famílias de parcos recursos financeiros, cujas mães necessitam trabalhar para a manutenção da casa ou complemento do orçamento familiar e não têm com quem deixar o filho no período em que estão trabalhando. Em termos da criança, busca-se o seu desenvolvimento através da execução de atividades pedagógicas e recreativas, visando sua socialização e preparação escolar. Esta creche é diferenciada na medida em que lá trabalham diferentes profissionais. Na direção trabalha uma assistente social cuja função é administrativa, como controle de alimentos, compras, convénios etc. Trabalha também uma outra assistente social que desenvolve um trabalho de conscientização junto aos pais, objetivando a promoção da família como um todo. Os demais membros .que formam a equipe são duas fonoaudiólogas, duas psicólogas e uma psicopedagoga que trabalham durante um período de 12 horas semanais, atendendo não somente às crianças da creche mas também a 140 crianças da recreação (7 a 16 anos). As fonoaudiólogas, assim como a psicomotricista e a psicopedagoga, realizam cursinhos e supervisões com as professoras e recreacionistas a fim de conscientizá-las das necessidades das crianças e buscar com isto uma ação educativa mais efetiva e eficiente. As assistentes sociais realizam todo um trabalho comunitário, promovendo reuniões mensais com profissionais escolhidos pelos pais para discutir suas necessidades e anseios. Orga-

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nizam passeios, bingo etc. As crianças da creche são divididas em classes de acordo com a faixa etária e realização escolar. Cada classe é composta de 25 crianças sendo que somente no mini-maternal há 2 classes com 15 crianças em cada uma. Na pré-escola há um planejamento por faixa etária fundamentado nos pré-requisitos das áreas percepti-vas, motoras e cognitivas, com ênfase na comunicação oral (50% das crianças que entram no mini possuem um vocabulário muito reduzido). Quando a criança entra para a creche é realizado um trabalho no sentido de adaptá-la socialmente à nova realidade. Posterior e gradativamente introduz-se conteúdos formais, selecionados em função da realidade dessas crianças e introduzidos sempre que possível através de situações informais como jogos e brincadeiras. As crianças mais lentas ou com déficit motor, assim como as crianças com dificuldade articulatória, são observadas e, quando necessário, encaminhadas para psicomotricidade ou atendimento fonoaudiológico. A média anual de crianças encaminhadas para esses dois departamentos varia de 7 a 10. Antes do início do pré é realizada uma testagem pelas fonoaudiólogas em todas as crianças desta classe para evitar que distúrbios articulatórios possam comprometer a aprendizagem da leitura e escrita. Durante a pré-escola é iniciada a aprendizagem da leitura e escrita após um trabalho de reflexão sobre a escrita, com a colocação de ques-tões como: O que são palavras? Para que serve a leitura? etc. O método de alfabeti-zação parte das vogais, que são trabalhadas visual, auditiva e cinestesicamente. Como segundo passo, apresenta-se as vogais aos pares, em expressões significativas, contextua-lizadas através de estórias contadas pela professora. Em seguida são introduzidas famí-lias silábicas que são retiradas das palavras escolhidas pelos alunos. Como as crianças estão muito disponíveis para a aprendizagem, elas mesmas formam novas palavras, só que estas são inicialmente escritas na lousa, no ar, nas carteiras. Para isso elas contam com o material confeccionado por elas mesmas. As vogais e sílabas estão em cartolina com o contorno de lã. Como último passo, as crianças passam o dedo nas palavras, com os olhos fechados, pronunciando a palavra em voz alta. Quando há uma garantia mínima de que a criança não vai errar, ela copia a palavra no caderno e depois a escreve de memória. Com estes procedimentos, 23 a 25 crianças estão dominando a leitura e escrita de palavras e frases compostas de várias famílias silábicas, e só duas crianças sentem alguma dificuldade (estas recebem retorço na própria sala de aula). Nos últimos 4 anos, das 25 crianças, 22 a 23 estão iniciando com muito sucesso o seu processo de alfabetização e, como consequência, terão boas possibilidades de obter sucesso na escola.

REALFABETIZAÇÀO NUMA CLINICA

Muito se tem escrito sobre crianças com dificuldades de leitura e escrita, mas muitas confusões ainda persistem principalmente devido ao desconhecimento de uma grande maioria de professores, orientadores, pais e da sociedade em geral. O resultado é que muitas crianças são rotuladas gratuitamente como incapazes, sendo então marginali-zadas pelo sistema de ensino comum, obrigadas muitas vezes a frequentar classes espe-ciais ou abandonar a escola.

O que se busca com esse relato é explicitar as possíveis causas das dificuldades apre-sentadas por estas crianças. No trabalho clínico percebe-se que não há tanta distância quanto se pensa entre as crianças que estão momentaneamente com dificuldades de aprendizagem e as crianças ditas normais. Todas as manifestações apresentadas por crianças com dificuldades são também apresentadas pelas crianças "normais", princi-palmente no início do processo de alfabetização.

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O que ocorre é que nas crianças ditas normais essas dificuldades são passageiras, enquanto nas outras, dependendo da etiologia e das possibilidades ou não de encaminhamento para trabalhos específicos, as dificuldades safo mais duradouras e em maior quantidade.

Dificuldades de aprendizagem é uma denominação genérica que congrega várias patologias provenientes de causas diferentes. As origens podem ser:

a) orgânica — devido a décifit: auditivo ou visual, DCM, afasia e outros;

b) processo de ensino da leitura e escrita inadequada ou precoce;

c) fatores sociais ou privação cultural;

d) fatores psicológicos ou emocionais; e

e) dificuldades específicas - dislexia.

Em caso de dificuldade de aprendizagem, o aspecto inicial a ser excluído deve ser o orgânico, através de anamnese, observação e exames médicos quando houver necessidade.

Os procedimentos de alfabetização e/ou a professora podem ser inadequados e determinar cortes ou até mesmo impossibilitar a criança de aprender, em função da atitude negativa que criam frente à leitura e escrita. O mesmo pode ocorrer com crianças imaturas colocadas numa situação de ensino forçado.

Com crianças provenientes de população de baixa renda em início de escolarização podem ocorrer dificuldades de adaptação frente ao ambiente escolar e às suas requisições.

Os problemas emocionais e sua repercussão na aprendizagem são óbvios e portanto não serão tratados aqui.

Gostaríamos de salientar uma outra entidade, denominada dislexia, como uma das responsáveis por dificuldades persistentes e sobre a qual até o momento não se têm dados em termos de incidência no Brasil. Dislexia é uma dificuldade para aprender a ler e escrever em crianças com Ql normal ou acima |do normal que tenham tido acesso a oportunidades educacionais convencionais. Estão excluídas desse quadro crianças com comprometimentos sensoriais, como cegueira, surdez ou deficiência mental. A dislexia engloba um conjunto de sintomas que afetam a continuidade da aprendizagem da leitura e escrita num grau que vai do mais leve ao intenso.

Para Halgreen (NIETO, M.), a dislexia obedece a um caráter hereditário, sendo encontrada com maior frequência em crianças do sexo masculino. Este dado é refutado por outros autores como M. Condemarin e M. Blomquist, ao afirmarem que a dislexia pode ser adquirida durante o parto, por exemplo, quando a criança apresenta anoxia e resulta de uma disfunção neurológica. Segundo C. C. Santos encontra-se nestas crianças uma discrepância entre o potencial e a realização no âmbito escolar. J. B. Quirós acrescenta que encontramos um padrão harmónico entre a dificuldade de ler e escrever.

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Os erros de leitura e escrita que comumente encontramos nessas crianças são de natureza peculiar e específica. Dificilmente as crianças apresentam o mesmo tipo de dificuldade e esta pode se manifestar em diversas áreas além da leitura e escrita, como ortografia, gramática e redação.

Nessas crianças a leitura frequentemente tende a ser lenta, silabada com regressões, sem entonação, o que acaba comprometendo toda a compreensão. Além disso, o nível de leitura tende a não ser fluente, dando lugar a omissões, substituições, reduções ou extensão de vocábulos com trocas de natureza espacial (patelo/paleto) ou de natureza auditiva (cat/gato).

Na escrita as crianças podem apresentar disortografias, que são trocas de letras, substituições ou omissões e/ou disgrafias — alterações gráficas, alteração no formato das letras etc. As disortografias mais frequentes são:

- rotação de grafemas ou números: etc. (nota-se fre-quentemente nessas crianças dificuldade em reconhecer seu lado esquerdo edireito);

- dificuldade para memorizar sequências de meses e de multiplicação;

- trocas de grafemas com valores fonéticos próximos, com o mesmo ponto de articulação, sendo que na emissão um é surdo e o outro é sonoro: f/v, d/t, p/b etc;

- trocas de grafemas com valores fonéticos iguais que dependem apenas da memória visual: s/ss, s/c, s/ç, ch/x etc;

- omissões de grafemas ou mesmo sílabas, como canto/cato, papel/pape etc;

- fragmentações, ou seja, divisão de palavras de forma inadequada, como por exemplo, qualquer;

- agregados ou aglutinações, que é a junção de duas ou mais palavras como quiqueria etc;

- ausência de sinais de pontuação, acentuação, letras maiúsculas.

Através desta classificação, pode-se notar que o orientador ou o psicólogo escolar necessita possuir informações a respeito de cada uma das dificuldades, pois atentos a elas poderão poupar crianças de fracassos já no início de sua escolaridade, impedindo assim que se acrescente mais um comprometimento emocional às dificuldades existentes. O conhecimento e reconhecimento desses problemas permitirão ao orientador prestar uma assistência "precoce", eventualmente na própria escola, num outro período, sem que seja necessário reprovar repetidamente essas crianças ou colocá-las em classes especiais com todos os custos que isto acarreta para a criança.

Referências Bibliográficas

CONDEMARIN, M. & BLOMQUIST, M. La dislexia. Chile, Editorial Universitária, 1970.

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DOWING, J. & THACKRAY, D. V. Madurez para la leitura. Buenos Ayres, Kapelusz, 1974.

FROSTING, M. Educación especial para una ubicación social apropriada. Buenos Ayres, Ed. Médica Panamericana, 1978.

MY KLEBUST, H. R. Transtornos dei aprendizaje. Madrid, Editorial Cientifico/Médico, 1971.

NIETO, M. El ninodeslexico. México, Fournier, 1975.

QUIRÓS, J. B. El lenguaje lectoescrito y sus problemas. Buenos Ayres, Ed. Médica Panamericana, 1977.

SANTOS, C. C. Dislexia específica de evolução. São Paulo, Sarvier, 1975.

SCHRAGER, 0. Aprendizage e psicomotricidad. Revista de Psicomotricidade, Buenos Ayres, 3(3), 1980.

TARNOPOL, L. & TARNOPOL, M. Distúrbios de leitura; uma perspectiva internacional. São Paulo, Edart, 1981.

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Depoimento de Experiências Profissionais em Alfabetização

Tereza Roserley Neubauer da Silva Secretaria Municipal de Educação

e Cultura de São Paulo

Eu sou normalista de formação. No meu tempo não havia a Habilitação para o Magistério do atual 2° grau. 0 curso normal preparava as professoras primárias para lecio-narem nas primeiras séries do 1° grau.

Apesar de ter feito um curso normal de boa qualidade, num dos melhores institutos de educação desta cidade, que me preparou para prestar com êxito exame na Faculdade de Educação da USP, a minha passagem pela escola da periferia me mostrou que eu não sabia alfabetizar. O instituto de educação dava uma excelente bagagem cultural, mas não ensinava a trabalhar com as crianças da periferia com as quais me deparei desde o primeiro dia que saí da escola normal.

A ida para a universidade foi uma tentativa de buscar respostas para a angústia que eu sentia frente aos alunos que não conseguia alfabetizar, pois não sabia como fazê-lo. A universidade acabou por me afastar da prática pedagógica e me aproximar da pesquisa sofisticada, na linha de testes e medidas psicológicas.

Há quase dez anos atrás voltei a trabalhar com a problemática da alfabetização. Na passagem pela pesquisa educacional acabei me aproximando de um grupo de pesquisadoras da Fundação Carlos Chagas, tendo o privilégio de me tornar discípula e colaboradora da professora Ana Maria Poppovic. Esse foi para mim um período muito rico; um período de reflexão e estudo sobre a prática pedagógica, na procura de alternativas capazes de auxiliar o professor e o aluno a superar o impasse mais grave da escola de 1? grau: o da alfabetização.

Neste período, sob a coordenação da professora Poppovic, o grupo de pesquisadoras elaborou materiais didático-pedagógicos e fez propostas novas que, acredito, sejam conhecidas da maioria das pessoas que estão aqui e que se interessam por alfabetização.

Penso que foi devido a esta postura de estar sempre buscando soluções adequadas para o trabalho das professoras das primeiras séries de nossas escolas, que acabei sendo convidada pela professora Guiomar Namo de Mello para fazer parte do primeiro escalão que hoje dirige a Secretaria Municipal de Educação do Estado de São Paulo.

É sobre isto que gostaria de falar um pouco aqui.

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A Secretaria possui um total de 500 escolas, entre as de 1° grau e de educação infantil. São trezentas mil crianças nas escolas municipais de 1? grau, das quais 85.000 só na Ia série. Hoje uma de nossas maiores preocupações é a de melhorar o rendimento escolar destas crianças.

Encontramos a Secretaria em estado alarmante do ponto de vista administrativo e pedagógico. A porcentagem de repetentes no ensino municipal é muito grande, principalmente nas 1as e 5as séries, e não se diferencia muito dos índices do resto do Brasil.

A taxa de 37 a 38% de repetência se mantém constante nos quatro últimos anos, somando-se a um índice de evasão de 5 a 6%, o que eleva o índice de perdas a 42 ou 43%.

Ironicamente, a Secretaria conta com um quadro de apoio técnico-pedagógico, em suas escolas, dos mais sofisticados que se pode imaginar em termos de Brasil. Todas as escolas de 1° grau têm, além de diretor, assistente pedagógico e orientador educacional. Além disso, possui, para uma rede de 500 escolas, 40 fonoaudiólogos e mais de 200 dentistas.

Uma vez que, do ponto de vista técnico-pedagógico, é uma secretaria para ninguém botar defeito, começamos a nos perguntar porque uma rede de ensino com tantos recursos humanos continua mantendo índices de reprovação tão altos.

Na verdade, há muitos entraves que podem justificar este quadro. Grande parte dos cargos de professor não são efetivos. São os chamados cargos em comissão. A situação é a mesma no que se refere aos cargos de assistente pedagógico, orientador educacional, supervisor e diretor.

Esta alta incidência de cargos não efetivos enfeixados nas mãos da administração central alimenta o clientelismo e o autoritarismo nas relações escolares, resultando numa atitude de submissão. Como poderia ser de outra forma, se pelo menos metade dos educadores da rede depende, para manter suas posições, da boa vontade dos seus superiores? Outra possível consequência desta situação é o descompromisso em relação à unidade escolar e aos alunos, uma vez que a qualquer momento o profissional pode ser afastado da escola onde trabalha.

Ao nos defrontarmos com tais problemas, nos perguntamos o que fazer para tentar modificar esse quadro. Na medida em que seria impossível fazer concursos em todos os níveis, procuramos possibilitar à escola, neste momento, a escolha dos seus especialistas: diretores, assistentes pedagógicos e orientadores educacionais.

Para tanto acionamos o Conselho de Escola, formado por representantes dos professores, dos pais e pela equipe técnico-pedagógica de cada unidade. A este Conselho, que já existia, mas não funcionava, foi atribuída a função de eleger, dentre os seus quadros, aqueles que julgassem mais competentes para ocupar os cargos vagos de especialistas em educação.

Esta foi a primeira medida que a nova administração tomou no sentido de favorecer um melhor desempenho do Sistema Municipal de Ensino.

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A segunda medida foi dar oportunidade aos educadores para refletirem sobre a rei idade política e pedagógica das escolas. Foi assim que realizamos, há quinze dias, o Encon-tro de Educadores da Rede Municipal de Ensino, onde, pela primeira vez, os educado-res tiveram a oportunidade de discutir em conjunto as diretrizes de uma administração.

Elaboramos, para este momento, dois pequenos documentos. Um sobre alguns pontos da política educacional, como a crítica ao autoritarismo e ao clientelismo e a valori-zação do magistério, do compromisso do educador com a sua clientela, da autonomia da escola. Outro, sobre os pontos críticos da escola municipal: a falta de integração entre escola de educação infantil e escola de 1° grau, a repetência nas 1as e nas 5as

séries do 1? grau. Neste documento apresentamos as propostas de ação em relação a estes problemas prioritários. Ao elaborá-las, utilizamos elementos de trabalhos que haviam sido feitos pelos próprios professores e especialistas da rede, como remaneja-mento de classes, recuperação fora do horário de aula, acompanhamento das crianças aprovadas com sílabas simples. Em relação a este último ponto estava acontecendo na rede um fenômeno sério: em algumas escolas, crianças aprovadas com sílabas simples não recebiam nenhum trabalho visando a continuidade da alfabetização na 2a série, o que resultava numa deterioração do nível de escolaridade.

No Encontro de Educadores, todos, professores e especialistas, puderam, com base nos documentos já citados, discutir sua realidade específica. Não só os professores de 1as

e 5as séries mas todos os demais foram chamados para fazer uma proposta, para todo o 1o grau, de aprendizagem com continuidade, pois não adianta considerar 1a ou 5a série isoladamente. Durante uma semana a escola inteirinha se fechou e trabalhou a sua proposta do que fazer para baixar o índice de repetência de seus alunos. Nesta proposta cada unidade escolar levou em conta seus próprios recursos ao mesmo tempo em que a Secretaria abria alguns outros, na forma de medidas administrativas até então não adotadas, como, por exemplo, mexer com mínimos de aprovação e pagar salário para o professor trabalhar fora do período de aula.

Cada unidade teve plena autonomia para elaborar seu plano de ação, que teve o respal-do do Conselho de Escola, convocado especialmente para discuti-lo e dar o seu aval. A autonomia da escola, entretanto, deve implicar o compromisso assumido junto ao Conselho de Escola de melhorar o aproveitamento de seus alunos, evitando o seu fra-casso. Por exemplo, uma escola pode fazer proposta de remanejamento, mas na medida em que exista também uma proposta de recuperação dos alunos, de trabalho com as classes mais lentas, que não podem ser simplesmente rotuladas como tais e esquecidas.

Esta semana já estamos recebendo as propostas vindas das escolas e pretendemos seguir de perto o seu desenvolvimento. O acompanhamento didático-pedagógico será ofere-cido às escolas através do Departamento de Planejamento e Orientação Pedagógica (DEPLAN) e sugestões serão oferecidas à medida que as escolas as solicitarem.

Assim, não há nenhuma proposta fechada em cima das escolas. Parece-nos que era isso que elas estavam precisando no primeiro momento: um espaço de autonomia para pensar e tentar resolver seus próprios problemas. Apostamos na vida inteligente que existe dentro da escola. É preciso deixar que ela emerja.

Nós acreditamos que é assim que a comunidade escolar aprende a assumir compro-missos. O preço que vamos ter que pagar por isso só o saberemos no final do segun-do semestre, ao término da primeira etapa dessa experiência.

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PAINEL: DESCRIÇÃO E AVALIAÇÃO DE PROGRAMAS DE PRÉ-ESCOLA E DE ALFABETIZAÇÃO

Alfabetização: Lendo e Escrevendo e Cartilha da Amazónia

Geraldina Porto Witter Universidade de São Paulo (USP)

É inegável a importância da leitura para o homem. Seja qual for o prisma pelo qual se analise este comportamento, uma etapa relevante no estabelecimento e desenvolvi-mento do mesmo é a que se convencionou denominar alfabetização. De fato, este repertório complexo e hierarquizado tem seus primeiros elos estabelecidos bem antes da etapa de alfabetização e projeta-se para muito além dela, até que se alcance os mais altos níveis de leitura crítica e criativa.

Muitos estão ainda hoje alijados da possibilidade de alcançar a etapa de alfabetização e dos que o conseguem poucos atingem os nível mais altos de desempenho aqui referi-dos.1 Entre as possíveis causas estão as inadequações ou as falhas que marcam a eta-pa de alfabetização. Além disso, mesmo quando se obtém êxito, em termos de profi-ciência imediata, a alfabetização pode levar à caracterização de leitores relutantes, isto é, que sabem ler com proficiência mas raramente o fazem.2 Basta lembrar estes aspec-tos para evidenciar a importância da alfabetização.

Lendo e Escrevendo3 e a Cartilha da Amazónia4 são dois materiais criados a partir de dados de diversas pesquisas, com o objetivo específico de viabilizar uma alfabetização ao mesmo tempo eficiente e altamente reforçadora para o aluno, de modo a garantir o "gostar de ler" e a utilização funcional da leitura, respeitando-se ao máximo a realidade socioeconómica e cultural da criança e que, ao mesmo tempo, lhe transmita

BETETTO. A. M. F. Remediação de leitura e escrita em escolares através de instrução programada. São Paulo, USP, 1982. (Tese mestrado); CASTILLO, H. V. Estudo contrastivo de dois procedimentos para treino de repertório básico em leitura. São Paulo, USP, 1983. (Tese mestrado); HUSSEIN, C. L. Leitura crítica e criativa: teste de procedimentos de treino e generalização - um estudo com escolares da 5ª série. São Paulo. USP, 1982. (Tese doutorado).

2 VIESSI, V. R. Sistema contratual para leitores relutantes: um estudo com escolares do 1° grau. São Paulo, USP, 1979. (Tese doutorado).

3 WITTER, G. P. & COPIT, M. S. Lendo e escrevendo. São Paulo. VETOR, 1981;______________________ Lendo e escrevendo: manual do professor São Paulo, VETOR, 1971-1974.

4 WITTER, G. P., KERR, V. E. & FONSECA. O J. M. Cartilha da Amazónia: livro do aluno. Manaus, Imprensa Oficial do Estado do Amazonas, 1976; _________________________ Cartilha da Amazónia: livro do professor. Manaus, Imprensa Oficial do Estado do Amazonas, 1976.

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informações úteis à melhoria da sua qualidade de vida. A população-alvo nos dois casos foi inicialmente a criança em fase de alfabetização. Estes objetivos e esta popula-ção foram aos poucos se diversificando e se ampliando, passando o material a ser em-pregado também na remediação da leitura e em idades diversas, incluindo crianças, adultos, adolescentes e excepcionais, vindo a abranger inclusive o atendimento a pro-blemas na área da escrita.5

Lendo e Escrevendo foi, após uma pesquisa psicolingúística, adaptado e usado com êxito na Venezuela para crianças que vinham enfrentando dificuldades de alfabetiza-ção por dois ou mais anos6, estando hoje em uso também com crianças recém-ingressas nos programas de alfabetização. Experiência similar está programada visando uma adaptação da Cartilha da Amazónia, com início no próximo ano letivo, incluindo crianças no início da alfabetização, crianças com as quais não se obteve êxito anterior-mente e crianças de classes para excepcionais.

Em síntese pode-se caracterizar estes materiais como do tipo instrução programada linear, apresentando as características comuns a este tipo de meio de instrução. Dentre estas características a primeira é que são textos que resultaram de pesquisas realizadas sucessivamente pelos autores e por outros pesquisadores antes, durante e após a pro-dução do material, o qual a cada impressão sofre mudanças à luz dos dados obtidos. As pesquisas específicas com Lendo e Escrevendo têm se alongado por 22 anos, doze dos quais após a sua publicação a nível comercial, sofrendo diversas modificações em cada reimpressão. A história da pesquisa com a Cartilha da Amazónia, excluído o aproveita-mento de dados das pesquisas feitas para Lendo e Escrevendo, como por exemplo de

5 BETETTO. A. M. F. op. cit.; BONAMIGO. E.M.R. Possibilidades da técnica de Greenspoon no estudo do comportamento em escolares. São Paulo, USP, 1972. (Tese doutorado); GUZZO, R. L. EficiSncia de um treino em linguagem oral: desenvolvimento do repertório básico para alfabetização. São Paulo, USP, 1981. (Tese mestrado); HUSSEIN, C. L & ARNOLDI, M. A. G. C. Aplicação de um sistema motivacional na revisão da letra cursiva, em um adulto. Bole tim de Psicologia, São Paulo 29 (72/731:33-38, 1977; LIBERALESSO, A. Comparação da influáncia de cinco esquemas de reforçamento na aquisição inicial de respostas textuais, através da técnica de escolha de acordo com o modelo. São Paulo, USP, 1973 (Tese mestra do); MACEDO, E. M. Comparação entre realização no teste metropolitano de prontidão e em aprendizagem de discriminação. Ribeirão Preto, FFCL, 1971; MACHADO, V. L. S. Efeito de um treino de discriminação na aprendizagem de leitura por privados culturais. São Paulo. USP, 1975. (Tese mestrado);____________________ Medida da dificuldade de discrimi nação de sílabas simples e formadas por grupos consonantais usando um método de compa ração com o modelo. Ribeirão Preto, FFCL, 1971; OLIVEIRA, M. B. F. Vocabulário, imi tação e compreensão de pré-escolares em níveis socioeconómicos distintos. São Paulo, USP, 1978. (Tese mestrado); OLIVEIRA, Q. L. Eficiência de variações na técnica de emparelha mento com um modelo da discriminação visual de sílabas. Ribeirão Preto, FFCL, 1979; PULLIN, E. M. M. P. Audiência e repertório verbal: um estudo com pré-escolares carentes culturais. São Paulo, USP, 1979. (Tese mestrado); ROCHA, N. M. D. Desempenho verbal de pré-escolares: emissão de "tato" face a figuras. São Paulo, USP, 1975. (Tese mestrado); SANTIAGO, N. V. Remediação verbal em crianças carentes culturais: estudos experimentais. São Paulo, USP. 1973. (Tese mestrado); VOLLET, V. T. & MARCHEZI, S. R. S. B. Aplica ção de um programa de treinamento em leitura e escrita através de um sistema motivacio nal de vales: um estudo de caso. Didática, São Paulo. 17:91-97, 1982; WITTER, G.P. Alguns aspectos do vocabulário do pré-escolar. Ciência e Cultura, São Paulo, 19 (21:284, 1967; ----------------. Bases científicas para produção e avaliação de ilustração de cartilhas. Boletim de Psicologia, São Paulo 80 : 32-39, 1981; ____________________ Psicologia escolar: pesquisa e ensino. São Paulo, USP, 1977. (Tese livre docência)

6 CASTILLO, H. V. op. cit.

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discriminação visual, de nível de coordenação viso-motora necessário etc, já tem cerca de sete anos com três revisões básicas em decorrência delas. Além disso, pequenas mudanças foram introduzidas para adaptação psicolingúística a regiões diferenciadas da Amazónia, como Acre, Roraima, Rondônia, norte do Mato Grosso, e, mais recentemente, a uma região específica do norte do Pará.

Entre as outras particularidades vale lembrar que estes materiais partem das características e nível de desempenho dos alunos, os quais determinam com seu comportamento as características intrínsecas do material; permitem obedecer ao ritmo individual de cada criança; garantem reforçamento imediato; provêem revisões frequentes e estrategicamente colocadas para garantir a fixação das respostas; obedecem a uma graduação do mais simples para o mais complexo de acordo com um critério múltiplo (linguagem oral e escrita); recorrem ao princípio de discriminação usando tanto apresentação simultânea como sucessiva de estímulos; utilizam a técnica de desvanecimento de estímulos no processo de modelagem da resposta; usam a linguagem de imagem como meio de estabelecer a ponte experiência não-verbal—experiência verbal-oral—leitura e escrita, bem como veículo de integração funcional com o mundo cultural da criança. Além disso, asseguram frequentes contatos pessoais aluno-professor a nível individual e coletivo.

Com os dois materiais, como é comum em outros países7 , trabalha-se no começo da alfabetização com a letra de forma do tipo bastão ou script para só posteriormente introduzir a letra cursiva. Em Lendo e Escrevendo há um programa à parte, de 40 páginas, para fazer esta passagem da letra bastão para a cursiva. Todavia, este material só é recomendado para crianças com mais problemas motores na escrita, pois o ideal é que elas passem por si próprias de um para outro tipo de letra. De fato, cerca de 80% das crianças fazem automaticamente esta passagem. Na Cartilha da Amazónia não foi incluído esse tipo de material adicional para a aprendizagem da letra cursiva, pois nas pesquisas básicas ficou evidente que apenas um percentual muito reduzido de crianças tinha necessidade desse treino extra. Neste caso, no livro do professor foram incluídas instruções de como deve atuar o professor para facilitar essa passagem.

As pesquisas básicas que forneceram os dados para a elaboração inicial dos materiais focalizaram aspectos como os que são descritos a seguir:

— grau de dificuldade relativa de escrita e de discriminação visual de letras e sílabas;

— léxico e estrutura frasal usados pelas crianças e adultos de sua comunidade;

— interesses e reforçadores potenciais das crianças incluindo as formas de lazer, brinquedos, alimentos preferidos;

— levantamento das condições de vida e rotina diária das crianças.

Para cada um destes tópicos foram feitas diversas pesquisas, com técnicas e metodologias diferentes. Além disso, assimilou-se na produção dos materiais os resultados de pesquisas feitas no exterior e no Brasil.

WITTER, G. P. Psicologia escolar: pesquisa e ensino. São Paulo. USP. 1977. (Tese livre docência)

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Em função destes resultados os dois materiais diferem entre si em aspectos básicos, tais como o léxico empregado, posto que as diferenças regionais do país assim o determinaram, e a forma de apresentação, que, por questão de ordem técnica, muda de uma para outra região. Uma vez que o material, para evitar saciação por parte da criança, é apresentado em folhas avulsas e se espera que o mesmo seja usado para vários fins, tais como aulas de Arte, de Matemática, de Estudos Sociais etc, devendo ser inclusive recortado para a composição de jogos de Linguagem e de Matemática, surgem opções sobre como concretizá-lo. A Vetor, que é a editora de Lendo e Escrevendo, resolveu apresentar o material em sacos plásticos individualizados. As edições da Cartilha da Amazónia são feitas pelo governo e optou-se por uma capa de cartolina onde as folhas são presas, servindo de arquivo transitório entre o uso inicial do material pela criança e o recorte, jogo ou cartaz por ela produzido como etapa final de utilização de cada folha.

Uma vez composta a primeira versão desses materiais eles foram submetidos a pesquisas de campo, com provando-se a sua eficiência ao mesmo tempo em que se obtinha dados para a sua melhoria. Após o lançamento comercial, no caso de Lendo e Escrevendo, e oficial, da Cartilha da Amazónia, que é de distribuição gratuita e não implica em direitos autorais, continuaram a ser feitos trabalhos de pesquisa pelos autores ou por outras pessoas que têm contribuído com dados interessantes que são incorporados na renovação de cada edição.

De um modo geral estas pesquisas têm mostrado não apenas a eficiência destes meios de instrução como também a sua superioridade quando contrastada com outros materiais utilizados nas respectivas regiões. Esta superioridade tem se verificado não apenas no que tange à alfabetização como instrumento de comunicação. Ela foi observada em outros aspectos do comportamento verbal escrito, na aprendizagem de noções de Ciências (Matemática, Biologia, Sociologia, História). Certamente, com o prosseguimento das pesquisas, aperfeiçoamentos sucessivos poderão ser feitos.

Ao longo desses anos tem se registrado também uma série de dificuldades. Elas não são intransponíveis, mas muitas têm sido apenas contornadas e se eliminadas poderiam conduzir facilmente a um progresso superior à média de aproveitamento, que nas pesquisas oscila entre 90 e 98% quando este último percentual deveria ser o mínimo.

Entre as dificuldades vale lembrar algumas:

- a estrutura tradicionalista comportamentalizada do sistema educacional brasileiro que não está preparada para a promoção em ritmo individual. No Amazonas algumas modalidades de solução foram implementadas;

WITTER, G. P. Psicologia escolar: pesquisa e ensino. São Paulo, USP, 1977. (Tese livre docên cia); WITTER, G. P. & COPIT, M. S. Estudo comparativo da eficiência de um texto progra mado para alfabetização. Ciência e Cultura, Sâ"o Paulo, 23:118. 1971;_____________________Uma experiência em alfabetização em classes pré-primarias. Educação para o Desenvolvimento, 26:96-102, 1971; ------------------------- Um estudo experimental de aplicação de alguns princípios de reforço em sala de aula. Boletim de Psicologia, São Paulo, 2459-69, 1972; WITTER, G. P., KERR, V. E. 8» RAMOS, M. A. A. Retenção da informação científica aprendida durante a alfabetização: um estudo com a Cartilha da Amazónia. Ciência e Cultura, São Paulo, 31 (8)598-900, ago. 1979, WITTER, G. P. & RAMOS, M. A. A. Cartilha da Amazónia. Ciência e Cultura, São Paulo, 30 (6) €77-85, jun., 1978.

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— a falta de formação e preparo dos professores para empregar tecnologia de ensino mais avançada, especialmente a nível de individualização. Alguns resultados têm sido obtidos com cursos breves de 6 a 10 horas ou com técnicas de dramatização;

— a ausência de tradição de pesquisa nos meios educacionais brasileiros. Apenas em 1970 surge um volume mais respeitável de trabalhos, mas há ainda um enorme de-serto de informações básicas;

— ainda no que tange às pesquisas nesta área é imprescindível um trabalho interdisci-plinar, e as universidades brasileiras só agora começam a esboçar algum esforço mais sistemático para um trabalho desta natureza;

— as autoridades educacionais nem sempre têm formação de pesquisa e interesse em estudos experimentais que, embora dêem maior segurança, podem não ter projeção política. Cabe aqui lembrar como exemplo positivo o do governo do Amazonas e seu secretário da educação e da cultura.

Muitas dessas dificuldades decorrem das próprias condições e do desenvolvimento do ensino e da pesquisa no Brasil, de modo que se espera que muitas delas sejam supe-radas com o decorrer dos anos.

Certamente o êxito dos materiais aqui apresentados provém do fato deles serem decor-rentes de pesquisas e da incorporação do vasto acervo de conhecimentos internacio-nais disponíveis na área, alguns dos quais foram particularmente úteis no processo de tomada de decisão determinando opções como, por exemplo, o uso de figuras não coloridas. Além disso, como há respeito ao mundo cultural e psicológico da criança, já era de se esperar este resultado, possibilitando ainda ao professor uma fácil adaptação à realidade particular de seus alunos. Outra fonte a contribuir é a existência de um con-tacto individual e frequente do professor com o aluno como exigência da utilização deste tipo de material. Finalmente vale destacar que muito há que ser feito na reali-dade brasileira antes que índices de alfabetização compatíveis com os dos países mais desenvolvidos possam ser efetivamente alcançados. Estas necessidades vão desde pesquisas básicas até o treinamento e formação de professores, passando pela própria construção de escolas. As universidades brasileiras têm aqui um papel relevante que deve ser assumido de forma mais sistemática, indo além do esforço isolado de pesquisa-dores ou da realização de encontros e eventos. Só assim poderá integrar-se à realidade e contribuir para um desenvolvimento efetivo do país.

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Programa Alfa

Maria Inês Silveira Bueno Casa Alfa (SP)

Afinal, o papel central da escola é formar ou informar os alunos? A ênfase do ensino deve estar na transmissão dos conteúdos de diferentes áreas do saber humano ou no processo que fundamenta o próprio conhecimento?

Essa antiga preocupação assume novas proporções à medida que se aceleram as mudan-ças no mundo moderno. É cada vez mais importante preparar a criança para viver, con-tinuamente, as novas experiências que lhe são colocadas. É cada vez mais necessário ensiná-la a pensar, a aprender.

A escola não pode mais resumir seus objetivos na transmissão de conteúdos, por mais essenciais que estes possam parecer. Espera-se que ela consiga mostrar à criança a estru-tura e o processo do próprio conhecimento, dando-lhe flexibilidade e versatilidade sufi-cientes para compreender e se adaptar a cada nova situação. Por isso, uma aprendi-zagem sólida e eficiente precisa estar centrada nos processos cognitivos: o aluno precisa ser preparado para usar os recursos do processo de conhecimento, sabendo assim utili-zar sua capacidade de raciocínio de modo eficaz para aplicar cada aprendizado a novas situações.

O Programa Alfa nasceu de uma séria pesquisa junto à rede oficial de ensino, sobre reprovação e evasão, asssim como da discussão dos mecanismos psiconeurologicos envolvidos na aprendizagem e das propostas metodológicas para o ensino fundamental. Quatro princípios básicos resumem a proposta teórica de Alfa:

— centrar o currículo nas funções psiconeurológicas e nas operações cognitivas que são a base fundamental do processo de alfabetização (discriminar, comparar, relacionar, classificar etc);

— enfatizar mais o processo de aprendizagem, de compreensão e formulação do conhe-cimento do que os conteúdos, considerando que ensinar a aprender é mais impor-tante que ensinar determinadas coisas;

— estimular o enriquecimento da linguagem, da capacidade de expressão oral e escrita, uma vez que o desenvolvimento do raciocínio está intimamente ligado ao desenvol-vimento da linguagem;

— desenvolver o autoconceito da criança, motivando-a a aprender e levando-a a adqui-rir e expressar comportamentos próprios, independentes.

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AS ÁREAS DE ALFA

O Alfa é um programa integrado, progressivo e cumulativo: numa nova proposta curri-cular, integra horizontalmente, numa única linha didática e metodológica, todas as áreas que compõem os currículos oficiais. Propõe, também, uma integração vertical, pois cada série (Alfa Um, Dois e Três) retoma e amplia os conteúdos da série anterior, numa sequência gradativa — do mais simples para o mais complexo, do concreto para o abstrato.

ÁREAS INTEGRADAS

Como os conteúdos são apresentados de modo integrado, eliminam-se as rígidas barrei-ras entre as áreas, para reuni-las em grandes grupos: Linguagem, Matemática e Solução de Problemas.

As atividades da área de Linguagem têm por objetivo tornar o aluno capaz de se comu-nicar com segurança e desenvoltura, oralmente e por escrito.

A capacidade de se expressar livremente é uma habilidade de sobrevivência indispensá-vel ao desempenho de atividades na vida prática. Para tanto, desenvolvem-se inicial-mente exercícios e atividades voltados para o treino das funções psiconeurológicas e operações cognitivas indispensáveis tanto ao aprendizado da leitura e da escrita, como ao desenvolvimento do raciocínio matemático. Assim é que todo o trabalho de intro-dução visa ao mesmo tempo preparar o aluno para Linguagem e Matemática.

Ainda falando de Linguagem, é importante ressaltar que a alfabetização inicia-se com material concreto, manipulado pelo aluno, tomando por base o universo vocabular das próprias crianças - uma vez que trabalha com palavras sugeridas pela classe, numa didática que favorece a motivação e o fortalecimento do autoconceito positivo. A leitura também tem lugar de destaque no Programa Alfa, como recurso para fixar a alfabetização, desenvolver a capacidade de expressão e enriquecer o vocabulário. Além dos textos contidos nos livros de exercícios, a partir de Alfa Dois e também em Alfa Três existe uma biblioteca para a classe, com dicionário e livros de literatura brasileira para crianças. Também a partir de Alfa Dois todas as noções indispensáveis ao uso cor-reio e fluente da língua começam a ser sintetizadas por meio de exercícios orais e escri-tos, de maneira agradável e divertida, sem exigir a memorização repetitiva de regras e exceções, mas usando a gramática como instrumento para uma comunicação mais efi-ciente. Por outro lado, a comunicação escrita, a redação, desenvolve-se através de exer-cícios constantes, variados, que permitem à criança expressar também sua imaginação criadora.

Na área de Matemática, os conceitos fundamentais são apresentados de modo estimu-lante, com muito material concreto para as crianças manipularem e, por meio da mani-pulação, perceberem suas propriedades. Cada uma das atividades visa ensinar o aluno a pensar, solucionar problemas e aprender a utilizar os conceitos para novas aprendiza-gens — adaptando assim sua capacidade de raciocínio matemático às situações da vida prática. Desse modo, as relações e operações matemáticas, trabalhadas a partir do con-creto, são compreendidas e assimiladas conceitualmente, enquanto são treinadas as téc-nicas operacionais que delas decorrem.

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A habilidade de solucionar problemas é uma operação cognitiva que recebe atenção central da didática do Programa Alfa. Tanto que as atividades que envolvem as técni-cas de tornar cada conhecimento autopossuído — aprender a pensar, desenvolver um comportamento crítico e autoconhecido — são apresentadas fundamentalmente na área de Solução de Problemas. Nessa área, além de se trabalharem os conteúdos de Ciências, Estudos Sociais, integradamente com Linguagem e Matemática, há ênfase no crescimento da capacidade de tomar decisões, posicionar-se diante do mundo e agir segundo o raciocínio científico: observar, classificar e planejar. Essas habilidades são também desenvolvidas nas atividades de comunicação, que incentivam a livre verbali-zação e ajudam a desenvolver a linguagem oral, ampliando o vocabulário, estimulando comportamentos de cooperação, reforçando o autoconceito positivo — ao lado do desenvolvimento de conteúdos de Ciências, Estudos Sociais, Matemática e Gramática.

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Formação de Recursos Humanos para a Educação Pré-escolar — Aperfeiçoamento de Pessoal em

Serviço com Vistas à Implantação do PROEPRE

Orly Zucatto Mantovani de Assis Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

INTRODUÇÃO

0 PROEPRE é um programa de educação pré-escolar destinado a favorecer o desenvol-vimento global das crianças de 3 a 7 anos de idade, em seus aspectos: afetivo cognitivo, social e perceptivo-motor. Ele foi aplicado inicialmente, em caráter experimental, em escolas de Campinas — SP, durante os anos de 1974 e 1975, através da pesquisa "Estudo sobre a Relação entre a Solicitação do Meio e a Formação da Estrutura Lógica no Comportamento da Criança". Essa pesquisa tinha por objetivo verificar se crianças de 5 e 6 anos de idade apresentam progresso no desenvolvimento intelectual quando submetidas a um programa de estimulação na pré-escola. Os resultados obtidos mos-tram que 80,87% dos sujeitos submetidos ao programa de estimulação pertencentes ao grupo experimental passaram para um estágio de desenvolvimento mais avançado (estágio operatório concreto), enquanto que nenhum dos sujeitos pertencentes ao grupo controle, os quais foram submetidos aos programas comuns das escolas que fre-quentavam, atingiu tal estágio. A análise estatística da variável nível socioeconómico demonstrou que os resultados obtidos pelas crianças pertencentes a níveis socioeconó-micos mais baixos (1 e 2) foram iguais àqueles obtidos pelas crianças pertencentes a níveis socioeconómicos mais altos (3 e 4). Tais resultados demonstram que em condi-ções educacionais adequadas, crianças de diferentes níveis socioeconómicos não apre-sentam diferenças estatisticamente significativas em seus desempenhos. Posterior-mente, de 1976 a 1978, o PROEPRE foi implantado em classes pré-escolares munici-pais, da periferia urbana de Campinas — SP, tendo sido obtidos resultados semelhantes.

A partir de 1980, o MEC, através da Coordenadoria de Educação Pré-Escolar (COEPRE), em convénio com a Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas, vem desenvolvendo o projeto "Formação de Recursos Humanos para a Edu-cação Pré-Escolar" — Aperfeiçoamento de Pessoal em Serviço com Vistas à Implanta-ção do PROEPRE. Como o próprio nome indica, este projeto visa aperfeiçoar os pro-fessores em serviço, a fim de capacitá-los a aplicar o nosso programa. Participaram do referido projeto, em sua primeira etapa (12/80 a 12/81), 200 professores e especia-listas em educação pré-escolar do Distrito Federal e dos Estados de Minas Gerais, Per-nambuco e Rio de Janeiro.

Em sua segunda etapa, no decorrer de 1982, o citado projeto foi desenvolvido na Uni-versidade Federal de Uberlândia (MG) envolvendo 60 professores e especialistas em educação pré-escolar, dos quais 36 exerciam suas funções na Escola Nossa Casinha,

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frequentada por crianças de 3 a 7 anos, filhas de funcionários e professores daquela Universidade. O PROEPRE, atualmente, está sendo aplicado em todas as classes da Escola Nossa Casinha. Além disso, uma equipe daquela Universidade, que participou do projeto de formação, em 1982, está agora multiplicando o mesmo para outros professores.

Considerando a relevância do referido projeto para o aperfeiçoamento dos 58 educadores que dele participaram no Distrito Federal no período de 1980 a 1981, bem como para o progresso alcançado pelos pré-escolares alunos desses professores, o Departamento Geral de Pedagogia da Fundação Educacional resolveu proporcionar a 300 professores e especialistas que atuam na pré-escola da rede oficial do Distrito Federal a oportunidade de se capacitarem para implantar o PROEPRE.

No corrente ano, a equipe da Encarregadoria de Educação Pré-Escolar daquela Fundação está desenvolvendo o Projeto de Formação de Recursos Humanos para a Educação Pré-Escolar, agora já sem a nossa ajuda, envolvendo 126 professores de seu sistema escolar.

De 1980 até dezembro de 1982, aproximadamente 560 professores participaram do projeto de implantação do PROEPRE desenvolvido diretamente sob nossa coordenação.

Tendo em vista os resultados obtidos com a implantação de nosso programa em âmbito nacional, o MEC, através da COEPRE, decidiu pela sua expansão envolvendo mais 10 Unidades da Federação: Alagoas, Amazonas, Amapá, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso do Sul, Paraíba, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Sergipe. Desta terceira etapa do Projeto de Formação de Recursos Humanos para a Educação Pré-Escolar estão participando aproximadamente 550 professores.

OBJETIVOS

Objetivo Geral: formação de recursos humanos em serviço para a implantação do PROEPRE.

Objetivos Específicos: criar as condições necessárias para que os elementos envolvidos possam:

1. compreender a importância da educação pré-escolar para o desenvolvimento da criança;

2. compreender os pressupostos filosóficos e sociológicos que orientam a implantação do PROEPRE;

3. compreender os pressupostos teóricos da psicologia genética de Jean Piaget nos quais o PROEPRE se fundarnenta;

4. formar atitudes pedagógicas que reflitam coerentemente os princípios da teoria piagetiana, subjacentes a todas as atividades do PROEPRE;

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5. adquirir habilidades técnicas para aplicação adequada do PROEPRE a fim de esti-mular o desenvolvimento global da criança em seus aspectos cognitivo, afetivo-social e perceptivo-motor;

6. ser capazes de adaptar as sugestões apresentadas no PROEPRE às características e necessidades do pré-escolar das diferentes regiões;

7. ser capazes de planejar, criar, inovar e experimentar outras situações pedagógicas com os recursos de que dispõem, enriquecendo e ampliando, consequentemente, o conjunto de atividades sugeridas pelo PROEPRE;

8. adquirir habilidades técnicas para avaliar se o processo de desenvolvimento da crian-ça está se orientando no sentido da realização plena de suas possibilidades.

SISTEMÁTICA DE TRABALHO

O Projeto de Formação de Recursos Humanos para a Educação Pré-Escolar — Aper-feiçoamento de Pessoal em Serviço com Vistas à Implantação do PROEPRE — se desenvolve através de cursos e atividades de supervisão direta.

São quatro cursos com a duração de 240 horas distribuídas no decorrer de um ano. O primeiro curso, com 80 horas de duração, tem como conteúdo os fundamentos teóri-cos do programa. Geralmente esse curso é realizado em dezembro.

Em fevereiro do ano seguinte os professores participam do segundo curso, com 40 horas de duração e recebem as orientações práticas para a aplicação da primeira fase do PROEPRE durante o primeiro semestre letivo.

O terceiro curso é realizado em julho, tem 80 horas de duração e seu conteúdo princi-pal é a avaliação do desenvolvimento da criança e as orientações práticas para aplica-ção da segunda fase do programa.

Finalmente, em dezembro realiza-se o quarto curso, com 40 horas, quando é feita uma retomada teórica e prática dos conteúdos já abordados, bem como a análise de outros tópicos muito importantes, tais como o envolvimento dos pais, administradores e supervisores.

Na metade do primeiro e também do segundo semestre é realizada a supervisão direta do trabalho que o professor está realizando em sua classe.

A sistemática adotada nesse projeto foi constantemente orientada por duas premissas básicas, decorrentes da própria realidade educacional brasileira: o caráter de ação suple-tiva do MEC no setor em que se dispôs a atuar e o reconhecimento e respeito pela diversidade e peculiaridade de cada Unidade da Federação que se propôs a adotar o PROEPRE. Neste sentido, pode-se afirmar que a implantação desse programa foi sem-pre conduzida levando-se em consideração a autonomia das Unidades Federadas que dele participaram e participam de forma criativa, abandonando-se a priori qualquer possibilidade de se incorrer na proposição de um modelo único e inflexível de atuação na área de educação pré-escolar. Pelo contrário, o objetivo mais amplo dessa atuação foi o de conseguir, a médio prazo, a auto-suficiência das Secretarias de Educação na implementação do programa, fato este que se concretizou quando equipes de especia-

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listas e professores passaram a desenvolver o seu próprio programa de formação de professores para a implantação do PROEPRE, multiplicando assim o número de classes em que o mesmo está sendo aplicado. Como é o caso já citado do Distrito Federal e de Minas Gerais, em que a Secretaria de Educação está capacitando professores de várias delegacias de ensino do interior, a Secretaria de Educação Municipal está fornecendo cursos de aperfeiçoamento aos seus professores, o mesmo acontecendo com o SESIMINAS e com o Instituto da Criança, que é uma instituição particular.

Até aqui tentamos descrever em linhas gerais o projeto de formação de professores aos que se interessam em conhecer e implantar o PROEPRE. A segunda parte deste trabalho será dedicada a explicitar seus objetivos, caracterfsticas, princípios pedagógicos, atividades e a estrutura de um dia de aula do programa.

PROGRAMA DE EDUCAÇÃO PRÉ-ESCOLAR - PROEPRE

Apresentação

O Programa de Educação Pré-Escolar (PROEPRE) tem como objetivo geral o desenvolvimento do pré-escolar em seus aspectos cognitivo, social, afetivo e perceptivo-motor. Ele foi organizado de modo a enfatizar igualmente todos esses aspectos, visto que o que se pretende é o desenvolvimento global e harmonioso da criança de 3 a 7 anos.

O PROEPRE se fundamenta na concepção de homem como um ser livre, capaz de se auto-construir, compreendido como um "ser-no-mundo" comprometido com a construção de si mesmo (história individual), atuante e engajado na sociedade da qual participa (história social). O ser humano definido pela soma total de suas ações, é, portanto, responsável por elas, pois sempre lhe é posssível escolher dentre as alternativas que se lhe apresentam e agir em função da escolha feita; assim sendo, ele nada mais é senão aquilo que faz.

Essa concepção deve se refletir na formulação dos objetivos, na metodologia e nos pro-cedimentos de avaliação utilizados no PROEPRE e, sobretudo, na atitude do educador que desenvolve esse programa.

No que se refere a sua meta final, o PROEPRE pretende contribuir para a formação de pessoas criativas, inventivas e descobridoras, que sejam capazes de criticar, comprovar e não aceitar sem refletir tudo o que lhes é proposto. Pessoas que sejam capazes de pensar a realidade em que vivem e transformá-la; que sejam livres para exercer sua liberdade e autonomia de acordo com os valores sociais e morais que consideram válidos porque tiveram a oportunidade de reconstrui-los. Como se vê, o que se propõe não é uma educação conformista, nem tampouco uma educação orientada segundo os preceitos do laissez-faire. Ao contrário, de acordo com os princípios do PROEPRE, é preciso .criar-se na pré-escola um ambiente físico e social que, desde cedo, encoraje a autonomia, uma vez que se pretende formar personalidades intelectual e moralmente autónomas. Não se pode esperar conseguir isso se as crianças, nos seus primeiros anos, viverem submetidas a pressões e coerções impostas por aqueles que são os responsáveis pela sua educação. É muito difícil que as crianças, de um momento para outro, comecem a ter iniciativa e autonomia, sem terem tido anteriormente a oportunidade de decidir, escolher, opinar, criticar, dizer o que pensem e sentem.

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A educação pré-escolar que propomos tem como objetivo o desenvolvimento da criança. A convicção de que se pode interferir nesse desenvolvimento de maneira a favorecê-lo está subjacente a esse objetivo. Essa convicção não resulta apenas de uma crença, mas sobretudo dos dados obtidos em nossa pesquisa, através da qual ficou com-provado que as crianças submetidas ao PROEPRE apresentam nítido progresso no desenvolvimento.

A tarefa da educação pré-escolar é a de ajudar a criança a construir a sua personali-dade e a sua inteligência, ou seja, ajudar a criança a se desenvolver. Como se pode observar, esta tarefa é bem mais ampla do que a de preparar a criança para a escola de primeiro grau. Na medida em que a criança se desenvolve, sua capacidade de apren-der também aumenta. Assim sendo, se a pré-escola oferece os estímulos necessários para que a criança se desenvolva, consequentemente suas possibilidades de enfrentar com êxito a escola de primeiro grau são maiores.

OBJETIVOS DO PROEPRE

Os objetivos do PROEPRE foram formulados a partir dessas visões de homem e de educação e têm por fundamento a teoria de Piaget. Esses objetivos refletem nosso posi-cionamento sobre a natureza da aprendizagem, da inteligência, da afetividade, da socialização, e sobre o valor da educação. Eles visam ao desenvolvimento da criança como um todo, uma vez que o desenvolvimento cognitivo é inseparável do desenvolvi-mento social, moral e afetivo.

Aspecto Cognitivo

As estruturas cognitivas ou estruturas da inteligência resultam de um processo de cons-trução lenta e gradual que vai do nascimento até a adolescência. Nesse processo de construção distinguem-se estágios que marcam o aparecimento de estruturas sucessiva-mente construídas. Cada estágio se caracteriza pelo aparecimento de estruturas origi-nais, qualitativamente distintas das que as precederam e das que irão sucedê-las.

A construção das estruturas cognitivas depende das solicitações ou estimulações do meio no qual o ser humano está inserido. Assim sendo, esse processo de construção poderá ser retardado ou acelerado conforme o meio em que a criança vive.

Compete à educação pré-escolar criar um ambiente rico em estímulos adequados para promover o desenvolvimento da criança no aspecto cognitivo.

Piaget (1975, p. 65) enfatiza a importância do ambiente pré-escolar oferecer os estímu-los de que a criança precisa para se desenvolver quando afirma: "(...) é evidente que a criança pode beneficiar-se enormemente se conta com um ambiente apropriado em que pode atuar com certo grau de espontaneidade e liberdade com os materiais adequados, porque o lar raras vezes lhe oferece material suficiente para seu pleno desenvolvimento. Este material deve ser de natureza tal que possa ser classificado, seriado, enumerado, disposto em forma geométrica ou espacial; em síntese, qualquer coisa que possa servir à criança para a formação das operações lógico-matemáticas que começarão a desen-volver-se de maneira sistemática aos 7 ou 8 anos".

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O PROEPRE destína-se às crianças de 3 a 7 anos que se encontram teoricamente no estágio pré-operatório ou intuitivo. Espera-se que tais crianças submetidas a esse pro-grama atinjam o estágio das operações concretas no final da pré-escola.

Os objetivos referentes ao aspecto cognitivo do desenvolvimento podem ser assim for-mulados:

Criar as condições de estimulação adequada para que a criança:

a) interaja com os objetos a fim de conhecê-los através da ação;

b) estruture progressivamente os dados da realidade organizando-os de maneira a adquirir o conhecimento físico, o conhecimento lógico-matemático e o conheci-mento social; e

c) amplie a capacidade de expressar o seu pensamento (função semiótica ou simbó-lica).

Aspecto Afetivo

Existe um estreito paralelismo entre o desenvolvimento dos aspectos cognitivo e afeti-vo, visto que eles são indissociáveis em cada ação. Em todo comportamento, as motiva-ções, o dinamismo energético, constituem o aspecto afetivo, enquanto que as estra-tégias empregadas constituem o aspecto cognitivo. Cognição e afetividade são insepará-veis. Desta forma, não há uma ação puramente intelectual, pois nela intervêm em graus diversos os sentimentos, os valores, assim como também não há ações puramente afetivas, já que o amor supõe o conhecimento.

No desenvolvimento da afetividade também se distinguem estágios. A criança pré-esco-lar se situa no estágio dos afetos intuitivos, cujas características são o aparecimento das relações afetivas interindividuais de simpatias e antipatias e dos sentimentos de inferioridade e superioridade. Espera-se que no final da pré-escola os afetos intuitivos tenham se transformado em afetos normativos, cujo protótipo é constituído pelos sentimentos morais autónomos, com intervenção da vontade.

Para favorecer o desenvolvimento da criança no aspecto afetivo é preciso que se crie na pré-escola um ambiente livre de tensões e coerções, no qual a criança possa escolher, decidir, opinar, manifestar livremente seus sentimentos e emoções. Para isso o relacio-namento professor-aluno deverá ser baseado no respeito mútuo, no afeto e na con-fiança.

À criança deverá ser dada a oportunidade de satisfazer sua curiosidade natural, seus interesses e valores, a fim de que ela seja capaz de iniciar as atividades e perseverar nelas • até conclui-las, realizando-as com prazer. Além disso o ambiente escolar deverá estimular a criatividade.

Os objetivos referentes ao aspecto afetivo são criar as condições adequadas para que a criança:

a) sinta-se aceita e compreendida;

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b) confie nas pessoas que a cercam, sentindo-se segura ao lado delas;

c) expresse seus sentimentos e emoções; e

d) seja independente, curiosa, criativa, tenha iniciativa e responsabilidade.

Aspecto Social

As estruturas do pensamento pré-operatório excluem as relações sociais de cooperação. A criança desse estágio oscila entre o egocentrismo deformante e a aceitação passiva das influências intelectuais; em consequência disso, não há trocas sociais baseadas na reciprocidade.

A moral da criança pré-escolar é essencialmente heterónoma, pois depende da vontade exterior dos adultos que ela valoriza e respeita. As regras impostas por eles são consideradas intocáveis.

Compete à pré-escola criar um ambiente favorável à interação social da criança com seus pares e com os adultos, a fim de que ela desenvolva a capacidade de cooperar e se conduza em direção à autonomia moral baseada no respeito mútuo, na solidariedade, na reciprocidade. Espera-se que no final da pré-escola a criança se liberte do pensamento egocêntrico que representa um empecilho às atividades cooperativas. Isso acontece quando as estruturas do pensamento intuitivo se transformam em estruturas operatórias.

Os objetivos do PROEPRE no que se refere ao aspecto social são criar condições adequadas para que a criança:

a) interaja com seus pares;

b) interaja com adultos;

c) aprenda normas de conduta que regem a interação social; e

d) conquiste a autonomia tornando-se apta para a cooperação e construindo normas e valores próprios.

Aspecto Perceptivo-Motor

À medida que a criança cresce suas habilidades motoras vão se aperfeiçoando e ampliando. Depois dos primeiros passos seu andar se torna cada vez mais firme e desenvolto. Aos 3 anos, quando caminha já não bamboleia, corre bem, sobe e desce escadas facilmente. No final da idade pré-escolar pula corda, salta agilmente sobre os dois pés ou sobre um pé só.

Durante os anos pré-escolares a coordenação motora progride sensivelmente. Por volta de 5-6 anos, a criança segura corretamente os talheres e o lápis, agarra bolas pequenas e as arremessa na direção certa, torna-se capaz de vestir-se sozinha, de amarrar seus sapatos, de fazer desenhos e traçados com o lápis, segurando-o corretamente.

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O progresso no aspecto perceptivo-motor do desenvolvimento determina a crescente independência da criança. Para que isso aconteça é necessário que sua coordenação mo-tora seja suficientemente desenvolvida, de tal maneira que ela possa, por exemplo, alimentar-se, banhar-se e vestir-se sozinha.

No que se refere ao aspecto perceptivo-motor, os objetivos do PROEPRE são criar con-dições adequadas para que a criança:

a) desenvolva a habilidade de fazer com os músculos aquilo que deseja ou pensa fazer (coordenação voluntária dos grandes músculos); e

b) desenvolva a habilidade de fazer com suas mãos aquilo que deseja ou pensa fazer (coordenação voluntária dos pequenos músculos).

CARACTERÍSTICAS DO PROEPRE

O PROEPRE destina-se a favorecer o desenvolvimento da criança. Os seus objetivos, atividades e conteúdo são inspirados na teoria de Piaget. As estratégias e procedimen-tos pedagógicos empregados no desenvolvimento desse programa, bem como a atitude do educador responsável por ele, devem refletir coerentemente os pressupostos desta teoria. O PROEPRE foi organizado de maneira a propiciar à criança uma grande varie-dade de experiências que estimulem sua atividade espontânea, condição indispensável para seu desenvolvimento. A fim de atender às necessidades e características peculiares das crianças dos diferentes meios sócio-econômico-culturais, o nosso programa apresen-ta uma estrutura flexível podendo, portanto, ser adaptado às diferentes regiões em que está sendo implantado. Além disso, o PROEPRE pode utilizar material pedagógico sim-ples proveniente de recursos disponíveis na comunidade e ser desenvolvido tanto em escolas comuns como em ambientes improvisados.

Para efeitos de organização do PROEPRE foram formulados os objetivos gerais e espe-cíficos e as atividades relativas a cada aspecto do desenvolvimento. Entretanto, é pre-ciso lembrar que a criança é um todo e quando um aspecto de seu desenvolvimento está sendo focalizado, os outros aspectos também estão. Em outras palavras, os dife-restes aspectos do desenvolvimento estão simultaneamente presentes em todas as ativi-dades. Contudo, ao organizarmos o programa da maneira como o fizemos, pensamos que seria útil à professora saber qual o aspecto predominante do desenvolvimento esti-mulado por uma determinada atividade. Para explicitar daremos um exemplo: quando a criança aprende a dar laços e nós, o aspecto predominante é o cognitivo (conheci-mento lógico-matemático: estruturação do conceito de espaço), mas a criança que está aprendendo a dar nós também está, ao mesmo tempo, desenvolvendo a coordenação motora (aspecto perceptivo-motor). Além disso, a criança envolve-se afetivamente na atividade que está realizando e se esta lhe causa prazer, mesmo que encontre algumas dificuldades, tenta superá-las até conseguir êxito. O interesse, o esforço com que a .criança realiza a atividade são evidências de que o aspecto afetivo também está sendo estimulado.

Essa inter-relação também existe dentro de um mesmo aspecto. Por exemplo: a ativi-dade de construir com blocos estimula ao mesmo tempo o conhecimento físico, o conhecimento lógico-matemático, o conhecimento social e a função simbólica. Cremos ser inútil dar outros exemplos dessa inter-relação, pois a professora terá oportunidade de percebê-la a todo instante no dia-a-dia escolar e desde o momento em que

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começar a analisar o PROEPRE. As atividades foram elaboradas com vistas à predomi-nância de um determinado conhecimento ou aspecto do desenvolvimento.

Ao se deparar com as atividades planejadas para cada espécie de conhecimento ou para cada aspecto do desenvolvimento, o educador poderá constatar que elas são muito semelhantes às de outros programas. Mas atrás dessa aparente semelhança existem pres-supostos teóricos que se traduzem, muitas vezes, no modo de conduzir as diferentes experiências para a criança e na prática pedagógica empregada para favorecer o seu desenvolvimento. São, portanto, os procedimentos pedagógicos e os objetivos que dife-renciam fundamentalmente o PROEPRE de outros programas.

PRINCÍPIOS PEDAGÓGICOS

Os princípios pedagógicos que devem orientar a implantação do PROEPRE são os se-guintes:

1. O conhecimento se adquire por um processo de construção e não por absorção e acumulação de informações vindas do mundo exterior. Consequentemente, os mé-todos diretos de ensino não são usados no PROEPRE, pois as explicações elabora-das verbalmente ou as demonstrações são ineficientes quando se trata de ajudar a criança a descobrir ou reinventar o conhecimento. Em vez de ensinar, a professora do PROEPRE deve encorajar a criança a fazer suas próprias perguntas e a respondê-las por sua própria iniciativa e capacidade de invenção. É preciso cuidado para não cair no outro extremo, ou seja, limitar-se a observar passivamente a criança, sem interferir no processo de aquisição de seu conhecimento. A intervenção oportuna do educador é necessária para suscitar problemas úteis à criança, para fazê-la refle-tir sobre suas próprias conclusões e até mesmo para fazê-la duvidar delas.

2. A construção das estruturas da inteligência segue uma sequência invariável e idênti-ca para todas as crianças de todas as culturas. As atividades do PROEPRE foram elaboradas de modo a respeitar a ordem sequencial de construção dessas estruturas. Se quisermos favorecer o desenvolvimento da criança é preciso deixá-la passar por todos os estágios de acordo com seu próprio ritmo, sem tentar fazê-la queimar etapas.

3. A construção das estruturas da inteligência se dá através do processo de equilibra-ção. As atividades do PROEPRE foram organizadas de modo a provocar perturba-ções e conflitos cognitivos que desencadeiam esse processo. Trata-se basicamente de criar situações que suscitam problemas e desafiam o pensamento da criança e, consequentemente, geram conflitos cognitivos. Para resolvê-los é preciso realizar sucessivas equilibrações que conduzem à construção de novas estruturas.

4. A ação sobre os objetos e a interação social são indispensáveis para a constituição da lógica do pensamento infantil. As atividades do PROEPRE foram organizadas de maneira a propiciar atividades reais e trocas sociais que possibilitem a conquista da lógica operatória.

Tendo em vista esses princípios pedagógicos é importante ressaltar que o sucesso da implantação do PROEPRE depende, principalmente, da atitude do educador que cria situações propícias para favorecer o desenvolvimento da criança. Interagir com a crian-ça de maneira a fazê-la testar suas próprias hipóteses e colocar questões que a façam

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duvidar de suas próprias conclusões, é uma arte para a qual não há receitas. A todo mo-mento é preciso que o educador reflita sobre seus atos a fim de verificar se está agindo de acordo com os pressupostos da teoria piagetiana que inspiram o PROEPRE.

ESTRUTURA DE UM DIA DE AULA

Um dia de aula do nosso programa comporta diferentes tipos de atividades dependen-do dos objetivos que estão sendo focalizados. Há períodos de atividades diversifica-das, de atividades coletivas, de atividades independentes e de atividades individuais.

1. Atividades diversificadas: A maior parte do tempo as crianças se dedicam a ativida-des diversificadas livremente escolhidas, constroem com blocos ou sucata, brincam com água e areia, jogam bola, correm, pulam corda etc. Essas atividades são realizadas individualmente ou em grupo. Nosso programa valoriza as atividades em grupo porque constituem um meio de propiciar a interação social e a cooperação. Durante essas atividades a professora observa as crianças e intervém oportunamente para explorar o que elas estão fazendo.

2. Atividades coletivas: Essas atividades, dependendo do número de alunos, são reali-zadas pela classe toda sob a orientação da professora. Comer a merenda, arrumar a classe, ouvir estórias, cantar etc. são exemplos de atividades que podem ser realiza-das pela classe toda.

3. Atividades individuais: No momento dessas atividades a professora trabalha indivi-dualmente com cada criança enquanto as outras realizam atividades diversificadas.

4. Atividades independentes: Num pequeno espaço de tempo que pode ir aumentando progressivamente, as crianças trabalham individualmente ou em grupo sem solicitar a atenção da professora.

Com exceção da atividade coletiva, as demais atividades podem ser realizadas simulta-neamente. Nas classes muito numerosas as atividades coletivas apresentam alguma difi-culdade. Nesse caso, a professora poderá dividir os alunos em três ou quatro grupos e trabalhar com um grupo de cada vez, enquanto as mães ou auxiliares se responsabili-zam pela orientação dos outros grupos.

O dia escolar pode ter uma rotina ou não. Alguns educadores preferem estabelecer horários fixos para a realização de algumas atividades, por exemplo, as atividades no pátio são realizadas antes da merenda, ouvir estórias no final do período. Outros preferem utilizar o tempo de maneira mais flexível em que as diferentes atividades são realizadas em horários variados. Há ainda aqueles que preferem que as crianças tomem o lanche juntas, todos os dias, à mesma hora. Outros preferem que a hora da merenda seja flexível para que as crianças não interrompam um jogo no qual estão interessadas porque têm que merendar. Tais detalhes ficam a critério das professoras e da escola. Convém lembrar que as decisões tomadas a favor ou contra uma maior ou menor flexibilidade do horário das rotinas diárias devem ser baseadas nos objetivos educacionais que se tem presentes.

Ao planejar o seu dia escolar e ao selecionar seus objetivos, a professora deverá obser-var se está enfatizando igualmente todos os aspectos do desenvolvimento.

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Recomendamos que algumas atividades tais como: planejamento do trabalho diário, arrumação e limpeza da sala no final do período, avaliação individual e coletiva, lavar as mãos antes da merenda e escovar os dentes depois, sejam realizadas diariamente.

AS ATIVIDADES

As sugestões de atividades apresentadas para os diferentes objetivos não são rígidas. Elas devem servir apenas de orientação para o educador, pois a maneira de encaminhá-las depende das respostas dadas pela criança. Assim sendo, uma mesma atividade pode variar de criança para criança e de professora para professora.

Ao propor uma atividade para a criança a professora deverá partir, na maioria das vezes, do que ela está fazendo. Desta forma, se a criança estiver fazendo classificações de objetos, a professora poderá propor-lhe, por exemplo, que inclua outros elementos nas coleções já feitas. Assim é possível assegurar que naquele momento a criança está motivada para fazer classificações.

Ao planejar as atividades que serão desenvolvidas a professora precisa ter presente os objetivos que pretende atingir com aquela atividade. A Seleção das atividades é determinada por esses objetivos.

Na sua interação com a criança a professora precisa ter cuidado para não induzir suas respostas. Convém ressaltar também que as respostas erradas não devem ser corrigidas. A professora poderá fornecer novos elementos, a partir dos quais a criança poderá ou não reformular seu pensamento. Da mesma forma, quando a criança dá respostas certas é necessário colocar contra-argumentos que permitam verificar até que ponto ela está convicta ou não.

Convém insistir que os procedimentos sugeridos para cada atividade devem servir de ideias, diretrizes, e de maneira alguma podem ser usados como receitas. Não há "receitas pedagógicas" para um programa piagetiano. O professor que utiliza o PROEPRE deve encontrar um meio de colocar à disposição de seus alunos uma grande variedade de material, encorajá-los a serem ativos e curiosos, responder às suas necessidades afe-tivas, favorecer a interação social entre eles e criar condições favoráveis ao seu desenvolvimento motor.

Referências Bibliográficas

ALMY, Millie. La tarea dei educador preescolar. Trad. por Luis Justo. Buenos Aires, Marymar, 1977.

KAMII. Constance & DEVRIES, Rheta. A teoria de Piaget e a educação pré-escolar. Trad. por José Morgado. Lisboa Sociacultur, s. d.

ASSIS, Orly Z. Mantovani de. Estudo sobre a relação entre a solicitação do meio e a formação da estrutura lógica no comportamento da criança. Campinas, UNICAMP/ INEP, 1977.

_____________Uma nova metodologia de educação pré-escolar. São Paulo, Pioneira, 1979.

PIAGET, Jean. et alii. Los anos postergados; a primeira infância. Buenos Aires, Paidós-Unicer. 1975.

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O Projeto de Alfabetização de Mogi das Cruzes - PROLESTE

Sérgio António da Silva Leite Universidade de Mogi das Cruzes

Ao se analisar a realidade do ensino de primeiro grau na rede pública, um dos problemas mais relevantes relaciona-se com os resultados observados na primeira série, onde os objetivos estão centrados na alfabetização das crianças. Dados recentes demonstram que no Brasil, da população total matriculada na primeira série, somente 40 a 45% alcançam a segunda série no ano seguinte, sendo as principais causas os altos índices de reprovação, seguida da "evasão escolar".

Vários autores já analisaram a questão da seletividade no ensino brasileiro. Num desses trabalhos1, R. M. Almeida, M. H. S. Patto, B. Gatti e M. L. Costa propuseram-se a detectar as causas da reprovação na primeira série, chegando a conclusões surpreendentes: pela comparação dos resultados entre alunos repetentes e não repetentes não se detectaram variáveis físicas ou psicológicas que isoladamente explicassem a reprovação; ao contrário, desmistifícaram-se alguns preconceitos como deficiências físicas ou biológicas, desintegração de lares, retardo intelectual e falta de prontidão, os quais são frequentemente utilizados como explicação do fracasso escolar. Concluíram os autores que a principal causa da reprovação está na maneira como a escola trata a pobreza: não há um esforço de adaptação às condições dos alunos pobres, sendo os instrumentos e estratégias de ensino mais adaptados às crianças de origem socioeconó-mica mais elevada. Com isso a escola promove os mais privilegiados e marginaliza os menos favorecidos, utilizando as "deficiências e causas individuais" como "bodes expiatórios" de um sistema escolar que ainda não se propôs a uma auto-avaliação.

Diante desses dados, qualquer intervenção planejada para a rede de ensino público deve ser precedida de uma minuciosa análise das reais condições que mantêm o comportamento dos indivíduos envolvidos e as práticas de ensino utilizadas pelos educadores.

Alguns desses fatores já são conhecidos. O autor tem observado que os chamados "métodos de alfabetização" são na realidade determinados pela escolha da cartilha, cujos princípios de aprendizagem subjacentes geralmente não estão explícitos. A análise dessas cartilhas tem revelado sua inadequação não só quanto a seus aspectos formais (sequência inadequada, falta de instrução para professores, suposição dos pré-requisi-

CAUSAS de retenção escolar na 1a série do ensino público do 1° grau: uma nova abordagem. In: REUNIÃO ANUAL DA SOCIEDADE BRASILEIRA PARA O PROGRESSO DA CIÊNCIA. 31., Fortaleza. 1979. s.n.t.

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tos etc.) mas também quanto aos conteúdos apresentados (valores ideológicos desvinculados da realidade da população etc).

Adiciona-se a esse quadro o fato de as classes de alunos serem geralmente numerosas e heterogéneas quanto ao ritmo de aprendizagem e repertório de entrada das crianças, o que explica em parte a discriminação que os chamados alunos "fracos e lentos" passam a sofrer em sala logo após os primeiros meses de aula. O professor, por sua vez, sujeito às consequências de uma estrutura burocratizada a começar pela sua própria condição profissional, com baixos salários e frequentemente submetido a uma direção de escola muito mais preocupada em manter a ordem e a disciplina e aprovar pelo menos metade dos alunos. Por outro lado, o currículo de seu curso de formação é altamente impregnado por concepções pré-deterministas (Hunt)2 cuja consequência é colocar na criança a responsabilidade pela não aprendizagem. Com isso não percebe as reais relações entre origem social e desempenho académico.

Tendo em vista essa realidade, pode-se afirmar que um projeto de ensino não se define somente pela existência de um programa, por melhor que tenha sido planejado, desde que a intenção seja efetivamente implantá-lo nas escolas de uma região. Neste trabalho, propõe-se que o conceito de projeto de ensino seja compreendido em função de duas características básicas:

a) é necessária a existência de programas de eficiência experimentalmente testada, envolvendo objetivos terminais e sequência de unidades definidos, bem como a descrição dos procedimentos de aplicação e avaliação;

b) é igualmente necessária a definição dos procedimentos de implantação e desenvolvimento do projeto abrangendo:

— uma estrutura onde estejam definidas as funções e relações entre o pessoal envolvido;

— planejamento dos procedimentos de treinamento antes e durante as atividades;

— os procedimentos de supervisão constante;

— a escolha dos dados a serem coletados e a definição dos instrumentos de coleta, o que possibilitará a constante reavaliação das atividades bem como o controle do progresso dos alunos;

— os procedimentos de apoio logístico, indispensáveis para o bom andamento das atividades.

O presente trabalho relata o Projeto de Alfabetização de Mogi das Cruzes, no seu primeiro ano de implantação na rede de ensino estadual, envolvendo o programa, bem como as condições planejadas para sua implantação e desenvolvimento.

HUNT, J. McV. Intelligence and exporience. New York. Ronalde Press, 1961.

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O PROGRAMA DE ALFABETIZAÇÃO UTILIZADO

Histórico

Em 1973, ao assumir a direção do Departamento de Psicologia Educacional, o autor, juntamente com uma equipe de psicólogos, defrontou-se com a questão do planejamento dos estágios na área educacional para os quintanistas do curso de Psicologia da Universidade de Mogi das Cruzes. Optou-se por um modelo que propiciasse uma efe-tiva prestação de serviços junto às escolas da região, ao mesmo tempo que criasse condições reais para a melhor formação dos futuros profissionais.

Já na caracterização das escolas da região, realizada naquele ano, o problema dos altos índices de reprovação na primeira série exigiu uma análise mais detalhada, que culminou na realização das primeiras pesquisas com o objetivo de desenvolver programas adequados às populações de bairros periféricos da cidade, atendidas pelas chamadas "escolas carentes". As primeiras atividades nesse sentido foram realizadas com a Seleção de casos isolados de crianças que mesmo após um semestre na primeira série já demonstravam grandes dificuldades de aprendizagem em relação à média das respectivas classes. Essas crianças passaram a ser atendidas individualmente por quintanistas e psicólogos, os quais após análise do repertório e das características de aprendizagem dos alunos iniciaram o planejamento de programa de alfabetização adaptado às condições presentes; esse programa uma vez aplicado, demonstrou melhoras significativas no desempenho das crianças.

No ano seguinte, o programa foi reaplicado a grupos de 10 a 15 crianças defasadas em relação à média das classes, com resultados também altamente positivos.

A etapa seguinte implicou na aplicação do programa a uma classe de alunos considerados com "dificuldades de aprendizagem", pelo próprio professor, que recebeu treinamento e acompanhamento constante durante todo o ano. Detalhes desse trabalho são encontrados em Leite e col.3

Uma vez que os resultados mostraram-se positivos, o referido programa, incluindo os procedimentos de aplicação e treinamento dos professores, passou a ser utilizado em várias classes isoladas da região, até que no final de 1976 o chefe da Divisão Regional de Ensino de Mogi das Cruzes (DRE-5-Leste) convidou o autor para coordenar o planejamento e implantação de um projeto de alfabetização na região, com recursos humanos e materiais garantidos por aquela Divisão.

Características Gerais do Programa

a) Sequência cumulativa: as cadeias de respostas envolvidas para atingir o objetivo . terminal foram divididas em pequenos passos, sendo que cada um deles apresentava uma família silábica

ou tipo de dificuldade ortográfica, inicialmente treinadas isoladamente e posteriormente combinadas com os estímulos já treinados. Assim, à

LEITE, S.A.S. et alii. Efeitos de um programa remediativo de alfabetização nos comportamentos de crianças de 1a série e do professor — modificação de comportamento; pesquisa e aplicação, s.l., 1977. v. 2. p. 61-75.

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medida que os alunos progrediam no programa, aumentavam as possibilidades de novas combinações.

b) Respeito ao ritmo de aprendizagem: utilizou-se um procedimento de remaneja-mento visando a formação de classes com alunos de ritmo de aprendizagem semelhante, ou seja, alunos que não apresentassem grandes discrepâncias quanto ao tempo necessário para aquisição de novas respostas. O remanejamento foi realizado três semanas após o inicio do programa, baseando-se no próprio desempenho demonstrado pelos alunos, uma vez que não foi possível o emprego de programas totalmente individualizados.

c) Avaliação constante e critério de avaliação: uma vez que a quantidade de estímulos era pequena em cada passo e a aprendizagem de um era pré-requisito para os posteriores, utilizou-se um procedimento de avaliação constante no final de cada passo, onde o critério estabelecido era de 100% de acerto para progredir para o passo seguinte.

d) Correção e reforço imediatos: todas as atividades realizadas pelos alunos durante a aplicação dos procedimentos deveriam ser seguidas por correção e reforço imediatos, este na forma de atenção e incentivo do professor.

Arranjo Físico da Sala

A fim de facilitar as constantes interações professor X aluno, as carteiras foram dispostas em semi-círculos em torno do quadro, próximas lateralmente, com espaços central e entre as fileiras para a locomoção do professor, diminuindo-se as distâncias e possibilitando que o professor atendesse mais alunos ao mesmo tempo.

Objetivo e Divisão do Conteúdo

O programa foi dividido em três fases:

Fase I. Esperava-se que no final dessa fase os alunos fossem capazes de: a) ler e escrever corretamente palavras formadas por sílabas simples, ou seja, as sílabas formadas por uma consoante combinada com uma vogal ou encontro vocálico; b) escrever as letras na forma manuscrita minúscula; e c) reconhecer as letras na forma imprensa minúscula. Essa fase compreendia 17 passos, sendo que o 1 introduzia as vogais e encontros vocálicos e cada um dos seguintes introduzia uma família silábica. As famílias do C e G eram combinadas somente com as vogais A, O, U e as famílias do R e S eram treinadas somente no início de palavras.

Fase II. Esperava-se que no final dessa fase os alunos fossem capazes de: a) ler e escrever palavras e períodos simples formados por, além das sílabas simples, 16 tipos de dificuldades ortográficas, excetuando-se os casos de homofonia e do H inicial; b) escrever as letras na forma manuscrita maiúscula no início de operações e nomes próprios; e c) reconhecer as letras na forma imprensa maiúscula. Essa fase compreendia 16 passos, cada um introduzindo um tipo de dificuldade ortográfica, exceto os casos de homofonia e de H inicial.

Fase III. Esperava-se que no final dessa fase os alunos fossem capazes de: a) ler e escrever palavras e orações envolvendo todos os tipos de dificuldades, incluindo as homofo-

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nias e H inicial; e b) utilizar corretamente o parágrafo e o ponto final. Essa fase era for-mada por 9 passos, cada um introduzindo um dos casos de homofonia, além do H inicial.

Procedimentos de Aplicação

Nos procedimentos delineados para a aplicação de cada um dos passos, exceto o passo 1 da fase I, distinguiram-se três momentos distintos: a) apresentação dos novos estí-mulos; b) fixação; e c) avaliação. No primeiro momento planejou-se introduzir os estí-mulos do passo, um por vez, apresentando-os através de sílabas-chave (até o passo 6 da fase I) e de palavras-chave previamente escolhidas, formadas por um estímulo novo combinado com outros já anteriormente treinados. Cada palavra-chave apresentava so-mente um estímulo novo. No momento seguinte — fixação — foram previstas ativida-des visando a formação de novas palavras ou orações (a partir da fase II), combinan-do-se os estímulos novos do passo com os dos passos já treinados anteriormente. No último momento, deveria ocorrer a avaliação por meio de um ditado onde cada estí-mulo novo apresentado no passo aparecia um número constante de vezes.

Seguem-se algumas diferenças de procedimentos adotados em cada fase.

Fase I. Na apresentação, as sílabas eram apresentadas isoladamente (até o passo 6) ou em palavras-chave (do passo 7 em diante), uma por vez. A cada estímulo novo o pro-fessor inicialmente deveria realizar o treino do som, que consistia em atividades com o objetivo de levar as crianças a verbalizarem o estímulo novo, discutir o significado, ver-balizar outras palavras em que aquele estímulo novo aparecia. Em seguida o professor realizava o treino da forma, com atividades em que as crianças deveriam escrever o estí-mulo novo verbalizando simultaneamente o som correspondente. Após esse momento, no caso de palavras-chave, o professor deveria realizar o desvanecimento, apagando gra-dualmente sílaba por sílaba da palavra e solicitando que as crianças verbalizassem e escrevessem novamente no caderno. A partir da apresentação da segunda sílaba do passo, o professor deveria realizar uma comparação entre aquela sílaba nova e as ante-riores, de tal forma que no final do momento de apresentação, os alunos deveriam ser capazes de verbalizar e escrever todas as sílabas novas apresentadas, independente da ordem. No momento de fixação, o professor deveria propor atividades que levassem as crianças a lerem e escreverem novas palavras formadas pelos estímulos introduzidos naquele passo, combinados com os estímulos treinados anteriormente. Necessaria-mente, essa fase deveria prever atividades de ditado, nas suas diversas formas, além de leitura. A avaliação constava de um ditado de cinco palavras, cada uma apresentando uma das sílabas do passo e a correção era imediata. Caso o aluno apresentasse um erro, o professor deveria chamá-lo e solicitar que reescrevesse a palavra no verso da folha de avaliação; se o aluno acertasse, o erro inicial seria reconsiderado. Esse procedimento passou a ser chamado de chance. No caso de persistir o erro, o professor deveria retornar às atividades do passo para os alunos que tiveram dificuldade, enquanto os outros ' realizavam atividades diversas.

No caso do passo 1, as vogais e encontros vocálicos eram trabalhados isoladamente, não havendo o momento de formação de palavras.

Fase II. No momento de apresentação, cada dificuldade específica era apresentada em palavras-chave, combinada com uma das cinco vogais. Seguia-se entretanto o mes-

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mo procedimento da apresentação da Fase I. No momento da fixação, além do treino de formação de novas palavras, previu-se o treino de formação de orações, em que apa-recia o tipo de dificuldade treinada no passo. A avaliação, por sua vez, consistia no ditado de duas orações que envolvessem pelo menos duas vezes o tipo de dificuldade treinada no passo. A correção era imediata e manteve-se o procedimento da chance.

Fase III. Uma vez que essa fase apresentava os casos de homofonia da língua, o proce-dimento sofreu várias modificações. Cada palavra-chave era apresentada normalmente, como nas fases anteriores, e após cada palavra ser trabalhada (treino de som, forma e desvanecimento) o professor deveria destacar a nova dificuldade e apresentar uma série de palavras previamente escolhidas, que apresentassem o mesmo tipo de dificuldade da palavra-chave. As atividades nesse momento deveriam levar os alunos a lerem e escre-verem essas palavras selecionadas. Só então o professor deveria passar para a segunda palavra-chave, apresentando o mesmo tipo de dificuldade combinada com outra vogal. O momento de fixação correspondia ao treino das palavras selecionadas apresentando o tipo de dificuldade treinada, além de formação de orações e pequenas estórias. A ava-liação era semelhante à da fase II.

As atividades desenvolvidas durante os momentos dos passos deveriam ser seguidas de correção imediata. Além disso, caberia ao professor escolher as atividades que julgasse mais adequadas, desde que as mesmas garantissem os objetivos do momento do proce-dimento.

A descrição dos procedimentos, bem como a relação de palavras utilizadas nas fases de apresentação, fixação e avaliação podem ser encontradas em Leite.4

Material

Cada professor recebia, além dos guias com os procedimentos e os conteúdos a serem desenvolvidos em cada passo, uma ficha de avaliação para cada passo, onde deveria registrar o número de tentativas para cada aluno atingir os critérios de 100% e a data de cada avaliação; recebia também folhas de avaliação para cada aluno, por passo. Além desse material foram confeccionados jogos de cartolina para as crianças contendo as vogais e sílabas impressas.

Avaliação do Programa

Dois conjuntos de dados foram utilizados para avaliação do programa. O primeiro refe-ria-se às informações relacionadas com o desempenho das crianças durante sua aplica-ção e consistia de dois instrumentos: as avaliações aplicadas no final de cada passo e as sondagens cumulativas. As avaliações informavam se as crianças atingiam os critérios de 100%, o número de tentativas realizadas, o número de sessões necessárias e os tipos de erros cometidos pelos alunos. As sondagens cumulativas eram ditados formados por 32 palavras nas fases I e II e 16 na fase III, aplicados a cada quatro passos treinados. Cada bloco de oito palavras de uma sondagem abrangia os conteúdos de somente qua-tro passos do programa combinados entre si, sendo que cada família silábica ou tipo de

LEITE, S. A. S. O projeto de alfabetização de Mogi das Cruzes: uma proposta para a rede de ensino público. São Paulo, Universidade de São Paulo, Instituto de Psicologia, 1980. (Tese doutorado).

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dificuldade aparecia um número constante de vezes. Esperava-se que na aplicação de uma sondagem as crianças acertassem as palavras correspondentes aos conteúdos já treinados. Além disso, esperava-se que em cada sondagem aplicada o grupo seguinte de oito palavras apresentasse um aumento significativo de acertos, pois correspondia aos quatro últimos passos treinados.

O segundo conjunto de dados de avaliação do programa correspondeu às porcentagens finais de aprovação nas escolas onde o projeto foi aplicado, comparando-as com as das outras escolas da região.

ATIVIDADES DE IMPLANTAÇÃO E DESENVOLVIMENTO DO PROJETO

Formação da Equipe de Coordenação

A primeira meta estabelecida foi a formação de uma equipe de coordenação que viesse a coordenar as atividades a serem desenvolvidas no projeto. Para tanto, o chefe da Divi-são Regional de Ensino convocou 10 educadores que serviam junto àquela Divisão, os quais iniciaram uma série de reuniões com o autor, onde se discutiram: o problema da alfabetização nas escolas, as principais noções de aprendizagem e programação de con-dições de ensino, o programa de alfabetização desenvolvido pelo autor e as necessida-des para sua aplicação em escala mais ampla. Durante essas reuniões vários educadores afastaram-se do grupo por diversos motivos, sendo que no final dessa série de estudos a equipe estava reduzida a três elementos além do autor.

Escolha da População

Após um levantamento realizado pela Equipe de Coordenação nas escolas da região sobre as condições materiais e humanas das mesmas, além de dados do corpo discente, foram escolhidas três escolas iniciais, de acordo com os seguintes critérios: as escolas deveriam ter um coordenador pedagógico; deveriam ter apresentado alto índice de reprovação no ano anterior; tanto diretor quanto coordenador deveriam ser pessoas de reconhecido envolvimento com problemas educacionais; a escola deveria atingir população de nível socioeconómico baixo.

A população inicial era formada por 579 alunos, divididos em 17 classes, dos quais 22% haviam cursado pré-escola e 33% eram repetentes. Somente 1%da população era considerada de nível superior, de acordo com as categorias propostas por Gouveia e Havighurst.5

Quanto aos professores, participaram cerca de 18, sendo somente um do sexo masculi-no. Cerca de seis professores tinham mais de 10 anos de experiência no magistério; outros seis tinham 5 a 9 anos; quatro tinham até três anos e um professor não tinha experiência anterior.

GOUVEIA, A. J. & HAVIGHURST, A. J. Ensino médio e desenvolvimento. SSo Paulo, Melhoramentos, 1969.

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Treinamento do Pessoal

Após a escolha da população, foi realizado um encontro entre a equipe de coordenação e os diretores e coordenadores pedagógicos onde todo o plano do projeto foi apresentado e discutido. Nesse encontro definiram-se as funções de cada elemento e a partir de então os coordenadores passaram a participar das reuniões da equipe de coordenação.

Em seguida foi realizado um treinamento através de seis sessões com a participação de todos os elementos envolvidos, inclusive os professores.

Nessas sessões, todos os aspectos do projeto foram discutidos, desde o programa de alfabetização até os procedimentos de supervisão. Duas sessões foram dedicadas â dra-matização do procedimento de aplicação do programa, onde os próprios professores desempenhavam suas funções. Na última sessão foram apresentadas as folhas de registros e os professores tiveram oportunidade de praticar.

Procedimentos de Supervisão

As principais atividades de supervisão foram as seguintes:

a) observação do desempenho do professor em sala de aula: essa atividade era realizada pelos coordenadores, principalmente nos dois primeiros meses de implantação. O coordenador recebeu e discutiu um roteiro contendo os principais aspectos que deveriam ser observados em sala de aula, durante períodos de no máximo 30 minutos, findos os quais deveria conversar com o professor sobre seu desempenho;

b) reuniões diárias nas escolas: 20 minutos antes do final do período de aula, as crianças eram dispensadas e o coordenador reunia-se com todos os professores para discutirem as dificuldades encontradas e sugerirem alternativas para os problemas. Além disso relatavam-se as atividades realizadas em sala, bem como seus efeitos. Após a realização de cada avaliação no final do passo e da aplicação do uma sondagem, o professor deveria entregar ao coordenador as tolhas utilizadas pelos alunos e a folha de registro dos passos. O coordenador, por sua vez, registrava os dados numa folha geral e encaminhava o material à equipe de coordenação. Posteriormente, essas reuniões translormaram-se em um encontro semanal com duas horas de duração;

c) reunião semanal da equipe de coordenação: semanalmente a equipe reunia-se juntamente com os coordenadores onde discutiam os problemas, sugestões e propostas surgidas nas escolas. Qualquer alteração só poderia ocorrer após ser discutida nessa reunião. Além disso, os membros da equipe recebiam o material das escolas que era registrado e analisado. Supervisionavam também a confecção de todo o material gráfico e mantinham contato com diretores e autoridades de ensino;

d) visitas dos membros da equipe de coordenação às escolas: sempre que possível os membros da equipe visitavam as escolas e participavam da reunião diária;

e) reunião de avaliação e planejamento dos membros da equipe de coordenação: eram assistemáticas e tinham por objetivo o levantamento geral da situação e o planejamento do trabalho; e

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f) reunião geral dos professores de classes de ritmo lento: realizadas bimestralmente, tinham por objetivo reavaliar o trabalho nestas classes e discutir alternativas visando a adequação dos procedimentos.

Além dessas atividades planejaram-se reuniões gerais de todos os envolvidos no final de cada semestre para entrosamento, troca de experiências e encaminhamento de sugestões.

O Remanejamento

Após três semanas de implantação do projeto, com base nas folhas e fichas de avaliação, além da opinião dos professores, os alunos foram remanejados, agrupando-se crianças que apresentavam ritmo de aprendizagem - que é o tempo necessário para os alunos atingirem os critérios de 100% em cada passo — semelhante. Estabeleceram-se critérios tendo num extremo os alunos que haviam conseguido 100% de acerto nas primeiras tentativas e no outro os alunos que não haviam conseguido ainda atingir os critérios no passo 1. Além disso, as classes de ritmo mais rápido foram formadas com um número de alunos superior à média enquanto que as classes de ritmo lento reuniram um número abaixo da média, com no máximo 25 alunos.

Todo o trabalho de remanejamento, incluindo os critérios utilizados, foram discutidos com os professores na reunião diária. Além disso, após o remanejamento, cuidados especiais foram dedicados a essas classes de ritmo lento, com maior número de visitas e reuniões desses professores.

RESULTADOS GERAIS

Foram considerados oficialmente aprovados os alunos que terminaram o ano até o último passo da fase II, uma vez que os conteúdos previstos para a fase III nos programas oficiais são considerados de segunda série.

Os resultados gerais mostraram que em média 90% dos alunos nas três escolas foram aprovados, sendo que 63% terminaram as três fases, 16% terminaram na fase III 11% atingiram o critério mínimo. A média de aprovação nas demais escolas da região onde o projeto não foi instalado foi de 55%. Com relação aos alunos oficialmente reprovados, 3,5% terminaram o ano nos passos da fase II sem terem entretanto atingido os critérios de aprovação e 6,5% terminaram a fase I.

No ano seguinte todas as classes foram mantidas com os mesmos alunos, o que possibilitou reiniciar o programa a partir do passo em que haviam terminado, após uma rápida revisão dos conteúdos já treinados.

Por questão de espaço não é possível reproduzir aqui toda a análise realizada. Deve-se notar, entretanto, que os dados disponíveis permitiram: a) apresentar e analisar as porcentagens de alunos aprovados nas diversas tentativas em cada passo, por fase (pelo menos 80% das crianças conseguiram atingir o critério na primeira tentativa de todos os passos exceto nos cinco primeiros da fase I); b) apresentar e analisar o número médio de sessões necessárias para se atingirem os critérios em cada passo em todas as classes e nas classes de ritmo lento, comparando-se com as demais; c) apresentar e analisar o número médio de ocorrência das chances nos momentos de avaliação (a maioria dos professores não utilizou essa alternativa); d) apresentar e analisar as porcentagens

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de acertos nos blocos de oito palavras nas diversas sondagens aplicadas nas três fases; e) classificar e verificar a frequência dos tipos de erros cometidos tanto nas avaliações no final dos passos quanto nas aplicações das sondagens; e f) verificar a frequência dos vários tipos de encontros e reuniões ocorridos durante a aplicação do projeto.

Todos os detalhes dos resultados, bem como a fundamentação teórica utilizada e as modificações introduzidas a partir do primeiro ano de implantação do projeto, podem ser encontrados no trabalho de Leite.6

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nos anos subsequentes o PROLESTE foi ampliado progressivamente para outras escolas da região. Os mesmos critérios foram adotados para a escolha das novas escolas: altos índices de reprovação, atender população de periferia e ter coordenador pedagógico. Em 1981, o projeto abrangia 5.604 alunos de primeira série, distribuídos por 165 classes, em 27 escolas. Além disso, foram também introduzidos programas no período preparatório para as crianças novas que chegam às escolas, programas de redação para serem aplicados após o período de alfabetização (até a terceira série) e o programa de matemática, também até a terceira série.

Embora a média de 90% de aprovação não se mantenha nos anos seguintes, em virtude de uma série de fatores já conhecidos pela equipe, os índices de aprovação nas classes de primeira série das escolas do PROLESTE têm sido em média de 20 a 25% acima dos índices médios das escolas da região sem o projeto.

O principal problema observado no trabalho durante esses anos é a alta rotatividade de professores nas escolas que atendem populações de baixo nível socioeconómico, durante o ano escolar. Esta rotatividade é causada principalmente pela própria Secretaria de Educação na medida em que programou ingresso e remoção de professores durante o período de aulas, além de uma série de outras atividades que acabaram retirando professores e coordenadores da escola, impedindo a continuidade do processo de ensino.

Restaria finalmente discutir as implicações da implantação de projetos desse tipo na rede de ensino oficial.

Os resultados obtidos com este projeto e em experiências semelhantes não podem ser interpretados como os principais determinantes das grandes mudanças necessárias à Educação. É ingênuo concluir que os problemas educacionais serão resolvidos na medida em que tais experiências forem aplicadas em grande escala na rede de ensino; os problemas não serão resolvidos somente através da adoção de medidas basicamente pedagógicas.

A ingenuidade de tal posição reflete-se no fato de se entender o sistema educacional desvinculado do sistema sócio-político-econômico do país. Os problemas da Educação não são isolados, mas refletem os efeitos do próprio modelo político-econômico ado-tado no país. Nesse sentido, a questão educacional é um problema basicamente político e a este subordinam-se em certo sentido as decisões pedagógicas.

6 LEITE, S. A. S. Alfabetização: um projeto bem-sucedido. São Paulo, EDICON, 1982.

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Outra questão que merece destaque é o papel da burocracia no sistema educacional. Pode-se afirmar que um sistema burocratiza-se na medida em que perde a noção dos seus objetivos terminais passando a ser controlado somente pela manutenção dos meios. Assim, a burocracia, que deveria corresponder aos meios que possibilitassem aos sistemas educacionais a consecução de seus objetivos, passa ela própria a controlar o comportamento dos indivíduos na estrutura, assumindo o papel desses mesmos objetivos. A principal consequência é que o sistema torna-se extremamente resistente a mudanças, pois as relações burocráticas tornam-se tão complexas que é impossível modificar aspectos isolados; além disso, a própria legislação passa a incorporar essa burocracia. Outra consequência é o efeito desse processo sobre os indivíduos, levando-os a se distanciarem das preocupações fundamentais, passando a serem controlados apenas pela manutenção dos meios.

Isto explica, em parte, o fato de que a grande maioria das decisões do cotidiano da escola são tomadas sem que se analise, adequadamente, os efeitos das mesmas sobre o aluno, teoricamente a razão de ser de todo o sistema educacional.

Nessas condições, embora ciente de que projetos como o aqui relatado não modificarão a estrutura e os objetivos do sistema de ensino, entende-se que os mesmos devem ser incentivados no sentido de se demonstrar que, mesmo dentro da rede de ensino público, é possível uma ação educacional mais eficiente e de melhor qualidade.

Mas para isso esta ação deve necessariamente modificar os objetivos e práticas de ensino, além de propor mudanças na própria burocracia instalada na escola. Dessa forma, um trabalho educacional crítico e consciente deve mostrar caminhos alternativos para se enfrentar os grandes desafios. Deve ser uma ação que vise descobrir, criar e propor novas formas concretas e viáveis que não impliquem na manutenção de um status; uma ação que vise transformar as instituições a partir das suas próprias práticas.

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Teorias da Diferença e Teorias do Déficit: Reflexões sobre Programas de Intervenção na

Pré-escola e na Alfabetização

Cláudia T. G. de Lemos Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

À GUISA DE INTRODUÇÃO

Não é fácil para mim assumir a função de debatedora em um painel no qual foram apresentados programas de alfabetização e uma metodologia de educação pré-escolar. Por um lado, o trabalho de pesquisa que tenho desenvolvido não inclui como objeto de investigação a aquisição da escrita, mas a da linguagem oral. Por outro lado, até este momento, não me propus a assumir os riscos de tomar os resultados do projeto de Aquisição da Linguagem, por mim coordenado no Departamento de Linguística do IEL, UNICAMP, como base de elaboração de uma proposta pedagógica para a educação pré-escolar. O que me permite, contudo, participar deste painel e contemplar a possibilidade de fazer dessa participação uma contribuição ao debate dos programas apresentados é a convicção que partilho com Emília Ferreiro de que:

"Nenhum dos modelos correntes de aquisição de linguagem oral podem ser direta-mente aplicados ao processo de alfabetização, mas tudo o que sabemos sobre como a criança aprende a falar é relevante para o entendimento desse processo."1 (Tra-dução e negritos meus).

É precisamente esta perspectiva processual mais geral, que possibilita uma reflexão sobre a aquisição da escrita a partir de dados sobre a aquisição da linguagem oral, que norteará minha contribuição a este debate. Em outras palavras: não é com base em um possível inventário (ou repertório) lexical, morfológico ou sintático, construído através da análise da produção oral de crianças no momento ou período da alfabetização, que me parece possível e útil pensar a relação entre aquisição da linguagem oral e da escri-ta, mas sim a partir da questão sobre como os processos pelos quais a linguagem oral é adquirida podem iluminar a reflexão ou o debate sobre como a linguagem escrita é adquirida ou aprendida.

Para tanto, faz-se necessário, antes de mais nada, tentar expor aqui, sob a forma resu-mida a que a limitação de tempo me obriga, alguns dos aspectos mais gerais dos pro-cessos que têm sido formulados no interior de uma proposta sócio-interacionista da

FERREIRO. E. What is written in a written sentence? Journal of Education, 160 (4):26, 1978.

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aquisição da linguagem, por mim2 e por outros investigadores brasileiros, como Maia , Campos4, Gebara5, Lier6, Perroni*7.

Segundo essa proposta, a linguagem oral é adquirida na interação criança-interlocutor básico, através de processos dialógicos específicos e explicativos da construção conjunta pelo adulto e pela criança de objetos comunicativos ou partilhados. Os trabalhos de Maia, Gebara e Lier, mencionados acima, mostram a relevância desses processos na construção de objetos comunicativos considerados do ponto de vista fonético. Em Lemos8, a emergência da sintaxe e o aspecto semântico desses objetos comunicativos e/ou linguísticos são analisados enquanto produtos e processos dessa mesma atividade intersubjectiva, atividade esta que, segundo Campos, explica a construção pela criança de estruturas complexas com porque e se/então, e segundo Perroni, a construção do discurso narrativo.

O que me parece importante ressaltar desta proposta, no contexto de um debate sobre alfabetização, é a dupla natureza dessa entidade chamada linguagem nos esquemas interacionais acima delineados, a saber: seu estatuto de atividade comunicativa ou AÇÃO sobre o OUTRO e de atividade cognitiva, ou AÇÃO sobre o MUNDO, recor-tanto-o em configurações e categorias, e, ao mesmo tempo, seu estatuto de OBJETO, sobre o qual a criança vai poder agir, atuar e, posteriormente, sistematizar e categorizar.

Segundo Karmiloff-Smith9 (a sair), a atividade da criança sobre objetos linguísticos -sua análise, categorização e sistematização - é acessível ao investigador, não só através de uma produção oral supostamente "correta", mas através do "erro" tomado como sintoma de construção, e de comportamentos epilingúísticos, como hesitações, reelaborações, autocorreções etc, que decorrem da gradual "tomada de consciência" pela criança do objeto linguístico, isto é, de sua possibilidade de descentração da linguagem

Conforme, principalmente, LEMOS, C. de. Sobre aquisição de linguagem e seu dilema (pecado) original, s. I.. Boletim da ABRALIN, 3:97-126, 1982.

Conforme, principalmente, MAJA, E. M. A psicolinguística como fonte de renovação para a linguística e a psicologia, s. I., Boletim da ABRALIN, 3:127-37, 1982.

CAMPOS, M. F. de Castro. Processo intersubjetivo na construção de justificativas e inferências. Tese de doutorado em preparação.

GEBARA, E. S. Intonation and the development of dialogue processes in brasilian portuguesa. London, School of African and Oriental Studies. Tese de doutorado em preparação.

LIER, M. F. Tese de mestrado em preparação. São Paulo, PUC.

PERRONI, M. C. Ensaiando narrativas: do "jogo de contar" às proto-narrativas. Rio de Janeiro, PUC, 1978. Comunicação apresentada no II Encontro Nacional de Linguística.

LEMOS, C. de. La specularitá come processo costitutivo e nelfacquisizione dei linguaggio. In: CAMAIONI, L., org. La teoria di Jean Piaget. Florença, G. Barbera. 1982. p. 64-74.

___ op. cit. Q

KARMILOFF-SMITH, A. Does metalinguistic awareness nave any function in language acqui-sition processes? s. n. t. mimeo.

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enquanto atividade comunicativa. Implfeita, mas não suficientemente elaborada na proposta da autora, é a avaliação de quanto essa "tomada de consciência" ou descen-tração é dependente da "tomada de consciência" da eficácia de sua atividade comunicativa ou dos conflitos sócio-cognitivos10 através dos quais essa eficácia é posta a prova.

O que acabo de expor aponta, pois, para o percurso ontogenético seguinte: o que, de início, a criança dispõe e exercita em sua atividade linguística dialógica são procedimentos comunicativos e cognitivos não-analisados, não-coordenados entre si, isto é, justapostos. É da eficácia desses procedimentos, no sentido em que eles permitem agir sobre o seu interlocutor, e dele obter objetos, ações sobre o mundo e sobre a própria linguagem, que a criança passa a atuar sobre esses procedimentos enquanto objetos linguísticos, coordenando-os, relacionando-os e, assim, construindo subsistemas, que aumentam o grau de eficácia dessa mesma atividade comunicativa e cognitiva.

Qualquer adulto atento à linguagem da criança por volta dos dois anos pode notar que, ao uso eficaz de formas aparentemente "corretas" como fiz, comi, peguei, se sucedem formas como fazei, comei ou fazi, pegui. Esse é apenas um dos inumeráveis exemplos de vária natureza (morfológica, sintática e semântica) que ilustram a passagem de procedimentos justapostos não-analisados para a análise ou segmentação de objetos linguísticos e de sua coordenação, reveladoras dos primórdios de uma atividade de categorização.

A afinidade dessa visão sócio-interacionista com o modelo piagetiano parece evidente. Contudo, cabe chamar a atenção para o fato de que a hipótese construtivista que propomos se opõe parcialmente à de Piaget e nos aproxima de Vygotsky, na medida em que tanto a interação adulto-criança quanto a linguagem são consideradas como atividades constitutivas e mutuamente transformadoras dos sujeitos e dos objetos através dela construídos.

Ao final desta quase-introdução, parece-me relevante dar ênfase a algo que me parece óbvio, a saber: que o ler e o escrever são atividades e que graus de eficácia tanto comunicativa quanto cognitiva, tanto social quanto individual lhes podem ser atribuídas. Não há dúvida também de que a linguagem escrita se nos apresenta igualmente como um objeto que pode ser contemplado, sobre o qual se pode agir, reelaborando, modificando, e até mesmo "corrigindo". A pergunta que orientará minha reflexão sobre as propostas pedagógicas apresentadas neste painel será, pois, a seguinte: na busca de entendimento de como se dá o processo de alfabetização, seria pertinente introduzir a questão sobre quanto esse processo é determinado pela relação entre eficácia das atividades de ler e escrever e operações sobre objetos linguísticos escritos?

TEORIAS DA DIFERENÇA OU TEORIAS DO DÉFICIT?

Motivação comum aos quatro projetos ou propostas pedagógicas apresentadas é a busca de soluções ou alternativas face à dificuldade da escola brasileira de dar conta da

Conforme DOISE, W. Piaget e la spiegazione sociale delle'inteligenza. In: CAMAIONI, L., org. La teoria di Jean Piaget. Florença. G. Barbèra, 1982. p. 77-85; e CARUGATI. F. et alii; lllusione egocêntrica o capacitádi decentrarsi? Per una comprensione socio-psicologica dello sviluppo cognitivo. In: CAMAIONI. L.. org. La teoria di Jean Piaget. Florença, G. Barbèra, 1982. p. 86-202.

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tarefa de alfabetizar e, no caso do PROEPRE, apresentado por Orly Z. M. de Assis, da pré-escola atender às necessidades psicossociais da criança em um período crucial de seu desenvolvimento. Essa dificuldade, revelada pelo alto índice de reprovação na 1ª série do 1° grau e pelo fenômeno crescente da evasão escolar que dele parece decorrer, recebe dos autores ou responsáveis por essas propostas uma interpretação semelhante ou talvez um ponto de convergência entre elas: a de que o déficit não está no aprendiz, mas na escola ou na pré-escola que não proporciona as condições adequadas a que crianças de culturas e subculturas que diferem da cultura da classe média urbana das regiões mais desenvolvidas do país, se desenvolvam e se alfabetizem.

Sérgio Leite, autor do projeto PROLESTE, explicita tal interpretação ao afirmar que:

"... a principal causa da reprovação está na maneira como a escola trata a pobreza: não há esforço de adaptação aos alunos pobres, sendo os instrumentos e estratégias de ensino mais adaptados às crianças de origem socioeconómica mais elevada."11

Geraldina Porto Witter, responsável pela elaboração dos materiais de instrução pro-gramada Lendo e Escrevendo e Cartilha da Amazónia, não deixa claro, logo de início, se as "inadequações ou falhas que marcam a etapa de alfabetização"12 têm origem em um déficit do aprendiz ou da escola. Contudo, ao longo de sua exposição, revela uma preocupação com "a integração funcional" da leitura e escrita ao "mundo cultural da criança"13 que colocaria seu trabalho entre os que atribuem à escola a tarefa de ajus-tar-se às diferenças culturais e não ao déficit que parece ser a tradução generalizada que a escola faz dessas diferenças.

Menos clara, nesse sentido, é a posição de Orly Mantovani de Assis, autora e responsá-vel pela aplicação do PROEPRE. Seu projeto, segundo ela própria relata, foi elaborado a partir dos resultados de pesquisa por ela realizada e descritos como se segue:

"a) existe de fato um atraso no desenvolvimento intelectual de nossas crianças; b) esse atraso pode ser explicado pela falta de estimulação ambiental adequada; c) esse atraso pode ser superado por um processo de estimulação desenvolvido na pré-escola."14 (negritos meus)

Deixando de lado, por enquanto, uma reflexão sobre os procedimentos experimentais que levaram à constatação do que é configurado como um atraso, note-se que esse atra-so é definido a partir de "idade cronológica média em que o estágio operatório concreto é atingido"15 e que ele é geral ("nossas crianças"), isto é, atinge os quatro níveis

11 LEITE. S. A. S. O projeto de alfabetização de Mogi das Cruzes - PROLESTE. s. I. Psicolo- gia em Curso, 2 (6) 9-17. 1981.

12 WITTER, G. P. Lendo e escrevendo e Cartilha da Amazónia. In: SEMINÁRIO MULTIDISCI- PLINAR DE ALFABETIZAÇÃO. S. Paulo, PUC, 11 a l3ago. 1983. Anais. Brasília, INEP. 1984.

1 Idem, ibidem.

ASSIS, O. Mantovani de. Uma nova metodologia de educação pré-escolar. São Paulo, Pioneira, 1982.

Idem, ibidem, p. 6.

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socioeconómicos representados na amostra. Uma questão possível de ser colocada, a este ponto, incidiria sobre os critérios que permitiram à investigadora definir toda uma amostra de população brasileira como carente, ao invés de integrá-la no cômputo dessa "média". Em outras palavras.qual é a cultura ou que comunidade fornece o padrão de desempenho ou ponto de referência a nosso atraso e que critérios justificariam sua escolha?

Note-se ainda que o atraso ou carência é deslocado do aprendiz, enquanto sujeito con-siderado em termos de suas potencialidades psicológicas, para o ambiente, isto é, para a cultura do aprendiz, já que segundo a autora,

"... mesmo as crianças oriundas de ambientes carentes, submetidas a uma dieta ali-mentar baixa em proteínas e vitaminas, em situação de desnutrição, e, por outro lado, a uma dieta psicológica pobre em estímulos, em situação de privação socio-cultural, foram também capazes de desenvolver suas funções intelectuais"16

quando submetidas ao processo de estimulação proposto pela autora.

Parece-me, portanto, que o ponto de partida do PROEPRE é a constatação de um déficit cultural geral, agravado a ponto de constituir-se em uma situação de privação sociocultural em níveis socioeconómicos baixos, isto é, da diferença entre culturas e subculturas enquanto impedimento a que o estágio operatório concreto seja atingido em uma determinada idade.

Quanto ao Projeto Alfa, a cujo material tive reduzido acesso, pode-se afirmar, a partir da exposição feita por sua representante no painel, que ele parte da associação entre marginalização cultural e carência, sendo essa carência representada, tanto no mate-rial quanto nas diretrizes de sua elaboração, como ausência ou falhas do aprendiz no que diz respeito a capacidades psiconeurológicas consideradas como pré-requisitos para a alfabetização. Assim, a noção de marginalização cultural que, a meu ver, serviria para mostrar como a diferença se torna um estigma, perde seu conteúdo de denúncia, incor-porando o estigma, traduzindo-o como carência.

As posições brevemente delineadas acima convergem, portanto, no reconhecimento de diferenças culturais e de sua relevância enquanto fatores de fracasso ou evasão escolar, embora pareçam divergir na interpretação dessas diferenças, divergência essa que se manifesta nos seus objetivos e diretrizes. Enfim, os projetos em questão parecem variar segundo a proporção em que assumem como explicativas Teorias da Diferença ou Teo-rias do Déficit, para usar da terminologia consagrada por M. Cole e J. S. Bruner.17

Essa divergência, contudo, desaparece quando se examinam as práticas pedagógicas que compõem cada um desses programas e os critérios que implícita ou explicitamente determinam sua elaboração. A saber: não é a definição da diferença que serve de base à formulação de critérios e/ou práticas, mas a incapacidade do aprendiz medida a partir de pressupostos sobre a complexidade do objeto ou das operações a serem sobre ele efetuadas.

ASSIS, O. Mantovani de. op. cit.. p. 7.

COLE, M. & BRUNER, J. S. Cultural differences and inferences about psychological processes.

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No que se refere aos projetos que visam a alfabetização, pode-se dizer que eles constituem sequências ou passos articulados segundo uma hierarquia de complexidade inspirada na concepção de que objetos "escritos" podem ser apreendidos e produzidos através:

— do estabelecimento de correspondência entre segmentos de objetos linguísticos acústicos (ou acústico-articulatórios) e objetos linguísticos visuais (ou viso-mo-tores) ;

— da discriminação auditiva de segmentos do primeiro tipo e da discriminação visual de segmentos do segundo tipo;

— da coordenação viso-motora necessária para produzir e traduzir a correspondência entre segmentos do primeiro e do segundo tipo.

Note-se ainda que, enquanto no PROLESTE e nos materiais Lendo e Escrevendo e Cartilha da Amazónia as práticas que visam o domínio das habilidades acima referidas estão mais voltadas para a complexidade específica do próprio objeto "escrita", no Projeto Alfa grande ênfase é dada, por exemplo, à discriminação visual em geral.

Parece absurdo considerar as práticas elaboradas a partir de uma hierarquia de complexidade desse tipo como resultado da adoção de Teorias do Déficit. Afinal, nossa escrita é alfabética e seu aprendizado parece implicar o domínio das habilidades mencionadas. Além disso, tanto o PROLESTE quanto o programa de Witter, no decorrer de sua aplicação efetiva, incorporaram as dificuldades dos alunos face a diferentes passos dos programas, sob a forma de critérios de reformulação desses mesmos programas.

Minha afirmação não parecerá tão absurda se se refletir sobre o quanto de discriminação de objetos linguísticos acústicos a criança que adquiriu sua língua materna já efe-, tuou e efetua no seu cotidiano e sobre o quanto de discriminação visual lhe é necessária para a simples sobrevivência diária. Convém lembrar, a este ponto, a perplexidade de Socorro Rodriguez18 diante do fracasso escolar e do desempenho pobre de crianças indígenas da Costa Rica submetidas a provas piagetianas, crianças estas cujo percurso diário incluía intrincados caminhos na selva equatorial, orientando-se pelo canto dos pássaros e pela presença de espécies vegetais, o que supõe o nível de discriminação de um botânico.

Essa reflexão nos obriga a colocar as seguintes questões: Seriam essas atividades ou capacidades suspensas ou bloqueadas diante do objeto "escrita"? Por que tal suspensão ou bloqueio não ocorre com a mesma frequência em crianças da classe média, algumas das quais aprendem a ler e a escrever sem qualquer instrução formal?19

Não me parece que a resposta à primeira questão tenha a ver com a complexidade da correspondência a ser estabelecida entre material linguístico acústico e material lingúís-

18 RODRIGUEZ, S. El desarollo e las variables socioculturales. In: PRIMEIRO SIMPÓSIO LATI-NOAMERICANO E DO CARIBE SOBRE A IMPORTÂNCIA DA EDUCAÇÃO INICIAL, 1982.

19 Conforme, a propósito, TE ALE W. H. Toward a theory of howv, children learn to read and write naturally. s. I, Language Arts, 59 (61:555-70, 1982.

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tico visual. A aquisição da linguagem oral implica no estabelecimento de correspondências de vária natureza, como se pode perceber, voltando a examinar os exemplos citados anteriormente.

Respostas tanto à primeira quanto à segunda questão só poderiam, a meu ver, ser formuladas a partir de Teorias da Diferença, a começar pelo abandono de pressupostos sobre a capacidade ou incapacidade do aprendiz em favor da observação de como a criança atua no interior de seu próprio universo cultural, de como a atividade linguística oral e escrita é representada por ela e pelos adultos desse mesmo universo ou, em outras palavras, que eficácia é a ela atribuída.

Abandono de pressupostos não equivale aqui, portanto, a tomar o uso de testes de prontidão ou de qualquer avaliação da atuação de crianças em tarefas consideradas pré-requisitos para a alfabetização como forma efetiva de observação. Esses testes ou tarefas partem dos mesmos pressupostos que o adulto da classe média tem da relação entre oralidade e escrita, relação esta mediada e condicionada pela própria escrita, como salienta Abaurre.20

Tal concepção deixa de lado, na verdade, toda a reflexão e a pesquisa que a Sociolinguística e a Linguística Antropológica21, a Psicolingúística e a Análise do Discurso têm feito no sentido de definir as especificidades da linguagem oral e da linguagem escrita enquanto atividades comunicativas e cognitivas socialmente estruturadas e estruturantes. Assim sendo, reduzem-se as atividades de ler e escrever à mera decifração ou codificação, retirando-as do contexto em que seu sentido ou eficácia se dá.

Tal concepção deixa de lado também as contribuições da Fonética que apontam para o fato de a segmentação do contínuo acústico, que é a fala, ser de natureza diversa daquela supostamente representada pela escrita alfabética.22

Parece-me ainda que essa mesma concepção reducionista e objetificante das atividades linguísticas relacionadas á escrita está implícita nas técnicas de avaliação dos resultados da implementação dos programas de alfabetização apresentados. Isso explicaria talvez o fato de, a um alto índice de aprovação obtido ao fim da primeira ou das primeiras fases, seguir-se o aparecimento de dificuldades com o chamado período de pós-alfa-betização, em que a decifração e codificação de sílabas, palavras e sentenças - ou a natureza fragmentadora dessas operações - entram em conflito com tarefas como interpretação e produção de textos, diante das quais a criança tem que se colocar como um sujeito capaz de avaliar o sentido e a eficácia da própria atividade e da atividade da qual o texto é um produto. Em outras palavras: entra em conflito com tarefas em que a criança deve recortar e organizar o continuum de sua experiência linguística e não

ABAURRE, M. B. Regionalismo linguistico a a contradição da alfabetização no intervalo. In: SEMINÁRIO MULTIDISCIPLINAR DE ALFABETIZAÇÃO. São Paulo, PUC. 11 a 13 ago. 1983. Anais. Brasília, INEP, 1984.

21 Conforme GNERRE, M. Alfabetização, interpretação e mediação. In SEMINÁRIO MULTI- DISCIPLINAR DE ALFABETIZAÇÃO. São Paulo, PUC. 11 a 13 ago. 1983. Anais. Brasília, INEP, 1984.

22 Conforme ABAURRE, M. B. op. cit.; MAIA, E. M. Refletindo sobre a fala (em preparação); GEBARA, E. S. op.cit.

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linguística, dentro e fora da escola, para a construção ou interpretação de um texto, isto é, de uma unidade que não pode ser vista como uma sequência linear de sílabas, palavras ou mesmo sentenças.

Crítica semalhante é feita por Teale23 á escola americana:

"The belief is that literacy development is a case of building competences in certain cognitive operations with letters, words, sentences, which can be applied in a variety of situations. A criticai mistake here is that the motives, goals and condi-tions have been abstracted away from the activity in the belief that this enables the student to "get down" to working on the essential processes of the reading and writing. But, as has been argued before, these features are criticai aspects of the reading and writing themselves. By organizing instruction which omits them, the teacher ignores how literacy is practiced and therefore learned and thereby creates a situation in which the teaching is an unappropriate model for the learning. Some chi/dren are able to maintain the whole and learn despite the teacher; others accept the teaching model as a way of learning and become its victims.,/z*

Retomando a afirmação final de Teale, poderíamos dizer que seria uma Teoria da Diferença que nos ajudaria a refletir sobre o que distingue as crianças capazes de integrar operações de ordem diversa, isto é, de superar o conflito, e as que dele se tornam vítimas. Empostada desse modo, a incorporação da diferença em projetos de alfabetização não se restringiria a introdução de "variantes" lexicais ou morfossintáticas nos materiais e cartilhas, nem mesmo na valorização de léxico portador de maior carga motiva-cional para uma determinada comunidade. Nem equivaleria também a tomar o "erro" como algo a ser evitado, eliminado ou incorporado como critério de reformulação de um programa preestabelecido, mas como a brecha que deixa entrever as hipóteses que a criança vai sucessivamente construindo sobre a escrita enquanto atividade social significativa e enquanto objeto e produto dessa atividade.

Assim, a questão básica que, a meu ver, serve de ponto de partida para a elaboração de uma Teoria da Diferença que forneça critérios para repensar os chamados "pré-requisi-tos" para a alfabetização, a prática pedagógica e sua avaliação, seria a seguinte: quais são as atividades linguísticas relacionadas à escrita e que eficácia ou sentido é a elas atribuído nas diferentes culturas ou subculturas a que pertence o aprendiz?

O trabalho que Emília Ferreiro vem desenvolvendo, com a colaboração de outros pesquisadores, desde 1975, na Argentina e, ultimamente, no México, parece-me a tentativa mais bem sucedida de responder a parte desta questão, a saber, aquela que concerne às atividades linguísticas relacionadas à escrita. O conjunto de pesquisas efetuadas com crianças de 4 a 6 anos, de nível socioeconómico médio e baixo, permitiu-lhe chegar a resultados que arrisco a resumir como se segue:

— crianças de ambos os níveis já têm, ao entrar na escola, hipóteses sobre a escrita e as atividades de ler e escrever a ela relacionadas;

23 TEALE, W.H.op.cit.

Idem, ibidem.

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— essas hipóteses compõem um percurso ontogenético que se inicia pela relação da escrita com a representação pictórica ou com o desenho e, só posteriormente, com a linguagem oral;

— as hipóteses sobre o que se pode ler e o que se pode escrever revelam a associação original colocada acima, como por exemplo: só são passáveis de ler ou escrever "nomes" de coisas que tenham referentes concretos, e não se escrevem, por exemplo, elementos como artigos, negação etc;

— as hipóteses sobre o que está escrito supõem uma tentativa de recuperar o contexto social ou comunicativo onde o elemento tido como "escrito" está inserido;

— a distinção entre desenho/texto escrito e representação gráfica se dá por etapas que vão de grafismos primitivos, passam pela letra tomada apenas do ponto de vista gráfico ou geométrico, pela sílaba como primeira relação entre oralidade e escrita, para finalmente, chegar à busca de correspondências som/letra, peculiar à escrita alfabética;

— a diferença entre as crianças de classe e as de comunidades marginalizadas, representativas do que na pesquisa se tomou como nível baixo, reside apenas no tempo em que as crianças se detêm em cada passo dessa trajetória.

A interpretação que Ferreiro dá ao fato de as crianças de classe média chegarem à escola prontas ou quase prontas para atuar a um nível analítico e sintético da relação entre oralidade e escrita - isto é, para enfrentar a escrita alfabética -, ao passo que as outras crianças estão, ainda aos seis anos, às voltas com o problema definido como uma indi-ferenciação entre o que é ler e falar, entre o que é ler e escrever, o que pode ser Iido e escrito, ou não, ilumina o que tenho procurado configurar como uma Teoria da Diferença. Diz ela:

"Esta 'defasagem' em termos de ritmos evolutivos das duas populações sociais comparadas não nos deve surpreender, se tomarmos em consideração que a escrita é um objeto social por excelência, possuído e utilizado por uma parte da população adulta, mas fora do alcance de grande parte desta população (...).

Entre uma criança de classe média urbana e uma criança de um grupo urbano marginalizado não há, necessariamente, uma diferença quanto ao tipo de objetos portadores de textos com os quais podem entrar em contacto. Mas, obviamente haverá uma diferença na variedade desses objetos e na frequência da presença desses objetos (...). Dissemos que, além dos objetos físicos que apresentam inscrições (ou portadores de textos) existem as ações sociais de produção e interpretação de textos. Aqui, novamente, as diferenças entre os dois grupos de crianças estudadas é enorme e, por conseguinte, são também muito marcadas as diferentes ocasiões de aprendizagem informal. Uma criança de classe média assiste a atos de leitura que não são dirigidos a ela, mas que a informam sobre o valor social da escrita: lê-se ou comenta-se um jornal, lê-se uma carta que chega, lê-se a conta do telefone para saber quanto se tem de pagar, lê-se um recado deixado por alguém que saiu, lêem-se instruções sobre como utilizar este ou aquele aparelho, este ou aquele alimento enlatado (...). Uma criança de classe média assiste a atos de escrever que não lhe são dirigidos, mas que a informam sobre as situações nas quais a escrita adquire um valor preciso; escreve-se um recado acabado de ser dado por telefone, escreve-se a lista de compras

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a fazer no supermercado, anota-se em uma caderneta um nome e um endereço, assina-se um recibo etc. etc. (...) Assim, uma criança da classe média chega à escola primária, já equipada, na maioria dos casos, do essencial dessas práticas sociais. Para a criança desta classe social está claro que a escrita serve para alguma coisa (ainda que não saiba definir bem para quê), que as letras não são simplesmente marcas sobre um papel mas objetos substitutivos (isto é, objetos que representam alguma coisa), que há várias maneiras de escrever, distintos contextos funcionais para a escrita e diferentes portadores de textos e de significação."

Poder-se-ia, contudo, dizer que, apesar do papel ativo dado à criança na perspectiva de Emilia Ferreiro e de, coerentemente com essa posição, essa investigadora propor que a escola anteponha a qualquer método de alfabetização as hipóteses que a própria criança tem sobre a escrita, a Teoria da Diferença explícita no conjunto de seu trabalho assenta sobre a falta de certos tipos de objetos escritos, como o livro e o jornal, entre outros, e sobre a ausência das práticas sociais em que eles ganham sentido. Por outro lado, a relação entre oralidade e escrita penetra a pesquisa e a reflexão sobre seus resultados apenas em função da correspondência entre sílaba e sua representação gráfica, som e letra, ou melhor, em função das hipóteses que a criança faz sobre esses tipos de correspondência numa determinada fase.

Na minha opinião, seria necessário pôr em cheque ainda mais o egocentrismo ou socio-centrismo do pesquisador e da escola, colocando-nos como questões básicas sobre a relação entre a oralidade e escrita, no contexto de uma Teoria da Diferença, as seguintes indagações: A que práticas orais em sociedades agrafas e/ou em grupos sociais marginalizados se atribui a função ou a eficácia de algumas das diferentes práticas escritas dos grupos ou classes privilegiadas? Que tipos de discurso oral são produzidos em condições semelhantes às de produção de certos discursos escritos? A primeira indagação nos obrigaria a refletir sobre como a experiência é transmitida oralmente, em como se dão instruções, na função da narrativa exemplar e dos provérbios, por exemplo, e me faz lembrar minha avó italiana que, a cada situação problemática do cotidiano, tinha à mão uma solução encapsulada sob a forma de um provérbio ou de uma pequena estória. A segunda nos remete para uma característica do discurso escrito sempre mencionada no contexto em que se enumeram as fontes de dificuldades que a redação representa para as crianças e adolescentes. A saber: o grau de descentração que a ausência de um interlocutor empírico impõe à escrita. Na discussão dessa dificuldade, muitas vezes se tem deixado de lado o fato de, já por volta dos cinco anos, crianças de culturas e sub-culturas diversas serem capazes de construir textos narrativos orais, cuja coesão e progressão não depende, como antes, das perspectivas estruturantes instauradas pelas perguntas de seu interlocutor.26

FERREIRO, E. & TE BE ROSKY, A. Lo$ sistemas de escritura on el desarrollo dei nino. Mé.rico, Siglo XXI. 1979. p. 295-7.

Informações relevantes a este respeito se encontram nos trabalhos de PERRONI, M. C. (em preparação) sobre crianças de classe média brasileira; WATSON-GEGEO, K. A. & BOGGS, S. T. From verbal play to talk story: the role of routines in speech events among Hawaian children. In: ERWIN-TRIPP, S. & MITCHELL-KERNAN. C. org. Children discourse. Londres, Aca-demic Press, 1977. p. 67-90 sobre crianças havaianas; KEP.NAN, K. T. Semantic and expres-sive elaborations in children's narratives. In: ERWIN-TRIPP. S. & MITCHELL-KERNAN, C, org. op. cit., p. 91-102 sobre crianças de uma comunidade negra urbana da costa ocidental americana.

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Essas observações preliminares sobre certo grau de descentração já atingido em um certo tipo de prática oral e aquele que parece ser exigido na prática escrita têm sua pertinência confirmada pelo trabalho de R. e S. Scollon27 sobre como sua filha Rachel aprendeu a ler e a escrever sem qualquer instrução formal. Estágio fundamental nesse processo, foi, segundo eles, "a capacidade de f iccionalizar-se como sujeito", em outras palavras, de colocar-se como o sujeito narrador que constrói a si mesmo como perso-nagem, ou sujeito do narrado. Convém lembrar aqui que a descentração que essa capa-cidade implica foi construída na situação interacional de ler livro de estória, em que o livro - texto e ilustração - era mediador da situação dialógica, em contraste com certos sujeitos da pesquisa de Emilia Ferreiro que, privados desse tipo de experiência, tomavam a representação pictórica como o "lugar" da página onde algo era "contado".

Interrompendo uma reflexão que deve ser feita por todos nós — pedagogos e educa-dores, linguistas e antropólogos, psicólogos e fonoaudiólogos - gostaria de deixar aqui, a título de conclusão preliminar, a ideia de que uma Teoria da Diferença, capaz de servir de base para a formulação de quaisquer práticas pedagógicas, obrigaria a ir além da observação daquele que é tomado como "diferente", e inverter a direção da obser-vação. Assim, possivelmente, se chegaria a ver, através dos olhos daqueles que supomos observar, como nós próprios somos observados e quanto fizemos da nossa "diferença" o ponto de referência que define e cria a carência.

Grande parte das considerações feitas acima são, a meu ver, aplicáveis ao PROEPRE ou à metodologia de educação pré-escolar proposta por Orly Z. M. de Assis, que vincula atraso ou aceleração de desenvolvimento à variação cultural:

"Com efeito, de modo geral, estudos interculturais têm confirmado que a ordem de sucessão de estágios é constante, embora tenham sido constatadas variações nas ida-des médias que os caracterizam conforme o meio sociocultural."28

Assim é que, para a autora e investigadora, o objetivo da pré-escola é "criar condições mais adequadas para o desenvolvimento global da criança"29, em oposição ao objetivo específico de preparar para a alfabetização ou ao objetivo imediatista de substituir a família no atendimento às necessidades diárias da criança.

Note-se que o diagnóstico de atraso é feito a partir do desempenho das crianças nas provas piagetianas de conservação, seriação e classificação, mas que o diagnóstico de inadequação do ambiente cultural não passa de uma suposição, já que não resulta da observação dos tipos de atividades que esse ambiente propicia ou deixa de propiciar à criança.

O que, então, fornece o critério ou os critérios para a formulação do que é mais ade-quado ou de como pode a pré-escola preencher seus objetivos? A resposta a esta pergunta pode ser inferida do modo como a autora define o processo de estimulação

SCOLLON, R. & SCOLLON. S. Narrative, literacy and faca in interethnic Communications. Norwood, Ablex, 1981.

28 ASSIS, O. Mantovani de. op. cit., p. 22. 29 Idem, ibidem, p. 2.

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que preconiza como forma de superar o atraso. Este processo, em linhas gerais, consis-te em "criar situações para ativar as estruturas operatórias da criança"30, ou, mais espe-cificamente, "situações em que as noções de conservação, classificação e seriação este-jam presentes."31 (negritos meus)

A mesma circularidade que define a relação entre o que é prova de nível de desenvol-vimento e o que são condições para atingir esse nível está presente nos critérios de ade-quação do material a ser utilizado nessas situações:

"O conhecimento provém da ação direta da criança no curso de sua própria expe-riência. Deste ponto de vista, é indispensável que a pré-escola disponha de grande diversidade de materiais concretos que, pela sua própria natureza permitam á crian-ça: a) conhecer suas propriedades físicas (sic); b) estabelecer relações entre eles, agrupando-os de acordo com suas semelhanças e ordenando-os segundo suas dife-renças."32

Tal circularidade nos leva a supor que a prática pedagógica proposta se reduz a ativi-dades que têm como paradigma ou modelo uma situação muito particular - descon-textualizada e, portanto, reificada - que é a situação experimental. Isso equivale a negar a capacidade de conservação, seriação e classificação que a criança demonstra no cotidiano das mais variadas culturas, em atividades cuja eficácia é definida pela própria cultura, sobre objetos cujo valor - lúdico ou não-lúdico - também é sócio-cultural.

No que se refere à relação entre eficácia da atividade e desempenho em tarefas de conservação, cabe lembrar aqui a pesquisa de J. McGarrigle e R. Donaldson33 com 50 crianças de 4 a 6 anos, que, após terem, em sua maioria, fracassado em provas standard de conservação de número e comprimento, tiveram o desempenho esperado quando a transformação foi apresentada como um subproduto "acidental" de uma atividade diri-gida à consecução de um determinado objetivo. Walkerdine e Sinha34 mencionam, em contexto de discussão semelhante a esta, os avançados conceitos topológicos de crian-ças que moram em arranha-céus e a precoce conservação de peso em crianças que habi-tam miseráveis palafitas construídas sobre lagunas.

Os dados acima parecem apontar não só para a necessidade de um quadro explicativo que incorpore a Teoria da Diferença, quanto para uma visão da pré-escola como um lugar onde as "diferenças" não sejam simplesmente neutralizadas, e sim resultem na troca de experiências, ou em conflitos sócio-cognitivos que conduzam a criança a níveis mais altos de abstração. Muito haveria ainda a dizer sobre a concepção de lingua-

ASSIS, O. Montavam d8. op. cit., p. 21.

Idem, ibidem, p. 21.

Idem, ibidem.

McGARRIGLE, J. & DONALDSON, M. Conservation accidents. Cognition. s. I., s. t . (no prelo).

WALKERDINE, W. & SINHA, C. The internai triangle: language. reasoningand the social con-text. In: MARKORA, I., org. The social context of language. New York, John Wiley, 1978. p. 151-76.

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gem exposta pela autora do PROEPRE, mas, considerando-se o que referi acima sobre o trabalho de outra investigadora de inspiração piagetiana, que é Emilia Ferreiro, penso que correria o risco de ser redundante.

À GUISA DE CONCLUSÃO

Queria apenas dar voz, não a mais um pesquisador, mas a Heitor, um menino de 5 anos, morador da periferia de Monterey, México, e sujeito da pesquisa de Ferreiro, que, à pergunta sobre para que serviam letras, respondeu:

"Não servem para nada. Só para ir na escola, pra ler." 35

35 FERREIRO, E.op.cit., p. 33.

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Análise dos Programas de Alfabetização

José Geraldo Silveira Bueno Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP)

Durante a manhã de hoje foram apresentados quatro programas que pretendem contribuir para a solução da grave situação da alfabetização no Brasil, responsável em grande parte pela repetência e evasão das primeiras séries do 1° grau: o material Lendo e Aprendendo e Cartilha da Amazónia, da profa Geraldine Porto Witter; o PROLESTE, programa aplicado na região de Mogi das Cruzes (SP), sob a coordenação do prof. Sérgio Leite; a experiência do PROEPRE, em que a prof3 Orly Zucatto Mantovani de Assis apresenta uma abordagem piagetiana para o período pré-escolar; e, finalmente, o Programa Alfa, elaborado pela Fundação Carlos Chagas, sob a coordenação da saudosa profª Ana Maria Poppovic.

Da leitura prévia do material e da apresentação realizada pude retirar algumas questões gerais que valem a pena ser debatidas, bem como alguns questionamentos específicos a cada um desses projetos.

Em primeiro lugar, verifica-se que foram aqui apresentados quatro programas de alfabetização que possuem fundamentações científicas diferentes e que por isto se utilizam de processos metodológicos diversos. Apesar disso, vimos que os quatro programas obtiveram, segundo seus autores, resultados altamente satisfatórios. Por um lado, o sucesso descrito pode nos levar a assumir uma posição otimista, na medida em que é comprovado que o processo de aprendizagem é dinâmico e que o ser humano possui amplo espectro de adaptação às exigências do meio. Considero este aspecto positivo, pois nos leva a encarar a educação formal não como um processo fechado e totalmente sob controle mas como um processo aberto, dinâmico e que deve ser organizado e reelaborado constantemente, na medida em que se desenvolve. Por outro lado, o fato de que processos diferentes apresentam resultados positivos pode dar azo a uma séria indagação: o que é ter resultados positivos na alfabetização? De acordo com as apresentações, pôde-se verificar que os critérios de avaliação foram diferentes, divergentes e até contraditórios. A diversidade de critérios nos leva a levantar uma séria dúvida, qual •seja, a de que até o momento não sabemos, com certeza, como se processa a aquisição de linguagem escrita pela criança.

Outro aspecto que me chamou a atenção foi o de que dois dos programas (Alfa e Lendo e Aprendendo) partiram da elaboração de material para, através da sua utilização, influir no processo de alfabetização, enquanto que os outros dois (PROEPRE e PROLESTE) fizeram o caminho inverso, isto é, partiram de uma reformulação do proces-

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so até chegar a um procedimento específico de alfabetização. Esta diferença de aborda-gem sugere uma preocupação básica a nós alfabetizadores:

Qual a malhor estratégia para se garantir uma melhoria na qualidade do processo de alfabetização no Brasil: elaborarmos materiais que possam influir nesse processo ou interferirmos no processo para que se obtenha como fruto materiais específicos ade-quados?

Finalmente, em termos gerais de análise dos programas, embora não seja a nossa inten-ção diminuir o valor de cada um deles, entendemos que vale mais uma vez registrar, em Seminário deste porte e projeção, que nenhum desses programas, ou de todos os pro-gramas de alfabetização no Brasil, resolverão o problema enquanto não se modificar a política educacional do país. As camadas populares não fazem parte das prioridades do governo, como se verifica pela política assistencialista e paternalística de questões básicas como saúde, educação, habitação etc. O que se fez neste país, até o momento, foi oferecer o mínimo indispensável (se tanto) para que a situação social não se agravasse a níveis insuportáveis. Enquanto não houver uma política efetiva que vise a real participação dessas camadas nos destinos nacionais, os resultados da educação como um todo, e da alfabetização em particular, serão com certeza bastante insa-tisfatórios.

Para finalizar, apresentarei alguns questionamentos específicos sobre cada um dos pro-gramas apresentados.

PROLESTE

O programa em questão apresenta a avaliação do ritmo individual como um dos meios para se melhorar a qualidade do trabalho, na medida em que permite remanejamentos das classes, em busca de uma maior homogeneidade. Esta homogeneização, com cer-teza, acarretará uma separação entre os alunos que possuem melhores condições devida daqueles com baixa situação sócio-econômico-cultural. Este nos parece um ponto bas-tante discutível, pois tende a reproduzir os sistemas tradicionais, em que as crianças das camadas sociais mais baixas acabam sendo prejudicadas.

LENDO E APRENDENDO E CARTILHA DA AMAZÓNIA

A autora apresentou aqui uma hierarquização das dificuldades, baseada na relação entre percepção visual e coordenação motora, não incluindo a percepção auditiva como habilidade básica para aquisição do código escrito.

Além disso, os exemplos de redações apresentados nos levam a questionar se o pro-cesso está realmente oferecendo instrumental à criança para que ela possa conhecer e analisar de forma consciente o meio que a cerca, pois estes exemplos parecem demons-trar muito mais uma repetição da visão de mundo da professora do que a expressão real do pensamento da criança.

PROEPRE

O primeiro questionamento se prende ao fato de que o processo apresentado pela autora sugere mais uma inclusão restrita das provas piagetianas no processo pré-escolar do

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que um processo metodológico baseado em Piaget, na medida em que não apresenta uma abordagem que envolva todas as atividades escolares.

Outro ponto que nos parece importante é o da minimização do papel do treinamento das funções específicas para a alfabetização, aspecto que consideramos de alta relevân-cia para o sucesso escolar posterior.

PROGRAMA ALFA

Embora na apresentação tenha-se sugerido que o programa visa desenvolver a critici-dade, quero aqui apresentar minhas dúvidas no que tange a esse aspecto. Entendo que a análise crítica tem condições de ser desenvolvida quando fizer parte de fato, fenômeno ou ocorrência concreta pela qual a criança esteja passando, em que ela determine a importância ou não de merecer análise. A função do professor deveria ser, neste senti-do, a de incentivador dessa criticidade. A crítica a situações previamente elaboradas pelo adulto determina que é ele quem decide se elas merecem ser analisadas critica-mente, o que poderá acarretar superficialidade no espírito crítico. Como então elaborar situações prévias que visem desenvolver criticidade em crianças não definidas no espaço e no tempo? Todos nós conhecemos as dificuldades que grande parte dos estudantes qúe atingem níveis superiores têm para realizar análises críticas fundamentais de textos ou de situações reais. Será que isto ocorre porque não se tem preocupações nesse sentido nos níveis elementares de ensino ou porque, desde o início, a crítica é do mestre e não do aluno?

Outro questionamento diz respeito à posição do programa em relação ao processo escolar de crianças de camadas sociais baixas. O fato de que o material se estenda somente até a 3a série pode ter dois significados: primeiro, porque esses alunos não ultrapassam este nível (o que é um dado de realidade) e, por conseguinte, não vale a pena investir recursos em programas de séries posteriores, já que eles não irão mesmo frequentá-las; e segundo, porque este é um período crítico em que o aluno submetido às três séries do programa adquire habilidades e conceitos suficientes para usufruir de quaisquer programas posteriores, independente de sua condição social. A resposta a essa indagação, ao nosso ver, muda substancialmente a análise que se possa fazer desse material.

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Descrição de Programas de Alfabetização

Míriam Lemle Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Na apresentação dos diversos projetos de alfabetização que nos foi aqui oferecida, fiquei positivamente impressionada por algumas virtudes que todos demonstraram:

— a preocupação em conhecer a criança a quem se destina o trabalho, conhecer o vocabulário que ela domina, assumir o seu universo cultural, respeitar o seu ritmo de aprendizagem;

- a preocupação em constituir-se em equipes de trabalho democráticas, com ampla abertura de canais de comunicação entre as equipes e as lideranças e das equipes para os professores em seu dia-a-dia, tudo isso permitindo um constante feed back e possibilitando reformulações e redirecionamentos.

Sem a menor dúvida, essa organização social dos projetos é um fator primordial para o entusiasmo, a garra, a alegria de trabalho que emanaram de seus expositores, e para o sucesso dos programas mesmos.

Acho que frisar este aspecto é muito importante, neste país, neste momento em que estamos vendo e sentindo o fracasso em que redundaram estes anos de obscurantismo político, em que a sociedade deixou de poder tomar parte ativa na construção dos seus destinos, e foi sendo alvo de pacotes e mais pacotes, até que nos vemos inermes nesta situação vergonhosa e explosiva de hoje.

Acho muito importante que cada vez mais pessoas compreendam que na medida em que pequenos grupos, equipes, departamentos, empresas, faculdades, clubes, associações, sindicatos, partidos, aprendem a organizar-se e a funcionar democraticamente, acabarão por tornar simplesmente absurda e incompatível com

o modo de ser normal da nação qualquer outra maneira de organizar-se e funcionar, em qualquer nível, inclusive nos altos níveis do governo. É uma revolução lenta, gradual, mas que mina impla-cavelmente a possibilidade de existência de modos de organização em que o poder venha imposto de cima para baixo. 0 preço é caro: somos todos responsáveis.

Ao passar a comentar os projetos, tenho uma ressalva :é que a quantidade de informa-ção que recebi (as exposições feitas aqui e o material ilustrativo que está exposto ali nos painéis) é pouca para permitir-me uma avaliação segura. Tenho, por isso, mais per-guntas do que juízos.

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O PROEPRE deixou-me com uma dúvida de ordem teórica. Será que o desempenho superior demonstrado pelas crianças submetidas ao método não teria sido atingido por meio de outros métodos de estimulação cognitiva realizados com a mesma fé e afinco? Será que os bons resultados dos testes, que foram interpretados como comprovantes do sucesso do método, não podem ser explicados pela familiaridade maior das crian-ças "proeprianas" com as atividades e materiais proeprianos? Será que o impressio-nante resultado encontrado na Martinica, de uma defasagem de três anos não poderá ser explicado do mesmo modo?

A respeito da Cartilha da Amazónia, notei, nos índices expostos no painel, aquela confusão apontada por Luiz Carlos Cagliari entre unidades exclusivas do sistema da escrita e unidades exclusivas do sistema da fala. Vemos ali que a classificação de tipos de sílaba está colocada junto ao tratamento das letras. É verdade que podemos desculpar o deslise admitindo que se esteja fazendo uma abreviação tácita do dis-curso, de modo que ao fazer referência a "sílabas" escritas no papel se esteja enten-dendo fazer referência às sílabas fonéticas correspondentes. Contudo, seria melhor, por uma questão de higiene teórica, manter claras as fronteiras entre os saberes que dizem respeito ao lado gráfico e aqueles que dizem respeito ao lado fônico da relação simbó-lica que une os sons e as letras.

Outra coisa que notei no painel foi uma falta de correspondência entre a declaração de princípios feita na descrição do projeto, segundo a qual se pretendia respeitar o léxico da criança, e os textos da cartilha ali exibidos. Os textos da cartilha são aqueles tradi-cionais e barbitúricos textos instrutivos, voltados para o objetivo de instruíra criança com informações supostamente relevantes e cívicas, textos cheios de frases no pre-sente do indicativo, o tempo das definições, dos slogans, do habitual, do repetivivo, que certamente não fazem parte do repertório discursivo habitual das crianças de qual-quer parte do nosso planeta. Além disso, é plausível supor que bombardear mentes infantis com sentenças da forma "A é B", sentenças do formato dos dogmas e das receitas, seja pernicioso para a sua formação mental, pois pode veicular a mensagem de que adquirir saber é ficar numa postura robotizada e passiva, engolindo fórmulas, cha-vões, preceitos, receitas e dogmas. Por que queremos isso para este pobre povo?

Aliás, a impressão de passividade imitativa e bajulativa foi a que me veio da leitura aqui feita das cartilhas recebidas dos alunos. Acho difícil crer que crianças livres e sau-dáveis, espontânea e naturalmente produzissem tais textos.

Passo ao PROLESTE, que me pareceu o mais sincero dos projetos aqui apresentados, embora provavelmente deixe menos espaço para a criatividade dos professores do que se afirmou na exposição. A pergunta que quero fazer a seus responsáveis é esta:de que maneira eles encaixam os dados das variedades dialetais desprestigiadas (recrama-ção, carma, operaro) dentro da sua hierarquia de dificuldades (sílabas simples, comple-xidade exceto homofonia, complexidade com homofonia). Há alguma sistematicidade na maneira de fazê-lo?

Quanto ao Projeto Alfa, não me sinto suficientemente informada para arriscar qual-quer comentário.

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CONCLUSÃO

Relatório Final Apresentado pela Comissão Organizadora

O Seminário, promovido pelos Programas de Pós-Graduação em Linguística Aplicada, Psicologia da Educação e Distúrbios da Comunicação da PUC/SP, com o patrocínio do INEP, atingiu plenamente os objetivos propostos e sua programação foi totalmente cumprida.

0 Seminário contou com 129 inscritos, além de professores dos Programas e de especialistas convidados que apresentaram trabalhos, totalizando cerca de 150 participantes.

Dos educadores inscritos, 26 são docentes de universidades federais, 17 de universidades estaduais, professores e alunos de pós-graduação da PUC/SP, 2 docentes de instituições particulares, 21 técnicos e assessores de secretarias estaduais e municipais de educação e 28 profissionais da área médica ou de Fonoaudiologia.

Os temas programados para as mesas-redondas mostraram-se altamente relevantes e polémicos. Sentiu-se que o tempo de debate não foi suficiente para esgotar nenhum tema e que alguns pontos mais nevrálgicos poderão constituir-se em novos temas para futuros encontros.

A discussão interdisciplinar foi uma realidade nesse Seminário, não tendo havido desencontros de comunicação decorrentes da especificidade da linguagem de cada área. Esse sucesso pode ser atribuído não apenas ao fato de todos os apresentadores terem se preocupado em dialogar principalmente com educadores e tonoaudiólogos que trabalham diretamente ligados à prática da alfabetização, como também á escolha feliz dos temas que se prestaram efetivamente a um tratamento interdisciplinar.

Os aspectos mais enfatizados nesse encontro foram:

a) a necessidade de se conhecer e respeitar melhor a realidade psicológica, social e linguística da criança na pré-escola e na fase de alfabetização;

b) a importância de se conscientizar o professor e o preparador de material didático para as diferenças culturais, linguísticas e sociais das várias camadas e regiões do Brasil, para que possam tratá-las sem preconceitos, sempre com o objetivo deatingiro universal através do particular. Para exemplificar em termos linguísticos, partir do dialeto oral para atingir a norma franca, neutra, da escrita;

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c) a necessidade de se investigar melhor e de forma mais global e interdisciplinar a natureza das dificuldades que levam ao sucesso ou insucesso escolar, no ano da alfabetização;

d) a necessidade de se suprir o professor-alfabetizador com a orientação necessária para que ele possa enfrentar essas dificuldades utilizando seu próprio conhecimento, experiência e julgamento, e não agindo como mero robô bem instruído e programado;

e) a necessidade de se avaliar externamente os resultados efetivos dos programas da pré-escola e da alfabetização já implantados no país.

A Comissão Organizadora verificou que, apesar de alguns centros já virem empreendendo trabalhos em algumas dessas áreas, foi durante o encontro que essas experiências isoladas tornaram-se públicas e partilhadas.

Na própria Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde a Comissão Organizadora se formou inicialmente como grupo de trabalho, as linhas de pesquisa na área da aquisição da escrita foram pela primeira vez discutidas, a nível interdisciplinar, mas, assim mesmo, englobando apenas três setores do conhecimento: Psicologia, Linguística e Distúrbios da Linguagem. Constatou-se que apenas nesses três programas há pesquisas em andamento nas áreas (a), (b) e (c). O grupo de trabalho deverá continuar suas atividades, tendo por base esse balanço do que se faz na área de Alfabetização, o que lhe facilitará determinar quais as linhas de pesquisa mais carentes e relevantes para o pais.

Concluindo, acreditamos que a reflexão e o amadurecimento das questões discutidas neste Seminário, de interesse comum a todos os que estiverem presentes, bem como a outros especialistas e interessados na área, possibilitarão um trabalho mais coordenado e mais convergente em termos de objetivo.

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ANEXOS

Expositores Convidados

ANA LÚCIA MENEZES Secretaria de Estado de Educação e Cultura Av. Ivo do Prado, 398 49000 Aracaju-SE

ANY DUTRA COELHO DA ROCHA End. resid.: Rua Lopes Quintas, 390 - apt° 302 - Jardim Botânico 22460 RiodeJaneiro-RJ

BEATRIZ LEONEL SCAVAZZA End. resid: Rua Corveta Camacuã, 397 - Vila Inah 05619 São Paulo-SP

BERNADETTEGNERRE Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP Departamento de Linguística Cidade Universitária - Barão Geraldo Caixa Postal 1170 13100 Campinas-SP

CLAUDIA G. LEMOS Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP Departamento de Linguística Cidade Universitária - Barão Geraldo Caixa Postal 1170 13100 Campinas-SP

FERMINO FERNANDO SISTO Universidade Federal de São Carlos - UFSCAR Via Washington Luiz - Km 235 Caixa Postal 384 13560 São Carlos-SP

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GERALDINA PORTO WITTER Universidade de São Paulo - USP Instituto de Psicologia Departamento de Psicologia Social Caixa Postal 11454 05508 São Paulo-SP

GUIOMAR NAMO MELLO Secretaria Municipal da Educação Av. Paulista, 2198 - 129 andar 01310 São Paulo-SP

GOLDAW. SEGRE End. resid: Rua São Martinho, 116 — Campos Elíseos 01202 São Paulo-SP

JOSÉ GERALDO SILVEIRA BUENO Pontifícia Universidade Católica de Sa*b Paulo - PUC/SP Rua Monte Alegre, 984 - Perdizes 05014 São Paulo-SP

LÚCIA BROWNE REGO End. resid: Rua Prof0 Agen Magalhães, 285 50000 Parnamerim-PE

LUIZ CARLOS CAGLIARI Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP Departamento de Linguística Cidade Universitária - Barão Geraldo Caixa Postal 1170 13100 Campinas-SP

MADALENA WEFFORT A/C Prof? Paulo Freire Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP Rua Monte Alegre, 984 - Perdizes 05014 São Paulo-SP

MARIA INÊSSILVEIRA BUENO A/C Prof0 Sérgio V. de Luna Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP Rua Monte Alegre, 984 - Perdizes 05014 São Paulo-SP

1V1ARIA LAIS MOUSINHO GUIDI Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais — INEP Esplanada dos Ministérios - Bloco L - Anexo I - 1? andar 70047 Brasília-DF

MAURÍCIO GNERRE Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP

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Departamento de Linguística Cidade Universitária - Barão Geraldo Caixa Postal 1170 13100 Campinas-SP

MIRIAM LEMLE Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Av. Pasteur. 250 - Botafogo 20000 Rio de Janeiro-RJ

ORLY ZUCATTO M. DE ASSIS Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP Faculdade de Educação Cidade Universitária - Barão Geraldo Caixa Postal 1170 13100 Campinas-SP

PAULO BEARZOTI A/C Mauro Spinelli Pontif feia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP Pós-Graduação em Distúrbios da Comunicação Rua Monte Alegre, 984 - Perdizes 05014 São Paulo-SP

SÉRGIO ANTÓNIO DA SILVA LEITE End. resid: Rua Apinagés, 1622 - apt° 1002 01258 São Paulo-SP

SUELI DAMERGIAN Universidade de São Paulo - USP Instituto de Psicologia Departamento de Psicologia Social Caixa Postal 11454 05508 São Paulo-SP

TERESA ROSERLEY N. DA SILVA End. resid: Rua Barão de Santa Eulália. 150 - 05685 São Paulo-SP

apt? 61 - Real Parque

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— Abigail Alvarenga Mahoney — Adélia Ester Maame Zimeo — Ademar da Silva — Admardo Serafim de Oliveira — Ana Claudia M. A. de Oliveira Thompson — Ama Maria C. F. de Almeida — Ana Lúcia Vieira Menezes — Ana Luiza B. Smolka — Ana Soares de Souza — Andréa da Costa Pereira Brandão — Anna Maria B. Baeta — Anna Maria Costa Vargas — Antonieta Maame Zimeo — António Manuel Pamplona Morais — Belmair Pereira Gomes — Berenice Cretana Guardiã — Carlos Alberto Faraco — Carmem Silvia R. Taverna — Cecília Beatriz Graziano Barreto — Cecília Chiattone — Celene Marques Ferreira — Cely Teresa Arena — Claudia Martinez Cardoso — Claudia Nívia R. de Souza — Clésio Hipólito Pinto —' Cleusa Aparecida Fernandez — Déa Lúcia Campos Pernambuco — Delmira de Fraga e Karmann — Denise Costa Lima da Rocha — Dolíria Luiza de Freitas — Edgar Linhares Lima — Eleonora Estela Toffoli Ribeiro

Participantes do Seminário

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- Eliane Cattucci - Eiiane Ricter Caron - Elisa Jossié Akamine - Elsa Maria M. Pessoa Pullin - Elvira Meneghesso Parada - Elza Maria Elias - Eneida Rita Rossetti Fausto - Eudóxio Soares Lima Verde - Eulália Malmoni Faria - Fátima Cristina Souza Conte - Francisco Renato Lobo - Genny Golubi de Moraes - Graciela Huecu Maldonado Loch - Grauben José Elias Alves de Assis - Helerina Aparecida Novo - Heloísa Helena Sant'anna - Heloísa Hayashida Tolentino - Iara Soares Décimo Martins - Idméia Semeghino Siqueira - Isolda Camará Gualberto - (vone do Canto Almeida - Jeinnie Tamar Belinski Maftum - José Contini Júnior - José Luiz Beltran - Joyce Scala - Júlia Kawasaki Hori - Leani Inês Ruschell - Leda Sónia Oliveira Linhares - Lianna T. de Vasconcelos - Lilian Daisy K. Weber - Lilian Maria N. Costa - Liliane Rezende Junqueira - Luciana Maria Giovanni Thofling - Luzia dos Santos Rezende - Márcia Acosta - Maria Alice Parente - Maria Aparecida Leite Soares - Maria Aparecida Trevizan Zamberlan - Maria Beatriz Gonçalves L. Albernaz - Maria Cecília Rafael de Góes - Maria Cristina Tomé Baptista - Maria Elizabeth Motta Zanetti Baptista - Maria Estela Marques - Maria de Fátima Guerra de Souza - Maria da Graça Abreu Segolin

- Maria das Graças Fleury U. de Souza - Maria José Gomes Rabelo - Maria José C. Gonçalves - Maria José Reginato Ribeiro - Maria Lais Mousinho Guidi - Maria Lucília N A. de Alencar

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— Maria Luiza Gonçalves Castello — Maria Mercedes Pinto Saraiva — Maria Perpétuo Socorro S. Pereira — Maria Teresa A. Campos M. Luz — Maria Tereza Cunha de Paula — Mari Nilza Ferrari de Barros — Mariangela Lopes Bitar — Marília Claret G. Duran — Marlene Beatriz P. Cortese — Marli Pinto Ancassuerd — Marlise Aparecida Bassani — Martha Sirlene da Silva — Martine Worms — Miriam M. Del Rey — Mírian Paura S. Z. Grinspun — Naoe Hirashima — Nadia Lascani — Neide Varela Santiago — Nilza Tenório — Odenildo Teixeira Sena — Odete Carolina Bernardi — Olga Molina — Patrícia Almeida Fernandes — Priscila M. Grinblat — Regina Cândida E. G. Gonçalves — Regina Hara — Rita de Cássia de Almeida Cruz — Roberto Castanheira Pedroza — Rosaly Pereira de Souza — Salete Mocelin — Sandra de Pádua — Sérgio Kodato — Silvânia Aparecida M. Chaban — Solange Cecília Franco — Solange Leme de Oliveira — Suely A. P. Tonarqui — Suely Grimaldi Moreira — Sueli Inês Arrua Issa — Suzana Orio Bastos — Vani Ruiz Viessi — Tereza Donato Medeiros — Terezinha Maria Pancini de Sá — Zélia Maria J. F. dos Reis — Zélia Temin .— Wanda Farraroni Teixeira — Wilma Cecília Chiozzine

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Composto a impresso na ATELIER GRÁFICO LETTERA LTDA.

SIG Quadra 8 • Lota 2.318 - 2ª andar Fones: 225-6176 a 225-6303 - Brasília-DF

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