Upload
tranphuc
View
212
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
IMPASSES EM TORNO DA CRÔNICA
LUIZ CARLOS SANTOS SIMON (UELONDRINA)
RESUMO:
Um trabalho mais efetivo com a crônica em salas de aula
da graduação e da pós-graduação revela condições curiosas. Em-
bora ela seja identificada muitas vezes como gênero menor, como
um texto que propicia leitura agradável a partir de uma linguagem
simples, sua sistematização esbarra em questões complexas: co-
mo definir a crônica, como diferenciá-la do conto, como reconhe-
cer sua literalidade, como se referir ao “eu” que ali se manifesta
são alguns dos desafios que atravessam o caminho do estudo do
gênero, seja na pesquisa seja na sala de aula.
Tais questionamentos adquirem relevo em virtude da prá-
tica de graduandos e pós-graduandos na situação de estagiários ou
professores do ensino fundamental e médio e também de suas
próprias experiências como estudantes de quaisquer níveis em
que se sobressaem tendências a estabelecer limites nítidos para
definição e classificação de textos literários e a supervalorizar a
terminologia no trato com a literatura. Assim, o objetivo deste
trabalho é contribuir para a diminuição dos impasses relativos ao
estudo da crônica, sem sacrificar seu caráter heterogêneo nem
alimentar hábitos simplistas na aprendizagem.
O referencial teórico é composto por material produzido
por críticos que já se propuseram a teorizar sobre a crônica: Afrâ-
2
nio Coutinho, Antonio Candido, Davi Arrigucci Jr., Eduardo Por-
tella, Massaud Moisés, entre outros. Pretende-se, ainda, através de
alusões a determinadas crônicas, tornar mais concretas as possí-
veis saídas para a problematização do fenômeno.
O lugar da crônica nos estudos literários e nas práticas pe-
dagógicas referentes ao ensino de Português e Literatura é marca-
do, em diversas situações, por desencontros. Se a crônica aparece
com freqüência em livros didáticos, especialmente aqueles dirigi-
dos ao aluno do Ensino Fundamental, é também evidente seu
baixo prestígio nos currículos dos cursos de Letras, sobretudo se
houver uma comparação entre o destaque conferido à crônica e o
foco mais privilegiado que se destina ao poema, ao romance e
mesmo ao conto. Também nos estudos literários a questão é signi-
ficativa: embora ainda se encontrem avaliações negativas sobre o
gênero e se constate a escassez de estudos que assumam o papel
analítico da produção dos cronistas, no âmbito da teorização, o
elenco de pesquisadores é altamente respeitável. Podem ser cita-
dos aqui nomes com grande projeção: Afrânio Coutinho, Antonio
Candido, Eduardo Portella, Massaud Moisés e Davi Arrigucci
Júnior. Isto sem mencionar vários outros nomes de estudiosos
que, mais recentemente, têm se debruçado sobre este objeto de
pesquisa. As conseqüências deste descompasso materializam-se,
3
de forma mais nítida, na prática, seja na prática científica seja na
prática pedagógica. Assim, passo a uma auto-apresentação no que
se refere a meu lugar e papel particulares diante destas práticas,
com o intuito de expor com maior precisão os impasses observa-
dos.
Sou professor do Ensino Superior, com dedicação exclusi-
va desde 1995, atuando nas áreas de Teoria da Literatura e Litera-
tura Brasileira. Antes disso, exerci, intensamente, durante sete
anos, o magistério no Ensino Fundamental e Médio, nas Redes
Pública e Particular; em ambas no matutino, no vespertino e no
noturno. A partir de 1999, comecei a me interessar pela crônica,
incluindo-a de forma mais destacada em projetos de pesquisa e
nas aulas de Graduação e de Pós-Graduação (lato e stricto sensu).
De 1999 até 2005, ministrei, em todos os anos, a disciplina de
Literatura Brasileira para alunos da quarta série do curso de Le-
tras, isto é, estudantes que estavam na ocasião obrigatoriamente
envolvidos também com o estágio no magistério. Esta circunstân-
cia, acredito, contribui para acentuar meu papel de professor e
desfazer qualquer eventual suspeita de que minha relação com os
alunos se construía exclusiva ou principalmente pela condição de
pesquisador. Não era nem é possível que um professor, naquela
situação, se desligasse das questões didáticas referentes a níveis
de ensino, como o fundamental e o médio, ainda que sua inserção
4
não fosse direta em disciplinas como Metodologia e Prática de
Ensino de Português ou no Estágio Supervisionado.
Tais experiências fizeram vir à tona muitos questionamen-
tos no que diz respeito às particularidades da crônica, as suas
articulações com o conjunto de manifestações literárias em geral e
as suas semelhanças com o conto especificamente.
Constantemente, surgiam dúvidas quanto a podermos atri-
buir literariedade a determinadas crônicas, quanto aos critérios
para reconhecermos um texto como crônica, quanto à adequação
de uma definição geral para o gênero, quanto ao estabelecimento
de fronteiras entre o conto e a crônica (afinal, por que um deter-
minado texto era chamado de crônica e não de conto?) e quanto
ao uso da terminologia dos estudos literários e narrativos (seria
apropriado, por exemplo, falar em narrador e personagem em
alguns daqueles textos?) para nomear certas categorias localiza-
das no interior das crônicas.
Manifestar estas dúvidas era decorrência da inquietação dos
alunos, de sua curiosidade, de seu desejo de aprender mais, de
enfrentar desafios, mas também era produto de uma aprendiza-
gem caracterizada pelo apego excessivo a classificações, nomen-
claturas e estabelecimento de fronteiras rígidas entre coisas apa-
rentemente muito diferentes que, no entanto, não o são. Não se
pode ignorar que aqueles alunos (concluintes da graduação em
Letras, portanto, no mínimo estagiários, e pós-graduandos) já
5
mantinham contato próximo com a sala de aula, nos diversos
níveis de ensino, se defrontando, por sua vez, com o instinto clas-
sificatório de seus próprios alunos. Além disso, cabe salientar que
os muitos anos de escolarização destes alunos/professores talvez
não tivessem sido suficientes ainda para libertá-los de suas expe-
riências de aprendizagem que elegem a terminologia correta como
a grande meta. Observemos, portanto, como a pesquisa pode con-
tribuir para que se enfrente com mais vigor o desafio de trabalhar
com a crônica.
O fato de ser a notícia um mote indiscutível para as crôni-
cas, encarado aqui como um pressuposto tácito, não deve nos
afastar da verificação de outros possíveis pontos de partida que
impulsionam os cronistas. Aliás, logo de início, é preciso lembrar
o título de um livro de crônicas de Carlos Drummond de Andrade
(1993): “De notícias e não-notícias faz-se a crônica”. É mesmo
previsível que algumas crônicas se desenvolvam tendo como base
uma notícia, pois o jornal sobrevive da informação recente e ain-
da como constata o professor Vázquez Medel (2002, p. 15): “as
figuras do escritor e do jornalista (...) às vezes coincidem com a
mesma pessoa.”. Portanto, uma familiaridade entre a crônica e seu
veículo não deve causar qualquer estranheza. Mesmo assim, a
diversidade dos textos que recebem o nome de “crônica” exige o
esclarecimento sobre a ocorrência de outros motes além da notí-
cia.
6
Cabe ressaltar, quanto a este ponto, que muitas crônicas se
distanciam desta estrutura bastante representativa do gênero, isto
é, a ligação íntima com a notícia. Por vezes a direção é outra,
caracterizada pelo comentário de fatos ou pela exposição de idéi-
as e/ou sentimentos. São textos que se identificam com a ênfase
narrativa dos contos, como grande parte da produção de Fernando
Sabino, Stanislaw Ponte Preta e Luis Fernando Verissimo, por
vezes ainda privilegiando o diálogo, como diversas vezes fez
também Carlos Drummond de Andrade. Nestas situações é prefe-
rível não se falar em mote, seja pela dificuldade de localizar um
ponto de partida explícito para o restante do texto seja pelo risco
de escolher um diagnóstico pouco adequado, uma vez que pre-
domina o caráter ficcional, sendo, portanto, inconveniente propor
correlações com a realidade e assim deslizar para equívocos como
intenção do autor. A crônica que recorre com intensidade ou ex-
clusividade ao componente fictício se diferencia daquela em que
sobressai um eu disposto a confessar suas motivações. Não se
trata de confundir esta primeira pessoa que se manifesta no texto
– a quem nos referimos como eu do cronista – com a figura real
do autor, embora esta associação seja até possível por algumas
marcas textuais; nem é o caso de interpretar as motivações ex-
pressas como experiências autênticas. De qualquer modo, as notí-
cias e demais eventos ou situações que identificamos como motes
de crônicas são referidos naquelas modalidades mais próximas
7
dos comentários e estão ausentes das crônicas mais inclinadas
para o ficcional.
Um autor central para proporcionar a avaliação da crônica,
no século XX, é Rubem Braga. Vejamos a princípio como o críti-
co literário Davi Arrigucci Júnior (1987, p. 49) se refere ao cro-
nista capixaba: “(...) a sensibilidade de Braga para a poesia das
coisas que se perdem parece ter-se aguçado no trato profundo
com o próprio meio moderno que escolheu para se exprimir, co-
mo se o jornal lhe tivesse afinado o senso do instantâneo e do
perecível”. O que se observa na citação é uma demonstração do
fascínio da crítica literária brasileira com um gênero que desfru-
tava de êxito entre as décadas de 50 e 80. De fato, no período
circulavam pelos jornais textos de Drummond, Sabino, Paulo
Mendes Campos, Antônio Maria, Stanislaw Ponte Preta, entre
outros. O que desafiava e estimulava os críticos literários não era,
contudo, o sucesso editorial, mas a noção expressa no trecho de
Arrigucci pela palavra “sensibilidade”, que tinha em Braga seu
representante mais significativo. Sem dúvida, foi esta capacidade
de imprimir lirismo à crônica brasileira da época que instigou e
seduziu a academia. Entre 1987 e 1991, anos depois das mortes
de Antônio Maria, Ponte Preta e Vinicius, partem também
Drummond, Paulo Mendes Campos e Braga. A passagem do tem-
po e estes desaparecimentos dão margem a declarações como a
seguinte, do jornalista Daniel Piza (2002, p. 136): “É muito raro
8
(...) ver um colunista descrever seu dia de caminhada sob o céu
azul do Rio de Janeiro, à maneira de um Braga....”.
Se combinarmos as avaliações de Arrigucci e Piza com as
informações sobre as mortes dos cronistas mencionados, chega-
remos a um quadro segundo o qual o lirismo era um aspecto al-
tamente valorizado na crônica dos anos 50 aos 80 e que depois
disso não só o lirismo entra em queda enquanto marca do gênero,
mas também a crônica em si perde projeção na imprensa e parte
do estatuto literário. A constatação não é esdrúxula nem desligada
do que se pensa no universo acadêmico e no meio jornalístico,
porém algumas questões devem ser ressaltadas: primeiramente, já
na fase de ouro da crônica, o humor era um elemento expressivo
nas produções de autores como Sabino, Stanislaw Ponte Preta e
Antônio Maria, sem falar nos sorrisos que ainda acompanham as
leituras dos textos de outros cronistas mais identificados com o
lirismo; em segundo lugar, é preciso admitir que crônicas de no-
vos autores – alguns nem tão novos assim – continuam freqüen-
tando as páginas de jornais e revistas e estas crônicas muitas ve-
zes são compiladas em livros que têm êxito estrondoso de vendas.
Mesmo assim, entre o cronista de grande projeção, na imprensa e
para a crítica, de trinta ou quarenta anos atrás (Rubem Braga) e o
cronista da vez há uma década aproximadamente (Luis Fernando
Verissimo), sobressaem muitas diferenças. No mínimo é necessá-
rio perceber que o lirismo de Braga já não se encontra em Veris-
9
simo e que o humor de Verissimo não é o mesmo que existia nos
textos de Braga. Espera-se aperfeiçoar o diagnóstico, endossando
a reflexão do jornalista Marcelo Coelho (2002, p. 156) para quem
houve uma “modificação do gênero”, embora não se deva encon-
trar muita propriedade na idéia de “‘declínio da crônica’”, mesmo
entre aspas. Cabe, enfim, reconhecer que a concepção de uma
crônica lírica sobrevive nos dias atuais, ainda que com menos
freqüência e intensidade, através das manifestações de Carlos
Heitor Cony e Affonso Romano de Sant’Anna, entre outros.
A esta altura, já se pode ter uma noção de como se orien-
tam críticos literários, jornalistas e pesquisadores de jornalismo a
respeito dos vínculos da crônica com o jornalismo e com a litera-
tura. A avaliação do cronista como intelectual contemporâneo
depende, porém, de uma maior precisão na coleta destas diversas
orientações. Arrigucci (Op. cit., p. 50), por exemplo, faz o seguin-
te retrato do cronista Rubem Braga: “um artesão ilhado no meio
da indústria da informação”. A imagem é bela e interessante, tem
o mérito de exaltar o estilo e a linguagem de Braga, mas gera o
perigo de colocá-lo numa condição de isolamento que não se con-
cilia muito com a relação íntima mantida entre crônica e jornal.
No afã de selecionar qualidades do gênero tal qual praticado por
um escritor como Braga – e é bom enfatizar que esta iniciativa de
valorização da crônica não é um procedimento comum nos estu-
dos literários e ao mesmo tempo é medida essencial para garantir
10
sua visibilidade e relevância –, surge o risco de distanciar exces-
sivamente o exercício cronístico do veículo que o projeta.
Esta distância se reflete também nas teorizações de outros
autores como Eduardo Portella (1958, p. 114): “... o enriqueci-
mento poético da crônica é uma maneira das mais eficazes de
fazê-la transcender, de fugir ao seu destino de notícia para cons-
truir o seu destino de obra de arte literária” e Massaud Moisés
(1985, p. 104), para quem o objetivo da crônica “reside em trans-
cender o dia-a-dia pela universalização de suas virtualidades la-
tentes, objetivo esse via de regra minimizado pelo jornalista de
ofício”. Não será por acaso que o verbo “transcender” aparece nos
dois trechos como também não é casual o fato de estarem as duas
citações reunidas aqui lado a lado. A idéia de transcendência
pressupõe superação de etapas, ultrapassagem e até superioridade,
o que pode nos levar a confirmar a hipótese de hierarquia e dis-
tanciamento entre crônica e notícia, literatura e jornalismo.
Um pouco mais comedida e menos elitista, a perspectiva do
jornalismo se preocupa sobretudo em salientar diferenças. José
Marques de Melo (2002, p. 147) assim se pronuncia sobre a crô-
nica: “(...) sua motivação principal é o conjunto dos fatos que o
jornal acolhe em suas páginas e colunas (...), sua função é a de
apreender-lhes o significado, ironizá-los ou vislumbrar a dimen-
são poética não explicitada pela teia jornalística convencional”. O
mesmo fundamento, estabelecer divergências estruturais e fun-
11
cionais entre crônica e notícia, leva Marcelo Coelho (Op. cit., p.
156) a se referir à crônica como “uma espécie de avesso, de nega-
tivo da notícia”. Mais uma vez é preciso reconhecer que o con-
fronto entre as duas modalidades de texto que aparecem no jornal
conduzirá necessariamente ao levantamento de diferenças, afinal
o cronista não repete os procedimentos do repórter e os especia-
listas desempenham suas funções de identificar peculiaridades a
partir de um exame comparativo entre os textos.
É possível, entretanto, detectar ainda em ambas as perspec-
tivas – a dos estudos literários e a dos estudos jornalísticos – um
olhar que contemple a relação mais entrançada da crônica com a
literatura e com o jornalismo. Vejamos como Afrânio Coutinho
(1986, p. 134) analisa esta intimidade: “A crônica será tanto mais
literária quanto mais fugir às exigências do espírito de reporta-
gem, atingindo o melhor de sua realização formal quando conse-
gue fundir os supostos contrários – a literatura e o jornalismo ...”.
A percepção de se referir às duas áreas como “supostos contrá-
rios” é reflexo da integração da qual a prática da crônica não con-
segue ou não deve se desvencilhar, por mais que o início da asser-
tiva pareça sugerir um afastamento como requisito para o êxito
literário da crônica. Vázquez Medel (Op. cit., p. 18-9) também
contribui com uma avaliação destas convergências contemporâ-
neas entre literatura e jornalismo, citadas inclusive no título de
seu artigo, sustentando que nem a criação literária em nossos dias
12
está mais tão próxima das grandes obras, “nem a atividade jorna-
lística (apesar da degradação de muitos de seus agentes e da proli-
feração de um jornalismo marrom) refere-se tão somente a essas
triviais questões...”. Embora a análise não se detenha na condição
específica da crônica, o que está em jogo é esta caracterização
intermediária do gênero e o questionamento sobre a redefinição
dos lugares ocupados pelas práticas literárias e jornalísticas na
contemporaneidade.
Ao se debruçar sobre o conto brasileiro do século XX, Fá-
bio Lucas (1983, p. 123) não se esquiva de um confronto entre
seu objeto e a crônica. Para o autor, os contos “não (...) se despo-
jam de tensões como a crônica. Falta à crônica a intenção do efei-
to, a preparação da surpresa dramática, o jogo de vontades e apti-
dões em conflito, a intencionalidade do episódio inventado (...) A
crônica permanece como um subgênero do jornal...”. Resguarde-
mos as tensões para serem discutidas daqui a alguns instantes. É
inevitável observar o tom depreciativo com que Lucas se refere à
crônica. O gênero é despojado de alguma coisa, ao gênero falta
alguma coisa, o gênero não é gênero; é subgênero. Por mais que
haja um esforço de distinção entre o conto e a crônica, e que este
esforço ilumine algumas diferenças relevantes, a linguagem utili-
zada denuncia um menosprezo à crônica, que, segundo o autor,
não estaria à altura dos recursos do conto.
13
O questionamento do caráter literário da crônica torna-se,
assim, um dos maiores indícios de que, nos confrontos com ou-
tros gêneros, ela algumas vezes sai perdendo. A fronteira, portan-
to, se situaria não entre a crônica e o conto, ou a crônica e a poe-
sia, mas antes disso, entre a crônica e a própria literatura. Neste
sentido, é bastante interessante verificar as contribuições de Afrâ-
nio Coutinho (Op. cit., p. 117). No início de um capítulo de A
literatura no Brasil, o autor deixa a crônica fora de um conjunto
de “gêneros de natureza estritamente literária”. O que poderia ser
entendido como mais uma das manifestações de resistência ao
gênero é, no entanto, melhor explicado como um cuidado face ao
polimorfismo da crônica. Ao longo do capítulo, Coutinho faz
referências à evolução histórica do gênero dentro e fora do Brasil.
Neste desenrolar da crônica, é seu perfil híbrido que ganha evi-
dência. Assim, após constatar que diversos cronistas investem na
qualidade literária de seus escritos, Coutinho (Ibidem, p. 135)
chega ao final de seu texto com uma expressão extremamente
feliz para traçar a imagem da crônica: trata-se de um “gênero
anfíbio”. Esta prerrogativa torna este tipo de texto apto a circular
com grande fluidez não só pelo jornalismo, mas também pela
literatura.
Passando de uma discussão mais geral sobre a crônica para
um olhar sobre o desempenho de Drummond neste gênero, verifi-
camos que a crítica literária se mune de perspicácia para esboçar
14
as fronteiras com grande maleabilidade. Antonio Candido (1993,
p. 19), longe de reforçar a avaliação da crônica como um gênero
menor, estabelece um quadro de equivalência entre os escritos de
Drummond: “... na sua poesia há ficção e crônica; na sua crônica,
poesia e ficção; na sua ficção, crônica e poesia (...)”. Também
Gilda Salem Szklo (1995, p. 80), ao confrontar as produções de
Drummond e Bandeira nas crônicas e nos poemas, reconhece uma
identidade entre os registros: “Há em suas crônicas (...) uma dedi-
cação integral à poesia. Da poesia à crônica, os limites são tênues
para um e para outro”.
Este panorama tranqüilo em que se vislumbram diversos
vínculos entre crônica e poesia poderia fazer supor uma quase
ausência de diferenças entre os dois gêneros ou um tratamento
equânime para a crônica no que diz respeito ao valor literário.
Como as duas hipóteses seriam equívocos, é hora de retomarmos
as tensões que Fábio Lucas vê apenas no conto. É preciso anteci-
par que não se trata de contestar a presença de tensão no conto
nem de reivindicá-la como elemento constitutivo da crônica. O
contista Julio Cortázar (1993, p. 158), avesso a teorizações, apon-
ta justamente a tensão como um dos poucos componentes do con-
to moderno. Antonio Candido (Op. cit., p. 19), por sua vez, logo
após consentir que, em Drummond, crônica, poesia e ficção se
interpenetram, alerta para as peculiaridades de cada texto do au-
15
tor: “(...) a prosa serviria para repassar a mesma matéria da poesi-
a, mas num nível menor de tensão.”
É curioso verificar como o termo “tensão” comparece com
tanta freqüência em artigos que fazem referência à crônica. Espe-
cialmente, se levarmos em consideração que o termo é trazido
para o texto crítico para que se ressalte sua ausência no texto lite-
rário. Cabe salientar que a inexistência da tensão nas crônicas é
resultado de um percurso típico do gênero: partir dos fatos miú-
dos e prosaicos para revelar traços líricos. É importante, porém,
que se desconfie de uma possibilidade de tensão latente, uma
tensão que se esconde por trás da miudeza e do cotidiano. Uma
tensão que aguarda um rasgo de atenção por parte do leitor para
que este a agarre.
Arrigucci (Op. cit., p. 55) menciona ainda uma outra espé-
cie de tensão que ronda o gênero, ao falar de Braga: “Com ele, a
tensão tão característica da crônica, entre o caráter puramente
circunstancial e o propriamente literário, tende a se resolver, mais
que na maioria dos cronistas rotineiros, em proveito da literatura”.
Reaparece a tensão, trazendo de volta a discussão sobre literarie-
dade na crônica. A insistência com que discute este aspecto de-
corre, com certeza, de um dos pólos que causam a tensão citada
por Arrigucci: a circunstância. É na matéria-prima da crônica,
ligada à simplicidade do dia-a-dia, que reside a relutância de parte
da crítica quanto ao gênero, sobretudo quando o confronto ocorre
16
com a grandiosidade dos romances e com o sublime da poesia. Se
a crônica não vai mesmo nunca atingir a amplitude dos projetos
de uma narrativa mais longa, o efeito lírico pode ser perseguido
através de vias não muito convencionais.
No que diz respeito à célebre confusão entre conto e crôni-
ca, podemos apresentar algumas sínteses no sentido de diminuir a
repercussão desta polêmica. A crônica não se restringe a um mo-
delo único, isto é, há crônicas que passam longe das inclinações
para a narrativa, preferindo o comentário ou a digressão lírica.
Este modelo de texto não cria uma semelhança excessiva com o
conto. No entanto, a diversidade das crônicas permite que haja
também textos que se instalam nas fronteiras entre estes gêneros,
como ocorre em textos como os de Sabino, Ponte Preta e Veris-
simo. Neste caso, a identificação de uma tensão ajuda pouco, pois
assim como se pode verificar a tensão nos textos narrativos destes
cronistas, nada garante esta presença em alguns contos contempo-
râneos. Assim, é importante reconhecer o acentuado grau de se-
melhança na composição estrutural entre textos denominados
como crônicas e textos identificados como contos, sem fabricar
uma falsa diferença entre eles. É possível, contudo, insistir que,
mesmo nas crônicas mais narrativas sobressai a ênfase no cotidia-
no como um traço que, embora não exclusivo da crônica, é capaz
de sustentar um aspecto comum a tantos textos diferentes entre si
que recebem esta denominação.
17
Ao conceder entrevista para o jornalista Araken Távora, em
meados dos anos 80, Rubem Braga explica sua falta de desejo
para fazer uma incursão pelo gênero das memórias. Segundo o
autor, suas memórias já estavam escritas “a varejo”, em alusão ao
papel exercido pelas crônicas publicadas ao longo de cinqüenta
anos de carreira. Em seguida, Braga ainda declara que as memó-
rias constituem um gênero falso e ingrato, haja vista que ninguém
conta a história como de fato ocorreu, isto é, a verdade comparece
entre acréscimos, ajustes e omissões. Estas afirmações apontam
para um impasse no que se refere às tentativas de identificação de
um caráter autobiográfico nas crônicas brasileiras. Se é possível
admitir o matiz memorialista nas crônicas e no seu conjunto, é
também necessário conviver com o falseamento dos escritos que
não se submetem à condição de reproduções fiéis dos fatos e sen-
sações ali expostos.
Antes que se entenda a crônica como uma espécie de auto-
biografia em pílulas, é preciso lembrar a idéia de que a crônica é
um gênero bastante suscetível ao diálogo com outras manifesta-
ções escritas, sejam elas literárias ou não. Assim, reivindicar tra-
ços autobiográficos em sua constituição deixa de ser atitude com-
prometedora, caracterizando-se como apenas mais uma das corre-
lações possíveis. Para investigar tais marcas autobiográficas, no
entanto, será preciso ressuscitar o autor, assassinado por Roland
Barthes (1988), há mais de trinta anos. Tão relevante quanto a
18
ressurreição do autor é a retomada da repercussão das idéias de
Barthes para os estudos literários nas décadas de 60, 70 e início
dos anos 80.
Decretar a morte do autor em 1968, ano da publicação do
artigo, significava exaltar a escritura e reagir contra um “império”
que ainda vigorava na crítica literária. Desse modo, Barthes pro-
curava conduzir os exercícios de análise literária para longe do
biografismo, para outros rumos em que o texto se afirmasse como
principal objeto a ser focalizado. Em breve, vulgarizou-se e reto-
mou força a noção de que o autor deveria ser afastado das preo-
cupações analíticas, criando espaço para distinções essenciais
entre autor e narrador, quando se tratava de romances e contos, e
entre poeta e sujeito lírico, quando os textos em questão eram
poemas.
O impacto das reflexões de Barthes foi enorme. Ainda que
se argumente haver pontos de contato entre essas idéias e outras
correntes críticas antecessoras, como o formalismo russo e a
estilística, por exemplo, a linguagem pouco convencional do
crítico francês e o título bombástico de seu ensaio são possíveis
explicações para tanta influência e para a proteção contra o
esquecimento. Mesmo no século XXI, quando se assiste ao
destaque adquirido pelos Estudos Culturais e à recuperação do
contexto sendo reintroduzido nas análises literárias, professores e
alunos de Letras continuam convivendo com limites e cautelas, ao
se depararem com os imbróglios autor/narrador e poeta/sujeito
19
rem com os imbróglios autor/narrador e poeta/sujeito lírico. É
possível, portanto, ousar a seguinte imagem: se o autor não mor-
reu ou se ele já foi ressuscitado, sua vitalidade não foi totalmente
recuperada; é como se ele estivesse doente, preso a um leito, fe-
chado no quarto, com raros momentos de lucidez; alguns amigos
visitam-no regularmente, outros o abandonaram, considerando-o
um inválido; alguns ouvem sua voz, outros desprezam-na como
se ela não passasse da expressão de delírios.
Se repudiar o autor, apegando-se a categorias como narra-
dor e sujeito lírico, torna-se a atitude mais recomendável diante
de romances, contos e poemas, o que dizer desse gênero flutuante
que é a crônica? Não é demais retomar a variedade de manifesta-
ções do gênero: enquanto existem crônicas idênticas ou pratica-
mente iguais a contos, no que se refere a sua adesão à organização
narrativa, outras abdicam do narrar, constituindo-se em comentá-
rios ou reflexões, com mais ou menos lirismo; além de uma ter-
ceira modalidade, bastante comum, composta por uma mescla de
narrativa, comentário e lirismo. Isso significa que, muitas vezes, o
uso de um desses termos (narrador ou sujeito lírico) poderá se
revelar inadequado para designar aquele “eu” que se expressa em
determinadas crônicas. Não se trata de imediatamente adotar o
termo “autor”, mas observa-se a necessidade de atenção especial
com uma terminologia que não pode ser fixa para cumprir seu
20
papel sem conduzir a equívocos quando o objeto pesquisado é a
crônica.
Entre os modelos de crônica citados, o que mais nos inte-
ressa, por sua grande representatividade quanto ao que se entende
e se valoriza como crônica, é o último, aquele que combina narra-
tiva, comentário e lirismo. Não se trata de menosprezar as demais
modalidades. É preciso reconhecer, por exemplo, que a crônica-
conto teve e tem grande apreço do público leitor e da crítica espe-
cializada. Em meados dos anos 80, Braga revisou seus textos para
que eles figurassem na coleção Os melhores contos, da Editora
Global. Há alguns anos, Veríssimo, um autor conhecido princi-
palmente como cronista, desfruta de êxito comercial e de certo
apreço da crítica, proporcionados por sua habilidade para contar
histórias inusitadas. E ainda na antologia Os cem melhores contos
brasileiros do século, organizada por Italo Moriconi (2000), figu-
ram textos desses dois cronistas e também outros de Fernando
Sabino. Acredita-se que esses dados reforçam a tese de que as
crônicas narrativas são bem acolhidas tanto pelos leitores quanto
pelos críticos.
Porém, a reunião da narrativa com o comentário é que con-
sagrou o gênero crônica, atraindo o interesse da crítica pelas par-
ticularidades literárias ali presentes, e tendo seu auge entre as
décadas de 50 e 70, ainda que o surgimento de Braga tenha ocor-
rido antes e que alguns cronistas daquela geração tenham sobre-
21
vivido até recentemente, como Sabino, falecido em 2004. Desper-
ta a curiosidade nesse tipo de crônica o uso predominante da pri-
meira pessoa, já não tão presente nos textos com inclinação para a
narrativa, quando as histórias contadas muitas vezes prescindem
do “eu” e se detêm sobre breves aventuras e desventuras de outras
personagens, como nas Comédias da vida privada, de Verissimo
(1995). A crônica que funde acontecimento e comentário do acon-
tecimento é propícia como espaço para aquilo que o “eu” vê, para
o que o “eu” fica sabendo ou ainda para o que acontece com esse
“eu”, desdobrando-se em seguida para a expressão dos sentimen-
tos, comentários e reflexões face ao que foi – às vezes, muito
brevemente – narrado.
É neste sentido que termos como “personagem”, “narrador”
ou mesmo “autor” podem não ser os mais apropriados para refe-
rências aos seres citados em certas crônicas. Primeiramente, é
necessário ressaltar que muitas vezes esse “eu” se abstém de nar-
rar, optando apenas por comentar ou expor sentimentos. Além
disso, por mais que o “eu” em certas crônicas seja identificado
como um escritor, como um cronista e às vezes até como alguém
cujo nome é Rubem Braga ou Paulo Mendes Campos, este “eu” é
uma criatura do cronista, criação que se desvincula de qualquer
compromisso verídico ou autobiográfico, pois se inscreve em um
modelo de texto que flerta também com situações fictícias. Em
tais circunstâncias, o que proponho é a expressão “eu do cronis-
22
ta”, uma terminologia que dá a vantagem de desatrelar o autor das
crônicas daquelas situações e emoções expostas nos textos.
O trabalho com a crônica nos diversos níveis do ensino
(fundamental, médio e superior) é algo que não deve ser descarta-
do. O fato de ser a crônica um texto curto já constitui um trunfo
para diversas situações pedagógicas em que o professor não dis-
põe de tempo para recorrer a textos mais longos. Além disso, não
se trata meramente e apenas de um texto curto. Os assuntos abor-
dados nas crônicas são muito variados: mulher, amor, cidade,
infância, política são alguns dos temas usados e abusados pelos
cronistas. Há, ainda, uma farta produção de textos que tratam do
próprio fazer poético, do cotidiano do escritor e da ambigüidade
experimentada pelo cronista entre o meio jornalístico e o universo
literário. Os recursos lingüísticos e literários utilizados também
são diversificados, proporcionando aos leitores contato com for-
mas ricas e múltiplas de elaboração da linguagem. A liberdade de
que o cronista dispõe materializa-se muitas vezes através da con-
cisão que conduz ao inesperado de um desfecho, de uma cena
brevemente descrita, ou de algo que fica por dizer, algo a ser pre-
enchido e completado pela imaginação e perspicácia do leitor. Em
outras situações, é o lirismo que vem à tona, representado pelo
uso da linguagem poética, termos e frases carregados de sensibi-
lidade que poderiam freqüentar versos escritos pelos melhores
poetas.
23
Assim, resta ao professor incumbir-se de uma aproximação
com a pesquisa para tornar este trabalho o mais produtivo possí-
vel. É esta articulação que permite, por exemplo, a compreensão
da heterogeneidade das crônicas, a condição de que se atribui o
mesmo nome para textos muito diferentes entre si: há textos nar-
rativos, comentários de acontecimentos, exposições líricas, diálo-
gos e crônicas que fundem várias dessas características ou todas
elas em um espaço que não ultrapassa duas páginas. Isto torna
difícil uma definição sucinta para o termo “crônica”, mas não
impede que o cotidiano se afirme como um referencial geral para
estes textos até mesmo para auxiliar na comparação entre as crô-
nicas narrativas e o conto. O contato com a pesquisa também
contribui para tentar localizar o gênero no conjunto das produções
literárias. O reconhecimento de autores como Rubem Braga, Car-
los Drummond de Andrade e Paulo Mendes Campos não é o
mesmo a ser atribuído a outros cronistas contemporâneos ou de
algumas décadas atrás. E o que está em jogo não é apenas a assi-
natura que se segue à crônica, mas a concepção do texto, a reali-
zação com a linguagem que se constrói no texto. É em busca des-
tas construções mais criativas que o professor deve seguir para
que as crônicas selecionadas se firmem como manifestações lite-
rárias instigantes aptas a introduzir o leitor e o estudante no mun-
do fascinante da literatura.
25
Referências bibliográficas:
ANDRADE, Carlos Drummond de. De notícias e não-notícias
faz-se a crônica. 6. ed., Rio de Janeiro: Record, 1993.
ARRIGUCCI JR., Davi. Enigma e comentário: ensaios sobre literatura e experiência. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
BARTHES, Roland. A morte do autor. In: ______. O rumor da
língua. Trad. Mario Laranjeira. São Paulo: Brasiliense, 1988.
CANDIDO, Antonio. Drummond prosador. In: ______. Recortes. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
COELHO, Marcelo. Notícias sobre a crônica. In: CASTRO, Gus-tavo de & GALENO, Alex. (Orgs.) Jornalismo e literatura: a sedução da palavra. São Paulo: Escrituras, 2002.
CORTÁZAR, Julio. Valise de cronópio. 2. ed., São Paulo: Pers-pectiva, 1993.
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. v. 6. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio; Niterói: UFF, 1986.
LUCAS, Fábio. O conto no Brasil moderno. In: PROENÇA FI-LHO, Domício (Org.). O livro do seminário – Bienal Nestlé de Literatura Brasileira. São Paulo: L.R., 1983.
MELO, José Marques de. A crônica. In: CASTRO, Gustavo de; GALENO, Alex. (Orgs.) Jornalismo e literatura: a sedução da palavra. São Paulo: Escrituras, 2002.
MOISÉS, Massaud. A criação literária. 10. ed., São Paulo: Cul-trix, 1985.
MORICONI, Italo. (Org.). Os cem melhores contos brasileiros do
século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.
PIZA, Daniel. Jornalismo e literatura: dois gêneros separados pela mesma língua. In: CASTRO, Gustavo de; GALENO, Alex.
26
(Orgs.) Jornalismo e literatura: a sedução da palavra. São Paulo: Escrituras, 2002.
PORTELLA, Eduardo. Dimensões I. Rio de Janeiro: Tempo Bra-sileiro, 1958.
SZKLO, Gilda Salem. Drummond e Bandeira, os cronistas-poetas. In: RESENDE, Beatriz (Org.). Cronistas do Rio. Rio de Janeiro: José Olympio: CCBB, 1995.
VÁZQUEZ MEDEL, Manuel Angel. Discurso literário e discurso jornalístico: convergências e divergências. In: CASTRO, Gustavo de; GALENO, Alex. (Orgs.) Jornalismo e literatura: a sedução da palavra. São Paulo: Escrituras, 2002.
VERISSIMO, Luis Fernando. Comédias da vida privada. 14. ed., Porto Alegre: L&PM, 1995.