Luciano Elia - O Sujeito, o Real e o Social

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    O sujeito, o real e o social1

    Luciano Elia2

    I. NOTA PRELIMINAR

    Uma vez que a presente comunicao no a de um estudioso do campo daAnlise do Discurso, que mereceu de todos vocs um seminrio que, como este, visivelmente marcado por estudos e pesquisas avanadas, pareceu-nos que a nicapossibilidade de aqui trazer alguma contribuio efetiva seria ater-nos ao nosso campo,mantendo aberto, no entanto, ao dilogo e interlocuo com o campo de vocs.

    Decidimos ento conhecer, por pouco que fosse, do campo da AD. Afinal, nohaveria de ser tarefa to irrealizvel apenar do pouco tempo de que dispnhamos, haja vistaao fato de que este campo no deixa de aproximar-se de minha herana familiar 3. Do quepude compreender, o campo da AD organiza-se fundamentalmente em torno de duastendncias ou escolas principais, a europia (mais exatamente francesa), que, como no

    poderia deixar de ser, orienta-se precipuamente por um vis social, histrico-poltico eideolgico, e a norte-americana, que se norteia pelo af de esmiuar o discurso em suaforma gramatical, de modo pretensamente a-histrico.

    Valemo-nos aqui de uma antinomia de nosso campo, a psicanlise, mas que naverdade oriunda do campo da Lingstica, do qual Lacan a extraiu para lanar algumasluzes sobre a experincia psicanaltica que a dualidade enunciado e enunciao, que defineduas posies bastante distintas do sujeitoo sujeito do enunciado e o sujeito da enunciao, doato de enunciar, que, para ns, psicanalistas, situa-se no nvel inconsciente, e o lugar dodesejo do sujeitoveiculado na mensagem proferida pelo sujeito do enunciado, que no entantoo desconhece radicalmente. Utilizando esta antinomia, poderamos dizer que enquanto a

    escola americana permanece ao nvel do enunciado, e o analisa em termos de sua estruturadiscursiva e gramatical, e escola europia opera com a dualidade enunciao/enunciao,

    1Comunicao apresentada no II SEAD Seminrio de Estudos em Anlise do Discurso. O Campo da

    AD no Brasil: Mapeando conceitos, confrontando limites, organizado pela UFRGS UniversidadeFederal do Rio Grande do Sul e realizado em Porto Alegre, na Reitoria da UFRGS, entre os dias 30 deoutubro e 4 de novembro de 2005, tendo a presente comunicao sido feita na Mesa intitulada A

    Constituio da subjetividade: o singular e o social, na manh do dia 4, a convite da Profa. Dra. Maria

    Cristina Leandro Ferreira, Coordenadora Geral do II SEAD.2

    Psicanalista, Professor titular da rea de Psicanlise e Coordenador do Programa de Ps-Graduao em

    Psicanlise do Instituto de Psicologia da UERJ, Analista Membro de Escola (AME) do LAEP (Lao

    Analtico Escola de Psicanlise), da sub-sede do Rio de Janeiro.3

    Sendo nosso pai, que se chamava Slvio Elia, um dedicado estudioso do campo da Lingstica e daFilologia, deixou-nos a exigncia de no desconhecer um importante setor deste campo, que a Anlise

    do Discurso.

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    considerando, portanto, o plano de valores, histrica e politicamente construdos, quedetermina a produo discursiva (que corresponderia na Psicanlise ao plano da enunciaodo sujeito do inconsciente, desde que despido justamente de sua roupagem valorativa esignificativa para, como estrutura significante regente da enunciao, permitir situar o quepoderamos chamar um tanto abusivamente de desejo do discurso).

    Seria simplista dizer que os americanos privilegiam o enunciado e os europeus aenunciao. No. Os primeiros no operam com esta dualidade, e portanto no poderiamser reduzidos a uma de suas componentes, enquanto que os segundos operam com estadualidade e portanto so afetados pelos dois nveis que a compem.

    Na comunicao que elaboramos para este seminrio, procuramos aproximar aestrutura do inconsciente como lugar da enunciao da estrutura do social, o que se inserena problemtica especfica proposta para esta Mesa. Esperamos ser bem sucedido na tarefade transmitir-lhes algo de til aos estudos de vocs.

    II. O SUJEITO, O REAL E O SOCIAL

    O que pretendemos, assim, contribuir, mais uma vez4, para a avano daelaborao, a nosso ver sempre difcil e trabalhosa, mas por isso mesmo muito fecunda, dasrelaes da Psicanlise com o que podemos denominar de campo social.

    O vis que privilegiamos, nesta nova empreitada, metodolgico, e com isso queremos

    dizer que discutiremos a lgica, e, de certo modo, tambm a topologia, para discutir asrelaes entre esses dois campos. O vetor de construo de nosso argumento a categoriade sujeito.

    Uma das possibilidades de se pensarem as relaes entre a psicanlise e o camposocial, que chamaremos de trivial, aquela que supe esses dois campos comotopologicamente separados, e conceitualmente heterogneos. De um lado, teramos ocampo do sujeito, entendido como uma entidade psicolgica, com suas caractersticas, leisde funcionamento (inconsciente, por exemplo), modos de constituio, de relao comoutros elementos (os objetos, por exemplo), enfim, com as propriedades que a cincia quedele se ocupa define. Nesta perspectiva, o sujeito seria um recorte no interior de um modo

    de pensamento definido como individualismo. Seria tambm um objeto no sentidoestritamente cientfico do termo, e sua considerao seria a tarefa de uma determinadacincia, a psicanlise, no caso. De outro lado, teramos o campo social, plurvoco quanto sdiferentes teorias e saberes que o atravessam, mas concebido, nesta perspectivametodolgica, como um campo regido pelas leis do coletivo, sejam elas estruturalistas,positivistas, marxistas ou funcionalistas. Neste campo, no se trataria do indivduo, seja eletomado em sua dimenso consciente ou inconsciente, emprica ou racionalista, substancialou simblica. A psicanlise, nesta dmarcheincluda no campo maior das psicologias, estariaestabelecida e suficientemente distinta da sociologia, da antropologia e da cincia poltica.

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    Dizemos mais uma vez porquanto este seja um tema de nosso reiterado interesse , tendo-se constitudocomo objeto de nossa Tese apresentada para concurso de Professor Titular O inconsciente e o Social:

    sobre paternidade e delito, apresentada na PUC-Rio em 1995. [indito].

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    Ainda seguindo esta lgica, esta forma metodolgica de pensar, a psicanlisepoderia fazer incursesno campo social, como aquelas, supostas e famosas, que Freud teriafeito no campo antropolgico (Totem e tabu, Mal-estar na civilizao), sociolgico (Psicologia dasmassas e anlise do eu) e das religies (O futuro de uma iluso). Quando socialmente interessada,a Psicanlise proporia formas de tornar inteligveis, luz de seus conceitos, determinados

    fenmenos ou recortes scio-antropolgicos. A dimenso social do saber e da prticapsicanalticos seriam, assim, definidos como extenses de seu campo, ampliaes de seuuniverso conceitual, e at mesmo conexes com outros campos. O sujeito, estritamentefalando o objeto, por excelncia, da psicanlise, poderia ser extremamente enriquecido comtais acrscimos, mas, a rigor, deles no necessitaria, metodologicamente falando, para serpensado, e para que a psicanlise sobre ele pudesse operar5.

    em direo inteiramente diversa desta que acima caracterizamos que pretendemoscaminhar neste ensaio. Propomos que a psicanlise, tal como construda por seu criadorSigmund Freud, no compatvel com esta perspectiva da relao entre o psicanaltico e osocial, cuja imagem topolgica mais adequada para representar seria a da vizinhana,

    contigidade, no melhor dos casos, vizinhana amistosa, colaborativa, interativa.

    Para ns, o inconsciente freudiano requer, em sua prpria constituio, a inclusodo social, embora no de qualquer modo, e por isso a exigncia de uma discussometodolgica (que concerne, no caso, ao modus operandi com que estabelecemos certasrelaes). Se afirmssemos simplesmente que o social deve ser includo no campo doinconsciente, fazendo parte de seu prprio processo de constituio mas sem nenhumaconsiderao metodolgica, poderamos incorrer no equvoco de trazer para dentro docampo do inconsciente esta dimenso do social, acompanhada de todo o cortejo depropriedades habitualmente associadas a ele, tal como est, intacto, ou seja, configuradopelas concepes sociolgicas que compartilham do mesmo modus operandique a psicanlise

    que caracterizamos como individualista. A nica operao que estaramos efetuando seria ade enfiar dentro de um campo um objeto que normalmente seu vizinho, sem alterar omodo de conceber a ambos. A esta alterao topolgica deve corresponder, pois, umaalterao conceitual.

    Se o inconsciente requer o social, no tal como est constitudo pela sociologia,eivado de noes, valores, normas, ou seja, como conjunto de elementos de significao jconstituda. O inconsciente uma noo impensvel fora do registro inter-humano, fora docampo da alteridade, fora de um lao entre o sujeito, como plo, locusde referncia doinconsciente, e o que o envolve, o circunda, mas que, nem por isso, pode ser tomado, nesteprocesso, como um ambiente(familiar ou social) pleno de significaes prontas, construdas,

    forjadas no forno psicossocial.Por isso Lacan foi levado a utilizar a categoria de Outro, que, por estranhas e

    familiares razes ainda se afigura a alguns como hermtica, obscura ou simplesmentejargonizada, mas que o pronome indefinido substantivado que existe em todas as lnguas,palavra corriqueira, que designa a alteridade como tal, desprovida de qualquer propriedade,significao ou valor prvios, e que Hegel j havia empregado com maiscula em suafilosofia6. Lacan comea por dizer que o inconscienteque j era por ele dito estruturado comouma linguagem, operao pela qual ele j havia dessubstancializado, desbiologizado e

    5Lacan diz que a psicanlise opera sobre um sujeito,e que este o mesmo da cincia. (Cf. Lacan, J.La

    science et la vrit, [1965], incrits, Paris, Aux ditions du Seuil, 1966, pg. 858. A frase de Lacan lesujet sur quoi nous oprons en psychanalyse ne peut tre que le sujet de la science.6Anderer.

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    despsicologizado o inconsciente o discurso do Outro. Com isso, ele associou, de sada, oinconsciente com o que alteritrio, exterior ao sujeito, ainda que para tornar-se o seu maisntimo. E veio a forjar o termo neolgico xtimo (exterior ntimo) para designar incisiva eapropriadamente esta condio. Em outros momentos, Lacan dir que o inconsciente o social,e que o inconsciente a poltica.

    E Freud? Freud disse outras coisas. Mas ser que ele as disse segundo outra lgica?Ou ser que podemos sustentar que ele as disse, pelo contrrio, para indicar o nortemetodolgico a que Lacan diz, no ponto de partida de seu ensino, ter retornado? Tomamosa posio de sustentar esta segunda via.

    Freud construiu um mito, o mito do Pai da horda primitiva, que assassinado nocomeo da Histria por seus filhos, que, no lugar do pai assassinado, erigem uma lei, umapactuao coletiva, que lhes amputa da possibilidade real de gozar plenamente. Isto, paraFreud, funda o pacto civilizatrio. Quer Freud nos oferecer uma teoria antropolgica,insustentvel em seus enunciados se os tomarmos como articulando teoria e realidadeconcernida? No. Freud obrigado a construir este mito para dar conta da estrutura de seu

    sujeito, o sujeito do desejo e da culpa inconscientes, cuja constituio tem, na raiz mesmaque se situa no seu mais ntimo nvel, o lao social e civilizatrio como condio essencial.

    Em outras palavras, Freud estabelece uma articulao, indita no saber, entre oscampos da Natureza e da Cultura, segundo a qual esses dois campos so exigveis para quehaja sujeito, mas desde que despossudos de seus respectivos contedos. Ou, dito de outromodo, o atrelamento entre Natureza e Cultura cria, como os crculos de Euler que Lacanutiliza em vrios pontos de seu ensino, um espao de interseo cuja principal propriedade que ele esvazia tanto a Natureza quanto a Cultura de seu contedo significativo, retendo,de cada uma delas, o esqueleto estrutural.

    Interseo vazia, esta a casa primeira do sujeito, que, por isso mesmo, no umrebento natural que se desenvolve em interao (por mais complexa que seja) com oambiente cultural (tese de fundo de toda psicologia), nem um mero produto do meio(sociologia positivista ou psicologia comportamental ingnua).

    No trinmio bio-psico-social em que muitas psicologias acreditam afirmar suaseriedade na considerao de todas as espcies de fatores que determinam um ser humano,o que h a balela de se somarem trs classes de fatores de tal modo que, seja qual for onvel de rigor no critrio aplicado para inventariar e correlacionar esses fatores, eles jamaistero sido articulados a partir do ato do sujeito neles implicado, ou seja, tais fatores serosempre aplicadosa um indivduoou a um conjunto de indivduos por obra do saber de um

    outro, cientista humano, trabalhador ou pesquisador social. Nesse trinmio, o psicoacaba por definir-se como a mescla do bio com o social, que mantm, cada um deles,suas propriedades e sua consistncia (conceitual, significativa, valorativa, etc.).

    No caso da psicanlise, pelo contrria, o esvaziamento semntico dos campos daNatureza e da Cultura faz com que a lnula vazia do miolo de interseo exija o ato dosujeito que tem, ento, condies de se constituir ali mesmo onde inexiste a mensagem queo definiria por ele. Inexiste a mensagem, mas mantm-se as coordenadas estruturais de suadeterminao. fato de estrutura, pois, que o sujeito, determinado e no autctone, seja noentanto chamado a ser ativo, convocado ao ato, no ponto mesmo em que se fazdeterminado.

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    Se Freud abandonasse a referncia (ainda que vazia, insistimos) natureza, eleestaria fazendo uma teoria do sujeito em que este seria um ser inteiramentesimblico, ou umfruto cultural, espcie de anjo incorpreo. Se abandonasse a referncia cultura, aosocial, faria uma teoria do sujeito biolgico, com que sonham as neurocinciascomportamentalistas de hoje em via. E se, ainda, fizesse das duas referncias um

    interacionismo pseudo-advertido, nada teria feito de novo, recaindo em qualquer velho edesgastado esquema de todas as psicologias. Freud no optou por nenhuma dessas trsvias, mas adotou uma quarta, outra via: manteve a referncia a uma herana natural que, nalinguagem do mito que ele foi ento levado a criar, reduz-se aos efeitos de um assassinato.

    Assassinato do pai-natureza, do orangotango, como diz Lacan, que o pai da hordafreudiano.

    Da natureza, herdamos somentea culpa por t-la assassinado, o que no pouco,pois esta culpa gira em torno de um vazio de sentido que tem altssimo poder de causarnossos sintomas ou atos. Da cultura, recebemos a malha simblica, o esqueleto significantesem significado algum, que no cessa de nos convocar ao trabalho de significao pelo qual

    nos tornamos sujeitos e no objetos do estudo acadmico-universitrio das chamadascincias humanas. O sujeito o ponto ancorado no mais puro real, irredutvel einapreensvel ao mesmo tempo, entre essas duas ordens de determinao.

    Assim, nos fenmenos que interessam aos estudos e pesquisas daqueles que seinteressam pelos problemas humanos e sociais, - doena mental, delinqncia, risco social,abandono infantil, toxicomanias, entre outras situaes que convocam a interveno clnicaconcreta e portanto a pesquisa conseqente e igualmente comprometida com o corposocial concretoa contribuio decisiva da psicanlise ser sempre a de mostrar, antes dequalquer outra coisa, que nenhuma teoria ou saber do campo das cincias sociais ser capazde definir o sujeito, explicar seus atos, prev-los ou modifica-los. Na tessitura social em que

    o sujeito se constitui e se insere, sempre no ponto do rasgo, da fenda, do hiato que osujeito se situa. Na psicanlise, o nome daquilo que, tal como a culpa de que falamos acimacomo nica herana do assassinato da natureza, causa, age, afeta, incide e insiste mas no sechega nunca a nomear Real.Assim, o lugar do sujeito no social o lugar do real. O sujeito o real da ordem social.

    Impossvel de nomear, o real em que o sujeito se constitui tambm impossvel deeducar, governar e analisar. V-se que tais impossibilidades, registrveis em toda sociedadehumana, so as impossibilidades decorrentes do estatuto do sujeito como o real que habitaa malha social. No existe nenhuma oposio, antinomia ou dissociao entre o sujeito e osocial. Existe, sim, descontinuidade, desarmonia, desnvel. Mas esses so os nomes do

    prprio sujeito, e, assim, no podem aplicados relao que o sujeito manteria com aordem social. O sujeito , por assim dizer, a descontinuidade estruturalmente constitutivada ordem social, pelo fato de que esta ordem diz respeito unicamente a seres falantes.

    Milner se refere ao sujeito como o referente absoluto, lugar que o sujeito s vai assumirno ensino de Lacan. H, em todo saber, o ponto invariante, o referente em relao ao qualoutros elementos do saber considerado pode variar, deslocar-se, transformar-se. Napsicanlise, o referente absoluto o prprio sujeito, no porque ele fosse dotado de algumaessncia que o tornaria imutvel, eterno e verdadeiro, como o Bem platnico, mas, pelocontrrio, porque ele no tem consistncia alguma, saber algum, e portanto no temnenhuma necessidade de ser diferente do que , razo pela qual o invariante absoluto. O

    sujeito exigvele exigidopelo significante que o supe. Invariante e sem nada saber, osujeito entretanto suposto e exigvel em todo ato de um ser falante. Falar implica o

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    sujeito, e por isso que Lacan dir que o inconsciente o conjunto de efeitos da fala sobreo sujeito7.

    esta condio que lhe impe a mais radical e cruel das responsabilidades, postoque responsabilidade pelo que o sujeito no fez, no sabe ter feito ou, tendo feito e

    sabendo disso, no quis faz-lo por seu livre arbtrio e vontade prpria. Se o sujeito estnesse lugar em relao ao campo social, s lhe resta a mais aguda responsabilizao. Estetermo prefervel ao de responsabilidade por pressupor uma ao, que veicula a idia deque s podemos ser verdadeiramente responsveis pelo que ainda no sabemos.Responsabilizarmo-nos pelo que sabemos que fazemos a tarefa do gerente de umestabelecimento comercial, tal como aparece nos apelos. Quero falar com o gerente, como responsvel por isso aqui. Mas, neste caso, o sujeito est exatamente na posio opostaquela que seria a sua: se ele o lugar do real na estrutura do social, sua responsabilidadedeixa de ser um atributo seu ou de outrem, conforme o caso (que permeia uma distribuiodo tipo: disso eu sou responsvel, mas daquilo no).

    O sujeito no , portanto, responsvel por aquilo que estaria sob a gide de suacompetncia, saber ou escolha consciente. Freud, de um modo que no nos pareceandino, utiliza o termo escolha exatamente ali onde ele no poderia ser o equivalente deum juzo fundado no livre arbtrio: a escolha da neurose8. Impossvel que se escolha a neurosepor uma deciso do juzo consciente. E, no entanto, se escolhe a neurose, segundo nosensina Freud. Lacan, no movimento que acompanha a mesma perspectiva de Freud,afirma: S podemos nos responsabilizar por algo que no podemos ainda responder 9.Pelo que j podemos responder, nossa resposta no ter o mesmo valor tico. Mas, se nosresponsabilizamos justamente ali onde no temos ainda condio de responder, entotomamos a responsabilidade no sentido inconsciente e radical.

    Para concluir, diremos que o sujeito s poder afetar-se, fazer-se modificar e mudarsua posio na existncia se for dele exigido que fale, evidentemente sem saber o que estdizendo (isso parece impossvel, e , mas muito menos impossvel do que falar sabendodo que est falando, dado que o sujeito definido justamente como aquele que no s nosabe o que diz mas no sabe sequer que diz). Neste ponto se situa a mais importantecontribuio da psicanlise ao campo social. Todo saber nele produzido ter que submeter-se a uma exigncia que, mais do que tica, decorre do prprio mtodo da psicanlise: a fala,sua conduo e o saber a ser produzido tero que estar do lado do sujeito. No existe amenor possibilidade de um avano real no campo das questes sociais que envolvem, porsua condio mesma, o sujeito que fala, sem que o eixo do trabalho, clnico, institucional ecomunitrio e de pesquisa seja indicado pelo sujeito, ao ser escutado para alm do que se

    sabe sobre ele, e, mais ainda, do que ele sabe sobre si.

    7Lacan J.Position de linconscient, in crits,Paris, Aux ditions du Seuil, 1966, pg. 834

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    O termo em alemo de Freud Neurosenwahl, e encontra-se, por exemplo, no texto:9Lacan, J.O Seminrio, Livro XVO Ato psicanaltico (1967/68), Lio III, de 29 de novembro de

    1967, indito.