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Festim Barroco.Ensaio de Culturanálise

da Festa de Nossa Senhora dos Prazeresdos Montes Guararapes/PE

São Luis/MAEDUFMA

2009

Alexandre Fernandes Corrêa

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À minha mulherAdriana Cajado Costa

O início de nossos tempos de estudo

CORRÊA, Alexandre Fernandes. Festim Barroco. Ensaiode Culturanálise da Festa de Nossa Senhora dosPrazeres dos Montes Guararapes/PE. São Luis/MA:EDUFMA, 2009, 136p. il.

ISBN 978-85-7862-046-2

Capa: Fachada da Igreja de Nossa Senhora dos Prazeresdos Montes Guararapes/PE

Impresso somente no formato eletrônico (e-book)

De acordo com a Lei n.10.994, de 14/12/2004,foi feito depósito legal na Biblioteca Nacional

Este livro foi autorizado para domínio público e está disponível paradownload nos portais do MEC [www.dominiopublico.gov.br] e do

Google Pesquisa de Livro

FICHA DE CATALOGAÇÃO

Edição desenvolvida através do projeto e-ufmaVisite www.eufma.ufma.br

e saiba mais das nossas propostas de inclusão digital

Universidade Federal do MaranhãoGabinete da Reitoria - Administração Natalino Salgado Filho

Diretor da Imprensa Universitária: Ezequiel Antonio Silva Filho

Adaptação da Dissertação de MestradoFestim Barroco: um estudo do significado cultural da

Festa dos Prazeres em Pernambuco,defendida na Universidade Federal de Pernambuco,

sob orientação de Roberto Mauro Cortez Motta, em 1993

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“Não adotemos esses espetáculos exclusivos que encerram tristemente umpequeno número de pessoas em um antro escuro; que os mantêm temerosos e

imóveis no silêncio e na inércia. (...) Não, povos felizes, não são estas as vossasfestas. É preciso reunir vos ao ar livre, sob o céu aberto e entregar vos ao docesentimento de vossa felicidade. (...) Mas quais serão afinal os objetivos desses

espetáculos? O que mostrarão? Nada, se quisermos. Com liberdade, por todaparte onde reinar a afluência o bem estar aí estará reinando. Erigi em meio a uma

praça uma estaca coroada de flores, reuni em torno o povo e tereis uma festa.Fazei melhor ainda: transformai eles próprios em atores, fazei com que cada um

se veja e se ame nos outros a fim de que todos estejam mais unidos”.JEAN JACQUES ROUSSEAU, Lettre à d’ Alembert

“Aquele fenômeno social que distingue as civilizações é o fenômeno religioso. É oúnico que não pode ser imposto por uma elite; é o único que representa

diretamente as emoções humanas que é donde a ação nasce; é o único quereúne fortemente as qualidades de ser, ao mesmo tempo que intimamente

individual, inteiramente coletivo, abrangendo assim completamente tudo quantoconstitui a forma espiritual de determinada civilização”.

FERNANDO PESSOA, 1918

“Diria que barroco é aquele estilo que deliberadamente esgota (ou pretendeesgotar) suas possibilidades e faz limite com a própria caricatura. (...) Barroco(baroco) é o nome de um dos modos do silogismo. O século XVIII aplicou o a

determinados abusos da arquitetura e da pintura do século XVII. Eu diria que ébarroca a fase final de toda arte, quando ela exibe e exaure os seus recursos. Obarroquismo é intelectual e Bernard Shaw disse que todo trabalho intelectual éhumorístico. Esse humorismo é involuntário (...) ou é voluntário e consentido”.

JORGE LUIS BORGES. História Universal da Infâmia, 1986

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SUMÁRIO

Apresentação

Introdução

Barroco: conceito em perspectiva

Origem do culto àNossa Senhora dos Prazeres

A sócio-etnografia da festae da procissão religiosa

Culturanálise da festa deNossa Senhora dos Prazeres

A imagem barroca daCivilização Latino-Americana

Bibliografia

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Apresentação

Desde tempos imemoriais, boa parte da humanidade tem sededicado a cultuar grandes deusas de caráter maternal que no fundosimbolizavam talvez a velha Terra, que nos carrega e amamentacom seus frutos. Numa longa seqüência, que possivelmente inclui aVênus Calipígia e outras contemporâneas, temos Ishtar, a RainhaEster, Isis - a Grande Mãe(de “As Brumas de Avalon”). Nos paísescatólicos este culto se reflete nas mil e uma versões de NossaSenhora, como é o caso brasileiro. Aqui, de norte a sul do país, amaioria das grandes festas populares religiosas homenageia estasdeusas mães, sendo que algumas delas estão associadas a tambémdeusas mães de origem africana, como Iemanjá e Oxum. O maisinteressante é que, longe de estarem em declínio, tais festas, pelocontrário crescem a cada momento que passa.

O culto público a tais divindades, no Brasil, tem certascaracterísticas recorrentes. Uma delas é a capacidade que esteseventos possuem de incorporar num mesmo todo, simultaneamente,elementos aparentemente desconexos, seja ao nível de dimensõesmateriais, concretas, seja ao das representações dos vários gruposaí envolvidos. Temos, então, por exemplo, tanto o “Salve NossaSenhora Tal”, como a saudação em Nagô para a Santa com a qual éassociada; tanto o discurso moral-conservador dos padres, como oesfrega-esfrega dos casais de namorados; meninos vestidos de anjotomando coca-cola: isto é, o antigo e o novo, sem regras aparentes,tudo convivendo lado a lado no mesmo espaço.

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Apresentação

Escrevendo em estilo claro, sem as não incomuns academicicesrançosas que costumam assolar tais trabalhos, Alexandre Corrêaproduziu uma obra que sem dúvida atuará como referência parafuturas incursões antropológicas no rico terreno das festas popularesbrasileiras. Portanto, que vale a pena ser lida e consultada.

Norton F. CorrêaAntropólogo,

professor do Departamento deSociologia e Antropologia da UFMA.

Doutor em Antropologia pela PUC\SP

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Norton F. Corrêa

Esta mistura de elementos, recortada e caprichosa,exuberante, polícroma e dinâmica, agregando épocas e estilos, éjustamente o que caracteriza o barroco, seja na arquitetura, seja namúsica.

Para Alexandre Corrêa, entretanto, o barroco, como expressãocultural, não se restringe apenas a estes dois campos: revela-se, ede maneira privilegiada, também nestas festas, pois incorporam, talcomo na arte, dimensões múltiplas da realidade histórica e socialdas populações que delas participam. Considerando isto é queassinala a importância de se estudar tais eventos, visto querepresentam expressões da vida destas populações. Partindo deuma abordagem antropológica, o autor toma como objeto duasfestividades: uma, a de Nossa Senhora dos Prazeres, em Jaboatãodos Guararapes, no Grande Recife, com profundo sentido histórico.Outra, a que ocorre no que ele chama “Bairro-Festa” da Madre deDeus, em São Luis do Maranhão, representativa por ocorrer em umdos locus sentimentais-culturais da cidade.

A primeira, que centra o trabalho, adquire importânciarelevante por envolver um acontecimento crucial na cultura brasileira:o momento em que, derrotando e expulsando os holandeses, o Brasilopta pela cultura latina. As solenidades transcorrem numa áreatransformada em Parque Nacional e tombada pelo PatrimônioHistórico e Artístico (o que basta para sublinhar o significado doacontecimento), onde o templo religioso ali existente, dedicado àSanta, é simultaneamente o monumento que simboliza a vitória. Opróprio Exército Brasileiro, que situa seu surgimento exatamente apartir daquelas batalhas, encarrega-se, na data, de apresentar umadramatização do combate. Diz uma lenda que Nossa Senhora dosPrazeres transformava em bombas as pedras, que, em falta de coisamelhor, nossos mal-aparelhados combatentes jogavam nos invasores.

Tanta a festa dos Guararapes como as da Madre de Deus sãoocasiões, sem dúvida, onde podemos surpreender o tipicamentebarroco ao vivo e a cores, ilustrado ainda pelo fato de que ambas ashomenageadas são representantes clássicas da Grande Mãe protetorada humanidade.

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Introdução

O homem nunca desaparece em proveito do sistema.Ora, essa exigência de conduzir um projeto científico

sem renunciar à sensibilidade artística chama-se etnologia.François Laplantine; 1988: 85.

Esse ensaio compõe-se de algumas reflexões etnológicas sobrerealidades sócio-culturais muito presentes em nossa sociedade. Sãoas festas de santo no Brasil. A importância delas em nosso contextocultural é considerável e marcante. Existe já uma vasta bibliografiaque focaliza as mais diversas festividades católicas espalhadas peloPaís e pelo continente. Tornou-se difícil dar conta de volumes tãodensos e numerosos. Aqui tentei, na medida do possível, aproximar-me dos mais importantes e destacados. Alguns destes textos e obrasserão citados textualmente, outros se apresentam de formasecundária. No entanto, esse ensaio é o resultado de três anos deintensa e determinada dedicação ao estudo dos eventos rituais esimbólicos ligados a Festa de Nossa Senhora dos Prazeres dos MontesGuararapes.

Desde o primeiro momento em que entrei em contato com asmanifestações religiosas e profanas devotadas a esta Santa Católica,comecei a desenvolver reflexões sócio-etnológicas sobre seu tema.Questões relativas a religiosidade, a identidade cultural, ao estudodos ritos, etc., na nossa sociedade brasileira e latino-americana.Este livro é o resultado dessas reflexões, espero que seja satisfatórioe que contribua para as recentes investigações empreendidas pelaetnologia e a sociologia contemporânea.

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que a superestrutura se modifica mais lentamente que a baseeconômica, as mudanças ocorridas nas condições de produçãoprecisaram mais de meio século para refletir-se em todos os setoresda cultura” (Benjamin; 1987: 165).

Assim fica evidente que as formas de comportamento coletivo,as ideologias e os sistemas de valores de um povo possuem umalógica de transformações diferentes e específicas aos seus variadosdomínios. As funções e as estruturas significativas de diversos setoresda cultura modificam se em ritmos diferenciados, e as vezesantagônicos, revelando pontos de inércia ou de aceleração. O quequero afirmar é que os homens não têm sua práxis determinadaapenas, e em última instância, pelas atividades tecno-econômicas:a condição humana é multifacetada, é uma “síntese de múltiplasdeterminações”, como escreveu Karl Marx.

Acredito ser fundamental a pesquisa que tenta compreenderas orientações ideológicas e míticas em que se norteiam os povosna definição de seus destinos históricos. E falar de mito, de história,é falar de memória social, identidade cultural, etnicidade, etc. Osignificado cultural último da práxis humana é a sua orientaçãopositiva dentro de quadros de memória social e cultura, pois afinalcultura é memória. Percebemos assim a importância da análise dosprocessos de construção das identidades culturais em sociedade,em função das relações entre as diversas estruturas simbólicas. Mas,não existe o homo oeconomicus, homo politicus, etc. O homem éum ser integral, não podemos concebê-lo de modo fragmentado oucompartimentado em instâncias estanques e compartimentadas(sócio\bio\psico).

De acordo com esta perspectiva, não compreendo, porexemplo, a expulsão dos holandeses de Pernambuco, no século XVII,apenas como uma resposta da classe dos proprietários e comerciantesportugueses e brasileiros contra os altos impostos cobrados pelosadministradores coloniais das Índias Ocidentais, principalmente apósa queda de Maurício de Nassau. Não foi em nome “apenas” da defesada “propriedade” dos engenhos de açúcar que Fernandes Vieira etodos os generais insurrectos (destaque para Francisco Barreto, figuracentral no processo) promoveram as guerras de Restauração. Afinal,duraram quase uma década os combates contra os holandeses.Acredito, antes, que o enfoque importante na análise dessesacontecimentos históricos é a evidente incompatibilidade cultural

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Introdução

Em busca de decifrar o que designo aqui de “o significadocultural” da festa de Nossa Senhora dos Prazeres, procurei penetrarna realidade fenomenológica dos ritos e processos sociais queestruturam e constituem a Festa Popular. Segui basicamente o métodosócio-etnográfico da observação participante, orientando a minhapesquisa para uma experiência científica na construção do objeto doestudo. Neste particular percorri caminhos sugeridos por autoresconsagrados na Antropologia moderna, como Claude Lévi-Strauss(1975; 1976), Roberto da Matta (1987), Eunice Durham (1986), eoutros, que em textos instigantes enfocaram as vicissitudes dotrabalho do campo nas ciências sociais. Para melhor compreensãoda utilização destas técnicas encaminho o leitor para a parte dotexto em que apresento a metodologia seguida na pesquisa.

Nesta breve introdução gostaria de apresentar alguns pontosteóricos importantes que nortearam minhas investigações. Um autorque serviu de orientação recorrente nestas reflexões foi o sociólogoalemão Max Weber. Num célebre texto sobre a ‘objetividade’ dasCiências Sociais, este pensador faz três distinções quanto ao estudodos problemas sociais e econômicos; são eles:

a) Eventos ou instituições “econômicas” em sentido estrito;

b) Fenômenos “economicamente relevantes”;

c) Fenômenos economicamente condicionados.

Seguindo estes indicadores, compreendo que esta pesquisalida com “fenômenos economicamente condicionados”, e como buscoaqui o “significado cultural” dos fenômenos sociais enfocados napesquisa, não faço nada mais que seguir os princípios elaboradospor Max Weber quando considera que a investigação científica deveapreender: “o significado cultural geral da estrutura sócio-econômicada vida social humana e das suas formas de organização históricas”(Weber; 1986: 79-80).

Dito isto creio ter ficado claro que não deixei de levar emconta o background econômico que todo fenômeno cultural possui.Vivemos em uma sociedade de classes, com desigualdades terríveis,num processo colonial ainda persistente. No entanto, não podemoscompreender a realidade de uma forma reducionista, pois como noslembra Walter Benjamin, no seu estudo sobre a reprodutibilidadetécnica da obra de arte no começo do século XX: “Tendo em vista

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Alexandre Fernandes Corrêa

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O conceito de barroco nos vem cheio de ambigüidades, éverdade. Neste primeiro capítulo, no entanto, procurei dar-lhe umavisão positiva, situando o no campo simbólico da análise. Nasconsiderações finais desse ensaio, retomarei esse temaimportantíssimo, pois como nos diz a historiadora Janice Theodoro,“[a] colonização da América foi obra barroca, (...) o barroco constituise em paradigma da cultura latino americana” (1992: 119).

Após a apresentação da problemática em torno do conceitode barroco, começo a apresentar os dados históricos quefundamentam os argumentos e as hipóteses sugeridas neste estudo.Assim, no capítulo dois, procurei situar as origens históricas do cultoa Nossa Senhora dos Prazeres, incluindo aí elementos arqueológicosque são analisados pelo estudioso português Moisés Espírito Santo(1988; 1990), que investigou as origens babilônico-judaicas do cultoa Mãe Terra – arquétipo presente em vários sistemas culturais. Dessasorigens, esse autor passa à Península Ibérica, onde documenta aforça que tem o culto mariano em Portugal.

A cultura portuguesa é, como bem sabemos, uma daspoderosas heranças históricas que alicerçam a formação socialbrasileira, e sua influência é inegável em nosso inconsciente social.É em Portugal que, pela primeira vez no mundo católico, aparece oculto específico a Nossa Senhora dos Prazeres, isto no século XIV.Esse culto possui uma série de particularidades, cuja relevância paraser compreendida em sua integridade, será aprofundada no contextodo presente estudo. Nas terras de Santa Cruz essa devoção se ligaefetivamente as origens da civilização brasileira. Por volta da primeirametade do século XVII, os holandeses protestantes invadem extensoterritório do Nordeste do Brasil, que vai desde São Luís do Maranhãoaté o Sergipe atual, com incursões constantes à sede da Colônia, acidade de São Salvador da Bahia. A capital do governo invasor dasÍndias Ocidentais é Recife, que passa a ser a cidade mais concorridae populosa de todas as Américas, segundo nos diz Fernando deAzevedo em A cultura brasileira (1971: 439).

Passaram se 24 anos até a expulsão definitiva dos chamados“batavos hereges”. E foi nas batalhas dos Guararapes que se definiua situação da colonização em nosso país. A importância desses fatoshistóricos é inegável, e nos capítulos seguintes demonstrarei comminúcia os detalhes de tal processo. O certo é que a festa e aprocissão religiosa de Nossa Senhora dos Prazeres são a expressão

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Introdução

dos holandeses com a sociedade e a cultura que estava seconstituindo na região; naqueles primeiros séculos do surgimentoda civilização brasileira. A empresa colonial das Índias Ocidentaisjamais conseguiu abalar a empresa colonial portuguesa e espanhola,nas suas bases sócio-culturais mais estruturais.

Assim, me arrisco em afirmar, e defender a hipótese, de queas razões para tal fracasso holandês – na época a nação européiamais poderosa, na vanguarda do capitalismo emergente – não foramde ordem econômica e, sim, cultural. Nesta dissertação apresenteiuma série de documentos e levantamentos etnográficos que, creio,vêm corroborar esta hipótese culturalista.

Na defesa dessa hipótese, proponho uma reflexão sobre acultura barroca na América. Esta cultura se contrapõe àquela dosprotestantes holandeses. A Reforma luterana engendrou um tipo decivilização peculiar, é o que concluímos da leitura do livro de SimonSchama, O desconforto da riqueza: a cultura holandesa na época deouro (1992), que revela especificamente a realidade cultural do povoholandês no período da invasão do Nordeste do Brasil. Outro textoimportante é o de Max Weber, A ética protestante e o espírito docapitalismo (1967), em que podemos compreender de que forma asmudanças nos princípios morais e éticos da religião cristã promoveramuma transformação radical na ‘visão de mundo’ (Weltanschaung) demuitos povos da Europa do Norte, com reflexos principalmente nocomportamento econômico de suas populações, em meio às quais aracionalização da existência chegou aos extremos do utilitarismo,resumido na fórmula “time is money”!

O tema da cultura barroca vai ser central na argumentaçãoaqui apresentada. O primeiro capítulo é dedicado aos problemassemânticos em torno do conceito de barroco. Nesse ponto apresentoas bases teóricas que me serviram de base para a crítica. O barrocoaqui não será usado como na História da Arte tradicional, que limitao termo a um período histórico ultrapassado na civilização ocidental.Tentei esboçar as linhas gerais que fundamentam o conceito debarroco valendo-me do auxílio de estudos importantes, como os deJosé Maria Valverde (1985), de Roger Bastide (1940), de JaniceTheodoro (1992), entre outros. A partir da análise histórica,aproximo-me da interpretação da sociologia do barroco brasileiro,como expressão total de uma cultura e uma civilização latinoamericana.

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Prazeres revela se como um culto religioso cívico militar popular,com imagens e símbolos ligados a um projeto de civilização barroca,constituindo se no que o professor Roberto Motta chamou de “aherança viva das matrizes culturais geradoras do barroco” (1980:29). Esse projeto se contrapõe ao projeto reformista luterano ecalvinista, representado pela Holanda, à época da Colônia.

Concluo o trabalho com algumas reflexões sobre a identidadecultural latino americana. Apresento, aí, idéias que defendi no“Congresso da América: Raízes e trajetórias”, em 1992, oportunidadeem que enfoquei a obra de Octavio Paz. O ensaísta mexicanoquestiona com muita pertinência os problemas levantados aqui,quando nos indaga:

Alguns acham que todas as diferenças entre os norte americanos e nós sãoeconômicas, isto é, que eles são ricos e nós somos pobres, que nasceram nademocracia, no capitalismo e na Revolução Industrial e nós nascemos naContra Reforma, no monopólio e no feudalismo. Por mais profunda edeterminante que seja a influência do sistema de produção na criação dacultura, recuso me a acreditar que bastará possuirmos uma indústria pesadapara vivermos livres de qualquer imperialismo econômico, para quedesapareçam as nossas distinções (...) (1976: 23).

Esse questionamento está na base de qualquer análise sobrenossa identidade cultural. Nós nos sentimos diferentes. E o que éque nos faz diferentes, e em que consistem essas diferenças? Paraaprofundarmos estas reflexões precisaremos resgatar outro autorde suma importância, que vem levar as últimas conseqüências osensinamentos de Roger Bastide sobre as Américas:

O Brasil assim como a América Latina (...) oferece a imagem ou a ilusãodaquilo que poderia ter sido uma civilização que houvesse acolhido outraopção, diversa da rentabilidade e do capital. O ingresso na economia demercado era inevitável? Por acaso, é inconcebível a existência de umasociedade que pratique a redistribuição da riqueza, orientando se para aprocura do desenvolvimento de homens e mulheres, ao invés do esforço nosentido de uma organização sistemática com vistas a eleger o trabalho comoa única finalidade social dos seus membros? Quatro séculos mais tarde, apergunta ainda não parece haver sido formulada (Duvignaud; 1973: 24).

Existe um debate profundo por trás dessas reflexões,atingindo, de cheio, o problema da identidade cultural latinoamericana. Efetivamente, tais procedimentos rituais e míticos estãoarraigados em nosso inconsciente coletivo. A busca de seussignificados só pode ir de encontro às estruturas inconscientes, que

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Introdução

ritual e mítica das comemorações que se realizam na atualizaçãohistórica desses acontecimentos. Isto se faz há 336 anos!

Participam destes eventos diversas instituições sociais.Podemos dizer com Marcel Mauss (1974; 1981) que ai está um“fenômeno social total”, em que revelam-se diferentes linguagens,pois, de fato, os ritos e os mitos constituem linguagem social,possuindo unidades significativas com lógica própria.

No presente estudo, procuro encontrar exatamente asestruturas que expressam o significado cultural destes ritos e mitos.Isto será discutido no capítulo quatro, no qual, a partir das análisesde Gilbert Durand, represento graficamente as diferentes unidadessemiológicas que compõem o processo, o qual pode ser dividido emperíodos, de acordo com uma seqüência diacrônica.

A partir desta análise histórico cultural e apoiado na descriçãoetnográfica das festas de 1991, 1992 e 1993 - matéria do capítulotrês da dissertação - podemos encontrar elementos precisos quenos darão condições teóricas para traduzir seu significado cultural.Sigo o desenvolvimento teórico sugerido por Max Weber, quandonos diz: “O domínio do trabalho científico não tem por base asconexões ‘objetivas’ entre as ‘coisas’, mas as conexões conceituaisentre os problemas” (Weber, 1986: 83).

No final destas observações, quero enfatizar a importânciade trabalhos inspiradores como o de Serge Gruzinski (1990), quedesenvolve magnífica pesquisa sobre o barroco na civilizaçãomexicana; a obra de Pierre Sanchis (1983), que estuda as romariasportuguesas; o trabalho de Isidoro Alves sobre O círio de Nazaré(1980), que servem como elementos de comparação sobre auniversalidade desses processos rituais característicos, e como pontosreflexivos quando discuto as particularidades de seus significadosculturais específicos. Destaco, em especial, o artigo de Eric Wolf(1969) sobre a Virgem de Guadalupe, do México. Como esse autor,creio que existe um “idioma cultural” bastante específico em cadauma dessas expressões fenomenológicas. Diferenciam se elas a nívelmítico, pois cada uma, como o Círio de Nazaré, possui característicaspróprias, ligadas à história regional ou nacional, onde estão inseridas.

Nos Guararapes observamos uma semiologia - um “idiomacultural” - que contém unidades significantes distintas. Esses traçosdistintivos são o que constitui seu simbolismo. Nossa Senhora dos

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Alexandre Fernandes Corrêa

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confrontando uma realidade altamente hierarquizada, desigual ediscriminatória. Nestes momentos admiramos manifestar se umavocação democrática, igualitária e subversiva, que coloca em questãotoda uma ordem estabelecida.

Pode se afirmar, ainda mais, que a característica central denossa civilização é que ela constitui um modelo diferente deorganização social, em que aparece um pluralismo étnico e religiosode alcance nunca antes imaginado no mundo ocidental. No quepoderíamos chamar de pós modernidade de nossa cultura, vemosum projeto de universalização em um futuro bem próximo. E isto jáse foi percebido por autores como Serge Gruzinski (1990) e RobertoMotta (1991). Pois, se há alguma esperança no horizonte a que nospossamos inclinar favoravelmente, é a de que existe de fato, emnosso imaginário social, um projeto de civilização onde a vida aindapreserva seu encanto, pondo termo a um processo de fossilizaçãoesterilizante. Seremos apenas espectadores deste mundo que estarpor se construir? Acredito que não! Penso que a pesquisa científicarevela as leis que regem os fenômenos, destarte contribuindo paraa transformação, e não para a mera contemplação, do mundo.

Afinal, eu não terei talvez feito, neste estudo, mais que ilustraro que a historiadora Janice Theodoro escreveu com muitapropriedade:

Muitos autores referem se à construção de uma identidade latino americanabaseando se nestas fusões tão bem representadas pela Virgem morenacultuada em todo México. O exemplo poderia ser ampliado para inúmerasmanifestações barrocas espalhadas pela América Latina e que teriam sofrido“influência” das tradições indígenas (e africanas). Nesse sentido, a estéticabarroca corresponderia a uma fantasia crioula (1992: 141).

Agora, algumas palavras devo registrar quanto à metodologiae à técnica de investigação que utilizei no presente estudo.

Anualmente, após a Semana Santa, segundo o calendáriocatólico, realiza se - há 336 anos, como disse, desde a construçãoda capela - a conhecida festa e procissão em honra de Nossa Senhorados Prazeres em Jaboatão dos Guararapes, região do Grande Recife.Nessa ocasião, realizam-se diversos e diferentes eventos ecerimônias, que vão de um grau mais intenso de sacralidade até aoprofano mais lúdico e político. Foi esse o universo por mim estudado,o qual se restringe a esses eventos e cerimônias e aos fatos históricosque lhe estão intimamente ligados. Para tanto, envolvi-me em contato

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Introdução

são seus verdadeiros suportes de significação. Porém, eles setraduzem, obviamente, na realidade concreta de seus significantes,que são seus ritos. Na sociologia do rito, tão bem desenvolvida porJean Cazeneuve, podemos classificar os fenômenos que analisamosem “(...) ritos comemorativos que consistem em recriar a atmosferasagrada, representando os mitos ao longo de cerimônias complexase espetaculares” (S/D: 25). Esses ritos fazem parte de um vasto edifundido complexo de liturgias políticas e sociais, como indica ClaudeRiviére (1989). A sociedade se utiliza do rito, pois “o rito é o meioteatral de dar crédito a uma superioridade e, portanto, de obterrespeito e honra através da ostentação de símbolos da dominação,de riqueza, de realizações algumas vezes imaginárias de que o inferiorcarece”. A sociologia do rito certamente é uma atualização a nívelsincrônico desses conteúdos inconscientes e imaginários. Aimportância de tais estudos em nosso país pode se perceber aorefletirmos sobre o que nos diz ainda o autor: “Mais do que naFrança jacobina já há muito tempo laica e unificada, terão deexaminar nos ritos do Brasil a articulação do político, do religioso,do militar e do popular, considerando, aliás, que o religioso pode serlido em cerimônias puramente laicas” (p. 40).

Em síntese, no presente estudo tentou-se esboçar as linhasgerais que fundamentam o conceito de barroco. Assim é que procuroencontrar a função, a importância desse fenômeno na nossasociedade, o que ele quer dizer e revelar sobre nós mesmos. Pretendirevelar tal realidade como “fala”, pois o mito é uma fala histórica.Foi disso que se ocupou a pesquisa que ofereceu a base para estelivro: uma busca pela ‘língua” que estrutura essa “fala”, esse “idioma”,a qual só podemos encontrar quando vamos ao encontro dela, vivendosua realidade. Como nos ensina a etnologia contemporânea.

Acredito que é oportuno, apesar de o quadro atual de nossavida política passar por momentos de lamentável conturbação,procurarmos enfrentar os desafios que questionamentos e pesquisasdessa ordem colocam para todos. Nesse sentido o que vejo revelarse, como linguagem precisa, destes conjuntos de dados apresentados,é um desejo real de nossa população em ver destruídas as formashistóricas de dominação que determinam um destino cruel para amaioria das nações que compõem o nosso continente. A utopia estáexpressa nas diferentes formas de festividades e cerimôniaspopulares. Nelas vemos a força latente de impulsos contraditórios

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campo, com a classificação, descrição e análise dos fenômenos culturaisparticulares (quer se trate de armas, instrumentos, crenças ou instituições).No caso dos objetos materiais, estas operações prossegem geralmente nomuseu, que pode ser considerado, sob este aspecto, como um prolongamentodo campo” (1975: 395).

O material bibliográfico consultado constou de livros, artigos,publicações e teses acadêmicas que tematizam questões pertinentesà pesquisa. Este material está fichado, catalogado e arquivado.

Nas entrevistas foi, sempre que possível utilizado gravador,com o qual fiz, também, o registro dos discursos de lideres religiosos,civis e militares, que participaram dos eventos.

Em linhas gerais, como o objeto deste estudo não se constituide “primitivos” ou “selvagens” - pois se trata de uma antropologiaem sociedade nacional moderna - meu sentimento de estranhamentoe solidão etnográfica foi relativo. Como bem lembra Roberto da Matta(1987), o processo de conhecimento etnológico é cheio de angústias,e talvez este seja o mais difícil obstáculo a superar. Colocamos emdúvida tudo. Quem somos? O que desejamos? Para que servirá apesquisa? São perguntas que sempre surgem, mais que acabampor contribuir com a renovação constante do projeto científico dadisciplina antropológica.

O meio urbano – metropolitano mais precisamente – em queempreendi minha pesquisa possui características bem distintasdaquelas que emergem do contato com grupos humanos da floresta,do meio rural, ou de regiões mais distantes. Porém, não se deixa, aítambém, de sentir aquele mesmo sentimento do “anthropologicalblues” de que nos fala Roberto da Matta. Pois, de fato, por mais“objetivo” que pretendamos ser, passa por nós, através de nós, todaa expressão existencial que uma aventura desta ordem inflige. Nossaambição científica sempre resvala no coração do homem, e é daí,me parece, que fala mais forte o sentido de todo projeto de conhecera realidade humana.

Vivi momentos de solidão e comunhão, de surpresa e espanto,de medo e temor... Porém, tudo somado, foi um empreendimentomaravilhoso, humano, crítico. Os aspectos metodológicos por mimutilizados não se esgotaram num formalismo cientificista de manual.Procurei encontrar a Vida, o sentido presente daquilo que estavapesquisando, movido por uma estranha paixão, a paixão de quevinha de longe em busca de uma experiência marcante e fascinante.

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Introdução

efetivo de três anos (1991, 1992, 1993). A descrição da Festa partiuprincipalmente do ano de 1992, tendo tido, em 1991, os contatospreliminares, e, em 1993, os retoques finais à pesquisa. Vali-me daobservação participante e de entrevistas abertas (estas técnicas seinspiram nas obras de Roberto da Matta (1987), que expõe de formaexemplar as vicissitudes da prática etnográfica; e em Eunice Durham(1986), de importância singular neste contexto urbano), através doque procuro descobrir as estruturas antropológicas subjacentes aum conjunto difuso e múltiplo de acontecimentos, a saber:

a) o hasteamento da bandeira de Nossa Senhora dos Prazeres,que simboliza a abertura oficial das cerimônias;

b) a procissão que sai da casa dos juizes da festa;

c) as missas e as rezas que se realizam no novenário daSanta;

d) o parque de diversões;

e) os eventos cívicos;

f) a repercussão nos meios de comunicação.

Minha investigação não se restringiu a uma observação densade tais acontecimentos nos Montes Guararapes e na comunidade dePrazeres. Ampliei meu estudo também em direção aos museus nacidade do Recife e à busca de documentos em bibliotecas públicasfederais e estaduais. Pesquisei, ainda, a produção literária, teatral,cinematográfica e científica disponível sobre a matéria.

As técnicas de investigação complementaram se pela consultaa fontes bibliográficas, artigos e teses acadêmicas que abordam otema; por entrevistas semi estruturadas, depoimentos tomados demaneira formal e informal; e, mais, pelo registro fotográfico doseventos rituais e do espaço físico. Em última análise pretendi deuma maneira ou de outra, seguir os preceitos que Lévi Straussenumerou quando propôs um conceito para a etnografia:

Todos os países, parece, concebem a etnografia da mesma maneira. Elacorresponde aos primeiros estágios da pesquisa: observação e descrição,trabalho de campo (field work). Uma monografia, que tem por objeto umgrupo suficientemente restrito para que o autor tenha podido reunir a maiorparte de sua informação graças a uma experiência pessoal, constitui o própriotipo de estudo etnográfico. Acrescentar se á somente que a etnografia englobatambém os métodos e as técnicas que se relacionam com o trabalho de

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Barroco: conceito em perspectiva

Se o Barroco é definido pela dobra que vai ao infinito, em que é elereconhecido de uma maneira mais simples?

Gilles Deleuze (1991)

Entre todos os conceitos utilizados na história da arte e dacultura talvez o conceito barroco seja o mais ambíguo. Na históriada arte o termo barroco nasceu como indicação de um estilo, masdepois de muitas transformações já chegou ser usado como rótulode toda uma época.

No entanto, este conceito tem algo em comum a quase todasas etiquetas históricas. O certo é que do mesmo modo que outrosconceitos muito difundidos, o barroco inicialmente foi empregadocomo insulto e de forma pejorativa. Começou a ser usado contratodo tipo de expressão artística considerada bizarra e grotesca. Afinal,esse também foi o destino de conceitos como gótico – na referênciadireta aos godos considerados bárbaros – ou ainda os termosromântico, renascimento, impressionismo que como tantos outrossurgiram com significado negativo.

Conhecemos algumas tentativas de encontrar as origens dapalavra barroco. Alguns etimólogos consideram a palavra de origempré-romana, sendo anterior as línguas neo-latinas e ao próprio latim.Mas existe uma hipótese mais aceita encontrada na maioria dosdicionários, afirmando que barroco é uma ‘palavra portuguesa’ que,desde o século XVII, designa as pérolas que possuem formas brutase superfícies irregulares. Confirma-se, então, que seu significado

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estrutural e positiva da expressão barroca em arte. De modo muitosumário, podemos dizer que este autor contrapõe o barroco aoclássico, de tal maneira que esse par de termos podia ser aplicado àarte de qualquer época, como coordenadas de referência ou dealternativa estilística. Neste particular, lembra Janice Theodoro emseu livro América Barroca, a importância do texto de Wölfflin éfundamental nas análises contemporâneas, principalmente para nóslatino americanos:

Wolfflin, autor de trabalho questionado por Hauser, ao analisar o barroco,parte do pressuposto de que existem formas fechadas e abertas. Caminhopromissor que permite a nós, latino americanos, iniciarmos inúmerasreflexões tanto sobre a cultura européia quanto sobre a cultura indígena,duas responsáveis por nossas matrizes culturais (1992: 139).

Esta perspectiva de considerar as “formas fechadas e abertas”,teve uma herança confessada em outro autor que desenvolveu umaanálise carregada de sentido e conotação moral e afetiva. Trata-sedo espanhol Eugênio d’Ors. Ele define o barroco como um eón, umaforça em permanente luta através da História, contra o eón clássico.No entanto, não os vê puramente como “mal” ou “bem”: na verdade,em muitos momentos declarava militar a favor do clássico contra obarroco – como um tipo de correção, dizia, contra o excesso debarroquismo que sentia nas tendências de seu próprio ser.

Com o desenvolvimento do historicismo na consciência culturaldo Ocidente, a partir da segunda metade do século passado, acentuouse o valor do barroco como designação de época. Benedetto Croceao reunir em 1925 seus estudos sob o título Storia della etá baroccain Italia, aceitava o termo como título de um período histórico. Suaconcepção mantinha a visão negativa e moralista, pois consideravaque: “[o] que é verdadeiramente arte não é nunca barroco e o queé barroco não é arte”. E afirmava ainda que o barroco “é um pecadoestético, mas também é um pecado humano e universal, perpétuocomo todos os pecados humanos” (apud Valverde; 1985: 8). Ouseja, para Croce, a “Idade Barroca” seria uma época especialmente“obscura” pelo predomínio desse “pecado”. Curiosamente, como sesabe, o termo “Idade Obscura” só se aplicava até então à IdadeMédia. “Dark ages” era como chamavam os ingleses à alta IdadeMédia. Percebemos nesta pletora de nomes e conceitos a circularemem torno destas idéias, a manifestação das ambigüidades que nosremetem a campos simbólicos múltiplos e polifônicos. É possível

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Barroco: conceito em perspectiva

original aponta para o sentido do que é disforme ou extravagantealgo que ainda não foi polido ou lapidado.

Com o tempo o termo barroco passou a ser utilizado não sóna joalheria, ele foi se expandindo e passou a ser aplicado à edifícios,objetos artísticos e pinturas. Seu domínio semântico se alastrou namesma época em que se começava a falar de um estilo barrococaracterístico, principalmente, na arquitetura e nos interiores dostemplos religiosos católicos das cidades italianas dos séculos XVI eXVII.

Outra interpretação genealógica costumeira considera apalavra barroco como derivada do termo baroco, uma das figurasdo silogismo em filosofia. Esta tradição ganhou reforço com a difusãoda filosofia dos sofistas. Como se sabe, estes filósofos, mestres daretórica, praticavam o exercício da arte de expressar argumentosatravés do sofisma, isto é, discursos refinados com argumentos falsose enganosos, em geral formulado propositalmente de modosofisticado para induzir outrem ao erro, a burla e ao logro. Em suma,como uma das figuras possíveis do jogo da linguagem, uma meratapeação sofisticada ou sofismável. O barroco, mais uma vez, estáaqui associado a um aspecto negativo da expressão da naturezahumana.

Porém, sempre houve controvérsias, que nunca cessaram degerar muitas polêmicas, entre especialistas nas suas mais diversastradições teóricas. Entretanto, o conceito se estendeu por variadasáreas do conhecimento, como, por exemplo, na história da música,em que encontramos Jean Jacques Rousseau no seu Dicionário daMúsica de 1767 – provavelmente o primeiro autor que consagrouum verbete ao termo barroco.

Para o filósofo francês andarilho: “Uma música barroca éaquela cuja harmonia é confusa, carregada de modulações edissonâncias, o canto duro e pouco natural e o movimento forçado”(apud Valverde; 1985: 8). Esta definição reflete bem o quanto osentido da imperfeição foi marcante durante muito tempo, definindoas linhas gerias da evolução posterior do termo.

De outro lado, ilustrando a vasta gama de possibilidades doconceito, encontramos alguns autores que defendem uma visão maisformal. Por exemplo, encontramos a obra de Heinrich Wölfflin quefoi um dos autores que tentaram resgatar uma compreensão

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Somos filhos do Barroco, como tais talvez devêssemos colocar emquestão a particularidade do fato de que a América Latina não passoupelo Renascimento. Destarte, a definição de Barroco aqui não deverestringir se àquela visão que o define como o Renascimento “vueltodel revés”, não cabe em nosso contexto. Principalmente no continentesul-americano entram no processo outros fatores. Contextualizandoespecialmente os fatores históricos, nossa análise aproxima se aindamais uma vez da obra de Janice Theodoro:

A sociedade colonial, profundamente heterogênea, encontrou no períodopós Conquista condições de recuperar se da violência que caracterizou osprimeiros anos desta empresa. Sobreviventes ao confronto, indígenas eeuropeus reconciliaram se à medida que ambos aprenderam a manipularformas de representação capazes de transformar o conflito em convivênciapacífica. A fragmentação e a dispersão dos acervos culturais indígenasencontraram no barroco espaço para manifestar se. Assim, o barrococonstituiu se em paradigma da cultura latino americana. A cultura indígena,fragmentada, apropriou se do movimento típico da estética barroca,cristalizando o (1992: 119).

A partir de nossa pesquisa em Pernambuco, sobre a festa deNossa Senhora dos Prazeres Jaboatão dos Guararapes (Corrêa;1993), constatamos a exatidão destas teses, principalmente no queconcerne à questão das construções das identidades latinoamericanas, em que esta autora toma como exemplo o culto à Virgemde Guadalupe, no México. Vê-se com facilidade que se trata de ummesmo sistema simbólico comum abrangendo uma grande áreacultural de todo continente americano.

Como não passamos pelo renascimento das formas clássicasda antiguidade – talvez só no México houvesse alguma importânciaespecial – encontramos na América um outro cenário. O barrocoaqui nasceu de mestiçagens e hibridismos entre heranças culturaisno confronto colonial trans-atlântico. Algo muito diverso do barrocoda Europa Central e Mediterrânica.

Todavia, quando trabalhamos com o conceito de barroco nosentido de uma identidade transnacional latino-americana não querdizer que resolvemos toda a complexidade em torno de definição dobarroco, pois existem ainda alguns pontos que devem ser analisadoscom cuidado.

Sujeito, como vimos, a uma vasta polissemia, a conceituaçãodo barroco é um objeto de estudo por si só denso e profundo. Não énosso objetivo aqui em tão poucas linhas esgotar assunto tão

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Barroco: conceito em perspectiva

compreender o barroco sem que se tenha que aderir a ele de corpoe alma? É possível ficar isento, imune ou indiferente?

A polissemia em relação ao barroco não se esgota aqui ou ali,vai mais além. Mas, num esforço a mais entre tantos, ainda existeuma tentativa de síntese entre aquele significado formalista referido(Wölfflin-Eugênio d’Ors) e o significado de época invocado por B.Croce. É o que temos com a perspectiva da “história do espírito”: aGeistesgeschichte. Nessa vertente barroco seria a disposição anímicae intelectual dominante em um certo tempo europeu do qualderivariam os sistemas de formas estéticas, as estruturaseconômicas, a mentalidade social, etc., todo ele sob uma mesmaatmosfera tormentosa, fruto da grande crise do século XVII. O riscode tal visão é a de negar os contrastes e as tensões que toda épocaencarna, pois a História não pode ser percebida como a expressãode uma única voz (Valverde; 1985).

Concretamente, a Idade Barroca oferece, como nenhumaépoca anterior, o paradoxo da exuberância e extravagância atingiremseu extremo, contudo ao mesmo tempo inicia a “Idade da Razão”, aemergência do racionalismo. Como se sabe o “Século das Luzes” éreconhecido a partir deste período histórico, começando na filosofiacom a obra de René Descartes, e na ciência, com os estudos edescobertas de Galileu Galilei – que nasce no mesmo ano que WilliamShakespeare (1564), principal expoente da nova dramaturgia inglesa.

Paradigma da cultura latino americana

Para uma melhor caracterização deste momento históricoespecífico, convém deter nossa atenção nos argumentos de JoséMaria Valverde que coloca como ponto central de suas hipóteseshistóricas “o contraste entre el final de un proceso – el Barrococomo ‘Alto Renacimento’ o fin del Renacimiento – y el Barroco comoarranque de la era racionalista que, tras la etapa, aún nublada, de la‘Edad de la Razón’ llegará a ser ‘Siglo de las Luces’” (1985: 9). Paraeste autor, o barroco é o Renascimento “vuelto del revés”, exacerbadono tratamento de seus motivos, paradoxal, tenso e consciente desua violência.

A partir daqui começamos a introduzir uma questãoimportante. Como escreveu a historiadora Janice Theodoro, “acolonização da América foi obra barroca”, ou ainda, “o barrococonstitui se em paradigma da cultura latino americana” (1992: 119).

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Destarte apresentamos a perspectiva que tomamos naapreciação deste conceito fundamental para nossa cultura. Noentanto, não nos basta apreender o campo semântico do barroco. Apartir de uma compreensão histórica e conceitual mínima, devemosavançar na direção de uma reflexão sociológica básica do conceito.Para tanto, recorremos a Roger Bastide, que em uns artigospublicados no jornal O Estado de São Paulo, na década de 1940,intitulados “Estudos de Sociologia Estética Brasileira”, pretendeuesboçar o que chamava de “as grandes linhas de uma futura sociologiado barroco brasileiro”.

Até a esta altura de nosso estudo percebemos que os autoreseuropeus se detinham nos problemas da definição do barroco comoexpressão universal a partir da Roma Renascentista. Roger Bastide,no entanto, voltou se com todo seu gênio para as característicasque o barroco adquiriu no Novo Mundo, explicando suaspeculiaridades, não pelos aspectos telúricos da nova terra, mas pelascaracterísticas sociológicas diferentes em que se ergueu o barrocona América Latina e no Brasil. Esta visão de Roger Bastide só foipossível a partir de sua experiência no Brasil, quando trabalhou naUniversidade de São Paulo no final na década de 1930. Ao afirmarque Bastide assume o ponto de vista da periferia, isto é, do NovoMundo, não se está a dizer que sua análise sociológica do barroconegligencia a Europa. Pelo contrário, este autor faz uma leitura emque busca o descentramento necessário pra tal empreitadaantropológica. Mas o interessante que quero ressaltar reside nessemodo de abordagem, que passa a influenciar os historiadores daarte que, pouco a pouco, deixam o estudo puramente estético dasformas barrocas e mergulham na aventura do estudo sociológico emais contextualizado do fenômeno barroco.

Nesta perspectiva fortemente histórico-social, demonstrou se,enfim, que o barroco coincide com o restabelecimento do poderpapal. O cenário era o seguinte: a heresia protestante fora repelidapara o norte da Europa, os turcos haviam sido detidos na batalha deLepanto, novas ordens religiosas tinham sido criadas e partiam emconquista das almas. Em suma, o Concílio de Trento emprestara àIgreja sua primitiva pureza. Para Bastide, “o barroco seria a explosão,no domínio da arte, do orgulho religioso do papado, que reencontraratoda a sua própria força” (Bastide, 1940: 20).

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Barroco: conceito em perspectiva

controverso. Levando em conta todas estas vicissitudes, propomosa utilização do conceito, considerando sua etimologia e história alémde suas múltiplas interpretações e a difusão semântica que tem asua marca. Vemos que de modo mais geral as definições formalistasse sobressaem ao proporem um sentido puramente estrutural: obarroco contraposto ao clássico. Outro significado difundido, comofoi visto, é o que está ligado a História da Cultura, que restringe seualcance a uma época histórica específica, isto é, a uma faseultrapassada da arte e da civilização.

A Contra-Reforma o Barroco

Em nosso trabalho escolhemos a conceituação ampla de umfenômeno que incorpora múltiplas dimensões da realidade históricae sócio-cultural, que começa a delinear se a partir do século XVI. Écom a Reforma luterana, e a conseqüente reação católica contareformista do Concílio de Trento (1545 1563), que vemoscompreender o ponto de partida de seu destino conceitual. Opsicanalista Jacques Lacan (1985) foi feliz quando escreveu que sedeve dar ênfase particular a esse aspecto religioso cristão, sua fonteoriginal: “O barroco é, no começo, a historieta, a historinha do Cristo”(p. 145). Assim, devemos acentuar com precisão o peso docatolicismo, pois: “... em suma, a contra-reforma, era retornar àsfontes, e o barroco, sua aplicação” (p. 157-8).

Outro autor que deu grande contribuição aos estudos recentessobre o barroco é o cubano Severo Sarduy, que em um texto sucintoexpressa toda a plasticidade que a idéia e o conceito de barrocopossui:

Nódulo geológico, construção móvel e lamacenta, de barro, pauta da deduçãoou pérola; dessa aglutinação, dessa proliferação incontrolada de significantes,e também dessa firme orientação de pensamento, necessitava, para contestaros argumentos reformistas, o Concílio de Trento. A esta necessidaderespondeu a iconografia pedagógica proposta pelos jesuítas, uma arteliteralmente do tape à l’oeil, que pusesse a serviço do ensino, da fé, todosos meios possíveis, que negasse a descrição, o matiz progressivo do“sfumato”, para adotar a nitidez teatral, o repentino recorte do claro escuro,e abandonasse a sutileza simbólica encarnada pelos santos, com seusatributos, para adotar uma retórica do demonstrativo e do evidente, pontuadade pés de mendigos e de farrapos, de virgens campesinas e mãos calosas(1979: 58).

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O barroco, desta forma, cobriu com suas manifestaçõescontraditórias praticamente toda a Europa e a América Latina. E apartir de suas contradições, todas as interpretações, sobre o mesmotema, são possíveis e válidas. O barroco não aspira a uma persistênciatranqüila, conclusa em si mesma, mas a um perpétuo vir a ser. Suamissão central parece ser dar à vista uma consciência da idéia demovimento. Só assim podemos compreender as dimensõesgeográficas pelas quais se espalhou no planeta.

Quando chega ao Novo Mundo, o barroco, em contato com onovo ambiente, transforma se. Cada local a tonalidade adquire traçossingulares. Assim, o barroco brasileiro reflete a sua sociedade, e éesta sociedade que Roger Bastide retrata com propriedade:

(...) a sociedade brasileira caracteriza se pela fraqueza de densidadedemográfica e a extensão do país, pelo regime do latifúndio, pelaestratificação racial e o regime escravista, pela distância da metrópole, paladiversidade de pontos de vista entre o litoral e o sertão, e a luta de Portugalcontra os nativos para implantar cada vez mais profundamente seu domíniosobre as Índias Ocidentais. É evidente que esta estrutura social, tão diferentede Europa, não pode deixar de repercutir sobre a estrutura da própriaarquitetura barroca (p. 22).

É no detalhe destas mudanças arquitetônicas, que refletemtoda uma nova realidade sociológica – e não alguma misteriosainfluência telúrica – que vemos desenvolver se uma arte local,independente da européia:

Em vão a Igreja, as ordens religiosas, a Companhia de Jesus, preparavamos planos dos edifícios nas colônias ou enviavam seus próprios arquitetospara assinalar lhes o domínio místico do mundo e da unidade arquitetônica.Em vão os lusitanos conservavam a nostalgia da pátria deixada e seempenhavam a criar de novo, na pátria adotiva , por meio de monumentos,de festas e divertimentos, o clima espiritual da antiga. Em vão se manteveum intercâmbio estético incessante entre Portugal, a Itália e o Brasil; apesarde tudo, as formas barrocas, sob um novo céu e em uma outra terra, vãomudar de ritmo de vida e de movimento (p. 23).

É sob esse prisma, na transformação de uma linguagemhíbrida, que propomos a perspectiva de uma nova interpretação, aqual deve levar em conta o surgimento de uma nova cultura, umnovo “idioma cultural”, como defendeu Eric Wolf na sua análise doculto de Nossa Senhora de Guadalupe (1969).

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Barroco: conceito em perspectiva

É nesse contexto de uma re-visão em perspectiva da IgrejaBarroca na América, que se delineia uma realidade e uma estruturasocial bem diferentes, p. ex., das que se construiu em torno daIgreja Gótica na Europa. Percebe-se isso através da descrição doespaço desenhado na nave-templo-bíblia de pedra:

“A igreja barroca é um salão religioso ou um teatro metafísico, quadrado ouretangular, ulteriormente oval ou curvo, onde todo mundo vê tudo e ouvetudo: a igreja democratizou se, mas não completamente, pois tudo foicalculado para que se respeitassem as posições sociais” (Bastide, 1940:21).

As análises de Roger Bastide se aprofundam ainda mais. Acompreensão do barroco como fenômeno civilizacional se desenvolvecom a introdução da categoria de “representações coletivas”, que éprópria de Emile Dürkheim (1994). Neste sentido a compreensão dobarroco só pode ser completa se, além das alterações da vida social,levarmos em conta as transformações das representações coletivas.Estas transformações são apontadas por Bastide da seguinte forma:

A igreja barroca não exprime apenas as alterações da vida social, exprimetambém as transformações das representações coletivas: a importância domisticismo, ‘o desvario de pedra’ corresponde à loucura das almas em êxtase,os vínculos da carne com o espírito, o erotismo, o ascetismo, a psicofisiologia,um misticismo enfim, que não é mais demarcado por Plotino mas pelosexercícios espirituais de Inácio de Loiola, onde os sentidos intervêm, portanto;e, de fato, a ornamentação, os jogos de sombra e luz, o subjetivismo dasestátuas, o emprego das espirais, das linhas curvas, fazem com que asmassas se ponham a mover, a viver, a fugir, o ilusionismo de Bozzo, tudoisso traduzido em pedra, em estuque e em cores, as novas formas dasensibilidade religiosa (1940: 21).

Ao lado do barroco religioso, Roger Bastide lembra que épreciso não esquecer do barroco civil, o barroco dos palácios e dosjardins. Ele é a expressão do Absolutismo, do novo poder dos reis,“com suas massas imponentes, suas escadas majestosas, suasperspectivas e a riqueza de sua decoração, que chocam o espírito,se impõem a todos e a todos esmagam” (p. 21).

Percebendo o barroco como uma expressão geral, podemosdizer que nesse horizonte “tudo é barroco” na cultura barroca. Revistoo barroco, pode se falar, hoje, não apenas de artes plásticas, masde um barroco literário e musical, de uma cultura, de um pensar oude um modo de ser barroco, até mesmo de uma civilização barroca.

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Para além dos preconceitos curiosos e geralmente elitistas,na América Latina tem-se a impressão que o homem e a mulhercontemporâneos, em nada, ou quase nada, diferem do homem e damulher do barroco histórico. De um modo geral se encontram frenteaos mesmos dilemas civil izacionais, na mesma situaçãoexistencialmente de “espanto” ante do “absurdo” do mundo: quepara Leibniz “é o melhor dos mundos possíveis” (Deleuze; 1991).

O barroco permanece:

As independências não significaram transformações na estrutura dassociedades latino americanas. Soluções ancestrais, patriarcais, parecem nosvincular, indefinidamente, a um mundo emperrado às vezes em tradiçõesindígenas, às vezes em tradições cristãs, das quais não queremos nos afastar.Por isso, tendemos a parecer, e não, ser, modernos (Theodoro; 1992: 20).

Nas minhas pesquisas por mais de uma década no nordestetenho procurado compreender as razões desta repetição histórica,também chamada identidade cultural, que nos tem atrelados aosprocessos de ordem política e econômica fundados no pacto colonialultramarino (Corrêa; 1993, 2003). Nossa identidade cultural écontraditória, dissimuladora de contrastes infames e repetidamentetenta ocultar desigualdades cada vez mais profundas. Assim, a culturabarroca, híbrida e plural, parece ser o paradigma simbólico quepersiste recorrentemente, atravessando o nosso complexo sócio-cultural.

Affonso Ávila, em 1969, já adiantava a repercussão e aimportância disso: “Por que esse interesse, essa curiosidade, essapaixão do homem de nossos dias pelo barroco? Por que só essaredescoberta do barroco veio possibilitar ao estudioso brasileiro umavisão mais nítida de nossas perplexidades como povo e como nação?”(Ávila, 1969: 32).

O leitor eventual deste breve artigo só pôde ter aqui umaligeira contribuição ao debate. Cabe futuramente desenvolvermosas pesquisas necessárias para encontrar ao menos algumas respostasa estas e outras intrigantes indagações histórico-culturais aquisintetizadas ao extremo. Por fim, talvez seja útil a reflexão avançarno sentido de avaliar as potencialidades de um neo-barroco latino-americano, que pode ser o indicativo de superação do nosso dilemahistórico e possivelmente algo que ultrapassará a chamada culturapós-moderna ainda a deriva. Em outras palavras: nossa pós-modernidade é neobarroca!

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Barroco: conceito em perspectiva

O barroco se desenvolve pelas imagens dialéticas (Benjamin;1980) do que é traduzido pelo conflito entre temas importados,estrangeiros e o novo meio, autóctone: “Em toda parte, os elementosimportados tinham uma significação de empréstimos desprovidosde sentido. Logo eles deverão transformar se” (Bastide; 1940: 23).

Entretanto, apesar de todas essas mudanças, que enfatizamosaqui com Roger Bastide, observamos a profunda unidade simbólicaque o fenômeno barroco possui em toda a América Latina. A partirde estudos sincrônicos e diacrônicos, podemos estabelecer e perceberas raízes culturais comuns que temos neste vasto continente.

Com o conceito de barroco tentamos abarcar complexos emúltiplos produtos culturais. De fato, o barroco é a expressão deum processo de civilização. Não se restringe apenas a uma área dasatividades humanas. É um fenômeno social e cultural total que refleteinfluências diferenciadas e integradas. Podemos deste modo, falarde um barroco religioso, ou plástico, ou arquitetural, ou palaciano,etc.

Pós-modernidade neobarroca

Neste breve artigo, entre outros tópicos igualmenteinteressantes, não podemos nos dedicar a análise do chamadobarroco popular: muitas vezes deformado, caricatural e ingênuo.Mas é este barroco do povo, espontâneo e autêntico que vemosmanifestar se em nosso espírito, cotidianamente marcado por estapletora de signos plurais, híbridos e mestiços. A expressão popularbarroca encontramo-la, a todo o momento, em múltiplos exemplos:na decoração dos interiores das igrejas e capelas do catolicismoprimitivo, na música popular sertaneja, caipira, crioula e cabocla, naarquitetura criativa, de bricolages ousadas e, mais especialmente,no tom espetacular dos rituais religiosos e na pompa dionisíaca dasfestividades carnavalescas e juninas.

Foram os problemas ligados ao conceito barroco que tenteiresgatar com o presente texto. Procurando revelar o sentidorevolucionário e criativo dessa expressão cultural, contrariando osque acreditam ver no barroco apenas o ultrapassado, o arcaico, otradicional, ou ainda a degenerescência de uma cultura, etnia ouraça. Alguns ainda teimam em considerar muita das vezes aexpressão de algo excessivo, bizarro, cafona, brega, kitsch e assimpor diante.

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Origem do culto àNossa Senhora dos Prazeres

Numa pequena resenha crítica escrita em 1906 para a revistaAnnée Sociologique, Marcel Mauss analisa a obra de Dieterich quetem como conteúdo um estudo sobre “a religião popular e as formasfundamentais do pensamento religioso”. Mauss enfatiza que o objetivopragmático da obra não é outro se não o “de explicar a noção deMãe Terra, tema fundamental das mitologias clássicas, tema literáriode múltiplas literaturas que teve suas manifestações até nocristianismo, onde a Virgem com freqüência assumiu certos traçosda antiga Mãe Terra” (1981: 384).

A teoria de Dieterich, por ele elaborada a partir de estudoscomparativos, agrupados ao acaso e que se estende desde os Aruntaaté os Ewhé, do folclore europeu aos usos americanos, é a de quehá uma crença global e comum: “A terra seria a mãe dos homens,nela as almas dos mortos viriam morar até sua reencarnação. Aterra é verdadeiramente mãe dos homens e não simplesmente mãemítica dos deuses” (Mauss, 1981: 385). Para Mauss, o trabalho deDieterich chega ao seu ponto central quando afirma que “a tradiçãopopular foi um fundo sempre idêntico e jamais esgotado, ondeperiodicamente se restaurou e se renovou a mentalidade religiosaem via de transformações” (p. 385).

Aparece, assim, a noção de maternidade. Para explicá la nasua realidade ideológica e ritual, Dieterich considera-a comointimamente ligada às representações primitivas referentes tanto àreprodução das espécies animais quanto à fertilidade de solo

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Sem dúvida este é um problema fascinante, pois se trata, nocaso, de responder a uma interrogação muito pertinente em nossocontexto cultural, qual seja, se nossa população – e por extensão, alusitana – ainda tem fortes propensões a uma fé politeísta,“idolátrica”. É inevitável, neste particular, um paralelo com a realidadereligiosa dos cultos afro brasileiros. Percebemos, até, no discurso dopadre certa analogia teológica com o sistema que efetivamenteencontramos em relação aos voduns e orixás (Ferretti; 1983; 1991– Motta; 1980; 1990; 1991 – Oliveira; 1989 – Bastide; 1983). Mas,no momento, haveremos de adiar esse questionamento. O que estádiretamente em causa é o culto a Nossa Senhora dos Prazeres nosMontes Guararapes. Para tanto, proponho que sigamos umdesenvolvimento histórico preciso e a argumentação de MoisésEspírito Santo (1988; 1990), além da de Nilza Botelho Megale (1980)e do Padre Jacinto dos Reis (1967).

Origens Orientais do Culto

As hipóteses de Moisés Espírito Santo são duas. A primeiraidéia que defende é que, da mesma forma que o cristianismo absorveua religião popular pré romana, o culto de Maria foi absorvendo oscultos hebraicos a partir do século VII, época em que começaram asperseguições, expulsões e conversões compulsivas de judeus. Asegunda idéia, particularmente importante para nós, é que o culto aNossa Senhora dos Prazeres está associado ao da Rainha Ester,venerada pelos hebreus antigos. O argumento que o Autor utilizapara defender sua primeira hipótese pode ser resumido nesta citação,em que temos como uma cápsula sua visão sobre o processo deabsorção e assimilação, por parte do cristianismo, das crençasancestrais das populações hebraicas:

a adoção de personagens e de ritos cristãos devia, na maior parte dos casos,ter se processado inconscientemente por efeito da lei do sincrentismo: umaaldeia adota um rito ou santo, transpondo para ele toda a cultura ancestral,de modo que a personagem tem nome e imagem cristãos mas, no fundo, écultuada como a divindade antiga. Diríamos até que houve sobretudo“judaização” do catolicismo popular (1988: 46).

Em relação ao culto a Maria, o Autor aprofunda ainda maissua pesquisa lembrando que os cultos femininos de forma algumaforam estranhos à tradição hebraica: “Antes da redação do livro doDeuteronómio (entre 639 e 608 a. C.) que é um dos cinco livros daLei, o povo hebreu venerava, como todos os povos do Mediterrâneo,

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concebidos como paralelos, análogos, simpáticos, e idênticos àgeração e às relações entre homens e mulheres. “Ele aproxima demaneira feliz o mito da mãe terra dos ritos fálicos e dos atoscerimoniais pelos quais a cópula humana provoca a multiplicaçãodos objetos alimentares” (Mauss; 1981: 385).

Minha referência a essa análise crítica é de suma importânciano contexto do tema de que me ocupo, no qual serão retomadasmuitas das idéias e orientações encontradas naquele artigo. Porém,o que deve chamar nossa atenção é o problema das origens e dafunção social da noção de mãe terra, da maternidade da espéciehumana.

No que toca às origens do culto a Nossa Senhora dos Prazeres,parto das mesmas conclusões de Marcel Mauss e Dieterich, no quese refere à existência de um fundo comum e idêntico na tradiçãopopular antiga. Isso pode ser corroborado, com mais pertinência aotema desta monografia, numa aproximação com a obra de MoisésEspírito Santo, Origens orientais da religião popular portuguesa(1988). É uma obra de característica singular, em que o autor realizaum verdadeiro mergulho no mundo do imaginário e do simbolismoreligioso lusitano. O autor segue de perto as pesquisas da EscolaSociológica francesa, nas obras de E. Durkheim, Marcel Mauss, G.Gurvitch, e tantos outros. É com este instrumental teórico,complementado em incursões pela psicanálise freudiana e jungiana,pela teoria do imaginário de Gilbert Durand, e vasta erudição históricae antropológica, que o autor empreende “uma descida às profundezasda cultura lusitana”.

O capítulo que nos interessa sobremaneira é o que tem otítulo “A Senhora dos Mil Nomes”, em que o autor apresenta asinumeráveis aparições marianas.

A propósito, é de mencionar-se o problema teológico inerenteà questão, que é o da natureza do culto a Maria no catolicismo.Enfrentei-o no meu trabalho de campo nos Montes Guararapes, eguardo as palavras de uma entrevista com o padre Policarpo, querealizou os eventos religiosos da Festa de Nossa Senhora dos Prazeresdo ano de 1992. Segundo esse sacerdote, não existe um culto deadoração a Nossa Senhora no catolicismo, assim como a qualqueroutro santo: “Pois, se não, seria politeísmo e idolatria. O culto se faza Deus e a Jesus Cristo. Nossa Senhora e os outros santos levam osanseios do devoto, seus pedidos, suas aflições, a Deus e a Jesus”.

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filha de Anu (deus supremo) como filha de Sin (a Lua, masculinonessa região) e irmã do Sol; simultaneamente, era a deusa da guerrae da procriação. Pouco a pouco suplantou o culto de seu pai Anu, edepois todas as outras divindades. O seu nome acabou por significar“deusa, em geral, e cada uma em particular; é a deusa das batalhas,a Rainha dos Céus e a parceira de Bel”.

Em Canaã e na Fenícia, chamou se Astarté, e tanto seidentificava com a deusa mãe da procriação como a um general echefe guerreiro (esse último desdobramento ocorrendonomeadamente entre os assírios) e, ainda, com a estrela guia dosmarinheiros, protetora destes. Por causa de seus diversos aspectos,Astarté acabou por ser identificada com diversas divindades femininasgreco romanas, em particular com Hera e Juno.

Baal e Astarté reunidos representam, no fundo, a grande forçada natureza, princípio masculino, ativo, gerador, mas tambémdestruidor, e um princípio feminino, passivo, produtivo, maternal.Se Baal é o Céu, Astarté é a Terra fecundada por ele.

Moisés Espírito Santo apresenta muitos elementos que levamimediatamente à associação daquele culto a Nossa Senhora dosPrazeres. O fato de se considerar “a mãe dos Homens” entre osbabilônicos; de ser considerada a deusa da guerra entre osmesopotâmios faz nos levantar, quanto à Senhora dos Guararapes,a hipótese de uma estrutura religiosa, mítica e imaginária queatravessa os séculos. É o que veremos quando colocarmos emconfronto as teses de Marcel Mauss e Dieterich, já apresentadas, asteorias de Michel Maffesoli (1985), e as lendas e mitos em torno doculto à Senhora dos Guararapes, no Brasil.

A Biblia, ainda segundo Moisés Espírito Santo, faz inúmerasreferências a Astarté, designando a por vários nomes e trocadilhosde palavras, por desprezo e anti propaganda: Astoret, Astaroth(“vergonha”, “abominação”, “prostituição”), usando o mesmo termopara designar Astarté e “fêmeas parideiras”. O seu culto teve grandeimpacto entre os israelitas, incessantemente ameaçados por Yavehpor causa dessa “prostituição”. Uma passagem relativa a Salomãorefere que, em sua velhice, esse rei teria sido forçado por suassetecentas mulheres e trezentas concubinas a entregar se ao cultoa Astarté, erigindo lhe altares em todo o seu reino. “Na Biblia aindaaparece o nome de Ashera - “direita”, “bem posta” ou “feliz” - paradesignar Astarté, sendo Ashera representada nos santuários, ao lado

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uma deusa mãe, que em Canaã se chamava Astarté, da babilônicaIshtar. Aparece nos no Antigo Testamento inúmeras vezes, sob váriasdesignações: Astarté, Asthoret, Ashera, Baalat e Rainha dos Céus”(1988: 46 7). Em Portugal, particularmente, diz ainda Moisés EspíritoSanto, “os cultos populares judaicos orientam se para a personagemde Maria, não por ser a Mãe de Jesus, mas por ser a Nossa Senhora,Rainha dos Céus etc.” (Santo; 1988: 47).Assim, a identificação deIshtar, a antiga divindade babilônica, com a santa rainha Ester, dá-se também, nesse novo contexto, com Maria Rainha dos Céus: “Nospanegíricos marianos, Ester ‘anuncia’ Maria que, sendo pobre, acaboupor ter as simpatias do rei; é a intercessora junto de Deus e foigraças a ela que a humanidade se salvou. Ester encontra se presente,de forma sub reptícia ou não, em muitos momentos do culto daSenhora nas Beiras, sobretudo nos rituais primaveris” (Santo; 1988:47). Porém, é com a Nossa Senhora dos Prazeres que a RainhaEster se associa mais perfeitamente, segundo o autor: “As festasque têm lugar na semana da Páscoa ou no domingo seguinte,chamado de Pascoela, em honra de Nossa Senhora dos Prazeres oude outros títulos, são ou foram festas cripto judaicas, substitutivasda celebração da Páscoa e dos Ázimos Judaicos, por outro lado, eassociados à rainha Ester, por outro”. (Santo; 1988: 47).

Mas, antes de nos aprofundarmos nas origens portuguesasdesse culto, e como ele se desenvolveu na cultura lusitana, adquirindoparticularidades próprias, farei breve digressão sobre assingularidades ligadas aos antigos cultos à deusa Ishtar, na Babilônia,e à rainha Ester, na Judéia.

A Deusa Ishtar, dos Babilônios

Segundo Moisés Espírito Santo (1988) e de James Frazer(1986), antropólogo inglês do início do século, a Ishtar dos babilôniosé o princípio feminino da divindade Bel ou Baal. Seu nome deriva deIstarati, feminino de deus Illi, da antiga Assíria. Um mito babilônicodescrito numa inscrição do terceiro milênio pretende que Ishtar é “amãe da humanidade”.

Entre os assírios, Ishtar tinha atributos astrais, e erafreqüentemente chamada Estrela da Manhã e se representava comuma estrela na fronte, com uma simples estrela ou um crescentelunar. Na Mesopotâmia, era hermafrodita: varão enquanto estrelada manhã, e deusa da noite enquanto estrela da tarde; tanto era

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foi descrita como as bacanais, e sabemos que nessa época, tudo épermitido, desde que contribua para a alegria e a felicidade da Festa”(1986: 194).

Moisés Espírito Santo aduz o fato de que autores há -infelizmente não citados por ele - que consideram derivar-se o nomeEster da mesma deusa Ishtar, assim como Mardoqueu é umaadaptação de Mardouk, um dos nomes do deus babilônico Bel.

No entanto, o texto bíblico de Ester, apesar de ter sido muitopopular entre os judeus antigos, é bastante combatido. Autores,como Ernest Renan, consideram que o livro enfatiza o ladosanguinário e cruel do povo judeu. Lutero escreve o seguinte sobreo Livro: “É um notável monumento de espírito não profético. O seuautor teve espaço suficiente para citar o nome do rei da Pérsia 187vezes e o reino da Babilônia 26, mas não encontrou ocasião demencionar o nome de Deus uma única vez. O fato é verdadeiro paraa versão hebraica que dispomos...” (apud Santo; 1988: 226).

Para finalizar este estudo sobre a santa rainha Ester, no quetange à sua importância dentro da cultura portuguesa e espanhola eà sua associação ao culto de Maria, e particularmente a Nossa Senhorados Prazeres, leia-se, em síntese, esse trecho que resumeperfeitamente o que eu entendo ser mais relevante para minhainvestigação :

A “Santa Rainha Ester” do judaismo popular português encarna o papel daesposa ou da amante que domina o homem com seus dotes físicos eintelectuais e manobra a vida política no retiro das alcovas. Encontram seconfundidas com ela por motivos muito idênticos Nossa Senhora e a RainhaIsabel de Aragão. Os exegetas católicos consideram Ester como “um símbolo”de Maria, comparação que tem razão de ser se nos situarmos no ponto devista de uma sociedade ginocrática; Maria era judia, pobre e humilde; pelassuas “graças” ascendeu à categoria de esposa de Deus (mãe do filho deDeus) e, uma vez no Paraíso, tomou todo o poder, passando a intitular se“Mãe de Deus” (portanto, acima de Deus) e “Rainha dos Céus e da Terra”(com poderes sobre todas as coisas). A associação com as Senhoras popularesressalta também no calendário popular; a Pascoela, que é a festa judaicados Ázimos, e o título católico da Senhora festejada nessa ocasião, Senhorados Prazeres, remetem nos igualmente para o conteúdo voluptuoso do cultoda Ishtar persa. A confusão entre Ester e Rainha Aragão explica se, comodissemos, pela favorável conjuntura política que os judeus conheceram notempo do rei D. Dinis, um estatuto especial, “os meus judeus”: tocar numjudeu era atingir o próprio rei. Seria, aos seus olhos, uma situação semelhanteà que passou a existir no império de Babilônia sob o controle de Ester. Asituação portuguesa favorável só podia ser atribuída às influências da RainhaSanta” (Santo; 1988: 226).

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da coluna ou altar, por uma árvore, estaca verde ou tronco de árvore,símbolo da Terra fecundada e procriadora. Constata se além disso aabundância de vestígios do culto de Astarté Ashera nos montes, nascolunas e nos bosques” (1988: 207 8).

Convém lembrar que o templo de Nossa Senhora dos Prazeresestá situado nos Montes Guararapes. Curiosamente, no ParqueHistórico Nacional foi feito um bosque de pau brasil, a “árvorenacional”. É impossível, portanto, não arriscarmos a hipótese deque as festividades em nome de Nossa Senhora dos Prazeres guardamsincretismo com os cultos orientais referidos, sob larga medidaorgiásticos. Moisés Espírito Santo lembra que Santo Agostinho teriapresenciado esses cultos em Cartago, em honras da Celeste(sucessora de Astarté Tanit), e ressaltara a ambigüidade desse cultoerótico (1988: 208).

A Santa Rainha Ester dos Hebreus

O nome Ester vem do persa Stara e significa astro. Apersonagem Ester aparece no livro de seu nome, um dos mais lidosda Bíblia no judaismo popular. Nele temos uma pequena históriacuja veracidade é contestada por muitos teólogos. Ester nascera naBabilônia, no ano 599 a.C., de uma família de deportados judeus.Foi educada por um primo chamado Mardoqueu, alto funcionário doImpério. Como era muito bela, logo passou a integrar o harém dorei, tornando-se sua favorita. Como o rei não sabia de sua origem,ela tinha uma “dupla existência”: cortesã, mas exilada e resistentejudia. Um dia o primeiro ministro do Império, tomado de ódio porMardoqueu, resolveu vingar se dele e da nação judaica. Obteve plenospoderes do rei Assuerus (Xerxes I) e determinou um massacre,segundo era costume, por um jogo de dados (purim), que se dariano dia 13 do mês de Adar (o atual mês de fevereiro). Ester,descobrindo tudo, arrisca a vida e, seduzindo o rei, consegue revertera situação, de modo que, em vez de seu primo Mardoqueu, oeliminado foi o primeiro ministro. Além disso, obtém do rei que osjudeus, para se vingarem, fossem autorizados a tomar as armas ecastigar seus inimigos no próprio dia em que se lançariam os dados.“Para comemorar esta vitória, Ester decretou três dias de folgança ede dádivas aos pobres: é a ‘Festa do Purim’, que é o entrudo português(e o carnaval no Brasil)” (Santo; 1988: 226). É o que também dizJames Frazer em O ramo de ouro: “Na verdade, a Festa do Purim já

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desmereceu o lugar e o ficar o seu corpo à vista daquela Senhora quedesconheceu ser sua mãe. E, como de réprobo, mandou o sagrado tribunalpicar o seu nome para que nem memória sua ficasse naquela casa. E omesmo tribunal deu a ermida ao familiar Francisco Ferrão de Castelo Branco,natural da mesma cidade de Viseu, com umas casas que estão na mesmacidade que naquele tempo se chamavam Casas do Balcão em a rua da calçadaque vem do mesmo lugar de Abravezes para a Sé, as quais possuem aindahoje os seus herdeiros (Santo; 1988: 48).

Seguindo o mesmo autor, descobrimos que até hoje estaSenhora alcança grande devoção entre o povo português,principalmente no dia dos Prazeres. Por volta de 1985, data dasúltimas observações de campo de Moisés Espírito Santo, essa imagemda Senhora dos Prazeres Rainha Ester ainda estava no seu pedestal.Aquela pequena ermida deu lugar a uma grande igreja de estilobarroco. Hoje a igreja é paroquial, e Abravezes tornou se um subúrbiode Viseu.

Mais à frente no texto, a descrição que o Autor faz da imagemsurpreende pela semelhança com a imagem do templo dos MontesGuararapes: “Trata se de uma imagem muito bela, de grandeestatura; é alegre, quase uma estátua profana, mantém o cetro etem um menino (talvez fosse para disfarçar...). O corte e os ornadosdo vestido são muito vistosos e pintados de flores lembram os deuma mulher oriental”. (1988: 48). Essa imagem recebe ainda hojemuita devoção e culto, sobretudo no dia dos Prazeres, e desde o seuinício não perdeu importância. O episódio da Inquisição provocadopelo duplo culto da imagem foi completamente esquecido, “ninguémo conhecia na região, nem sequer o pároco” (1988: 48). O mesmoacontece, poderíamos dizer, nos Montes Guararapes: o povo, muitodistante, até geograficamente, daqueles fatos, não poderia lembraro que nunca viveu.

Moisés Espírito Santo acrescenta ainda dados preciosos emtermos históricos: a oficialização da Senhora com o título dos Prazeresna data de 1747. Esse título substitui o antigo nome de “Senhora doVerde”, que, sobretudo na diocese de Viseu, é celebrada pelo povobeirão, desde os tempos recuados, no domingo de Pascoela. A festade Nossa Senhora do Verde, que ainda existe nas Beiras Alta e Baixa,dava cobertura, nas comunidades judaicas, à festa dos Ázimos, quese segue à Páscoa e que, entre os judeus ibéricos, sempre se celebrouno domingo de Pascoela. Entre esses dois domingos, os judeus devemcomer, para comemorar a travessia do deserto, “ervas amargas”

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Desta forma, fica mais fácil vislumbrarmos o vasto horizonteantropológico e arquetípico que possui o culto a Nossa Senhora dosPrazeres. O que constatamos hoje empiricamente no trabalho decampo, e mais os dados históricos que possuimos desde a sua“aparição” nos Montes Guararapes há 336 anos, além de depoimentosque recolhemos do século XVIII e XIX, que serão apresentados maisadiante, é que existe uma semelhança, uma estrutura comum, quepodemos dizer trans histórica.

Origens do Culto em Portugal

Quanto aos primeiros registros do culto a Nossa Senhora dosPrazeres em Portugal, Moisés Espírito Santo refere se a um processode Inquisição segundo o qual um cristão novo de Viseu mandaraconstruir uma capela e encomendara uma imagem, afirmando atodos os católicos que era da Senhora dos Prazeres, porém que suaintenção, e a dos cristãos novos, era a de representar a RainhaEster. A passagem seguinte, em que se pode constatar os “temposduros” do judaísmo português, foi retirada do Santuário mariano, V,livro II, §51, p.349: o tomo é datado de 1716; não diz qual foi apena aplicada pelo tribunal:

Origem da imagem de Nossa Senhora dos Prazeres de Abravezes: Foi o casode um Antônio Dias Ribeiro, cristão novo e morador no lugar de Repezes,freguesia de São Martinho, extramuros de Viseu, dispusesse edificar umaermida pelos anos de 1630, mais ou menos, no lugar de Abravezes, freguesiada Sé da mesma cidade e distante para a parte norte menos de um quartode légua. Elegeu para a construção da ermida o alto de um teso que aliestava e nele lhe deu princípio. E depois mandou fazer a um escultor umaformosa imagem que o artífice obrou com a intenção de que formava aefígie da Rainha dos Anjos Maria Santíssima, como fez, uma estátua de seispalmos e um quarto, com o menino Jesus sentado no braço esquerdo e comcetro na mão direita como soberana imperatriz, que é do céu e da terra.Feita a santa imagem, a mandou colocar na nova ermida não como a imagemda mãe de deus, Rainha dos anjos e dos homens, mas como a efígie daRainha Ester. Prendeu o santo tribunal da Inquisição este pérfido hebreu. Ecomo naquele santo tribunal se descobrem as verdades e se manifestam osenganos e regimentos, declarou Antônio Dias Ribeiro que mandara fazeraquela ermida para nela pôr a efígie da Rainha Ester e que mandara fazersimuladamente a imagem com o título de Nossa Senhora dos Prazeres, tendoem sua mente ser a Rainha Ester. Não sabia este ignorante que Ester foifigura de Maria e na sua malícia não sabia o que obrava, e para mostrarmais a sua cega ignorância lhe mandou pôr um cetro em uma mão ignorandoque Maria é a verdadeira Rainha do mundo e também do céu (...). No meioda capela, bem lavrada, mandou o pérfido hebreu lavrar sepultura com oseu nome gravado; mas como se fez indigno de ser filho da Igreja Católica,

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Borba, Évora etc. Suas festas tradicionais são concorridas, comgrande assistência popular. Esse autor também se refere ao fato deo culto chegar à Índia, levado pelos portugueses: “Na freguesia deRibandar, conselho, distrito e arquidiocese de Goa, a sua confrariaestá reunida à da Nossa Senhora da Ajuda, desde 1945”.

No texto “107 Invocações da Virgem Maria no Brasil: História,Folclore e Iconografia” lembra Nilza Botelho Megale que, assim comosão comemoradas as dores da Virgem Santíssima, são festejadas assuas sete maiores alegrias ou prazeres, segundo foram por ela mesmaenumerados a um noviço franciscano que lhe ofertava uma coroa deflores naturais: 1) a anunciação do anjo; 2) a saudação de SantaIsabel; 3) o nascimento de seu Divino Filho; 4) a visita dos ReisMagos; 5) o encontro de Jesus no templo; 6) a primeira aparição deCristo após a Ressurreição; 7) a sua coroação no Céu após suagloriosa assunção. Essa mesma autora confirma o que já foi dito porPadre Jacinto, que, por volta do século XVI, apareceu uma imagemda Virgem Maria junto à fonte da quinta dos Condes em Alcântara,Portugal. A partir de então, a água dessa fonte adquiriu virtudesmilagrosas, curando os doentes que dela bebessem. “Nessa ocasião(da aparição) - diz ainda Megale - a Rainha do Céu apareceu a umainocente menina, mandando dizer aos seus pais e vizinhos queedificassem naquele lugar uma capela, onde Ela fosse servida einvocada por todos sob o título de Senhora dos Prazeres” (1980:317). Este detalhe será analisado mais adiante.

Quando descreve a referida imagem, a mesma autora fazlembrar tanto as que Moisés Espírito Santo estuda como a dos MontesGuararapes, à exceção do cetro: “Esculpida em alabastro e pintadaa cores com bordaduras de ouro, esta efígie é tão perfeita, que opovo a julgava feita por mãos de anjos. Atualmente Ela érepresentada com o Menino Jesus nos braços e sob os pés aparecemsete flores correspondentes às suas sete maiores alegrias” (p. 317).

Megale e Moisés Espírito Santo bebem na mesma fontehistórica, que é a obra de Frei Agostinho de Santa Maria, segundoquem Portugal foi a primeira nação católica a festejar as alegrias deNossa Senhora, “culto este cuja origem remonta ao século XIV, porémsó se desenvolveu após a aparição da imagem, que por vontade daVirgem Maria recebeu a denominação de Nossa Senhora dos Prazeres”(Megale; 1980: 317).

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não podem guardar pão fermentado em casa. Na liturgia católica, onome “dos Prazeres”, “dos Gozos” ou “das Alegrias” de Nossa Senhorapretende “fazer associar a mãe de Jesus às alegrias da ressurreição”.Porém, os livros santos do cristianismo são mudos quanto às relaçõesde Jesus ressuscitado com sua Mãe.

A mudança do nome não valeu de nada, no sentido de acabarcom o antigo culto hebreu. As Senhoras do Verde e todas as centenasde outras festejadas nesse dia com passeios aos campos e aosmontes, e que deveriam passar a chamar se ‘dos Prazeres’, continuama ser conhecidas pelos antigos nomes e a integrar a festa tradicionaljudaica caracterizada por uma subida ao monte ou por um passeio aum rio, com refeição. O ritual existe ainda hoje, no domingo dePascoela, em todos os recantos das três Beiras, seja qual for o nomeda Senhora. Mas essas festividades e cultos perderam o seusimbolismo hebraico.

Nos Montes Guararapes percebemos a mesma estrutura, istoé, a visita ao Monte, que no início era aos antepassados mortos nasbatalhas; um passeio com refeição, exatamente no dia de domingode Pascoela, quando romeiros de várias procedências do interior dePernambuco e de outros Estados vizinhos passam o dia em alegresrefeições ao ar livre.

Num pequeno texto “Invocações de Nossa Senhora emPortugal d’Aquém e d’Além mar e seu Padroado”, publicado em 1967,pelo padre Jacinto dos Reis, encontramos que, entre as diversasnominações que Nossa Senhora adquiriu nestes últimos séculos,aparece o de Nossa Senhora dos Prazeres. O seu culto é muito antigoe provavelmente teve início em Portugal. Reis cita A. Pimentel:

É certo ter sido a Igreja portuguesa (Lisboa, Évora e Braga) a primeira dacristandade que festejou as alegrias da virgem Santíssima pela ressurreiçãodo Seu amado Filho, dando lhe a invocação de † Senhora dos Prazeres. (...)A devoção de Nossa Senhora remonta entre nós ao século XV, embora noséculo XVI tomasse maior desenvolvimento pela aparição de uma imagemna quinta dos condes da Ilha, sobre a ribeira de Alcântara, em Lisboa (Reis;1967: 477-8).

Padre Jacinto passa a se referir agora no século XX, quandofoi criada em Lisboa no ano de 1958, a freguesia de Nossa Senhorados Prazeres. Esta Senhora é orago de muitas igrejas paroquiais emuitas capelas. Seu culto aparece em diversas dioceses earquidioceses, como a da Guarda, de Braga, Leiria, Aljubarrota,

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Desta forma, podemos dizer que o culto de Nossa Senhorados Prazeres se difundiu de maneira considerável no Brasil, havendodele registro até em nosso século, com três paróquias relativamenterecentes. No entanto, e muito a propósito, é a própria autora citadaquem diz constituir, o culto ou a aparição de Nossa Senhora nosMontes Guararapes, a devoção mais “famosa” e significativa a essasanta.

Antes de prosseguir com uma descrição das particularidadeshistóricas do culto nos Montes Guararapes, é preciso retornar a NilzaMegale para recolher a confirmação iconográfica de Nossa Senhorados Prazeres, sua forma modelar e sua plástica constante, observáveldesde as citações de Moisés Espírito Santo quanto a suascaracterísticas em Portugal. Megale chega a citar até mesmo o cetrona mão da Virgem:

A Virgem Maria está de pé, vestida de uma túnica de mangas largas e ummanto que envolve o seu corpo. Tem sentado em seu braço esquerdo oMenino Jesus nu, com os braços abertos e segurando com a mão direita umcetro pequeno. Sua cabeça está semicoberta por um véu curto e sob seuspés aparecem sete cabeças aladas de anjos, correspondentes aos setegrandes prazeres de sua vida. Em algumas imagens as alegrias de Mariasão simbolizadas por sete rosas (1980: 319).

Fato consensual entre os autores que pesquisei (Bastide; 1945- Gonçalves de Mello; 1971 – Luna; 1867 - Megale; 1980 - MotaMenezes; 1973) é que o templo dedicado a Nossa Senhora, emJaboatão dos Guararapes, foi construído logo após a vitória debrasileiros e portugueses sobre os holandeses, os quais, por 24 anos,haviam conquistado o Nordeste do País. Isto quer dizer que aconstrução do templo se identifica plenamente com os fatos históricosdas batalhas, edificado que foi para agradecer à Mãe Santíssima suaparticipação efetiva nessa ordem de acontecimentos mundanos.“Conta a tradição popular que Nossa Senhora dos Prazerestransformava em bombas as pedras arremessadas contra o inimigoe que foi Ela quem guiou os nossos soldados no caminho da vitória”(Megale; 1980, 317).

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2 A lenda se encontra presente também, mas com detalhes distintos, na “memória”do Padre Luna, de 1867: “A tradição nos assegura que o General Barreto de Menezescom seu pé de exército nos Guararapes, antes de entrar em ação de batalha, naeminência do segundo monte, havia feito oração ao Nume Supremo, seguida deum voto à Virgem Puríssima, de ali erigir lhe uma Capela, consagrada aos seus

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As origens do culto

As Origens do Culto no Brasil

Acompanhando de perto o texto de Nilza Megale, que trataefetivamente das aparições marianas no Brasil, a autora faz referênciaa algumas igrejas dedicadas à invocação de Nossa Senhora dosPrazeres no Estado de Alagoas, Santa Catarina e em Minas Gerais,mais especialmente em Diamantina e Lavras Novas, sendo, porém,a mais famosa a dos Montes Guararapes, perto de Recife, emPernambuco.

Esta informação sobre as igrejas e paróquias dedicadas aNossa Senhora dos Prazeres no Brasil se completa com a entrevistaque tive com o Irmão Rafael Francisco da Silva, de quem obtive arelação mais atual das paróquias que culturam a Nossa Senhora dosPrazeres em nosso país. São dez paróquias, sendo a maioria delasencontradas na Região Nordeste do Brasil, às quais se somam aquelassituadas nos Estados de São Paulo e Santa Catarina. Estãolocalizadas:

1) na cidade de Paulista, em Pernambuco: fato curioso é que,aí, as festividades realizam se no mês de setembro;

2) na cidade de Maceió, Alagoas: catedral metropolitana deNossa Senhora dos Prazeres. Data de 1821;

3) na cidade de Goianinha, Rio Grande do Norte: data de1746;

4) na cidade de Caucaia, Ceará. Data de 1915.

5) na cidade de Guaraciaba do Norte, Ceará: data de 1888;

6) na cidade de Lages, Santa Catarina: catedral diocesana deNossa Senhora dos Prazeres. Data de 1767;

7) na cidade de Itapetininga, São Paulo: data de 1771;

8) na cidade de Piracicaba, São Paulo: data de 1974;

9) na cidade de São Paulo, Estado de São Paulo: data de1940;

10)na cidade de Itapecerica da Serra, São Paulo: igreja deNossa Senhora dos Prazeres, que fica no Largo da Matriz edata de 1841.

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1 Aí a santa tem imagem, ainda, no mosteiro das monjas beneditinas e no mosteirode Nossa Senhora da Paz

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há grande acorrida a esse local. Além disso, têm se registros, citadospelo mesmo professor, de que as peregrinações e romarias aos Montestiveram inicialmente o caráter de visita aos antepassados mortos.Na maioria destes se encontravam familiares dos soldados. É assimque nos lembra Roger Bastide, com singela poesia:

“(...) quero, por um momento, me deixar penetrar pelos mitos, e quem nosdiz que o mito não é o pressentimento de uma verdade que ainda não existia,mas que não tarda a nascer? A terra bebeu aqui o sangue dos que morrerampor uma fé e por uma cultura; bebeu também o sangue dos soldados louros,vindos dos países do Norte, dos mares que cantam na névoa, para seembriagar com a voluptuosidade dos trópicos. O sangue não secou ainda,continua a correr sob o solo, forma poças negras nas raízes dos coqueiros e,uma vez por ano, por ocasião da florada, volta, sobe ao ar livre pelas veiasdas ervas; os capinzais não passam de uma imensa toalha vermelha. Nãopassam de um tapete de sangue que ondula em vagas purpúreas. Então, doRecife e de Olinda, esquecendo as rivalidades antigas, as querelas dospelourinhos, a multidão vem até à igreja que se abre aos cânticos do povo,celebrando a vitória sobre os holandeses e chorando os heróis mortos” (1945:148 9).

Esse texto reflete as mudanças que ocorreram na visãohistórica e sociológica de Roger Bastide no tocante à ocupaçãoholandesa do Nordeste do Brasil e particularmente do Estado dePernambuco. Por exemplo, num pequeno texto datado de 1940 eescrito para o jornal O Estado de São Paulo, o mesmo autor chega adizer que o domínio holandês “passou sem deixar mais vestígios doque a estada dos huguenotes de Villegagnion no Rio de Janeiro” (p.22). Esta posição ele a reverte consideravelmente quando, a partirde uma viagem pelo Nordeste do País, em visita a Pernambuco e àBahia, escreve suas Imagens do Nordeste místico em preto e branco,de 1945, com nova visão dos fatos, documentada pelo texto acimacitado.

O Sincretismo afro brasileiro em Nossa Senhora dos Prazeres

O sincretismo como fenômeno social está ligado a um processode construção de identidade cultural. O Brasil é um lugarespecialmente rico nessa fenomenologia. A partir de um intensointercâmbio de tradições históricas distintas, observamos umcomplexo e dinâmico processo de interpenetrações e cisões de traçosculturais diversificados. O sincretismo faz parte das “simetrias eassimetrias americanas”, do que Janice Theodoro (1992) chamoude “o projeto barroco de uma identidade latino americana”. Será

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Em verdade, o fato que liga a santa aos acontecimentoshistóricos está determinado pela vitória na primeira das três batalhas,que se deu em 18 de abril de 1648, domingo de Pascoela. Duranteos seis anos da Guerra de Restauração (1648 1654), os brasileirossempre estiveram em condições materiais desfavoráveis. Portugalestava impossibilitado de ajudar efetivamente na campanha: apóster conseguido sua independência da Coroa espanhola, sob a qualficou subjugado por 60 anos, temia o ataque holandês. Assim,propagaram se os feitos lendários das batalhas heróicas.

Nilza Megale diz que “a Insurreição Pernambucana contra odomínio holandês foi considerada, na época, não somente uma guerrapatriótica, mas também uma luta religiosa, pois os batavos eramprotestantes; por esse motivo os combates eram precedidos denovenas e procissões. Os soldados, antes de seguirem para o campode batalha, confessavam e comungavam” (p. 318). Após estes seisanos de guerra, o General Francisco Barreto mandou erguer comsuas próprias despesas uma capela dedicada a Nossa Senhora dosPrazeres. Diz nos Megale, que “esta invocação estava em modanaquela época e o General Barreto de Menezes tinha lhe grandedevoção” (p. 318), além de que, bem o sabemos, era costume,desde a Idade Média européia, erguer-se templos após as vitóriascampais, haja vista às inúmeras invocações a Nossa Senhora daVitória, ou das Batalhas, que se encontram até mesmo em nossopaís. A razão disto é o fato de considerarem se as guerras momentossagrados, “lutas religiosas”. Outro ponto que devemos considerarfoi levantado, em entrevista, pelo professor José Luís da MotaMenezes quando ponderou que “com o fim da luta, como os mortoseram em quantidade e o horário impossibilitava o transporte para ocemitério santo, o modo de resolvê lo foi tornar o monte sagrado”. Ehoje vemos, no cruzeiro que se encontra no pátio em frente dotemplo, referências àqueles heróis mortos. Em todo Dia de Finados

louvores, se Ela, por seu poder e intercessão, alcançasse do Deus dos exércitos avictoria tão desejada. “Também é tradição oral que, na ocasião desta fervorosasúplica, um estampido forte se ouvira no cimo da montanha, o qual surpreenderapor demais a todos, e em seguida fora visto uma exalação, que fazia seu curso naazulada esfera; fenômeno este que, deixando a todos com os cabelos hirtos, etomados de susto, sugeria ao mesmo tempo a idéia feliz, e despertava o belopresságio de um triunfo assgnalado, para os intrépidos beligerantes sobre a coortebatava” (267).

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Como dizia,observamos em alguns autores as justaposiçõesque fazem entre o culto de Nossa Senhora dos Prazeres e algunsorixás africanos, principalmente Oxum e Obá.

Obá

A associação do orixá Obá com Nossa Senhora dos Prazeresencontra se em dois textos importantes da literatura antropológicamoderna: um de Artur Ramos (1951) e outro de Roger Bastide(1983). Ambos, no entanto, citam fontes de Gonçalves Fernandes,que em pesquisa de campo no terreiro de Maria da Conceição,recolheu informações sobre as comemorações conjuntas que sefaziam às duas entidades.

As características míticas deste orixá são um tantocontroversas. Em René Ribeiro (1952) sabemos que Obá é uma dasfilhas de Iemanjá com Oxalá, enquanto Oxum é filha de Iemanjácom Orumilá. Ambas tornam se esposas de Xangô, após teremrelações com Ogum. Relações incestuosas, entre irmãos.

Pierre Verger (1981) informa que Obá é sincretizada, no NovoMundo, com Santa Catarina, o que é corroborado por M. S. Herskovits(Bastide; 1983: 162). Já se vê, daí, que não há nenhum consensoem torno das associações do orixá com a santa objeto deste ensaio.Mas as contradições não param aí. Quando comparamos asinformações mitológicas fornecidas por Édison Carneiro (s.d.) e PierreVerger (1981), encontramos diferentes versões sobre a amputaçãode uma das orelhas do orixá. Num texto em que Carneiro nos forneceoutras informações concernentes às características de Obá,encontramos a seguinte versão mítica:

Obá, iyabá guerreira, está remotamente identificada com Joana d’Arc. Nãotem uma das orelhas e os negros contam que, mulher de Xangô, menosquerida do que as outras, acreditou nas palavras da favorita Yansã, que lhedisse que, para conquistar o amor do orixá, deveria cozinhar a orelha. Trazespada e escudo de cobre e com o escudo, com folhas ou simplesmentecom a mão oculta a orelha esquerda. Come cabra, galinha, conquém, acarajée abará (s.d.: 82).

Na versão de Pierre Verger (1981:186), a orixá que é objetode rivalidade com Obá não é Iansã e, sim, Oxum. Esses dois orixás,para Verger, passam a ter uma eterna arenga, e conta o mito que“Xangô, irritado, fez explodir o seu furor. Oxum e Obá, apavoradas,fugiram e se transformaram nos rios que levam seus nomes. No

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sob o prisma teórico do sincretismo que faremos uma investida quantoàs associações que diversos autores e pessoas entrevistadas fazementre Nossa Senhora dos Prazeres e alguns orixás africanos de origemnagô.

Arriscamo nos aqui em penetrar em domínio cheio dearmadilhas e polêmicas infindas. O problema do sincretismo édebatido há mais de meio século no Brasil. Existe, portanto, extensabibliografia a seu respeito, em meio à qual se encontram autores domaior renome como Artur Ramos, Waldemar Valente, René Ribeiro,Gonçalves Fernandes, Roger Bastide, Sérgio Ferretti, Roberto Motta,etc. Não pretendo neste ensaio dar nenhuma palavra definitiva ouconsensual sobre o conceito em questão. Proponho, para simplificar,que nos atenhamos ao trabalho de Sérgio Ferreti, que conseguiuoferecer uma tipologia que organiza de forma sucinta os aspectosmultilineares do fenômeno sincrético:

O sincretismo ocorre na religião, na filosofia, na ciência, na arte e pode serde tipos muito diversificados. Nas religiões afro brasileiras podemos localizarvários tipos, conforme o aspecto que se esteja estudando ou a ênfase doestudo. Para evitar mal-entendidos e confusões, é preciso explicar exatamenteo sentido que se quer dar ao termo que está sendo utilizado. Apesar dosaspectos pejorativos que prevalecem, sincretismo é um fenômeno que existeem todas as religiões, está presente na sociedade brasileira e deve seranalisado, quer gostemos ou não (1991: 79).

Mais adiante no texto, Ferretti distingue três variantes “queabrangem alguns significados principais do conceito de sincretismo”:

1. Mistura, junção, ou fusão: existe na observação de certos rituais pelopovo de santo, como o batismo e a missa de sétimo dia;

2. Paralelismo ou justaposição: existe nas relações entre orixás e santoscatólicos;

3. Convergência ou adaptação: existe entre idéias africanas e de outrasreligiões, sobre a concepção de Deus ou sobre o conceito de reencarnação”(p. 79).

“Podemos dizer que cada caso é único e que o sincretismoassume características diversificadas”, diz o mesmo Ferretti (p. 80).Tomando cuidado em perceber especificidades, considero que nocaso do presente estudo cabe bem a segunda variante do conceito,que é o do paralelismo.

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ambivalências. Dentro desta aparente mixórdia de informações,podemos chegar a arriscar uma hipótese: se os autores colheraminformações precisas, no Recife Obá associa se a Nossa Senhorados Prazeres, e Oxum a Nossa Senhora do Carmo. Em Jaboatão,aconteceria o inverso. Isso se afirma sem pretensões de aplacaressas dúvidas, pois a associação de um orixá com um santo varia de“terreiro” para “terreiro”.

Oxum

Vemos as contradições aflorarem quando nos debruçamossobre a filiação mítica de Oxum. Para René Ribeiro que tentouorganizar um panteão nagô, a entidade é filha de Iemanjá comOrumilá. Mas quando nos voltamos para a obra de Pierre Verger(1981), vemos aí que Orumilá foi um de seus maridos, e não seugenitor mítico. Bem sabemos, neste domínio não existe proibição deincesto, contudo já temos de início, esta imprecisão de dados. Detoda maneira, podemos dizer que Oxum possui uma graça e umabeleza toda especial, destacando se nas artes da sedução e da malícia.Seu nome está ligado à fertilidade das mulheres e dos seres emgeral. Seguindo Pierre Verger, “Oxum é a divindade do rio de mesmonome que corre na Nigéria, em Ijexá e Ijebu. Era, segundo dizem, asegunda mulher de Xangô, tendo vivido antes com Ogum, Orumiláe Oxóssi. As mulheres que desejam ter filhos dirigem se a Oxum,pois ela controla a fecundidade, graças aos laços mantidos com IyámiAjé (‘Minha Mãe Feiticeira’)” (p. 174).

Oxum tem o título de Iyáloode, que é dado à pessoa que temo lugar mais importante entre todas as mulheres da cidade. É arainha de todos os rios e exerce seu poder sobre a água doce. Semela não haveria vida na terra. Possuindo enorme riqueza de variantesmíticas e rituais, é um orixá bastante popular tanto no Recife comoem diversas outras capitais do País. Geralmente associa se a outrassantas de muito vulto, como, por exemplo, a padroeira da cidade doRecife, como já referido. Na Bahia é sincretizada com Nossa Senhoradas Candeias, e, em Cuba, com Nuestra Señora de la Caridad delCobre. Todavia, segundo diversos autores, no Recife e em Jaboatãoela é comumente associada a Nossa Senhora dos Prazeres. É o quevemos em Artur Ramos, Waldemar Valente, Roger Bastide, GonçalvesFernandes, Pierre Verger, etc. Uns associam-na apenas a NossaSenhora do Carmo, como é o caso de Bartolomeu Medeiros (1987).

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local de confluência dos dois cursos de água, as ondas tornam semuito agitadas em conseqüência da disputa entre as duas divindades”(p. 186).

Parece-me mais apropriado crer que a versão de Verger sejaa mais coerente e correta, já que de fato as duas entidades estãoligadas aos cultos das águas dos rios, e também por que Oxum é aorixá sobre a qual vemos as características mais pertinentes com asidéias de malícia, sedução, prazer etc.

Um texto que tem importância singular é o de René Ribeiro.Para ele, Obá é uma “divindade guerreira, sendo no Recife equivalentea Nossa Senhora dos Prazeres, que teria dado aos portugueses suavitória sobre os holandeses nos Montes Guararapes” (1952: 60).

O nome de René Ribeiro soma se aos de Artur Ramos, RogerBastide e Waldemar Valente na identificação dos dois cultos. Porém,nenhum deles deixa de se referir a “terreiros” que associam NossaSenhora dos Prazeres a Oxum. E René Ribeiro não foge à regraquando informa que Oxum se liga ainda aos cultos de Nossa Senhorada Conceição e do Carmo, essa última a padroeira da cidade doRecife.

Em páginas mais à frente do estudo de Ribeiro, encontramosum texto que marca profundamente algumas imprecisões tantogeográficas como de ordem mítica, na atribuição do fenômeno dosincretismos:

Além do calendário das “obrigações” diárias, certas datas especiaiscomemorativas de certos deuses também exigem atenção especial. De ummodo geral, as festividades anuais seguem a seriação das festas dos santoscatólicos, caso pitoresco ocorrendo no Recife, até pouco tempo, com assolenidades do dia de Nossa Senhora dos Prazeres: nesse dia (...), havendoparticipado das missas e procissão organizadas pelos frades que seencarregam do santuário dos Guararapes, reuniam se à noite os membrosdos cultos afro brasileiros para celebrar a seu modo, em cabanasimprovisadas, a divindade africana Obá aqui identificada à santa Católica(p. 66).

Os Montes Guararapes não ficam no Recife, e sim em Jaboatão,município que fica dentro da região metropolitana recifense, masnão na cidade do Recife; isso parece sem importância, mas poderáproduzir conclusões equivocadas. E René Ribeiro é mesmo um autorque nos faz refletir sobre o cuidado que devemos ter quandopretendemos determinar fatos cheios de ambigüidades e

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fundo comum da tradição popular, da estrutura, ou melhor, “[d]asformas fundamentais do pensamento religioso” e da universalidadeda noção de maternidade divina dos homens se aplicam muito bemaqui. De fato, as divindades referidas possuem aquela mesma lógicaque atravessa os tempos e que preserva em todos os povos a mesmaestrutura simbólica. As singularidades mitológicas e rituais sãomanifestadas, porém não subvertem radicalmente a estruturaarquetípica e universal, de os homens atribuirem à divindade amaternidade de sua espécie, ou de nações, etnias etc. Nós aqui jáacompanhamos desde o Oriente Próximo com os cultos de Ishtar ede Ester, na Assíria e Babilônia e também na Judéia, passando peloscultos marianos de Portugal, onde a população dentro da tradição edos mitos seculares de sua formação atribui a Maria, Mãe dos Céus,Estrela da Manhã etc., a origem mítica de sua nacionalidade. Ostextos de Moisés Espírito Santo são esclarecedores disso (1988;1990).

Neste capítulo apresentei as origens do culto à N. S. dosPrazeres através de um levantamento histórico, que parece seconfundir com certo difusionismo antropológico, mas que, todavianão é mais que uma confirmação das teses de Marcel Mauss eDieterich. Estes dois autores afirmam concretamente que existe umaforça simbólica recorrente ligada à noção de maternidade, ou melhor,a noção de “Mãe dos Homens” e isto se aplica muito bem aqui nonosso contexto de análise.

A Virgem personifica e traduz, no seu simbolismo, a funçãoarquetípica e inconsciente cumprida por seu significado cultural. Istoé, Nossa Senhora dos Prazeres possui um “idioma cultural” particular.Uma linguagem própria, histórica. Nossa Senhora de Guadalupe,estudada por Eric Wolf (1968), possui também suas particularidades.No entanto, todas essas Virgens e deusas – referência ainda à deusaIshtar, à rainha Ester (por que não à Isis do Egito, à Atena na Grécia,à Iemanjá no Brasil e na Nigéria, etc. – cumprem uma funçãoestrutural análoga. Todas são frutos da crença humana e universalnuma Mãe sobrenatural, que incorpora em si todas as aspirações eos desejos da humanidade. Melhor dizendo, cada uma destas deusase Virgens incorpora os anseios de parcelas da humanidade, asdistintas nações e etnias, constituindo, pois, símbolos e mitosfundadores, com seus heróis e suas tragédias, expressão imagináriado inconsciente coletivo dos povos.

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Outros a Nossa Senhora, simplesmente, como o fez Nina Rodrigues,ou ainda com Nossa Senhora de Lourdes, como aparece em ÉdisonCarneiro.

No que concerne a este ensaio, convém avaliarmos asassociações com Nossa Senhora dos Prazeres. E não é de todo forçosocrer que Oxum possui características bem próximas de uma santaque alude aos prazeres e as alegrias da vida. É o que podemosconcluir desta citação de Verger: “O arquétipo de Oxum é o dasmulheres graciosas e elegantes, com paixões pelas jóias, perfumese vestimentas caras. Das mulheres que são símbolos do charme eda beleza. Voluptuosas e sensuais, porém mais reservadas que Oiá.Elas evitam chocar a opinião pública, à qual dão grande importância.Sob sua aparência graciosa e sedutora escondem uma vontade muitoforte e um grande desejo de ascensão social” (p. 176).

Ficam, assim, bastante afins as duas divindades. Os princípiosque as regem são comuns e pode se constatar isso nas associaçõesde idéias feitas pelos mais leigos, que chegam a ver em Oxum umadivindade que mais parece uma deusa grega que qualquer outracoisa. É o que percebemos ao lermos, num pequeno jornal doMovimento Negro Unificado (MNU), de Pernambuco, as seguintespalavras: “Festa de Oxum em Jaboatão: Os adeptos e simpatizantesdo candomblé puderam reverenciar o orixá Oxum, deusa da beleza,do amor, da riqueza e da fertilidade, no domingo, 26 de julho (1991),quando aconteceu, pelo segundo ano consecutivo, a Festa de Oxum,na cidade de Jaboatão dos Guararapes”.

É curioso observar que as datas não coincidem. A festa deNossa Senhora dos Prazeres tem data móvel, de acordo com oCarnaval e a Quaresma, mas esta festa de Oxum tem data fixa: dia26 de julho. Aqui ocorre que o movimento negro tenta desvincularos laços do candomblé com o catolicismo e tende a promover umaindependência cada vez maior de uma em relação à outra,encontrando para cada uma sua “identidade” própria. Esta últimafesta conta com o incentivo da Secretaria de Turismo, Cultura eEsportes de Jaboatão, o que vem demonstrar a força atual doMovimento Negro na região. Em 1991 o evento contou com aparticipação de aproximadamente 10 mil pessoas!

Retornando às reflexões iniciais de Marcel Mauss e deDieterich, podemos dizer que as suas hipóteses concernentes ao

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A sócio-etnografia da festae da procissão religiosa

É através da etnografia da festa e da procissão de NossaSenhora dos Guararapes que procuro revelar a estrutura comum esubjacente à aparente variabilidade e diversidade que manifestamos fenômenos religiosos na cultura brasileira, em particular, e nomundo católico em geral.

Destacam-se, aqui, trabalhos como o de Isidório Alves (1980)sobre o Círio de Nazaré em Belem do Pará, a pesquisa de RubensCésar Fernandes (1982) sobre os Cavaleiros do Bom Jesus em SãoPaulo, a etnografia, de Carlos Rodrigues Brandão (1982), da Festado Divino Espírito Santo de São Luís de Paraitinga, no interior deSão Paulo, o estudo das festas seculares agrícolas efetuadas porSérgio Teixeira (1989), os de Pierre Sanchis (1983) sobre a sociologiadas romarias portuguesas, e ainda as pesquisas de Roberto da Matta(1981), que inspiram um método estrutural abrangente sobre odilema social brasileiro. Desta forma, fazendo referência a amplabibliografia, procuro demonstrar as invariantes e unidades simbólicasque vejo existir nos complexos rituais estudados.

Considero estas formas de manifestação religiosa um dospilares de nossa imaginação e organização sociológica. Pois diversasexpressões populares e oficiais desenvolvem desde há séculos estalinguagem ritual, utilizando se de estruturas comuns e universais.Neste sentido, remeto o leitor ao interessante estudo de ClaudeRivière (1989), onde ele propõe uma ritologia, ou melhor, uma ciênciados ritos. Esse autor defende que o processo de secularização dos

Sobre as singularidades que possui o culto a Nossa Senhorados Prazeres no Brasil, remeto o leitor ao quarto capítulo, ondeapresento o seu significado cultural. Porém, querendo seguir a ordemem que construí o ensaio, aprofundaremos nosso conhecimentofazendo um pequeno mergulho na realidade empírica das últimasfestas realizadas (1991, 1992, 1993) em que empreendi uma brevedescrição etnográfica. Nesta aventura descritiva apresento a Vidapropriamente dita sua fenomenologia e sua dinâmica contagiante.

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O professor José Antonio Gonçalves de Mello revela outranuance do termo: “Guararapes, na língua dos Tupis, era (...) tamborou atabaque, numa como previsão dos muitos que neles se tocaramnestas batalhas, que quase quer dizer monte guerreiro” (Gonçalvesde Mello; 1971: 9).

Também Bernardino F. de F. Abreu e Castro, no seu romanceNossa Senhora dos Guararapes, de 1847, vem juntar se ao PadreLuna na alusão do termo Guararapes às “águas das chuvas”. Dizele: “(...) o nome indígena significa na linguagem portuguesa somagudo, em razão do fragor que as águas das enxurradas fazem porentre suas cavidades...” (1980: 660).

Apesar de alguma diferença na etimologia da palavra, nãodeixa de haver certa semelhança entre os significantes “estrondos”,“tambor” e “som agudo”. Todos remetem ao mesmo significado.

O distrito da Muribeca, até os anos de 1950, não tinha grandeimportância econômica nem demográfica. Só a partir da construçãoda estrada BR 101, cortando Prazeres, e com a implantação de umparque industrial, o deslocamento do interesse imobiliárioespeculativo do Recife para a região, a “modernização” da infraestrutura urbana da cidade e a busca das praias pela população dasclasses média e alta, é que o município atravessou, nos anos de1970, um grande impulso. Porém, em contrapartida a esse processode crescimento e “modernização”, apareceram os mucambos, asfavelas, os grandes bolsões de miséria. Milhares de pessoas povoamhoje o distrito, vivendo uma crise urbana sem precedentes. Um dosproblemas foi a criação do Parque Histórico Nacional dos Guararapes.Criado por decreto presidencial em 1971, pelo general EmílioGarrastazu Médici, acabou se tornando um grave tormento para osmoradores, apesar de o projeto conter idéias muito interessantes,elaboradas principalmente pela equipe do arquiteto ArmandoHolanda, que desenvolveu um belo estudo sobre a área, como podeser visto no Projeto Físico editado pelo Ministério da Cultura em1975. Desde 1937, quando foi tombado o templo de Nossa Senhorados Prazeres pelo Patrimônio Histórico, o governo federal começoua preocupar se em proteger toda a área de Guararapes. Em 1965,depois de tombada a área, foi decretada a desapropriação de 225hectares (decreto nº 57 273, de 16 de novembro daquele ano), oque nunca se consolidou. Ao ser criado festivamente em 1971, o

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ritos religiosos são uma transformação destes nas “liturgias políticas”modernas (religiões civis, etc.). Outro estudo importante é o deJean Cazeneuve (s.d.), que analisa a dimensão ritual da condutahumana.

Nesta pequena descrição da festa e da procissão religiosa deNossa Senhora dos Prazeres, também procuro explicar algumasquestões intrigantes dos rituais populares do catolicismo brasileiro.Estes eventos ficam a meio caminho entre uma “festa de igreja” eum “festejo do povo”. Por eles, observamos os limites tênues queseparam o religioso e o secular, de fronteiras muito difíceis dedeterminar, como podemos observar em diversas outras festas destetipo espalhadas pelo território nacional.

Localização, Aspectos Históricos e Sócio Econômicos

Os festejos de Nossa Senhora dos Prazeres - ou, simplesmente,Festa dos Prazeres, ou ainda Festa da Pitomba, como são chamadospela população - acontecem numa região bem determinada domunicípio de Jaboatão dos Guararapes: Prazeres, nome popularmenteconhecido, naquele município, do distrito que tem oficialmente adenominação de Muribeca dos Guararapes, instituído pelo decreto-lei estadual nº 952, de 31 de dezembro de 1943. O costume dechamar o distrito com o nome de Prazeres é mantido até mesmopelas autoridades municipais e obedece a razões históricas, poisanteriormente a localidade havia sido chamada de Nossa Senhorados Prazeres, devido à influência da Igreja centenária que aí temesse nome e por ter sido o primeiro núcleo populacional significativoa se formar, a partir de 1950.

Desde o século XVI, todo lugarejo tem seu desenvolvimentoe crescimento econômicos ligado à cultura do açúcar. Inicialmente,com engenhos e, depois, com usinas de beneficiamento. O termoGuararapes deve se ao monte onde se travaram as duas celebresbatalhas contra os invasores holandeses, em 1648 e 1649. Diz oPadre Luna acerca das origens do nome: “Guararapes significa noidioma dos nossos índios o estrondo e o ruído que as águas daschuvas fazem quando se despencam desses montes, assemelhandose ao estrondo que faz uma catarata quando as águas se precipitam,isto induziu os índios a dar lhes este nome” (1867: 255).

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Voltando aos aspectos sócio econômicos e demográficos dodistrito de Muribeca dos Guararapes – ou simplesmente: Prazeres –diremos que se desenvolveu dentro dos quadros de desigualdade edesequilíbrio social comuns a todo um continente. O estado do distritodos anos de 1980 até os anos de 1990 representa verdadeiramenteos diferentes Brasis que possuímos e que precisam de mudançasprofundas: o Brasil histórico, cuja memória necessita-se preservar;o Brasil litorâneo, cujas praias são tão belas e atraentes para oturismo; o Brasil industrial moderno, que tantas contradições temengendrado; o Brasil de uma classe média indefinida e inseguracom uma ideologia complexa; e o Brasil dos miseráveis, dos quehabitam os morros e os mangues, e que precisam invadir a terraporque não têm acesso legal a ela através de sua força de trabalho...

A Procissão de Abertura

A semana que antecede a realização das festividades paraNossa Senhora dos Prazeres é a da Páscoa Cristã. É o encerramentode um ciclo de abstinência e resignação que começa a partir doúltimo dia de Carnaval. Essas datas variam no calendário católico,mas o período da Quaresma tem um significado marcante em nossacultura, pois, de fato, é quase impossível vermos realizar se qualquertipo de festividade, religiosa ou profana, de grandes proporções,nesse período. Nem mesmo os “terreiros” ou casa de cultos afrobrasileiros desrespeitam esses preceitos, nem haveria razão paratal, pois os seus praticantes consideram se católicos.

Com o aproximar-se dos dias da Páscoa, vemos a comunidadede Prazeres começar a organizar suas barracas e vendinhas, com osmais variados produtos. O final de semana é prolongado por doisdias a mais de descanso. São quatro dias de feriado santo, queculminam na realização de abertura da Festa dos Prazeres.

Cabe aqui uma pequena digressão. O padroeiro do municípiode Jaboatão dos Guararapes é Santo Amaro. Porém, na segundafeira após o Domingo da Pascoela, dia de encerramento dasfestividades profanas e seculares, é feriado municipal. Abril emPrazeres é um mês de muitos dias de folga e efervescência coletiva.Chegam ao local milhares de pessoas em busca dos mais variadosbens simbólicos ofertados num grande mercado ao ar livre: o mercadoda festa. Isso mostra o envolvimento da cidade com ascomemorações.

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Parque Histórico Nacional dos Guararapes não possuía mais do que100 hectares de área livre, sendo os outros 125 hectares invadidospela população no transcorrer dos anos.

Vem a propósito dizer que detectamos um interesse semprepresente das autoridades federais, principalmente dos ministériosmilitares, pelo monumento. Não por acaso, foi em pleno RegimeMilitar que se criou o Parque. As batalhas históricas que aí tiveramlugar são consideradas como o berço do nacionalismo, do nativismo,do Exército Nacional. Podemos ver diversas placas comemorativasincrustadas no templo dos Prazeres: dos Ministérios da Marinha eda Aeronáutica, principalmente. Encontramos também uma placacomemorativa mandada construir pelo general Mascarenhas deMorais, logo após o término da IIª Grande Guerra Mundial. Nelalemos estes dizeres:

Nestas colinas sagradas, na Batalha vitoriosa contra o invasor, a Força Armadado Brasil forjou e alicerçou para sempre a base da Nação Brasileira. Naqualidade de comandante da Força Expedicionária Brasileira, deponho nocampo de batalha dos Guararapes os louros que os soldados de Caxiasalcançaram contra as tropas germânicas nos campos de batalha do Montedos Apeninos e do Vale do Pó (09.07.1945).

A essas palavras podemos acrescentar as do professor GilbertoFreyre: “Nestas batalhas, escreveu se a sangue o endereço do Brasil”(Megale; 1980: 318), expressão que revela a importância simbólicadestes fatos para a construção dos mitos fundadores danacionalidade.

As relações profundas que as Forças Armadas têm com asfestividades ficam evidentes não só pelos aspectos já citados, maspor sua participação direta nos eventos. Na segunda feira logo apósa abertura das comemorações a que assisti, o Exército mandou rezarmissa campal em frente ao templo onde os capelães da instituiçãomilitar ministraram o culto, havendo, ainda, salva de tiros de canhão.Isto pela manhã do dia. O coronel Ivanildo de Oliveira, que é estudiosode História Militar e especialista sobre o domínio holândes no Brasil,fez uma homenagem aos heróis da Batalha, com uma alegoria àluta, teatralizada com o pelotão de infantaria e um grupo de carrosde combate do 10º esquadrão de cavalaria e do esquadrão doregimento Dias Cardoso. Pode se ver a repercussão na imprensalendo a reportagem no Jornal do Comércio do dia 21 de abril.

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festa profana – a Festa da Pitomba e o parque de diversões – ficasob a responsabilidade da prefeitura de Jaboatão.

A escolha dos juízes dá se por volta dos meses de janeiro efevereiro. É feita pelo vigário em concordância com as pessoas dacomunidade, que têm uma vida religiosa mais participativa. Éconsensual, não existe eleição para isso. Dona Ina nos diz que paraser juíza da festa precisa se “ter uma vida religiosa dedicada e serdevota da santa, reconhecida pela comunidade e pelo vigário”.

A função dos juízes é bem simples e bem pouco onerosa. Nodecorrer de todo o ano, têm apenas a responsabilidade demensalmente realizar a reza do terço em sua casa, geralmente aossábados. Além disso, de participar e promover rifas e bingos para acongregação, ou para a igreja.

É na procissão de abertura da festa que vemos a importânciae a força simbólica dos atos que os dois juízes centralizam e vivemintensamente. A concentração da população se dá em frente de suaresidência. A bandeira de Nossa Senhora dos Prazeres está dentroda casa, qualquer um pode vê la, tocá la ou senti-la.

2 Assim, na

tarde do Domingo de Páscoa, a multidão vai se concentrando, com obaixar do sol, em meio ao espocar de fogos de artifício, toque dabanda de música municipal, etc. As 16:30h começa a caminhar aprocissão. A bandeira sai de dentro de casa, posicionando se emposição estratégica, e sempre nas mãos de Dona Ina, que, alias, docasal, é a mais ativa e participativa. A banda começa a tocar umamarcha religiosa intitulada “22 de Outubro”. Com vivas a NossaSenhora dos Prazeres, a multidão, cantando e rezando, percorre asruas principais do bairro. Depois da marcha, o carro de som e opovo cantam o hino de Nossa Senhora dos Prazeres.

Saindo da Avenida Barreto de Menezes, entra se na estradada Batalha, com o povo cantando de novo a marcha inicial. Depoisrezas e a Ave Maria. Novo hino religioso é cantado. Ao chegar ao nº700 da Estrada da Batalha, a procissão retorna pela pista que leva àentrada do Portão A, principal, que conduz ao templo. Reza se o PaiNosso. E lá vai a procissão, subindo a ladeira íngreme dos Montes

2 Pode se ter uma idéia observando as fotos que tirei, nas quais é evidente a alegriade Dona Ina

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Em 1982, dizia Carlos Rodrigues Brandão: “De alguns anospara cá, sociólogos e antropólogos sociais, pesquisadores de campo,têm procurado aproximar se com um maior cuidado e clareza doâmbito dos eventos sócio religiosos praticados em esferas de escalasreduzidas, de que são exemplos as festividades de louvor a santospadroeiros ao longo do calendário católico” (p. 62). Passados dezanos desde a publicação desse trabalho de Brandão, podemos dizerque não são poucas as pesquisas existentes sobre o tema, que parecepossuir uma unidade simbólica surpreendente, a despeito dasparticularidades que manifesta.

Desta forma, me atrevi em afirmar que a estrutura ritual queorganiza os fenômenos religiosos e profanos em torno do culto deNossa Senhora dos Prazeres em pouco ou quase nada se diferenciados realizados em louvor a Nossa Senhora de Nazaré em Belém(1980), ou a Nossa Senhora dos Navegantes em Porto Alegre (1985),ou de tantos outros através do País. Podemos vislumbrar essa unidadecomparando-os com os estudos realizados por Pierre Sanchis (1983)em Portugal, de onde herdamos tais formas rituais.

Devo, porém, acrescentar que, quando afirmo essasinvariantes rituais, não nego as variáveis míticas que cada uma delaspossui. É assim que, como podemos ver no programa distribuído àpopulação de Prazeres, oficialmente a festa começa com a procissãoe hasteamento da bandeira de Nossa Senhora dos Prazeres.

A procissão sai da residência dos “juízes da festa”, como sãochamados desde muito tempo os organizadores da parte religiosada festa. Para entender o papel desses juízes, realizei três entrevistascom Dona Ina, cujo nome todo é Josefa da Fonseca Figueiredo.Junto com José Antônio de Figueiredo, seu esposo, assumiu aresponsabilidade de realizar uma linda festa. Foi uma carga muitogrande para eles, pessoas humildes, sem muitas posses, famíliagrande e muito católica. Não nasceram na comunidade, porém moramhá vinte e três anos em Prazeres.

1

Os juízes da festa não o são propriamente da festa profana,eles se responsabilizam pela festa religiosa, “a festa da igreja”. A

1 Era a primeira vez que Dona Ina e seu José Antonio eram juízes da festa. Pode seimaginar a alegria e o envolvimento sentimental dos dois pelo evento.

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Antes de finalizar a descrição da procissão de abertura e domomento de hasteamento da bandeira de Nossa Senhora dosPrazeres, gostaria de fazer uma pequena consideração sobre aimportância das procissões para o catolicismo oficial.

Segundo o Código de Direito Canônico (título XVII, cânon1390), as procissões sacras, também chamadas de rezadas, sãodefinidas como solenes súplicas, conduzidas para excitar e estimulara piedade dos fiéis, que imploram os benefícios de Deus e as suasgraças. Há uma tipologia que distingue duas espécies de procissões.As ordinárias, como é a do nosso caso, são as que se fazem emalguns dias do ano, segundo as normas dos livros litúrgicos ou doscostumes da tradição. As extraordinárias, são as que são feitas emoutros dias e não possuem calendário preciso. Nessa categoriapodemos colocar os cortejos de enterro e outros tipos de rezaspúblicas.

As procissões e os cortejos religiosos são comemoraçõeslitúrgicas ou para litúrgicas. Têm a finalidade de dar ao católico umcaráter vivencial de sua religião, que a liturgia não pode oferecer nasua integridade. Nestes momentos o povo participa efetivamentedo fenômeno sagrado, em vez de ficar num estado de passividade ede mera assistência. Lembremos o fato de que, por muitos séculos,as missas eram celebradas em latim, língua oficial que só a elitecompreendia.

De um modo geral, o católico – e por que não o fiel de todareligião? – tem a igreja como quase divertimento, um momento deencontro e confraternização. Segundo textos e depoimentos antigos,as missas, os “Te Déum” eram realizados para uma elite da população,que tinham como um tipo de lazer tais “espetáculos”. Possuíamlugares reservados, em ângulos que dariam boa visão do espetáculolitúrgico. Assistir à missa era como ir ao teatro, assistir às óperas ououtros tipos de entretenimento profano. Observamos o quanto areligião se democratizou com o passar dos anos, culminando com aparticipação, hoje geral e aberta, de todo o povo fiel.

Porém, as procissões sempre foram “espetáculos populares”.A participação do povo nesses eventos sempre foi alegre e envolvente.As pessoas se vestem com roupas vistosas, enfeitam suas casas,alegram a cidade. Desta forma, a Igreja sempre considerou asprocissões como um tipo de estratégia simbólica que atinge muito

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Guararapes. Parece que vamos todos para o céu! É uma belapaisagem, com as pessoas e suas devoções irmanadas, em buscade uma garantia de bem aventurança, e de uma forma de suportara angústia da morte. Afinal Jesus ressuscitou, ele está vivo, há umasalvação: viva a Páscoa!

Começa se a cantar o belo hino “Maria, Mãe dos Caminhantes”.A multidão já é bem considerável. Subindo a ladeira e chegando aopátio em frente ao templo, tem mais gente à espera. Cantam todosjuntos, o hino a Nossa Senhora dos Prazeres. Eis o que EmileDürkheim chamou de “efervescência coletiva” (1989). Começa aerguer se a bandeira. Como se pode ver na foto do Anexo, o casalDona Ina e José Antônio é que seguram e hasteiam a bandeira, comexplosão de entusiasmo popular. É uma bela imagem. Depois disso,o Padre Policarpo, substituto do vigário D. Hidelbrando, que se afastoupor motivo de doença, dá inicio a um discurso sobre a importânciada Páscoa, da ressurreição de Jesus, da firmeza de Maria, etc. Como afastamento de D. Hidelbrando os eventos perderam a dimensãohistórica que possuem. O Padre Policarpo, muito novo, não fezreferência alguma aos fatos históricos. No entanto, não deixou defazer diversas alusões a Maria Madalena, figura bíblica que tem umaligação simbólica bastante sugestiva com a Mãe dos Prazeres. Apóso hasteamento da bandeira que passa a tremular durante os novedias de festa, todos vão para o interior da igreja e aí celebra-se umamissa, festiva, contagiante. Sem os bancos, a igreja parece umanave, um grande salão, decorado de forma magnífica, com azulejosque lembram motivos hindus, talhas em madeira num belo e ricoestilo barroco, totalmente apropriado ao espírito que se criou.

Nossa Senhora resplandecia sobre todos, e os cantosacompanhados por guitarra, palmas, vozes, enchiam a igreja dealegria. Glória, glória, aleluia! Jesus ressuscitou! Diz o padre: “Jesus,jovem, venceu a Morte!” Nova referência a Maria Madalena, a primeirapessoa que viu Jesus ressuscitado.

Bela missa. A alegria católica tem, no dia da Páscoa, suamaior expressão. Afinal, comemora se a ressurreição e abre se asemana com as festividades de Nossa Senhora dos Prazeres.Terminada a Quaresma e inicia se novo ciclo de festividades. Estaprimeira missa de Domingo foi dedicada às crianças!

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ÁREA DA IGREJA (Templo):

ÁREA DA FESTA (Pátio e Arredores):

Os rituais e eventos são colocados em uma escala que vaidesde um campo localmente reconhecido como religioso até umcampo tido como de puro profano (a “festa” da Festa). Note se quehá rituais a meio caminho entre um campo e outro (Brandão; 1982:65).

É com a abertura dos trabalhos religiosos que se dáefetivamente o começo da festa, tanto religiosa como profana,conhecida pelo nome de Festa da Pitomba, que vamos analisar aseguir.

É nessa parte religiosa que a festa é feita para “rezar”. Comopodemos observar na programação, realizada a procissão e ohasteamento da bandeira, acontece a missa festiva que inicia anovena, com a bênção do Santíssimo Sacramento. Esta primeiramissa é dedicada às crianças da paróquia. Na seqüência do novenárionos noiteiros, cada grupo religioso de expressão na comunidadetem um dia específico na programação. As novenas compõem-se deladainha e ofício parvo de Nossa Senhora, cantados pelo povo;celebração da Eucaristia; leitura evangélica; pregação; comunhão ebênção do Santíssimo Sacramento. A partir de segunda feira, anovena realiza se sob a coordenação da Legião de Maria; na terçafeira, pelas Vicentinas; na quarta feira, pela Renovação Carismática;

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mais eficazmente a população. Isto, devido a sua atração estética, asua solenidade, e porque apelam mais para o misticismo do povo.

A Festa Religiosa

Esta parte da Festa de Nossa Senhora dos Prazeres é dominadapela sequência de “ritos de igreja”, e cerimônias realizadas dentroda matriz, controladas quase que exclusivamente pelos agenteseclesiáticos.

Como observa Carlos Rodrigues Brandão em seu estudo sobrea Festa do Espírito Santo na cidade de Mossâmedes, em São Paulo,“[d]urante os nove dias anteriores ao ‘Domingo da festa’ há rezasde novena, sendo a cada dia colocada sob a responsabilidade de umnoveneiro e de um corpo de auxiliares. O noveneiro deve responderpelas condições de realização da ‘reza’, atividade que cada vez maisse coloca sob o controle do padre, atualmente seu oficiante” (1982:69).

A partir da realização da procissão de abertura da Festa deNossa Senhora dos Prazeres, simbolizada pelo hasteamento dabandeira à frente da igreja, seguido de intensa queima de fogos,começam efetivamente os ritos sagrados. O ponto de saída daprocissão é um domínio profano: a casa dos juízes da festa. Sódepois, com a realização da missa, primeira na seqüência donovenário, é que se inaugura a expressão mais religiosa dos eventos.

Pode se aventar a hipótese de que os juízes da festa, e a suaprópria casa, estão carregados de “energia religiosa” desde omomento em que são escolhidos para tal função. Porém, nuncadeixam de ser leigos e jamais ministram um culto. Suas funções sãobem restritas. Eles apenas se responsabilizam pela realizaçãofreqüente de rezas familiares, nos meses que antecedem a festa.Assim, não desconsiderando o fato de o casal ter em seu lar oestandarte da santa e de manter certa ascensão religiosa sobre osoutros fiéis, não podemos afirmar que o “religioso” começa daí. Sobreeste ponto remeto o leitor para o gráfico comparativo - inspirado notrabalho de Carlos Rodrigues Brandão, citado - em que apresento avariação do grau de religiosidade que acontece na Festa de Prazerese da Pitomba. Este grau varia de um sentido sagrado mais presentea um sentido profano mais manifesto.

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É bem verdade que a Festa de Nossa Senhora dos Prazeresnão tem a dimensão sócio cultural religiosa da Festa de Nossa Senhorado Carmo, padroeira da cidade do Recife, nem da de Nossa Senhorade Guadalupe, símbolo maior da nação mexicana. Ela não é padroeirado município de Jaboatão, nem tão pouco da nação brasileira.

3 Isso

não obstante, vemos, lá como cá, expressarem se as várias “faces”ou “rostos” dessas diversas Senhoras, mantendo as relações as maiscomplexas com a sociedade envolvente, cada uma com suasespecificidades místicas e ideológicas. Como diz Sérgio A. Teixeira,“[c]hamar a atenção sobre o que é percebido como positividadeprópria constitui, sem dúvida, fenômeno social recorrente, poiscorresponde a uma das características mais gerais e permanentesdos homens enquanto seres sociais, tanto a nível individual quantogrupal “ (1988: 7).

Considero que devemos focalizar tanto os aspectos funcionaise monográficos da pesquisa, como enfatizar as recorrências eregularidades que o sistema religioso católico no Brasil apresenta anível regional, nacional e internacional. Por isso, aproximo-me dométodo estrutural colocado em termos precisos pelo mestre daAntropologia contemporânea, Claude Lévi Strauss (1975).

O Festejo Profano: A Festa da Pitomba

Penetramos agora no domínio vivo da Festa do Povo. Comolembra Carlos Rodrigues Brandão, “se uma parte da Festa é feita derezar, a outra é feita de festar” (1982: 70). E esse “festar” revela adimensão popular de ritos que possuem uma lógica toda especial. Aimportância do fenômeno social da festa na cultura brasileira éconstituinte do modo particular de organizar a nossa vida emsociedade. Das festas mais tradicionais às mais modernas, vemossua força cultural e social presentes em diversos momentos de nossa

3 Isso é lamentado pelo vigário D. Hildebrando de Melo, que tem a opinião de queNossa Senhora dos Prazeres podia ter sido padroeira do Brasil, ao invés de NossaSenhora Aparecida. Para ele, é ela a primeira que está ligada às origens da nação:“Afinal, foi naquelas batalhas de expulsão dos holandeses que efetivamente surgiuo País”. O que aliás vemos corroborado em diversos historiadores, desde os maisnacionalistas como Varnhagen (1979) e Hélio Viana (1975), e em estudossociológicos como o de Fernando de Azevedo (1971), Roger Bastide (1945) eoutros.

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na quinta feira, pelo Grupo Jovem Missionário; na sexta feira, peloApostolado da Oração; no sábado, pelas Filhas de Maria. No Domingode Pascoela, véspera da festa do dia da Santa acontece a celebraçãoda Eucaristia de manhã e, à tarde, a missa da comunidade dePrazeres.

Na programação religiosa, o “Dia da Festa” é a segunda feiraapós o Domingo da Pascoela. É o dia em que terminam os trabalhosreligiosos e profanos, e se realiza a procissão de encerramento solene.No dia final, no auge do esplendor e da presença intensa dapopulação, realizam se ritos específicos. A partir das seis horas damanhã, ministram se três missas, até as oito horas. Às dez horasacontece solene concelebração eucarística, presidida pelo abade D.Sebastião Hélio Vieira Costa, beneditino do mosteiro de Olinda, aoqual a matriz de Nossa Senhora dos Prazeres está vinculada háséculos, desde quando o general Francisco Barreto a entregou aoscuidados dessa ordem religiosa.

Na parte da tarde acontece a solene procissão da tradicionalimagem de Nossa Senhora. Com a apresentação do domínio maisreligioso dos eventos, procurei mostrar um dos “rostos” de NossaSenhora. O “rosto” que o clero e os religiosos da Ordem de SãoBento modulam. Como observa, com muita propriedade, BartolomeuFigueiroa de Medeiros, no seu estudo sobre a Festa de Nossa Senhorado Carmo, padroeira da cidade do Recife, nesses eventos apresentase um quadro de participações específicas e diversificadas: “Váriossegmentos sociais e religiosos dão sustentação à festa e concorrempara o conjunto da mesma com configurações especificas edeterminadas, a partir do seu próprio modo de festejar” (1987: 9).

A festa de santo, concebida como um fenômeno sócio culturalreligioso, produz complexidade e riqueza de significados. É o que opesquisador Bartolomeu Medeiros chamou de “uma equivocidadede rituais e símbolos” que se manifestam nos diferentes “níveis” dafesta.

Anos antes, Eric Wolf dizia o mesmo do culto a Nossa Senhorade Guadalupe, no México: “O símbolo da Guadalupe une família,política e religião; o passado colonial e o presente independente, oaspecto índio e o mexicano. Ele reflete as relações sociais salientesda vida mexicana, encarnando as emoções por elas desencadeadas”(1968: 706).

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Cabem aqui algumas interrogações. Porque a pitombeira éassociada ao culto de Nossa Senhora dos Prazeres? Existe algumarelação especial entre o fruto, a árvore e a devoção a essa santa?Que simbologia manifesta esta associação? Qual o sentido dessaaproximação entre estes signos, que correspondências podemosencontrar aí?

A árvore é um dos temas simbólicos dos mais ricos e maisdifundidos. Mircea Eliade, em seu Tratado de história das religiões,distingue sete interpretações do que ele chamou de “os cultos davegetação”:

a) o conjunto pedra árvore altar, que constitui um microcosmosefetivos nas camadas mais antigas da vida religiosa(Austrália, China Indochina Índia; Fenícia Egeu);

b) a árvore imagem do cosmos (Índia, Mesopotâmia,Escandinávia,etc.),

c) a árvore teofania cósmica (Mesopotâmia, Índia, Egeu);

d) a árvore símbolo da vida, da fecundidade inesgotável, darealidade absoluta; em relação com a Grande Deusa ousimbolismo aquático; identificada à fonte da imortalidade(“A Árvore da Vida”);

e) a árvore centro do mundo e suporte do universo (altaicos,escandinavos);

f) ligações místicas entre árvores e homens (árvoresantropogenésicas; a árvore como receptáculo das almasdos antepassados; o casamento das árvores; a presençada árvore nas cerimônias de iniciação);

g) a árvore símbolo da ressurreição da vegetação, daprimavera e de “regeneração” do ano [p. ex., o “Maio”](Eliade, 1970: 325).

Vemos o quanto é difícil classificar a Festa da Pitomba dentrode uma destas distinções. Até por que o próprio Mircea Eliade nosdiz que elas não são definitivas, que ainda poderíamos acrescentaroutras. De certa forma podemos colocar a simbologia da pitombeiraem muito destes ítens. Mas como nos diz Jean Chevalier (1991),“[a] despeito de aparências superficiais e de certas conclusõesapressadas, a árvore, mesmo quando considerada sagrada, não é

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existência. Nossa cultura nos convida a “festar” a todo momento.Ao contrário do que vemos acontecer em outras sociedades, aquifestejamos os mais diversos acontecimentos e situações. Nossasociedade festeja, faz nos sempre lembrar que devemos reverenciaralguém ou algo:

Toda festa é uma fala, uma memória e uma mensagem. O lugar simbólicoonde cerimonialmente separam se o que deve ser esquecido e, por issomesmo, em silêncio não festejado e aquilo que deve ser resgatado da coisaao símbolo, posto em evidência de tempos em tempos, comemorado,celebrado. Aqui e ali, por causa dos mais diversos motivos, eis que a culturade que somos ator parte interrompe a seqüência do correr dos dias da vidacotidiana e demarca os momentos de festejar (Brandão; 1989: 8).

A teoria sócio antropológica da festa já é bastante vasta : deJames Frazer, em O ramo de ouro (1986), passando por EmileDürkheim, em As formas elementares da vida religiosa (1989),chegando aos trabalhos de Roger Caillois, em O homem e o sagrado(1950), até autores contemporâneos como André Isambert (1982),Jean Duvignaud (1973), Harvey Cox (1974), Peter Berger (1973),muitos produziram reflexões interessantíssimas sobre a realidadesocial, histórica e antropológica da festa. Existe hoje, felizmente,enorme bibliografia que trata da teoria da festa. Neste trabalho,procuro, seguindo algumas de suas orientações, descrever, fazerfalar a mensagem da Festa da Pitomba, que agora nos dedicamos adecifrar.

A Festa da Pitomba, que é a dimensão profana, o outro ladode uma mesma moeda, constitui a metade quase secular destascomemorações e festejos. Não foi sempre chamada ou conhecidacom este nome. Só a partir das últimas décadas passou se a chamare a identificar se deste modo. Antes se chamava simplesmente deFesta dos Prazeres, aludindo sempre à comunidade e ao distritoonde se realizam os festejos. Com o tempo, associando se a Festade Nossa Senhora dos Prazeres com a grande quantidade de frutosda pitombeira, que nesta época do ano produz em enormequantidade,

4 passou se a chamar de Festa da Pitomba.

4 É nesse período que se come muita pitomba em todo o Estado de Pernambuco, etambém em diversas regiões do Nordeste. Os frutos vêm de regiões vizinhas aomunicípio, mais próximas à Zona da Mata. São transportados pelos vendedores,que nos dias da festa armam diversas barracas com produtos diferentes, massobressaindo a pitomba.

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o Clube de Frevo da cidade de Olinda, em Pernambuco, que se chamaPitombeira, e é um dos clubes mais queridos da cidade, desfilandotodos os anos com grande animação carnavalesca.

Acredito que é em função desta simbologia da fertilidade quepodemos compreender as relações entre o culto e a festa profana. Aanalogia entre “árvore frutífera mulher fecunda” é bastante antiga,e desempenha um papel arquetípico encontrado em diversas culturas.A simbologia da fertilidade liga se à instituição do casamento, e sãodiversos os exemplos que se podem retirar disso em diferentessociedades humanas, como encontramos no Dicionário de símbolos,de Jean Chavalier (1991).

Antes de prosseguir na descrição da festa profana, faço umbreve comentário acerca da ligação entre fertilidade e casamento. Ébem sabido que na Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres realizamse casamentos da alta sociedade pernambucana. Mas o que vem àlembrança, chamando a atenção para o fato de não estarmosseguindo caminho errado na interpretação desses fenômenos, é oromance de Bernardino Freire de Figueiredo Abreu e Castro, NossaSenhora dos Guararapes (1980). Nessa obra, que possui importânciasingular nesse contexto de análise, o autor desenvolve liricamente oencontro entre dois amantes, que por dificuldades exteriores estãoimpossibilitados de casarem se. Tendo como pano de fundo asbatalhas pela expulsão dos holandeses e o culto a Nossa Senhorados Prazeres, o romance acaba por se concretizar em casamento,numa alegoria que representa o elo entre os elementos simbólicosem jogo. Esse romance “histórico, descritivo, moral e crítico” colocade maneira exemplar o encontro de Eduardo e Efigênia no centromítico que corresponde ao culto de Nossa Senhora dos Prazeres,como símbolo de fertilidade entre os homens e as mulheres. Apitombeira constitui a “figuração simbólica” dessa alegoria barroca.

Além dessas razões que nos arriscamos a demonstrar, há aindauma associação interessante que se encontra no retábulo do templo.Como eu já havia apontado em estudo anterior, “O SimbolismoBarroco na Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres nos MontesGuararapes” (1991), existe uma semelhança entre as vinhas queestão esculpidas nas colunas salomônicas e os cachos de pitomba.Certamente, pelo fato de Pernambuco não possuir plantações devideiras no litoral, a Pitombeira se prestou muito bem a essa ligaçãoimaginária, pois a semelhança é realmente considerável.

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objeto de culto por toda parte; é a figuração simbólica de umaentidade que a ultrapassa e que, ela sim, pode se tornar objeto deculto” (1991: 84).

Creio que, de fato, a pitombeira ou, melhor, o seu fruto, apitomba, é “figuração simbólica” do que representa o culto de NossaSenhora dos Prazeres, que é a “entidade que a ultrapassa”, e que éverdadeiramente “objeto de culto”. A festa profana da pitomba servese de outros processos de identificação e associação, como, porexemplo, o que é colocado por Sérgio Alves Teixeira, no seu livro“Os recados das festas” (1989). Nessa obra vemos comodeterminados frutos ou vegetais servem como símbolo de promoçãode municípios, regiões, etc. A Festa da Uva, a Festa da Melancia, aFesta do Milho, etc., são de grande importância econômica, mastambém política, para as cidades que as promovem. E a Festa daPitomba não poderia fugir à regra. Constatamos que a prefeitura deJaboatão dos Guararapes utiliza se da Festa da mesma maneira.Isto vem, com o tempo, secularizando cada vez mais essasfestividades. Pois, como podemos observar nos cartazes promocionaisda Festa, impressos pela prefeitura, o que se sobressai são aspitombas, expostas em grande quantidade. Nesses cartazes, NossaSenhora dos Prazeres está num plano bem secundário, refletindoassim a diferença de ênfase sobre o mesmo evento popular. Parece-nos, desta forma, que estamos diante de duas festas, a da santa ea da pitomba. Mas como elas estão juntas? O que explica estaassociação? Tenho tentado responder a essas indagações, recorrendoà interpretação simbólica. Pois não podemos crer que essa associaçãoentre a santa e o fruto da pitomba se tenha dado por acaso, e quenão possua nenhuma lógica ou algum sentido. Acreditar nisso seriaum absurdo, pois existe lógica até no mais profundo delírio humano.Assim, considerando estes fatos, que podem e devem seraprofundados na bibliografia citada, aponto como cerne da junçãodo culto a Nossa Senhora dos Prazeres e o fruto da pitombeira, oarquétipo da fertilidade. A pitombeira representa muito bem aespantosa prodigalidade de frutos que uma árvore tropical podedar. Além de sua beleza singular, que é sem dúvida notável, estafruteira, nesta época do ano, derrama uma quantidade incrível defrutos, que a maioria da população aprecia muitíssimo. Isto em todoo Nordeste do País. A pitombeira é conhecida em toda esta região, epossui diversos tipos de referência popular. Cito como exemplo disto

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Conforme disse Carlos Rodrigues Brandão (1982), aqui nosencontramos na “festa” da Festa, naquilo que podemos chamar de omais puro profano.

O que caberia agora é uma reflexão sobre a função das festasna sociedade contemporânea. Qual a sua significação, a suaimportância? Qual a tendência que vemos aí cristalizar se? Pararesponder a essas perguntas, que são suscitadas dentro de umaperspectiva etnográfica, reporto me a um estudo recente queempreendi em São Luís do Maranhão. Lá, pesquisando um bairropopular, percebi os problemas que aqui também surgem. Recolhodesse estudo algumas considerações que poderão ser de proveitoneste contexto. A festa popular é um fenômeno de vasta difusão epenetração em nossa cultura e igualmente em todo continente latinoamericano. Assim, podemos chegar a considerações téoricasabrangentes a partir da pesquisa etnográfica. Refletindo sobre otema da utopia e da festa, e, do mesmo modo, sobre odesenvolvimento econômico e a cultura popular, percorri algunscaminhos téoricos que questionam princípios epistemológicosanteriores. Proponho aqui uma breve exposição critica do significadocultural da festa na sociedade brasileira e latino americana.

Desde os tempos da “Descoberta” que o continente americanovive da construção da utopia, o que pode ser percebido em diversosregistros históricos. Lembro aqui a obra de Sérgio Buarque deHollanda, Visão do paraíso (1969). Uma utopia que teima em nãomorrer. E uma das suas expressões mais significativas se dá naresistência cultural que a festa ainda possui em alguns recantos denosso País, que é um continente dentro de um continente. O municípiode Jaboatão dos Guararapes, que agora conhecemos melhor, é, entremuitos outros espalhados pelo Brasil e pela América Latina, um lugarprivilegiado para que se possa perceber a importância cultural quetem a festa em nossa maneira de pensar, ser e agir socialmente.

Neste estudo pretendo explorar as teses de Roger Caillois, asquais, segundo Jean Duvignaud (1983), estão inspiradas pelamentalidade do rentável. A idéia de que a festa é um “desperdício”é determinada dentro de uma lógica da economia, principalmentepela ideologia da modernidade. E é aqui que o confronto mais objetivoentre diferentes formas de se construir o mundo social aparece comtoda a sua força. Até por que, como diz Severo Sarduy (1979), podehaver uma ética do desperdício, que é o que constitui uns dos traços

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A dimensão secular ou profana da festa se organiza numespaço físico determinado. É subindo a ladeira principal econcentrando se no campo aberto, que fica um pouco antes dotemplo, que se espalham diversas barracas com os mais diversosprodutos. Os que se sobressaem são as bebidas alcoólicas, a pitomba,e os mais variados pratos típicos do lugar, saboreados com muitogosto pela população, fato que nos remete aos ritos gregos antigoscomo as festas de Dionisos(ou Baco), Deus do vinho. Pode parecerforçada esta associação, porém se voltarmos nossa atenção para oromance de Bernardino F.F. Abreu e Castro (1980), nós perceberemosque na descrição que fez de uma romaria aos Montes Guararapes noséculo XIX aparece bem claramente esta sugestão imaginária: “(...)passados alguns minutos começou o profuso jantar, que, alegradocom o assiduo exercício do esgotamento do ebrifestivo copo, setornou ma completa orgia - ma pomposa festividade do Deos Bacocom suas adorações solemnes à impudica Vênus” (119).

Tempo de festa é bom para comer e para beber, mas tambémé bom para dançar e cantar. E é assim que temos um grande palcono centro desse descampado. Nesse palco ocorrem os mais variadosshows, eventos, performances, etc. É um dos pontos altos da festa.São artistas locais, ou de outros Estados, sempre contratados pelaprefeitura, que vêm animar o povo, num espetáculo incrível de luzese pompa. Em 1992 vieram Chitãozinho e Chororó, que chegaram dehelicóptero. A população estava em delírio diante desses astros damúsica popular brasileira. Foi um acontecimento de efeito teatral.(Ver Anexo).

Todos os dias, a partir do Domingo de Páscoa, ocorrem váriosshows. A constante é sempre a presença das barraquinhas, quevendem bugingangas, suvenires, santinhos, pipocas, sorvetes, e tudoo mais que satisfaça o desejo de todos. Há também o parque dediversões. Encontramos aí o espaço da brincadeira, onde as criançastêm prioridade, mas os adultos também concorrem em participação.São rodas gigantes, balanços eletrônicos, autopistas, etc. Há aindadiversos tipos de jogos: tiro ao alvo, jogos de sorte, fliperama etc. Éuma quantidade incrível das mais variadas e inventivas formas dese atrair os passantes. São luzes, sons, cores, vozes, cheiros, etc.

Nesses espaços, podemos nos indagar: como é que fica adimensão do sagrado? Como podemos separar os dois domínios? Jánão é mais uma festa religiosa? É a secularização completa?

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Essa é a expressão utópica da festa. No entanto, ela possuiuma ambigüidade intrínseca. A festa opera como uma desordem,uma contra-ordem, desenvolve se num tempo fora do tempo. É omundo do mito, das origens, da criação. Mal a festa acaba, retornase à estrutura, à ordem, ao estabelecido. Esta ambigüidade éapreendida por diversos prismas, mas comumente se enfatiza demodo muitas vezes obscuro o processo e o contexto em que ela sedá. É assim que podemos dizer que:

“(...)su lado apaciguador revierte sobre la comunidad y la postula diferenteen um ámbito homogeneizado: ser distinto es una broma pesada, otra utopíasubversiva. La resistencia es entonces praxis a contrapelo: ser conservadorde su distancia es crítica feroz, empecinada lucha, escarnio renovador. Perolas condiciones a las que se enfrienta son omnímodas y voraces. Tienen desu lado la razón contra las hilos de la trampa; el tiempo está en su contra, esuns utopía acorralada” (Ramirez; 1986 : 247).

A festa não pode ser entendida por si mesma e em sí mesma,ela é fruto de um contexto que a determina. Não podemos afirmarque o espírito da festa é apenas presente e fruto de uma sociedadeprimitiva, ou subdesenvolvida, não se trata de apreendê la comoum tipo de fenômeno próprio de sociedades anômicas, pobres eeconomicamente frágeis. Acredito que a teoria de Roger Caillois(1950) peca pela dificuldade básica de não relativizar o processo deconstrução da realidade social. Esse processo não é unívoco einexorável. Ele é dinâmico e culturalmente determinado.

Resumindo a perspectiva teórica que tentei apresentar emrelação ao significado cultural da festa, enfocado nos temas da utopiae da ambigüidade, afirmo que as complexidades de suasdeterminações podem ser apreendidas numa estrutura antropológicaprecisa. E é com Emile Dürkheim (1985) que esta estrutura torna seevidente. Nos seus estudos sobre as tribos australianas e norteamericanas, ele percebeu que o “estado de congregação” provocaum “frenesi”, um “ verdadeiro desregramento de costumes da vidacoletiva”, proporcionando à sociedade “o sentimento que tem de simesma”.

Outro antropólogo que se dedicou aos estudos sobre a festafoi Van Gennep, que, assim como Victor Turner e Roberto da Matta,afirma que o carnaval é um rito de passagem, onde o mundo fica decabeça para baixo, acentuando o seu aspecto iniciático e paroxístico,onde tudo se inverte. Trocam se os papéis sociais, invertem se ossexos e os privilégios, e a situação social é revigorada.

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distintivos (ou diacríticos) da cultura barroca.

Não creio que, com a modernização e a industrializaçãocrescentes, necessariamente esse espírito que consagrou, e consagra,séculos de um processo de civilização original, vá se destruir. Aindaé muito forte a sua presença, conforme podemos observar não apenasem Jaboatão dos Guararapes, mas em diversas outras cidades doPaís e do Continente que possuem um desenvolvimento sócioeconômico muitas vezes maior.

A festa deve ser entendida dentro de um contexto político esocial, é aí que seu significado cultural se manifesta concretamente.É assim que compreendo a festa como a expressão de uma totalidadesocial. É um dado estrutural que faz parte de uma sociedade e seritualiza de formas diferentes em universos sócio culturais diferentes.Emile Dürkheim (1989) percebe que a efervescência coletiva é umfator de coesão social, e que se pode medir o grau de vitalidade deuma civilização pelo poder que ela tem de se revigorar neste“orgiasmo social” a que se refere Michel Maffesoli, num texto emque aprofunda a crítica ao espírito “prometeico” que caracteriza acivilização moderna, racionalista e burocrática:

À medida que o século XIX evoluía, o que era a sua ideologia oficial tendia aesterilizar se. Com o sucesso do maniqueísmo, o iluminismo, logo substituídopelo positivismo, parece triunfar: a razão conquistadora expande seu campode investigação e de aplicação. (...) Assim, a racionalização exagerada daexistência (Max Weber) irá em pouco tempo substituir o que, oficialmentefora somente uma exploração da força de trabalho, o percurso da exploraçãoà alienação mostra se balizado pelos projetores das luzes e a tecnoestruturacontemporânea, sempre a mesma a despeito de variações do regime político,recolhe os frutos da grande ideologia progressista, que pretende planificar afelicidade individual e social pelo uso exclusivo dos instrumentos da razão(1985: 133).

O significado cultural da festa para a civilização do NovoMundo, principalmente para a latino americana, é percebida em longoalcance por diversos autores nacionais e estrangeiros. E constituium fato social de importância cada vez maior no contexto deredefinição da identidade cultural do continente. Se a festa revelauma dimensão utópica latente do inconsciente coletivo de nossapopulação, ela se cristaliza numa pluralidade impressionante defestividades sagradas e profanas, espalhadas por cidades e vilarejosos mais distantes: “La fiesta es parodia del deseo, mímica de laesperanza (...) circula libremente en territorios vedados y (...)imagina así una comunión verdadera (...) “(Ramírez; 1986: 240).

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As festas de santos são bem parecidas através de todo oPaís. Sua estrutura e características são as mesmas, mudando ouvariando aqui ou ali. Esta estrutura ritual tem profundas raízes noinconsciente coletivo, principalmente no mundo católico íberoamericano.

Dos depoimentos e entrevistas que recolhi, manifestaram seopiniões diferenciadas, uns dizendo que a festa tem crescido com opassar dos anos, outros afirmando o contrário, que ela tem perdidosua força e diminuído seu brilho. Essa questão, no entanto, pareceinfrutífera, pois vem de encontro com aquela velha polêmica damaior ou menor autenticidade das manifestações popularescontemporâneas. O que podemos afirmar é que mais brilho,participação popular, interesse político, efervescência coletiva, seriadifícil de imaginar quando admiramos uma festa como esta.

O que talvez fosse importante salientar é que, de fato, aquelatese antiga de que as formas de cultura ditas populares ou folclóricasiam desaparecer ou diminuir sua força com o desenvolvimento dasociedade industrial, com o implemento da modernidade, está cadavez mais desacreditada. O tradicionalismo destas manifestaçõespersiste, ganhando colorido novo, absorvendo as próprias conquistasdessa modernidade tecnológica, incorporando novas linguagens, masmantendo seus perfis, seus padrões, seus modelos centenários.Permanece mesmo modificando se nos detalhes, nas roupagens,pois, de fato, não se nega a História, quando se vive a cultura popular.Trata se de uma questão ligada à identidade cultural de um povo e,como diz Walter Benjamin, em relação ao processo de industrializaçãoda Europa no começo do século XX: “Tendo em vista que asuperestrutura se modifica mais lentamente que a base econômica,as mudanças ocorridas nas condições de produção precisaram maisde meio século para refletir se em todos os setores da cultura” (1987:165).

O dia final da Festa, após oito dias de folias e novenas,realizadas nos seus espaços respectivos, tem acontecimentosdiferentes de todos os outros dias, até mesmo do primeiro dia deabertura, que é o Domingo de Páscoa.

Mal o dia vai nascendo, já começam as primeiras missas, quesão em total de quatro. A primeira é às 6 horas, a segunda às 7horas, a terceira às 8 horas e a última às 10 horas da manhã. A

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Mas é Michel Maffesoli (1985) que com grande sensibilidadearremata o sentido social, o significado cultural da festa. Essesociólogo francês percebe que, na efervescência coletiva da festa, acomunidade se consolida e, “mesmo ritualmente hierarquizado, estefrenesi permite provocar um curto circuito na monopolização dopoder” (p. 113). Assim, aparece concretamente a dimensão utópicae subversiva da festa, mesmo que, com o seu término, a ordem serestabeleça. Para Maffesoli, “a desordem pontual e ritual permite oufaculta a pequena disfunção cotidiana, sem a qual a ordem se tornamortífera” (p. 127).

Deste modo percebemos que a festa dá elasticidade e umafluidez ao corpo social, fundamental para sua permanência. É assimque a vitalidade social rejuvenesce e a existência societal se perpetua.

Voltandos àquela indagação inicial de Jean Duvignaud, acercada possibilidade de se pensar uma sociedade diferente da lógicamercantilista e racionalista, podemos agora perceber a pertinênciade suas intuições. De fato, ao estudar a realidade de um pequenobairro de São Luís do Maranhão (1992), observei a resistência aindaviva de um mundo que privilegia outras formas de organização social.A festa constitui um elemento estruturante fundamental na vidadaquela população. Isto podemos observar em várias outras cidadesdo País e do Continente. É neste momento de congregação societal,de comunhão social, que a ordem do mundo é suprimida para que aforça coletiva passe o seu lado utópico, ambíguo, pois a festa não éum “instrumento” de poder, ela é uma necessidade do mundo social.Sem ela a civilização se esgota, satura, perece, morre. A festa époder, ela é o lugar do encontro, em que a sociedade expressa suascontradições e esperanças.

A Solene Procissão de Encerramento da Festa

Dia de Nossa Senhora dos Prazeres. Segunda feira, feriadomunicipal. A população ocupa todo o monte onde se encontra otemplo (espaço religioso) e o parque de diversões (espaço profano).Muitos passam o dia inteiro aqui. Trazem comidas, bebidas, toalhas,etc, e aí acampam famílias, amigos, parentes, namorados, todosem coletividade. É a “festa do povo”, um dia especial, uma folga,um descanso, uma brincadeira. E se repete há três séculos!

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Começa o cortejo com palmas e sinos a ecoarem bem distante.Então, podemos admirar a quantidade de pessoas das mais diferentesidades, classes sociais, destinos e dos mais distantes lugares. Unschoram, outros se emocionam, outros, ainda serenos, seguem comsuas rezas pagando suas promessas. Algumas adolescentes vestemse de noivas, pedindo ou agradecendo as mais variadas graças,referentes ou à fertilidade ou ao casamento. Outras pessoas carregamtijolos à cabeça, ou simplesmente vestem se com roupas brancasou comuns de um dia de feriado e de festa.

A procissão segue descendo a ladeira do monte, seu trajetosegue a conhecida Estrada da Batalha e, entrando pela AvenidaBarreto de Menezes, regressa ao monte pelo Portão III, dirigindo sede novo ao Templo.

No cortejo são entoadas diferentes músicas, como a já citada“marcha grave” da “Redenção” e também o hino da santa. Nesteponto, a procissão pouco difere da de abertura. O que maisimpressiona são os momentos de silêncio que inspiram um respeitomágico em todos. Não por acaso, se chama “procissão solene”. Opovo nas ruas demonstra as mais diferentes reverências à santa. Opovo católico comunga, no símbolo, sua identidade comum. Venerana imagem o espírito histórico, religioso, estético, cultural e vibrantede sua devoção.

Tudo pára, imobiliza se, quando a procissão passa. O parquede diversões silencia, os carros param, é impossível não se percebersua presença. O tempo “normal”, do cotidiano, da estrutura, ésuspenso, a santa abre seu caminho, distribuindo graças e bênçãos.

Muitas pessoas permanecem no pátio da igreja, à espera doretorno da imagem da Virgem. Milhares seguem o cortejo.

Um detalhe interessante e curioso é a quantidade dehomossexuais que se pode perceber entre os participantes. Éconhecido popularmente o fato de a palavra “pitomba” ser utilizadade maneira jocosa em relação aos homossexuais femininos, o quepode ter alguma relação com a presença numerosa desse grupo demulheres nas festividades.

Enquanto a procissão prossegue, no pátio do adro do temploergue se um altar à espera da santa, para a celebração dos eventosfinais da festa religiosa. É o que se chama de “rito de despedida”.

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população participa em números variáveis, ora lotando o templo,ora esvaziando-o. A participação popular na parte profana da festaé também variável de acordo com os horários, mas o número departicipantes é sempre bem maior que nos rituais religiosos.

Após estas missas matinais, que contam sempre com apresença de autoridades civis e militares, acontece, à tarde, aprocissão de encerramento, a chamada “solene procissão”. A PolíciaMilitar e os Bombeiros participam do evento, ajudando no transporteda santa e dando um caráter mais formal à procissão.

Envolvidos pela bela paisagem que recobre nosso olhar atébem longe no horizonte, a população espera a saída da imagem,cantando, dançando, conversando, bebendo, brincando, comendo,etc. Assim como tem gente que só vem para o espaço profano doparque de diversões, tem gente que vem apenas para a procissão,sendo o acontecimento mais importante para elas. Um exemplo distoé a Dona Lecy, que vem com sua família e amigos, todos os anos,para pagar promessas para a santa. Muitas graças são atribuídas aNossa Senhora dos Prazeres. Seu Brás, por exemplo, amigo de DonaLecy e grande comerciante de Jaboatão dos Guararapes, estavaretribuindo “as graças milagrosas” recebidas, por ter se salvado deum infarto e conseguido sair com vida de uma operação de trêspontes safenas. Assim como ele, muitos acendem velas, trazem exvotos, rezam, etc., marcando com devoção a força de sua fé.

A espera pela procissão é cada vez mais intensa. Chegam osmúsicos da banda que acompanharão a procissão. Foram contratadospela prefeitura, que ultimamente tem contribuído muito com asfestividades, pois tem conseguido sempre bons dividendos com elas.Dividendos políticos e econômicos, principalmente. É assim que asanta, acompanhada por policiais, surge à frente do adro da igreja.Todos batem palmas, soltam se fogos de artifício, os sinos dobramintensamente, a banda de música começa a tocar. A santa está muitobela, dourada, cercada por flores. A “Rainha”, a “Estrela do Mar”, a“Virgem Mãe dos Prazeres” encanta a todos. É propriamente o quepodemos chamar de o símbolo máximo deste “festim barroco”.

Antes de seguir seu trajeto, a banda toca a música “Redenção”,de A. J. Albuquerque, uma “marcha grave”, que dá um tom soleneao ambiente. Os sinos não param de tocar. Todos esperam seguirseu trajeto, que é bastante longo e sofre de acidentes topográficosconhecidos, já que estamos num monte.

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Depois de muitos cantos, acompanhados de carros de sompotentes, um orgão sintetizador, um conjunto musical, muitas oraçõese preces, chega a santa ao pátio. Uma multidão grita coletivamente“Viva Nossa Senhora dos Prazeres, Viva!”. Fogos de artifício, sinos,palmas, e a bela imagem é iluminada na noite escura. Sobe o Monte,e volta ao templo erguido em seu louvor há 336 anos.

Vai começar o “rito de despedida”. A santa é tirada de cimado carro de bombeiros, o povo à espera das palavras do padre, quecelebrará o rito final. Palmas, muitas palmas! Muita gente fica juntoà santa, como se quisesse vê la mais de perto ou tocá la. É umahora de muito fervor místico, um encantamento derrama se dosolhos de todos, é fascinante a magia de tudo isso. É uma longaespera, estes eventos finais começaram às 15h00min.

O padre começa a reza e orienta os fiéis, evocando NossaSenhora dos Prazeres. Não haverá missa, apenas a bênção doSantíssimo Sacramento, quando as pessoas poderão erguer seusobjetos devocionais, que serão abençoados coletivamente.

Depois da Ave Maria e de outros cantos, o padre ergue osagrado Sacramento e benze a todos os presentes. Reza a seguir oPai Nosso e de novo a Ave Maria. Há ainda um canto a Jesus Cristo.

O Padre convida os juízes da bandeira para que retirem oestandarte que foi erguido no Domingo de Páscoa. Este estandarteserá entregue aos novos juiíes da bandeira da próxima festa.

Novos cantos são entoados, e o estandarte é retirado do poste.Começa se a cantar o hino de Nossa Senhora dos Prazeres. Sãofeitos agradecimentos aos juízes da festa desse ano e se anunciamos juízes da festa do ano que vem. Palmas para os novos juízes.Muita emoção destes, que falam da satisfação de se entregar à tarefa.No ano que vem terá uma juíza especial para as festas sociais, opadre anuncia essa nova personagem, que terá como funçãoarrecadar dinheiro junto à comunidade. Notamos aí um incrementode funções específicas e burocratizantes, refletindo interessesdiferenciados. Esta juíza atuará principalmente junto à prefeitura, oque já demonstra seus vínculos políticos fortes.

A imagem da Virgem é colocada de novo no templo e entrasozinha carregada pelos policiais militares, o povo fica de fora. Depoisde a santa ser recolocada no retábulo, fecha se um ciclo ritual. Opovo poderá, até à meia noite, admira la e rezar sobre os seus

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Em frente à igreja o povo se espalha. A aglomeração éimpressionante. Somando se as pessoas que ficam no parque dediversões, os que estão em frente do templo, e as que se deslocamna procissão, podemos arriscar um número razoavelmente grandede pessoas.

Escutando os “pagodes” e sambas cantados pelos grupos,uma música que se destaca é a de Martinho da Vila, que tem umacanção em homenagem à Festa da Pitomba, citando a memória dostempos da “Reconstituição” e comemorando a “Libertação” dosbrasileiros do julgo holandês.

Sob os pés dos que caminham junto ao grande cruzeiro queexiste no adro da igreja, estão os restos mortais dos soldados quemorreram em combate. Lembro aqui um aspecto salientado nodepoimento do Professor José Luís da Mota Menezes. Ele se referiuao fato de os soldados terem sido enterrados aí, o que teve de seefetivar após a sacralização do monte, tornando assim possível osepultamento em cemitério santo. A razão disto é o fato de nãopoderem ter sido transportados os corpos dos soldados, e tão poucoser identificados seus nomes ou famílias.

Assim, compreendemos que as primeiras romarias aos MontesGuararapes tinham um sentido profundo de culto aos antepassados.Parentes e famílias vinham por conta desta expressão religiosa. Osvestígios ou “sobrevivências” deste rito ainda se podem vislumbrarhoje, quando, no dia dos finados, algumas pessoas, e o ExércitoNacional, depositam flores no cruzeiro, acreditando-se que embaixodele estão recolhidos os restos funerais dos soldados.

Como ilustração deste fato, remeto o leitor à obra deBernardino Freire de Abreu e Castro (1980), já citada, e que contémuma descrição da romaria no século XIX. Por aí se pode constatar apermanência e a preservação desses rituais. É bastante curiosa essapassagem do livro que, entre outras importantes revelações,imortaliza um momento dos costumes do nosso povo. O que o autorobserva naquela oportunidade acontece em termos contemporâneosnas mesmas proporções.

Voltemos à procissão. Ela desafia as resistências dos devotos,são duas horas de caminhada em terreno íngreme. Muitos nãoseguem todo o cortejo, mas mesmo assim a multidão prossegue,“se arrasta”, é bem o que nos parece.

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Culturanálise da festa deNossa Senhora dos Prazeres

Feita a exposição das bases empíricas destes ensaios erevelada, pela etnografia, a estrutura que dá sentido a estesprocessos cerimoniais e rituais, defendo neste capítulo o que chamode o significado cultural do culto à Nossa Senhora dos Prazeres dosMontes Guararapes. Procuro decifrar o conteúdo simbólico que dávida aos fenômenos sociais que ocorrem em torno desta devoçãopopular, que se expressam em diversos discursos e variadas práticas.Nestes discursos e praticas rituais analisados manifestam seclaramente a dimensão hedonista, o elogio do prazer e da alegria,da festa, da fertilidade, do corpo, pois como sabemos, é a partir daRessurreição de Jesus Cristo, comemorada no Domingo de Páscoa,que se desenvolvem as festividades em louvor da Santa no fim daQuaresma.

Acredito que o conjunto de fatos sociais em foco constitui se,a partir de um “idioma cultural” próprio, numa linguagem que temuma mensagem simbólica particular. Este “idioma cultural”,

1 ou

“mensagem simbólica”, forja se pela conjugação, ou convergência,destes fenômenos que enumero:

a) a vitória dos luso brasileiros e católicos sobre os holandesesreformistas;

1 A expressão idioma cultural é usado no sentido dado por Eric Wolf no seu livro “TheVirgin of Guadalupe: mexican national symbol”(1968)

brilhos finais.

É cantado novamente o hino de Nossa Senhora dos Prazeres.Sinos, fogos de artifício, palmas... O povo se dispersa, uns vão parao parque de diversões, outros seguem para seus lares. Talvezpensando na próxima festa.

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população em geral, não como uma imputação de caráter nacional,mas como um complexo de redes simbólicas, envolvendo relaçõesfamiliares, políticas e religiosas. A realidade social mexicana se refletenum único “master symbol”. É o que concluímos desta bela citação:

“The Guadalupe symbol thus links together family, politics and religion;colonial past and inde pendent present; Indian and Mexican. It reflects thesalient social relationships of Mexican life, and embodies the emotions whichthey generate. It provides a cultural idiom trough whick the tenor andemotions of these relationships can be expressed. It is, ultimately, a way oftalking about Mexico: A ‘colletive representation’ of Mexican society” (Wolf;1968: 706).

As diferenças são grandes entre os cultos de Nossa Senhorados Prazeres e de Nossa Senhora de Guadalupe, como também emrelação ao de Nossa Senhora de Nazaré em Belém do Pará, estudadapor Isidoro Alves (1980), ou ainda a Nossa Senhora do Carmo deRecife, pesquisada por Bartolomeu Medeiros (1987), como tambéma Festa de Nossa Senhora dos Navegantes analisada por NortonCorrêa (1985), e de muitas outras que poderíamos enumerar aqui.Enquanto os quatro cultos citados refletem uma hierarquia socialmarcante, com espaços ideológicos, políticos, religiosos bemdelineados, onde há uma dialética constante entre seus membros,em Nossa Senhora dos Prazeres vemos um outro conteúdo simbólico.Ela incorpora outros valores, une a população em torno de si parareverenciar outros símbolos.

Para que possamos compreender de que forma estasdiferenças míticas se dão, devemos considerar uma abordagem maisprofunda. Como eu já demonstrei na etnografia, as variações rituaissão manifestas e evidentes. O fundamento destas variações rituaissó pode ser encontrado em sua dimensão mítica. Assim, aproximandonos das obras de Gilbert Durand proponho um aprofundamento nas“estruturas antropológicas do imaginário”, revelando significados maisprofundos que balizam e dão sentidos e formas a um “idioma cultural”particular que possui a devoção à Nossa Senhora dos Prazeres,diferenciando se dos outros quatro cultos citados.

Paralelo ao estudo do significado cultural da festa de Prazerese da Pitomba, procuro desenvolver os conhecimentos antropológicosatuais no que concerne ao processo de produção simbólica, e aoestudo do Mito. Focalizo prioritariamente algumas obras do professorGilbert Durand, que é um grande nome na Antropologiacontemporânea com pesquisas sobre o imaginário, o simbolismo, e

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Culturanálise da festa

b) a associação do culto à Nossa Senhora dos Prazeres comeste acontecimento histórico;

c) os eventos cívicos e religiosos realizados na mesma data.

É assim que defendo a interpretação de que a Festa de NossaSenhora dos Prazeres e da Pitomba são a ritualização cerimonial dacongregação da população em torno de símbolos comuns. Asrepresentações coletivas que estruturam esta linguagem social dãovida a uma forma de civilização que afirma sua pluralidade étnicaatravés de uma ética da festa e da efervescência coletiva.

Outro aspecto que é enfatizado neste estudo é o que se refereà dimensão política de nossa sociedade, que, bem sabemos, éhierarquizada, autoritária e desigual, como nos alerta Roberto daMatta, em seu livro “Carnavais, Malandros e Heróis” (1981). Porémacredito que se revela nos mitos que aparecem nestes dramas sociaisque estudamos agora, uma dimensão utópica do imaginário coletivobrasileiro. O momento da festa, é o momento da anti estrutura, dasuspensão da ordem cotidiana, e da subversão das hierarquias. Nestesentido apresento certa vocação democrática e pluralista de nossapopulação. Estes temas importantes serão retomados nasconsiderações finais.

O significado destas festas dos “Prazeres” e da “Pitomba” sópode ser compreendido dentro do contexto social e cultural ondeestão inseridos. E este significado, por mais inconsciente que estejapara a população que participa dele, revela se numa linguagem,num “idioma cultural” próprio. Eric Wolf (1968) em suas análisessobre o complexo simbolismo de Nossa Senhora de Guadalupe,apresenta nos as bases ideológicas e simbólicas que dão sentidosocial a este culto no México.

As duas devoções, a de Guararapes e a de Guadalupe, sãodistintas em seu conteúdo simbólico e imaginário, na sua história,nos seus mitos, porém cumprem a mesma função na estrutura socialem que estão inseridas. Nossa Senhora de Guadalupe e NossaSenhora dos Prazeres (ou dos Guararapes), são duas Mãessobrenaturais dos homens e das nações, como tantas outras que seencontram pela história humana.

Nossa Senhora de Guadalupe, enquanto mãe sobrenaturalda nação mexicana, como analisa Eric Wolf, reflete os anseios da

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A Mitanálise

A mitanálise consiste basicamente numa “deslocação dosmétodos” da mitocrítica, que aplicam se no campo do texto literário,“para um campo mais largo e muito mais aleatório: o campo doaparelho ou das instituições ou das práticas sociais. Ou seja, o campoda Sociologia”. É com estas palavras que Gilbert Durand (1982: 87)apresenta esta nova abordagem do terreno da sociologia. Esta novaabordagem consiste num método de reagrupamento dos núcleossemânticos, recolhidos pelos sociólogos, pois a sociologia só temum texto pelo contexto, texto este que se refere a todo conteúdoantropológico de uma sociedade.

Gilbert Durand aponta alguns autores como Nietzsche,Georges Sorel e Roger Bastide, os precursores desta nova abordagem.E especialmente Bastide já havia pressentido “que, no fim, era umúnico método que conduzia ao contexto social e ao texto literário”(Idem: 91). “Roger Bastide foi um dos primeiros a dizer que asociedade era simbólica. Mais precisamente, que o corpo socialescapava sempre, que não se encontrava nunca um corpo social,que o que se encontrava eram intenções, que o que se encontravaeram ou avalanches de significantes e os significados escapavam ouera, pelo contrário, um significado único sem nunca poder ter umsignificante adequado. É portanto a este jogo muito largo que Bastidesituava o campo sociológico” (Idem: 92).

Colocando se desta forma a sociedade e a história numcontexto simbólico, podemos, segundo Durand, dizer que a mitanálise“consiste em examinar sobre documentos e monumentos exprimindouma sociedade e abrangendo um largo período, (...), examinar oudeterminar num segmento de duração social os grandes esquemasmíticos, os mitologemas quer seja um estilo de pintura, quer sejauma atitude social, quer seja uma atitude de estar à mesa ...” (Idem:97). “Deste modo, podemos perguntar quais são, numa sociedade,numa fatia histórica de uma sociedade num dado momento, quaissão as camadas (...) diferentes que circulam sem se misturaremexcessivamente, numa sociedade dada” (Idem: 98).

A partir destas orientações podemos dizer, com Durand, queuma mitanálise permite: “mostrar as camadas míticas que seimbricam, e mostram igualmente a anatomia (...), como se podedissecar um momento social num grupo e mostrar quais são as suascomponentes, porque (...) não há nunca um só mito numa só

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a mitologia. Renovando os seus métodos, questionando osfundamentos epistemológicos positivistas, o autor propõe a aboliçãodas unidimensionalidades. Como diz H. Godinho e V. Jabouile, noprefácio ao texto “Mito, Símbolo e Mitodologia” (1982), o professorG. Durand “é um intelectual particularmente interessado na criaçãode um Sentido para o homem e a Vida, através da colaboraçãopluridisciplinar dos diversos ramos do Saber e de uma atençãominuciosa ao quotidiano (...)” (Durand,1982: 7).

Seu princípio teórico básico é que o pensamento humano semove segundo quadros míticos. A construção da importância eonipresença do mito não é apenas válida para a nossa época, pois,em todas as épocas, em todas as sociedades, existem mitos queorientam que modulam o curso do homem, da sociedade e da história.É assim que podemos falar de uma Ciência do Mito, dividida em trêsprincipais métodos, que são a Mitocrítica, que se dedica a análisedos textos literários; a Mitanálise, que dedica se a um estudo dosgrandes esquemas míticos que aparecem num determinado segmentode duração social e a Mitodologia, que é propriamente asistematização destas investigações numa espécie de filosofia geralda metodologia e da epistemologia da Antropologia.

Restrinjo minha pesquisa ao exame da Mitanálise e dachamada Sociologia das Profundezas. Deste modo, procurando daruma visão mais objetiva da teoria e da prática que fundamentamesta nova abordagem antropológica, procurei enfatizar seus princípiosgerais e seus precursores. Como exercício de teoria utilizo osdiagramas que Gilbert Durand propõe para balizar sua análise mítica.

No seu livro “Mito, Símbolo e Mitodologia” (1982), o autoraplica os diagramas ao período de 1860 1920 em França, marcadapela decadência e o simbolismo, e ao período posterior, 1920 1980,que ele chama de “Sociedade do pós guerra em França”. Assim,pretendo utilizar estes “tópicos diagramáticos do social”, em suaslinhas gerais, nos períodos históricos em que nos debruçamos nestadissertação.

São três esquemas: o primeiro deles trata do período inicialda formação sócio cultural brasileira, até a conquista do Nordestedo país pelos holandeses. O segundo esquema trata do período quese segue ao domínio holandês da região. No terceiro e último esquematento colocar as bases míticas que aparecem no horizonte mitológicoda sociedade brasileira, a partir da expulsão dos holandeses.

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Mito e Sociedade: A Mitanálise e a Sociologia das Profundezas(A Noção de Tópico Sociológico)

Na parte anterior deste estudo apresentei os fundamentosteóricos da mitanálise descritos por Gilbert Durand no texto “Mito,Símbolo e Mitodologia” editado em 1982. Agora faremos a exposiçãodos respectivos conceitos operatórios e métodos de análise,complementados com alguns exemplos de aplicação, desta ciênciade formulação recente e que busca uma síntese de cânones tãodiversos quanto a antropologia, a psicanálise, a sociologia, aliteratura, em suma, o conjunto de disciplinas designadas por“Ciências Humanas” (Durand; 1983: 5).

Para entendermos melhor os conceitos operacionais e osmétodos de investigação da mitanálise, que juntamente com amitocrítica e a mitodologia formam a Ciência do Mito, Gilbert Durandapresenta os “diagramas tópicos” em que demonstra como umasociedade vive sobre dois mitos: um mito ascendente e que se esgotae, ao contrário, uma corrente mitológica que vai beber às profundezasdo inconsciente social. Portanto, a mitanálise é a análise dos mitosvigentes na sociedade, e os “diagramas tópicos” são esquemas queservem para apontar os movimentos de ascensão e esgotamentodos mitos em determinados momentos da sociedade.

ESQUEMA 1

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sociedade, uma sociedade não pode sobreviver como, de resto, umapsique individual ou social, se não tiver concorrentes compensadoras(...)” (Idem: 104).

Há ainda nesta metodologia uma dimensão específica queGilbert Durant chama de “fisiologia da mitanálise”. É através de “umavisão fisiológica do funcionamento da mitanálise” que podemos mediros avanços e recuos do mito numa determinada sociedade: “(...)numa sociedade há mitos tolerados, patentes, que circulam, e mitoslatentes que não conseguem encontrar meios simbólicos deexpressão, e que trabalham a sociedade a um nível profundo” (Idem:108). É assim que a partir do estudo de Roger Bastide sobre AndréGide, que o professor Gilbert Durand aplica o mesmo esquema auma sociedade, onde aparecem os mitos que circulam, que sãotolerados, admitidos, reconhecidos e honrados, e há os que sãorecalcados, marginalizados e censurados.

Durand através da mitanálise pretende nos indicar “a riquezados métodos de análise do mito aplicados ao contexto social, querno plano da anatomia de um espaço social com as suas camadasdiversas, quer sobre o plano da fisiologia, ou seja, dos mecanismospelos quais os mitos se encobrem, se desencobrem, se transformampor elisão ou acrescentamento de mitemas” (Idem: 110).

Para Gilbert Durand a mitocrítica e a mitanálise desembocamnuma mitodologia. Ela consiste em demonstrar que “o fundamentoda Antropologia e do anthropos é precisamente esta constelação deentidades (...) numinosas de nós mesmos. O que significa que sãoimperativas. (...) Podemos falar de um imperativo mitológico oumitogênico do Homem nas suas demarches primárias e espontânease na demarche secundária do estudo, que é a Sociologia, a Psicologia,enfim tudo o que nós fazemos” (Idem: 111).

A mitodologia é isto que se perfila no horizonte como umaespécie de filosofia geral. “É a isso que chamo mitodologia, que ésimultaneamente uma filosofia geral da metodologia e daepistemologia da Antropologia, e ao mesmo tempo uma desinscriçãoontológica que combina com uma teologia, mas uma teologia discreta,uma teologia sem teólogos e sobretudo sem clérigos, teologia umpouco como a que sonhou o meu amigo Ruyer no livro (...), ‘lagnose de Princeton’” (Idem: 111).

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ESQUEMA 2

Nesta primeira síntese desejo imprimir no diagrama as linhasde força primordiais que estavam na base do movimento deconstituição de nossa civilização. Assim colocamos a data de 1500como sendo o referente cronológico e mítico fundador.

Meu esquema tenta dar conta do período de mais de umséculo que vem desde a “Descoberta” e a chegada de Pedro ÁlvaresCabral, até os anos de 1630, que é quando os holandeses impõemseu domínio em todo o litoral nordestino, tendo fincado bandeiradesde São Luis do Maranhão, fundada por franceses em 1613, até oatual Estado de Sergipe. Fizeram ainda algumas incursões militarespela capital da colônia, São Salvador da Bahia.

Podemos vislumbrar a extensão geográfica deste domínio, nomapa abaixo, lembrando que se restringia a faixa litorânea:

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O “Tópico Diagramático do Social”, como podemos observarno “esquema 1”, exposto acima, Gilbert Durand distingue três níveis:a) O “isso” psicóide, que é o nível fundador, divide se em doisinconscientes, o coletivo cultural e o específico; b) O “ego societal”,no centro; é feito de funções sociais; c) O “superego”, em cima, é onível racional e institucional.

Há ainda a base fundamental, o englobante, que é a circulaçãodo mito que define e descreve um conjunto social. Para um melhordetalhamento descritivo dos três níveis apresentados, indica se aleitura do texto, onde está bem suscinto e clara a definição dosmesmos.

Neste trabalho pretendemos aplicar o diagrama tópico,servindo como ilustração e exemplificação da teoria, no contextosocial que é objeto destes ensaios. Tentarei construir três diagramasem que apontarei os mitos que são ascendentes a cada períodoespecífico delimitados na pesquisa.

No esquema 2 aplicamos o diagrama no contexto social lusobrasileiro anterior à conquista holandesa no Nordeste do Brasil. Noesquema 3 aplicamos o diagrama no contexto social que se inauguraa partir da dominação holandesa, que em Pernambuco, especialmenteem Recife, durou 24 anos. No esquema 4 aplicamos o diagrama nocontexto social posterior à expulsão dos holandeses.

Exercício de Mitanálise: Tópico Diagramático do Social

Para cada um dos diagramas farei uma breve síntese docontexto social em que se determinam e se delineiam os mitosascendentes e descendentes. Nestas sínteses apresento o quadrosócio histórico no qual se movimenta o inconsciente coletivo,emergindo de modo consciente os mitos que circulam, que sãotolerados, admitidos, reconhecidos e honrados, e os mitos que sãorecalcados, marginalizados e censurados, como nos ensina GilbertDurand.

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Assim, o primeiro diagrama exposto na página anterior,condensa 130 anos do início da civilização brasileira, pois como bemnos afirma Gonçalves de Mello: “Quando os holandeses chegaram aPernambuco encontraram aí uma sociedade já formada e comcaracterísticas definidas. (...) A grande zona açucareira depernambuco, onde pode se afirmar se formou a civilizaçãobrasileira” (1947: 26).

Através dos conhecimentos históricos observamos que nesteprimeiro século de formação encontramos uma situação conturbadapor disputas entre as potências européias pelo imenso território doNovo Mundo. Além disso observamos também os conflitos entre asnações ibéricas, que acabaram por levar Portugal a se submeter àCoroa Espanhola, dos anos de 1580 até 1640, caracterizando seassim sessenta anos de subordinação aos Castelhanos. Portanto,nossa mitanálise tem de levar em conta um processo mítico queenvolve o inconsciente coletivo ibérico, não só o português. Nestediagrama proponho um quadro sintético, em que imprimo ascaracterísticas básicas que apresenta o início da colonização doterritório brasileiro pela cultura barroca ibérica dos portugueses eespanhóis.

Desta maneira, traço uma explicação deste esquema 2apresentado. Sigo prioritariamente, nesta fase de investigação docampo mítico que caracteriza o universo simbólico ibérico,particularmente o universo lusitano, a obra de Gilbert Durand (1987)sobre a arte pictural de Lima de Freitas. Nesta obra observamos oautor apreender muito bem, ou melhor, reencontrar “a epopéialendária que constitui a própria alma da nação portuguesa” (Durand;1987: 82). É em torno dos “Mitolusismos”, que podemos nosaproximar da universalidade dos arquétipos da cultura lusitana.Encontramos sua confirmação nas lendas e mitos que modelaramos dez séculos de história portuguesa.

É sob o mito de Hércules que vence o dragão (lembramos deSão Jorge, santo católico de grande devoção no Brasil) e “colhendoos frutos aurificados da imortalidade na Árvore de Vida” (Durand;1987: 126), que o Infante Dom Henrique, na sua fabulosa Escola deSagres, que continha em si todo o conhecimento mais avançado daépoca em termos das técnicas da navegação, vai conquistar o mundo:“Hércules segurou o pomo da imortalidade, Henrique teve ‘o globomundo em sua mão’ (‘Mensagem’, de F. Pessoa) “(Durand; 1987:

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Extensão do Domínio Holandês (Hachurado).

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ESQUEMA 3

No esquema 3 pretendi construir um diagrama quecondensasse da melhor forma possível, o universo mitológico dopovo holandês do século XVII. Seguindo este plano, traço algumasvertentes míticas mais gerais do mundo simbólico dos povos doNorte da Europa, que nesse período vivia uma acirrada guerrareligiosa. De um lado a Reforma Protestante, encabeçadas por Luteroe Calvino, e de outro a Contra Reforma Católica, encabeçada peloPapa em Roma, símbolo do Absolutismo da época. Assim, tomandocomo pano de fundo estes conflitos teológicos e culturais, observamosque o espírito do empreendimento colonial holandês é bem distintodo lusitano. De um modo geral observamos que o holandês se revestede uma alma “moderna”, representando a nação mais poderosaeconomicamente na época emergente do mercantilismo. Com umamarinha vitoriosa sobre os espanhóis, impõe o domínio sobre oNordeste do Brasil, com uma facilidade espantosa, num período emque Portugal se encontrava subjulgado à Coroa Espanhola.

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126). Aparece também neste universo simbólico lusitano a nostalgiado Rei Sebastião, o Desejado:

“Grécia, Roma, Cristandade,Europa os quatro se vãoPara onde vai toda idade.Quem vem viver a verdadeQue morreu D. Sebastião?” (‘Mensagem’, Fernando Pessoa)

D. Sebastião é o mito universal do Salvador prometido, que ésempre um “encoberto”, e que foi cantado pelo sapateiro Bandarra,por Antonio Vieira, e por Fernando Pessoa. O conhecido fenômenodo Sebastianismo tem profundas marcas no inconsciente coletivobrasileiro, o que pode ser observado com muito interesse nas diversasmanifestações da cultura dita folclórica de nosso povo.

Encontramos também Preste João das Índias, o Rei do Mundoque representa o Herói prometido, do Restaurador das nações e dosmundos. Outro mito de raízes profundas é o mito do Saturno, daperdida Idade do Ouro, que voltará no fim dos tempos.

São estes os mitos ascendentes, louvados, elogiados ehonrados no universo ibérico e, especialmente lusitano, no períodode formação de nossa civilização. Estes mitos têm como base, nosníveis racional e actâncial, as técnicas de navegação, desenvolvidasna Escola de Sagres, as técnicas do engenho do açúcar, daaurivesaria, da guerra, da escravidão, que foram fundamentais naconstituição do colonialismo. Nas funções “positivas” confortadaspela ideologia do poder vemos perfilar: o navegador, o colono, omissionário, o conquistador, o militar, o inquisidor etc.

Do lado da desqualificação mítica, dos mitos marginalizados,temos o ocultismo, a bruxaria e a feitiçaria, que se servem de umamarca medieval relevante e que na época vão ser depreciados. Sobsuas forças, as funções “negativas”, aparecem: o mouro, o judeu, ausura, o sedentarismo, a manufatura etc.

Consciente de que, por vezes, tenha traçado um perfilapressado, este quadro sintético, no entanto, serve muito bem paravislumbrarmos o universo simbólico que estava predominando nohorizonte de nossa civilização. Isto, até a chegada dos holandeses,que no meu entender subvertem este quadro.

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concepções funcionalistas, que marcaram o seu destino histórico, oque em muitos aspectos explica o seu declínio econômico posteriorao apogeu conhecido.

Na sua busca em tentar compreender “os paradoxos de serholandês” o autor, no entanto, não nega os traços comuns queexistem entre este povo e todos os demais povos, principalmentedo norte da Europa, da mesma época, e mais particularmente osque estão ligados à Reforma Protestante. Estes se diferenciamsobremaneira dos povos que estão sobre a influência da culturaBarroca Contra Reformista: “Pois a situação dos holandeses tinhaalguma coisa de especial a fortuna e o perigo que os afasta deoutros Estados e nações na Europa barroca” (Schama; 1992: 19).

Neste contexto, soma a esta bela obra, outro trabalho desuma importância para nós. É o de José Gonçalves de Mello (1974),conhecido como “Tempo dos Flamengos”, um estudo sobre a influênciada ocupação holandesa na vida e na cultura do norte do Brasil. Esteestudo contribui de forma significativa para nossa tentativa dereconstruir o imaginário cultural holandês do tempo da ocupação.Se temos no livro de Simon Schama uma visão do holandês em suaterra, aqui neste trabalho vemos o holandês em contato com povoscom tradições e culturas diferentes. E é em contato com a diferençaque nós conseguimos perceber as nossas particularidades e nossasidentidades.

O professor José Antônio Gonçalves de Melo compreendeumuito bem este princípio, pois nos dá como uma luva a percepçãodesta diferença, quando nos diz: “O holandês não revelou no Brasil,como o colonizador português observou também Gilberto Freyrejeito especial para se adaptar a novo meio, às novas condições devida. Continuou rigidamente dentro de suas antigas atitudes, com amesma dieta, o mesmo tipo de casa” (Mello; 1947: 144).

Aprofundando ainda mais esta constatação nosso autorcontinua: “De um modo unânime, os documentos, tanto os de origemportuguesa como os de holandesa, mostram que nunca chegou ahaver harmonia entre os brasileiros e os flamengos” (Mello; 1947:273 280).

Acompanhando o raciocínio lógico que vemos delinear se aqui,chegamos à conclusão e à constatação que de fato a cultura holandesaa partir de suas singularidades e peculiaridades, marca e mantémtraços diacríticos manifestos e evidentes. A cultura protestante, e

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Uma obra de suma importância para nós que desejamoscompreender a sociedade holandesa do século XVII é a de SimonSchama, cujo título é “O desconforto da riqueza” (1992). Nestetrabalho vemos o autor aprofundar se no que chamou de o“Temperamento Batavo”.

Como se sabe, a Holanda setecentista é uma jovem naçãoque em menos de um século tornou se a maior potência econômicae política da Europa da época. A origem do nome Batavo, paradesignar os nativos deste país, está ligado ao cônego agostiniano,Cornelios Aurelius, que compilou textos, costumes, registrosfolclóricos, novelas, etc, do período medieval, que se associavam àcultura deste povo singular. Consultou também a obra de Tácito,“Germania”, que se constitui em fonte básica para a história dosantigos holandeses.

Segundo Simon Schama, o que se deve considerar como umacultura holandesa é a afinidade de “hábitos comuns”, ou melhordizendo, servindo se de Maurice Halbwachs, a existência de uma“memória coletiva”: “o produto do encontro entre a experiênciahistórica recente e as limitações da geografia”. Com isso o autortenta compreender “as popularidades culturais dos holandeses naprimavera de sua nacionalidade”. Este livro de ensaios “trata se deuma descrição informal que não fala muito nem de instituições, nemde teologia, nem de estruturas econômicas. Em vez disso, tenteiexplorar em termos de convicções e comportamentos sociais osparadoxos de ser holandês” (Schama; 1992: 15).

Em outras palavras, o autor pretende descobrir “de que modoos holandeses se constituíram. O que animava seu senso decomunidade? O que gerou sua lealdade? O que cristalizou o conjuntode costumes identificáveis como seus?” (Idem: 16).

Fazendo uma crítica importante ao que chamou de “limometodológico do materialismo” o autor revela nos a alma, ou o quepreferiu chamar de “o temperamento batavo”. Para tanto, foinecessário fazer muitas ressalvas a uma concepção bastante comumde que os holandeses, tendo se transformado em uma nação poderosacapitalista, teriam apenas no seu mundo cultural o reflexo de suaestrutura econômica burguesa. O autor esforça se, em sua obra, emmostrar que os holandeses, apesar de serem os representantes maisavançados do capitalismo europeu da época, possuiramcaracterísticas culturais peculiares, que contrariam aquelas pobres

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Neste ponto concordamos perfeitamente com que nos dizGilberto Freyre: “Foi, com efeito, durante esses vinte e quatro anosde dominação de grande parte da América portuguesa pelosholandeses, que se esboçou entre nós aquela ‘consciência de espécie’– no caso, a luso brasileira – hoje afirmada em consciência nacional.O invasor despertou a” (Mello; 1947: 09). Freyre vai ainda maislonge quando afirma: “As marcas que a ocupação holandesa deixouno Brasil são das que dificilmente desaparecem não só do corpocomo da consciência – e do inconsciente – d e um povo. (...) Aconsciência de nação começou a levantar se no Brasil contra oholandês herege e a favor da ortodoxia luso ou hispano católica(...)” (Mello; 1947: 10).

Alongamos esta discussão por considerar de grandeimportância a determinação dos campos teóricos onde nosdebruçamos quando defendemos uma análise deste tipo. Nosutilizamos, como já foi dito anteriormente, dos trabalhos de GilbertDurand, e particularmente o que desenvolve os estudos sobre amitanálise (Durand; 1983). Acredito que respaldados nestasinformações preliminares temos condições de trabalhar com oesquema proposto. O horizonte mítico em que se desenvolveu acultura holandesa pode de uma maneira ou de outra, ser entendidodesta forma. Creio que seguimos assim os princípios do autor quandonos diz da interdependência dos domínios da realidade social humana.Os mitos fazem parte da sociedade e só podem ser entendidos nelae por ela. Sua existência concreta depende de uma praxis, deritualizações, de ações sociais, portanto do viver e do acontecer realda condição humana.

Foi seguindo estas orientações que desenvolvi este esquema3, que se propõe a dar uma forma tópica aos mitos ascendentes edescendentes que vemos circular neste período histórico.

Proponho como mitos ascendentes nesta época, o do Pastorcampesino, representados pelas pessoas de Lutero e de Calvino,com todo o seu ascetismo e sobriedade, uma austeridade que émarca registrada da moral protestante. Coloco também o mito doPríncipe, que inspira principalmente a Maurício de Nassau, que tentouconcretizar o sonho de tornar se o Príncipe da Nova Holanda noNovo Mundo. Como síntese mítica deste complexo simbólico proponhoa figura de Prometeu, pois é sob seu mito que se instaura uma éticado trabalho, do ascetismo, da sobriedade, da resignação, que é a

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toda a conseqüente estrutura ética que possui, passando pelaorganização familiar, religiosa, estética, jurídica, etc, temcaracterísticas bastante distintas daquela da cultura católica barroca.Mesmo que concordemos em parte com o que nos diz Simon Schamanesta citação: “Antes da revolta dos portugueses no Brasil, queterminou com a expulsão dos holandeses, a Companhia das ÍndiasOcidentais revelara se empreendimento discutível. (...) A disposiçãodos holandeses de aceitar ser expulsos do Brasil, mas reter aspossessões da África ocidental tomadas dos portugueses, bem comoentrepostos estratégicos nas Antilhas e em Curaçao, mostra como opatriciado governante estava ansioso para livrar se dos prejuízos desuas aventuras imperiais no Ocidente” (Schama; 1992: 253). Apesardestas constatações de que o empreendimento colonial não davalucros, perguntamo nos se estes lucros não apareceram exatamentepela falta de sensibilidade administrativa e pelas dificuldades que aimportação de uma ordem luterana e calvinista, de uma mentalidademenos maleável às circunstâncias, de uma moral mais rígida,acabaram por transformar se nos verdadeiros obstáculos à empresaholandesa. Podemos considerar diversos depoimentos que confirmamestas impressões. De fato os holandeses ao tentarem impor suacultura sentiram a resistência da população local, às suas práticas ecostumes.

Deve se, no entanto, fazer ressalva à maneira particular comoo conde Maurício de Nassau tentou inovar nesta relação colonial. Ésabido que com seu comando a administração invasora ganhou emuito em diplomacia e sabedoria política, e talvez seja isso queexplique o fato de o domínio holandês em Pernambuco ter seperpetuado por mais tempo que nas outras regiões dominadas noNordeste brasileiro.

Deixando de lado estas considerações quero, entretanto,defender a hipótese de que ao contrário do que afirmam oshistoriadores e economistas mais apressados, as dificuldades doempreendimento holandês moderno e capitalista no Brasil, não sedeveram aos problemas de infraestrutura sócio econômica, mas sime principalmente por problemas de ordem cultural. E aqui nosaproximamos das observações que faz Gilberto Freyre no prefácio aobra de José Gonçalves de Mello (1947). Ali nosso ilustre professor,aponta para a importância psico sociológica destes eventos para osurgimento de uma consciência nativa incipiente mas inaugural deuma nacionalidade que se afirma pela diferença.

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ESQUEMA 4

No esquema 4 proponho uma visão dos mitos que encontramse na base da formação de nossa identidade cultural, a partir daexpulsão dos holandeses. De uma maneira geral, pretende se nahistoriografia atribuir uma importância menor a estes fatos históricos.Através de um economicismo obscurantista, simplifica se o processo,afirmando que não teria passado de um conflito entre proprietáriosde engenho de açúcar, para garantir o monopólio do produto. Comose o domínio holandês em terras brasileiras não tivesse criado nenhumambiente cultural e social original. Acredito que há um equívoconeste tipo de pensamento. Como mesmo nos diz Gilberto Freyre, demodo figurativo, na Guerra dos Guararapes “escreveu se a sangue oendereço do Brasil” (Megale; 1980: 318). Esta não é uma expressãogratuita. São de singular relevância as circunstâncias históricas emque se travaram as batalhas e o confronto entre dois tipos de culturadistintas: de um lado uma civilização “modernista”, mercantilista, jána vanguarda de um capitalismo ascendente e “revolucionário” que

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alavanca moral do capitalismo ascendente.

Nas funções “positivas”, confortadas pela ideologia do poder,eu coloco: o militar, ou o soldado, o mercenário, o navegador, ourbanista, o arquiteto, o mercador, o cientista, o artista, o judeu, ooperário, etc. Todos eles são elementos chaves na transformaçãoradical da “paisagem urbana do Recife que se torna o centro maispopuloso e cosmopolita da América, cidade preferida pelosmercadores, judeus, soldados e operários, e ligada por uma ponte àilha de Antonio Vaz, onde se levanta, segundo plano de Pieter Post,‘à moda da Holanda’, a cidade Mauricéia (Mauritzstadt), a primeiraque se edifica no Brasil, conforme traçado de um arquiteto. Erguemse os primeiros sobrados; intensifica se a vida social; e, enquanto oRecife, que não possuía, à chegada de Nassau, mais de 150 casas,já podia ostentar, dois anos depois, duas mil construções, expandese, com seus palácios e jardins, a cidade do Príncipe, onde passarama residir, em sobrados e casas de campo, burgueses enriquecidos esenhores de engenho” (Azevedo; 1971: 439).

É fundamentado nestas transformações históricas que colocono horizonte mítico desta época a figura lendária de Maurício deNassau, de quem podemos até hoje, no século XX, perceber a forçasimbólica. Fato constatável na simpatia geral que a figura de Mauriciode Nassau ainda possui na memória cultural dos pernambucanos.

Do lado das funções “negativas”, dos mitos marginalizados, edepreciados, coloco as características básicas da civilização lusocastelhana, derrotadas pelos ditos “batavos hereges”. São eles: opadre, o santo, a Igreja, a festa, o desperdício, etc. Dentro da CulturaProtestante estes elementos católicos serão combatidos. Assim,vemos o espírito Dionisíaco, que sempre apareceu como substratoprimitivo, vestígios da antiguidade, dentro do catolicismo ibérico.Aqui ele será depreciado e envolvido de funções negativas e marginaisao stablishment dominador.

No nível racional, reconhecido como o superego institucional,colocamos como técnicas a navegação, as ciências, as artes, omercantilismo, a indústria, etc. Já no nível actancial, do “ego” societal,colocamos como representação e síntese de todo projeto colonialholandês no Brasil a Companhia das Índias Ocidentais, que nos dáuma visão sistêmica do empreendimento exploratório realizado em24 anos de domínio holandês.

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Exercícios de Mitocrítica

Finalmente é preciso dizer algumas palavras em relação atrês obras que merecem uma investigação mais apurada pelamitocrítica, e que certamente ajudariam mais no aprofundamentodos problemas aqui analisados. A primeira destas obras a que merefiro, é um texto de importância muito singular neste contexto.Trata se do primeiro romance escrito em Pernambuco, tem o nome“Nossa Senhora dos Guararapes: Romance histórico, descritivo, morale crítico”. O autor que assina a obra é Benardino F. Freyre Abreu eCastro, e foi editado em 1847. Nesta obra encontra se muito bemrepresentado a importância simbólica e mítica que tem o culto deNossa senhora dos Prazeres. Considerando se o fato de ser o primeiroromance escrito em Pernambuco, pode se avaliar o significado culturalque possui, àqueles fatos históricos, que me arrisco afirmar, são devalor cultural privilegiado, no horizonte mítico de nossa nacionalidade.

Bernardino Abreu e Castro com muita sensibilidade não retrataapenas os aspectos históricos, mas nos apresenta um complexoliterário de rara penetração em domínios não literários, como a moral.Já o aspecto crítico traduz se por uma marca manifesta de nostalgia,quase melancólica. O autor se sente atraído emocionalmente pelostempos heróicos e históricos, resgata um espírito que vê ausente naalma dos cidadãos do século XIX.

Creio que a mitocrítica deste texto está subentendida namitanálise que empreendemos aqui, mas seria um belo exercício deaprofundamento teórico, dedicar se com generosidade de tempo ecircunstâncias, a uma obra tão singela e rica. Aproveito o momentopara já começar a falar de um outro texto, que complementaria estapesquisa, coroando a de uma perspectiva cronológica importante.Refiro me ao texto dramático de José Pimentel, incluído no livro,“Heróis pernambucanos no teatro ao ar livre” (1987). O nome dotexto é, “Batalha dos Guararapes”. Da mesma forma observamosque o autor enfatiza a dimensão heróica dos feitos, quase fantásticos,e também milagrosos, dos personagens que se envolveram naquelasbatalhas. O que gostaria de tornar apreciável é o detalhe de estaobra ter sido escrita nos anos oitenta. Assim nós teríamos nestasduas obras uma excelente oportunidade de analisarmos doiscontextos sócio culturais distintos, com mais de um século dedistância, uma da outra. Cabe também citar uma obra

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se apoiava numa Ética Protestante, como escreveu o sociólogo alemãoMax Weber (1967), e de outro lado uma civilização em que a ÉticaCatólica ainda se desenvolvia largamente, promovendo sob suacultura o florescimento de uma sociedade barroca colonial na AméricaLatina.

É neste contexto social e histórico que enquadramos oesquema 4. Nos mitos ascendentes, a partir da expulsão dosholandeses, coloco o renascimento do espírito dionisíaco, dentro docatolicismo popular. Represento a figura mítica de D. Sebastião, oDesejado, e o Enviado, encarnado em D. Francisco Barreto, Generalque sob o seu comando conseguiu vencer o inimigo que, como nosconta a história, estava numa situação muito mais vantajosa emtermos bélicos. Foi este General que, na frente dos exércitos lusobrasileiros, fez o voto de, ao se concretizar a vitória sobre osholandeses, erguer em retribuição às graças recebidas, uma capelaem nome da Virgem Mãe dos Prazeres. É assim que coloco tambémcomo símbolo, Nossa Senhora dos Prazeres, além dos nomes dosoutros Generais que combateram nas lendárias Batalhas, queacabaram por se tornar “expressão maior da epopéia de um povo”(Castro; 1980).

Nas funções “positivas”, acalentadas pela ideologia do poderrestaurado, coloco a Santa, a festa, o prazer, o comércio, o padre, epoderia acrescentar ainda outros elementos que passaram a comporo imaginário daquela época, e que até hoje aparece, com algumasnuances contemporâneas, no inconsciente coletivo da populaçãolocal, por exemplo a sensualidade, a beleza feminina, o tropicalismo,a mestiçagem ...

Nas funções “negativas”, coloco o pastor, a usura, a indústria,a avareza, que são propriamente o espírito protestante que,derrotado, ganhou um significado depreciativo. Em relação aos mitosmarginalizados e desonrados coloco Prometeu, por tudo mais que jáfoi dito, e Calabar, pela “traição” à gente da terra.

No nível racional, do “superego” institucional coloco as técnicasda aurivesaria, do engenho, o escravismo, pois que é propriamentesob suas bases que se forma a nossa civilização. No nível actancial,do “ego” societal, coloco a importância primordial dos seminárioseclesiásticos, se destacando nesse contexto as instituiçõesbeneditinas, que formaram grande parte da inteligência brasileirados primeiros séculos.

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Mas afinal o que é que durante três séculos ininterruptosritualiza se nesta festa e procissão religiosa de Nossa Senhora dosPrazeres? A história que ela conta, nós, bem sabemos, é a da expulsãodos holandeses. Porém, qual é o seu significado cultural mais preciso?

Minha hipótese é que com a expulsão dos holandeses nossasociedade começou a construir um universo simbólico, um idiomacultural, em que, com as bases do catolicismo Contra Reformista eda cultura barroca emergente, vislumbrou o surgimento de umacivilização com uma identidade peculiar. Através do mito das trêsraças, e de todo um processo de sincretismo com as tradiçõesculturais nativas e africanas, e sob o signo do hedonismo, da alegria,da mestiçagem, da efervescência coletiva, forjou se uma nova cultura.Esta hipótese vai ao encontro das análises que Eric Wolf (1968)empreendeu no México em relação ao culto de Nossa Senhora deGuadalupe. E defendo a idéia de que esta é a base, a estrutura quereflete uma unidade cultural Latino Americana.

Com o auxílio da mitanálise, e a aplicação dos tópicosdiagramáticos, que Gilbert Durand elaborou, pude perceber e testaresta hipótese, considerando a pertinência dos estudos simbólicos emitológicos nestes contextos sócio culturais que marcam nossaidentidade.

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cinematográfica que teve como tema as mesmas batalhas nos montesGuararapes.

Outra obra de interesse singular é a peça de teatro de ChicoBuarque de Hollanda e Rui Guerra, cujo título é “Calabar: o elogioda traição” (1983). Neste texto os autores manifestam certa simpatiaem relação a atitude do personagem Calabar, que se voltou comseus exércitos para o lado dos ‘inimigos’. Para este, e ainda paramuitos atualmente, melhor seria para o Brasil ter sido colonizadopelos holandeses ao invés dos portugueses. Percebe se isso na grandeaceitação em torno do nome de Mauricio de Nassau, sempre lembradocom carinho.

Levando em conta toda esta rica documentação sobre o tema,estou há alguns anos estudando todo este processo simbólico e míticoque encontra se nas raízes de nossa formação cultural e atravessaos tempos, com a mesma vivacidade e vigor. Afirmamos, com oprofessor Roberto Motta (1980), que estes fenômenos constituem“a herança viva das matrizes culturais geradoras do barroco” (Motta,1980: 29). Estão no inconsciente coletivo de nosso povo. E na minhapesquisa procuro exatamente o significado cultural da festa de NossaSenhora dos Prazeres. Acredito que estes rituais das festividades eda procissão religiosa em torno do culto à Virgem Mãe dos Prazeres,são acontecimentos em que nossa sociedade se espelha, seautocontempla e recria a sua própria história. É o que Roberto daMatta (1986), nos apresenta de forma lapidar: “Nestes momentos,(...), a sociedade se arranja de forma não ordinária e produz umdiscurso para si mesma. Aqui se inventa aquilo que Victor Turnerchamou, (...), de drama social; algo que, quase no mesmo momentoe na mesma Universidade de Chicago, Clifford Geertz formulava coma famosa frase do ritual como uma história que uma sociedade contapara si mesma de um certo ponto de vista. Nos dois casos, porém eisso digo eu, o que ocorre de fundamental é uma parada nacontinuidade pertubadora do sistema e uma tentativa de tornar visívelalguma forma de fim, de alvo, de destino, de direção. É precisamenteisso que acontece quando uma sociedade faz uma festa ou ritual einventa para si mesma um momento onde há um início, um meio eum fim. E aqui, estamos falando com Aristóteles, o primeiro aenxergar tudo isso muito bem ...” (Damatta, 1986: 83 4).

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A imagem barroca dacivilização latino americana

“O Brasil assim como a América Latina (...), oferece a imagem ou a ilusãodaquilo que poderia ter sido uma civilização que houvesse acolhido outra opção,

diversa da rentabilidade e do Capital”Jean Duvignaud; 1983: 24.

Nas considerações finais deste ensaio, faço o itinerário da re-apresentação de nosso objeto de estudo. Percorrerei ainda uma vezsuas linhas de força sócio culturais e sua unidade simbólica,considerando tudo o que já foi colocado nos capítulos iniciais. Naverdade originalmente esta ‘conclusão’ foi apresentada no Congressoda América (1492-1992) realizado na Universidade de São Paulo.Assim pode ser lida como um texto a parte, porém é o resultadoalinhavado de tudo o que já foi exposto. Com isso, o leitor observaráque muito dos temas já trabalhados nos capítulos anteriores retorname re-aparecem, todavia, agora, com novas nuances.

No estudo destes fenômenos sociais que se manifestamritualmente, em cerimônias anuais há 352 anos, chego à conclusãode que seu conteúdo simbólico, ou seu significado cultural, traduzem-se numa linguagem, ou idioma, particular. Poderia ter enfatizadooutras funções sociais da festa religiosa e profana; como suadimensão econômica, política, religiosa, etc. Pois, a festa nestecontexto é compreendida como um fato social total, em que seencontram imbricadas todas as dimensões da realidade sócio culturalda população envolvida. Porém, enfatizei prioritariamente sualinguagem simbólica, seus conteúdos culturais mais profundos:

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A base sócio-etnográfica desse ensaio, como já foi referidanos capítulos anteriores, encontra se no município de Jaboatão deGuararapes, nos quais observei manifestações e cerimônias popularesespecíficas; se junta ainda a essas reflexões finais uma pesquisarealizada num bairro operário de Recife, em torno da Escola de Sambado Limonil, onde tentei investigar as representações coletivas quese constituíram a partir da agremiação carnavalesca em questão(Corrêa; 1991a). Outro estudo importante que serviu de suporteempírico as conclusões desse ensaio foi uma pesquisa que realizeino próprio templo de Nossa Senhora dos Prazeres, onde desenvolvium estudo interpretativo sobre o seu simbolismo barroco (Corrêa,1991b). Da mesma forma podemos nos referir aqui, ainda maisuma vez, a outra pesquisa que empreendi, agora em outro Estadoda Federação, no caso, em São Luís do Maranhão. Esta investigaçãocoloca questões relativas à teoria social da festa popular no contextobrasileiro; foi uma pesquisa realizada num bairro da cidade queconcentra grande parte dos artistas e compositores popularesmaranhenses (Corrêa; 1992).

Todos estes trabalhos serviram como pano de fundo, poisbalizam as considerações que aparecem aqui em caráter conclusivonesse ensaio crítico e analítico. Deve se acrescentar ainda abibliografia que encontramos sobre as mais diversas festas,comemorações e eventos rituais espalhados pelo país. Alguns destestrabalhos destacam se sobremaneira no horizonte às vezes sombriodas reflexões sociológicas e antropológicas a respeito dos temasclássicos dessas disciplinas. Sempre se deu uma importânciairrelevante à função social e cultural dos rituais populares que serealizam anualmente em quase a totalidade dos municípios e cidadesde nosso país, que possui fronteiras continentais. Só muitorecentemente que vemos desenvolver se um deslocamentoproveitoso do interesse crítico por estes domínios e temas centraisnas sociedades latino-americans. Felizmente, testemunhamosalgumas mudanças no imaginário sociológico brasileiro e novospesquisadores têm dado mais atenção a sociologia da cultura e daarte.

Foi pelo desenvolvimento destas reflexões maiscontemporâneas a cerca destes problemas, de uma singularidademarcante em nosso contexto social, que desenvolvi esta pesquisasobre o significado cultural da Festa de Nossa Senhora dos Prazeres

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podemos dizer melhor ainda, seus conteúdos mais inconscientes. Oque não deixa de manifestar todas as suas contradições e dinâmicasintrínsecas próprias a todas as experiências e expressões rituaishumanas.

Enfoquei assim o tema do caráter utópico e hedonista dosmitos em torno da devoção à Nossa Senhora dos Prazeres,considerando deste modo a expressão barroca de uma civilizaçãoque tem aspirações democráticas e pluralistas nas suas basesimaginárias e ideológicas; mas que permanece presa numa tradiçãoautoritária, patriarcal e despótica. Isto se expressa num esforçosempre tenso para manter um aparente equilíbrio ‘cordial’, quecontrasta radicalmente com a realidade de um cotidiano desigual,hierarquizante e discriminatório, próprio da sociedade brasileira elatino-americana. É um paroxismo de nosso dilema social, mas, nãoé por isso que devemos mantê-lo oculto, sem interpretar sua forçahistórica. Pois, se os mitos, a estrutura simbólica e imaginária dapopulação, revelam esta dimensão utópica do imaginário coletivo,devemos ter esperança de mudar estas estruturas hierarquizantesde nossa vida cotidiana.1

Deste modo, nesse ensaio fruto da dissertação de mestradoapresentada em 1993, procurei defender algumas hipóteses emrelação aos problemas e contradições que a identidade cultural latinoamericana tem colocado e enfrentado atualmente no cenário mundial.A argumentação teórica desenvolveu se a partir de pesquisas sócio-etnográficas realizadas pelo autor desse texto e também pela leiturae estudo detido da literatura científica, hoje já bastante extensa,sobre estes temas capitais. Deste modo, é com base em dadosempíricos e em problemas teóricos precisos que apresentei àdiscussão e ao debate, a dimensão utópica que vejo manifestar sena cultura brasileira desde os primeiros tempos da Descoberta. Estadimensão utópica pode ser apreendida no universo simbólicocaracterístico das diversas cerimônias populares que se realizamem nossa sociedade.

1 Nesse ensaio se expressa essa esperança com certo ceticismo, pois o que se vêmanifestar na efervescente ritualização festiva brasileira, objeto dessa análise,em muitos casos só faz mantér a ordem estabelecida. Além da ‘festa dos prazeres’aqui em questão, lembro especialmente da Festa do Divino Espírito Santo; expressãode desejo das comunidades em ver realizar, nesse mundo, a ‘graça’ e a ‘fartura’para todos, no verdadeiro Reino do Espírito Santo; que, no entanto, nunca seestabelece, a não ser como uma quimera.

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Os rituais comemorativos, religiosos e profanos, realizadosem torno do culto à Nossa Senhora dos Prazeres nos MontesGuararapes se enquadram muito bem nessa distinção. Eles se referemao segundo grupo dos ritos comemorativos, aqueles que remetem ocomportamento humano ao mundo mítico dos antepassados e dasdivindades.

Há 352 anos realizam se ininterruptamente as festividadesem nome dessa Santa católica. A história nos conta que o culto àNossa Senhora dos Prazeres está associado aos acontecimentosheróicos e “milagrosos” ocorridos durante a expulsão do holandesesdo Nordeste do país. Conta nos a lenda e o mito que a Virgem Mãedos Prazeres teria intercedido nos fatos a favor dos exércitos lusobrasileiros.2 Lembremos que neste período estudado, Portugal estevesubmetido 60 anos ao domínio da Coroa Espanhola.

O domínio holandês dessa parte do país deixou marcasprofundas na cultura local. Principalmente na cidade do Recife, queesteve subjugada por 24 anos; tornando-se a sede do governocolonial. Foi verdadeira revolução civilizacional que os holandesesempreenderam aí, é o que podemos deduzir das palavras de Fernandode Azevedo que afirma ter ocorrido uma transformação radical da:“(...) paisagem urbana de Recife que se torna o centro mais populosoe cosmopolita da América, cidade preferida pelos mercadores,judeus, soldados e operários (...)” (Azevedo; 1971: 439).

É assim que podemos dizer que esta foi a primeira tentativade colonização urbana do Brasil constituindo se em confronto diretocom a sociedade brasileira dos períodos primitivos da colonizaçãoportuguesa. Porém, a análise sincro diacrónica revelou problemasestruturais importantes a partir da configuração de uma culturabrasileira barroca e católica em confronto com a ‘modernidade’batava. Apesar de todo desenvolvimento urbano, intelectual, artísticoetc., promovido pelos holandeses, que se constituíam na época a

2 Pode-se se dizer que na verdade, por esses motivos, a Padroeira do Brasil poderiater sido a N. S. dos Prazeres, se Pernambuco mantivesse um papel econômicoproeminente no cenário nacional. N. S. Aparecida não tem a importância política,cultural e militar que tiveram os fatos marcantes ocorridos em torno dessa devoção.É sabido que até hoje, no entanto, o Exército Nacional Brasileiro considera quesuas origens e da própria brasilidade se encontram marcadas e fincadas naquelesMontes Guararapes de Jaboatão.

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e da Pitomba. Recolhendo documentos históricos; pesquisandoacervos dos museus da cidade de Recife e do país; bibliotecas federaise estaduais; arquivos públicos; e, etc, juntando se ainda a observaçãoparticipante, complementada pela aplicação de breves questionáriose entrevistas; pude ter em mãos material suficiente para poderencontrar um conjunto coerente de representações sociais e coletivas.Destaco neste conjunto uma ideologia clara, estruturas de sentimentotranslúcidos e precisos, que, acredito, se expressam numa linguageme idioma particular. Enfatizo assim as conclusões a que chegou osociólogo Emile Durkheim em seu livro “As formas elementares davida religiosa” no qual revelava a verdadeira importância dosimbolismo na vida social humana. “A vida social, sob todos osaspectos e em todos os momentos de sua história, somente é possívelem virtude de um vasto simbolismo” (Durkheim, 1989: 332).

Este simbolismo de que fala Emile Durkheim manifesta se deformas diferentes, possuindo linguagens próprias; cada evento socialexige um tipo de código e regras particulares, que só a semiologiapode compreender como se organiza o universo coletivo diferenciadoem grupos, papéis, funções, atividades, etc. Os fenômenos queenfoquei nesses contextos rituais e cerimoniais, associados aosquadros míticos específicos, nos informam sobre seus conteúdosculturais inconscientes e subjacentes. Assim, focalizando a dimensãoritual dos eventos em causa, nada mais fiz que seguir a orientaçãode Jean Cazeneuve, que estabeleceu uma distinção entre duasespécies de ritos:

“Primeiramente, os ritos de controle (compeendendo as interdições e receitasmais ou menos mágicas para agir sobre os fenômenos naturais); e, emsegundo lugar, os ritos comemorativos (que consistem em recriar a atmosferasagrada, representando os mitos ao longo de cerimônias complexas eespetaculares)” (Cazeneuve; S/D: 25).

Jean Cazeneuve desenvolveu esta tipologia a partir de umasociologia da conduta humana, e neste nosso estudo essa teoriaadquiriu uma objetividade toda particular, pois como ele mesmoafirmou: “(...) poder se ia referir uma distinção entre os ritos que seapresentam como comportamentos (positivos e negativos)misturados com a vida corrente ou com o mundo mítico dosantepassados e das divindades” (Cazeneuve, S/D: 25).

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Esse texto revela todo o processo mítico e simbólico que essesfenômenos sócio-culturais e históricos articulam como um complexocoerente de estruturas significativas. Morrer por uma fé e por umacultura! Bastide percebeu muito bem, nestas batalhas pela expulsãodos holandeses, o que ocorreu: foi muito mais do que uma simplesquerela de fundo e razão econômica. Não foi apenas porque osimpostos aumentaram exorbitantemente que fez desencadearabruptamente a expulsão dos ‘invasores’. O que estava subjacenteera um confronto sócio-cultural evidente. A saída de Maurício deNassau só fez com que esta situação contraditória ficasse cada vezmais explícita e determinada; quando toda diplomacia terminou. Acultura protestante, sua ética mercantil, seu espírito capitalista, sechocava de frente com o mundo católico e barroco recrudescidocom o Concílio de Trento; criou-se assim uma atmosfera de conflitoinsustentável.

Porém, antes de aprofundarmos as conclusões dessas análisesque serão esmiuçadas mais adiante, creio ser importante aindaressaltar alguns pontos. Como foi dito anteriormente, o culto à NossaSenhora dos Prazeres está estruturalmente associado a estescomplexo de eventos e fenômenos sócio-culturais e históricos. Mas,a explicação simplista que se tem dos fatos, atestada através dosdocumentos históricos, é que o General Francisco Barreto de Menezes,comandante das tropas luso brasileiras, era devoto desta Santacatólica e que assim se reduz ao acaso a escolha dessa devoção, poruma idiossincrasia de um único indivíduo. Diz-se que logo após aRestauração efetiva dos portugueses e a expulsão definitiva dosholandeses, o general Francisco Barreto, cumprindo com a suapromessa de erguer uma capela em caso de vitória nas batalhas,mandou construir o templo, dando aos Benetinos a obrigação derealização de culto diário e de festas anuais em memória dos fatosocorridos. Este processo coincide perfeitamente com o costumeeuropeu de sacralizar as batalhas e os combates. Sabe-se também,como vimos, que existem diversos cultos à Nossa Senhora da Vitóriae da Batalha, no Brasil e em Portugal. Deve se registrar o fato destaslutas terem se travado em locais de difícil acesso, alagadiços eescarpas dos Montes Guararapes, em um complexo topográfico demuitos acidentes naturais. A esta razão é que se deve atribuir estesucesso militar, mas que, no entanto, transformou se num problemareligioso. Os soldados mortos no combate não puderam ser

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maior potência mundial; a população nativa sempre promoveu poranos seguidos diversas insurreições e revoltas contra o ‘invasor’calvinista. As empresas das Índias Ocidentais tiveram em Mauríciode Nassau um homem de sábio tino político, porém, como seuslucros eram irrisórios, foi abandonado e finalmente substituído; oque acarretou o recrudescimento daquele nativismo incipiente, queassim tornou-se cada vez mais subversivo. Os novos administradoresenviados para tornar mais lucrativo o empreendimento colonial dasÍndias Ocidentais, acabaram por criar um ambiente socialextremamente difícil de sustentar política e militarmente.

A batalha das Tabocas foi a primeira de uma série de combatestravados contra o inimigo. Até hoje se comemora em festa cívicopopular o aniversário desta batalha, no município de Vitória de SantoAntão, nos primeiros dias do mês de agosto. É conhecida como a‘Festa das Tabocas’. No entanto, foi nas famosas batalhas dos MontesGuararapes que se definiu o destino colonial da região. Gilberto Freyrelapidou nesta expressão a importância daqueles feitos: “(...) nestasbatalhas escreveu se a sangue o endereço do Brasil” (Megale; 1980:318).

Revela se daí a dimensão mítica da afirmação da nacionalidade,um ‘mito fundador’ poderoso. Mas, foi outro sociólogo e antropólogoque possuia grandes conhecimentos de nossa realidade, e queefetivamente inaugurou os estudos sobre a ‘sociologia do barroco’no Brasil, que nos ofereceu a interpretação positiva da significaçãomítica e cultural desse conjunto de fenômenos sócio-culturais ehistóricos. Roger Bastide dá nos em prosa singular sua contribuiçãoà análise: “(...) quero, por um momento, me deixar penetrar pelosmitos, e quem nos diz que o mito não é o pressentimento de umaverdade que ainda não existia, mas que não tarda a nascer?”.

“A terra bebeu aqui o sangue dos que morreram por uma fé e por umacultura; bebeu também o sangue dos soldados louros, vindo dos países doNorte, dos mares que cantam na névoa, para se embriagar com avoluptuosidade dos trópicos. O sangue não secou ainda, continua a corrersob o solo, forma poças negras nas raízes dos coqueiros, e uma vez por ano,por ocasião da florada, volta, sobe ao ar livre pelas veias das ervas, oscapinzais não passam de uma imensa toalha vermelha. Não passam de umtapete de sangue que ondula em vagas purpúreas. Então, do Recife e deOlinda, esquecendo as rivalidades antigas, as querelas dos pelourinhos, amultidão vem até à Igreja, que se abre aos cânticos do povo, celebrando avitória sobre os holandeses e chorando os heróis mortos” (Bastide; 1945:148-9)

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Comprova se desta forma o sincretismo existente em Portugalem torno deste culto. Deve se também considerar o fato de que oculto à Deusa Ishtar e à Rainha Ester, sempre estarem ligados alitúrgias orgíacas. Devemos registrar este dado, que, como pode serbem entendido, tem singular importância também no Brasil. Segundocertos autores há um sincretismo presente nos cultos afro brasileirosem relação a esta Santa. De acordo com Araújo (1978) e Valente(1977), citando outros pesquisadores, Nossa Senhora dos Prazeresassocia se aos cultos dos orixás Oxum e Obá. Além disso, podemosobservar num romance de 1847, escrito por Castro (1980), umregistro curioso, que é também comentado por Gonçalves de Mello(1971), de festas e banquetes no topo dos Montes Guararapes, emfrente à igreja e que freqüentemente revelavam se em encontrosdionisíacos. É assim que no referido romance encontramos estaspalavras, que comentam um jantar bastante interessante ocorridoem momento de romaria:

“(...) passados alguns minutos começou o profuso jantar, que, alegradocom assíduo exercício de esgotamento do ebrifestivo copo, se tornou umacompleta orgia uma pomposa festividade do Deus Bacho com suas adoraçõessolenes à impudica Vênus” (Castro; 1980: 119).

Apoiado então nos dados históricos, levantados principalmentepor Santo (1988; 1990), defendo aqui a hipótese de que o culto àNossa Senhora dos Prazeres possui uma estrutura ritual e religiosaque se combina muito bem com a tradição milenar, mesopotâmica emediterrânea. Isto está de acordo com as intuições de Marcel Mauss,que analisando a obra de Dieterich, defendeu uma unidade dentroda tradição popular antiga. Assim ele nos diz: “(...) a tradição popularfoi um fundo sempre idêntico e jamais esgotado, onde periodicamentese restaurou e se renovou a mentalidade religiosa em via detransformações” (Mauss;1981: 385).

Marcel Mauss vai mais além em sua análise, revelando que aobra de Dieterich, “Religião popular, e as formas fundamentais dopensamento religioso”, outra coisa não faz que: “(...) explicar a noçãode Mãe Terra, tema fundamental das mitologias clássicas, temaliterário de múltiplas literaturas que teve suas manifestações até nocristianismo, onde a Virgem com freqüência assumiu certos traçosda antiga Mãe Terra” (Mauss; 1981: 384).

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enterrados em cemitérios sagrados; a solução encontrada foi asacralização dos montes, colocando se simbolicamente alguns dosseus restos mortais sob o Cruzeiro que está diante do Templo, emextenso pátio. A partir daí passaram a ocorrer peregrinações deparentes e do povo em geral, num verdadeiro culto aos antepassados;o que ainda pode ser percebido atualmente, apesar dastransformações ocorridas em três séculos de história. Aindaobservamos famílias inteiras passando o dia em festa, fazendo umverdadeiro pique nique, num momento coletivo que preserva aqueleespírito das primeiras peregrinações.

Outro ponto interessante e que devemos considerar na análise,é o fato de o culto de Nossa Senhora dos Prazeres ser muito antigodentro da tradição católica portuguesa. De acordo com os dadoshistóricos recolhidos por Espírito Santo (1988; 1990) e Megale (1980),o culto surgiu por volta do século XIV, e Portugal foi o primeiro paísda cristandade a festejar as ‘alegrias’, e não só as ‘dores’, de NossaSenhora. Estas alegrias são em número de sete e são as seguintes:“A anunciação do anjo, a saudação de Santa Isabel, o nascimentode seu Divino Filho, a visita dos Reis Magos, o encontro de Jesus notemplo, a primeira aparição de Cristo após a Ressurreição e finalmentea sua coroação no Céu após sua gloriosa assunção” (Megale; 1980:317).

A Virgem dos Prazeres é um dos “mil nomes” de Maria, e oculto mariano é particularmente rico em Portugal. Maria é a mãedos homens, a mãe da nação lusitana. Seu significado simbólico, earquetípico, encontra se nas profundezas da cultura portuguesa. E émergulhando nestas profundezas que Santo (1988) escavou ascamadas históricas e arqueológicas que se revelam do culto à NossaSenhora dos Prazeres. De acordo com este autor, esse culto temíntimas relações com a tradição milenar do Oriente Médio. Destacandose já nos primórdios da cultura babilônica o culto à Deusa Ishtar,como a mãe dos homens, e a Deusa da guerra, de grande difusãopor todo o Oriente Próximo. Posteriormente se vêm relações com oculto à Rainha Ester dos Hebreus, também sendo símbolo damaternidade dos homens, da terra e do céu. Particularmenteimportante para nós é a associação com a Rainha Ester, constatadanum processo do Tribunal da Inquisição datado de 1716, citada nocapítulo dois desse ensaio.

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Destarte, da mesma forma que em relação à imagem, não setrata de definir o barroco abstratamente, pois há uma grandepolêmica semântica em torno deste problema. Todavia, utilizo umtrabalho singular de autor cubano que nos dá toda a dimensão, senão literária, pelo menos estética, do conceito. Severo Sarduy nestesuscinto fragmento nos diz:

“O barroco estava destinado, desde o seu nascimento, à ambigüidade, àdifusão semântica. Foi a grossa pérola irregular em espanhol barrueco ouberrueco, em português barroco a rocha, o nodoso, a densidade aglutinadada pedra barrueco ou berrueco , talvez a excrescência, o quisto, o que,prolifera, ao mesmo tempo livre e lítico, tumoral, verrugoso; talvez o nomede um aluno dos Carraci, por demais sensível e até amaneirado La Barrocheou Barroci(1528 1612) ; talvez, um silogismo Barroco. Finalmente, para ocatálogo denotativo dos dicionários, amontoados de banalidade codificada,o barroco equivale à bizzaria chocante littré , ou: “o estrambólico, aestravagância e o mau gosto” Martinez Amador” (Sarduy; 1979: 58).

Pode se censurar a citação de um texto demasiadamenteliterário que ao invés de sugerir uma definição teórica sociológica,enfatiza sua indeterminação e sua ambigüidade estética. Semembargo, confrontando o com esta outra citação de um grande estetacomtemporâneo, vemos do mesmo modo constatar se a ambigüidadede um traço que lhe é característico. Assim temos: “Entre todas lasetiquetas utilizadas en historia de la cultura y de las formas, quisá lade ‘Barroco’ sea la más ambígua: originalmente indicación de umestilo, ha llegado a ser también el rótulo de una época donde, ademástienen lugar importantes hechos de estilo nada ‘barroco’”. (Valverde;1985: 07).

Neste estudo utilizamos o conceito de barroco no sentidoamplo de um fenômeno que expressa múltiplas dimensões darealidade que começa a delinear se no século XVI. É com a ReformaLuterana, e a conseqüente reação católica contra reformista doConcílio de Trento (1545 1563), que vemos desenvolver se seudestino histórico. Deste modo, utilizei nesse ensaio o conceito deBarroco, como lapidou Severo Sarduy:

“Nódulo geológico, construção móvel e lamacenta, de barro, pauta da deduçãoou pérola; dessa aglutinação, dessa proliferação incontrolada de significantes,e também dessa firme orientação de pensamento, necessitava, para contestaros argumentos reformistas, o Concílio de Trento. A esta necessidaderespondeu a iconografia pedagógica proposta pelos jesuítas, uma arteliteralmente do tape à oeil, que pusesse a serviço do ensino, da fé, todos osmeios possíveis, que negasse a descrição, o matiz progressivo do sfumato,

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Desta forma, baseado na pertinência teórica de autor geniale de monumental importância para as Ciências Sociais, defendo aquia tese de que, ao se constituir em culto, no Brasil, ligadaprincipalmente à expulsão dos holandeses calvinistas da Reformaprotestante, Nossa Senhora dos Prazeres, encarna perfeitamente oespírito, ou melhor, a imagem barroca de uma civilização que seergue afirmando uma dimensão mítica estruturada milenarmente.Mas de que maneira podemos falar de uma imagem barroca?

Em relação à definição de um conceito de imagem, segui deperto o belo trabalho de Serge Gruzinski, “La Guerre des Images”(1990). Nesta obra o autor avalia a dificuldade de se definirabstratamente a imagem, que é um produto histórico e objetoOcidental por excelência: “(...) j’ai renoncé à m’engager dans unades cription trop systématique de l’image et de son contexte parcrainte de perdre de vue una réalité que n’existe que dans leurinteraction” (Gruzinski; 1990: 16).

Portanto, compreendemos a partir daí que o conceito deimagem se aplica num contexto histórico bem definido, e que nãose aplica indiferenciadamente ou abstratamente. É assim que com aDescoberta da América todo um processo de catequese, de imposiçãode uma língua, de leis etc., se dá pela imagem, já que o povo aoqual isto é imposto raramente conhecia a escrita.

Segundo Gruzinski, com as construções das igrejas, dospalácios e monumentos, com a dominação efetiva dos indígenas,processou se uma verdadeira “colonisation de l’imaginaire”, ondenão teve fim a construção e a reconstrução de suas culturas. Nestesentido, quando o autor enfatiza o papel do sincretismo e damestiçagem na cultura hispânica e latino americana em geral, nosaproximamos do conceito de barroco, que parece dar conta destarealidade cultural.

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3 As idéias principais desse ensaio se aproximam das idéias de Boaventura Santos,que no livro A Crítica da Razão Indolente (2002), escreveu: “A subjetividade datransição paradigmática é também uma subjetividade barroca” (p. 356). Comouma subjetividade de ‘fronteira’ o barroco latino-americano apresenta ascaracterísticas da festa, do riso, da mestiçagem, etc: “Uma tal mestiçagem estátão profundamente enraizada nas práticas sociais desses países que acabou porser considerada a base de um ethos cultural tipicamente latino-americano e quetem prevalecido desde o século XVII até hoje” (p. 358).

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“Como equivalente desta crise (a efervescência da festa) que sobressaibrutalmente sobre o fundo da monotonia da vida cotidiana, que apresentaem relação a esta quase todos os contrastes, e cada um deles num grauextremo, só se é possível apontar um único exemplo nas civilizaçõescomplexas e mecânicas. Apenas um fenômeno, tendo em conta a naturezae o desenvolvimento destas últimas, revela uma importância, umaintensidade, um fulgor comparáveis e da mesma ordem de grandeza: aGuerra”(Caillois; 1979: 163).

Diante disso, quando percebemos a importância que a festae sua expressão social tem na cultura latino americana, coloco emquestão o problema da identidade e do modo de ser de nossacivilização. É inegável que as festas populares fazem parte de nossatradição. Será que o confronto com a modernidade significará a perdadestes traços distintivos? É o questionamento a que nos impele OtávioPaz, quando indaga:

“Alguns acham que todas as diferenças entre os norte americanos e nós sãoeconômicas, isto é, que eles são ricos e nós somos pobres, que nasceram nademocracia, no capitalismo e na Revolução Industrial e nós nascemos naContra Reforma, no monopólio e no feudalismo. Por mais profunda edeterminante que seja a influência do sistema de produção na criação dacultura, recuso me a acreditar que bastará possuirmos uma indústria pesadapara vivermos livres de qualquer imperialismo econômico, para quedesapareçam nossas distinções(...)”(Paz; 1976: 23).

Parece me que esta é a questão fundamental: o problema denossas diferenças culturais e como abordá las cientificamente. Seseguirmos os paradígmas teóricos de Roger Caillois, cairemos numaforma de etnocentrismo, que pode ser reducionista e sociocêntrica.Considerar a festa como sobrevivência dos tempos arcaicos e dassociedades primitivas, joga nos no terreno movediço dos pré-conceitos contra a cultura popular e nos lança na ‘folclorização’ e‘turistificação’ crescentes de nossos costumes tradicionais.

Em busca de uma superação epistemológica destes princípios,alternativas teóricas se impõem. É assim que devemos vislumbraruma crítica positiva à visão de mundo racionalista, progressista,que pasteuriza as sociedades em modelos civilizacionais estanquese estéreis. Dentro de um processo de racionalização da existência,no que Max Weber (1985) chamou de “desencantamento do mundo”,vemos a imposição de formas culturais que alienam e homogenizam:racionalização e unidimensionalidade.

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para adotar a nitidez teatral, o repentino do claro escuro, e abandonasse asutileza simbólica encarnada pelos santos, com seus atributos, para adotaruma retórica do demonstrativo e do evidente, pontuada de pés de mendigose de farrapos de virgens campesinas e mãos calosas”(Sarduy; 1979: 58).

Com essas palavras-signos, pontuo a perspectiva que pretendidar ao conceito de Barroco neste estudo. É verdade que se aindanão temos um conceito científico adequadamente elaborado sobre obarroco, a metáfora se presta bem ao entendimento e compreensãosociológica dos fenômenos aqui estudados; pelo menos até o estágioem que nos encontramos da sociologia do conhecimento.

Entretanto, não basta apreender o campo semântico doBarroco – sua polissemia ou ambigüidade – a partir de umaelaboração teórica conceitual, proponho uma reflexão sociológicado conceito e da metáfora. Para tanto, aproximei me, como foi vistoanteriormente, de um trabalho de Roger Bastide, escrito nos anosquarenta, para o jornal “O Estado de São Paulo”. Estes artigos sãoos “Estudos de Sociologia Estética Brasileira” (1940), e neles Bastidepretendia esboçar “as grandes linhas de uma futura sociologia dobarroco brasileiro” (Bastide; 1940: 02). Na direção de uma futurasociologia do barroco que esse ensaio teve a pretensão de contribuir,tentando alargar nosso entendimento sobre tema fundamental doimaginário social brasileiro e latino-americano.

Foi seguindo então essas ‘grandes linhas’ que, ao terminaresse ensaio, faço uma digressão final tentando completar e juntaros fios da reflexão. Basicamente, o que tentei oferecer nesses textosfoi um confronto teórico com as teses de Roger Caillois contidas noseu livro “O homem e o sagrado” (1979). Em linhas gerais, o que oautor defende ali é que a festa cumpria uma função social específicadentro da sociedade ‘primitiva’. Neste contexto, sob influência dasidéias de Emile Durkheim (1989), para Caillois a festa promove aefervescência coletiva em torno de símbolos comuns, revitalizandoo corpo social ciclicamente: atualiza mitos, renova o espírito coletivoe revigora sua unidade. Porém, com o desenvolvimento dassociedades modernas, Caillois vislumbrava o fim, a decadência, destaestrutura festiva. Para este autor, o fenômeno social que substituiriaesta função das festas nas sociedades modernas industriais é aGuerra. É assim, que nos diz:

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Eis as perguntas que se revelam de crucial importância parauma futura ‘sociologia do barroco’ brasileiro, nos moldes que RogerBastide propunha. Talvez ainda não tenhamos condições de respondêlas todas. Porém, gostaria de provocar a reflexão, mais uma vez, erecolocar aqui o tema que abre esse ensaio; e a qual se ligaefetivamente este estudo.

Nas primeiras páginas desse conjunto de textos manifestei aintenção de apresentar aos leitores a dimensão utópica que pensover se manifestar na cultura brasileira e latino americana; numprocesso histórico que acredito se desenvolver desde o Achamento-Descoberta. Afirmei que era possível apreender esta utopia nouniverso simbólico característico das diversas cerimônias popularesque se realizam em nossas sociedades. E é de fato isto que pretendiapresentar aqui; de uma maneira talvez um pouco suscinta eresumida, procurei, através destas páginas, reunir subsídios emateriais sócio-etnográficos que pudessem dar respostas àsindagações que Jean Duvignaud condensou de forma sutil, naquelaepígrafe inicial.

Acredito que é oportuno – apesar de o quadro atual de nossavida política e econômica passar por momentos de desafortunadaconturbação mundial – procurarmos enfrentar estes desafios impostopela atual fase de aceleração histórica, chamada de ‘mundialização’ou ‘globalização’. Neste sentido, vejo revelar se uma linguagemprecisa destes conjuntos de dados apresentados: um desejo real denossas populações em verem destruídas as formas históricasopressivas que determinaram um destino cruel para a maioria dasnações que compõem nosso continente. A utopia está expressa nasdiferentes formas de festividades e cerimônias populares. Nelasvemos a força latente de impulsos sempre contraditórios enfrontaruma realidade altamente hierarquizada, desigual, discriminatória.Nestes momentos vemos manifestar se uma vocação maisdemocrática, igualitária, subversiva, que coloca em questão todauma ordem estabelecida.

Pode se afirmar ainda mais que a característica central denossa civilização é que ela se constitui num modelo diferente deorganização social; modelo que transparece um pluralismo étnico ereligioso de alcance nunca imaginado no planeta. No que poderíamoschamar de ‘pós modernidade’ de nossa cultura, vemos um projetode universalização desse modelo num futuro bem próximo; já que o

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Já Michel Maffesoli, num livro de rara lucidez, provoca umareflexão radicalmente diferente dessa visão ‘estruturo-funcional-evolucionista’ – se é que pode existir esse ‘monstro teórico’ –defendida por Caillois:

“À medida que o século XIX evoluía, o que era a sua ideologia oficial tendiaa esterilizar se. Com o sucesso do maniqueismo, o iluminismo, logo substituídopelo positivismo, parece triunfar; a razão conquistadora expande seu campode investigação e de aplicação. (...). Assim, a racionalização exagerada daexistência (Max Weber) irá em pouco tempo substituir o que, inicialmente,fora somente uma exploração da força de trabalho. O percurso da exploraçãoà alienação mostra se balizado pelos projetos, das luzes e a tecnoestruturacontemporânea, sempre a mesma a despeito de variações do regime político,recolhe os frutos da grande ideologia progressita, que pretende planificar afelicidade individual e social pelo uso exclusivo dos instrumentos da razão”(Maffesoli; 1985: 133).

Deste modo, a partir de sócio-etnografias em camposempíricos diferentes, isto é, em localidades contrastantes de nossopaís, como São Luís, Recife, Salvador, Rio de Janeiro, etc., percebique o significado cultural da festa em nossa cultura, de maneiraalguma pode ser compreendido dentro dos parâmetros teóricosapresentados por Roger Caillois.

Creio que, neste momento, podemos em fim retomar aepígrafe que abre esse estudo, na qual tem em Jean Duvignaud ogrande inspirador. O questionamento desse sociólogo e escritorfrancês abre a discussão para uma redefinição de nossos paradigmasinterpretativos. Neste momento podemos centrar toda a exposiçãodestes quadros empíricos – nos quais apresento minhas pesquisasem Recife (Escola de Samba do Limonil), em Jaboatão dos Guararapes(Festa de Nossa Senhora dos Prazeres) e em São Luís do Maranhão(Bairro da Madre de Deus) – nas indagações lapidares de JeanDuvignaud; que com grande sensibilidade percebeu profundamentea realidade dos problemas que nos arriscamos aqui a colocar emfoco:

“O Brasil assim como a América Latina (...), oferece a imagem ou a ilusãodaquilo que poderia ter sido uma civilização que houvesse acolhido outraopção, diversa da rentabilidade e do capital. O ingresso na economia demercado era inevitável? Por acaso, é inconcebível uma sociedade que pratiquea redistribuição da riqueza, orientando se para a procura do desenvolvimentode homens e mulheres, ao invés do esforço no sentido de uma organizaçãosistemática com vistas a eleger o trabalho como a última finalidade socialdos seus membros? Quatro séculos mais tarde, a pergunta ainda não parecehaver sido formulada...” (Duvignaud; 1983: 24).

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Destarte, este processo já foi percebido e refletido por autorescomo Serge Gruzinski (1990) e Roberto Motta (1991). Se há algumaesperança no horizonte a qual nos possamos inclinar, é a de queexiste de fato no nosso imaginário social um projeto de civilizaçãoonde a vida ainda preserva seu encanto, podendo chegar, em brevetempo, o fim um processo de fossilização cultural esterelizante.Seremos nós espectadores deste mundo que se está por construir?

Finalmente, fechando esse ensaio, que se não for ingênuo ouromântico – mas certamente é utopístico – haverá de ter outrosdefeitos; trago às mãos do caro leitor essa referência singular deum texto do professor Roberto Motta, escrito recentemente:

“C’est en suivant le modèle de l’Amerique Latine que se généralise lacivilisation post moderne, caractérisée par les syncrétimes, le pluralismeethnique et religieux. En revanche, la civilisation de l’Amérique Latine tellequ’elle se forma au Brésil, au Mexique, au Pérou et ailleurs, contient, autrece qu elle a reçu des Indiens et de Africains, une certaine image de l’Europe,devenue étrangére à l’Europe elle même: la civilization du baroque et de lafête, que triompha jadis dans le pays de la méditerranée. Ne serait ce pas,dans les fêtes du cinquième centenaire de la découvert de l’Amérique, l’Europede redécouvre elle même et ne serait ce pas que le vieux projet del’universalisation de l’Europe abouit à l’americano latinisation de la planète?”(Motta; 1992: 147).

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