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Lourenço de Castro: a alma de um português perdido na África Gutemberg de Queirós Lima 1 “O torturador necessita da vítima para criar verdade nesse jogo a duas mãos que é a fabricação do medo” (Vinte e Zinco, p. 15). A epígrafe acima que inicia o capítulo 19 de Abril em Vinte e Zinco, segundo Gabriela Pinheiro, está vinculada ao personagem da obra, o português Lourenço de Castro. O personagem é o protagonista do romance, que transcorre em uma vila moçambicana. Agente da PIDE, assim como o pai, Joaquim de Castro, Lourenço é um personagem com certo grau de complexidade criado por Mia Couto, que apenas pela sua concepção, se torna uma figura incomum, pois como salienta Flavia Paiani, se trata de um protagonista português elegido por um escritor moçambicano. Lourenço é uma personalidade que está em volto do jogo de torturador- torturado, que acaba por predominar na obra. A princípio, um acontecimento deve ser avaliado para se compreender os traços psicológicos da personagem. No caso, a morte de seu pai, Joaquim. Joaquim levava os negros de helicóptero, de mãos amarradas e quando atingiam determinada altura, os empurrava com um pontapé para o oceano. Em um dia sob o olhar de Lourenço, Joaquim foi arremessado junto, em função de uma cilada preparada pelos prisioneiros negros. (PINHEIRO, 2009) 1 Bacharelando em Humanidades pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), Ceará, Brasil.

Lourenço de Castro: a alma de um português perdido na África

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Um ensaio sobre a dualidade psicologica da personagem Lourenço, do livro Vinte e Zinco de Mia Couto.

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Loureno de Castro: a alma de um portugus perdido na fricaGutemberg de Queirs Lima[footnoteRef:1] [1: Bacharelando em Humanidades pela Universidade da Integrao Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), Cear, Brasil.]

O torturador necessita da vtima para criar verdade nesse jogo a duas mos que a fabricao do medo (Vinte e Zinco, p. 15).

A epgrafe acima que inicia o captulo 19 de Abril em Vinte e Zinco, segundo Gabriela Pinheiro, est vinculada ao personagem da obra, o portugus Loureno de Castro. O personagem o protagonista do romance, que transcorre em uma vila moambicana. Agente da PIDE, assim como o pai, Joaquim de Castro, Loureno um personagem com certo grau de complexidade criado por Mia Couto, que apenas pela sua concepo, se torna uma figura incomum, pois como salienta Flavia Paiani, se trata de um protagonista portugus elegido por um escritor moambicano. Loureno uma personalidade que est em volto do jogo de torturador-torturado, que acaba por predominar na obra. A princpio, um acontecimento deve ser avaliado para se compreender os traos psicolgicos da personagem. No caso, a morte de seu pai, Joaquim. Joaquim levava os negros de helicptero, de mos amarradas e quando atingiam determinada altura, os empurrava com um pontap para o oceano. Em um dia sob o olhar de Loureno, Joaquim foi arremessado junto, em funo de uma cilada preparada pelos prisioneiros negros. (PINHEIRO, 2009)Esse fato demarca a entrada de Loureno a PIDE quando mais velho, em vingana e memria do pai. Aqui h ento, outro ponto a salientar da personalidade da personagem. O enaltecimento da memria de Joaquim pelo filho, que se observa na nsia de Loureno em deixar o canto do pai intacto na mesa de jantar, como se este pudesse chegar a qualquer momento. Outro importante aspecto de Loureno era a paixo que sentia por Irene, sua tia. A portuguesa, irm de Dona Margarida, representa algumas inferncias, de acordo com Gabriela Pinheiro, por sua assimilao a cultura moambicana. Irene se envolvia com o mulato Marcelino, que fora apanhado pela PIDE.O prprio Loureno o torturara, por desconfianas e pela afeio dele por sua tia. Irene dava inadmissveis licenas ao mulato Marcelino. O sobrinho se atiava de rancores. (COUTO, 1999: 77). Dessa forma, segundo Paiani, surge ento um triangulo amoroso na histria, entre Irene, Marcelino e Loureno.Entretanto, a caracterstica mais marcante de Loureno de Castro o embate de personalidade que o mesmo perpassa. Para Pinheiro (2009, p. 37) a personagem Loureno vive um conflito de personalidade, quando durante o dia, diante de todos assume um papel autoritrio e violento, mas, noite, junto me Margarida, demonstra temor e perturbao..Segundo Denise Marcon, o tambm chamado Transtorno Dissociativo de Personalidade, um estado no qual um individuo apresenta aspectos de duas ou mais personalidades, e que cada uma dessas personalidades possuem diferentes formas de interao com o meio. V-se ento que Loureno age exatamente dessa forma, pois um ator com aes discordantes. Em seu trabalho, se caracteriza como agressivo, violento. Mas noite adota um carter infantil. Essa infantilidade evidenciada na forma como sua me, Margarida, o trata. O uso de termos no diminutivo como cavalinho e almofadinha, comprova isso. Junto a essa criana interior, Loureno compartilha com a me o medo quanto as prticas religiosas dos moambicanos. A aflio de Margarida pelo excesso de salivao quando o filho dorme, e a alterao do umbigo de Loureno so provas desse temor. Na obra, Loureno sobre um grande abalo psicolgico, quando o cedo Andar Tchuvisco, um dos personagens do romance, o revela que seu Joaquim abusava sexualmente seus negros. Loureno tem suas crenas abatidas da em diante, e os sentimentos de angstia e melancolia o tomam, e isso torna-se crucial para os prximos passos dados pela personagem.Logo aps esse momento, mais um aspecto interessante demonstrado nos captulos finais, em que Loureno, aps 25 de abril e a queda do regime, se v sem caminhos. J no possui vnculos com a frica e com Portugal. Em termos, Loureno de Castro se encontra desterritorializado. Por fim, Loureno tem uma morte um tanto mal explicada. O cego Tchuvisco, o encontra morto na priso, com os negros agora libertos. E ao perguntar sobre o autor de tal ato, tem como resposta que cada qual matou o da sua raa. Para Kalewska (2008, p. 219) a morte de Loureno obceca at mesmo o narrador, mas o acontecimento no obteve um efeito de catarse, purificao. Em suma, Loureno de Castro um personagem que se desenvolve em meio a conturbaes. A morte do pai e a exaltao pelo mesmo, a paixo incestuosa pela tia, a dupla personalidade, marcada por agressividade e insegurana, e o seu trgico fim, fazem de Loureno uma figura marcante e complexa. Provavelmente propcio para um estudo mais aprofundado.

REFERNCIA BIBLIOGRFICA:COUTO, Mia. Vinte e Zinco. 2 ed. Lisboa: Editorial Caminho, 1999.KALEWSKA, Anna.Quem matou o branco em Vinte e Zinco de Mia Couto?O ser ou no ser de duas culturas num drama (quase) sem catarse. Instituto de Estudos Ibricos E Ibero-Americanos da Universidade de Varsvia (IEI e Ib UV), Polnia, 2008. Disponvel em: . Acesso em: 13 abr. 2014.MARCON, Denise.Dupla personalidade - Sintomas.2012. Disponvel em: . Acesso em: 13 abr. 2014.PAIANI, Flavia Renata Machado. Mia Couto e a reescrita da histria: o 25 de Abril em Vinte e Zinco.Revista Brasileira de Histria & Cincias Sociais,So Paulo, v. 2, n. 4, p.96-107, out. 2010. SemestralPINHEIRO, Gabriela Ferreira.Vinte e Zinco, de Mia Couto:reconstruindo a identidade moambicana. 2009. 57 f. TCC (Graduao) - Curso de Letras, Departamento de Faculdade de Letras, Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009. .