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Luciano Bedin Da Costa UFRGS

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ENSAIANDO A ORQUESTRA DE FELLINI COM DELEUZE E GUATTARI

Luciano Bedin da Costa*

[email protected]

Uma vez uma menina me perguntou: - Para onde vai a música quando você para de tocar?

Só as crianças conseguem fazer perguntas como estas... 1

Um plano cheio de mortos, com três papas enterrados. Sem eco, nada

reverbera, nada mais que uma acústica a espera. Um copista entra com as

partituras, transita por entre as estantes, distribuindo e organizando o espaço-

vazio. Violinos, viola, clarinetes, tímpanos.

- A última roda de um carro! – ele mesmo, o copista, que assim designa sua

função, como o derradeiro movimento de um contorno.

* Mestre e Doutorando em Educação (UFRGS) / Bolsista CAPES. Fones: 92155707, 32683633. Endereço: Rua Victor Silva, 125, Bairro Tristeza, Porto Alegre1

Fala retirada do filme Ensaio de Orquestra - Música, Arte e Anarquia (1979), de Federico Fellini.

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Até agora falamos deste mausoléu, corpo-orquestra-estriado, com existência

devidamente garantida por débeis contornos. Fardos lugares, com cheiro, cor e

textura de uma história ocidental, sendo Berlioz, Beethoven e Wagner os

expoentes do que hoje se entende por orquestra moderna. Nietzsche já

advertira sobre o caráter musical da vida, deste continuum sonoro de

vibrações infinitas e intensivas, onde os instrumentos e notação musical

vigentes seriam apenas uma materialização de um determinado modo de ouvir

e produzir sons. “Como se encerrássemos a imensidade do vento numa coluna

de ar, a imensidão das intensidades numa série de cordas tensionadas de

modo distinto e afinado, a imensidão do ruído cósmico em uma gama de

percussão” (Pardo, 1997, 68). Félix Guattari (1988, p.78) traz a questão da

europeização da música que, ao ser executada nas cortes reais, impôs sua lei,

suas escalas, ritmos, harmonia, polifonia e instrumentos. O que entendemos

por música, segundo o escritor, é somente mais uma dentre as músicas

criadas ao longo da história. Imposição ou não, cabe-nos agora voltar à

questão do lugar. Como no vilarejo em Anatevka, “sem as tradições, nossa

vida seria tão instável quanto um violinista no telhado...” 2. Mas por enquanto

estamos no plano da organização, interessa-nos somente a estabilidade.

2 Filme Violinista no Telhado - Fiddler on the Roof – EUA, 1971.

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Mas eis que entram os músicos, preenchendo os espaços, humanos,

demasiado humanos. Homens. Assumem seus lugares de trombonista,

violinista, contrabaixista (...) cada qual com o seu instrumento – primeiro

recorte do plano. Mesmo antes de preencher o espaço, uma segunda estria já

se faz presente: a família. Uma orquestra é composta de quatro naipes ou

“famílias” de instrumentos: cordas, madeiras, metais e percussão. Dentro de

cada família distribuem-se uma série de instrumentos. Este corpo-orquestra-

estriado constitui-se, portanto, através de relações intra/interfamiliares. Que

falem os próprios personagens3:

Singular, sua voz grave parece advertir docemente mas pode ser muito cômico. Só lembrar os palhaços de circo. É também instrumentos dos anjos – já notaste que nos quadros da renascença os anjos sempre tocam trombone? A voz de um trombone é a voz de uma criatura solitária; gosto de ouvi-la à beira-mar, no inverno, quando não há ninguém. (O trombonista)

Instrumento e instrumentista, uma relação amorosa sem hierarquias de um

suposto sujeito em relação ao seu objeto. Os lugares se embaralham e a

escolha por um ou outro já não se dá assim tão claramente:

Não fui eu quem escolheu a tuba, ela me escolheu! Eu queria tocar clarim, seu som me arrepia. Mas, voltando à tuba, o fato de ninguém a querer me comoveu. Pobre tuba! Ficava ali sozinha, como um cão vadio, parecia-se comigo, solitário, desajeitado como eu... Eu pensei que deveríamos ficar juntos e assim se fez! Foi a coisa certa, era o destino! Agora não posso mais deixá-la. Somos muito amigos. Nos momentos de melancolia ficamos na janela, ela e eu, olhando pra lua... e tocamos um som de Verdi...(O tubista)

- Não estou aqui para lhe fazer cortejos, estou aqui para tocar! - diria

mais um musicista da orquestra.

Ôpa, mudou-se o tom e a intensidade da voz. Partimos para o plano de

expressão, onde os sons começam a ser executados. Um “corpo-outro” impõe

gradualmente sua presença, embaralhando aquilo que anteriormente garantia-

lhe identidade. Lugares, famílias... O violinista pisa em falso no telhado.

3 Todas as falas dos músicos e maestro foram obtidas do filme Ensaio de Orquestra

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Os instrumentistas começam a se aquecer. Uma aranha, presa no alto do

teto, move-se com o sopro dos metais, indo de um lado para o outro. Dança o

espírito do resssentimento – Nietzsche certamente balançaria os dedos ao som

desse murmurinho4.

É verdade que existe simpatia e antipatia entre instrumentos? Deixaremos os

tambores falarem:

A simpatia e antipatia são fortes entre os instrumentos. Por exemplo, nós do ritmo nos damos bem com o contrabaixo. E por quê? Porque ele marca o tempo com precisão, nitidez, em vez de exibir-se com requintes e harpejos. O piano é um falastrão. Os violinos são exagerados. Auto-suficientes – é como o violinista e o flautista se sentem na orquestra. Isso não acontece com a gente do ritmo. Se deixar um garoto à vontade numa orquestra, onde colocará as mãozinhas? Nos pratos, nos tambores, porque lembram alegria, brincadeira e festa. Até o oboé, na sua tristeza, fica bem-humorado! (O tamboreiro)

Mas não nos esqueçamos de que estamos no plano de expressão, ainda no

mais primitivo estágio – o aquecimento – onde os sons encontram-se na

plenitude do isolamento e irresponsabilidade. Talvez agora já se possa

desenterrar os mortos, nesta incandescência das forças. Estado caótico: sons

que improvisam escalas, (des)arranjam-se em acordes, acentuam notas, numa

paisagem dissonante. Pensem na cena: cerca de setenta instrumentos sendo

tocados ao mesmo tempo, todos voltados apenas para o aquecimento das suas

próprias vozes. Um palco também para disputas e hostilidades:

Você se esforça para conseguir um som delicado e o que consegue é um barulho obsceno. É um barulho obsceno, um símbolo da obtusidade! Daqueles relacionamentos que impedem qualquer tipo de contato.(O violinista, sobre a tuba)

Calor, intensidade, desconforto... Forças em relação de estranhamento. Corpo-

caos.

O corpo sob a pele é uma usina superaquecida,e fora,o doente brilha,

4 Deleuze, em Nietzsche, Lisboa: Edições 70 (1994), traz a aranha como espírito do ressentimento, tendo como arma a teia, o fio da moral.

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irradia,por todos os seus poros,estourados.(ARTAUD, In: Deleuze e Guattari, 1976, p.17).

Sobre este cenário caótico um Lá contínuo começa a ser executado pelo oboé,

instrumento que consegue atingir maior estabilidade e sustentação da nota.

Cenário pronto para o spalla5, que, sobre o lá confiável do oboé, executa a

mesma nota no seu violino, orientando os demais instrumentos quanto à

afinação. Por um ínfimo momento ouve-se apenas esta voz, como uma

trombeta que anuncia a batalha que está porvir. Constante e duradoura, a voz

torna-se referência para as demais vozes. Sobre esta única voz, todas as

demais se agenciam. Um ritornelo territorial, dando pinceladas a um centro

que se abre frente à ameaça de um caos quase desfragmentário. É o instante

da afinação, palco para infra-agenciamentos.

5 O spalla é o primeiro violino da orquestra. A origem da palavra é italiana e significa "ombro", ou, melhor adaptando, "apoio", pois o spalla nada mais é do que o apoio do maestro, servindo-lhe, geralmente, para dar o tom a todos os outros insrtumentistas da orquestra.

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Com um centro gravitacional, o nosso corpo-orquestra-estriado-caos pode

girar, configurando outras disposições espaciais. Com centro e espaço, cria-se

a idéia de um espaço íntimo, onde as forças germinativas interiores são

protegidas, selecionadas e filtradas por este muro sonoro, a serviço de uma

obra a ser feita. “Fechem a porta”, as primeiras palavras de Plato Divorak6,

antes de começar o concerto. Mas o corpo gira apenas ao redor do seu próprio

eixo. Só agora entra o maestro:

O que é isso? Um campo de futebol? Confundiram-me com um juiz? Vocês deveriam ser castrados!Da capo! Da capo!

Da capo!7 Eis que o maestro mostra as caras, estabelecendo novas relações de

força, numa luta inevitável. Estado de alerta, silêncio esmagador; escutam-se

apenas os passos até o pódio e alguns sussurros da platéia – nem só

territorialização visa o ritornelo (Deleuze e Guattari, 1997).

Lembro-me de Koplensky, meu grande maestro. Na época eu era seu primeiro violino. Quando subia no pódio era silêncio absoluto. Olhava-me com expressão ausente, mas nós sabíamos que conhecia cada linha da partitura. Ele era a própria música! E nós

6 Plato Divorak e Frank Jorge, em Amnésia Global, disco gravado ao vivo, no Instituto Goethe (POA).7 Da capo: o mesmo que “desde o inicio”, quando se deve repetir a peça desde o começo.

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o seguíamos, felizes e trêmulos, para cumprir o rito da transubstanciação, para mudar vinho em sangue, pão em carne!(O maestro)

De posse da batuta, num singelo e cortante movimento, o maestro principia a

luta, marcando o seu andamento e reforçando as intensidades. Como se, ao

mesmo tempo, agenciasse novas conexões e se deixasse afetar pelos efeitos

produzidos. A batuta como um “corpo vibrátil” (Rolnik, 1989), dentro de um

campo de forças por ela agenciado. Personagem ou paisagem? Neste instante

interessam apenas os efeitos.

(...) Aguardávamos o primeiro movimento da batuta. Éramos uma só coisa. Um só alento. Nós e os instrumentistas unidos numa força vital. Então dava o sinal. Nada mais belo que sua autoridade! Então dava o sinal. Nós estremecíamos à simples idéia de que um erro poderia arruinar o doce ritual. Uma grande comoção e felicidade. Nós sentíamos que a nossa alegria se transmitia ao público, que não se movia, ficava imóvel, sem respirar. Nunca olhávamos o maestro. Não era necessário, ele estava ali. Nós o sentíamos. Ele estava dentro de nós! Havia tanto amor entre nós e o maestro. Um amor que, como se vê, agora se perdeu. Entre eu e meus músicos só existe desconfiança! Daí a falta de estima, o desprezo, o rancor e a raiva por algo que se perdeu e não será mais reencontrado. E assim tocamos, somente por um ódio comum! (O maestro)

Um campo de forças é estabelecido, como se os sons estivessem sendo direcionados para o maestro e sua batuta. Primeiras nuances e enlaces da obra propriamente dita, o trecho inicial da obra, overture!Com a batuta. Cada golpe nas mãos e nos dedos!(O maestro)

Ritmada, a batuta desliza em movimentos mínimos e máximos, saboreia as

nuances ao mesmo tempo em que dita a lei. As lutas agora acontecem neste

campo de forças, sobre este tatame-musical.

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O gozo estético comporta o prazer gélido do erro. À espera do momento,

acompanha os compassos na partitura, como o virar de uma ampulheta. Eis

que, um... dois... e três... a nota é empunhada, explodindo como um grito

solitário, angustiado. Em outros momentos ela simplesmente acontece, como o

sol que renasce depois de uma madrugada ao relento. Relações de tensão,

intensidade e velocidade, onde um erro pode ser catastrófico, trazendo de

volta as forças do caos. Com o erro (ou com a possibilidade de se errar) é

criado um novo centro de tensão, onde as forças convergem para encobri-lo,

culpabilizá-lo, destruí-lo ou para simplesmente se divertirem.

E os arcos não devem ser precisos? Uma nota falha no trombone e é o fim do mundo! Vivo com esta angústia de errar. Tornei-me

um sonâmbulo... (O trombonista)

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Um corpo constituído por relações de dominação e obediência, estabelecendo

uma paisagem hierárquica coesa, ainda que provisória. Vencedores e vencidos

que se fazem a cada instante, garantindo a fluidez vital necessária. Viver é

lutar, travar batalhas, militar por entre os estrondos do que Nietzsche chamou

de Grande Política8.

O violoncelo é um dos instrumentos essenciais da orquestra. Pode-se dizer que o violino e o violoncelo são a base sobre o qual erguemos o edifício dos concertos sinfônicos.(O violoncelista)

Mas o território sobre o qual edifica-se a orquestra está também em

movimento interno - intra-agenciamentos - numa espécie de guerra-civil-

musical.

O público deveria ouvir a música conosco, dentro da orquestra. Ouviria de modo diverso, como uma batalha em filme e outra verdadeira, uma guerra.( O maestro)

8 Nietzsche, em Ecce Homo: como alguém se torna o que é, São Paulo: Companhia das Letras (2000) – Por que sou um destino I - apresenta a Grande Política como a derradeira e afirmativa luta de espíritos, responsável pela transmutação de todos os valores. A vida como criação é, portanto, uma luta.

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Uma tensão constante parece circular por entre todo o corpo-orquestra que,

com centro e circunferência, circula por planos vizinhos. Mas, como

percebemos, este centro não é único e dominante, está igualmente em

movimento. Algo como uma pátria desconhecida, fonte terrestre de todas as

forças, amistosas ou hostis, donde tudo se decide. É quando forças-do-fora

entram em conjunção com este corpo, nesta música-multidão que se atualiza a

cada encontro. Como se o dentro mais próximo do corpo-orquestra se

confundisse com o fora longínquo da platéia. Por “dentro” entendemos este

ethos musical, bloco espaço-temporal nativo. Mas este se encontra envolvido

nesta dança-guerreira, abrindo brechas para aquilo que acompanha os

movimentos do outro lado do muro, deste fora, que Deleuze e Guattari

chamam de forças do Cosmos9. Por entre estes dois meios (interno e externo)

existe um meio intermediário, como a membrana de uma célula. Falamos

deste muro, onde as relações entre a pátria conhecida e o estranho íntimo se

dão. É neste entre-dois que nasce o ritmo, sempre crítico e dinâmico, sempre

na passagem entre um meio e outro.

Fomos uns idiotas ao estudar tanto! Fora maestro! Não precisamos de música, de nada! Utilizada para idiotizar o público! Não ao poder da música! Corrente de exploração, deve acabar! Não ao poder da batuta! Maestro, fora! Queremos a nossa música! (os instrumentistas)

Foram-se os sujeitos, sua invenção foi desmascarada. Apenas a música, tão

somente a música. Mas o que se entende agora por música?

Toda a canção quer se multiplicarNa multidão única se tornar.Simples prazerde ressoarno aro som da voz.Canta por nós:

9 Deleuze e Guattari, no platô 11, Acerca do Ritornelo, de Mil Platôs 4, apresentam as forças cósmicas como aquelas que não se encontram a serviço da consolidação do território mas que ao mesmo tempo entram em relação contínua com a morada. Trata-se da própria circularidade que envolve o conceito de ritornelo, onde a territorialização sempre se faz com graus de desterritorialização e reterrritorialização, o que equivale dizer que as forças terrestres (territorializantes) só se dão pela tensão causada pelas forças Cósmicas (desterritorializantes).

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cordas vocaissem caiscordas ou nós(Tom Zé)10

A música como unimultiplicidade, neste plano de imanência que comporta esta

diversidade de movimentos e pulsações. O cantar, o tocar, o soar...

Simplesmente se fazendo, sem a necessidade de apontarmos atores ou

responsáveis. Personagens rítmicos, onde o próprio ritmo é o próprio

personagem, contemplando as diversas variações musicais possíveis.

Vi a harpa pela primeira vez num sonho. Eu devia ter uns quatro ou cinco anos e não sabia o que era aquela espécie de gaivota

dourada tão pequena. (...)É uma presença humana, uma coisa, eu digo, não poderia viver em um apartamento onde ela não

estivesse comigo. Às vezes tenho a sensação de que as mãos a tocam. Eu ouço tocar, talvez seja o vento.

(O harpista)

Neste plano estamos falando de um outro tipo de expressão, agora

(de)sujeitada, com um querer intrínseco ao som. As forças pulsam, ou saltam,

como se, em determinados momentos, a própria harpa tocasse as mãos do

tocador, ou se, na plenitude de sua arrogância, tocasse ela mesma sozinha,

em conjunção com outros personagens, com outras forças-externas. Poderia

ser com o vento, ou não. Entretanto ela toca.

Mas não sejamos ingênuos em acreditar que este “se fazer” acontece assim,

genuinamente delicado e macio, como o sopro de um vento. Há beleza estética

justamente por existir esta relação de tensão entre as forças. O corpo-

orquestra-estriado, com sua lógica estriada, está ainda posto. Aliás, por todo o

andamento da música ele terá papel fundamental. Estamos falando de um pólo

apolíneo. Mas, como sabemos, Apolo não vive sem Dionísio. É quando esta

máquina-cinestésica invade e contagia outros planos, criando novas relações.

Neste ponto, não faz mais sentido falarmos de um dentro ou fora do corpo-

orquestra. Forças afetando-se mutuamente. O suor taquicárdico do 1º.

violinista afetado pelos olhos fascinados do expectador na última fila. Com o

entusiasmo transbordando o negro contorno da sua calça tergal, levanta da

cadeira estofada e grita: BRAVO! A solista sai da cena... e volta... transita por 10 Poema de Tom Zé, em Tropicalista Lenta Luta, Publifolha, 2003.

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entre o meio-aplauso e recomeça a tocar o piano. Um bis... Uma outra

música... Esta novamente-outra, repetição diferenciada... Da solista? Do

público? Do sujeito em terno tergal? O que se percebe é a música tocando...

Na medida em que novas forças entram em conexão, outros corpos assim se

fazem. Poderíamos, desta forma, falar de corpo-orquestra-público, corpo

orquestra-teatro-avenida independência, corpo-caos-tergal...

Nossa orquestra abre-se para o cosmo, é invadida por forças selvagens e

toscas. Ritornelos que não mais territorializam, mas que colhem ou juntam

forças para a partida, para a aventura de experimentação do fora. Estamos

falando de um espaço-tempo-liso, amorfo e rizomático, onde os olhos não

encontram nenhum ponto de referência ao qual possam se prender.

Vertiginosamente perigosa é a sensação provocada. Tic-Tac! Tic-Tac! Mas a

“música tem mesmo essa coisa do clock” 11, sempre havendo passagem de

uma temporalização a outra. Como o fio para Ariadne, a música volta-se para

os contornos e formas reconhecidas. Falamos do espaço-tempo-estriado.

Métrico, ordinal e formal, este opera por repartição em intervalos, com cortes

assinalados racionalmente. É o tempo pulsado, tendo como totem musical o

metrônomo, aparelho composto por um pêndulo e uma escala graduada que

serve para medir a velocidade do tempo.

Não precisamos do maestro, basta um belo metrônomo! Tic-Tac! Viva o metrônomo! Músico autônomo!(Os músicos)

Mas a música não opera apenas aristotelicamente12,outros acontecimentos são

acionados simultaneamente. Neste tatame musical coexistem intensidades

diferentes, onde as ambigüidades, contradições e paradoxos são apenas

resultados interpretativos. A vida simplesmente acontece. Assim como clama

por um novo centro-métrico-ordenador, a música pulsa com sua mais genuína

alegria. O resultado:

11 Plato Divorak, em 1-3-4 O´clock (Álbum Amnésia Global).12 Comentário de Tom Zé contido no DVD Jogos de Armar (Trama), sobre a música Passagem de Som. Tom Zé nos apresenta três níveis de acontecimentos numa mesma música (simultâneos e concomitantes) – um nível aristotélico (racional e cartesiano), um nível musical (com todas as especificações que compõem a arte musical) e um nível emocional (ligado ao “fogo da vida” daquele que escuta).

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Não ao metrônomo! Nós decidiremos a música, o ritmo, as cadências! Foi-se o tempo de tocar a música que não gostamos. Nós decidimos. Queremos criá-la e regê-la. É proibido reger! Morte ao metrônomo! (Os músicos)

Ao final das contas, apenas a música, somente a música.

Vocês estão aqui e eu também. Só o que podemos fazer agora é... As notas nos salvam... A música nos salva... Agarrem-se ás notas... Sigam as notas... Uma após outra... Como minhas mãos forem indicando... Nós somos músicos... Vocês são músicos... E estamos aqui para ensaiar... (o maestro)

E se, frente a este turbilhão estético produzido, precipícios vertiginosos

assombrarem as poucas garantias identitárias ainda existentes, possivelmente

ouviremos, do alto de um pódio qualquer, uma voz conhecida ressoando:

DA CAPO! DA CAPO! SENHORES, DA CAPO!

Referências Bibliográficas

DELEUZE, G. GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol.4. São Paulo: Ed.34, 1997.

_______. Félix O Anti Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

GUATTARI, Félix. Inconsciente Maquínico: Ensaios de Esquizoanálise, Campinas: Papirus, 1988.

NIETZSCHE, Friedrich W. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

PARDO, José Luis. Y cantan en llano. In: Revista Archipiélago 97, 67-76.

ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. São Paulo: Estação Liberdade, 1989.

ZÉ, Tom. Tropicalista Lenta Luta. São Paulo: Publifolha, 2003.

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