15
LOPES, M. I. V. Reflexividade e relacionismo como questões epistemológicas na pesquisa empírica em comunicação. In: BRAGA, J. L. (Org.). Pesquisa empírica em comunicação. São Paulo: Paulus, 2010. p. 27-49 REFLEXIVIDADE E RELACIONISMO COMO QUESTÕES EPISTEMOLÓGICAS NA PESQUISA EMPÍRICA EM COMUNICAÇÃO Maria Immacolata Vassallo de Lopes* Resumo: A pesquisa empírica em Comunicação é tomada como objeto de análise a fim de trazer para o interior da própria prática da pesquisa duas questões epistemológicas, a reflexividade e o relacionismo. Para isso, trabalho as propostas de Bachelard e de Bourdieu sobre a epistemologia histórica e operatória e o campo científico para a construção do conhecimento social. Oconceito de reflexividade é recuperado desde sua originária perspectiva racionalizante até a visão plural da “modernidade reflexiva” fundada em práticas de ordens epistêmica e social. Enquanto prática epistêmica, analiso a reflexividade nas operações de ruptura e de construção do objeto científico e nas relações triádicas entre sujeito, objeto e conhecimento. Enquanto prática social, uso a noção de reflexividade para abordar o trabalho de campo como situação social de comunicação e categoria de análise. Concluo reafirmando que toda pesquisa deve responder a duas validações, a interna e a externa, das quais decorrem, respectivamente, o capital epistemológico de um campo científico e ouso de seu conhecimento pela sociedade. Palavras-chave : Reflexividade. Relacionismo. Pesquisa Empírica. 1 Introdução Nas ciências sociais, o progresso do conhecimento pressupõe progresso em nosso conhecimento das condições de conhecimento. Pierre Bourdieu (1992) Tomando como objeto de reflexão a pesquisa empírica em Comunicação, pretendo pontuar algumas questões de ordem epistemológica e metodológica tais como as concebo a partir do lugar em que se encontram, isto é, na própria prática da pesquisa que é em essência uma prática metodológica. Defino a metodologia da pesquisa como um processo de tomada de decisões e de opções pelo investigador que estruturam a investigação em níveis e em fases, cujas operações metodológicas se realizam num espaço determinado que é o espaço epistêmico. 1 _______________________________________________________________________ *Professora titular da Escola de Comunicações e Artes da USP. Doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo, com pós-doutorado na Università di Firenze, Itália. Coordenadora e professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da USP. Coordenadora e pesquisadora da rede de pesquisa internacional OBITEL (Observatório Ibero-americano da Ficção Televisiva). Autora de livros e artigos nas áreas de epistemologia, metodologia e ficção televisiva, no Brasil e no exterior. É pesquisadora do CNPq. E-mail: [email protected] 1 Elaborei a noção de prática da pesquisa como tomada de decisões e de opções que se expressam em níveis e fases metodológicas e formalizei-a em um modelo para a pesquisa empírica em Comunicação (Lopes, 1990). A partir desse modelo, fui realizando atualizações críticas sobre o estado da questão da pesquisa e do campo da Comunicação. Ver Lopes (1999, 2003, 2007).

LOPES, M. I. v. Reflexividade e Relacionismo Como Questões Epistemológicas Na Pesquisa Empírica Em Comunicação

Embed Size (px)

DESCRIPTION

A pesquisa empírica em Comunicação é tomada como objeto de análise a fim de trazer para o interior da própria prática da pesquisa duas questões epistemológicas, a reflexividade e o relacionismo. Para isso, trabalho as propostas de Bachelard e de Bourdieu sobre a epistemologia histórica e operatória e o campo científico para a construção do conhecimento social.

Citation preview

  • LOPES, M. I. V. Reflexividade e relacionismo como questes epistemolgicas na pesquisa emprica em comunicao. In: BRAGA, J. L. (Org.). Pesquisa emprica em comunicao. So Paulo: Paulus, 2010. p. 27-49 REFLEXIVIDADE E RELACIONISMO COMO QUESTES EPISTEMOLGICAS NA PESQUISA EMPRICA EM COMUNICAO Maria Immacolata Vassallo de Lopes* Resumo: A pesquisa emprica em Comunicao tomada como objeto de anlise a fim de trazer para o interior da prpria prtica da pesquisa duas questes epistemolgicas, a reflexividade e o relacionismo. Para isso, trabalho as propostas de Bachelard e de Bourdieu sobre a epistemologia histrica e operatria e o campo cientfico para a construo do conhecimento social. Oconceito de reflexividade recuperado desde sua originria perspectiva racionalizante at a viso plural da modernidade reflexiva fundada em prticas de ordens epistmica e social. Enquanto prtica epistmica, analiso a reflexividade nas operaes de ruptura e de construo do objeto cientfico e nas relaes tridicas entre sujeito, objeto e conhecimento. Enquanto prtica social, uso a noo de reflexividade para abordar o trabalho de campo como situao social de comunicao e categoria de anlise. Concluo reafirmando que toda pesquisa deve responder a duas validaes, a interna e a externa, das quais decorrem, respectivamente, o capital epistemolgico de um campo cientfico e ouso de seu conhecimento pela sociedade. Palavras-chave: Reflexividade. Relacionismo. Pesquisa Emprica.

    1 Introduo

    Nas cincias sociais, o progresso do conhecimento pressupe progresso em nosso conhecimento das condies de conhecimento.

    Pierre Bourdieu (1992)

    Tomando como objeto de reflexo a pesquisa emprica em Comunicao, pretendo pontuar algumas questes de ordem epistemolgica e metodolgica tais como as concebo a partir do lugar em que se encontram, isto , na prpria prtica da pesquisa que em essncia uma prtica metodolgica. Defino a metodologia da pesquisa como um processo de tomada de decises e de opes pelo investigador que estruturam a investigao em nveis e em fases, cujas operaes metodolgicas se realizam num espao determinado que o espao epistmico. 1 _______________________________________________________________________ *Professora titular da Escola de Comunicaes e Artes da USP. Doutora em Cincias da Comunicao pela Universidade de So Paulo, com ps-doutorado na Universit di Firenze, Itlia. Coordenadora e professora do Programa de Ps-Graduao em Cincias da Comunicao da USP. Coordenadora e pesquisadora da rede de pesquisa internacional OBITEL (Observatrio Ibero-americano da Fico Televisiva). Autora de livros e artigos nas reas de epistemologia, metodologia e fico televisiva, no Brasil e no exterior. pesquisadora do CNPq. E-mail: [email protected] 1 Elaborei a noo de prtica da pesquisa como tomada de decises e de opes que se expressam em nveis e fases metodolgicas e formalizei-a em um modelo para a pesquisa emprica em Comunicao (Lopes, 1990). A partir desse modelo, fui realizando atualizaes crticas sobre o estado da questo da pesquisa e do campo da Comunicao. Ver Lopes (1999, 2003, 2007).

    mailto:[email protected]:[email protected]:[email protected]

  • Portanto, o ponto de vista que rege estas consideraes metodolgico Lato sensu, isto , interno ao fazer cientfico e onde elas se confundem com a reflexo epistemolgica. Dois pontos devem ser destacados de antemo neste enfoque. O primeiro que a epistemologia tomada na tradio bachelardiana, no plano do desenvolvimento histrico da cincia e no nvel operatrio, do aqui e do agora, isto , como prtica metodolgica, entendendo que a reflexo epistemolgica opera internamente prtica da pesquisa. Dito de outra maneira, os princpios de cientificidade operam internamente prtica cientfica, uma vez que a crtica epistemolgica que rege os critrios de validao interna do discurso cientfico, que so firmados de acordo com os requerimentos especficos de uma cincia em um determinado momento de seu desenvolvimento. O segundo ponto que esta perspectiva epistemolgica deve necessariamente envolver critrios de validao externa, apoiados na crtica feita pela sociologia da cincia ou do conhecimento. Como diz Bourdieu (1999, p. 87), " na sociologia do conhecimento que se encontram os instrumentos para dar fora e forma crtica epistemolgica, revelando os supostos inconscientes e as peties de princpio de uma tradio terica." Entendo, assim, a prtica da pesquisa como prtica epistmica sobre determinada pelas condies sociais de sua produo, que so as que regem o funcionamento do campo cientfico ou intelectual tout court dentro de uma sociedade numa dada poca. E, igualmente, como prtica que possui uma autonomia relativa sustentada por uma lgica interna de desenvolvimento e de autocontrole de operaes metodolgicas, o que impede que ela se converta numa mera caixa de ressonncia de normas externas e, portanto, em discurso totalmente ideolgico. So, portanto, duas lgicas que se inserem na estrutura de qualquer pesquisa, um tempo lgico, regido pela epistemologia e a metodologia cientfica e por um tempo histrico, regido pela sociologia da cincia ou do conhecimento 2. Ao final, a prtica da pesquisa concebida como um campo de foras, submetida a determinados fluxos e exigncias internas e externas do conhecimento. Essa concepo de epistemologia inscrita nas prticas de pesquisa faz com que ela seja incorporada como um nvel ou instncia metodolgica de toda pesquisa. O que leva a criticar e lamentar o descaso pelas questes epistemolgicas nas pesquisas empricas de Comunicao, fruto da deficiente formao em pesquisa e da herana de uma razo instrumentalizada de cincia, possivelmente a mesma que identifica a Comunicao como cincia social aplicada na classificao institucional em que seus estudos so rubricados. 2 Reflexividade como prtica social e prtica epistmica Pedra angular da epistemologia, a reflexividade tem sido, desde sempre, entendida como crtica da cincia, cincia da cincia, ou metadiscurso cientfico. O carter reflexivo da prtica da pesquisa algo natural (no h cincia sem reflexo) e o exerccio da reflexividade indispensvel para criar a atitude consciente e crtica por parte do pesquisador quanto s operaes metodolgicas que realiza ao longo da investigao. tambm o questionamento constante a que deve submeter a _____________________________________________________________________________________ 2 Sobre a natureza dessas duas temporalidades, ver Goldschmidt (1963).

  • construo, a observao e a anlise de seu objeto de pesquisa. Essa reflexividade permanente, cultivada por parte do pesquisador, tende a tornar-se disposio intelectual possvel de internalizar-se e constituir-se em habitus cientfico 3. Como pretendo sustentar e demonstrar adiante, esse habitus de natureza hbrida, combinando relaes de objetivao e relaes de subjetivao do pesquisador na construo de seu objeto de estudo. , portanto, na juno das noes de prtica da pesquisa e de habitus intelectual que me proponho a discutir aqui aspectos da questo da reflexividade, que considero fundante e prvia a qualquer discusso dos obstculos epistemolgicos, dentro da pesquisa emprica, em geral, e na Comunicao, em particular. 2.1 O longo percurso do conceito de reflexividade interessante notar a ausncia de trabalhos atualizados sobre o conceito de reflexividade, no obstante ele cumprir um papel decisivo no pensamento ocidental, como demonstra Domingues (2002). De uma forma ou de outra, esse conceito sempre apareceu associado ao que Descartes consagrou como o cogito, ou seja, a capacidade da conscincia de pensar-se a si mesma. o papel da razo, em geral abstrata, desvinculada da corporalidade e da experincia ou, ao menos, superior e contraposta a estas. Por isso, no pensamento filosfico clssico, a reflexividade apresentou-se quase como um sinnimo de razo. O idealismo alemo assim a empregou, seguindo os passos do prprio Descartes. Kant, Hegel e Husserl foram marcos fundamentais na evoluo do pensamento sobre a reflexividade, conceituada em termos eminentemente racionalistas. O sculo XX, atravs do pragmatismo, da psicanlise, de Wittgenstein, e mesmo de certas correntes da fenomenologia, buscou elaborar alternativas a essa perspectiva, com sucesso variado. Ainda que demonstrando a importncia da "vivncia" ou experincia diante da reflexo, Husserl foi um dos ltimos grandes filsofos clssicos a retomar o conceito na acepo racionalista (e dualista) e no que tange prpria teorizao da reflexividade. Essa concepo implicou, ademais, uma aguda separao entre sujeito e objeto, com o primeiro tendo de se converter absoluta e claramente no segundo para que a reflexo pudesse ter lugar. assim que esse conceito foi legado poderosa tradio fenomenolgica contempornea, de Heidegger e Sartre. No campo das cincias sociais, a sociologia reintroduziu em larga medida essa abordagem em seu arcabouo conceitual. Schutz (1932 [1979]) abraou decisivamente essa perspectiva, incorporando-a sua noo de "mundo da vida". Entretanto, influenciado fundamentalmente por Weber, Schutz elaborou uma definio e uma _______________________________________________________________________ 3 Segundo Bourdieu, todo campo cientfico se apresenta como conjunto de recursos cientficos herdados do passado que existem em estado objetivado sob forma de instncias de consagrao (academias, prmios), publicaes, instituies de ensino etc., e no estado incorporado sob forma de hbitos cientficos, sistemas de esquemas gerados de percepo, de apreciao e de ao, que so o produto de uma forma especfica de ao pedaggica e que tornam possvel a escolha dos objetos, a soluo dos problemas e a avaliao das solues. (1983, p. 137). Fica assim notado o processo de socializao dos estudiosos dentro de uma prtica de conhecimento estruturada, atravs da qual se forma tanto o habitus cientfico quanto a figura do intelectual coletivo, isto , o conjunto dos produtores do conhecimento que afirmam sua autonomia da influncia externa ao campo cientfico. Ver tambm Bourdieu e Wacquant (1992).

  • tipologia da ao social que reproduziam precisamente os mesmos problemas que se pode encontrar na matriz racionalista ocidental. Mead (1930 [1962]), autor que se acha no centro do pragmatismo norte-americano, avanou no sentido de elaborar uma concepo bastante distinta da fenomenolgica, ao referir-se atitude analtica e autocontrolada do sujeito na vida cotidiana e em tarefas, por assim dizer, banais. Deve-se a ele a crtica concepo da experincia que no se mostra capaz de se tematizar em seu prprio curso e faz notar que a espontaneidade e a conscincia no seriam opostos. Entretanto, ser com Giddens (1991, 1997) e com Beck (1992, 1997) que o conceito dar passos importantes para superar as limitaes desse ngulo tradicional e estreito. Em suas obras sobre a modernidade reflexiva e a sociedade de risco, a reflexividade passa a ter por objeto a prpria condio moderna de existncia. Segundo esses autores, a premissa clssica de uma teoria da reflexo da modernidade poderia ser resumida em: quanto mais as sociedades so modernizadas, mais os sujeitos adquirem capacidade de refletir sobre as condies sociais de sua existncia e, assim, modific-las. No entanto, o conceito por eles introduzido de modernizao reflexiva no implica (como pode sugerir o adjetivo reflexivo) reflexo, mas antes reflexividade. Esta diz respeito autoconfrontao com os efeitos da sociedade do risco" (BECK, 1997, p. 16), isto , aos efeitos colaterais sobre os quais no temos controle nem dos quais com frequncia temos conhecimento. Para o que interessa aqui, necessrio notar a diferena entre os dois autores em relao reflexividade praticada pela cincia e pelas pessoas comuns na sociedade moderna. Para Beck, a autoconfrontao como condio do homem moderno deve ser claramente distinguida do aumento do conhecimento e da cientificao no sentido de ela implica uma autorreflexo (mesmo crtica) sobre a modernizao da sociedade. Por outro lado, para Giddens, a autoridade especfica que a cincia um dia desfrutou e que se transformou numa espcie de tradio s poderia ser protegida na medida em que houvesse um isolante separando a especializao cientfica das diversas formas de possibilidade de conhecimento das populaes leigas. O que o leva a apontar para o lugar-comum em que se tornou o fato de os especialistas discordarem entre si, e mais que isso, a reivindicao de legitimidade universal da cincia ter se tornado muito mais discutida do que antes (1997, p. 221). Na esteira do debate desses autores acerca da reflexividade expandida na sociedade como uma das consequncias da modernidade (abalo da confiana e da tradio, progresso do risco e da incerteza, diversidade de conhecimentos), eu diria que possvel afirmar que as tenses entre as diversas interpretaes da cincia e as formas alternativas de reivindicao de conhecimento podem ser reconhecidas tanto na ambivalncia da modernidade feita de otimismo e negatividade do Iluminismo, como aponta Bauman (1999), quanto nas lutas pela hegemonia ao lado dos domnios da cincia ortodoxa, que caracterizam as estratgias de subverso no campo cientfico, como nota Bourdieu (1983). Assim, creio ser possvel avanar um conceito de reflexividade capaz de abarcar a multidimensionalidade de suas articulaes com a vida social e com os processos

  • mentais e subjetivos individuais. Na maioria das vezes uma reflexividade prtica que se acha em pauta, mas nem por isso menos significativamente orientada e variavelmente autorreferida, a partir da qual "escolhas" so feitas, caminhos so traados e rumos de vida, tomados. A reflexividade mostra-se, assim, um vasto territrio, permeado por enfoques que recobrem diversos e dspares contedos, evidenciando nfases distintas ao longo da histria e da prpria contemporaneidade. Portanto, necessria uma conceituao que rompa com o racionalismo, no com a inteno de recus-lo, mas de reservar-lhe o espao empiricamente adequado. Trazendo essas digresses para dentro da esfera do conceito de reflexividade que estou adotando, seria possvel identificar no interior de qualquer processo de pesquisa cientfica uma reflexividade prtica, caracterstica da maior parte da vida, aes e movimentos, e que compartilhada pelo especialista no seu meio ambiente social (da ser possvel cham-la tambm de reflexividade social). E igualmente, uma reflexividade epistmica ou racionalizante, especfica de operaes especialistas. Consequentemente, em condies de reflexividade epistmica possvel assumir uma postura que configura claramente uma relao entre sujeito e objeto de conhecimento, condies essas que j no implicam a retomada do dualismo radical da racionalidade cartesiana. 3 Reflexividade epistmica na pesquisa: ruptura e construo de conhecimento Seguindo os passos de Bachelard 4, as condies da gnese das teorias devem ser entendidas histrica e scio culturalmente. A perspectiva terica adotada na anlise da sociedade e da cultura sempre entendida como um componente do prprio fenmeno que objeto do estudo. Resulta da que a reflexividade epistmica praticada ao longo do processo de pesquisa incide e decide sobre o ajustamento entre o sujeito e o objeto de conhecimento. Ela pode ser traduzida atravs do exerccio permanente da vigilncia, da crtica e da autorreflexo sobre os todos os atos da pesquisa em andamento. _______________________________________________________________________ 4 Como afirmei, a concepo de epistemologia aqui adotada marcadamente bachelardiana. (Ver Bachelard, 1938 [1996]; 1949 [1977], 1951 [1975]. Dois eixos de sua extensa obra interessa destacar aqui: 1) a relao da razo cientfica com a empiria, ou seja, com a condio de romper com a razo do senso comum; 2) a concepo de epistemologia histrica que implica a cincia como um fato histrico, cultural e coletivo produzido por mentes individuais. Seguem alguns excertos esclarecedores. A fenomenologia no alcana o momento do racionalismo dos conceitos, o instante da nova conscincia, onde o racionalismo subitamente nega a histria da aquisio das ideias para designar e organizar as ideias constitutivas. Enquanto o pensamento cientfico toma conscincia desta tarefa de essencial reorganizao do saber, a tendncia a inscrever os dados histricos primitivos aparece como uma verdadeira desorganizao. A tomada de conscincia racionalista pois nitidamente uma nova conscincia. uma conscincia que julga seu saber e que quer transcender o pecado original do empirismo. (...) O conhecimento comum j no pode ser, no estado presente do saber cientfico, mais que um territrio provisrio, um territrio pedaggico para por a coisa em marcha, para dividir em pedaos. Uma doutrina da cincia desde j essencialmente uma doutrina da cultura e do trabalho, uma doutrina da transformao correlativa do homem e das coisas (1975, p. 9). O vnculo indissocivel entre o esprito trabalhador e matria trabalhada presente no materialismo racional e no racionalismo aplicado exige o abandono das tradies filosficas aliceradas no realismo ingnuo, que remete o pensamento apenas ao mundo sensvel, fortalecendo a crena de que o conhecimento cientfico cpia fiel do que se apresenta ao pesquisador. Em contrapartida, a cincia de hoje factcia, rompe com a

  • Tratarei aqui de dois atos de reflexividade epistmica que, a meu ver, so prvios a qualquer considerao sobre os obstculos epistemolgicos dentro da pesquisa emprica em Comunicao. O primeiro a ruptura epistemolgica, ato de importncia capital, pois marca a conscincia da distncia entre o objeto real e o objeto de cincia. No cabe nos objetivos deste artigo aprofundar a espinhosa questo da relao entre cincia e conhecimento comum e o tratamento dado reflexividade prtica na pesquisa emprica. Porm, quer se trate apenas de uma ou mais rupturas (Santos, 1989) ou da necessidade de mergulhar no "saber local" (GEERTZ, 2001), e apesar de toda a polmica epistemolgica que essas questes implicam, creio que acima de tudo, preciso criticar a "cincia espontnea" (BOURDIEU, 1997). A predisposio de tomar, como dados, objetos pr-construdos pela lngua comum um obstculo epistemolgico amplamente notado nas pesquisas empricas em Comunicao. Pode decorrer da o efeito de obviedade que se tem diante de muitas delas. A reflexividade epistmica alerta para a iluso de transparncia do real, fixa o plano da cincia como plano conceitual (que exige o trabalho dos e com os conceitos) e, principalmente, revela que o objeto no se deixa apreender facilmente, uma vez que regido por uma complexidade constitutiva que o torna opaco e exige operaes intelectuais propriamente epistemolgicas e tericas para a sua explicao. O segundo ato de reflexividade epistmica incide sobre a construo do objeto de pesquisa. O objeto um sistema de relaes expressamente construdo, uma vez que o objeto no dado, mas construdo. construdo pelo investigador atravs de um longo processo de objetivao que percorre toda a pesquisa, desde a escolha do problema para estudo, seu recorte e estruturao, passando pelos procedimentos tcnicos de coleta dos dados e chegando sua explicao ou teorizao. A objetivao aqui definida como pensamento autor referencial que incide sobre as teorias, mtodos e de tcnicas usados na pesquisa, pois ela explicita enquanto estes conquistam, constroem e constatam o objeto de estudo. Tem-se assim a base epistemolgica de elaborao do objeto emprico e do objeto terico da pesquisa, base essa que permite submeter interrogao sistemtica os aspectos da realidade postos em relao por um conjunto de problemas tericos e prticos que demandam conhecimento. Os pressupostos ou as respostas antecipadas a essas questes constituem o corpo de hipteses da pesquisa que devem estar presas conceitualmente problemtica terica envolvida. Uma vez que os aspectos ou fatos da realidade no so dados, estes, quando obtidos atravs das tcnicas de investigao, j implicam em _______________________________________________________________________ natureza para construir a tcnica. Constri uma realidade, esculpe a matria, d finalidade s coisas dispersas (1975, p. 10). (...) o esprito cientfico deve necessariamente psicanalizar o pensamento ntimo, carregado de individualidade, responsvel por condicionar o trabalho de reconstruo e reorganizao racional. A inspirao que provm dos valores da imaginao, portanto essencialmente individual, pode acumular grandes efeitos de entusiasmo que afastam a cincia da objetividade (1975, p. 11). Logo, a valorizao do trabalho coletivo acentuada por Bachelard, em detrimento da pesquisa isolada que denuncia os falsos valores enraizados na esfera da individualidade, fontes de constantes erros e obstculos, verdadeiros entraves ao avano do pensamento. Bachelard coloca em relevo o carter social da cincia, ressaltando-a como fruto de um empreendimento coletivo, em oposio imagem que acentua a cultura cientfica como resultado de uma atividade realizada por mentes solitrias.

  • supostos tericos. A crtica epistemolgica das tcnicas deve ser feita j na prpria construo do objeto rompendo com a tradicional viso da "neutralidade axiolgica" das tcnicas e passando a tom-las pelo que so, isto , teorias em ato, conforme tratarei adiante. Como se v, o nvel ou a dimenso epistemolgica na prtica da pesquisa no algo abstrato, mas se traduz concretamente por operaes de vigilncia sobre o conhecimento que se est produzindo. Em outros termos, a reflexividade epistmica permanente e incide sobre todas as etapas do processo de pesquisa. 4 Reflexividade epistmica como objetivao das relaes de conhecimento na pesquisa Fruto da orientao acima designada como racionalista, sempre esteve claro para mim, enquanto pesquisadora, que a objetividade do conhecimento nas cincias humanas nunca poderia ser procurada na possibilidade de no influenciar o objeto, pois este sempre construdo pela razo de quem observa atravs do uso de mtodos e tcnicas de pesquisa e pela relao social entretida por esse observador com o objeto. Julgo que a melhor resposta ao problema da objetividade est no fato de no a opor subjetividade, considerando que os esforos de teorizao e conceituao da linguagem cientfica e de validao das hipteses construdas um processo continuado de objetivao da subjetividade. Este esforo de objetivao, como processo e no como definio esttica, tende a assumir a forma de projeto de uma cincia da cincia, como por exemplo, para Morin (1994) e Bourdieu (1992). Mas, ele tambm pode ser concretizado, como aqui tento mostrar, dentro de uma perspectiva de reflexividade epistmica, onde habitus e prticas cientficas tomam como processo de validao interna 5 de uma cincia a teorizao do prprio ato da observao, explicitando as condies e interaes sociais que presidem determinada pesquisa emprica. Um modo de refletir epistemologicamente sobre o processo de observao ser capaz de entender e de comunicar a diferena cultural entre sujeito e objeto da investigao (THIOLLENT, 1980, p. 15-133). Trata-se de advogar, tal como as correntes racionalistas, a necessidade de exercer o papel crtico da cincia de ruptura com o senso comum, embora agora por outra via que no apenas a da teoria (o que caracterizaria teoricismo). Trata-se da ruptura epistemolgica pela via da experincia do trabalho de campo, em que so relativizados, simultaneamente, o senso comum do informante e o ponto de vista cientfico do pesquisador, tentando assim abarcar todas as marcas de etnocentrismo, inclusive cientfico. Segue-se que a adoo da perspectiva da interculturalidade no processo investigativo tende a diminuir as desigualdades de poder simblico e cultural entre os especialistas e os leigos, partindo do pressuposto que a construo do investigador coletivo que no exclua do campo cientfico o senso comum dos prticos, no apenas um ato de vontade negociada. Supe a teorizao da relao social de investigao, isto , implica em compreender a _______________________________________________________________________ 5 Conforme referi p. 2.

  • teorizao da relao social de investigao, isto , implica em compreender a estrutura dessa relao e em saber identificar aes alternativas que permitam evitar a reproduo automtica das desigualdades simblicas no trabalho de campo, criando condies de intervir sobre a estrutura da relao social que criada. (BOURDIEU, 1997, p. 693-732). Uma vez que a parcialidade terico-ideolgica do pesquisador submetida ao crivo da ruptura epistemolgica por meio da objetivao da experincia do trabalho de campo, possvel evitar obstculos ao conhecimento, comumente encontrados nas pesquisas empricas em Comunicao, entre os quais possvel citar: (1) o vcio teoricista de pressupor a passividade do objeto de investigao, uma vez que o pesquisador acaba por lhe impor a sua viso do mundo, transformando a influncia sobre o objeto na incapacidade de entender o outro; (2) o vcio etnocntrico de confundir o desejo sobre o que a realidade deve ser (resultante de valores do pesquisador) com o que , levando a sobrevalorizar o peso e a importncia tanto de condutas sociais crticas como no-crticas. Mais concretamente, na prtica da pesquisa, penso que a perspectiva de relativizao da parcialidade terico-ideolgica, permite superar o teoricismo racionalista desde que o ato epistemolgico de construo do objeto seja condicionado s seguintes orientaes: (1) os modelos de anlise (os constructos tericos-empricos-hipotticos) no podem resultar apenas de uma problematizao terica prvia, devendo ser reelaborados quando nos encontramos em campo, isto , quando entramos em comunicao com o objeto e passamos por uma confrontao com a diferena; (2) as construes terico-interpretativas, dependentes de um trabalho de conceituao cientfica, no podem opor-se s construes interpretativas comuns dos atores sociais, pois estas ltimas (as construes simblicas locais) funcionam como indicadores de postulados tericos mais abstratos que permitem comparar e sistematizar conhecimentos sobre diferentes contextos sociais. Nesse quadro, criam-se condies para que as teorias sociais estejam prximas no s dos investigadores, sem se limitarem apenas s construes simblicas dos atores sociais, mas tambm da j referida capacidade de reflexividade prtica ou social dos atores sociais comuns, admitindo que estes decidam incorporar interpretaes cientficas por serem adequadas e plausveis face conscincia prtica que j tm sobre os seus contextos de vivncia. Esta adequao e plausibilidade contribuiro para que atores sociais comuns integrem os produtos de conhecimento cientfico sua viso de mundo, ultrapassando as limitaes dos saberes construdos apenas no cotidiano (GIDDENS, 1989). Deve ser lembrado que uma forte crtica ao normativismo do mtodo, est em introjetar a relao social de investigao numa perspectiva que permita ao pesquisador objetivar e compreender as condies sociais da observao/inquirio do social.

  • 4.1 Reflexividade e relaes de conhecimento As prticas reflexivas que discuti anteriormente enfatizaram especificamente a relao entre o Sujeito (investigador) e o Objeto (investigado) na pesquisa, ao passo que as abordagens epistemolgicas tradicionais restringiram seu foco na relao epistmica entre o Objeto e o Conhecimento. Diversamente, adoto a reflexividade epistmica aggiornata s condies de conhecimento da contemporaneidade que toma a objetivao da relao entre sujeito e objeto como principal objeto de anlise. Esta posio encontra ressonncia em trabalhos como os de Bourdieu (1992, 1995) que defendem que a objetivao da relao objetivada do sujeito e objeto a condio epistemolgica do conhecimento cientfico social. Uma maneira de esclarecer essa contribuio de Bourdieu para a epistemologia da cincia social e, portanto, da Comunicao, conceber os requisitos do conhecimento compreendendo trs relaes interconectadas, porm analiticamente distinguveis: a relao social entre o sujeito (coletivo) e o conhecimento (campo); a relao epistmica entre o conhecimento (campo) e o objeto (estudo); e a relao objetivada entre o sujeito (coletivo) e o objeto (estudo). o que se mostra na Figura 1. 6

    Figura 1: Trs relaes de conhecimento na produo da cincia social A figura acima representa o conhecimento na perspectiva do relacionismo proposta por Bourdieu. As posies ocupadas no campo por A, B e C esto em relao entre si. A principal inovao do autor colocar nfase na objetivao das relaes de conhecimento. E m seus prprios termos, a reflexividade epistmica deve ser epistemolgica, coletiva e fundamentalmente antinarcisstica (BOURDIEU; WACQUANT, 1992, p. 72). 7 Em segundo lugar, a anlise das relaes coletivas objetivadas so, para Bourdieu, um empreendimento coletivo conduzido por um _______________________________________________________________________ 6 Inspirada pela leitura de Maton (2000). 7 A reflexividade individualstica compreende a autorreflexo crtica sobre a histria do autor, sua posio social e suas prticas no campo cientfico. Deste modo, a reflexo autobiogrfica includa na pesquisa, com a condio de no usurpar o objeto de estudo em benefcio do autor, o qual, assim fazendo, corre o risco de ele prprio se tornar o objeto de estudo

  • campo cientfico como um todo. No se trata simplesmente de uma prtica individualizada da pesquisa, mas da incluso de uma teoria da prtica intelectual como componente integral e condio necessria para uma teoria crtica do conhecimento. Portanto, ambos o sujeito e o objeto de conhecimento so antes figuras coletivas (o campo cientfico como um todo) do que indivduos. Esta anlise reflexiva coletiva das relaes coletivas objetivadas, segundo Bourdieu, que prov fundamentalmente a base epistemolgica para o conhecimento cientfico social. Como sabido, o conhecimento submetido aos processos de autoridade e de reconhecimento por outros investigadores do campo e resultar na sua socializao e referencializao. o que, guardando analogia com outros conceitos de capital de Bourdieu, poderia ser chamado de capital epistemolgico do campo. Este seria, ento, o resultado do papel das instituies do campo (revistas, comits, titulaes) para a sua autonomia interna, implicando na busca no apenas por recursos e status, mas tambm por lucros epistmicos. As formaes epistmicas em toda cincia tm sido o resultado dos atendimentos/respostas de um campo s exigncias prprias do conhecimento e dos habitus intelectuais moldadas pelo prprio campo. O desenvolvimento de um campo cientfico, ento, sempre o resultado da dupla combinao dos interesses sociais e interesses cognitivos na acumulao tanto de capital simblico como de capital epistmico. 4.2 Reflexividade sobre o trabalho de campo como situao de comunicao e categoria de anlise A fim de fechar o foco no plano mais concreto de anlise sobre a reflexividade, voltarei a ltima parte deste trabalho experincia emprica de campo. Considero o trabalho de campo como elemento fundante da pesquisa emprica. Trata-se de uma experincia insubstituvel para o pesquisador, aquilo que s se aprende fazendo, quando ele entra em interao com os fenmenos sob estudo em seu contexto natural. Entretanto, a despeito da nfase dada pelas cincias humanas ao estudo emprico de fenmenos sociais, isto , submetidos observao nas situaes naturais de ocorrncia (in situ) necessrio desnaturalizar o trabalho de campo. A reflexividade epistmica no trabalho de campo se traduz no que chamarei de esforos de desnaturalizao e de objetivao das condies sociais em que sujeito e objeto de pesquisa esto envolvidos. Tratarei aqui de dois aspectos constantes dessa reflexividade. Reflexo epistmica 1: Desnaturalizao do trabalho de campo atravs de crtica falsa neutralidade das tcnicas A assuno de que o objeto de cincia no dado, mas construdo atravs de teorias (e seus conceitos) e de mtodos (e suas tcnicas), exige do investigador a mais bsica e talvez por isso mesmo, a mais difcil disposio atitudinal (ou habitus) que a permanente vigilncia epistemolgica, ou seja, o uso da reflexividade epistmica aplicada ao conhecimento que est produzindo. 8 _____________________________________________________________________________________ 8 o que d base para o programa do racionalismo aplicado de Bachelard (1977), segundo o qual o objeto cientfico se conquista (ruptura com o conhecimento do senso comum), se constri (atravs de quadros tericos e estratgias metodolgicas) e se constata (mediante o teste de hipteses).

  • O frgil domnio metodolgico revelado nas pesquisas empricas de Comunicao reflete-se imediatamente no descaso ou na ausncia da crtica sobre as tcnicas de pesquisa empregadas. A iluso de que sejam epistemologicamente neutras tanto as tcnicas como os procedimentos de coleta de dados leva facilmente aos automatismos com que so elaborados. Nas pesquisas no se procura por uma teoria do questionrio9 como se procura por uma teoria da recepo ou uma teoria do discurso. Entretanto, no existe coleta de dados sem pressupostos tericos, ou seja, na feliz expresso de Bourdieu, as tcnicas so teorias em ato.

    A medida e os instrumentos de medio e, de forma geral, todas as operaes da prtica da pesquisa, desde a elaborao dos questionrios e a codificao at a anlise estatstica, constituem outras tantas teorias em ato, enquanto procedimentos de construo, conscientes ou inconscientes, dos fatos e das relaes entre os mesmos (1999, p. 53).

    Quanto menos consciente for a teoria implcita em determinada prtica teoria do conhecimento do objeto ou teoria do objeto maiores sero as possibilidades de que ela seja mal controlada, portanto, mal ajustada ao objeto em sua especificidade. Ao designar por metodologia, como acontece frequentemente, o que no passam de declogos de preceitos tcnicos ou prticas automatizadas, escamoteia-se a questo metodolgica propriamente dita que a escolha entre as tcnicas de pesquisa (quantitativas, qualitativas, combinadas) com referncia significao epistemolgica que elas carregam. Quase sempre, apresentam-se apenas as tcnicas escolhidas e sua justificativa a posteriori, quando os dados empricos j foram colhidos e construdos, geralmente com um baixo grau de conscincia quanto s dimenses epistemolgicas implicadas. Entendidas as tcnicas como instrumentos neutros, naturalizados, facilmente intercambiveis, a reflexividades obre elas dbil exatamente por envolverem operaes tcnicas, isto , supostamente no valorativas. Reflexo epistmica 2: Objetivao da relao comunicacional no contexto da pesquisa de campo 10 O trabalho de campo um trabalho no campo da cincia, constitudo por complexos contextos de interao que envolvem distintas dimenses e aspectos dentre os quais sobressai a posio dos interlocutores colocados em comunicao. Essa posio no natural ou espontnea, mas uma relao de conhecimento, em que um dos sujeitos o pesquisador e o outro o pesquisado, que foram colocados em interao por um interesse objetivo que o de um conseguir informaes do/sobre o outro. Um dono de um saber especializado, outro, de um saber prtico ou que de interesse desse outro. Para que essas posies no campo - bem como as expectativas individuais, experincias e relaes prvias dos sujeitos e dos recursos materiais e simblicos que intermediam essa relao se tornem objeto de reflexo epistmica por parte do _____________________________________________________________________________________ 9 Sobre a teoria do questionrio, ver Thiollent (1980) e Bourdieu (1973 [1980]). 10 Mesmo quando no ocorre relao social no trabalho de campo, isto , quando este no envolve outras pessoas alm do pesquisador, as questes sobre reflexividade e objetivao que orientam os argumentos neste tpico, valem igualmente para o trabalho de campo que possui como universo de pesquisa um corpus de textos.

  • estudioso, necessrio que ela recaia sobre o carter situacional e dinmico dessa relao de interlocuo. Entender o trabalho de campo formado por situaes de comunicao implica assumir uma posio metodolgica que o define como um campo dinmico de relaes, no qual se delineiam diversas estratgias discursivas e de ao por parte dos atores envolvidos, configurando processos de negociao, colaborao e resistncia que incidem na coleta dos dados e nos resultados de sua anlise. Este deveria ser um entendimento bsico, mas no , visto que os processos de comunicao envolvidos no trabalho de campo raramente so referenciados e tomados como objeto de reflexo epistmica em toda sua complexidade. Essa proposta de anlise relacional do trabalho de campo est baseada em uma reapropriao da categoria etnogrfica de situao social formulada por Gluckman (1987) como sendo um conjunto de configuraes e interrelaes entre diversos grupos e elementos culturais que comportam tanto conflitos e tenses quanto formas de cooperao e comunicao, os quais determinam/modificam o comportamento e participao individual de cada agente envolvido no trabalho etnogrfico. Assim, cada situao social conforma um padro de interdependncia integrado e conflitivo ao mesmo tempo, em que intervm ao menos trs elementos: um conjunto limitado de atores sociais, as aes e comportamentos desses atores e um evento ou conjunto de eventos que referencia a situao social a um determinado momento. Essas formulaes, retomadas e aplicadas anlise das condies de produo dos dados empricos, permitem definir o trabalho de campo como situao social. Deste modo, elementos textuais e contextuais do trabalho de campo adquirem particular importncia para a reflexo sobre as condies de produo de conhecimento. Sua problematizao permite, por exemplo, pensar como as posies sociais dos interlocutores condicionam as propriedades dos discursos circulantes e incidem nos acordos e resultados alcanados. As situaes de comunicao possuem uma dimenso subjetiva enquanto os interlocutores esto habilitados e se reconhecem mutuamente como agentes com capacidade de produzir sentido, desenvolvendo procedimentos de interpretao que intervm na negociao para um acordo intersubjetivo, sempre provisrio e, portanto, dinmico. A situao de contato destaca a diversidade de formas de comunicao expressa em diferentes modos de falar, gesticular, olhar, vestir, etc. A reflexividade, que sinnimo de mtodo, permite perceber e controlar no campo, a prpria conduo de uma entrevista, por exemplo, isto , perceber o campo em que ela se realiza. Uma comunicao consciente da violncia simblica e contrria a formas autoritrias de interveno cientfica ponto de partida, no sentido do pesquisador ter em vista a dessimetria das posies ocupadas na situao social de entrevista. Mais, essa situao quase sempre se faz acompanhar por uma dessimetria social quando o pesquisador ocupa uma posio superior ao pesquisado pela posse de um capital, especialmente o capital cultural e em particular o capital lingustico. A fim de reduzir ao mximo a interveno arbitrria que est presente desde o princpio ao se apresentar a pesquisa, deve-se procurar instaurar uma relao de escuta ativa e

  • metdica, to afastada da pura no-interveno da entrevista no-dirigida e dos relatos autobiogrficos das histrias de vida, quanto do dirigismo do questionrio e da entrevista roteirizada. 11 Essa postura, de aparncia contraditria, no fcil de se colocar em prtica. Nas palavras de Bourdieu,

    Ela [essa postura] associa a disponibilidade total do entrevistador em relao pessoa interrogada, a submisso singularidade de sua histria particular, que pode conduzir, por uma espcie de mimetismo mais ou menos controlado, a adotar sua linguagem e a entrar em seus pontos de vista, em seus sentimentos, em seus pensamentos, com a construo metdica, forte do conhecimento das condies objetivas, comuns a toda uma categoria (1997, p. 695).

    12

    Muitos relatos relevantes dos entrevistados para os objetivos da investigao costumam emergir mais dessa experincia reflexiva sobre o trabalho de campo do que de entrevistas previamente formatadas. Porm, a confiana no outro e o compromisso mtuo no processo de pesquisa no se consegue de maneira imediata: a construo de um padro de interao tem historicidade, que compreende tanto a micro-historicidade da relao de interlocuo de uma pesquisa especfica como a macro-historicidade da relao estrutural pesquisador-pesquisado, e combina interesses, sistemas de representao, expectativas e afetos. Desta maneira, longe de reduzir a relao de conhecimento ou epistmica mera transmisso de informao, o trabalho de campo configura um espao de interao de diferentes finalidades e sistemas de representao em que se pe em jogo no somente o interesse acadmico e sua relevncia cientfica, mas, igualmente, e de maneira cada vez mais acentuada, a necessidade de compreender a demanda dos outros construdos como objetos de pesquisa. Ter em mente as implicaes do uso social da cincia, os acordos intersubjetivos determinando ou modificando o comportamento e a participao tanto do pesquisador como do pesquisado, do que se trata. Pois os espaos do trabalho de campo so os espaos dos pontos de vista, das perspectivas mltiplas do pesquisador e do pesquisado, e por isso mesmo, espaos difceis de compreender e de descrever. nesse sentido que considero a dimenso comunicacional do trabalho de campo como questo epistemolgica e categoria de anlise a serem explicitadas e objetivadas atendendo ao seu carter situacional e dinmico, produto da ao dos sujeitos em interao. 5 Breve concluso Todo desenvolvimento de uma cincia segue ao longo de embates travados pela validao interna (construo de capital epistemolgico) e pela validao externa (funo social do conhecimento) de seus resultados. Deste modo, guisa de concluso _______________________________________________________________________ 11 Sobre a crtica ao condutivismo do questionrio e s diversas modalidades de entrevista, ver Thiollent (1980, p. 31-99). 12 Como a retomar o seu trabalho etnogrfico inicial sobre os trabalhadores da Arglia em 1958, um Bourdieu, talvez surpreendente para muitos, escreveu um texto reflexivo e sensvel sobre a explicitao do mtodo utilizado no conjunto dos estudos de caso expostos em A misria do mundo, com o ttulo de Compreender (1997, p. 693-732).

  • deste trabalho, volto questo inicial da construo do objeto dentro de um projeto de pesquisa para a colocar a indagao sobre a pertinncia do problema com que se inicia uma pesquisa e sua problemtica terica, isto , sobre a importncia social do objeto emprico e a relevncia do objeto terico da pesquisa. Trata-se de indagar sobre a justificativa da importncia social que costuma ser imputada ao objeto da pesquisa, como se bastasse algo ser pesquisado para que sua importncia se sucedesse. Ao contrrio, a justificativa j deveria trazer a marca do compromisso do investigador com os problemas que necessitam ser pesquisados, com as perguntas importantes a ser feitas hoje, aqui e agora. So as opes sobre quais temas pesquisar que, a meu ver, devem ser as mais conscientes possveis, declaradamente assumidas, e que, no entanto, no podem ser respondidas pela cincia porque so opes valorativas, isto , polticas, dependentes de uma weltanschauung, da concepo de mundo do pesquisador. E a, talvez, devesse ser perguntado at que ponto esto sendo renovadas as "utopias fundantes" dos estudos de Comunicao na Amrica Latina e estudados os campos estratgicos de estudo apontadas por Martn-Barbero (2009, p. 147). 13 Intelectuais e estudos comprometidos com a transformao de nosso contexto renovadamente contraditrio, ambivalente, desigual, que j nos valeu denominaes como terceiro mundo, pases dependentes, perifricos, e hoje, emergentes, contexto a partir do qual toda investigao deve comear e com ela manter relaes de compreenso e de superao. Aqui, cabe a crtica ao modo exgeno de pensar, atravessado por questes e temas deslocados, por novas "ideias fora do lugar". No se trata, porm, de nenhum provincianismo intelectual, pelo contrrio, as razes da globalizao devem incitar-nos cada vez mais a fazer aquelas perguntas-problema que tm relao vital com nossa existncia social, que so tambm as que tm maior capacidade de apresentar relevncia e pertinncia terico-epistemolgica, ou seja, de fazer avanar o conhecimento no campo da Comunicao. REFERNCIAS BACHELARD, Gaston. La actividad racionalista de la fsica contemporanea. Buenos Aires: Ed. Siglo Veinte, 1975. BACHELARD, Gaston. O racionalismo aplicado. Rio de Janeiro: Zahar, 1977 BACHELARD, Gaston. A formao do esprito cientfico. Rio de Janeiro: Contraponto. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalncia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. BECK, Ulrich. Risk society: toward a new modernity . London: Sage, 1992. BOURDIEU, Pierre. A opinio pblica no existe. In: THIOLLENT, Michel. Crtica metodolgica, investigao social e enquete operria. So Paulo: Polis, 1980. BOURDIEU, Pierre. O campo cientfico. In: BOURDIEU, Pierre. So Paulo: tica 1983. BOURDIEU, Pierre. Compreender. In: BOURDIEU, Pierre (coord). A misria do mundo. Petrpolis: Vozes, 1997. BOURDIEU, Pierre e WACQUANT, Loc. An invitation to reflexive sociology. Cambridge: Polity Press, 1992. _______________________________________________________________________ 13 Considero esse texto um modelo de autobiografia intelectual antinarcisstica marcada pela reflexividade epistmica.

  • BOURDIEU, Pierre e WACQUANT, Loc. Respuestas por una antropologa reflexiva. Mxico: Grijalbo, 1995. BOURDIEU, Pierre, CHAMBOREDON, Jean-Claude e PASSERON, Jean-Claude. O ofcio de socilogo. Petrpolis: Vozes, 1999. DOMINGUES, Jos Maurcio. Reflexividade, individualismo e modernidade. Rev. bras. Ci. Soc., So Paulo, v. 17, n. 49, p. 55-70, 2002. GEERTZ, Clifford. O saber local. Petrpolis, Vozes, 2001. GIDDENS, Anthony. A constituio da sociedade. So Paulo: Martins Fontes, 1989. GIDDENS, Anthony. As consequncias da modernidade. So Paulo: UNESP, 1991. GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASH, Scott. Modernizao reflexiva. So Paulo: UNESP, 1997. GLUCKMAN, Max. Anlise de uma situao social na Zululndia moderna. In: BIANCO, Bela F. (Org.). Antropologia das sociedades contemporneas. So Paulo: Global, 1987. GOLDSCHMIDT, Victor. Tempo histrico e tempo lgico na interpretao dos sistemas filosficos. In: A religio de Plato. So Paulo: Difel, 1963. LOPES, Maria Immacolata Vassallo. Pesquisa em comunicao: formulao de um modelo metodolgico. So Paulo: Loyola, 1990. LOPES, Maria Immacolata Vassallo. La investigacin de la Comunicacin: cuestiones epistemolgicas, tericas y metodolgicas. Dilogos de la Comunicacin 56, Lima: FELAFACS, 1999. LOPES, Maria Immacolata Vassallo. Sobre o estatuto disciplinar do campo da Comunicao. In: LOPES, Maria Immacolata V. (Org.). Epistemologia da Comunicao. So Paulo: Loyola, 2003. LOPES, Maria Immacolata Vassallo. Comunicao, disciplinaridade e pensamento complexo. GT Epistemologia da Comunicao. Anais do XVI Encontro COMPS, Curitiba, 2007. MARTIN-BARBERO, J. 2009. MATON, Karl. Languages of legitimation: The structuring significance for Intellectual fields of strategic knowledge claims. British Journal of Sociology of Education, 21 (2) 2000. MEAD, George H. Mind, self and society. Chicago: University of Chicago Press, 1962. MORIN, Edgar. Cincia com conscincia. Lisboa: Publicaes Europa-Amrica, 1994. SANTOS, Boaventura de Souza. Introduo a uma cincia ps-moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1989. SCHUTZ, Alfred. Fenomenologia e relaes sociais. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. THIOLLENT, Michel. Crtica metodolgica, investigao social e enquete operria. So Paulo: Polis, 1980.