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Luís Vinícius Brum da Silva A canção regional gaúcha: escutando a letra e lendo a melodia Porto Alegre 2009

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Luís Vinícius Brum da Silva

A canção regional gaúcha: escutando a letra e lendo a melodia

Porto Alegre

2009

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Luís Vinícius Brum da Silva

A canção regional gaúcha: escutando a letra e lendo a melodia

Dissertação apresentada junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras do centro Universitário Ritter dos Reis, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras. Orientadora Prof. Dr. Leny da Silva Gomes

Porto Alegre

2009

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RESUMO

A canção regional gaúcha, através de suas múltiplas manifestações, vem se constituindo em

um objeto cultural relevante. Esta dissertação investiga, a partir das linguagens musical e

verbal, imbricadas no gênero canção popular, as contribuições que a construção deste

cancioneiro forneceu à consolidação do arquétipo reconhecido como gaúcho. Para efeito

desse estudo, situamos uma origem: a obra composta por Luiz Carlos Barbosa Lessa desde o

final da década de 40. O autor é um dos responsáveis pela valorização da cultura regional cujo

centro é a figura do homem do campo com suas idiossincrasias. Algumas de suas canções

atingiram reconhecimento tamanho no imaginário do povo sulino que têm sido cantadas

através destes quase sessenta anos nos mais diversos lugares e com as mais variadas

interpretações. Além das canções de Lessa, também a investigação recai sobre outras autorias,

estabelecendo proximidades e distanciamentos entre distintas manifestações artísticas no

sentido de se averiguar os traçados, os estilos, as dicções que construíram e que estão

construindo o cenário desse regionalismo que, já se pode afirmar, está consagrado como

referência de uma cultura localizada. Através do que aqui convencionamos chamar de audição

estética, empreendemos nosso estudo escutando a letra e lendo a melodia.

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ABSTRACT

The regional gaucho folk music, through its various manifestations, has become an important

cultural artifact. This study investigates, through the musical and verbal languages, interlaced

in the folk music genre, the contributions that the construction of such musical identity gives

to the archetype of the gaucho. For the purposes of this study, we have located an origin: a

single piece of work composed in the late 40’s by Luiz Carlos Barbosa Lessa. The author,

amongst others, is responsible for the valorization of Rio Grande do Sul’s regional culture – a

culture centered in the figure of the countryman and his idiosyncrasies. Some of Lessa’s songs

achieved such recognition in the southern imagery that they are still sung – in several places

and within diverse interpretations – almost sixty years after the first recordings. Besides the

songs of Lessa, this research also addresses other authors, establishing proximities and

distances between different manifestations in order to ascertain the routes, the styles and the

voices that built and are building the gaucho folk genre – a genre that is being already

established as a reference of local culture. Through what we call aesthetic hearing, we

conducted our study – hearing the lyrics and reading the melody.

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SUMÁRIO

1.INTRODUÇÃO.....................................................................................................................06

2.CONSIDERAÇÕES SOBRE A PALAVRA POÉTICA.......................................................16

3.CONSIDERAÇÕES SOBRE A CANÇÃO POPULAR........................................................20

4. ESCUTANDO A LETRA E LENDO A MELODIA...........................................................25

4.1 "Negrinho do pastoreio": uma toada em feitio de oração...................................................28

4.2 "Quero-quero": uma valsa entre a ave e o verbo................................................................43

4.3 "Cantiga de eira”: indo e voltando para o mesmo lugar.....................................................47

4.4 "Entrevero no jacá": onomatopeia e concretismo...............................................................50

4.5 "Carreteiro": alguém cantando dentro da canção...............................................................54

4.6 "Feitiço índio": uma evocação do mundo modal...............................................................58

4.7 "Quando sopra o minuano": a tradição no voo do vento....................................................63

5. ESTABELECENDO DISTÂNCIAS E PROXIMIDADES.................................................67

5.1 Gildo de Freitas – um improvisador entre a oralidade e a cultura escrita..........................69

5.2 O poder da palavra na roda do canto..................................................................................76

5.3 A anunciação do canto: um problema enunciativo.............................................................80

5.4 Dois guris entre voltar e não partir.....................................................................................84

6. CONCLUSÃO......................................................................................................................88

7. REFERÊNCIAS...................................................................................................................96

8. OBRAS CONSULTADAS..................................................................................................99

9. DISCOGRAFIA.................................................................................................................100

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1. INTRODUÇÃO

Este estudo investiga do ponto de vista da linguagem (ou das linguagens) de que

maneira a canção popular regional produzida no Rio Grande do Sul, a partir da década de

quarenta, contribui para o processo de construção de identidade do gaúcho. Evidentemente, a

palavra “gaúcho” remete para além de uma mera designação gentílica e, em nossos dias, já

suplantou a designação original “riograndense” e se plasmou no imaginário popular. Até hoje

existem variadas explicações para as origens etimológicas do vocábulo gaúcho. Fala-se em

procedências castelhanas, portuguesas, tupis, árabes, charruas, latinas, inglesas. Algumas

afirmações fantasiosas, outras mais ou menos aceitáveis, mas todas inconclusas.

Os etimologistas ainda não se entenderam a respeito da origem da palavra gaúcho. E, ao que tudo indica, jamais se entenderão. [...] Nessa velha e surrada pendenga, a melhor política é a seguida por Augusto Meyer: depois de apontar as principais versões sobre a etimologia do complicado vocábulo, deu o assunto encerrado, sem adotar nenhuma (REVERBEL, 2002, p. 5).

A designação gaúcho, nos dias atuais, parece abarcar um significado antropológico de

larga amplitude, um fenômeno de construção de identidade cultural diferenciado num mundo

que tende à fragmentação das culturas pela sua inevitável interpenetração. É identificável que

o senso popular consagra algumas canções como se fossem de pertencimento coletivo, posto

que falam, ou pretendem falar, sobre assuntos que unificam uma determinada comunidade. O

que aqui se estuda é, portanto, como as linguagens musical e literária, irrevogavelmente

tramadas no gênero canção popular, participam desse processo. Pretende-se, ainda, fazer a

verificação de correspondência entre as linguagens literária e musical (encontros,

desencontros e justaposições entre texto e melodia) na canção regional gaúcha, percebendo-

se, nessa relação, se existem elementos estilísticos, semânticos, ou de incidência verbo-

musical que conduzam a uma reunião de caracteres que possam remeter a uma identidade de

possível afirmação ou nulidade.

Nossa base é a obra de Barbosa Lessa, que se encontra no CD Barbosa Lessa – 50

anos de música, por seu aspecto inaugural, e trataremos de cotejá-la com outras manifestações

consagradas do gênero através dos tempos no Rio Grande do Sul como a produção musical

oriunda dos festivais nativistas iniciados na década de setenta. Receberá destaque o evento

que em 1971 deflagra o movimento dos festivais gaúchos: Califórnia da Canção Nativa de

Uruguaiana.

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As primeiras fixações fono-elétricas da obra de Lessa apresentam um grau de

espontaneidade criativa, de uma ingenuidade original que parece lhes conferir uma

determinada condição de acesso ao estudo que se pretende desenvolver. Esse estágio

embrionário da canção regional gaúcha encontra-se (naquele momento mesmo) revestido de

características quase intocadas – como se fosse possível dar evidências de algum tipo de

“estado de pureza” composicional. Como não há percurso análogo anterior e apenas hoje, um

pouco mais de meio século adiante, parece ser possível proceder algumas aferições, creio que

se pode falar de alguma “pureza” estética caracterizando o período. Naturalmente, tal

condição é de difícil identificação e nem é do interesse desta análise embrenhar-se por estes

(des)caminhos das origens primeiras de qualquer manifestação cultural. Cultura, sabidamente,

é processo. Estados puros são de impossível percepção em se tratando das recorrentes

interpenetrações e influências que as culturas todas, localizadas ou não, remetem umas sobre

as outras.

Faz-se necessário, ainda que não se vá tratar aqui especificamente de tal assunto,

considerar algo que nos dê subsídio para a abordagem da questão da identidade que, como já

foi dito, através das linguagens imbricadas no gênero canção, é o objeto desta reflexão. O nó

da discussão parece estar na aparente incongruência de se cogitar a verificação de um

processo de construção de identidade dentro de uma realidade mundial que tende à dissolução

das identidades. Sendo possível constatar que a natureza nacional (e por abrangência,

necessariamente, a regional também) das culturas cada vez mais está sujeita a

interpenetrações e a influências que trafegam em múltiplas direções e sentidos, será que se

pode ainda falar em identidade em construto num universo de localização tão delimitada

quanto o do regionalismo gaúcho?

Naturalmente a resposta a tal indagação parece estar condicionada a um conteúdo que

pode relativizar determinadas posições. Ainda que se possa constatar processos concretos de

esboroamento de uma identidade fixa qualquer, também são de observação possível alguns

movimentos que tendem à fixação de determinadas manifestações culturais. O paradoxo entre

construção e dissolução das identidades é sistematizado por Stuart Hall (HALL, 2006, p. 69)

em três tópicos que se pode reproduzir:

as identidades nacionais estão se desintegrando, como resultado do crescimento da homogeneização cultural e do “pós-moderno global”; as identidades nacionais e outras identidades “locais” ou particularistas estão sendo reforçadas pela resistência à globalização; as identidades nacionais estão em declínio, mas novas identidades – híbridas – estão tomando seu lugar.

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No dizer de Hall (citando Benedict Anderson), a identidade nacional (parece-me possível da

mesma forma considerar a regional) é uma comunidade imaginada.

Esta noção de comunidade imaginada parece encontrar ressonância no corpo das

canções sobre as quais adiante nos deteremos. Pode-se constatar a existência de um cenário

musical e verbal que remete a um coletivo que se distingue do nacional e parece demonstrar

tendências de afirmação cultural em suas manifestações.

Podemos ainda refletir, dentro do espectro da canção regional, de que maneira se

estabelece a condição aparentemente antagônica entre a criação ficcional da personagem

gaúcho e sua correspondência na formação histórica do Rio Grande do Sul. Sem querer

adentrar por terrenos alheios, devemos, contudo, situar algumas questões que parecem servir

para a condução mais acurada desta reflexão.

Ao cogitarmos uma construção de identidade, surge inevitavelmente essa relação: no

homem inserido, e que talvez busque se reconhecer, dentro deste cancioneiro, que

características ficcionais e de fenômenos de correspondência histórica há nele? Pode algo

estar envolvido a um só tempo em ambos os mantos? Pesavento (2006) afirma "a

presentificação do passado não nos remete apenas para o fato evocado, mas navega no tempo

e no espaço, interconectando palavras e imagens, correlacionando sentidos" – podemos dizer

também interconectando sons, uma vez que se possa considerar que universos verbais,

pictóricos/imagéticos e sonoros estão envolvidos na produção da canção. Veremos que a obra

em análise remete, invariavelmente, para um éthos que parece definir um grupamento humano

dentro de uma experiência memorial significativa. Através das canções vai sendo composta

uma narrativa que tende a ampliá-las e a uni-las numa só corrente de construção de sentido.

Pode-se ouvir a voz dos cantores (distinta da voz subliminar do autor) e se pode igualmente

recortar as vozes co-habitantes dos mundos verbais e sonoros que compõem o espectro das

tessituras humanas envolvidas nas experiências vividas ou relembradas. Podemos, pois, de

alguma forma, indagar se tal construção de identidade, uma vez evidenciada, configura-se

verossímil, considerando assim, por aproximação ou distanciamento, o gaúcho inventado e

sua correspondência histórica real. É fundamental, contudo, que se saliente uma evidência

contundente:

Não podemos jamais ir para casa, voltar à cena primária enquanto momento esquecido de nossos começos e “autenticidade”, pois há sempre algo no meio [between]. Não podemos retornar a uma unidade passada, pois só podemos conhecer o passado, a memória, o inconsciente através de seus efeitos, isto é,

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quando este é trazido para dentro da linguagem e de lá embarcamos numa (interminável) viagem. Diante da “floresta de signos” (Baudelaire), nos encontramos sempre na encruzilhada, com nossas histórias e memórias (“relíquias secularizadas”, como Benjamin, o colecionador, as descreve) ao mesmo tempo em que esquadrinhamos a constelação cheia de tensão que se estende diante de nós, buscando a linguagem, o estilo, que vai dominar o movimento e dar-lhe forma. Talvez seja mais uma questão de buscar estar em casa aqui, no único momento e contexto que temos... (CHAMBERS, 1990 apud HALL, 2003, p. 27).

Mesmo que Lessa, ao criar suas canções, não tivesse tal consciência, sua obra parece

reconhecer a impossibilidade de volta sensível ao lugar cantado. Cantar, então, é sua posição,

sua localização. A canção é o seu momento e o seu contexto. É sua casa imaginada e concreta.

Essa casa ideal só se torna perceptível pelo movimento da linguagem (das linguagens), da voz

ou das vozes que a situam ou projetam. Voz essa que tanto pode ser do autor, do cantautor, do

cantor ou daquele que, mesmo em silêncio, a reproduz: a voz empírica que pontua a

subjetividade da enunciação. "As emoções suscitadas pelo poeta não pertencem a um passado

remoto. Estão “aqui” – vivas e imediatas" (CASSIRER, 1994, p. 241). Quem ouve uma

canção, lê um texto, contempla uma obra de arte ou um objeto qualquer da realidade, ainda

que de forma silenciosa, estabelece com o objeto contemplado uma relação de contraste e de

resposta contínua pertencente à natureza da enunciação. Somos tocados pelo que nos cerca, e

esse toque nos posiciona diante das coisas. Está aí a evidência de que as pessoas que

compõem o ato enunciativo estabelecem entre si um vínculo inarredável. Evidentemente, a

teoria da enunciação tem sua aplicação voltada para os fenômenos linguísticos, e o gênero

canção, uma vez que provoca uma ampliação dos campos de linguagem, necessita de outras

referências teóricas para o procedimento de análises mais consistentes. Posteriormente trarei

à reflexão deste trabalho alguns pressupostos linguísticos formulados por Émile Benveniste,

bem como considerarei algumas contribuições de Mikhail Bakhtin e de Ernst Cassirer acerca

da filosofia da linguagem.

As teorias enunciativas, apesar de suas eloquências de investigação e método, também

deixam sempre portas abertas para novas investidas. Essa é a natureza da construção do

conhecimento: haverá sempre possibilidade de colocação de mais um tijolo na edificação.

Pode-se afirmar, ainda, que é pelo ato enunciativo que se constrói o homem que, permeado

por suas inquietações interiores, condiciona-se em sua posição social, portanto, ideológica.

Sendo assim, pode-se investigar o papel da canção popular de inspiração rural na construção

arquetípica do gaúcho considerando-se as questões sociais e ideológicas aí imbricadas, assim

como refletir sobre a subjetividade que orienta o gênero canção, bem como as implicações

perceptíveis nas aproximações e nos distanciamentos entre os suportes de natureza linguística

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e aqueles de natureza musical que interagem no gênero canção popular. É justamente nessas

proximidades e distâncias que pretendo verificar o quanto é possível perceber um processo de

construção (ou desconstrução) de uma identidade cultural relevante. Será que esta canção

popular, que pretende remeter a uma condição original de uma dada cultura, pode afirmar-se

internamente em suas inquietações e em seus motivos, ou tais aferições apenas sejam

possíveis pelo que se pode observar externamente? Até que ponto são nítidas essas

implicações e imbricações das linguagens envolvidas no gênero neste processo de

identificação?

Cabe ainda salientar que, em função da natureza do objeto, a canção popular regional,

ou seja, sua recente posição histórica, talvez não haja suficiente distanciamento temporal para

que se proceda a uma análise crítica isenta de impressões pessoalizantes1. Devemos, pois,

"ultrapassar, por imposição de métodos, as ressonâncias sentimentais com que, menos ou

mais ricamente – quer essa riqueza esteja em nós, quer no poema (ou na canção) –, recebemos

a obra de arte” (BACHELARD, 2000, p. 7). Junte-se a isso a incipiente investigação sobre o

tema empreendida até hoje, o que acarreta dificuldade de recortar-se um referente teórico que

encerre maior especificidade.

Neste ponto é cabe explicitar que, em função desse meu envolvimento com o cenário

da música regional, deixo de centrar-me num suporte teórico específico. Nos processos de

construção do conhecimento, ou de leitura e interpretação, pode-se criar um deslocamento do

par teoria e prática para o par experiência e sentido. Esta é uma posição defendida pelo

educador Jorge Larrosa Bondía (2002) no artigo Notas sobre a experiência e o saber de

experiência. O autor reflete:

A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto ininterrupto, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, parar para sentir, [...] suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza.

Chamo neste momento a atenção sobre a questão da experiência principalmente

porque – e adiante desenvolverei reflexão sobre a velocidade dos acontecimentos que nos

envolvem no mundo contemporâneo e sua repercussão na qualidade da audição musical – é na

minha trajetória como compositor de canções de temática regional e de participante ativo do

1 Ainda que seja difícil, em função do meu envolvimento visceral com a criação de canções de perfil estético análogo àquelas que comporão esta análise, devo estar atento para não me desviar por caminhos um tanto domésticos que pouca ou nenhuma contribuição terão para oferecer.

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movimento dos festivais nativistas desde o início dos anos oitenta que, possivelmente, eu

encontre subsídios que talvez possam suprir a lacuna gerada pela dificuldade de abordar o

nosso objeto pelo crivo estrito do par científico teoria e prática. O conhecimento que me foi

possível construir, através de experiência e da devida atenção com que me defrontei com os

fatos, talvez se constitua em uma base aceitável sobre a qual possam ser apoiadas as

considerações aqui desenvolvidas. Aquilo que Larrosa apregoa como "o saber de experiência,

que se dá na relação entre o conhecimento e a vida humana” (2002, p. 26).

A obra em foco já ultrapassou um cinquentenário desde a composição de sua primeira

canção (1946), a valsa "Quero-quero", gravada ainda em 78 rotações no ano de 1956. A

presente investigação irá incidir justamente sobre o período em que foram efetuadas as

primeiras gravações das canções do compositor. Para tais audições, além de alguns elepês

dispersos, devo centrar-me no CD Barbosa Lessa – 50 anos de música lançado no ano de

2001. Constam dessa edição vinte e seis faixas entre canções de sua autoria e danças

folclóricas por ele recolhidas. A totalidade de sua obra conta com cinquenta e duas canções

gravadas desde 1953. Para o presente estudo, foram selecionadas as seguintes: "Negrinho do

Pastoreio", "Quero-quero", "Entrevero no jacá", "Carreteiro", "Feitiço Índio" e "Quando sopra

o Minuano".

A partir da audição dessas primeiras gravações, pretendemos efetivar algumas

comparações entre características composicionais e interpretativas que foram se plasmando ou

se perdendo daqueles primeiros momentos até a atualidade. No transcorrer do trabalho se fará

necessário detectar elementos constituintes das linguagens musical e literária que compõem a

obra. Tais elementos, para um breve exemplo, podem ser, na linguagem musical, o universo

tonal, os coloridos timbrísticos, as nuanças interpretativas, a instrumentação, as cadências

rítmicas; na linguagem literária, o metro, a rima, as figuras de linguagem, o ritmo. Tudo isso

mediado pelas questões enunciativas, sociais, culturais e ideológicas imbricadas no gênero

canção popular.

Feita essa análise, parece necessário também proferir uma aproximação entre este

momento de criação e a atualidade da produção cancionista de perfil regional no Rio Grande

do Sul, fazendo, na medida do possível, uma averiguação que contemple a linha cronológica

que perpassa este ciclo evolutivo. Assim sendo, parece-me possível percorrer um traçado que

dê conta, ainda que minimamente, do processo de construção (ou desconstrução) identitária

do gaúcho.

Posso, contudo, dizer algo sobre minha experiência como compositor e como

participante do movimento dos festivais nativistas desde o final da década de setenta. Foi nos

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meados daqueles ‘setenta que seriam dez’ (parodiando uma canção da época)2, que tive o

primeiro contato com o universo cancionista que se inspirava num ambiente regional bem

identificado. Claro que já ouvira algo desse regionalismo na voz de alguns como Teixeirinha

ou José Mendes, mas tudo tão de passagem aos meus ouvidos adolescentes que pouca

importância atribuí ou atenção dediquei àquelas sonoridades. Estava mais interessado na

chamada MPB, com suas icônicas referências a Chico Buarque de Holanda e Caetano Veloso.

Contudo, ao escutar as primeiras canções advindas da Califórnia da Canção Nativa de

Uruguaiana, surpreendi-me interessado com aquilo que aos meus ouvidos soava como pura

novidade. E por aí enveredei, como atento apreciador dessa estética musical que se debruçava

sobre um paisagismo rural que desde a infância me era familiar.

Passaram-se alguns anos até que, em 1980, lá estava eu de violão em punho no palco

do Cine Pampa em Uruguaiana participando da décima edição do festival. Recordo cada

átimo daquele mergulho inaugural: as canções, as pessoas – uns já reconhecidos, e outros tão

neófitos quanto eu – a entrada do teatro, os camarins improvisados que davam para o pátio da

prefeitura. Mas, de tudo mesmo que daquela experiência ficou, dois fatos com certeza foram

marcantes e talvez decisivos para a minha trajetória: a apresentação inesquecível do bardo

argentino Atahualpa Yupanqui e a então nascente dicotomia entre um regionalismo

conservador e “um nativismo de vanguarda”.3

Tal dicotomia cruzou os anos 80 e chegou vigorosa aos 90. Os festivais nativistas

haviam proliferado. Chegaram a mais de sessenta por ano em praticamente todas as cidades

importantes do estado. Neste momento permito-me abrir parênteses nesta condução do texto

para dizer algo sobre um autor que também marcou sensivelmente minha impressão a respeito

do regionalismo acerca do qual agora empreendo esta análise: o missioneiro Noel Guarany.

Foi lá pela metade dos anos setenta que ouvi pela primeira vez a música de Noel

Guarany. Tantos anos passados, recordo (ou imagino) tenha sido numa tarde mormacenta de

2 Alusão à canção "Os setenta que serão dez", gravada pelo grupo Utopia liderado pelo hoje consagrado Bebeto Alves. 3 Nos anos 80, houve um despertar da atenção da juventude urbana pela música de inspiração regional. Uma das referências dessa nova “onda” foi sem dúvida a dupla dos irmãos Ramil, Kleiton e Kledir. A gurizada misturava bombacha com tênis no cotidiano e, aos domingos, se reunia para um bom chimarrão nas praças e nos parques das cidades. Naturalmente, esse comportamento desagradou alguns setores do tradicionalismo mais ortodoxo. Em Porto Alegre, o ponto principal desses encontros era o Parque da Redenção. Casas noturnas especializadas em apresentações dessa “nova” música eram inauguradas em número significativo. Do contato dos músicos urbanos com aquele regionalismo tradicional surgiu então um movimento que se convencionou chamar de “nativismo de vanguarda”, no qual havia uma mistura das mais variadas influências musicais em oposição à música até então representada pelos artistas mais tradicionais nesta forma de expressão como Teixeirinha, Irmãos Bertussi e seus seguidores. Até mesmo o gentílico gaúcho foi alvo dessa dicotomia. Os inovadores eram designados como riograndenses, como se isso fosse menor, e os conservadores, esses sim, seriam os verdadeiros gaúchos, e isso era uma conferência de valor preponderante.

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domingo, junto a um balcão de bolicho onde se reunia uma gauchada para um jogo de bochas

e uma gurizada estudante em férias de verão. De uma pequena vitrola portátil saiam canções

que falavam de uma paisagem geográfica e humana, que desde então me encantam. Essas

canções, contudo, diluíam-se no meio do burburinho dos jogadores, dos estampidos das

bochas arremetidas umas contra as outras e das conversas adolescentes que se desfiavam com

descompromisso. No meio dessa confusão de sons na tarde interiorana, chama-me a atenção

uma voz vinda da vitrola meio rouca. Afasto-me da roda de amigos e me aproximo do balcão

para melhor ouvir aquela canção: "hoje é domingo, encilhei meu estradeiro, já botei água de

cheiro, não me falta “quaje” nada" São os versos iniciais da canção "Destino de Peão" que

está no LP Destino Missioneiro de Noel Guarany lançado em 1973.

Para mim aquele momento foi revelador de uma estética com cheiro de novidade.

Apesar dos verdes anos, nosso grupo (como tantos à época) era apreciador da chamada

música popular brasileira. A canção do Noel era feita de um tecido sonoro em tudo diferente

do que eu estava habituado a ouvir.

Não demorou muito para que o menestrel missioneiro se tornasse uma referência e

fosse arrebanhando multidões de apreciadores de seu canto por onde passasse. A formatação

banquinho e violão eram a mesma da bossa nova, mas o som era outro. Era pontiagudo,

desafiador em sua singeleza e singularidade. A voz fronteiriça parecia ter saído das páginas de

Hernandez. Parecia que Isidoro Cruz e Martin Fierro haviam amalgamado suas vozes dentro

do pampa riograndense, passando a cantar pela boca daquele filho da Bossoroca, nascido Noel

Borges do Canto Fabrício da Silva em 26 de dezembro de 1941 e falecido Noel Guarany em

06 de outubro de 1998.

O Brasil vivia os efeitos do regime de exceção e a censura oficial se fazia sentir

catalogando aquilo que se podia e não se podia ouvir. Noel, como Fierro, sempre cantou

opinando e foi como arauto de uma cultura que ele pretendia defender que se tornou ídolo da

juventude universitária em sua desassombrada ânsia de liberdade. Guarany imortaliza a

canção "Potro sem Dono", de autoria de Paulo Portela Fagundes, tornando-a um hino à

rebeldia. Através do gênero payada, cujo mestre entre nós é sem dúvida o também

missioneiro Jayme Caetano Braun, Noel vai desvelando suas impressões sobre o mundo,

sobre a América Latina, sobre sua concepção de pátria e seu irrestrito respeito à natureza. Do

seu encontro com Don Jayme resulta um dos mais significativos registros daquilo que hoje se

convenciona chamar de música missioneira: o LP Payador, Pampa e Guitarra, lançado em

1976 que conta com a participação de um dos ícones do folclore argentino: o virtuoso

acordeonista Raulito Barboza.

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Em uma de suas canções, Noel pede licença que vai cantar um missioneiro com

manhas de literato e tino de bom campeiro. Com tais manhas e tino, visita a obra de um dos

maiores poetas gaúchos e lança em 1978 o LP Noel Guarany canta Aureliano de Figueiredo

Pinto – uma das marcantes e definitivas contribuições para a música brasileira. Sim, porque

apesar de sua marca eminente e propositalmente regional, ele conquistou a admiração em todo

o país. O produtor Marcus Pereira disse certa feita: "Noel Guarany é um dos maiores cantores,

compositores e guitarristas deste país. Lá no pago dele [...] adoça suas canções com o mate

amargo, hábito do pampa, que também é brasileiro".

Ainda que com maior recorrência Noel seja lembrado por sua rebeldia, por sua

irreprimível ânsia de liberdade e pela ousadia de um cantar que não se curvava a imposições,

creio que o seu lirismo seja tão ou mais contundente dentro de sua obra. Nunca mais me

saíram da cabeça os versos, a voz e o violão daquele "Destino de Peão" que ouvi recostado

num balcão de bolicho de uma perdida tarde de domingo.

Ainda ouço... Um violão ponteia notas limpas, translúcidas como cristais filtrando o

tempo. Prepara com arpejos de harpa guarani o cenário sobre o qual o peão, que trabalhou um

mês inteiro solito num fundão, vai dizer do seu amor. Como Simões inventa Blau, Noel

inventa o peão. Reconhece-lhe até a singularidade linguística e não esconde os “quaje”, os

“ansim”, os “inté”... a maneira como um homem rude que vê o mundo desde o seu rincão e

sonha em viver melhor junto da prenda que ama para agradecer a Deus por seu destino. Canta

um homem que sabe da lida bruta com potros e aramados, mas que guarda delicadezas para as

horas de precisão.

E ficou-me o Noel Guarany: vigoroso, rude, rebelde e lírico. Barbosa Lessa, na

apresentação do LP Destino Missioneiro, escreveu: "quando lhe mostrei uma cantiga minha

que fala de um gaúcho moço que quer ir para a cidade a fim de 'deixar de ser bagual', Noel

Guarany me confidenciou num tom de voz profundo e com impressionante sinceridade: –"

Dom Lessa, eu acho muito mais importante continuar sendo bagual..." E continuou. E ainda é.

O menestrel missioneiro Noel Guarany – bagual e lírico.

Em meados dos anos 80, tendo ao centro a figura do escritor e poeta Luiz Sérgio Metz

(Sérgio Jacaré), fundamos o grupo Tambo do Bando, que misturava tudo aquilo que eu havia

visto e ouvido. Se Noel era “bagual e lírico”, nossa música era “gaudéria”4 e “povoeira”5. Por

4 Segundo o historiador argentino Ricardo Rodriguez Molas, em seu livro Historia social del gaucho, antes de haver-se fixado a designação gaúcho, já havia registros chamando gaudério alguns habitantes do pampa sulamericano por volta de 1750. 5 Adjetivações comuns à época que tentavam opor as duas manifestações estéticas em curso: uma proveniente do universo rural e outra da realidade caótica urbana.

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esta proposição em unir os dois pólos antagônicos, fomos aclamados como redentores e

execrados como traidores. O Tambo duraria cerca de dez anos pendulando entre a adoração e

o detrato. Hoje, talvez, com a poeira baixada e as ansiedades postas a bom termo, já haja

espaço para uma compreensão menos arfante daqueles ferventes episódios, mas isso talvez

mereça um outro espaço de estudo. O certo é que além da minha produção como compositor,

além das minhas participações como intérprete das minhas canções e das canções de tantos,

devem ter sobrado as interrogações que ora faço no sentido de compreender, dentro do que

seja possível, a natureza motivadora desses acontecimentos que pude presenciar ou dentro das

histórias que pude conhecer. Umas narradas por seus protagonistas, e outras através das

pesquisas e do interesse pelo objeto alvo desta investigação. Muito teria a relatar, por certo,

destes momentos todos, mas devo, a bem do desenrolar do trabalho, esquivar-me dessas

memórias e seguir a elaboração da tarefa determinada.

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2. CONSIDERAÇÕES SOBRE A PALAVRA POÉTICA

“A consciência teórica, prática e estética, o mundo da linguagem e do conhecimento,

da arte, do direito, e o da moral, as formas fundamentais

da comunidade e do estado, todas elas se encontram originariamente ligadas

à consciência mítico-religiosa.” (CASSIRER, 2006, p. 64)

Para dar conta de explicar e compreender os acontecimentos do mundo, o homem

primitivo constrói respostas de natureza mítica para suas perguntas de ordem concreta ou

abstrata. Pode daí ser depreendido que nesta fase de desenvolvimento a linguagem é tocada de

forma decisiva pelo pensamento primitivo. E, sendo assim, a um mesmo tempo, é

condicionada por ele e o condiciona. Há um enlace inaugural que possibilita especular-se

acerca de uma matriz primitiva que instaure os mundos mítico e linguístico. Ernst Cassirer,

citando Max Muller, afirma que "a mitologia é inevitável, é uma necessidade inerente à

linguagem, se reconhecemos nesta a forma externa do pensamento"(MULLER apud

CASSIRER, 2006, p. 19). Podemos, apressadamente, entender que tais temas que envolvem

concepções não propostas pela racionalidade própria do mundo da ciência, à qual o senso

comum atribui o peso da responsabilidade de ser a ferramenta humana para encontrar a

verdade, estão um tanto distanciados da nossa realidade neste limiar de terceiro milênio. Basta

porém dedicarmos um olhar que ultrapasse minimamente uma atitude contemplativa e talvez

distraída, para que nos demos conta de que resquícios indeléveis perduram até hoje desta

imbricação original da linguagem e do mito. Ainda citando Max Muller, Cassirer remata um

ponto em sua costura reflexiva afirmando que "mitologia, no mais elevado sentido da palavra,

significa o poder que a linguagem exerce sobre o pensamento". (MULLER apud CASSIRER,

2006, p. 19)

Ora, se a linguagem projeta-se sobre o pensamento em um exercício de potência, e se,

naturalmente, a linguagem é o elemento que constitui o homem em sua inteireza e

diferenciação, e sendo, por sua vez, o pensamento a atividade orgânica que nos fundamenta,

parece haver possibilidade afirmativa suficiente na compreensão de que os mitos não são algo

perdido num tempo imemorial da humanidade, mas que estão ainda presentes no cotidiano da

nossa contemporaneidade. "Sonho religioso, miragem filosófica, ideação literária

desgovernada? Não faz mal. Os povos, como os indivíduos, não dispensam os mitos.”

(CESAR, 1977 apud HERNANDEZ, 1980 p. 18).

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Por essa ligação primordial entre mito e linguagem, o homem empreende sua

fantástica jornada através da qual se empenha em, progressivamente, constituir suas

apreensões universais. É a capacidade simbólica da palavra que permite a referenciação das

coisas, a nominação dos seres e a inter-relação que se estabelece entre o homem e suas

vicissitudes naturais ou não. Palavra é signo. Se recorrermos ao léxico, podemos substituir tal

predicativo por sinal reminiscente, indício, marca, símbolo, elemento de projeção ou

importância, expoente, luminar. Etimologicamente encontramos em sua derivação latina

signum,i a correspondência a sinal, marca distintiva, assinatura. Contudo, existe sempre a

tentação de que sejam perscrutadas as fronteiras iniciais, os primeiros tempos, os alvoreceres

dos acontecimentos, para que, como se fosse possível, se intentasse, de forma talvez

jornalística, apanhar o primitivo ancestral com a palavra primordial prestes a escorrer-lhe da

boca e vazar para a eternidade.

Rousseau, em seu Ensaio sobre a Origem das Línguas (1978, p. 164), faz-se a pergunta (e

responde com estilo):

Onde, pois, estará essa origem? Nas necessidades morais, nas paixões. Todas as paixões aproximam os homens, que a necessidade de procurar viver força a separarem-se. Não é a fome ou a sede, mas o amor, o ódio, a piedade, a cólera, que lhes arrancaram as primeiras vozes. Os frutos não fogem de nossas mãos, é possível nutrir-se com eles sem falar; acossa-se em silêncio a presa que se quer comer; mas para emocionar um jovem coração, para repelir um agressor injusto, a natureza impõe sinais, gritos e queixumes. Eis as mais antigas palavras inventadas, eis porque as primeiras línguas foram cantantes e apaixonadas antes de serem simples e metódicas.

No capítulo sétimo do livro Marxismo e Filosofia da Linguagem (BAKHTIN, 2006)

há um flerte com Cassirer em sua referência ao homem pré-histórico que faz uso de uma

mesma palavra para designar várias manifestações. O texto remete a Nicolau Marr6

É suficiente dizer que a paleontologia linguística contemporânea nos dá a possibilidade de aceder, graças às suas investigações, às épocas que as tribos só tinham à sua disposição uma única palavra para cobrir todas as significações de que a humanidade tinha consciência.

Partindo de tal asserção, pode-se inferir que o aspecto sonoro da palavra detém

fundamental importância para a construção dos significados, pois podemos especular sobre as

variantes entoativas que talvez contribuíssem para a construção das múltiplas possibilidades

semânticas do vocábulo original. Tendo como parâmetro o texto fundamental da religiosidade

6 Linguista russo.

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cristã, constatamos que é pela linguagem, pela potência da palavra que Deus empreende sua

inigualável criação. Foi a expressão material da palavra, sua onipotente sonoridade, que

deflagrou o construto divino. Rousseau já havia nos alertado para as origens musicais das

línguas. Desta forma, sendo a palavra o instrumento pelo qual se engendrou o mundo sensível,

impõe-se uma interrogação: o mundo primitivo explica pelo mito suas circunstâncias

inerentes, porém se Deus disse faça-se e tudo surgiu, a palavra deflagrou a realidade.

Contudo, o real definido por Kant e referenciado por Cassirer indica a necessidade de uma

elaboração racional da percepção, mediada por leis gerais e ordenada por um contexto de

experiência para que se promova a conceituação do fenômeno realidade. O mundo da ciência

é concebido e se desenvolve com uma atitude densamente racionalista. O poder da razão e a

potência simbólica: tal é a encruzilhada que acossa esta reflexão. A questão deve ser avaliada

levando-se em consideração que neste momento primordial não há experiência anterior nem

para a palavra e muito menos para o mito. Retornamos, pois, àquela imbricação original entre

ambos. Um espaço-tempo em que a linguagem pela qual a concepção mítica é revelada

mistura-se incondicionalmente com sua revelação. Deparamo-nos com a circunstância mágica

da palavra.

Tendo presentes as reflexões encontradas no livro Linguagem e Mito, notamos um

aponte para a existência de uma só matriz para ambas as manifestações. Essa terra-mãe é a

metáfora. E entenda-se aqui não a figura retórica (e racional) que promove analogias entre

coisas e eventos e que migra a semanticidade em suas incidências, senão como um estado

inaugural no qual a manifestação do nome da coisa é a coisa em si. Portanto, não se trata aqui

de uma parte da linguagem nem de uma função por ela exercida. Novamente Cassirer cita

Max Muller: "O homem, quisesse ou não, foi forçado a falar metaforicamente, e isto não

porque não lhe fosse possível frear sua fantasia poética, mas antes para dar expressão

adequada às necessidades sempre crescentes de seu espírito" (MULLER apud CASSIRER,

2006, p. 103).

A circunstância mágica da palavra, o mistério da palavra, esta inesgotável capacidade

de dizer, de apontar, de situar e ao mesmo tempo sonegar, esconder, pluralizar os significados

– essa é a situação diante da qual emergimos e naufragamos diariamente. Daquela língua

inaugural recém referida, na qual a palavra única dava conta de todas as expressões, passamos

a uma multiplicidade vocabular praticamente infindável. Digo infindável porque a

sofisticação atingida pelo desenvolvimento das línguas e das linguagens parece ter empurrado

as fronteiras da palavra para um território além, sempre mais além.

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É isso que ocorre quando as duas linguagens em foco se tocam. Tanto a palavra quanto

a nota musical são ampliadas em suas dimensões semânticas. Evidentemente, se podemos

falar em uma semântica musical no universo da canção popular, devemos a essa troca que se

realiza dentro do gênero, no qual letra e melodia imbricam-se de forma inexorável. Sendo

assim, por seu praticamente inesgotável peso semântico, a palavra tende a exercer certo

domínio sobre a nota musical. Tentaremos, dentro do possível, relativizar esse domínio e

perscrutar se realmente ocorre alguma dominação ou se o que existe é um perfeito equilíbrio

entre essas duas linguagens de naturezas distintas que se fundem. A prédica rousseauniana

afirma a natureza musical das línguas – "desse modo, os versos, os cantos e a palavra têm

origem comum" (ROUSSEAU, 1978, p. 186).

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3. CONSIDERAÇÕES SOBRE A CANÇÃO POPULAR

A linguagem – a fala – é uma riqueza de múltiplos valores. A linguagem é inseparável do homem e segue-o em todos os seus atos. [...] Para o bem e para o mal, a fala é a marca da personalidade, da terra natal, da nação, o título de nobreza da humanidade. O desenvolvimento da linguagem está tão inextricavelmente ligado ao da personalidade de cada indivíduo, da terra natal, da nação, da humanidade, da própria vida, que é possível indagar-se se ela não passa de um simples reflexo ou se ela não é tudo isso: a própria fonte de desenvolvimento dessas coisas. (HJELMSLEV , 1978, p. 185)

A canção popular presta-se, assim como outras manifestações artísticas, à localização

de um indivíduo dentro de um quadro social definidor de uma interação apta a sugerir

perguntas e a desafiar respostas sobre a construção do modelo de sociedade em que está

inserida. A natureza das vozes, a personalidade enunciadora, o movimento interno e externo

dos discursos, tudo diz de um universo que abarca também a singularidade desse gênero.

A música cantada, na medida em que foi se afastando das regiões agudas habitadas

pelo canto lírico, iniciou em suas manifestações uma nítida aproximação dos recursos sonoros

da fala. No Brasil, desde as primeiras fixações fono-elétricas do começo do século XX, pode-

se perceber que características como potência e virtuosismo, próprios do universo musical

erudito, vão aos poucos dando espaço a outro tipo de interpretação vocal. Temos aí,

provavelmente, o nascimento de um dos formatos mais consagrados da cultura brasileira atual

– a canção popular.

Esse produto cultural, apesar de guardar origens na música e na poesia, conseguiu

fundir tais territórios de maneira tão sentida que não parece ser mais possível isolar os

elementos estruturantes de sua forma. Portanto, o gênero canção adquiriu tal unicidade que

qualquer abordagem sua que não contemple esse caráter unívoco pode ver-se comprometida

em sua possibilidade crítica. Não se trata, pois, nem de poesia musicada, nem de melodia para

acompanhar texto. Não havendo absoluta sintonia entre os dois elementos constituintes, o

gênero perde o melhor de sua expressão estética. Assim não fosse, a questão da produção e da

construção do nosso cancioneiro estaria à disposição de quem juntasse, por exemplo, a poesia

de Drummond, ou de Bandeira, à música de Villa-Lobos, ou de Jobim, e daí extraísse a

canção em seu melhor potencial de encantamento. Sabemos que iniciativas dessa natureza,

não raro, resultam em produções de duvidosa qualidade artística e de raso reconhecimento

popular.

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Migrando o olhar para um recorte localizado, podemos empreender uma investigação

sobre a canção regional gaúcha que, apesar de sua produção ser relativamente recente

(podemos situar seu início na transição entre as décadas de quarenta e cinquenta), apresenta

um leque de possibilidades analíticas que parece demonstrar algo de relevante para que se

empreenda em sua direção tal jornada investigatória.

Logicamente, um gênero como a canção popular não surge como um evento

surpreendente. É sim parte de um processo, de uma interação, de uma confluência de usos e

emergências.

Em cada época, em cada círculo social, em cada micromundo familiar, de amigos e conhecidos, de colegas, em que o homem cresce e vive, sempre existem enunciados investidos de autoridade que dão o tom, como as obras de arte, ciência, jornalismo político, nas quais as pessoas se baseiam, as quais elas citam, imitam, seguem. Em cada época e em todos os campos da vida e da atividade, existem determinadas tradições expressas e conservadas em vestes verbalizadas: em obras, enunciados, sentenças, etc. (BAKHTIN, 2003, p. 294).

Nesse sentido, autores como Barbosa Lessa começam a esboçar aquilo que hoje é

reconhecido como cancioneiro regional gaúcho7. No final dos anos quarenta, (este é um

episódio da história recente do Rio Grande do Sul largamente difundido) um grupo de jovens

interioranos promove, no Colégio Júlio de Castilhos em Porto Alegre, uma série de atividades

com vistas a resgatar um modus vivendi do universo rural gaúcho que lhes era familiar.

Tratava-se de um movimento de retomada de alguns valores que naquele entender pretendia

conferir algum tipo de unidade cultural ao povo gaúcho. Seria então a afirmação de uma

cultura identificada e identificável. Revivificar usos e costumes até que se mostrou algo

relativamente fácil. Havia experiências individuais dos participantes do grupo que eram

suficientes para atualizar atividades rotineiras do homem do campo. Contudo, na medida em

que surgiram emergências menos tangíveis como as relacionadas ao fazer artístico e às

incursões pelo mundo folclórico, as coisas não correram como águas mansas de regato que cai

no rio.

Um dos entraves que se interpôs aos anseios daquele grupo em seus encontros, cujo

propósito era cultuar as tradições através de uma arte eminentemente regional, foi o pouco

significativo número de canções existentes. Além de algumas peças do folclore como Boi

Barroso e Prenda Minha, pouco havia para se cantar.

7 A terminologia cancioneiro regional gaúcho nesta reflexão refere-se ao conjunto de canções populares (melodia e texto) produzidas desde a década de quarenta, não se confundindo, pois, com a referência ao cancioneiro literário consagrado nas primeiras fixações da oralidade nas trovas e quadras populares.

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Quem não quer, manda, diz o ditado, e quem quer, faz. Tivemos de fazer. Para saber o que é que o público entenderia como música do Rio Grande, fui tenteando os ritmos na base da tentativa-e-erro: uma toada (“Negrinho do Pastoreio”), depois duas milongas (“Milonga do casamento” e “Milonga do bem-querer”), mais tarde um chamamé (“Balseiros do Rio Uruguai”). Mas por paus e por pedras ia nascendo um cancioneiro do Rio Grande do Sul!8.

Assim escreveu Luiz Carlos Barbosa Lessa sobre sua investida pela senda inaugural da

canção regional. Não havia sequer um ponto cardeal estético ou discursivo que apontasse para

qual caminho seguir naquele alvorecer que ainda não estava anunciado. Meio século depois,

composições de Lessa como "Negrinho do Pastoreio" vivem na alma do povo gaúcho como se

lhes pertencesse desde sempre – parecem ser de domínio público e muitas vezes, sob a

pressão de tal aparência, a autoria é omitida ou esquecida.

Aqui surge uma das interrogações que, parece, há de acompanhar esta investigação:

como esta voz, impregnada da visão de mundo de um dado autor, pode se tornar a voz

amplificada de um arquétipo que tende a concentrar a voz de uma coletividade. A

emblemática figura do gaúcho – quer o mito da literatura, quer a sua possibilidade concreta

no mundo real – em que momento é ela mesma que assume a voz do canto, ou tal figura

possui apenas a voz que lhe é atribuída. Cassirer indica "o primeiro problema que se nos

apresenta na análise da linguagem, da arte, do mito, consiste em perguntar de que maneira um

determinado conteúdo sensível, particular, pode se transformar no portador de uma

significação espiritual universal" (CASSIRER, 2001, p. 43).

Faz-se necessária neste momento uma alusão ao estudioso Luiz Tatit9, que em sua

obra O cancionista contribui de maneira indelével para o estudo da composição de canções no

Brasil. Ao abordar o ato composicional, Tatit evidencia

Compor uma canção é procurar uma dicção convincente. É eliminar a fronteira entre o falar e o cantar. É fazer da continuidade e da articulação um só projeto de sentido. Compor é, ainda, decompor e compor ao mesmo tempo. O cancionista decompõe a melodia com o texto, mas recompõe o texto com a entoação. (TATIT, 2002, p. 11).

Parece que a caracterização do gênero está intrinsecamente ligada a esses atos de

decomposição e recomposição. Uma determinada melodia em se colando a um determinado

8 LESSA, Luiz Carlos Barbosa. Nativismo – Um fenômeno social gaúcho. L&PM Editores: Porto Alegre, 1985, p. 66. 9 O paulistano Luiz Tatit é músico, compositor e, em sua atividade com o grupo Rumo, gravou seis CDs com 46 canções de sua autoria. É também professor Titular do Departamento de Linguística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

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texto adquire uma textura sonora que não lhe pertencia originalmente. De fato a condição

mais íntima e abstrata da melodia é despida de tessitura concreta. Essa só pode ser verificada

no momento em que, fisicamente, uma voz, seja humana ou provinda de algum instrumento

musical, a realiza ou a projeta.

Esse movimento a princípio parece arremeter para uma dissolução textual mais ou

menos evidente – como se fosse criada uma zona de atrito entre as linguagens que se

sobrepõem. Contudo, quando assume condições distantes da fala pela entoação, pelo ato

concreto do canto, pela produção desse gesto vocal, o texto ressurge pleno de suas

possibilidades estéticas e semânticas já configurado na concretude do gênero canção. Deste

modo, a linguagem musical já está irreversivelmente decomposta. A decomposição melódica

atrela-se, deste modo, à duração que a melodia empresta ao texto, e é dessa permanência que

o texto retira a recomposição de seu potencial.

Há que dimensionar, ainda, aquilo que Tatit identifica como dicção composicional.

Seu estudo localiza aspectos pertinentes à empresa individual de determinados cancionistas

que acabam criando, por suas genialidades, uma personalidade, um local, uma transparência

que os identifica. Esse é um dos desdobramentos da abordagem que se pretende fazer adiante

no que diz respeito à verificação de tal dicção na obra de Barbosa Lessa e sua possível

contribuição ou influência sobre a produção de canções de estética regional no Rio Grande do

Sul.

Ainda podemos situar algumas noções mais ou menos plasmadas que caracterizam o

ato composicional. Existem cenários sonoros que contribuem para determinadas construções.

Normalmente, estruturas que utilizam escalas em modo maior tendem a ser mais esfuziantes,

enquanto que aquelas tecidas em modo menor parecem se estabilizar em aparências

introspectivas. Essa situação não chega a configurar-se numa fixidez regulamentar, mas pode-

se dizer que sua localização é um tanto recorrente. Poderíamos metaforicamente falar em luz e

sombra. O modo maior, aparentemente, sugere construções de maior luminosidade, e o modo

menor tende a algum sombreamento. Do ponto de vista teórico, sabe-se que uma escala

consiste em uma série de sete notas que por sua disposição caracteriza um determinado campo

harmônico. A partir da Idade Média, os músicos acabaram por consagrar o uso de duas

escalas: a maior, ou primitiva, cuja nota inicial é dó, baseia-se no modelo intervalar de tom –

tom – semitom – tom – tom – tom – semitom (dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, dó); a menor origina-se

da primeira e tem seu início marcado pela nota lá, e a sequência de seus intervalos tem por

base o modelo tom – semitom – tom – tom – semitom – tom – tom (lá, si, dó, ré, mi, fá sol, lá).

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O caráter mais ou menos luminoso ou sombrio das construções sonoras possíveis a partir de

tais estruturas reside justamente nessa mobilidade entre os tons e os semitons em cada escala.

Pode-se depreender daí que as variáveis de sentido que organizam uma determinada

canção estão vinculadas a escolhas realizadas dentro de um espectro de ferramentas que estão

à disposição daquele que compõe. Analogamente, o texto de uma canção (e evidentemente

qualquer texto) também é construído a partir de escolhas semelhantes. Parece ser possível

afirmar que o domínio de uma determinada técnica sobrepõe-se a questões íntimas

comumente reconhecidas, tais como: estados emocionais, inspirações, etc. Logicamente,

existe um momento deflagrador do ato criativo. Esse pode estar atrelado a uma série de

acontecimentos de ordens variadas. Contudo, não haveria aqui espaço para aprofundamentos,

neste sentido, posto que tal investida inevitavelmente enveredaria pelos rumos da Filosofia, da

Psicologia, da Teoria Literária.

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4. ESCUTANDO A LETRA E LENDO A MELODIA

Para que se atinja um estágio de leitura que ultrapasse a atitude meramente

contemplativa, é necessário que o leitor esteja atento aos diversos caminhos que percorrem o

texto. As questões formais concorrem para a significação temática. Uma leitura estética deve

estar liberta da ditadura do enredo. A funcionalidade de uma casa só pode ser concebida e

demonstrada levando-se em conta os aspectos fundantes de suas estruturas. O conceito de

habitação depende dessas fundações. Em um ambiente-casa chamado leitura, ou no nosso

caso chamado audição, ainda que a interação entre o suporte texto e o leitor tenha implicações

distintas daquelas que existe entre a canção e seu ouvinte, também devem ser contemplados

seus alicerces, suas ferragens e suas vigas de sustentação. Sem esse arcabouço estrutural, as

questões funcionais hão de ficar comprometidas. Portanto, se elementos como assonâncias,

aliterações, rima e ritmo, uma vez percebidos e devidamente decodificados pela proficiência

do leitor, indicam trajetórias de compreensão e descortino da leitura poética, sentimos ser

procedente construção análoga para que se empreenda aquilo que poderíamos chamar de

audição estética, quando o objeto a ser perscrutado é a canção popular. Sendo assim, além das

ocorrências linguísticas imbricadas na caracterização do gênero, as ocorrências musicais

devem ser percebidas com o mesmo aguçamento dos sentidos para uma melhor fruição do

prazer estético que a canção produz.

Estar-se atento a tais sinais sonoros e códigos musicais não significa que o ouvinte

necessite embrenhar-se pelos intricados caminhos da linguagem musical e de suas teorias. A

audição estética está ligada à percepção dos elementos significativos da melodia, da

instrumentação e dos arranjos instrumentais e vocais que, aliados ao texto e a suas

implicações linguísticas, formam o universo integral da obra que é responsável pelo potencial

de entendimento e pela produção de sentido que ela carrega. Se uma canção é apresentada

pela concepção de uma orquestra, outra pela singularidade de um conjunto melódico e uma

outra ainda pela singeleza de um piano ou um violão acompanhando a interpretação vocal,

parece-me evidente que tais cenários acústicos concorram, cada um ligado à sua natureza

intrínseca, para que as possibilidades de intelecção da obra estejam à disposição do ouvinte.

Esse indivíduo estará potencializando sua capacidade estética de ouvir na medida em que

souber distinguir os variados cenários sonoros e conferir-lhes valor significativo.

Mesmo que isto não se constitua numa regra fixa, é pouco provável que a rebeldia e a

agressividade própria do gênero rock sejam atingidas menos pelas distorções das guitarras

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elétricas do que pelas evoluções acústicas de um oboé ou de um violino. E se o texto cantado

pretender atingir algo que diga mais ao espírito do que ao gesto, ainda que o canto seja a

presença corpórea da manifestação musical, podemos inverter a situação acima sem prejuízo

do fio que conduz o raciocínio.

Na canção, para que um texto de caráter melancólico, sombrio, triste, matizado por

cores neutras atinja com maior eficácia suas possibilidades, é facilmente observável que os

elementos que remetem a tais características no aspecto linguístico deverão ser encontrados

também em sua linguagem musical. Assim como textos de personalidade diversa também

estão constituídos por essas indissociáveis analogias. Podemos assim supor a possibilidade de

existência de uma semântica sonora. As tessituras, os timbres, os silêncios e as permanências

podem produzir sentido como as palavras, ainda que tais elementos em si mesmos não

estejam sob a dominação do significado. Contudo, essas implicações semânticas devem ser

construídas, como de resto ocorre na língua, no momento em que acontecem e por isso

funcionam. Não há um dicionário relacionando os possíveis significados das ocorrências

sonoras. Mesmo nas questões de significação do vocabulário, os dicionários são indicativos e

não respostas prontas. Perceber esses acontecimentos e fazê-los significar é a tarefa que o

leitor-ouvinte deve empreender quando se depara com a canção. Dessa atitude resultará a

fruição potencializada e esteticamente prazerosa desta arte.

O filósofo alemão Theodor Adorno (1996), em sua investigação sobre as questões que

envolvem a música e a audição a partir da eclosão da indústria fonográfica mundial, aponta

para algumas características que a modernidade confere aos ouvintes. Entre a numerada de

características construída por Adorno, encontramos o que ele chama de ouvinte motorista,

qual seja, aquele indivíduo que ouve música guiando seu automóvel. Esse cidadão exerce sua

audição de modo absolutamente passivo. Não pode desviar a atenção do trânsito e, sendo

assim, é servo de uma audição superficial e ineficaz pela falta de possibilidade de

posicionamento crítico que é imposta pela situação.

A metáfora criada pelo membro da Escola de Frankfurt neste ensaio publicado em

1938 parece manter-se de alguma forma presente na atualidade. Somos todos, talvez, (e não

entro no mérito causal da constatação) ouvintes-motoristas, incapazes de irmos alguns palmos

adiante da percepção imediata e sempre nebulosa dos objetos que nos cercam. Assim,

proliferam os depoimentos que dão conta da invariável dificuldade de interpretação que surge

à medida que nos deparamos com os diversos gêneros discursivos que nos surpreendem

cotidianamente.

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Ora, se estamos dirigindo nosso automóvel com a atenção requerida pela importância

da situação, não é lícito imaginar que se consiga, ao mesmo tempo, termos nossa capacidade

perceptiva integralmente voltada para outros focos. Ressalte-se que tudo indica que tal

situação tenha ocorrência intermitente, ou seja, mesmo quando estamos ouvindo música

mantemos nossa atitude de compenetrados motoristas. Parece-me que nesta altura o dedo foi

posto na ferida, e a dor irrompeu. A qualidade da audição ou da leitura – a possibilidade

estética desses empreendimentos – está relacionada com o grau de comprometimento que o

leitor-ouvinte entrega-se a tais tarefas. Portanto, aquele que insistir numa audição sendo

motorista não conseguirá sequer aproximar-se dos endereços possíveis de serem encontrados

na canção ou em qualquer outro suporte de discurso, artístico ou não.

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4.1 "NEGRINHO DO PASTOREIO": UMA TOADA EM FEITIO DE ORAÇÃO

De uma crônica de Henrique Pongetti, publicada no Rio em 1956, extraímos o seguinte trecho: “Musicalmente este país é impressionante de opulento. Mas para se ver como é desconhecida essa opulência, há o caso do folclore gaúcho: o Rio Grande do Sul se instalou durante 20 anos nesta metrópole de sambistas, e por aqui os donatários só cantaram o “fiz a cama na varanda”, “prenda minha” e outras cantiguinhas convencionais; [...] E seguem-se considerações sobre o súbito surgimento do Rio Grande do Sul no cenário da música regional brasileira, surpreendendo o público de todo o país com a beleza de seu cancioneiro. A Barbosa Lessa, como autor, e ao Conjunto Farroupilha, como intérprete, deve-se, em maior parte, o impulso inicial que culminou com essa nova realidade. O primeiro passo para o revigoramento da música regional gaúcha – dando-lhe novos temas e roupagens novas – foi a gravação do long-playing “Gaúcho”, disco de estréia do Conjunto Farroupilha, no qual figuravam (das 8 canções gravadas) 7 composições de Barbosa Lessa, dentre as quais “Negrinho do Pastoreio” (o famoso prefixo do Conjunto Farroupilha), hoje reconhecida como uma das canções mais populares e representativas do Rio Grande do Sul. 10

A canção "Negrinho do Pastoreio" surge em 1950, como característica do programa

Querência da Rádio Farroupilha, cantada pelo conjunto vocal da emissora – o Conjunto

Farroupilha e é lançada em disco em 1953 por Discos Rádio no primeiro LP do referido grupo

musical. Sem dúvida é, dentre as canções compostas por Lessa, a de maior reconhecimento

popular. E é singular a condição deste reconhecimento, posto que é tamanha a identificação

da população com seus versos e com sua melodia que, não raro, sua autoria é esquecida,

sendo sua construção atribuída a uma manifestação de domínio público. Alguns estudiosos do

folclore, talvez de forma um tanto precipitada, falam já de processo de folclorização, no qual

lentamente vai se construindo um apagamento da autoria que acabará por inserir a obra no

"conjunto de costumes, lendas, provérbios, manifestações artísticas em geral, preservado, através da

tradição oral, por um povo ou grupo populacional".11 Conta-se inclusive que, numa apresentação

festiva no colégio em que sua filha estudava em Porto Alegre, uma professora teria anunciado

a canção que seria interpretada por um grupo de alunos como se fosse de autor desconhecido.

Lessa estava na primeira fila da plateia. Deve ter sentido algum constrangimento, mas

também algum orgulho por constatar o tamanho do reconhecimento popular para com a sua

10 Excerto da apresentação assinada pelos editores do livro Cancioneiro do Rio Grande, que reúne textos e partitura de canções de Barbosa Lessa. Publicação de SERESTA edições musicais – 1963. 11 Entrada 1 para o verbete folclore no Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Versão 1.0. 5a – Novembro 2002.

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composição. Ainda que a situação remeta para algo contraditório, levando-se em consideração

o tanto de vaidade que possa existir em tais situações. Lessa nutria admiração reverencial pela

sabedoria popular. No livro Nativismo – um fenômeno social gaúcho, (MORIN apud LESSA,

2008, p. 107) é citado o francês Edgar Morin

Tudo parece opor a cultura dos cultos à cultura de massa: qualidade à quantidade, criação à produção, espiritualidade ao materialismo, estética à mercadoria, elegância à grosseria, saber à ignorância. Mas antes de perguntarmos se a cultura de massa é na realidade como o vê o culto, é preciso nos perguntarmos se os valores da ‘alta cultura’ não são dogmáticos, formais, mitificados.

Não podemos esquecer que o momento que circunstancia a criação do cancionista está

comprometido com o resgate de alguns elementos culturais que em sua visão eram relevantes.

No mesmo livro, no capítulo "A invenção das tradições" (LESSA, 2008, p. 68), (alusão

explícita à obra homônima dos historiadores Eric Hobsbawn e Terence Ranger) a partir de

uma afirmação lá encontrada, Lessa pondera "adaptando para o nosso caso: se um peão de

estância de Soledade sente necessidade de desfilar bem pilchado no dia 20 de setembro, pouco

adianta um teórico fazê-lo compreender que isto seja bom, bonito, feio, atrasado, cívico, lindo

ou reacionário..."

Mesmo que Barbosa Lessa não tivesse consciência dessas possibilidades

(reconhecimento público, permanência da obra), e como artista por certo não a tinha, é no

mínimo inquietante que vá se inspirar na lenda magistralmente contada por João Simões

Lopes Neto para arquitetar sua canção referencial. E não o faz como uma mera transposição

da narrativa prosaica para uma estrutura versificada/musicada. O autor reinventa, recria,

coloca-se dentro do universo da lenda. Para um melhor acompanhamento, vamos ao texto – e

bom seria que pudéssemos também aqui possibilitar ao leitor a audição, lacuna intransponível

que se pretende preencher pelo esforço de uma análise minimamente bem conduzida.

NEGRINHO DO PASTOREIO 1 Negrinho do Pastoreio, 2 Acendo esta vela pra ti 3 E peço que me devolvas 4 A querência que eu perdi. 5 Negrinho do Pastoreio, 6 Traze a mim o meu rincão, 7 Eu te acendo esta velinha, 8 Nela está meu coração 9 Quero rever o meu pago 10 Coloreado de pitanga. 11 Quero ver a gauchinha

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12 A brincar na água da sanga. 13 Quero trotear nas coxilhas 14 Respirando a liberdade 15 Que eu perdi naquele dia 16 Que me embretei na cidade. 17 Negrinho do Pastoreio, 18 Traze a mim o meu rincão, 19 A velinha está queimando, 20 Aquecendo a tradição.

A primeira impressão que se assoma desde os acordes iniciais já surpreende por

subverter um padrão estético que recentemente tem se consolidado como marca de

autenticidade ou selo de identidade da música regional gaúcha produzida nos últimos anos.

Não se ouvem solos de acordeão acompanhados de harmonia conduzida ao violão, nem o

ritmo é esfuziante como aqueles que convidam de imediato à dança. O que irrompe

desenhando alguns motivos da melodia ora em modo maior, ora em modo menor, é um naipe

de cordas de orquestra como seus altos violinos que fluem sobre suave base harmônica de

violas e cellos e o ritmo de discretíssima percussão. Mais parece estar sendo criado um

ambiente sonoro sobre o qual irá se desenvolver um western hollywoodiano dos anos

cinquenta com aquelas conduções magistrais de Enio Morricone. Contudo, basta iniciar o

canto para que o ouvinte veja mergulhada sua percepção em águas muito distintas daquelas do

hemisfério norte (ainda que se possa encontrar traços antropológicos semelhantes entre a

figura do gaúcho e a do cowboy, mas isso é pano para a costura de outras mangas).

A quadra de vozes, duas masculinas e duas femininas, que se abre dando o caráter

quase litúrgico da canção, parece pertencer ao apelo oratório que o negrinho escravo faz a sua

divina madrinha para encontrar a tropilha de baios que escapara dos seus cuidados pelas mãos

malevas do filho do estancieiro.12 O suspiro pranteado do escravo soou como música,

escreveu Simões. Aqui na canção, parece que a música quer voltar a ser pranto, ainda que

suspiro, quase sussurro. É uma oração para que se finde um desgarre. E o que foi perdido

parece ser maior que uma tropilha, perdeu-se um lugar, e quem perde um lugar está

despertencido e agoniza em seu não-estar como agonizou o negrinho sobre o formigueiro

fervente.

Há uma busca de iluminação na vela, na fruta vermelha, na água. Há também

afirmação da criação pelos quatro elementos vitais: fogo (vela), terra (pago, querência,

rincão, coxilhas), ar (respirando a liberdade) e água (sanga). Tudo alinhado pela sua suposta

12 "O Negrinho chamou pela Virgem, sua madrinha e Senhora Nossa, deu um suspiro triste, que chorou no ar como uma música, e pareceu que morreu..." (NETO, 2003. p. 450).

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antítese: a cidade. O estar na cidade é resultante de um embretar-se, e sendo assim, ali se está,

voluntária ou involuntariamente, contrariado. Contudo, a canção não desfaz o mundo urbano

para afirmar o mundo perdido. A afirmação do lugar de pertencimento se dá pela descrição da

paisagem, pela natureza bucólica das ações, pelo ofertar-se de um coração na chama que

aquece uma tradição para, em troca, ter devolvida a querência – o que rasamente pode ser lido

como aquilo que se quer, mas o canto, em seu caráter reverencial, assevera que se necessita.

A seguir apresento um diagrama para que melhor se possa acompanhar os desenhos

melódicos do canto. Tal modelo baseia-se naquele encontrado na obra já citada O Cancionista

de Luiz Tatit13 e pretende demonstrar as oscilações intervalares que constroem os fraseados da

melodia do canto. As sílabas estão dispostas na grade de maneira semelhante à notação

musical grafada em uma partitura, ou seja, debaixo para cima vão sendo dispostas

representando a trajetória que se dá do grave ao agudo. Sílabas nos degraus mais baixos

correspondem a notas graves e, na medida em que os degraus vão subindo, as notas vão se

tornando mais agudas. Cabe acrescentar que o modelo deste gráfico também está vinculado

aos exemplos utilizados nas classes de iniciação musical, nas quais era apresentada uma

pequena escada onde estavam dispostas as notas de acordo com a sua localização na escala.

Ressalta-se que tal modelo abarca meramente a natureza de altura da nota musical, não

contemplando a sua duração. Não se trata, pois, de uma tentativa de suplantar a capacidade de

notação que possui a partitura. Essa sim dá conta simultaneamente das duas situações. Na

análise das canções subsequentes, para não tornar esta leitura um tanto enfadonha por

repetitiva, não creio ser necessário recorrer à amostra de diagramação análoga. Apenas fiz

questão de apresentá-la neste momento para a visualização de um caminho analítico possível,

que possa contribuir para uma melhor apreciação das várias possibilidades interpretativas das

ocorrências textuais e musicais.

13 Saliento que o uso desta diagramação não remete este estudo às mesmas preocupações e ditames teóricos desenvolvidos na obra O cancionista. Trata-se apenas de uma maneira de ilustrar a análise, não tendo pretensões de enveredar pelos rumos da semiótica encontrados na obra de Luiz Tatit, não usando-a, portanto, como referência teórica.

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gri nho do to pas rei o ne ve cen do es ta la ti pra a

Pode-se perceber um salto da primeira para a segunda nota/sílaba do canto nos dois

primeiros versos. Em seguida o fraseado se estabiliza numa região mediana. Durante toda a

primeira parte da canção, o desenho melódico se dá sem grande aclives ou descidas bruscas,

ressalvando-se esse salto inaugural. Parece possível inferir que a distância sonora percorrida

entre as duas primeiras notas pretende dar conta da elevação que se busca quando se quer

atingir um interlocutor diáfano como ocorre em preces nas quais a intervenção de alguma

ordem divina pode ser a solução para impasses de natureza terrena. No caso, o negrinho

evocado parece ocupar este lugar santificado ou possuir o condão da interveniência divina. Na

primeira frase, o canto se estabiliza num movimento descendente. E pastoreio é uma atividade

terrena. Pelo que já se disse, o negrinho está no alto e por isso, talvez, a cristalização de tal

contraste.

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pe ço que de me vol vas e di que/eu per rên cia a que

Novamente, nas duas ideias verbo-musicais dispostas acima, percebe-se a recorrência

do que já estava à mostra anteriormente. No primeiro quadro, uma estabilização que desce, e

no segundo, nova elevação tentando dar conta do caráter diáfano da perda – a querência que

eu perdi.

gri nho do to pas rei o

ne

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cão rin meu

tra o ze/a mim

O que se repete com serenidade suplicante traze a mim o meu rincão, quando a frase é

aberta em uníssono pelas vozes masculinas, para depois o quarteto harmonizar-se em quatro

percursos paralelos de trajetória ascendente. Ainda que a vela acesa seja o instrumento através

do qual se quer atingir a transcendência, talvez, devido a sua concretude, se possa dizer que a

solução do primeiro trecho abaixo seja com a última nota/sílaba em trajeto descendente.

Deve-se fazer uma distinção entre as significações vela e velinha. Por essa diferenciação,

talvez possamos compreender a natureza deste movimento em declive quando, conforme

dissemos há pouco, o tema remete para um instrumento para alcançar transcendência. A

palavra é apresentada no diminutivo. Essa condição lhe confere algo de afetivo, de ligação

próxima, íntima mesmo. O objeto, pois, está ao alcance daquele devoto, mesmo que seja

através dele que se procure a elevação. E por essa proximidade pode se explicar a solução

musical descendente. O coração vai na chama da vela. E a chama é o elemento que

transcende. Parece dissolver-se em sua dança, mas se mantém em luz e em calor diante de

prece tão sentida.

cen do es te/a ta li eu ve nha

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ne la/es tá meu co ra ção

Chama também a atenção que a voz solo do arranjo é feminina. E isso é recorrente na

obra de Barbosa Lessa. Inúmeras intérpretes brasileiras lançaram suas composições. Umas

quase esquecidas como Lueli Figueiró14 que gravou a primeira canção composta por Lessa: a

valsa "Quero-quero" – (que será analisada adiante) composta em 1946, quando o autor tinha

apenas 17 anos, e gravada em 1956 em disco de 78 rotações; e outras ainda em plena

atividade como Inezita Barroso15 que apresenta semanalmente o programa Viola minha Viola

pela TV Cultura de São Paulo. Chama a atenção porque nestes mais de sessenta anos de

música regional no Rio Grande do Sul, desde Pedro Raimundo, passando por Teixeirinha e

Gildo de Freitas e chegando a Gaúcho da Fronteira e Luiz Carlos Borges – citando apenas uns

poucos – nota-se a esmagadora preponderância de interpretes masculinos. Note-se que

também são raras as compositoras, ainda hoje, no regionalismo gaúcho. Digo isso, pois, na

coletânea que serve de base para este estudo encontra-se um número significativo de cantoras.

Além das já citadas, temos: Iná e Estrela D’alva (do Conjunto Farroupilha), Stelinha Egg,

Ana Silva (da dupla Cascatinha e Inhana), Carla Diniz e Fátima Gimenez (do Grupo

Tempero).

14 Segundo o Dicionário Cravo Albin: Iniciou a carreira no princípio da década de 1950 e integrou o elenco da Rádio Gaúcha e foi considerada como uma das melhores intérpretes do sul do país. 15 Também pelo Dicionário Cravo Albin: Cantora. Instrumentista. Arranjadora. Folclorista. Atriz. Começou a cantar aos sete anos de idade. Aos nove, já admirava o poeta modernista Mário de Andrade, que morava ao lado de sua casa à Rua Lopes Chaves na Barra Funda, em São Paulo, a quem esperava passar todo dia enquanto brincava de patins. Aos 11 anos, começou a estudar piano. Fez o curso de Biblioteconomia. De 1982 a 1996, lecionou Folclore na Universidade de Mogi das Cruzes. A partir de 1983, começou a lecionar na Faculdade Capital de São Paulo.

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Como já foi dito a canção "Negrinho do Pastoreio" é uma oração. E a súplica mais

contundente desse canto talvez esteja justamente na abertura da segunda estrofe, quando a

soprano reza quase que de forma gregoriana:

pa go o meu re ver ro que co lo rea do de pi tan ga

O fraseado musical do primeiro verso é ascendente. Parece buscar a elevação divina,

o éden perdido. O pago está no alto, além do plano terreno. Além do humano, talvez. Logo,

contudo, a melodia faz desenho reverso, volta sobre si mesma como se constatasse a

impossibilidade daquela escalada do devaneio recém proposta. Esse jogo, essa tensão de

pergunta e resposta parece ser recorrente nas construções cancionistas, pode-se perceber

ocorrência análoga em narrativas prosaicas e em poesia, quando os elementos estruturais

situam-se em permanente diálogo e desafio para a devida produção de sentido. E a resposta

das quatro vozes harmonizadas em quatro trajetórias paralelas distintas refaz o mesmo

percurso do desenho da solista.

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chi nha ga u ver a ro que

brin can do na/a gua da san ga

Ao que as vozes masculinas logo sublinham com suavidade de forma uníssona.

Constatação também recorrente no arranjo vocal. Quando a intenção é a de explicitar algo

tocado por uma tranquilidade (bucólica tranquilidade como aqui está posto), parece que as

vozes masculinas (por mais graves, talvez) e ainda com desenho em descida constroem de

forma mais eloquente o sentido pretendido.

que ro tro tear nas co xi lhas

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do/a li da ran ber pi de res

Para mais uma vez o naipe completo das vozes possa arrematar, como se o desfecho

que remete à sensação de que se está irremediavelmente à mercê da prisão urbana seja algo

comungado por homens e mulheres. Todos pranteiam, pois, a querência perdida.

di a que le di na per que/eu que me/em bre tei na ci da de

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Apesar da alusão a cavalgar em liberdade remeter para uma paisagem de revoluções

como as que povoam as páginas históricas do Rio Grande do Sul, o tom desta alusão não

tende ao épico ou a grandiloquência. Como tentaremos demonstrar no desenrolar da análise,

pode-se adiantar que uma das singularidades do compositor Barbosa Lessa, que como já se

disse é um dos criadores do movimento tradicionalista, talvez seja a de apresentar em sua obra

de cancionista um gaúcho humanizado, distanciando-se da figura estereotipada que pode ser

encontrada em tantas distorcidas narrativas épicas. Portanto, o arquétipo não se torna

estereótipo. Aquele que canta, o faz pedindo um mate, observando a natureza, contando

causos, convidando para dançar, resenhando uma existência difícil. Fala de bois, de carretas,

de amores, de deuses, de índios, de trabalho e de bem querer.

De volta à canção, a indagação sobre o fascínio que exerce aquele lugar perdido – a

querência, que se pede seja devolvida na prece ao negrinho – continua rondando a análise.

Pode-se demonstrar as primitividades imaginárias mesmo a respeito desse ser sólido na memória que é a casa natal. Por exemplo, na sua própria casa, na sala familiar, um sonhador de refúgio sonha com sua cabana, com o ninho, com os cantos onde gostaria de se encolher como um animal em sua toca. Vive assim em um além das imagens humanas (BACHELARD, 1993, p. 47).

Parece plausível reconhecer que a querência perdida está instalada na concretude da

memória deste autor/sonhador. Sendo assim, os locais que se anseia rever, revisitar, tocar,

situam-se num além inesgotável. Algo entre o sensível e o insondável. Algo que se cristaliza

mais no devaneio que no pensamento. E talvez seja por seu devaneio que o artista convide o

seu ouvinte/observador a empreender viagem conjunta. Ainda citando Bachelard, "os centros

de devaneio bem determinados são meios de comunicação entre os homens de sonho com a

mesma segurança que os conceitos bem definidos são meios de comunicação entre os homens

de pensamento" (BACHELARD, 1993, p. 56).

Lessa, nesse aspecto, é um homem de devaneio. Talvez o artista só possa atingir a

plenitude de seu engenho por estar sempre atento a sua própria capacidade de devanear, de

deixar-se conduzir pela imaginação. Essa é a quase levitação que se impõe quando se instala o

instante, o átimo, a fagulha criativa. Aquele "instante já que de tão fugidio não é mais"

(LISPECTOR, 1998, p. 9). A epifania, o advento, o ato inaugural que sempre está presente,

ainda que inescrutável, na criação artística. Já se falou que neste ato o indivíduo é tomado por

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uma clarividência sonambúlica16; ou que a sensação que aflora neste momento é a de estar-se

submerso e consciente em uma sala que acabou de ser invadida por calmas águas.17

Retornando à canção, logo após as quatro vozes se harmonizarem em tessituras

distintas para a consagração da perda referendada em "que eu perdi naquele dia em que me

embretei na cidade", é pela orquestração que se dá a retomada do tema central da melodia.

Essa retomada parece querer sublinhar a potência do rogo. Rezam nas alturas os violinos

sobre a primeira parte melódica que corresponde ao canto. É um solo evocativo, reverencial,

genuflexo, que se alteia e oscila e retorna como se desenhasse as circunvoluções da chama

acendida em prece ao negrinho. E por fim serena pedindo de volta a querência perdida. E

assim novamente as vozes ressurgem. Agora parecem mais suplicantes. A querência virou

rincão. A vela está aquecendo algo intangível, algo que só permanece pela memória, por essa

concretude vaga de que é feita a imaginação. Ainda uma vez Bachelard, "o ser reina numa

espécie de paraíso terrestre da matéria, fundido na doçura de uma matéria adequada. Parece

que nesse paraíso material o ser mergulha no alimento, é cumulado de todos os bens

essenciais" (BACHELARD, 1993, p. 27).

Na canção, os bens essenciais estão ao abrigo de uma casa invisível, mas sensível, que

o poeta nomeia como tradição. Registre-se que tal palavra tem origem latina, significando

ação de dar, transmitir, entregar, passar a outro. Neste ponto, talvez possamos afirmar que no

canto exista um subliminar desejo de permanência do sujeito. A chama que aquece a tradição

serve de luz também para que as experiências de devaneio do indivíduo prossigam depois

dele. O coração que se ofertou na vela acesa guarda a pulsação do eterno que só se faz

humanamente possível pela transcendência. Não sendo assim, portanto, a querência torna-se a

maior perda. O que se esvai, de forma possivelmente irreconciliável, é aquele que cria, e sua

imperceptível dissolução está inexoravelmente instalada no instante mínimo da deflagração

criativa. E com ele se vai quem canta, se vai quem ouve e também, por certo, quem se põe a

refletir tentando acender algumas luzes no interior desta cabana, ou casa, ou útero, ou

eternidade. Talvez só reste mesmo deixar-se levar por aquelas coxilhas respirando uma

liberdade primordial que não virá, cantando desde um lugar que não se quer estar, desejando

sempre estar nalgum não-lugar onde seja possível encontrar-se consigo mesmo. E seguir

16 WAGNER, Richard. Beethoven. Porto Alegre: L&PM, 1987, p.22. O autor cita o filósofo Schopenhauer que em reflexão sobre o momento criativo sugere haver um estado de vigília que escapa à consciência cerebral deflagrando a ocorrência de um sonho alegórico. 17 O compositor norte-americano Tom Waits certa feita construiu essa metáfora para explicar a sensação que o tomava quando do momento em que compunha.

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acendendo promessas a um negrinho que só depois de morto consegue em paz pastorear sua

tropilha de baios, e ainda assim, sempre ao abrigo do manto de sua santa madrinha.

gri nho do to pas rei o ne cão rin meu tra o ze/a mim

li nha es ve tá man a quei do

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a que cen do/a tra di ção

O quarteto final é análogo ao quarteto composto pelos versos 5,6,7 e 8 da canção.

Existe apenas uma variação em relação ao texto. Há aqui a evidência da vela que então já

queima, e a reverência a uma tradição que se fixa. Tanto como pretensão de permanência

quanto como no desenho consolidado pelas vozes em harmonia.

"Negrinho do Pastoreio" é uma canção quase litúrgica. Talvez pela inigualável

singularidade, conseguiu atingir de forma tão contundente o gosto popular e plasmar-se neste

imaginário, que é quase uma casa para gaúchos, mundo a fora.

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4.2 "QUERO-QUERO": UMA VALSA ENTRE A AVE E O VERBO

A valsa "Quero-quero" data de 1946. É a primeira composição de Barbosa Lessa, que

tinha na época 17 anos. Nesta análise tratamos da sua primeira gravação feita pela gaúcha

Lueli Figueiró em 78 rotações para a gravadora Continental no ano de 1956 e conta com o

acompanhamento de Rafael Puglielli e sua orquestra.

Quero-quero, Quero-quero, Quero-quero gritou lá em cima, Quero-quero quando grita É por que alguém se aproxima Quero-quero no meio da noite Gritou por que viu alguém se aproximar Eu também na noite da vida Enxerguei esta luz que vem do teu olhar

E agora, gauchinho, Eu grito com todo o fervor Quero-quero, quero-quero, Quero-quero teu amor

Mesmo que não ocorra com a intensidade semelhante a que acontece com a toada

"Negrinho do Pastoreio", nesta canção também há, vez por outra, o apagamento da autoria.

Na minha geração, nas aulas de canto e nas apresentações escolares, "Quero-quero" tinha

presença constante e, se bem me recordo, muito raramente, havia a declinação do nome do

autor.

A introdução instrumental é conduzida por violinos que dialogam com um acordeom,

que desenha o fraseado conjuntamente com as cordas e responde isoladamente aos motivos

que são apresentados até que a solista vocal assuma a exposição do canto. Essas respostas do

acordeom criam o ambiente rítmico sobre o qual a voz da intérprete vai se desenrolar. A

melodia é simples e se desenvolve sobre uma escala maior oscilando entre o terceiro e o

segundo graus sobre uma harmonia basicamente alternada entre tônica e dominante. Essa

característica é recorrente em construções oriundas da espontaneidade das criações populares,

provavelmente, em função da natureza empírica que orienta tal engenho.

A nota inicial do canto se repete nos primeiros compassos, dando a sensação que se

pretende fixar os contornos da ave que é descrita. A primeira elevação de intervalo incide

justamente sobre a expressão gritou, mais especificamente sobre a sua sílaba tônica. A

sensação desencadeada parece ser a de que o ouvinte, por meio desta elevação intervalar, é

transportado para perto da cena, um lugar próximo ao do observador/cantor. Em seguida, no

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terceiro verso, o desenho faz trajeto descendente, mudando o foco que anteriormente estava

no pássaro para trazer à paisagem da canção aquela aproximação de alguém que pode haver

provocado a reação do grito. Nessa parte inicial da letra, no primeiro quarteto, a melodia é

entrecortada, não flui, não se alonga. Pássaro, grito e aproximação parecem prender o

desenvolvimento do fraseado, assegurando que o foco expositivo fique aí fixado.

Quero-quero, Quero-quero, Quero-quero gritou lá em cima, Quero-quero quando grita É por que alguém se aproxima

Contudo, a métrica encontrada na segunda quadra “solta as rédeas” da condução e

transforma o cenário. Agora a melodia ganha contornos de fluidez. Ela quase se estabiliza

num verso de nove sílabas e a seguir se projeta descendentemente num hendecassílabo. Nas

duas construções seguintes, a composição parece repetir o movimento anterior. Note-se,

porém, que no terceiro verso da estrofe o quadro de impressão estável está sobre oito sílabas,

e o trajeto descendente mantém-se por doze divisões silábicas. Numa rasa aritmética podemos

perceber que, agrupando o texto em apenas dois dísticos, chegaremos a uma construção de

dois versos bárbaros de vinte sílabas. Apenas há de se evidenciar que essa observação a

respeito da métrica refere-se meramente a questões textuais. A palavra cantada, por sua

inesgotável capacidade de permanecer e sucumbir, assume, invariavelmente, durações

distintas daquelas encontradas nos manuais de versificação.

O caráter, entretanto, picotado dos compassos iniciais não desaparece totalmente neste

segundo momento da composição. O canto é sublinhado por ataques curtos das cordas e do

acordeom. Aquele que já teve a oportunidade de observar a ave cinzenta de esporão vermelho

no encontro das asas, por certo, já pode notar que em momentos nos quais sua atenção não

está sendo chamada, o seu deslocamento pelo campo é lento e picotado; por vezes para, mas

em seguida arremete mais algumas passadas curtas e firmes. É justamente fazendo analogia a

esse andar pausado do quero-quero que a orquestra se mantém em contraste ao alongamento

do canto. E desta disparidade é que surge o encantamento de uma construção que às vezes

parece tender ao óbvio poético e musical. Podemos também inferir que tal tensão do ritmo

está construindo analogia com condição de vigilante, de sentinela dos campos, de sentidos em

vigília que a ave possui. O espaço sonoro assim disposto mantém em alerta o espírito ouvinte.

E é nessa condição que surge o traço luminar do quero-quero. Em vigília análoga à do pássaro

a voz que canta revela ter encontrado o olhar do amor.

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Quero-quero no meio da noite Gritou por que viu alguém se aproximar Eu também na noite da vida Enxerguei esta luz que vem do teu olhar

Para o arremate desta primeira exposição, o canto retoma a forma entrecortada da

parte inicial da canção. Essa segmentação remete ao êxtase de uma revelação. A voz

apaixonada que canta está agora misturada ao grito denunciante do pássaro. E percebamos

que querer e amar são verbos que em dado momento possuem carga semântica muito

próxima. E quando se quer em dobro, como grita a alada sentinela, talvez se esteja muito

próximo de enxergar esta luz que vem de um olhar.

Apenas como curiosidade, comento sobre uma divergência encontrada entre o texto

impresso no encarte da publicação que serve de base para a análise em curso e a palavra

efetivamente cantada na gravação. Na última estrofe, de acordo com a impressão, presumo

que em função da autoria da canção ser masculina, está grafada a expressão gauchinha. Como

já foi dito, a interpretação é feminina e, sendo assim, a expressão gravada é gauchinho.

Naturalmente, existe a possibilidade das duas formas. Essa questão de gênero parece neste

caso ser de fácil acomodação. Contudo, considerando-se a época em que a gravação foi

efetuada (meados dos anos 50), é no mínimo curioso que quem assuma a voz de um discurso

tão amorosamente atirado seja uma figura feminina. Digo isso, porque ainda hoje, em

algumas situações bem localizadas, pode-se presenciar vozes femininas cantando esta mesma

canção optando pelo gênero do autor.

E agora, gauchinho, Eu grito com todo o fervor Quero-quero, quero-quero, Quero-quero teu amor

A canção parece ter esgotado suas possibilidades. As nuances instrumentais já fluíram

e refluíram suas evoluções. O texto já foi cantado em sua íntegra. Quando tudo parece remeter

para o acorde final, na elevação quase ao limite da voz soprano, num movimento rápido de

poucas notas, as cordas encaminham uma modulação de meio tom que em tudo confere novo

colorido àquelas sonoridades até ali desenvolvidas.

Com esta elevação do campo harmônico, surge um coro de vozes masculinas para

estabelecer contraponto com a interpretação feminina. Como se o fraseado de tal intermezzo

colocasse frente a frente o casal apaixonado.

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O coro expõe novamente a parte inicial do canto e a repete. O arrebatamento com que

é finalizada a interpretação da primeira parte agora é substituído por algo de suavidade, como

se aquele estado de alerta anterior tivesse diminuído a ansiedade. Quando a cantora retoma o

solo, já tudo flui com notado enlevo. Já não há, no acompanhamento da segunda quadra do

texto, aquela segmentação do início. Agora a canção parece ter atingido uma ambientação

sublime. O quero-quero freou seu passo desconfiado e apenas contempla, talvez em desacordo

com sua natureza aflita. Parece que agora sim a ave foi transformada no canto. E o que

ressurge de tal mudança é um verbo em repetição. O grito virou um querer dobrado.

Ao encaminhar para o final, diante da constatação proposta pela expressão e agora, o

coro masculino interage com a intérprete pontuando, sublinhando junto com o instrumental a

evolução da cantora. Para finalizar, como se tal encontro evidenciasse a congruência daqueles

olhares, as vozes masculinas somam-se à voz solista e arrebatadamente ascendem no canto

que afirma e repete quero-quero teu amor, concluindo ascendentemente – vozes e orquestra –

sobre a nota tônica na oitava superior da escala maior. Como se o quadro sonoro fosse uma

apoteótica celebração do encontro.

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4.3 "CANTIGA DE EIRA": INDO E VOLTANDO PARA O MESMO LUGAR

No encarte da publicação que é referência para esta análise, para cada título há a

designação do gênero musical ao qual pertence a canção. Tal gênero, que não raro é

confundido com ritmo18, pode ser valsa, rancheira, chotes, milonga. Contudo, a canção

"Cantiga de Eira" está designada como sendo do gênero canto de trabalho19. Na atualidade da

produção musical regionalista praticamente não se registram ocorrências semelhantes, ainda

que muitos dos alicerces da música popular brasileira repousem sobre essas primitivas formas

de expressão cantada.

A interpretação é de Stelinha Egg20e a gravação original data de 1957 pela gravadora

Odeon. Já na abertura, o arranjo musical prepara a dinâmica de rotação sonora sobre a qual se

dará o desenvolvimento da canção: uma instrumentação percussiva procura imitar batidas de

cascos e o sibilado da palha do feijão ao quebrar-se. Esta percussão acompanhará o

instrumental e as vozes até o desfecho da canção – por vezes bem saliente, por vezes quase

escondida, mas perceptível. A explicação está no próprio texto: A eira é um curral pequeno

redondo. Local onde os cavalos são postos em movimento circular contínuo para o debulho da

colheita do feijão. Esse método rudimentar ainda pode ser encontrado, mesmo que não seja

frequente, no interior do estado em pequenas propriedades de economia familiar.

Talvez seja, sob uma ótica muito pessoal, umas das mais instigantes composições de

Barbosa Lessa. A adequação das sonoridades instrumentais e vocais com a musicalidade das

palavras se iguala a raros momentos da produção cancionista brasileira. Cada supressão de

consoante final, cada omissão de plural, cada variação fonética que a princípio parecem

apenas querer dar evidência a um linguajar matuto ou caboclo ou ainda rural, faz muito mais

que isso: cria uma sonoridade e uma rítmica que, sendo isto possível, faz saltar aos ouvidos as

cores que constituem a cena cantada. É em tal circunstância que a batê casco, dibuiando as

casca, vortando, êra, sem pará, té cansá são construções absolutamente imprescindíveis para

a constituição de um sentido que de forma outra seguramente não seria possível. Vamos ao

texto em sua íntegra:

18 O ritmo musical pode ser binário, ternário ou quaternário, simples ou composto. 19 Canção de trabalho é tipicamente uma canção rítmica sem acompanhamento instrumental cantada por pessoas enquanto trabalham numa tarefa física muitas vezes repetitiva. 20 Sua carreira profissional se iniciou na Rádio Clube Paranaense, em Curitiba (PR). Venceu um concurso de melhor intérprete do folclore brasileiro e foi contratada a partir daí pela Rádio Tupi de São Paulo, para onde transferiu-se logo depois. Na capital paulista trabalhou nas Rádios São Paulo e Cultura. No início dos anos 1940, transferiu-se para a Rádio Tupi do Rio de Janeiro, onde se apresentou ao lado de Dorival Caymmi e Sílvio Caldas. Em 1960, gravou na Odeon cantando com o Trio Irakitan a limpa-banco "Entrevero no jacá", de Barbosa Lessa e Danilo Vital. Dedicou-se ao estudo e à pesquisa do folclore brasileiro.

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Bota os “matungo a batê casco” “Dibuiando as casca” do feijão na êra Bota os “matungo a batê casco” “Dibuiando as casca” do feijão na êra A eira é um curral pequeno redondo Por isso os “matungo” arrodeando Vão indo e “vortando” pro mesmo lugar Escuta o barulho “dos casco” Descascando “as casca” do feijão na eira Escuta o barulho “dos casco” Descascando “as casca” do feijão na eira Eu pego do ancinho, carrego “co’a paia” Em riba do chão ficando, Preteando só os “grão” de feijão Os “cavalo encerrado” no meio da eira São “tudo amuntado e obrigado” a trotear sem parar (sem pará sem pará sem pará) (té cansá té cansá té cansá) Mas por mais que eles marchem no trote Troteando vão sempre “vortando” E cruzando no mesmo lugar (sem pará sem pará sem pará) (té cansá té cansá té cansá) (escuta os cascos descascando as cascas)

Falamos a pouco em movimento rotatório. Para que tal característica, própria daquele

fazer, ganhe em evidência e em convencimento, a canção em sua construção sonora parece

também andar em círculos. Os cavalos na eira arrodeiam e voltam sempre ao mesmo local

empilhando, sobrepondo seus rastros numa rota interminável. As repetições, as aliterações, os

gerúndios são fios que, junto com elementos musicais como a insistência em uma mesma

nota, o acompanhamento praticamente recaindo sempre sobre o mesmo acorde, são tecidos,

são trançados meticulosa e eficazmente para criar a sensação e o sentido do círculo. Há um

único momento (que também se dá de forma repetida) no qual uma escala mais longa é

desenvolvida. No trecho os cavalo encerrado no meio de era..., o canto parece que vai

desprender-se de seu centro imutável para encontrar solução em alguma outra possibilidade.

Até a cronologia do desenrolar dos intervalos que, saindo da nota tônica da escala, saltando

em seguida para a terça maior, e logo para a quinta e adiante para a sétima menor, induz ao

ouvido afoito que a harmonia terá solução num ambiente além do circular. A impressão

desavisada é de que aquele movimento recorrente que marcou a canção até ali será

inexoravelmente rompido. Essa impressão advém do fato do intervalo de sétima menor no

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mais das vezes encaminhar para uma solução musical que tende a se estabilizar num acorde

de quarto grau de uma cadência harmônica. Tentando exemplificar, na escala maior natural

cuja referência é a nota dó, teríamos, grosso modo, a seguinte progressão harmônica (ou de

acompanhamento): dó/ dó com sétima/fá. Absolutamente, não é o que ocorre na canção em

foco. Quando o canto atinge o sétimo intervalo da escala, ao invés de se estabilizar, a

progressão continua ainda até o nono intervalo, para somente aí empreender retorno. Essa

volta descendente haverá de ser solucionada justamente sobre a nota tônica, que mais uma vez

assume o encaminhamento do discurso. Como os cascos dos cavalos dentro da eira, a melodia

fez, com este seu ousado movimento, o mesmo percurso cíclico que os elementos todos da

construção litero-musical haviam percorrido desde o início, mesmo antes do canto, quando da

apresentação sonora dessa "Cantiga de Eira".

Novamente a voz da solista está acompanhada por um coro de vozes masculinas. A

voz feminina expõe os motivos do texto e da melodia, e o coro os repete, reafirmando sempre

essa pretensa intenção de manter em evidência o estafante périplo desta jornada de regular

circularidade. Para arrematar, já no final da repetição total da canção, que é mais um sinal de

reforço desta impressão de regularidade quase imutável da canção (e das atividades rotineiras

de trabalho análogo àquele que está sendo realizado), num primeiro momento semiescondido,

para em seguida ser uma espécie de reticência, pois, naturalmente, um ambiente destes tende a

perdurar, o coro masculino esvai-se junto com a canção reforçando de forma onomatopaica

escuta os cascos descascando as cascas. A aliteração que constrói a sentença e a recorrência

da mesma nota musical no canto – que é a nota inicial – confere ao canto como que a projeção

da imagem cantada, parece que o pictórico nos é dado pela confluência das linguagens. E a

sensação que agora já domina a audição é a de que a canção que se iniciou insinuando algo de

circularidade se finda com os cascos em círculos. E sendo assim, os ouvidos agora também

parecem ouvir em trajetória circular cheia de sibilados que se quebram como palhas de feijão

e se reafirmam como rondas repisadas.

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4.4 "ENTREVERO NO JACÁ": ONOMATOPEIA E CONCRETISMO

Esta canção é um dos raros momentos em que se encontra um parceiro assinando a

autoria junto de Barbosa Lessa. Trata-se de Danilo Vital de Castro, um dos integrantes do

Conjunto Farroupilha, formação que talvez seja a principal intérprete das canções criadas por

Lessa.

Singularmente, estamos diante de uma marchinha, gênero largamente difundido na

música brasileira, principalmente nas produções da Atlântida Cinematográfica21 e muito

vinculado aos bailes de carnaval da época. Essa primeira gravação é de 1958, e a canção foi

composta para integrar a trilha sonora do filme Cara de Fogo do diretor Galileu Garcia22. Tal

singularidade deve-se ao fato de que, atualmente, pouco se encontra do gênero nas canções

produzidas dentro desse espectro regional.

E a surpresa torna-se ainda maior, quando já na introdução instrumental da canção,

não se ouvem os instrumentos que foram consagrados como aqueles que personalizam a

musicalidade regional gaúcha: o violão e a gaita. Desenvolvendo uma melodia ligeira surge

um naipe de sopros acompanhado por harmonização ao piano e por um ritmo sustentado pelos

pratos frenéticos da bateria, com uma tímida acordeona respondendo aos fraseados do solo. A

sonoridade que se instala lembra em muito a das festas em comunidades de origem

germânicas com suas tradicionais bandinhas constituídas em sua base de instrumentos de

sopro.

Iniciado o canto, mais uma vez uma quadra de vozes assume o texto da canção. E a

linguagem, por sua construção distinta daquela referendada pela norma culta, parece indicar

que aqueles que cantam o fazem a partir de um lugar onde algumas variações linguísticas são

constituintes de uma personalidade identificável como a de uma personagem do universo

rural. Vejamos a parte inaugural do texto:

Vô mandá fazê um jacá Pra prendê mi’a criação Mas eu vou misturaiá

21 Grande empresa nacional de produção cinematográfica com marcada atividade nas décadas de 40 até o início dos anos 60. 22 Galileu Garcia iniciou sua carreira profissional na imprensa, como comentarista e crítico, e em seguida entrou no setor de publicidade da Vera Cruz, participando dos lançamentos dos filmes Terra é Sempre Terra e Ângela. Participou da realização dos filmes Sai da Frente, O Cangaceiro, Floradas na Serra, Na Senda do Crime, São Paulo em Festa, O Sobrado, O Gato da Madame, Paixão de Gaúcho e Osso, Amor e Papagaios. Foi autor do longa Cara de Fogo, tendo realizado também o roteiro do filme, e do argumento e roteiro de As Aventuras de Pedro Malasartes, de Amacio Mazzaropi.

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As galinha co’os leitão Pego aqui mas vendo ali Caço cá, caço acolá Mas qualquer caça que eu cace Vô bota no meu jacá

Preliminarmente creio ser necessária uma explicação sobre o significado da palavra

jacá. Trata-se, segundo Houaiss (2001, p. 1665), de um cesto trançado de taquara ou cipó

usado no transporte de cargas, sobretudo preso ao lombo de animais, proveniente do tupi

aya'ka 'cesto feito de taquara'.

Há, nesse primeiro trecho, uma insistência sobre a tonicidade oxítona das palavras.

Para isso se recorre à supressão do fonema final dos vocábulos dando forma a este linguajar

próprio das culturas cuja sabedoria não provém dos ditames mais próximos da erudição.

Contudo, são construções frequentemente encontradas na linguagem falada. As indicações de

plural estão explícitas na flexão dos artigos, sendo assim parece que o falante dispensa a

devida concordância. Quanto ao encadeamento das rimas, na primeira quadra o primeiro

verso vincula-se ao terceiro, e o segundo, ao quarto constituindo assim pares de rimas

perfeitas ou consoantes. Na segunda quadra, no primeiro e no terceiro verso há a presença de

rima assonante ou imperfeita, de ocorrência interna. As questões rítmicas estão assim

ressaltadas pelas aliterações, consonâncias e assonâncias ocorrentes. Mas, para manter aquela

rima em a proposta pela palavra jacá, os cantadores, no terceiro verso da primeira estrofe,

entoam um misturaiá. Essa situação remete para algumas possibilidades que soam bem

interessantes.

Na abordagem da introdução musical, faltou mencionar o caráter um tanto caótico

daquele arranjo. Esse caos não é referido pela desorganização de tais sonoridades, e sim pela

velocidade da melodia executada pelos sopros e pela intermitência com que os pratos

conduzem o ambiente percussivo. Mesmo que uma análise da escritura musical deixe evidente

a ordenação lógica dos compassos da introdução, a impressão auditiva que se dá é de algo

desordenado, sem simetria, um cenário que vai se compondo aleatoriamente, sem uma

preocupação organizacional evidente. A expressão que sintetiza essa entropia é justamente

misturaiá. Seria uma forma de dizer “misturar lá” (no jacá)? Talvez. Ou ainda algo como

“misturarei”, um futuro do presente que, apesar de estritamente correto, por certo seria

responsável por uma dissonância muito inapropriada, mesmo que isoladamente a expressão

criada esteja propensa a representar um caráter dissonante. Contudo o efeito sonoro está em

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justa adequação com a estrutura litero-musical proposta. Tal confusão é explicitada na quadra

a seguir

Tem jacutinga Tem jacu Jacaré em jacá Tudo a gritá

Imagine-se um cesto trançado onde se encontram a um só tempo galinhas, leitões,

jacutingas, jacus, jacarés: pode-se inferir de tal quadro, minimamente, uma confusão – de sons

e de desconforto, pois estão todos a gritar. Aquele misturaiá é gerador de barulho. Essa

junção se clarifica na conclusão do texto:

A galinha: “corocó” Saracura: “treis-pot!” E o peru faz “glu-glu-glu Gulugulugu, gu-lot-lot” A porca: “quem-quem” O leitão: “quim-quim” E a perdiz “pirimpimpim Biribiribim, pirimpimpim”.

Surgem então essas expressões onomatopaicas que encaminham o arremate e o sentido

de toda a construção. E é curioso que esse fechamento não traga uma conclusão cronológica

em termos de sequência narrativa para o texto tratando de um desfecho para aquelas ações

apresentadas. O que parece ficar referendado de forma evidenciada e talvez irretorquível é o

conteúdo caótico de tudo o que foi cantado. Os versos finais dos dois quartetos são

sonoridades cujas propriedades semânticas estão, a princípio, apenas vinculadas às vozes do

peru e da perdiz. Todavia, diante da condução expositiva da canção, acabam ganhando em

vigor de sentido, uma vez que dão conta daquela situação anárquica desencadeada por aquele

misturaiá.

Como o texto expõe nos versos inaugurais, a voz que canta é a de alguém que vai

vender sua criação e suas conquistas de caça. Essa situação, o cenário descrito, que é por onde

a personagem transita dentro da canção, o estado de leveza de que aquele espírito vai tomado,

tudo parece estar muito bem sintetizado no momento intervalar do canto. A melodia é

assumida, dentro do arranjo instrumental, pelo assovio alegre (talvez da própria personagem)

que se soma aos sopros e à insistência quase ensurdecedora da percussão através dos pratos

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que pulsam em todos os tempos de cada compasso da parte instrumental, sem respiros ou

silêncios.

A canção é exposta por duas vezes, praticamente, sem variação entre as abordagens.

Porém para o encaminhamento final há ainda uma ocorrência a ser considerada. Cria-se um

jogo de pergunta e resposta entre as vozes dos cantores e os instrumentos. Aquelas expressões

onomatopaicas que definem, na canção, os animais que até o momento eram dadas também

pelo canto, agora passam a ser expressas pelo instrumental. Deste modo: o coro parece

desafiar – a galinha – e a resposta, a onomatopeia, o corocó surge através do trompete;

seguindo – saracura – e o treis-pot é cantado pela gaita; e segue a gaita em gulugulugu, gu-

lot-lot, como se fosse o peru; e no quarteto final, pela a porca “fala” o tompete com um efeito

tremolo; pelo leitão e pela perdiz o arremate é do acordeom. Para concluir, a sonoridade

alegre e frenética da “bandinha” repete os compassos já expostos e coloca o ponto final. O

texto e a música assim estão justapostos um necessário ao outro irremediavelmente.

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4.5 "CARRETEIRO": ALGUÉM CANTANDO DENTRO DA CANÇÃO

Há um trecho de uma cena descrita no primeiro volume da Trilogia do gaúcho a pé –

o romance Sem rumo de Cyro Martins (1977, p. 88) –que diz

[...]o ringido agudo e cansativo das rodas nos repechos, suportou o fastio daquela pasmaceira, aprendeu a ter paciência, até que se acostumou a andar devagar, a não ouvir as rodas rechinantes e até a distrair-se guindo os bois.

Esse é o ambiente da canção "Carreteiro". Um acorde de guitarra muito próximo

daquela sonoridade que acompanha as danças havaianas23 imortalizadas no cinema norte

americano, com aquelas belas e sensuais nativas movendo as cinturas elásticas e

serpenteantes, dialoga com as vozes masculinas, o acordeom e em seguida com as vozes

femininas. É um acorde agudo que se distorce enquanto se alonga, parecendo o girar

lamuriento das rodas da carreta. A gaita responde também aguda, num rechino pasmacento.

Assim se configura a voz múltipla de um narrador-observador que canta a cena descortinada

diante de seus olhos.

1Ê boi, ê boi, 2 Utcha-lo vida braba 3 Oi, colorado boi 4 A carreta vai gemendo 5 Sempre andando sem parar 6 Carreteiro vai cantando 7 Não te pressa de chegar

Neste início do canto tudo é arrastado, é choroso. As vozes languidamente vão

desfiando as notas e as sílabas pausada e escorridamente. Parece que a falta de pressa do

carreteiro observado é sua prisão inexpugnável. A impressão que se assoma é a de que o

próprio canto está em si mesmo aprisionado.

Na abertura há uma insistência na nota tônica que repousa descendentemente sobre a

sétima menor, num intervalo de tom inteiro. Em seguida a melodia insiste sobre o quinto grau

23 Houve uma época em que o Havaí foi assolado por uma terrível doença – dizem que foi uma peste – muitos perderam os dedos das mãos. Um grande instrumentista de violão foi acometido por essa doença, ficando sem os dedos da mão esquerda. Foi aí que improvisou uma maneira própria de tocar, mesmo com a deficiência física: virando o violão, colocou-o nas pernas, e com o auxílio de um copo de vidro e uma ferramenta de ferro redonda, deslizava-os por sobre as cordas do violão. Surgia, assim, um novo som no mundo, diferente e muito agradável, maravilhoso mesmo. Uma melodia nunca antes ouvida. Com esse novo sistema, inventaram a primeira guitarra, feita de bambu e cordas de nervo de boi.

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da escala por seis compassos até achar solução sobre o terceiro grau. O que se move é a

harmonia. Essa construção é que cria a impressão lenta do movimento. Isso compõe a

estrutura dos três primeiros versos. No verso quatro o fraseado musical oscila um semitom

acima, passa pelo sétimo grau menor e retorna ao quinto. Repete-se de forma análoga nos

versos cinco e seis. E no sétimo encontra solução na nota tônica ascendente. Trata-se de uma

estrutura dotada de certa sofisticação. Há um contínuo que geme, que anda e que canta. Se

pudéssemos emprestar a ação alguma cor, certamente esta seria algo em torno do cinzento, do

esmaecido, taciturno e sombrio.

Eis que, inesperadamente, essa coloração é incendiada de luz. O carreteiro, que era até

então observado e descrito quase que num movimento letárgico, assume a condução do canto

e transforma estrada, carreta e bois. E seu canto é espontâneo. Aquele ar sofisticado e

circunspecto ficou para trás. Ainda que o texto diga de despedida e de lágrima, a melodia é

leve, quase alegre. Não insiste mais em nota única, senão que desfila a escala para cima e para

baixo com durações curtas, propiciando um ritmo que vai desmanchar a dinâmica rechinante

da carreta. Apesar da indicação do encarte em análise informar que a canção, do ponto de

vista do gênero musical, trata-se de uma toada – e nas partes em que o coro conduz a narração

isso é verdadeiro – no trecho abaixo, no qual é o próprio carreteiro que canta, por essa

dinâmica diversa, o gênero é o xote24 que originariamente é uma dança. A carreta continua

lenta, os bois quase em fadiga seguem sempre andando sem parar, mas o cantador em suas

relembranças parece ir com o espírito em baile.

8 Quando eu vim da minha terra 9 Muita morena chorou 10Eu também fiquei chorando 11Meu coração relinchando 12Por uma que lá ficou

Como podemos perceber, a estrofação do texto vem sendo acrescida no número de

versos: a primeira estrofe é um terceto, a seguir temos um quarteto e em seguida – no canto do

carreteiro – a composição é de cinco versos. Naturalmente, essa crescente é responsável pela

condução da migração musico-cênica da canção.

No quarteto que se segue, novamente o coro retoma o desenvolvimento do canto. Está

de volta a estrutura estrófica de quatro versos, e a melodia desenrola-se de mesma maneira

descrita acima nos versos quatro, cinco, seis e sete.

24 Schotisch: dança de salão, originária provavelmente da Alemanha, absorvida pelos regionalismos do Nordeste e do Rio Grande do Sul.

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13Pelas voltas do caminho 14As carretas lá se vão 15Carreteiro vai cantando 16A toada do rincão

Quando o canto volta à voz do carreteiro, o gênero mais uma vez é o xote, mas, para

dar conta de uma mudança temporal na paisagem, a melodia adquire desenho distinto daquele

que se mostrava no quinteto anterior. Com o cair da tarde aquela uma que lá ficou volta a

rondar o pensamento divagante com cantador que conduz a carreta sonolenta. E agora a

lembrança feminina que num momento antes era de alguém que tinha ficado à distância e o

havia deixado chorando com o coração relinchando, agora parece estar próxima – mesmo

que na lembrança – tão próxima que talvez pudesse ouvir os rogos do seu desejo. Em duas

estruturas idênticas do ponto de vista do gênero e da construção melódica e com a abertura

das duas quadras também iguais, o carreteiro parece sentir que o sol se pondo pode renovar

alguns sentimentos que num horizonte provável ele pede que se concretizem. Cabe salientar

que introduz este novo momento sonoro o acordeom expondo aquele motivo que se tornou

referencial nos desafios de trova quando o instrumento arremata o improviso de um desafiante

e ao mesmo tempo serve de introdução para a intervenção do outro trovador.

17Lá se vai o sol entrando 18Redondo como um botão 19Morena me dá um abraço 20Que eu te dou meu coração 21Lá se vai o sol entrando 22Redondo como um vintém 23Morena me dá um beijinho 24Que eu não conto pra ninguém

Encaminhando para o encerramento, mais uma vez o coro assume o canto. E o faz no

dístico que se segue repetindo a ocorrência melódica dos versos três e quatro.

25Oi, cruzando sempre estrada 26Oi, pintassilgo boi...

E assim se vão cantando os que observam e relatam a saga do condutor dos bois, e

assim também se vai ele mesmo, o carreteiro, cantando dentro da canção. As carretas andaram

tanto, gemeram tanto sem parar, que sumiram. E longe vai, na poeira do tempo, esse remoto

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que relativa a duração das coisas, no qual um abraço poderia ganhar um coração, e um beijo

havia de ser guardado em segredo pelos enamorados. Tempo do boi, tempo que foi.

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4.6 "FEITIÇO ÍNDIO" – UMA EVOCAÇÃO DO MUNDO MODAL

Nesta canção de inspiração modal, qual seja este universo sonoro cuja construção se

apoia sobre uma única escala, no caso a escala maior, sem o acréscimo ou o empréstimo de

intervalos tonais ou semitonais estranhos ao da escala natural, parece ser a intenção cantada a

de se retornar musicalmente ao mundo missioneiro anterior ao das reduções jesuíticas, na

tentativa de um reencontro com as origens de uma cultura guarani primordial. A voz que

canta, feminina voz novamente, como já discorremos em capítulos atrás, evoca o deus índio à

guisa de ser ouvida e assim restabelecer o contato com a criação perdida no tempo.

Nosso foco está sobre a composição "Feitiço Índio", catalogada como sendo do gênero

missioneira, algo muito próximo dos ritmos binários compostos da música folclórica

paraguaia, como as polcas e as galopas. Estamos analisando a gravação extraída do 78

rotações da paulista Ana Silva25, para a gravadora Discos Todamérica em 1957. Trata-se da

primeira gravação dessa canção que integrou a trilha sonora do filme Paixão de Gaúcho26.

Estamos diante, é possível, de uma busca de raízes, de primórdios originários. De

difícil percurso essa busca? Provavelmente, tão ou mais do que a própria trajetória humana

que nos trouxe à atualidade. Já se disse que "é muito fundo o poço do passado" (MANN,

1947, p. 13). Contudo, examinando algumas situações muito peculiares, e que são, já me

parece, evidentes neste estudo, é possível que num recuo breve se possa atingir um tempo-

espaço que nos ofereça algum suporte mais ou menos sensível, encaminhando deste modo a

algumas elucidações e, por certo, outras tantas nebulosidades que perenemente rodam nossos

estudos.

Podem assim existir origens provisórias, que praticamente e de fato formam os primórdios da tradição particular mantida por uma dada comunidade, por um povo ou por uma comunhão de crença; e a memória, embora suficientemente inteirada de que na realidade não foram sondadas as profundezas, pode, contudo, do ponto de vista nacional, conformar-se com aqueles primórdios e, pessoal e historicamente falando, vir a descansar aí. (MANN, 1947, p. 13)

Deste modo se pode situar à época em que este solo riograndense ainda não havia sido

tocado, senão pelos povos indígenas, o ponto de origem, mesmo que provisório, desta

comunidade cultural que o autor das canções ora visitadas vem nos possibilitando fazer um

25 Nome de batismo da cantora que se consagrou na dupla Cascatinha e Inhana. 26 Filme de Walter George Durst baseado no romance O Gaúcho de José de Alencar, estrelado por Alberto Ruschell, com música de Barbosa Lessa e Paixão Cortes e levado às telas em 1957.

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traçado, ainda que tênue, do perfil. Cumpre talvez esclarecer que, apesar da indicação do

gênero da canção remeter para a saga jesuítica, a sonoridade do canto e dos arranjos está

identificada como um momento histórico distinto daquele em que se situa à evocação lírica. O

ambiente musical daquele mundo instruído pelo pensamento mítico dificilmente seria análogo

ao da canção. Inclusive, apenas como sucinta ilustração, a cena do filme recém citado em que

a canção é apresentada em nada lembra algum evocar ritualístico guarani: está uma moça a

cantar sob a janela de um bolicho ou armazém, acompanhando-se ao violão enquanto entre os

homens corre solto um carteado com apostas que acabarão por gerar rusgas e ranger de

dentes. A cena não carrega, pois, algum sentido evocatório ou mítico. O canto orna um

embate mera e terrivelmente mundano. E aí está a primeira estrofe da canção:

1Vou chamar Tupã 2Pra ouvir mi’a voz guarani 3Tupã, deus da campina 4E da tribo em que eu nasci 5Tupã, vem me ouvir

Um violão arpeja sobre a escala natural criando sonoridade próxima à de uma harpa27

paraguaia. As notas que compõem esse arpejado bailam em recorrência sobre o primeiro, o

terceiro grau maior e o quinto grau da escala (tríade que forma um acorde natural em modo

maior). A harmonia está estabilizada sobre o acorde tônico na introdução e permanece assim

durante os versos um e dois do canto. A melodia do canto, nesse trecho, parte da nota tônica

oitavada, salta para a quinta em movimento descendente, oscila entre o quinto e o sexto graus,

passa pelo terceiro e se estabiliza uma oitava abaixo da nota inicial. A seguir a harmonia

progride para o acorde do quarto grau e a melodia transita pelo arpejo da tríade principal

desse acorde, iniciando no terceiro grau maior oitavado da escala, voltando ao quinto,

passando pela tônica e novamente indo à terça maior em movimento recorrente. No verso

cinco, com nova progressão harmônica incidindo sobre o acorde do quinto grau, também

nomeado como acorde da dominante, a melodia cantada faz percurso descendente pelo arpejo

do acorde tônico e repousa nota principal da escala. Cabe salientar que tal situação, na qual

ocorrem, nas escalas maiores, progressões harmônicas análogas é recorrentemente encontrada

na música popular, principalmente na construção de canções, cuja espontaneidade criativa

suplanta alguma sofisticação de engenho. Voltemos ao texto, e novamente cabe lamentar que

27 Note-se que a harpa é um instrumento que remonta a uma antiguidade remotíssima e junto com a flauta é um dos instrumentos mais antigos que se conhece.

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essa análise não possa aqui neste mesmo suporte estar acompanhada da possibilidade da

audição.

9Eu quisera tornar a ser 10Aquele ser que vivia 11No sertão guarani 12Eu quisera ter novamente 13O poder da serpente 14Boiguassu e Boichiri

Quando se deseja voltar a ser algo ou alguém, pressupõe-se de imediato que tal coisa

ou ser possua a existência anterior. E se essa entidade fosse dotada de algum poder, como

exprimem os versos cantados acima dispostos, seguramente estamos diante de uma visão de

mundo um tanto distante da nossa pretensa e arrogante racionalidade. Quem era, então, esse

ser que vivia no sertão guarani, que empoderamento era esse das serpentes. Logo, pode-se

perceber que se está diante de uma cristalização do pensamento mítico. Daí a tal fundura do

poço recém mencionada. Ou a sua infinitude.

"O logos e o mythos são duas instâncias da linguagem. O primeiro, sendo um

raciocínio, procura convencer, acarretando no ouvinte a necessidade de julgar" (BRANDÃO,

2002, p. 13). Já o mito "não possui outro fim senão a si próprio. Acredita-se nele ou não, por

um ato de fé, se o mesmo parece 'belo' ou verossímil, ou simplesmente porque se deseja dar-

lhe crédito"(BRANDÃO, 2002, p. 14). Se pela racionalidade separamos o ser e o significado,

no pensamento mítico nomear o ser é declinar a sua significação. Existência e significação

coabitam a palavra mítica. Adiante retomarei a questão do pensamento mítico em outra

análise que intenta complementar esta que ora empreendo. Temos que, contudo, nos determos

um instante sobre alguns simbolismos evidentes no trecho acima, que parecem apontar a

aspectos importantes para essa abordagem. Depois desta rápida digressão, voltemos aos

guaranis e às serpentes.

A cultura guaranítica, como de resto as culturas centradas em universos mitológicos,

explica a origem do cosmo a partir do seu lugar, do seu habitat. Para os guaranis,

No coração de um Nada tenebroso percorrido pelos ventos, surgiu, sem ser gerado, o deus gerador das coisas em sua totalidade, Ñamandu. As palavras que descrevem a emergência dessa figura central do panteão guarani, pai dos primeiros deuses, pai dos últimos homens, dizem o momento inaugural da história do mundo, afirma divinos a origem e o destino dos seres destinados à humanidade, compõem o texto fundador do pensamento mais orgulhoso. Promessa de êxtase para quem as ouve: não é sem estremecimentos que os índios guarani põem-se à escuta de seus sábios,

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quando as Belas Palavras lembram uma vez mais aos mortais que eles são os eleitos divinos. (CLASTRES, 1990, p. 21)

Naturalmente, é sabido que essa civilização espalhou-se por largas regiões do

continente sulamericano, incluindo-se o território gaúcho. Pela breve exposição acima se pode

perceber como se estabelece a relação entre as forças criadoras sob a ótica da cultura guarani.

E é o mesmo Tupã criador de tudo sobre a face da Terra que é evocado, que é chamado a

ouvir as angústias cantadas. E o canto assim parece demonstrar um desejo incontido de

retorno à criação do planeta, das estrelas e dos homens. Em um de seus livros, Lessa (1997, p.

9-18) narra com estilo inspirado o passo a passo desse surgimento. E lá podemos encontrar,

no capítulo nono que fala sobre tradição, dois mandamentos que parecem de oportuno citar:

Não terás chefe ou senhor, pois a única força dos humanos se afirma no Kayuá. E enquanto a Palavra estiver concorde com esta Tradição, a ordem se sucederá de geração em geração com a mesma e constante identidade.

A voz cantadora chama o deus para lhe ouvir. É a palavra, portanto, o seu elo, sua

ligação com o divino. E mais, é por ela que se garante o caráter hereditário da identidade do

povo. Dessa forma, quando, após rogar atenção ao deus, a canção invoca os poderes das

serpentes, está exercitando justo o mandamento exposto. Boiguaçu ou mboi-guaçu e boichiri

ou mboi-cininga28, a sucuri e a cascavel aí estão, respectivamente, pelo seu tamanho e pelo

seu guizo. Uma pelo seu gigantismo, pelo seu poder de engolir a luz do mundo, como nos

conta Simões; a outra pelo sibilo de seu anel caudal – um resquício de cada uma das trocas de

pele ocorridas durante a sua vida, uma prova, pois, de sua eterna transformação em si mesma

– que a um só tempo ameaça e serve de proteção. O poder desejado pelo canto é

necessariamente este, que talvez o que vem atormentando desde sempre a nossa demasiada

humanidade – transcender a natureza humana, sabê-la desde a sua imperscrutável

primordialidade.

15Vou pedir então 16Pra Inhangá 17Possa eu te enfeitiçar 18Que em três luas se destrua 19Teu amor

28 Em guarani, mboya significa cobra; (gu) asu é grande; si’niniga quer dizer retinir.

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Aqui a canção se encaminha para o final. O tom evocatório permanece e é agora

endereçado a outra instância mítica, Anhangá ou Inhangá – o deus da caça e dos campos. E

ainda expõe o motivo desse rogo cantante: destruir pela força do feitiço um amor que

aparentemente incomoda.

A melodia sofre pequena variação, mas continua sobre o mesmo colorido timbrístico

desde o começo. Se no início a voz cantava numa região mediana da escala, agora, na nota

final, a elevação tende ao limite do registro da soprano. Uma tentativa de, por essa ascensão,

cristalizar com a concessão das forças divinas a transcendência e o feitiço. E essa subida, por

tão íngreme, talvez não pudesse se assentar sobre outra palavra que não fosse amor, que é

essa dimensão elevada e inefável e ao mesmo tempo sensível e essencial da condição humana.

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4.7 "QUANDO SOPRA O MINUANO": A TRADIÇÃO NO VOO DO VENTO

Alguns fenômenos da natureza exercem ainda hoje fascínio importante à observação

humana. Pôres-de-sol, encontro de águas, luz do sol refratada em gotas de chuva: tudo é alvo

de admiração, de embevecimento, de narrativas lendárias. O vento minuano, movimento de ar

característico da paisagem mais ao sul do continente americano, gelado por sua origem polar,

é um desses fenômenos largamente visitados seja em narrativas de ficção literária, seja em

canções populares. Poderíamos citar num relance de memória um punhado de tais ocorrências

cancionistas. Autores como Teixeirinha, Luiz Carlos Borges, Telmo de Lima Freitas, citando

somente alguns poucos, já se valeram do minuano para construírem canções que hoje fazem

parte consagrada deste cancioneiro regional.

Tratamos aqui da canção "Quando sopra o Minuano", conhecida também como

"Levanta Gaúcho!", assinada em letra e música por Barbosa Lessa, possuindo inúmeras

gravações. Contudo, valho-me para essa análise da interpretação de Chico Raymundo, um dos

integrantes do grupo Titulares do Ritmo29 em gravação de 1962.

Duas indagações de imediato me saltam pela leitura do título da canção: o vento tem o

nome de uma das tribos indígenas, habitantes de Rio Grande do Sul à época do

descobrimento, que mais legaram hábitos à cultura gaúcha – cite-se o chimarrão, para que

fiquemos num exemplo apenas; e a grafia do nome do vento será sempre na canção com a

inicial maiúscula, o que parece já remeter para algo de personificação – o evento natural

torna-se um ente do fenômeno eólico. Por sua trajetória em rota a sudoeste desde a cordilheira

dos Andes, passando pelo território que era habitado pelos índios minuanos, o vento foi assim

batizado. Mas, se investigarmos, ainda que tenuemente, essa nação indígena, veremos tratar-

se de povo aguerrido, afeito às lides com o gado vacum (dominavam o uso do laço e das

boleadeiras) e formado por hábeis cavaleiros, tanto para a guerra como para o trabalho. Essa

bravura está retratada na canção. Parece haver o índio se transformado em vento.

Na introdução, além de um coro que reproduz o mesmo desenho melódico, ouve-se o

solo de um instrumento um tanto exótico, mas que para o intento do arranjo mostra-se

absolutamente concordante. Trata-se de um serrote30 tangido por um arco de violino. O

29 Grupo vocal e instrumental, cujos componentes eram todos cegos. O conjunto, um sexteto, foi organizado em 1941, quando seus futuros componentes se conheceram no Instituto São Rafael em Belo Horizonte, MG, para cegos, onde cursavam o ginásio. Ficaram famosos pelas harmonizações e vocalizações requintadas que elaboravam. Fonte: DICIONÁRIO CRAVO ALBIN DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA. 30 O Serrote Musical é um instrumento difundido em diversos países, como: França; Alemanha, Bavária; Estados Unidos, Califórnia; Suíça, Tirol e Rússia, onde faz parte de grandes concertos sinfônicos de música

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funcionamento dessa execução se dá da seguinte forma: na medida em que a lâmina da

ferramenta vai sendo vergada, o roçar do arco produz a nota desejada. E essa sonoridade em

tudo aproxima o ouvinte de uma sensação de que há um vento assobiando por uma fresta

qualquer – fria sensação poderia se acrescentar.

Minuano ta soprando, assobiando Nesta noite tropereando Seus fantasmas tropereando E as almas vão passando Cavalgando redomões Fantasmas do passado No tropel das tradições

A canção se assenta em tom menor, e nessa primeira estrofe a melodia parte de uma

recorrência ascendente do quinto grau para a nota tônica da escala, para logo após percorre-la

ainda em ascendência até achar solução na mesma tonalidade em modo maior possibilitando a

explosão do estribilho em nítido matiz convocatório. A condução rítmica da composição,

metaforicamente, poder-se-ia dizer é a de um tropel, de um galope que se insinua e que se

põe, irreversivelmente, em avançada. Note-se que o vento, que surge sem prévia apresentação

desempenha ações que são de natureza humana. Aí, pois, a personificação a pouco referida. O

Minuano, maiusculamente, sopra, assobia, tropeia, cavalga. Vem repassando uma tradição, e

vem revisitando fantasmas. Coisas que eram. Coisas que ficaram para trás num passado cuja

revivecência parece ser fundamental no sentido de projetar o aludido padrão cultural ao

futuro. Toda a sonoridade até aqui desenvolvida, ainda que contida, ainda que esse tropel

venha, embora avançando, sendo refreado por uma condução de “rédea curta”, vem

preparando como numa clarinada o ambiente quase que catártico do refrão. O conclame

parece beirar o transe.

Levanta, gaúcho! Todos precisam andar! Minuano ta chamando E o Rio Grande precisa escutar

Mais uma vez é possível investigar, talvez, a presença do pensamento mítico como

orientação da produção litero-musical. Pronunciar a palavra que nomeia o vento parece ter o

condão de dotar o homem de força transcendente. A imagem do vento associada à intrínseca

folclórica desses países. Ver mais em: A arte de tocar serrote musical de Antônio Frizon, Editora Martins Livreiro.

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imagem da nação indígena, da qual o nome se origina, cria a configuração de um arquétipo

delineável.

Os pais ensinam aos filhos como é a vida, relatando-lhes as experiências pelas quais passaram. Os mitos fazem a mesma coisa num sentido muito mais amplo, pois delineiam padrões para a caminhada existencial através da dimensão imaginária (BRANDÃO, 2002, p. 9).

Ouvir o vento, desse modo, é colocar-se à disposição para inventariar as experiências

antepassadas, o acúmulo de conhecimentos que as gerações remotas legaram e que o galope

eólico tem a força de atualizar. E aí está a tradição, que como já se disse, do ponto de vista

etimológico, significa transmissão. O minuano – na canção – é, pois, o veículo que transporta

a herança tradicional. Por isso, talvez, o tom convocatório do estribilho. O imperativo levanta

é uma exortação contra uma atitude passiva, é um conclame a que se vá deliberadamente ao

encontro – via vento – de uma identidade cultural de contorno reconhecível. No trecho

adiante, essa convocação transforma-se num convite. Tal abrandamento pode estar

relacionado com a situação de não mais haver necessidade de ordem, posto que o alerta que se

fazia premente já haver soado na primeira parte da canção e explodido em seu refrão.

Venham comigo voar com o Minuano Na galopada dessas almas pelo-duro Neste tropel em que se unem gerações E onde as velhas tradições Dão o rumo do futuro E o Minuano vai correndo doidamente E o próprio frio aquece o coração da gente O coração todo se abre e se expande Pra que entre em nosso sangue Próprio sangue do Rio Grande

Agora, em tom convidativo, o cantor tenta convencer o ouvinte da natureza procedente

e razoável de seu canto-convocação-convite. Há que se empreender viagem na garupa do

minuano para saber dos desígnios da tradição do povo gaúcho. É uma viagem de retorno,

pois, e para isso se deve voar com o Minuano. Há uma galopada de almas unidas nesta

empreitada, gerações emaranhadas a buscar no antigo o caminho para o atual, numa

reverência à sabedoria coletiva, pois

[...] os símbolos existentes numa cultura e atuantes nas suas instituições são marcos do grande caminho da humanidade das trevas para a luz, do inconsciente para o consciente. Estes símbolos são as crenças, os costumes, as leis, as obras-de-arte, o

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conhecimento científico, [...] que formam a identidade cultural (BRANDÃO, 2002, p. 9)..

Naturalmente, a eleição do vento para ser o portador de tais relevantes revelações

sobre o trajeto de formação desta cultura é uma arbitrária escolha do autor, ou apoie-se nessa

permanência de átimos do pensamento mítico sobre o qual não cabem maiores perguntas, pois

é nítida a percepção de que o mero evento natural quando cantado vê-se transposto a uma

categoria ampliada de suas realidades sensíveis. O minuano, que passou pelos índios – a

origem provisória –, cruzou com a chegada do branco europeu – e demos por óbvio que na

Europa estejam outras tantas origens também provisórias –, ainda que na canção isso não seja

tangível, possui a condição atemporal e imemorial de ser o agente resgatador do saber

nutriente dessa cultura que a canção pretende, talvez acima do resto afirmar como verdadeira

e fundamental.

A melodia desse trecho final parece alada em relação ao caráter trunco do tropel

inicial, mas perceba-se que a impressão do galope perpassa a íntegra do arranjo musical. O

esmaecimento de sua sensação deve-se, justamente, ao “voo melódico” que conforma as duas

últimas estrofes. O canto adquire um matiz coloquial. É uma proposição dialogal, e

evidentemente, diálogos prescindem, no mais das vezes, de tonalidades imperativas. Ordens

podem inviabilizar o processo coloquial. Nesse sentido, a voz que canta, aqui se torna branda,

procura se fazer próxima do ouvinte, talvez na tentativa mera do convencimento ou para criar

uma atmosfera de cumplicidade entre o cantar e o ouvir. Por conta desse colorido musical

pode-se dizer que a composição atinge um mais elevado grau de sofisticação, ainda que, no

campo harmônico, não haja acréscimo tão significativo, a não ser pela retomada, em meio à

penúltima estrofe, da tonalidade menor que se dá em neste tropel em que se unem gerações.

Tal retomada, mesmo que num primeiro momento nos levasse a concluir que se

estivesse voltando ao ambiente inicial da canção, é totalmente distinta. Aqui a exposição

pretende-se reflexiva. São as velhas tradições projetadas pelo vento que se dão a conhecer. É

o passado que pelo presente aponta o futuro. E já se disse que tanto o passado quanto o futuro

estão mais ligados ao mito do que o presente. Neste ponto, a correria do vento é doida, o frio

aquece, o coração abre-se, tudo para afirmar uma consanguinidade que é signatária da

referendada identidade cultural.

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5. ESTABELECENDO DISTÂNCIAS E PROXIMIDADES

Uma vez apresentada essa análise de canções selecionadas da obra de Barbosa Lessa,

cabe neste momento da reflexão o encaminhamento de algumas possibilidades comparativas

que me parecem pertinentes. Como já dissemos, é aceitável situar a composição de Lessa num

estágio inaugural da produção de canções populares de inspiração rural no Rio Grande do Sul.

Entretanto, podemos agora estabelecer alguns pontos de contato ou de contraste com a obra de

alguns autores também reconhecidos no cenário cancionista regional gaúcho.

E, num primeiro momento, remeto o foco analítico para um autor que aparentemente

está situado numa distância larga em relação ao compositor de Negrinho do Pastoreio. Refiro-

me a Gildo de Freitas. Aquele que reconhece a própria fragilidade intelectual, e de modo

irônico, talvez, posiciona-se diante de uma sociedade letrada com o tirocínio e a argúcia

daquele que conhece as armas todas e assim se atira aos duelos. Para, quem sabe, a

estupefação de compreensões afoitas e superficiais.

Logo em seguida, trato da canção Roda-Canto, de autoria do são-borjense Mário

Barbará e do porto-alegrense Apparício Silva Rillo. E aí temos uma obra muito mais próxima

das características encontradas em Barbosa Lessa. O viés da análise está ancorado nas

questões do mito e da metáfora. E digo da proximidade com Lessa por tratar-se de uma

elaboração bem mais intrincada do que aquela que se evidencia no trovador Gildo. A

construção simbólica do texto de Silva Rillo é sofisticada, e as soluções musicais encontradas

por Barbará estão em singular sintonia com a poética proposta.

Adiante, busco aludir algumas questões sobre aspectos da teoria da enunciação,

recorrendo à canção "Enlutado". Tal escolha é motivada pela evidente exposição do sujeito

que toma a voz discursiva cantando. O eu diz de si mesmo. E as nuances musicais parecem

reconhecer o potencial do discurso e o reforçam de maneira comprometida. Se em Lessa o

"Quero-quero" é sentinela e ainda que no escuro da noite antevê a luz nascente de um amor,

em "Enlutado", a ave releva um mundo sombrio, epilogal, de cores esmaecidas. Contudo, o

centro da investigação está calcado sobre as aptidões enunciativas do texto literário com sua

possível correspondência na linguagem musical.

E antes de remeter às considerações finais do presente estudo, visito ainda mais duas

canções, escolhidas por suas temáticas que a um primeiro olhar podem parecer antagônicas.

São elas "Guri" e "Rio de Infância". Os dois indivíduos protagonistas comungam périplos que

se identificam entre si. O segundo não pode permanecer na terra natal junto dos seus e,

premido por circunstâncias desfavoráveis, vai-se embora pelo caminho do rio. E agora canta

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querendo voltar. O primeiro, como que intuindo a triste saga do outro, recusa-se a partir. E

canta para ser igual ao pai e permanecer naquele lugar. O lugar eleito para ser o seu lugar. Já

refletimos, anteriormente, guiados por Gaston Bachelard, sobre este lócus depositário dos

bens essenciais para a vida humana. São duas crianças (ainda que um já seja adulto) que

parecem, mesmo à distância, saber das angústias pelas quais ambos são atravessados.

No aspecto musical, os dois ambientes sonoros que dão movimento às duas cenas,

também parecem pertencer a uma mesma natureza. São canções lentas, circunspectas,

reflexivas. Fluem à mercê da angústia narrativa. E se há um momento de catarse, pode-se,

talvez, identificá-lo em "Guri" quando, após brusca modulação tonal conduzida pela gaita

diatônica (gaita-de-botão), o canto explode quero gaita de oito baixos, pra ver o ronco que

sai; em "Rio de Infância", semelhante constatação pode ser verificada em um dia fugi com

elas cansado de ser guri, numa balsa rio afora fui embora e me perdi. Essas questões serão

ampliadas nas considerações adiante.

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5.1 GILDO DE FREITAS – UM IMPROVISADOR ENTRE A ORALIDADE E A

CULTURA ESCRITA

Levando-se em consideração que o momento histórico – final dos anos 40 – pode ser

tomado como o marco zero da existência deste cancioneiro regional, uma abordagem

meramente quantitativa por certo haverá de causar espanto. Se tomarmos apenas o movimento

dos festivais nativistas deflagrado pela Califórnia da Canção Nativa de Uruguaiana no início

dos anos setenta, podemos numa rasa aritmética constatar que em pouco mais de trinta anos,

relacionando somente as canções que foram registradas fonograficamente em cada edição

anual dos quase cinquenta festivais que se realizam desde aquele momento, chega-se a um

número que se eleva à praticamente cinco mil canções. Isso, contando apenas com a produção

oriunda do formato festival, descartando uma enorme leva de canções produzidas

paralelamente. Para um rápido exemplo, podemos citar o caso do consagrado artista popular

Vitor Mateus Teixeira, o Teixeirinha, que gravou cerca de setecentas canções de sua autoria.

Pode-se, rapidamente perceber que a constatação de Lessa, no final dos anos quarenta, de que

não havia canções para cantar, em pouco mais de meio século, é suplantada pela existência de

um cancioneiro regional, pelo menos do ponto de vista da quantidade, absolutamente

significativo.

Além disso, a maioria das pesquisas até hoje efetuadas dá conta de uma abordagem

sócio-histórica da constituição desse universo de canções. As investidas por uma análise mais

detida de questões atinentes à linguagem são ainda tímidas. Essa constatação já parece ser

razoável para justificar a motivação deste empreendimento.

Cabe salientar ainda que o grau de elaboração da linguagem lítero-musical na obra de

Barbosa Lessa é elevado. Tanto no aspecto linguístico quanto no musical os elementos

tendem a um padrão culto de proferimento e de construção sígnica e sintático-semântica.

Mesmo que possa parecer uma digressão um tanto distanciadora do propósito desta reflexão,

devo, para dar conta ao menos de situar alguns pólos distintos, empreender, ainda que

rapidamente, um arrazoado que contemple um outro modus faciendi também encontrado no

cancioneiro em foco, que a um primeiro momento pode parecer antagônico àquele

desenvolvido por Lessa e que, contudo, adiante haveremos de proceder às analogias possíveis.

Falo do modelo consagrado por Gildo de Freitas, entre outros.

Nascido Leovegildo José, imortalizou-se como Gildo de Freitas. Sua obra é de uma

singularidade, de uma inventiva, de uma profundidade inacreditáveis quando posta em

confronto com o seu nível de escolaridade. Gildo é uma personagem que parece ter saído de

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algum romance do realismo maravilhoso. Alejo Carpentier, no prefácio do seu livro O reino

deste mundo, interroga: "Mas o que é a História da América senão toda uma crônica da

Realidade Maravilhosa?" Vejamos um pouco da biografia desse artista repleta de episódios

surpreendentes.

Aos doze anos foge da casa paterna. Aos dezoito, é dado como desertor por não

apresentar-se ao exército. No mesmo ano, envolve-se na primeira briga, na qual é morto um

jovem amigo. Preso pela primeira vez, começa desenvolver verdadeiro ódio da polícia.

Contratempos com a polícia serão recorrentes em sua vida. Casa-se. Os dois primeiros filhos

morrem ainda pequenos. Já trovador afamado em todo o Rio Grande de Sul, desaparece de

casa, em Canoas, na região metropolitana, e reaparece inexplicavelmente na fronteira oeste do

estado. É obrigado a passar uma longa temporada em Alegrete por conta de uma paralisia nas

pernas. Conhece Getúlio Vargas. Viaja ao Rio de Janeiro. Torna-se celebridade nos

programas radiofônicos da capital gaúcha, quando, propositalmente, cria uma “desavença”

com outro fenômeno da música regional: Teixeirinha. Entre 1961 e 1962, com o declínio dos

programas de rádio, resolve largar a cantoria e criar porcos. No ano seguinte, viaja para São

Paulo e grava seu primeiro disco. Em 1964 é investigado por suas ligações com o trabalhismo.

A “briga” com Teixeirinha chega ao auge nos anos setenta. O sucesso popular é crescente.

Grava o último disco em 1982. Nascido em 19 de junho de 1919, morre em 4 de dezembro de

1983. Uma lei estadual declara esse o dia do Poeta Repentista Gaúcho.

Note-se que em nenhum momento desse trajeto biográfico consta alguma alusão que

indique que Gildo de Freitas tenha frequentado escola regular. Seus biógrafos tangenciam o

tema: a viúva parece registrar o fato de que o artista teria estudado até os oito anos. Podemos

concluir que, se Gildo realmente frequentou a escola, isso não durou mais do que um ano. Em

sua obra, ele nos dará indícios da veracidade de tal conclusão.

É evidente ainda nos dias de hoje, e talvez isso fosse mais acentuado em décadas

passadas, que a diferença entre níveis de escolaridade abre distâncias de difícil percurso no

processo de construção social dos indivíduos. Considere-se ainda que tal distanciamento não

raro acaba por desenvolver uma série de preconceitos que procura rebaixar a capacidade

intelectual dos menos escolarizados. Daí pode-se depreender que uma pessoa com baixo grau

de escolaridade venha sentir-se diminuída em seu meio. Evidentemente estou tratando de um

espaço social urbano da atualidade, portanto com níveis significativos de letramento, fruto dos

avanços da ciência e da tecnologia que caracterizam as modernas sociedades industriais31.

31 TFOUNI. Leda Verdiani. Letramento e alfabetização. 2 ed. São Paulo: Cortez, 1997. (o letramento focaliza os aspectos sócio-históricos da aquisição de um sistema escrito por uma sociedade.)

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A pergunta que neste momento ronda essa reflexão é o fato de que o parágrafo anterior

talvez não encontre elo com a figura emblemática do trovador gauchesco que até instantes

atrás era o centro do assunto. Devo então estabelecer as ligações que parecem estar ausentes.

E vou direto à manifestação do próprio Gildo de Freitas em uma de suas mais famosas

canções: Eu reconheço que sou um grosso. Todo o texto é orientado por um tom confessional

pouco comum em pessoas que sofrem discriminação social em função do nível escolar e por

isso evitam assumir publicamente sua condição.

Desassombradamente, Gildo desfere com sua voz metalicamente incomum:

Me chamam de grosso Eu não tiro a razão Eu reconheço a minha grossura Mas sei tratar a qualquer cidadão Até representa que eu tenho cultura

O reconhecimento declarado pelo cantor nos três primeiros versos poderia levar a uma

conclusão de que o indivíduo está confinado e resignado à sua condição de inferioridade.

Parece-me claro que o binômio pejorativo grosso/grossura remete para algo como falta de

conhecimento, pouco estudo, despreparo intelectual, cidadão menor, etc. E por oposição

pode-se inferir a existência de alguém fino e de uma condição de finura que parecem ser o

alvo do enunciado inaugural da canção. Num primeiro momento o cantador concorda com a

adjetivação. Aí entra a minúscula expressão mas que possui o condão de alterar as rotas

discursivas. E a contradição que se estabelece desacomoda um tanto aquelas posturas que

sempre têm respostas prontas para tudo. Como pode alguém com tão pouco “estudo” arrogar-

se a um patamar de eficiente circulação social ao tratar bem qualquer cidadão e afrontar o seu

em torno – que se pretende o centro da cultura – quando diz que até representa que eu tenho

cultura? De onde vem tal capacidade mimética? Seria o cantador um dissimulado?

O linguajar de uma personagem deve, para garantir verossimilhança à narrativa, soar

como algo inerente à personalidade e à constituição intrínseca do indivíduo que enuncia. Para

fugir das armadilhas da inautenticidade, Simões Lopes Neto dá voz a Blau Nunes, o

vaqueano, que narra seus causos com a linguagem própria do homem do campo. E Blau é um

campeiro experiente. No caso do trovador Gildo de Freitas não há situação análoga. Gildo dá

voz a Gildo. Gildo é um cantautor. Como o Martin Fierro, de José Hernandez, canta

opinando. A diferenciação entre autor/criador e autor/homem destacada por Bakhtin (2003)

parece não valer para as investidas reflexivas, argutas e musicais deste cantor regionalista.

Logicamente tal pretensa circunstância não invalida a fundamental reflexão bakhtiniana.

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Gildo canta pela consciência de Gildo. Há uma simbiose entre criador e homem. E é o tom

confessional da narrativa cantada que evidencia esse caráter simbiótico. A consciência

afirmativa de si mesmo se estabelece por uma alteridade nítida desde o primeiro verso da

canção: me chamam de grosso.

O cantador reconhece quem o nomeia, ou melhor, quem o adjetiva. E situa-se com

eloquência dentro deste confronto. O próprio título da canção remete para essa tomada de

posição: Eu reconheço que sou um grosso. Diante de uma sociedade alfabetizada, letrada e

culta, coloca-se alguém despossuído de tais “qualidades” que, ao invés de refluir-se ou

envergonhar-se da situação, enfrenta-a com destemor e inteligência afiada.

Continuemos ouvindo o trovador:

Eu aprendi na escola do mundo Não fui falquejado em bancos colegiais Eu não tive tempo de ser vagabundo Porque quem trabalha vergonha não faz Eu trabalhava, ajudava meus pais Sempre levei a vida de peão Porque no tempo em que eu era rapaz Qualquer serviço era uma diversão Lidava no campo cantando com os bichos Pois pra cantar eu trouxe vocação Por isso até hoje eu trouxe por capricho De conservar as nossas tradições.

Aqui Gildo, em seu canto-confissão, deixa clara a questão de seu nível de escolaridade

ao ostentar que não foi falquejado em bancos colegiais e que seu aprendizado se deu na

escola do mundo. Ainda que essas designações remetam a um lugar comum desgastado,

parece que na voz rasgada do troveiro ganham em inventiva e profundidade. Gildo é veraz.

Seu canto é faca amolada desfiando tentos de uma fina lonca que vai sendo trançada com

maestria pela rudeza incondicional de sua compreensão translúcida da vida32. Tal

entendimento perpassa uma ética e uma valoração do trabalho, um tácito reconhecimento

vocacional e o brandir de uma bandeira de luta evidente identificada com algo que concebe

como tradição33.

32 Em "Ensaio sobre o homem", Cassirer recorre a Goethe: "não permitais que a doutrina efeminada do moderno traficante de beleza vos torne delicados demais para desfrutar uma rudeza significativa, para que no fim vosso sentimento enfraquecido não seja capaz de suportar nada além da suavidade sem sentido". (GOETHE apud CASSIRER, 2005, p. 230). 33 Segundo Houaiss, o vocábulo tradição, etimologicamente remete ao latim traditìo,ónis – ação de dar, entrega, traição; figuradamente: transmissão, tradição, ensino. É paradoxal que ensino esteja imbricado na bandeira empunhada por Gildo de Freitas: terá um iletrado condições de aludir tais questões? O trovador deixa explícito que a resposta é afirmativa.

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Gildo de Freitas é um trovador. Essa afirmação é recorrente nesta reflexão. Cabe,

contudo, uma breve digressão quanto à significação deste predicativo. Numa explicação

popular e direta (situada dentro da cultura regional gaúcha), trovador é aquele que canta de

maneira improvisada. É o repentista nordestino, o payador uruguaio ou argentino ou gaúcho34.

Depreende-se daí que o fazer desse artista da palavra pertence ao mundo da oralidade. Como,

pois, consegue Gildo inserir-se e mover-se com desenvoltura num mundo em que a cultura

escrita é preponderante?

Apesar de suas poucas “letras”, o improvisador regionalista demonstra ser capaz de

fazer a leitura do universo ao seu redor com uma capacidade de compreensão e de elaboração

crítica de singular qualidade. Recorrendo uma vez mais às palavras cantadas temos: “pra

cantar eu trouxe vocação”. Provavelmente, Gildo tenha trazido vocação para algo além de

cantar. Sua vivência de guri campeiro, de família pobre, há de ter contribuído para aguçar-lhe

os sentidos e proporcionar uma visão clara de sua condição social. E a partir desse

reconhecimento possibilitar-lhe a condição de assumir-se diante de seus pares e de seus

díspares como se fosse um arauto daquelas desigualdades.

A fixação tipográfica e fonográfica dos improvisos do cantador é que transporta Gildo

da oralidade para a cultura escrita. Não é ele que escreve, ou melhor, não é ele que produz o

ato mero da escrita. Contudo, cada palavra ou nota musical fixada é fruto de sua inventiva. É

irretorquível sua infinita capacidade de ser o autor de sua experiência. Seu relato é em

primeira pessoa, porque seu conhecimento provém do que provou. Sabe-se que o canto é uma

potenciação da fala (TATIT, 2002). E é pela canção, aqui tomada como um gênero discursivo,

que Gildo de Freitas situa-se no mundo letrado que pretensamente poderia ser-lhe opressor e

tentar silenciá-lo.

Além do reconhecimento de sua condição, o rude poeta detecta também as mazelas da

sociedade que lhe chama de grosso. Certo de que a tradição possui a resposta perfeita para o

caos da modernidade, o trovador incita a plateia com seu testemunho:

Eu aprendi a dançar nos domingos Sentindo o cheiro do pó do galpão

34 Diz o pesquisador Paulo de Freitas Mendonça: "Pajada é a denominação de uma das formas de improviso desenvolvidas no extremo sul da América Latina. É a cantiga regional instantânea que surge no ciclo do gado por meio do andejo que cruza os campos em período de disputa de território entre Espanha, Portugal e as nações aborígines.[...] O pajador contemporâneo do Rio Grande do Sul está inserido no contexto cultural dos movimentos tradicionalista e nativista.[...] O trovador canta sua poesia oral em sextilha (ABCBDB), acompanhado de acordeão. O pajador improvisa no estilo recitado, por meio de estrofe da décima espinela (ABBAACCDDC), com acompanhamento de violão, por um músico de apoio, geralmente em ritmo de milonga. In: Na ponta do verso: Poesia de improviso no Brasil. / Alexandre Pimentel e Joana Corrêa (organizadores). Rio de Janeiro: Associação Cultual Caburé, 2008, p. 134.

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Pedia licença, apeava do pingo E dizia adeus assim de mão em mão E quem conhece meu sistema antigo Reclamem por carta se eu estou mentindo São documentos que eu trago comigo Porque o respeito eu acho muito lindo

No final da estrofe é evidente a presença influente da cultura escrita na sociedade a

qual Gildo se dirige. As manifestações de contrariedade, diante daquilo que ele afirma, devem

ser expressas por escrito, e ainda que a gestualidade evocada guarde algo de abstrato, no

sentido da significação de cada ato, é ela referenciada como documentos que eu trago comigo.

A canção segue demonstrando contundente crítica social:

Minha sociedade é o meu CTG Porque lá existe dignidade Eu não se confunde eu explico porque Os trajes das moças não são à vontade E se por acaso um perverso sujeito Querer fazer usos e abusos de agora Já entra o machismo impondo respeito E arranca o perverso em seguida pra fora

Nessa passagem Gildo propõe uma organização social, o CTG, que seria uma espécie

de guardião dos costumes numa era de falência da moral. Sem entrar num cotejo ideológico

com as afirmações do canto (machismo parece ser algo positivo na ótica do cantor), é

perceptível que a enunciação toda provém de um centro de valores identificado. Dignidade,

recato e respeito são norteadores da conduta recomendada. E o elogio ao Centro de Tradições

continua no arremate da canção numa convocação contundente:

Ó mocidade associem com a gente Vá no CTG e leve um documento Vão ver de perto que dança decente E que sociedade de bons casamentos Vá ver a pureza vá ver a alegria Vá ver o respeito desta sociedade Vá ver o encanto das belas gurias Que possam gerar uma felicidade

Por certo o mundo tradicionalista não possui o condão de transformar a fragilidade

humana numa experiência de perfeito e equilibrado convívio, mas não cabe nesta reflexão um

posicionamento sobre os acertos ou os equívocos do tradicionalismo associativo. Interessou-

me desde o início a verve afirmativa do autor dos versos em análise. Há um refrão na canção

de Gildo que é de difícil abordagem. Não vem acompanhado de um texto, portanto, o império

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da palavra não está explicitado com sua arrasadora carga semântica. Trata-se de um simples e

ingênuo “larará” que costura os vazios entre uma e outra estrofe. Indago-me se não existe

neste espectro formal algo como um deboche, uma ironia pela qual Gildo de Freitas reafirma-

se diante daqueles que o diminuem ecoando um “blá blá blá” que poderia ser a voz da

hipocrisia social que prejulga e condena os aparentemente menos capazes por um crime que

jamais foi cometido a não ser pelas circunstâncias que mantém as elites no poder. Pode Gildo

de Freitas jamais ter aprendido formalmente a norma culta da língua materna. Diga-se algo de

sua incipiente alfabetização. Não há como, contudo, não reconhecer que nada disso interferiu

de maneira decisiva para que ele não pudesse construir o legado magistral de sua obra.

Iletrado e analfabeto, talvez, mas sábio e brilhante artista da palavra musicada. Leovegildo

José de Freitas, o Gildo, poeta repentista gaúcho. O Gildo de Freitas das letras iluminadas e

inapagáveis.

Como já foi dito anteriormente, tratamos aqui da canção como um gênero unívoco, ou

seja, uma unidade de sentido formada a partir do encontro entre duas linguagens distintas.

Ainda assim, pode-se dizer algo a respeito da música em Gildo de Freitas (claro que sempre

levando em conta a referida unidade). No canto do trovador, a melodia tem a função de ser

um facilitador mnemônico, um apoio métrico e rítmico para a estruturação do verso. Há que

ser, portanto, a melodia, de construção simples, sem evoluções que comprometam a fluência

do canto. Sua apreensão deve ser imediata, embora, diferentemente da fala, a mensagem

entregue por aquele que canta perdure. Gildo canta de forma que seus versos sejam retidos

imediatamente por seus ouvintes. Uma de suas composições de maior sucesso popular é sem

dúvida "Definição do grito", cuja melodia ensejou a criação de um estilo de trova gauchesca

largamente difundido na atualidade nas demonstrações e nos concursos realizados dentro do

universo tradicionalista – o estilo Gildo de Freitas, que compõe com outros como a trova de

martelo e a pajada o conjunto das formas de improviso existentes.

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5.2 O PODER DA PALAVRA NA RODA DO CANTO

Estabelecendo um contraponto entre o texto aparentemente “iletrado” do trovador,

apresento a seguir interpretação sobre uma canção que parece estar mais próxima da obra

composicional de Lessa por sua estrutura poética, pelo seu encadeamento rítmico-melódico e

pela concepção dos arranjos musicais. Trata-se de "Roda Canto" de autoria de Mário Barbará

e de Apparício Silva Rillo.

A interpretação que se segue tem seu foco naquilo que ainda se pode constatar, ou não,

da presença de resquícios da palavra mítica e da metáfora primordial num suporte músico-

literário da atualidade. Eis o texto de "Roda Canto” 35.

Meu canto Chega de longe Vem na garupa do vento Vem no vento vem Da furna funda do tempo Veio do grito da bugra Amando o primeiro branco Sangue, Sol, Sêmen, Semente Foi flete Foi lança e laço Foi guerra E foi pastoreio Foi berço Foi cancha e campa Foi rumo, rancho e razão Meu canto Chega de longe Foi destino E foi estrada Estrada foi Por onde cruzava o boi Foi massa Cambota e raio Alvoradas e sol-pôr Roda, rodado, rodando... Fazendo das sesmarias Trilho aberto e campo em flor Meu canto Chega de longe Do pai, Do pai de meu pai Sangue, Sol,

35 Vencedora do troféu Calhandra de Ouro na 5º Califórnia da Canção Nativa de Uruguaiana em 1975.

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Sêmen, Semente

Há, já no primeiro verso, a delimitação do tema que será desenvolvido. A estrofe

inicial situa o lugar de origem do canto. De imediato se evidencia a questão temporal como

demarcatória da narração: o canto vem da furna funda do tempo. Onde fica tal caverna? Que

voz é capaz de atualizá-la? Quando ecoou tal grito de amor? Todas essas questões são

respondidas pelo próprio canto.

A canção é introduzida por um violão quase que percutido, principalmente pelas notas

mais graves do acompanhamento. Os arpejos são singelos, e o modo menor apresenta uma

atmosfera reflexiva que antecede a palavra. Está delineada semioticamente a possibilidade

investigativa que o canto há de corroborar logo adiante. A vocalização das primeiras palavras

é estendida principalmente na duração das primeiras sílabas das palavras “longe” e “vento”.

Podemos pensar que é uma tal distância imemorial que amplia a primeira, e a segunda é a

atualização da anterior e por isso dura. Uma voz que volta no tempo para buscar-se e que

retorna irreversivelmente colhida por uma evidência metafórica. Estou tentado já afirmar que

existe algo a estreitar nesta ligação um tanto do caráter mitológico que, como já se pôde

demonstrar anteriormente, mistura-se num determinado momento com as elaborações da

linguagem. Porém, para que não haja um atilamento precipitado, sigamos ouvindo rodar o

canto.

Conclusa a primeira estrofe, as cordas tímidas da introdução irrompem como se

tambores fossem. Quatro palavras batem no couro esticado da canção: sangue, sol, sêmen,

semente. Cada uma parece evocar a onisciência perdida da palavra, e o ritmo iguala-se ao

daquele selvagem que, percutindo em troncos secos de árvores caídas, busca fazer-se ouvir e

inadvertidamente inaugura a poesia. Assim cantado, sangue é mais do que sangue, sol é mais

do que sol, e o binômio sêmen/semente ultrapassa a condição de meros elementos genéticos.

Assim alinhados, sangue, sêmen e semente parecem adquirir grandeza sublime neste

emparelhamento com Sol. É notório que os fenômenos da natureza, a existência dos astros e a

contemplação desses cenários pelo homem têm lugar preponderante na compreensão mítica e

na sua correspondente manifestação pela linguagem. O Sol, a Lua, as Estrelas, o Firmamento,

para o pensamento mítico, são divindades primordiais, pelas quais transitam os desígnios da

criação.

A aliteração e as alternâncias sonoras das vogais, que ora são nasais, ora abertas, ora

de reduzida intensidade e repetidas, concorrem para o vigor do caráter evocativo da sentença.

"Assim, com as sílabas nascem as cadências e os sons: a paixão faz falarem todos os órgãos e

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dá à voz todo o seu brilho; desse modo, os versos, os cantos e a palavra têm origem comum".

(ROUSSEAU, 1978, p. 186) Neste momento é possível afirmar que as inquietações do nosso

cantor, da arquipotência de sua fala, se não a são concretamente, vão-se arrebatadas no

encalço da metáfora original. Sua evocação tem algo de genuflexório e oracular. O refrão traz

indicações catárticas: quatro palavras retumbantes dispostas em quatro compassos

quaternários procurando a quadra espaço-temporal de sua significação plena. Sabe-se que

simbolicamente a grandeza quatro carrega em si o aspecto de concretude, de afirmação da

existência sensível. O quatro simboliza [...] a totalidade do criado e do revelado.

(CHEVALIER, 2002, p. 759)

A canção prossegue trançando agora elementos mais vinculados a uma linguagem

metafórica propositada que liga o canto a componentes variados constituintes da paisagem

rural. Um primeiro conjunto ligado a atividades brutais como a doma e as guerras: cavalo,

laço, lança e guerra. Num segundo momento, esse discorrer alinha elementos um tanto mais

contemplativos como pastoreio, berço, cancha e campa (há nesse quarteto uma nítida ordem

cronológica que remete à vida e à morte). E a estrofe é cerrada com angústias existenciais:

rumo, rancho e razão. Esta racionalidade que o canto também representa parece dizer da

momentânea intencionalidade da metáfora. Note-se que há uma correspondência descritiva no

cenário musical com a modulação tonal que serve de condução para a melodia.

Há um prolongamento narrativo permeado por estrada, destino e carreta, que propõe

condições de viagem e que vai desaguar num imanente simbólico irretorquível: roda, rodado,

rodando. São retomados neste momento os tambores nas alusões percussivas do violão. O

ambiente musical é novamente ritualístico e evocativo. "A roda participa da perfeição

sugerida pelo círculo, mas com uma certa valência de imperfeição, porque ela se refere ao

modo do vir a ser, da criação contínua, portanto da contingência e do perecível. Simboliza os

ciclos, os reinícios, as renovações"(CHEVALIER, 2002, p. 783). Aí está mais uma evidência

do mito: o seu caráter recorrente. Tal recorrência é cantada num crescendo de intensidade

como se a canção tocada por este rodar fosse aos poucos não cabendo mais em si mesma. Mas

logo a harmonia desfecha um abrandamento, que assevera a circular pretensão do canto. Aqui

surge a referência à roda do tempo com se fosse o altar frente ao qual a canção profere suas

fundas orações até entregar-se a uma calma contemplação da sesmaria, trilho aberto e campo

em flor.

Quando a paisagem sonora parece haver adquirido uma aura de íntimo recolhimento,

quase roçando o silêncio, a voz debruça-se sobre si mesmo como se estivesse novamente no

ponto inicial da canção que se retoma: meu canto chega de longe. Contudo, o que irrompe

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dessa falsa monotonia é um arranco verbal que procura o marco original da criação. Do pai,

do pai, de meu pai... A nota que sustenta a palavra pai parece pretender a duração eterna. É

quase um uivo, uma dilaceração do espírito querendo religar-se ao Pai criador. Após uma

breve suspensão, que insinua que a catarse pede vaga para uma respiração que não ofegue,

novamente a percussão ritual recorta o tecido da canção. Tudo está dito, e o que vai esvaindo

é a repetição daquelas possíveis divindades sangue, sol, sêmen, semente, enquanto roda,

rodado, rodando encaminham-se para o terreno inaudível que talvez pertença aos fundões da

eternidade.

Poderíamos nos perguntar se os autores da canção de alguma forma contemplaram tais

desdobramentos antes ou depois do ato criativo. A resposta tanto poderia ser afirmativa

quanto negativa, mas não mudaria o caráter inócuo da indagação. O importante não reside no

aspecto intencional ou no lampejo casual da criação. O que nos parece relevante é a

possibilidade residual das origens míticas ainda poder ser identificada com alguma

naturalidade nestas construções contemporâneas.

Cassirer inicia sua reflexão remetendo ao Fedro platônico no qual Sócrates afirma não

se ater às explicações mitológicas por estar mais interessado em investigar sua própria

condição: "parece-me absurdo que, enquanto continue ignorando-me, possa ocupar-me de

coisas estranhas" (CASSIRER, 2006, p. 16) Esta também é a inquietação da voz que persegue

o seu canto desde remotos imemoriais na composição de Barbará e Silva Rillo. Mesmo que,

como procurei demonstrar, existam resquícios primordiais do mito e da linguagem na

narrativa músico-literária, parece ser também evidente a preocupação existencial que norteia

as reflexões do nosso cantor.

Pode causar a princípio alguma estranheza o fato de que um filósofo neokantiano

como Ernst Cassirer, um racionalista, enverede suas inquietações filosóficas por estes

sinuosos caminhos nos quais o mito e a linguagem confundem-se e tentam elucidar-se

mutuamente. Ainda assim, parece ser possível e compreensível afirmar que a razão, com toda

a eficácia que já emprestou à história do pensamento e à construção sistemática do

conhecimento humano, por vezes ainda se depara com questões que escapam de seu escopo.

Tratar de construções míticas através de método racional, por paradoxal que possa parecer, é

com certeza a única forma que temos de aprofundar conhecimento para que se encontre a

mínima resposta, que é sempre a resposta que se pode alcançar. Sabendo que o melhor dos

lugares é o lugar possível, a humanidade mediada por tal condição constrói seu caminho.

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5.3 A ANUNCIAÇÃO DO CANTO: UM PROBLEMA ENUNCIATIVO

Há no gênero canção popular um movimento enunciativo que transforma a voz que

fala em voz que canta. Tatit cita Mário de Andrade:

Como o arco que vibra tanto para lançar longe a flecha como para lançar perto o som: a voz humana tanto vibra para lançar perto a palavra como para lançar longe o som musical. E quando a palavra falada quer atingir longe, no grito, no apelo e na declamação, ela se aproxima caracteristicamente do canto e vai deixando aos poucos de ser instrumento oral para se tornar instrumento musical.

Tal movimento enunciativo, ainda que esteja vinculado a essa migração semântica

entre diferentes suportes de linguagem (musical e verbal), pode ser investigada sob a ótica da

enunciação proposta por Benveniste (1988). Segundo essa compreensão, existem posições

determinadas num ato enunciativo que são ocupadas de acordo com a fluência da enunciação.

Basicamente existe sempre um eu que estabelece o discurso em relação a um tu. Essas

posições alternam-se durante a construção discursiva, de modo que sempre haverá um sujeito

enunciando de um determinado lugar social e interagindo socialmente segundo mediações

ideológicas manifestas.

Tomemos por base o texto da canção "Enlutado" de autoria de Nelson Pessano de

Souza e Luiz Sérgio Metz36:

Eu, sovada boleadeira, Tranço pernas assoviando Costuro com fios lonqueados As frestas dos alambrados Por onde foge a existência Tenho por lamparina Meio pavio piscando Na madrugada boieira

Noite fria lá vou eu pelos rincões, Gira o rebolo de penas Dos noturnos corujões, Quero-quero campaneia, Suas asas no vento escuto, Ele custa a me avistar Pois andou sempre de luto. Que me restou Foi a faca, o aço puro, Língua negra na cintura Olhos acesos no escuro. Quem por mim quiser chamar,

36 Canção gravada por Luiz Carlos Borges no LP Tropa de Osso (1980).

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Não force sua voz nos ventos, Venho mangueando a desgraça, E a fúria prendi nos tentos.

A questão da subjetividade da enunciação está declarada já no primeiro verso e remete

para uma tipificação humana singular e identificável. A pessoa a quem se destina a mensagem

também é possivelmente encontrada num grupo determinado que reconheça nas construções

lexicais empregadas a natureza e a procedência deste eu-lírico que se anuncia como sovada

boleadeira.

Benveniste afirma que é na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui

como sujeito; porque só a linguagem fundamenta, na realidade, na sua realidade, que é a do

ser, o conceito de “ego”. Sendo assim, aquele que se anuncia cantando só pode reconhecer-se

porque se diz. É este movimento enunciativo de quem afirma eu que torna explícito o sujeito

que se revela para o tu possível e para si mesmo – é de nítido perceber a existência de um

“eu” e um “tu” em intermitente diálogo interno nas instâncias constituintes do "eu". É dizendo

quem é que o enunciador assume sua subjetividade. Nesta linha, este “eu” se reconhece

através do estabelecimento de um contraste revelador em relação a um outro projetado ou

concreto. Ainda, esse “eu” diz de alguém, do seu entorno, de saberes e fazeres que o

condicionam e o identificam. Este terceiro lugar da enunciação, ele, Benveniste relaciona

como sendo uma não pessoa. Esse “ele” só participa do discurso pela referência pronunciada

pelo “eu” ou pelo “tu”. Contudo, podemos relativizar um tanto essa mera participação, uma

vez que esse “ele” condiciona o ato enunciativo na medida em que sua referência indica as

vicissitudes reveladoras do “eu” e do “tu” que possuem propriedades intercambiantes e dão

fluência ao discurso. O “ele” não assume voz, mas demarca as vozes de forma decisiva. No

caso da canção em análise, nem boleadeira, nem quero-quero, nem qualquer outro elemento

alegórico ou paisagístico intervêm explicitamente na enunciação, mas ali estão,

geograficamente postos, para que as compreensões e as tensões do texto sejam reveladas e

resolvidas pelas duas pessoas que efetivamente se enunciam. Ainda que não exista um “tu”

manifesto na canção, penso que a natural presença de um ouvinte ideal possa assumir tal

lacuna.

As escolhas lexicais (no nosso caso tais escolhas também estão vinculadas àquelas de

natureza musical: referências tonais, campos harmônicos, escalas, etc.) colaboram para a

identificação do lugar social e, portanto, da natureza ideológica, da enunciação. Para Bakhtin

(2006), a relação interna do discurso é mediada e condicionada pela interação. Os

constituintes da enunciação são pressionados constantemente por essa inerente interferência

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da ideologia e das relações sociais. E o elemento sígnico, a unidade que comporta a instância

basilar dessa condição, é a palavra. Parece-me considerável, por extensão, compreender que a

palavra cantada também pode ser inserida nessa condição, mesmo que o encontro das

linguagens (verbal e musical) suscite permeações de caráter semiótico pelas quais não

enveredaremos para que não haja afastamento do objeto a ser aqui analisado.

Voltando à nossa canção, parece evidente que o sujeito enunciador profere a partir de

uma circunstância existencial que o delimita. O termo sovada boleadeira carrega, do ponto de

vista semântico, algo que o aproxima da própria linguagem. Senão, vejamos: sovado é algo

muito manuseado, algo que está em constância de uso e por isso, apesar da aparência

(enganosa) rota, de maneira alguma perdeu sua imperiosa eficácia; boleadeira é um primitivo

artefato de captura animal, comum na lida rural (e brutal) dos primeiros tempos de

organização social do Rio Grande do Sul, quando da formação dos primeiros rebanhos e

tropilhas. Metaforicamente, podemos afirmar que a língua em uso, sobre a qual incidem as

preocupações de Bakhtin e Benveniste, ainda que não seja um instrumento, pois, como afirma

o francês, não é construto humano, senão a própria condição de nossa existência social,

guarda semelhança funcional com a alegoria da canção por sua capacidade de arremesso, de

voo, de captura e de sua incondicional possibilidade de uso.

Como já vimos, toda a enunciação é possível por seu caráter subjetivo, pelo

intercâmbio entre o "eu" e o "tu" que afirmam essa subjetividade e pelas condicionantes

inerentes à terceira pessoa, 'ele", que determina os objetos referenciais expostos no discurso.

Da subjetividade arrazoada por Benveniste também se ocupa Bakhtin. O russo, no entanto,

percebe uma dicotomia entre o psíquico e o ideológico: "o signo ideológico tem vida na

medida em que ele se realiza no psiquismo e, reciprocamente, a realização psíquica vive do

suporte ideológico"(BAKHTIN, 2006, p. 65).

Para não perdermos de vista o nosso exemplo: na voz que canta existem dois

momentos possíveis de serem percebidos como constituintes do universo enunciativo da

canção. O primeiro se encontra na inquietação existencial interior que leva o indivíduo a

elaborar a reflexão que, quando do seu proferimento, transforma a voz interior em voz

cantante e, portanto audível para outros. A exteriorização dessa voz faz migrar, na concepção

bakhtiniana, o signo interior para a condição de signo ideológico. Contudo, devemos salientar

que tais territórios não carregam em si pureza integral. Há entre eles irredutíveis intersecções.

O tom confessional do canto admite uma condição humana semelhante à sovada

boleadeira que no seu périplo existencial, no girar de suas três pernas de couro e seus pés de

pedras redondas, pretende costurar as frestas das cercas por onde sempre haverá de esvair-se a

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existência. Há uma lamparina a meio pavio, uma madrugada, passarões noturnos e quero-

queros por testemunhas que, apesar de seus evidentes mutismos, dialogam e dão sentido aos

pensamentos do cantor. Luto e eternidade tensionam a reflexão. Não há conclusão, a canção

finda de forma suspensiva como num aponte ao caráter insolúvel de tais proposições

antagônicas. Nas cores da ave símbolo do Rio Grande do Sul, existe gradual matiz que aponta

para o enlutamento, esse permanente elemento que nos permeia a vida e nos conduz

inexoravelmente ao fim.

A melodia do canto desenvolve-se em dois momentos sobre os quais é necessário nos

determos, ainda que rapidamente. Cabe, no entanto, antes de enveredarmos pela seara

musical, dizer algo que situe diferença entre a enunciação linguística, proposta por um falante

qualquer, e a perspectiva literária condizente à manifestação de um eu-lírico. Nessa segunda

situação, não se estabelece a possibilidade da interlocução. Uma resposta, uma impressão

inferida de leitura poética ou de audição cancionista, para ficarmos apenas no aspecto que

interessa a esta análise, não conduz a um diálogo concreto com aquele ser abstrato que é a voz

do poema ou da canção. Mas, voltemos ao "Enlutado".

Dissemos que, do ponto de vista melódico, existem dois momentos perceptíveis. O

primeiro, composto sobre notas longas e acompanhamento vagaroso, trata da apresentação do

sujeito cantante, o eu-lírico da canção. Esse ambiente sonoro é apropriado à natureza quase

que prostrada da apresentação daquele que tenta cerzir as frestas que dão escape à existência.

A cerzidura diz da impossibilidade de se por estancamento ao jorro vital que o tempo esgota.

No segundo momento há um arroubo rítmico que parece fazer analogia ao bater de

asas e à prontidão quase épica de quem está posto em vigia. Aquele que se apresentou como a

perceber a vida que foge, agora diz como isso se lhe ocorre: noite fria lá vou eu pelos rincões.

Por andar no mundo é que se vai embora do mundo. Como o quero-quero da canção parece

que já nascemos todos indisfarçavelmente enlutados. O rebolo da vida girando, enquanto nos

amola, gradualmente nos faz perder a capacidade do corte: como uma sovada boleadeira

trançando pernas no ar de um tempo no qual já não há mais nada a bolear.

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5.4 DOIS GURIS ENTRE VOLTAR E NÃO PARTIR

Para ampliar, ainda que sucintamente, o que está sendo demonstrado, proponho

reflexão sobre outras duas canções regionais, por sua condição aparentemente antitética, mas

ao mesmo tempo congruente, como há que se ver adiante, de grande reconhecimento popular:

Guri37, de autoria de Júlio Machado da Silva Filho e de João Batista Machado, e Rio de

Infância38, autoria de Apparício Silva Rillo. De imediato apresento os textos:

GURI Das roupas velhas do pai queria que a mãe fizesse Uma mala de garupa e uma bombacha e me desse Queria boinas e alpargatas e um cachorro companheiro Pra me ajudar a botar as vacas no meu petiço sogueiro Hei de ter uma tabuada e o meu livro "Queres Ler”. Vou aprender a fazer contas e algum bilhete escrever Pra que a filha do seu Bento saiba que ela é meu bem querer E se não for por escrito eu não me animo a dizer Quero gaita de oito baixos pra ver o ronco que sai Botas feitio do Alegrete e esporas do Ibirocai Lenço vermelho e guaiaca compradas lá no Uruguai Pra que digam quando eu passe sai igualzito ao pai E se Deus não achar muito tanta coisa que eu pedi Não deixe que eu me separe deste rancho onde nasci Nem me desperte tão cedo do meu sonho de guri E de lambuja permita que eu nunca saia daqui

RIO DE INFÂNCIA Minha mãe foi lavadeira E meu pai foi pescador Eu cresci ao lado deles Nas barrancas do Uruguai Vendo as águas caminhando Ano vem e ano vai Um dia fugi com elas Cansado de ser guri Numa balsa rio a fora Fui embora e me perdi Velho rio de minha infância Temos destinos iguais Tuas águas e meus sonhos Passando não voltam mais

37 Canção vencedora da 13ª Califórnia da Canção Nativa de Uruguaiana, 1983. 38 OS ANGUERAS - LP Cantos de pampa e de rio, 1975.

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Como é fácil ir embora Como é difícil voltar Quero ser guri de novo Não consigo me encontrar

Aparentemente, os sujeitos que se enunciam nas duas canções proferem de universos

distintos: uma criança que não quer sair do seu mundo da infância e um adulto que aspira

voltar ao seu lugar infantil. Entre o não ir embora e o retorno, algumas constatações, outras

aproximações e, certamente, distâncias compõem a senda narrativa que é orientada por

elementos simbólicos perceptíveis. Parece possível aferir que há um processo de identificação

em ambas as afirmações existenciais em análise. Outra constatação evidente é a presença do

terno edípico como primeira referência, como algo que determina o desenrolar discursivo.

Duas passagens instauram o sujeito cantor: na primeira, o indivíduo manifesta o desejo de que

a mãe lhe faça roupas novas a partir das velhas vestes paternas; na segunda, a referência que

localiza o eu-lírico é minha mãe foi lavadeira e o meu pai foi pescador. É nítida a

anterioridade materna nestas relações familiares.

Na canção Guri, a figura paterna é configurada pela presença da mãe, como se a essa

coubesse a autorização para tal apresentação. Os elementos simbólicos presentes pertencem

ao mundo masculino, mas é a figura materna, por sua relação paterna anterior e individual,

quem os estabelece e quem os apresenta. Tais objetos sígnicos fazem parte de um universo

singular e são deflagradores de todo o processo identificatório que os versos da canção

pretendem abarcar. Esse fenômeno "identificação é o processo psicológico pelo qual um

sujeito assimila um aspecto, uma propriedade, um atributo do outro e se transforma, total ou

parcialmente, segundo o modelo desse outro. A personalidade constitui-se e diferencia-se por

uma série de identificações" (LAPLANCHE, 1992, p 226).

Um menino, talvez com seus sete ou oito anos (pensa em ir para a escola aprender a

escrever e ler), pede à mãe que das roupas velhas do pai lhe faça roupas novas. Vemos que

algo do pai, mesmo velho, se impõe que permaneça no menino, de outra forma renovado. É

sua roupa, sua pele, aquilo que lhe dá contorno, algo que permanece o mesmo da geração

anterior, mas que no menino ganha outra vida. Algo que a um só tempo os iguale na

diferença.

Com a mesma-e-outra vestimenta, esse menino sai para o mundo social, indo buscar

em seguida a instituição dos saberes. É preciso ler os signos sociais que se mostram a ele.

Também ele necessita estar evidente nesse mesmo contingente social, dizendo de que lugar

provém, pois nas roupas que usa estão as roupas do pai e, portanto, sua história. É também

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preciso aprender por onde deixar suas marcas nesse social, aprender a es(ins)crever-se no

mundo. E "se não for por escrito, eu não me animo a dizer..." Um leve movimento, e a canção

nos diz da escrita de um poeta. Um efeito se produz aí: aquele que vem escrevendo sobre um

menino e seus desejos (os do menino-poeta) marca a certa altura que não saberia fazê-lo de

outro modo que não o da escrita – numa sociedade letrada é nítido o empoderamento da

escrita sobre a oralidade. Assim este homem se fez poeta. A poesia é sua saída para marcar e

ser marcado pelos efeitos da escritura, naquilo que lhe subjetiva.

Note-se que a permanência da figura paterna passa por um processo destrutivo. Ainda

que as roupas do pai sejam velhas – talvez alegoricamente descartáveis – é justamente essa

condição que possibilita que delas sejam feitas novas roupas para que o menino possa

individuar-se assumindo sua subjetividade perante o mundo social que o cerca e do qual não

pretende sair. Já fui tentado a pensar neste menino como uma figura pateticamente idealizada

por um pai (poeta?) reacionário que sonha para seu filho uma vida sem desafios, sem

novidades, bucolicamente previsível. A expressão saiu igualzito ao pai pode levar a esse

entendimento, contudo a questão parece não se esgotar em tal certeza. Certezas não raras

vezes nos levam a equívocos.

Winnicott (1975), quando trata de relacionamentos por identificações, discorre sobre a

necessidade de destruição do objeto pelo sujeito para que o sujeito consiga relacionar-se com

o objeto. O destruído sobrevive e o destruidor pode então usá-lo. Assim, a destruição do pai

na canção se dá pela reinvenção da sua indumentária. E é instigante a constatação da metáfora

criada pelos novos objetos que o menino deseja que a mãe confeccione: uma bombacha e uma

mala de garupa. Vestir a bombacha que de alguma forma já foi do pai é tomar o seu lugar

(destruir), ainda que ela já não seja a mesma que o pai usava. Mala de garupa é um objeto

para transportar coisas. Algo que se usa para fazer travessias. Neste sentido a alegoria talvez

indique que o menino necessita levar consigo o pai, embora seja imperioso destruí-lo. Sair

igualzito ao pai é assim uma forma de sê-lo e de ser um outro. E a diferenciação instaura um

novo indivíduo, uma subjetividade.

Os outros elementos alegóricos que constam na narrativa cancionista apontam para

uma geografia psicológica, na qual a autorização dada aos objetos de uso cotidiano é feita

pela alusão ao lugar de suas origens. Essa iconicidade parece também apontar para uma

permanência cultural evidente. E talvez por isso mesmo o guri manifeste o desejo de não

partir. É aquela cultura que o referencia, aquele pai que o identifica.

O outro tema, "Canção de rio", ainda que a personagem central afirme sua inexorável

partida, também aponta para um mundo social, para uma cultura da qual aquele que cedo foi

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embora não consegue dissociar-se. A presença de um curso d’água constante, de onde o pai e

a mãe retiram o sustento familiar, marca decisivamente a vida do “guri ribeirinho”.

Já não é mais uma criança que enuncia desde a infância e sim um adulto que constata

o quanto dele mesmo ficou preso às barrancas do rio que lhe levou embora. As referências

familiares são sutis, quase imperceptíveis. Parecem apenas postas no discurso para conferir

verossimilhança ao personagem viajante: foi-se pelo rio aquele cuja mãe era lavadeira, e o

pai, pescador.

O grego Heráclito afirma sabiamente que nunca é o mesmo rio a passar por aquele que

o adentra. Esta contínua transformação dá-se também conosco pelas situações todas que

encontramos vida a fora. Contudo, por mais que nos distanciemos de uma origem qualquer,

parece que continuamos a carregar algo daqueles inícios ou daquelas páginas que vamos

escrevendo e arrancando de nós mesmos. Reencontrar o seu guri é o que pretende aquele que

o rio levou embora. Não consigo me encontrar: essa é a conclusão da voz que canta. Assim

como o guri do campo, o ribeirinho que saiu pelo mundo busca sua referência, e é o seu

mundo social, a sua cultura (que foi deixada para trás) que pode dar-lhe a resposta. Tudo

aponta para um processo de múltiplas identificações que vão nos (des)construindo, nos

conduzindo e nos transformando.

Freud, quando fala de sentimento oceânico (1978), parece ter sempre uma boa palavra

para esta análise "A ‘unidade com o universo’, que constitui seu conteúdo ideacional, soa

como uma primeira tentativa de consolação religiosa, como se configurasse uma outra

maneira de rejeitar o perigo que o ego reconhece ameaçá-lo a partir do mundo externo".

Mesmo que não haja tom confessional que aponte para o religioso em nenhuma das

narrativas cantadas, é nítido que existe uma necessidade de ligação cósmica – chamamos

atenção novamente para a presença ou para resquícios do pensamento mítico nessas

construções – a partir de um lugar identificado nas angústias dos dois guris. O campo que

exerce seu magnetismo atrativo e o rio, com sua força de afastamento, conduzem a alegoria de

dois homens que estão perdidos numa busca que é de todos: o encontro consigo mesmo.

Campo e rio em um certo sentido são forças propulsoras ou freantes do périplo humano.

Árdua tarefa, cotidiano embate. Mínimas respostas: existem campos imensos e rios que

jamais cessarão – jornada nas vidas humanas que são porque se procuram incessantemente.

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6. CONCLUSÃO

Pensando nestas páginas como se fossem um rio, imagino que se agora tentasse voltar

a revê-las, para novamente experimentar o movimento de suas águas, como Heráclito, me

depararia com novos cursos ainda não tocados, e a viagem, mesmo que conhecida, seria

totalmente díspar dessa que acabamos de empreender através das canções de Barbosa Lessa e

alguns de seus pares do universo regionalista gaúcho. Pelos ditames da investigação

científica, necessário é manter-se distância do objeto investigado para melhor apreendê-lo em

suas idiossincrasias. Contudo, para que se faça um recorte que seja abarcável e esteja apto a

receber uma observação atenta, deve-se ter com ele alguma familiaridade, deve-se, portanto,

ser-lhe próximo. Como, pois, nos aproximarmos sem deixar de manter a devida distância

daquilo que pretendemos estudar? Essa deve ser, por certo, a grande barreira a ser transposta

por aquele que pretenda mergulhar em águas análogas. E assim foi: prendi a respiração e

mergulhei.

Naturalmente, aproximar-se de algo é conferir-lhe importância, é sentir-se atraído, é,

de alguma forma, intuir que exista algo além daquilo que se mostra à superfície imediata da

apreensão sensorial. Esse movimento liga-se à necessidade de compreensão dos fenômenos

que ronda de forma inexorável a natureza humana. Ainda que para cada coisa, para cada olhar

sobre a coisa sejam infindas as possibilidades de análise e sempre múltiplas e parciais as

conclusões que possam ser obtidas, cabe salientar que se pode sempre demonstrar aquilo que

nos foi possível (in)concluir. E diga-se: inconcludência não remete obrigatoriamente ao não se

alcançar conclusão nenhuma, mas sim apontar para a própria natureza dos fenômenos que nos

cercam no mais das vezes de forma infinita, ou cíclica, ou espiralada. Ou ainda circular ou

esférica como nas ocorrências míticas. O que aqui expomos, pois, de forma conclusa ou não,

parece-nos, ainda que minimamente, demonstrável. Passemos então a retomar alguns pontos

que podem evidenciar o caráter elucidativo de tal demonstração.

A canção popular de inspiração rural do Rio Grande do Sul, como as canções

populares de maneira mais abrangente, constitui-se em vasto material no qual se podem

empreender estudos que possibilitem dar conta das vicissitudes formadoras da cultura à qual

pertencem, através das possíveis inquietações, talvez coletivas, que se assomam neste

indivíduo-autor-cantador aqui localizado como gaúcho. Seus percalços, seus arroubos, suas

conquistas, seu cotidiano, tudo está, parece, contemplado nas letras e melodias cantadas que

tivemos a oportunidade de apreciar. Poder-se-ia dizer algo sobre a esgotabilidade do universo

contemplado sem dúvida. Mas, se podemos admitir que dialeticamente as partes concorrem

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para a constituição do todo, algo possivelmente estas canções tem a nos dizer sobre o grande

cenário a que pertencem.

Podemos aproximá-las de acordo com algumas características que dão acesso a

recorrências temáticas. Em "Negrinho do Pastoreio", "Feitiço Índio", "Quando sopra o

Minuano" e "Roda Canto", a questão da transcendência e da religiosidade está presente quase

como deflagrador da construção poético-musical. Mesmo que possuam enredos distintos,

caminhos melódicos díspares, campos harmônicos, talvez, inconciliáveis, o eu-lírico que

assume cada uma das vozes que canta parece estar irremediavelmente tocado por dramas

próprios de tentativas de compreensão existencial. Como bem o disse o escritor alemão

(MANN, 1947, p. 13), quando fala da nossa essência enigmática, toda a atividade humana

está sempre à procura do condão que descortina a natureza íntima do homem.

Tais canções perscrutam o insondável. Aquilo que há de divino e de diabólico no

humano. Parece-me que a condição gentílica, ou seja, o lugar de origem desse homem,

quando a dimensão das interrogações é dessa natureza, histórico-geográfica, não consegue

irradiar-se de maior significância. No canto que chega de longe, na flama da vela da tradição,

no voo do vento gelado que abre corações, na evocação de deuses criadores e de seres

poderosos, na verdade, o que salta aos ouvidos, pelo menos aos nossos e neste ínfimo

momento, é aquilo que a humanidade vem procurando desde remotos imemoriais: a si mesmo.

Poder-se-ia encontrar, e aqui vai apenas uma desconfiança, construções próximas na maioria

das culturas cujas identidades se pudesse localizar.

A avareza do estancieiro é lindeira à dos vendilhões do templo no episódio bíblico. A

purgação do negrinho sobre o formigueiro fervente emparelha-se com o crucial caminho de

Jesus ao encontro da morte e da ressurreição. Guardadas, é claro, as devidas proporções dos

eventos históricos ou lendários e seus impactos sobre a história da humanidade. Vemos, pois,

que não há uma prerrogativa de gauchidade importante. Encontramo-la como composição de

cenário para que se desenrole uma teatralidade em letra e música de fôlego superior. Todos os

que cantam são gaúchos, mesmo que alguns não o sejam. Muitos fazem questão de afirmar tal

condição, mas a inquietação que os toma não é meramente essa de reconhecer-se como tal, é

mais: é angústia infinita de não saber com precisão quem verdadeiramente se é. Reconhecer-

se gaúcho, portanto, é mais uma peça que engendra o jogo no qual uma pergunta é mais uma

ponte para a próxima do que o descortino da resposta última. Nesse caso, e quem sabe apenas

nesse, não é por ser gaúcho que se canta assim, o que nos permite esta voz é a mesma

condição, como ensinava Rousseau, aquela que fez a palavra – primordial e musical –

constituir nossa natureza intrínseca.

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Em "Negrinho do Pastoreio" e "Feitiço Índio" a divindade é evocada. A prece é

elevada diretamente a Tupã, ou a Nossa Senhora, protetora do Negrinho. A religiosidade,

nitidamente posta no texto cancionista, mostra-se como o caminho da salvação. Esse se salvar

pode não tratar da grande esperança humana que pretende dar sentido à existência, mas

podemos aceitá-lo como sendo um pequeno salvamento que conduz ao todo. E talvez o que se

persiga cotidianamente, seja pelas canções, seja pelos atos e seus arrependimentos e suas

afirmações, integre um arcabouço de ínfimas salvações que nos cumulam de preparo para a

grande redenção, se é realmente plausível o reconhecimento desta. Segundo essa consciência,

o homem está para sempre perdido e apenas através da divindade será possível se encontrar o

mapa que leva ao ponto existencial onde a alma humana haverá de religar-se ao divino.

De outra forma, ainda que resquícios do pensamento mítico estejam presentes, em

"Roda Canto" e "Quando sopra o Minuano", o evocável, o talvez divinizado, agora é um

fenômeno da natureza. E aí me ocorre uma analogia no mínimo curiosa como acontece na

canção do norte-americano Bob Dylan39: espera-se achar a resposta viajando na voz do vento.

Por certo, não se trata do mesmo vento – aquele da canção do norte não está nomeado – e é

provável que por lá os gelos deste nosso minuano até nem pareçam tão gelados. Contudo,

pode-se fazer ligação entre a proferição dos eus-líricos cantantes: há um encantamento pelo

fenômeno a ponto de conferir-lhe a capacidade de guardião ou de transportador de alguma

resposta. Na canção em idioma inglês, a resposta está vindo no vento. Já no canto que nos

oferece Lessa, há um convite para voar com o Minuano, pois nele se reúnem gerações, e as

velhas tradições dão o rumo do futuro. Silva Rillo e Mário Barbará nos contam que seu canto

chega de longe, vem na garupa do vento, da furna funda do tempo. Na jornada que nos leva

do passado ao futuro parece só haver, como no canto que ouvimos, resposta fora do homem.

Um fora, entretanto, em tudo relativizado, pois aquela já referida essência enigmática parece

ser capaz de colocar fora o que vai dentro e inserir internamente o que nos é exterior.

Estas angústias alinham-se aos sentimentos que movem o "Enlutado", aquele que,

como ouvimos, apresentou-se como sovada boleadeira, e como já se disse tal sovado parece

aludir a – além de um esgotamento físico – um cansaço do espírito, levado a efeito pelas

incongruências as quais esse corpo e essa alma vão submetidos. A existência foge: este é o

nosso intransponível desmazelo. Como nestas canções, talvez, só nos reste meio pavio

piscando, uma velinha queimando aquecendo e as asas de um vento gelado para que possamos

suportar e tentar compreender o tempo que nos consome.

39 Referência à canção Blowing in the wind.

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Enquanto eu ia me detendo nas canções, cheguei a lamentar um par de vezes sobre a

ineficiência deste suporte sobre o qual lanço estas impressões. Como o poeta exclamava-se de

não ter podido traficar para o presente seu passado roubado na algibeira, ainda me ronda essa

fragilidade que persegue a análise: não poder o papel transportar, além das palavras, toda a

sonoridade pela qual empreendi rota de investigação. Não sendo isso realizável, gostaria que

aquilo que ora escrevo pudesse pelo menos servir como roteiro para uma audição possível, já

que obviamente aqui não cabe a tola pretensão de um aponte definitivo. Este texto tomado

como guia poderia então se capacitar ao estabelecimento de diálogo entre o que eu ouvi, e cá

imprimi, com tantos quantos pudessem também ouvir, inferir e redaguir impressões sobre esse

universo poético e musical. Se tal puder ser concretizado, poderei dizer que valeu o

empreendimento.

Quando iniciamos esta jornada, dissemos que um dos objetivos precípuos da

investigação seria buscar, na medida do possível, o encontro com o processo de construção

identitária do gaúcho dentro do universo cancionista através do recorte proposto. Onde está,

pois, essa figura, é a indagação que agora se faz pertinente para a continuação dessas

considerações.

Retomemos a saga do "Negrinho do Pastoreio". Simões Lopes Neto, quando procede à

narrativa das lendas gaúchas, o faz dentro de uma cronologia exposta com didática eficiente.

No fundo, e além da sua magistralidade literária, o que se dá a conhecer é justamente a

formação do Rio Grande do Sul. Há um gênesis pertencente à cultura indígena no relato sobre

A M’boitatá; num segundo momento, passa ao encontro do branco europeu com esses índios

em A salamanca do jarau; e fechando a tríade o início de uma organização social fundada em

estamentos distintos em "O negrinho do pastoreio". Nas canções que vimos, ainda que

diretamente sobre a narrativa feita pelo vaqueano Blau Nunes não haja alguma incidência –

como no caso da história do santão e da princesa moura –, os elementos alegóricos que

compõe as lendas são análogos aos cantados. É perceptível, pois, que Lessa tenha se inspirado

nas narrativas simonianas, e isto pode estar prenhe de significados. Os motes que deram à luz

as canções não surgiram de modo aleatório. Foram destacados de uma literatura já

identificada com aquele regionalismo sobre o qual o autor, com sua verve propositalmente

posta a serviço do resgate das tradições do povo gaúcho, acreditava ser necessária a criação

cancionista. Digo necessária, porque como foi afirmado pelo próprio Lessa, não havia canções

para se cantar. Para preencher tal lacuna elas foram sendo compostas. E ocupar esse vazio era

dar voz reconhecível ao gaúcho. E para isso era necessária a conformação de um arquétipo

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adequado. Chega-se a esse construto um tanto pela história verificável e outro tanto pelas

inesgotáveis cidadelas do imaginário que compõem os tesouros culturais de um povo.

Em suas obras cancionistas, Barbosa Lessa pretende situar o gaúcho cantando. E situá-

lo significa conferir-lhe dicção reconhecível. Significa dotar a expressão cantada de tal

singularidade que a voz e a sonoridade total daí emanadas possam dar-se ao conhecimento

pelo estreito e inarredável vínculo com aquela cultura tradicional, cuja atualização pretende

ser a fonte deflagradora das canções. Contudo, o cancionista parece conseguir suplantar seus

propósitos iniciais, construindo uma obra de grande valor artístico. Como já disse, algumas

canções merecem figurar entre as melhores páginas do gênero no país.

Quem acende vela ao negrinho, quem observa o comportamento da ave que é um

verbo repetido, quem bota os cavalos a girar sobre as vagens de feijão, quem pretende ter um

cesto para misturar a bicharada, quem conduz carreta e bois e canta e é cantado, quem chama

a divindade índia e quem exorta a um levante rumo às tradições que vão no vento: o gaúcho.

A abstração modelar de uma cultura e a sua voz. Sua, portanto, dicção inconfundível. E diga-

se que o Conjunto Farroupilha, ainda que tenha acolhido em seu repertório canções dos mais

distintos gêneros, correu mundo na qualidade de arauto desse cancioneiro. E quando se afirma

que correu mundo não se está cometendo exagero algum, posto que o grupo, no auge de sua

trajetória, apresentou-se em todos os continentes do globo. Permanece, contudo, a indagação:

dito que aquele que canta é o gaúcho, deve-se, pois, dizer quem ele é. Eis então mais um poço

de fundura talvez inexpugnável. Mas já que até aqui viemos, nos é impossível não deixar que

a roldana leve o nosso balde bocal adentro até onde o comprimento da nossa corda puder

atingir.

O trovador Gildo de Freitas apresenta sua gauchidade, brandindo seu canto metálico

como bandeira, consentindo que lhe chamam de grosso. E ele até reconhece a procedência

dessa condição. Poder-se-ia emparelhar assim que esse grosso constrói sinonímia com

gaúcho. E disso, depreenderíamos que a questão estaria resolvida: gaúcho significa pessoa

desprovida de cultura, ou ainda, aquele que, por sua origem no meio rural, se move com

dificuldade – ainda que o próprio Gildo ironize, como vimos, essa circulação social

embaraçosa – num mundo que tende a uma crescente e contínua urbanidade. Se tomássemos a

obra do trovador, e de outros que o seguem, como também seguem a Teixeirinha, talvez as

nossas rondas investigativas tivessem que aqui serem dadas por concluídas. Esta seria, pois, a

designação elucidativa e concludente da condição antropológica “ser gaúcho”. Contudo, uma

rápida aproximação entre as produções cancionistas pelas quais estamos empreendendo esta

viagem aponta-nos para algo muito além de tal superfície: novamente a fundura do poço.

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Tentemos, então, agrupar, por algumas características observáveis, os autores e

confrontá-los à guisa de desvencilharmo-nos dessas abordagens tangenciais. De imediato,

parece haver proximidade demonstrável nas produções de Barbosa Lessa – "Negrinho do

Pastoreio", "Quero-quero", "Feitiço Índio" e "Quando sopra o Minuano" –, Silva Rillo e

Mário Barbará – "Roda Canto" –, Sérgio Metz e Nelson Pessano – "Enlutado" –, que

chamaremos de primeiro grupo, em contraste com Lessa – "Entrevero no jacá", "Cantiga de

eira, Carreteiro" –, Gildo – "Eu reconheço que sou grosso" –, Rillo – "Rio de infância" –, e

Júlio e João Machado – "Guri", de agora em diante nomeado segundo grupo.

No primeiro grupo é nítido um tratamento de linguagem que tende a alguma

sofisticação, quer pelo engendramento litero-musical proposto, quer pelo conteúdo reflexivo

que inaugura o ato composicional. Ainda assim, parece que não estamos atingindo águas,

senão essas mais tépidas e confortantes que ficam à tona do espelho líquido. Mais um fôlego e

mais um impulso ao fundo, pois, é o que se impõe.

Aquele que canta, neste primeiro grupo de canções, denota possuir alguma erudição

quando aproxima seu canto da literatura, constrói metáforas, transita suas melodias por

campos harmônicos não-óbvios, percorre a escala com um domínio um tanto além do caráter

espontâneo frequentemente encontrado em contextos populares de produção artística.

Configura-se, portanto, um gaúcho diferenciado daquele que canta no segundo grupo. Nesse,

tomando-se o grosso e os dois guris, parece ficar evidente que as linguagens verbais e

musicais tendem a uma comunicação mais direta, sem “enfeites”. Estão, estas canções, dando

voz a um gaúcho mais simples, mais direto, que se reconhece a partir de uma relação terrena

muito bem definida. Contudo, devemos sinalizar para o perigo de delineá-lo – este gaúcho –

como alguém cuja inteligência tangencie algo de obnubilação ou falta de capacidade de

elaboração dos conceitos, ainda que mínimos, que constituem sua sabedoria.

Estamos tentados neste momento a identificar que são dois, portanto, esses que

cantam. Seguramente, se não fosse isso alongar por demais este estudo, poderíamos nos

deparar com ainda muito mais facetas, mais figuras que transitam suas vozes por este

cancioneiro. Sendo assim, parece também lícito inferir que é justamente por tal multiplicidade

que podemos chegar aos contornos de um gaúcho identificável. Tratamos de uma cultura, não

de um indivíduo. Cultura é um processo de construção humana. E coletiva, portanto. Como já

cantou um compositor popular: ninguém é um só. Um arquétipo é um paradigma, um tipo, e

aqui consideramos um tipo social que se faz resultado pela soma das características mais ou

menos identificáveis de uma comunidade localizada.

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Como já se pode perceber, no próprio Barbosa Lessa, através das canções vistas,

coabitam estas duas facetas gaúchas. Recorrendo à surrada expressão popular: dois lados da

mesma moeda. Ainda assim, cumpre afirmar, em se tratando do homem e da sua

circunstância, múltiplos serão sempre estes lados. Inesgotáveis porque se retroalimentam e

proliferam, porque estão eternamente a confrontar-se. Os dois gaúchos – que são o mesmo –

cantam pelo modo que veem, que se veem e que são vistos. A paisagem que os cerca é

idêntica. Os medos, as ânsias, as pedras no meio do caminho, carretas, bois, amores,

boleadeiras, velas, vento, pássaro, tradição, tudo faz parte do microcosmo que se configura

como casa – o pago. O lugar que se quer rever, do qual não se quer partir e partindo se deseja

voltar. O que muda é o olhar, o que se move é a distinta capacidade de percepção, não cabe

juízo de valor algum sobre tal diferenciação. Esse sentimento, esse nativismo, é constituinte

das manifestações regionalistas. As culturas que buscam afirmar suas características

regionais, segundo o enfoque dos mais variados estudiosos das questões identitárias, alinham-

se numa posição de contrariedade à globalização cultural. E se assim adjetivo é porque mais

cotidianamente recebemos como processos de globalização apenas aqueles de natureza

econômica ou tecnológica. "O ponto a destacar é a ênfase na cultura e na identidade local"

(BURKE, 2006, p. 104). Cabendo sempre que se ressalte a dificuldade enfrentada por

tentativas de preservação dentro de uma realidade mundial que tende inexoravelmente à

dissolução das fronteiras diante da possibilidade cada vez mais veloz e abrangente dos

intercâmbios culturais.

Esse é o paradoxo: mesmo diante de um cenário que nega afirmações regionais,

produziu-se no Rio Grande do Sul, nestes sessenta anos, um tal volume de canções que parece

impossível não ser levado em consideração. E podemos situar a obra de Luiz Carlos Babosa

Lessa na origem – sempre provisória origem – dessa construção. Trata-se de uma contradição,

poderão afirmar. Contudo, se somos de alguma forma passíveis de explicação ou de

entendimento, não será justamente por nossa intrínseca natureza contraditória? O fato é que

este cancioneiro aí está, relevante ou não. Tantos o admiram, uns lhe são indiferentes, muitos

o consideram referencial: talvez, como tudo na vida, por sua capacidade de ser pífio e

maravilhoso.

Existe uma canção popular em que o autor/cantor revela e pergunta surpreendido:

certas que canções que ouço, cabem tão dentro de mim, que perguntar carece, como não fui

eu que fiz.40 E parece existir uma imensidão de canções que, apagada a autoria, sobrevivem

40 "Certas canções" (Tunai e Milton Nascimento). LP ANIMA (1982)

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como propriedade coletiva: cabem tão dentro da alma de um povo, justamente por ter sido ele,

em última análise, que as concebeu. São desta natureza as canções que nos deixou Lessa.

Essas são as canções que, depois daquelas origens aqui estudadas, continuam sendo

produzidas, difundidas e cantadas com rara identificação pelos palcos, pelas rodas domésticas,

pelas emissoras de rádio, nas praças e nos bares das cidades, em cada festival, em cada

lugarejo, em cada coração gaúcho. Naturalmente, tudo ainda está para ser dito, ainda que tudo

já tenha sido dito. Talvez uma coisa apenas neste momento mereça ser grifada nestas páginas:

mesmo que haja um gaúcho delineado como a voz que dá vida a estas canções, aquilo que ele

canta, acima de sua condição gentílica, além do seu contorno cultural, é aquilo que move a

arte e move a cultura, e que em instância derradeira põe o mundo em movimento: a condição

humana. Cantamos para quase tudo: gritar, amar, doer, chamar, ouvir. Mas cantamos sempre

para perguntar quem somos. E a resposta está sempre adiada. Acaba-se a corda e o poço

continua: mete medo, desafia, nos convida. Invariavelmente, mesmo cientes de que não há

mais corda para nos trazer de volta ao bocal, atendemos ao convite e permanecemos vida a

fora em rota de mergulho.

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8. OBRAS CONSULTADAS BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. vol. 1 São Paulo: Editora 34, 2007. DURAND, Gilbert. A imaginação simbólica. Lisboa: Edições 70, 2000. HERNANDEZ, Jose. Martin Fierro. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1980. LESSA, Barbosa e CÔRTES, Paixão. Danças e andanças da tradição gaúcha. Porto Alegre: Garatuja,1975. LUDMER, Josefina. O gênero gauchesco: um tratado sobre a pátria. Chapecó: Argos, 2002. NESTROVSKI, Arthur. (org) Lendo música: 10 ensaios sobre 10 canções. São Paulo: Publifolha, 2007. _____. Ironias da modernidade. São Paulo: Ática, 1996. OLIVEIRA, Solange Ribeiro...[et al.] Literatura e música. São Paulo: Editora Senac São Paulo: Instituto Itaú Cultural, 2003. TEZZA, Cristóvão. Entre a prosa e a poesia: Bakthin e o formalismo russo. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.

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9. DISCOGRAFIA CD Barbosa Lessa 50 anos (2001): - Negrinho do Pastoreio (Barbosa Lessa) - Quero-quero (Barbosa Lessa) - Cantiga de eira (Barbosa Lessa) - Entrevero no jacá (Barbosa Lessa/Danilo Vital de Castro) - Carreteiro (Barbosa Lessa) - Feitiço índio (Barbosa Lessa) - Quando sopra o minuano (Barbosa Lessa) LP Gildo de Freitas (1979): - Eu reconheço que sou grosso (Gildo de Freitas) LP 5ª Califórnia da canção nativa de Uruguaiana (1975): - Roda Canto (Mário Barbará/Apparício Silva Rillo) LP Tropa de osso – Luiz Carlos Borges (1980): - Enlutado (Nelson Pessano de Souza/Sérgio Metz) LP 13ª Califórnia da canção nativa de Uruguaiana (1983): - Guri (Júlio Machado da Silva Filho/João Batista Machado) LP Cantos de Pampa e de Rio – Os Angueras (1975) - Canção de rio (Apparício Silva Rillo)

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