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128 www.backstage.com.br Luiz Carlos Sá Uma carta para Rogério M eu querido maestro, Contrariando todas as minhas expectativas, você não era eterno e abandonou a batuta terrena, deixan- do surda e muda uma imensa orquestra de fiéis músicos, entre os quais me incluo. Como já há algum tempo não nos falávamos, resta-me escrever esta carta, na esperança de que – contrarian- do de novo minhas certezas – exista um céu e você esteja lá, incorporando dissonâncias e concretismos ao antes bem com- portado coro de querubins recepcionistas, que certamente nun- ca mais cantarão do mesmo jeito. Sozinho e desolado diante da perda da única pessoa que eu, iconoclasta convicto, teria a humildade de chamar de guru – palavra à qual você tinha horror quando relacionada a você – fui remexer nos meus guardados para encontrar aquela carta- partitura que você me mandou quase dez anos atrás, contando um sonho estranhíssimo que teve comigo, dando-se ao luxo de escrever uma parte com a melodia que eu cantava e o acompa- nhamento que você tocava no cello, tudo naquela estranha or- tografia, a “nova escrita”, que você usava invariavelmente em qualquer situação: Soñei, fim do sono, às 5 da matina de 7/8/98: Sá e eu tokando num tipo de festival de uma rapaziada toda vestida kom mantas brankas num pekeno salão – lixo, latas velhas, su- jeira (e aqui o maestro transcreve meu solo vocal e seu acompanhamento de “txelo”). Sá tinha eskrito sua parte, he ele lia, he tb. a miña. Junto avia um outro kára tokando uma espécie de sax-soprano bronze-esverdeado (aziñavre) amasádo, mas não lembro de sua parte. Sei ke eu olhei pra dentro do sax, pela bokilha he era klaro e sujo lá dentro. Tokávamos e pará- vamos, ningém dava bola, nem aplaudia nem vaiava. Eram pokos os jovens (axo ke uns 20). Falavam e andavam muito. Nos nosos intervalos Sá me dizia ke eu podia depois ir embora, ke ele faria o ke tiña ke ser feito ( até agora não sei o ke seria). A músika era mais komprida mas akordei só me lembrando désa ‘kabêsa de tema’ ”. Quando num distante1972, meus parceiros Rodrix e Guarabyra me propuseram a mudança para São Paulo, minha primeira reação foi – queiram os paulistanos desculpar este em- pedernido carioca, ainda mais que o verão estava chegando – um claro e redondo “não”. Eles que fossem enfrentar a paulicéia desvairada. Mas aí veio o argumento definitivo: - Cara, nós vamos trabalhar com o Rogério Duprat... Pirei. Desde que tinha ouvido seus arranjos tropicalistas você não me saía da cabeça. Atrevimentos, ousadias, cordas diferen- tes, metais exóticos, sons jamais ouvidos... Quem era o cara? Rogério Duprat. Mas quem era Rogério Duprat? De onde ele tinha vindo para entrar nessa maravilhosa rota de colisão com os tropicalistas? Você jamais me contou essa história em detalhes. Ficava uma arara quando eu perguntava, sentia no ar minha inconfessada tietagem: - Mas que catso, vamos falar de coisas mais interessantes! – contrapunha, tímido, me ensinando os primeiros palavrões ítalo- paulistanos que aprendi... Mas voltemos então ao nosso primeiro encontro, num res- taurante chinês na Avenida Paulista. À mesa redonda, além de nós dois, Luiz Arruda Botelho, Luiz Carlos Christino, Rodrix e Guarabyra. Eu, babando despudoradamente diante do ídolo, mal tomei parte nas conversas que fecharam o tra- balho do trio com a Pauta Produções por um ano. Fiquei sur- preso com a sua informalidade: achava que um maestro do seu quilate, famoso e competente, não podia ser assim tão acessível a nós, reles mortais. Conseqüentemente, você deve me ter achado um babaca naquela noite. Mas não fiquei Nós e nossa banda Ponte Aérea no sítio do Rogério, em Itapecerica da Serra, 1980. Da esquerda para a direita, de pé: Nonato (batera), Constant Papineanu (teclados), Luiz Paulo (roadie), Beto Martins (guitarra), Roatã Duprat (filho do maestro), Pedro Jaguaribe (baixo). Sentados: Liginha (esposa de Nonato), Rogério Duprat com dois netos no colo, Guarabyra, Aninha Domingues (esposa do Jaguaribe), a então namorada de Roatã cujo nome não me lembro e eu, Sá, com minha filha Dora no colo e meu filho Miguel no velocípede. Foto de Ary Brandi.

Luiz Carlos Sá Uma carta para Rogério M - backstage.com.br · partitura que você me mandou quase dez anos atrás, contando um sonho estranhíssimo que teve comigo, dando-se ao

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Luiz Carlos Sá

Uma carta para Rogério

Meu querido maestro,

Contrariando todas as minhas expectativas, vocênão era eterno e abandonou a batuta terrena, deixan-

do surda e muda uma imensa orquestra de fiéis músicos, entreos quais me incluo. Como já há algum tempo não nos falávamos,resta-me escrever esta carta, na esperança de que – contrarian-do de novo minhas certezas – exista um céu e você esteja lá,incorporando dissonâncias e concretismos ao antes bem com-portado coro de querubins recepcionistas, que certamente nun-ca mais cantarão do mesmo jeito.

Sozinho e desolado diante da perda da única pessoa que eu,iconoclasta convicto, teria a humildade de chamar de guru –palavra à qual você tinha horror quando relacionada a você –fui remexer nos meus guardados para encontrar aquela carta-partitura que você me mandou quase dez anos atrás, contandoum sonho estranhíssimo que teve comigo, dando-se ao luxo deescrever uma parte com a melodia que eu cantava e o acompa-nhamento que você tocava no cello, tudo naquela estranha or-tografia, a “nova escrita”, que você usava invariavelmente emqualquer situação:

“Soñei, fim do sono, às 5 da matina de 7/8/98: Sá e eu

tokando num tipo de festival de uma rapaziada toda vestida

kom mantas brankas num pekeno salão – lixo, latas velhas, su-

jeira (e aqui o maestro transcreve meu solo vocal e seuacompanhamento de “txelo”). Sá tinha eskrito sua parte, he

ele lia, he tb. a miña. Junto avia um outro kára tokando uma

espécie de sax-soprano bronze-esverdeado (aziñavre) amasádo,

mas não lembro de sua parte. Sei ke eu olhei pra dentro do sax,

pela bokilha he era klaro e sujo lá dentro. Tokávamos e pará-

vamos, ningém dava bola, nem aplaudia nem vaiava. Eram

pokos os jovens (axo ke uns 20). Falavam e andavam muito.

Nos nosos intervalos Sá me dizia ke eu podia depois ir embora,

ke ele faria o ke tiña ke ser feito ( até agora não sei o ke seria).

A músika era mais komprida mas akordei só me lembrando

désa ‘kabêsa de tema’ ”.

Quando num distante1972, meus parceiros Rodrix eGuarabyra me propuseram a mudança para São Paulo, minhaprimeira reação foi – queiram os paulistanos desculpar este em-pedernido carioca, ainda mais que o verão estava chegando –um claro e redondo “não”. Eles que fossem enfrentar a paulicéiadesvairada. Mas aí veio o argumento definitivo:

- Cara, nós vamos trabalhar com o Rogério Duprat...Pirei. Desde que tinha ouvido seus arranjos tropicalistas você

não me saía da cabeça. Atrevimentos, ousadias, cordas diferen-tes, metais exóticos, sons jamais ouvidos... Quem era o cara?Rogério Duprat. Mas quem era Rogério Duprat? De onde eletinha vindo para entrar nessa maravilhosa rota de colisão com ostropicalistas? Você jamais me contou essa história em detalhes.Ficava uma arara quando eu perguntava, sentia no ar minhainconfessada tietagem:

- Mas que catso, vamos falar de coisas mais interessantes! –contrapunha, tímido, me ensinando os primeiros palavrões ítalo-paulistanos que aprendi...

Mas voltemos então ao nosso primeiro encontro, num res-taurante chinês na Avenida Paulista. À mesa redonda, alémde nós dois, Luiz Arruda Botelho, Luiz Carlos Christino,Rodrix e Guarabyra. Eu, babando despudoradamente diantedo ídolo, mal tomei parte nas conversas que fecharam o tra-balho do trio com a Pauta Produções por um ano. Fiquei sur-preso com a sua informalidade: achava que um maestro doseu quilate, famoso e competente, não podia ser assim tãoacessível a nós, reles mortais. Conseqüentemente, você deveme ter achado um babaca naquela noite. Mas não fiquei

Nós e nossa banda Ponte Aérea no sítio do Rogério, em Itapecerica da Serra,

1980. Da esquerda para a direita, de pé: Nonato (batera), ConstantPapineanu (teclados), Luiz Paulo (roadie), Beto Martins (guitarra), RoatãDuprat (filho do maestro), Pedro Jaguaribe (baixo). Sentados: Liginha

(esposa de Nonato), Rogério Duprat com dois netos no colo, Guarabyra,Aninha Domingues (esposa do Jaguaribe), a então namorada de Roatã cujonome não me lembro e eu, Sá, com minha filha Dora no colo e meu filho

Miguel no velocípede. Foto de Ary Brandi.

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nem aí, porque o resto do ano foi só alegria: ver você debru-çado naqueles arranjos para os nossos discos foi a realizaçãode um sonho. E mais tarde, em 1974, embarcamos no sonhoda Vice Versa, sócios num grande e lindo estúdio de gravaçãode 16 canais, eheheh... e dali fomos no embalo da tecnologia,aumentando canais e periféricos até não poder mais. Foi poressa época que você inventou o breque pra me cumprimen-tar, cantando:

- Luiz Carlos Pereira de Sá...E eu respondia, rimando:- e Rogério Duprá!Nas suas horas mais pessimistas você renegava a música:

“Acabou em Bach! Tá tudo uma m... há muito tempo!”,pregava como um pastor niilista na padaria da esquina,onde, bem me lembro, você se intoxicou com um cheese-burger ao romper de súbito com vários anos de vegeta-rianismo, num daqueles rompantes contra-contraculturais.

O fato de o vegetarianismo estar progredindo era, a seuver, uma prova inegável de que os carnívoros estavam coma razão...

E por aí fomos. A cada disco que gravávamos, mais arranjosseus tínhamos. Viramos colecionadores dessas jóias que, assimcomo nós mesmos, brincavam de balançar na corda bamba en-tre o oficial e o contestatório: os cellos reflexivamente unísso-nos de Alucinante Alice, os metais estridentes e felizes de Apre-

ciando a Cidade, a produção e os arranjos de Cadernos de Via-

gem e Quatro.Ao todo, você nos presenteou com mais de 20 impecáveis

orquestrações que integram nosso patrimônio musical comoos Portinari ou as Tarsila integram o acervo de museus dearte moderna. Sua modernidade, no entanto, nada tinha aver com modismo. Pelo contrário, você conseguiu demons-trar que o novo compunha-se de três tempos: passado, pre-sente e futuro.

Num belo dia de 1978 você chegou pra mim e falou:- Olha só: eu e o Régis, meu irmão, estamos gravando um

disco com músicas brasileiras de fins do século 19 que ele reco-lheu numa pesquisa.

- Bacana!- A gente quer um cantor pra duas dessas músicas. Um can-

tor que faça a ponte entre o popular e o erudito, porque era issoo que acontecia. Os caras faziam música pra cantar em sarausbaseadas no erudito.

- Uau...- E a gente achou que você é que tem que cantar.

Obviamente eu já estava topando. Mas ao mesmo tempo medeu medo.

- Você acha mesmo?...- Claro. Você canta pra cacete!Nossssssa! Caí do céu! Rogério Duprat dizendo isso pra mim!- Bom, então vamos lá!No dia da gravação, fui ouvir as músicas. Encrencadíssimas,

com espaços de oitava entre uma nota e outra e extensão totalde quase quatro oitavas. Engoli em seco e entrei no estúdio dis-posto a não decepcionar o maestro. As primeiras passadas foramproblemáticas. Você percebeu minha insegurança e chamou-me na técnica.

- Rapaz! Vai lá e canta! Só canta! Sai cantando que nemcanário! Você sabe, só não está mostrando.

Estimulado e desafiado, enchi-me de brios e sentei o pau. Can-tei como a gente canta no banheiro, como se canta pra namoradaque vai embora. Ficou lindo e certo. Na saída, você me abraçousorridente. Senti ali que você tinha bancado uma opinião pessoal,contra a opinião da gravadora que certamente teria preferido umtenor de ópera. Mas você teimou, não era por ali. Tenores de óperanão cantavam em fazendas brasileiras no século 19. Tinha que serum cantor popular soltando a garganta numa sala de casa grande,louco pra ganhar a senhorinha do pedaço.

E assim foi nossa vida juntos: cerveja na padaria, reuniões desócios e algumas broncas no estúdio... Uma vez você se virou pramim, no meio de uma gravação em que eu não conseguia acer-tar a leitura do compasso, e perguntou:

- Porque você não faz de conta de que está dirigindo? Quan-do está dirigindo você concentra!

Daquele dia em diante, toda vez que gravo finjo que estoudirigindo e consigo me concentrar. Como você queria não ser omeu guru, cara, ou melhor, kara?

E agora, como de costume, sem a menor cerimônia, vocêse manda. Fico eu aqui moendo remorsos de não ter enfren-tado mais vezes a longa estrada até os aléns de Itapecerica daSerra pra te ver, tomando aquele Long John vagabundo compão enquanto Lalí te preparava a caipirinha. Como a gentejogava conversa fora! “Tudo menos música!”, você coman-dava e eu obedecia, embora querendo sanguessugar teus co-nhecimentos como um parasita amigável. Quem sabe vocêlerá esta carta e dirá:

- P..., Sá, mas que babaquice!Eu só morri, e aí, qual é o problema?Pra você, maestro, não tem problema. O problema é nosso,

que ficamos aqui sem você.