Luiza Leite Tese

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  • 7/23/2019 Luiza Leite Tese

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    Universidade do Estado do Rio de Janeiro

    Centro de Educao e Humanidades

    Instituto de Letras

    Luiza Ferreira de Souza Leite

    Modos de ler e ser: a potica dos livros ilustrados

    Rio de Janeiro

    2013

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    Luiza Ferreira de Souza Leite

    Modos de ler e ser: a potica dos livros ilustrados

    Tese apresentada, como requisito parcialpara obteno do ttulo de Doutor, aoPrograma de Ps-Graduao em Letrasda Universidade do Estado do Rio deJaneiro. rea de concentrao: LiteraturaComparada.

    Orientador: Prof. Dr. Gustavo Bernardo Krause

    Coorientadora: Prof. Dra. Maria Jos Cardoso Lemos

    Rio de Janeiro

    2013

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    CATALOGAO NA FONTE

    UERJ/REDE SIRIUS/CEHB

    Autorizo, apenas para fins acadmicos e cientficos, a reproduo total ou parcial desta tese desdeque citada a fonte.

    __________________________ __________________Assinatura Data

    L533 Leite, Luiza Ferreira de Souza.Modos de ler e ser: a poltica dos livros ilustrados / Luiza Ferreira

    de Souza Leite. 2013.216 f.

    Orientador: Gustavo Bernardo Krause.Tese (doutorado) Universidade do Estado do Rio de Janeiro,

    Instituto de Letras.

    1. Livros ilustrados para crianas Teses. 2. Literaturainfantojuvenil Ilustrao de livros Teses. 3. Sentidos e sensaesem crianas Teses. 4. Percepo nas crianas Teses. I. Bernardo,

    Gustavo, 1955-. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro.Instituto de Letras. III. Ttulo.

    CDU 82-93:655.533

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    Luiza Ferreira de Souza Leite

    Modos de ler e ser: a potica dos livros ilustrados

    Tese apresentada, como requisito parcialpara obteno do ttulo de Doutor, aoPrograma de Ps-Graduao em Letrasda Universidade do Estado do Rio deJaneiro. rea de concentrao: LiteraturaComparada.

    Aprovada em 30 de abril de 2013.

    Banca Examinadora:

    _____________________________________________

    Prof. Dr. Gustavo Bernardo Krause (Orientador)

    Instituto de Letras - UERJ

    _____________________________________________

    Prof. Dra. Maria Jos Cardoso Lemos

    Instituto de Letras - UERJ

    _____________________________________________

    Prof. Dr..Washington Dias Lessa

    Escola Superior de Desenho Industrial - UERJ

    _____________________________________________

    Prof. Dra. Gabriela Lrio Gurgel MonteiroEscola de Comunicao - UFRJ

    _____________________________________________

    Prof. Dr..Lus Claudio de SantAnna Maffei

    Instituto de Letras - UFF

    Rio de Janeiro

    2013

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    DEDICATRIA

    Dedico esta tese a Tatiana Podlubny, que me ensina a ver melhor, e a minha av, Maria Izabel

    de Araujo Souza Leite, que sempre inicia nossos dilogos dizendo conta!.

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    AGRADECIMENTOS

    Ao meu orientador, Gustavo Bernardo, pela disponibilidade e encorajamento ao longo

    deste percurso, com doses precisas de delicadeza, rigor e bom humor. A sua dedicao, em

    medidas equivalentes, ao pensamento crtico e fico serviu-me de inspirao constante.

    minha coorientadora e amiga, Mas Lemos, que me acompanha desde a elaborao

    do projeto para ingressar no Doutorado, compartilhando seu tempo, entusiasmo e

    sensibilidade. Agradeo em especial a sua participao na banca do meu exame de

    qualificao e a leitura criteriosa do texto apresentado na ocasio.

    Ao Ricardo Benevides, por ter integrado a banca do meu exame de qualificao,

    quando me transmitiu generosamente o seu conhecimento sobre livros ilustrados e me deu

    sugestes de leitura valiosas.

    Aos professores Ana Lcia Machado de Oliveira, Slvia Regina Pinto, Mas Lemos e

    Gustavo Bernardo, que ministraram cursos fundamentais para a formulao de algumas das

    questes apresentadas neste trabalho.

    Aos professores Lus Maffei, Washington Lessa, Gabriela Monteiro e Mas Lemos,

    pela participao da banca examinadora desta tese.

    Aos meus pais, Silvia Ferreira e Joo de Souza Leite, pelo amor e apoio, e o

    imensurvel entusiasmo que demonstram pela vida.

    Ao meu irmo, Sukho Gomes, por ser quem , sagaz e bem humorado, meu personal

    mestre zen desde que ramos pequenos.

    s queridas moas Carolina e Mariana Ferman, e Evelyn Grumach, outra me da

    minha vida, pelo convvio com gosto de casa.

    minha av, Maria Izabel, e s minhas tias queridas, Marinha e Rosrio, pelo apoio

    amoroso de sempre.

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    Tatiana Bacal, a mais doce amiga e companheira de trabalho, com quem

    compartilho o riso, as belezas e as agruras da vida, bem como o encanto pelas intersees

    entre arte e antropologia.

    Tatiana Altberg, com quem tive o privilgio de constatar o potencial libertador da

    narrativa no projeto Mo na Lata, por toda fora, inspirao e imensa alegria que me d

    continuamente.

    famlia do meu corao, Karen Akerman (desde sempre comigo), e seus meninos,

    Miguel e Tontom, que deixam meus dias mais coloridos, amorosos e risonhos.

    Manoela Zangrandi, Isabel Napolitani, Vernica DOrey, Raquel Tamaio, Marina

    Fraga, Rodrigo Linares, Terncio Porto e Adriana Nolasco, infinitamente queridos, por me

    acompanharem de perto e de longe, rindo comigo em horas mais que precisas.

    Glaucia Saad, por cuidar da minha sade com tanta delicadeza e senso de humor.

    Tatiana Podlubny, pela presena, parceria e diverso de todos os dias, e por terdiagramado esta tese.

    Aos amigos queridssimos e insubstituveis, em especial Marcus Reis, Flavia Hasky e

    Amir Geiger, que ao longo desse tempo, cada um a seu modo, fizeram perguntas essenciais,

    sugeriram leituras e leram esboos de captulos.

    Claudia Bastos e Tania Lopes, da secretaria do Programa de Ps-Graduao emLetras da UERJ, por terem sempre se prontificado a solucionar os problemas de ordem

    prtica, mesmo aqueles aparentemente sem soluo.

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    RESUMO

    LEITE, Luiza Ferreira de Souza.Modos de ler e ser: a potica dos livros ilustrados. 2013.216f. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) Instituto de Letras, Universidade do Estadodo Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

    Esta tese prope uma abordagem do livro ilustrado (em geral associado ao pblicoinfanto-juvenil) que considera as diferentes modalidades de relao entre a imagem e o textoverbal, bem como sua conexo indissocivel com o suporte. O livro ilustrado entendidocomo objeto esttico, polissmico, capaz de convocar a capacidade sensvel do leitor,expandindo tanto sua noo de si como sua viso de mundo. Busca-se problematizar aespecificidade desse gnero literrio por meio da imbricao de categorias como as de

    visibilidade e legibilidade, pensadas a partir da reflexo de Vilm Flusser sobre o conflitoentre a imagem e a palavra escrita ao longo do tempo. Discute-se tambm a linguagem dolivro ilustrado luz do pensamento de Giorgio Agamben e Gilles Deleuze, que preferem anoo de intensidade em vez de etapa cronolgica para compreender a infncia. O livroilustrado considerado um devir-criana (ou devir-outro) do autor e/ou ilustrador capaz dedesestabilizar o leitor, fazendo aflorar sensaes que reconfiguram modos de sentir e estar nomundo.

    Palavras-chave: Livro Ilustrado. Infncia. Visibilidade. Legibilidade. Literatura Infanto-

    juvenil. Imagem.

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    ABSTRACT

    LEITE, Luiza Ferreira de Souza.Modes of reading and being: the poetics of picture books.2013.216f. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) Instituto de Letras, Universidade doEstado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

    This thesis proposes an approach to the picture book (that is usually associated withyoung readers) which considers the different modalities of relationship between the image andthe written text as well as their non-dissociable connection with the support itself. The picture

    book is understood as an aesthetic and polysemic object that is able to engage the readerscapacity for sensation, expanding his or her notion of self and worldview. There is anintention to problematize the specificity of this literary genre through the imbrication of

    categories such as visibility and legibility and Vilm Flussers reflection on the conflictbetween the image and the written word throughout time. This thesis also presents adiscussion about the picture books way of communicating in light of the thinking of GiorgioAgamben and Gilles Deleuze, both of whom prefer the notion of intensity instead ofchronological stage in order to comprehend childhood. The picture book is considered a

    process of becoming-child (or becoming-other) of the author and/or illustrator, which candestabilize the reader, making sensations surface and reshaping modes of feeling and being inthe world.

    Keywords: Picture Book. Childhood. Visibility. Legibility. Childrens Literature. Image.

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    SUMRIO

    INTRODUO ................................................................................................ 9

    1 O LIVRO ILUSTRADO E SUA RELAO COM O SUPORTE ............. 14

    1.1 Os componentes do livro ilustrado ................................................................. 16

    1.1.1 Formato .............................................................................................................. 17

    1.1.2 Capa, guarda e folhas de rosto ............................................................................ 30

    1.1.3 Papel e encadernao .......................................................................................... 39

    1.2 Aspectos da ilustrao tomada isoladamente ................................................. 39

    1.2.1 Cor ...................................................................................................................... 40

    1.2.2 Estilo ................................................................................................................... 46

    1.3 A imagem e o espao da pgina dupla ............................................................ 60

    1.4 O desenho da letra e a letra-desenho .............................................................. 69

    2O LIVRO ILUSTRADO E O REGIME CONTEMPORNEO DE

    VISUALIDADE ..............................................................................................76

    2.1 Aprender a ver as noes de alfabetizao ou letramento visual ............. 77

    2.2 De onde vm as imagens? ................................................................................ 87

    2.3 O livro ilustrado objeto legvel, objeto visvel ............................................ 90

    2.4 As culturas orais e sua relao com a imagem .............................................. 96

    3DA ILUSTRAO INTERDEPENDNCIA ENTRE TEXTO E

    IMAGEM .........................................................................................................106

    3.1 Livro ilustrado objeto esttico .................................................................... 115

    3.2 O livro com ilustraes ................................................................................... 120

    3.3 Texto e imagem uma relao indissocivel ................................................ 133

    3.4 A parceria entre escritor e ilustrador ........................................................... 1463.5 Quando o escritor ilustrador ....................................................................... 149

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    3.6 Livro-imagem .................................................................................................. 155

    4A INFNCIA COMO INTENSIDADE E OS PROCEDIMENTOS DE

    CRIAO ........................................................................................................162

    4.1 A potncia do devir minoritrio .................................................................... 165

    4.2 Mapas de memrias, sujeitos impessoais ...................................................... 169

    4.3 Modos de desestruturao do tempo e do espao ......................................... 172

    4.4 A linguagem das sensaes, da intensidade e das foras ............................. 177

    4.5 Viajar sem sair do lugar a linguagem de dois livros ilustrados .............. 180

    CONSIDERAES FINAIS......................................................................... 195

    REFERNCIAS .............................................................................................. 197

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    Introduo

    Qualquer livraria hoje, pequena ou grande, reserva um espao para a

    literatura infanto-juvenil, em grande parte constituda de livros ilustra-

    dos, publicaes em que a visualidade uma caracterstica marcante,configurando um gnero que Martin Salisbury e Morag Styles deno-

    minam literatura visual (2012, p. 7). Os livros ilustrados so em geral

    associados infncia, especialmente como ferramentas para facilitar

    os processos de alfabetizao. J as publicaes com linguagem visual

    ou temas no considerados adequados para as crianas acabam deslo-

    cados nas livrarias uma vez que se diferenciam de outros gneros lite-

    rrios que conjugam imagem e texto, como as histrias em quadrinhos,

    que transpem para o espao da pgina as convenes da linguagemcinematogrfica (como o close, o plano geral, etc), os romances grficos,

    que constituem tradues intersemiticas de obras literrias (fazendo

    ou no uso dos recursos empregados nas histrias em quadrinhos), e o

    livro de artista, um objeto esttico, plstico e/ou conceitual, na inter-

    seco das artes plsticas e do livro, no necessariamente compromis-

    sado com a sequencialidade narrativa e nem sempre reproduzido em

    srie como a maioria dos livros.

    A despeito de suas linguagens visuais singulares, os diferentes

    tipos de publicaes que conjugam imagem e texto so demarcados

    por fronteiras nada rgidas. Cada um desses campos influencia-se

    mutuamente, revelando recursos visuais hbridos. O livro de artista

    com frequncia se mistura com a ilustrao, o livro ilustrado por vezes

    faz uso da linguagem dos quadrinhos. Experimentos como os Libros

    illeggibiles(Livros Ilegveis, 1949/2009), de Bruno Munari, constitudos

    de folhas de papel coloridas sem texto algum, sugerem a permeabili-

    dade entre objeto de arte e publicao editorial. J o trabalho de Shaun

    Tan, The Red Tree(2000) e The Arrival(2007), que investiga o potencialpolissmico da sequncia imagtica, e o livro Quando meu pai encon-

    trou com o ET fazia um dia quente (2011), do autor e quadrinista Lou-

    reno Mutarelli, revelam o amplo espectro de possibilidades narrativas

    do livro ilustrado, fruto do entrecruzamento de linguagens grficas e

    visuais diferentes como a ilustrao, a pintura, os quadrinhos e assim

    por diante. Mutarelli criou imagens em tinta acrlica para seu livro,

    classificado pela prpria editora que o publicou como histria em qua-

    drinhos (HQ). Mas segundo o autor, trata-se de um livro ilustrado emque ele busca a disjuno entre imagem e texto. Esse tipo de livro, dire-

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    cionado sobretudo a um pblico adulto no encontra um lugar espec-

    fico nas livrarias, pois no exclusivamente histria em quadrinhos,

    livro infanto-juvenil ou obra de artes plsticas.

    Muitos livros em que a imagem predominante podem interessar

    a pessoas de qualquer idade apesar das categorias infantil ou infanto--juvenil s quais so atrelados. Como resposta a isso, a editora indepen-

    dente Media Vaca, situada na Espanha, imprime a seguinte frase na

    contracapa de seus livros: LIBROS PARA NIOS... NO SLO para nios!

    (LIVROS PARA CRIANAS... NO APENAS para crianas!). O livro-ima-

    gemRobinson Crusoe: Una novela en imgenes inspirada en la obra de

    Daniel Defoe (2009), de Ajubel, editado pela prpria Media Vaca, um

    exemplo de livro que se destina a pessoas de qualquer idade, embora

    constitua uma narrativa visual, sem texto verbal algum.Dos primeiros desenhos feitos nos espaos mais recnditos das

    cavernas profuso de pixels produzidos pelas mquinas digitais, a

    imagem sempre esteve acompanhada de um regime de visualidade

    especfico, relativo ao status da imagem em si e s noes de realidade,

    verdade e subjetividade vigentes. A atual produo e reproduo mas-

    siva de imagens tecnolgicas nos impem um questionamento sobre

    os diferentes graus de realidade, como indica inclusive parte da produ-

    o documental brasileira recente, como Jogo de Cena (2007), de Edu-

    ardo Coutinho, que suscita uma discusso sobre as fronteiras tnues

    entre narrativa, encenao, verdade e fico, ou Santiago (2007), de

    Joo Moreira Salles, que problematiza a natureza construda do gnero

    documentrio, entre outros temas.

    Ao longo da histria, as diferentes formas de representao sus-

    citaram sentimentos os mais diversos, do fascnio averso. Durante

    toda a Idade Mdia europeia, a representao tem uma dupla condio.

    Carlo Ginzburg rastreia os significados da palavra mostrando que, se

    por um lado a representao alude ausncia da realidade represen-tada, como no caso do costume da realeza de estender um lenol mor-

    turio para representar o morto, por outro convoca a presena dessa

    realidade, fazendo as vezes desta como, por exemplo, as pequenas

    rplicas em madeira, couro ou cera em forma humana que eram usa-

    das para substituir os corpos dos soberanos falecidos (Ginzburg, 1998, p.

    85). O jogo entre a substituio e a evocao teria persistido at o sculo

    XIII, quando a imagem deixa de ser entendida por sua conexo com o

    objeto ou fenmeno representado e ganha um sentido mais prximodo moderno em que no mais considerada substituta da realidade

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    mas imitao desta. O que importa para o propsito desta introduo

    no expor o complexo debate sobre a representao mas ressaltar o

    carter controverso da noo e o modo como esta definiu em momen-

    tos diferentes atitudes especficas em relao s imagens.

    Esta pesquisa tem como objeto o livro ilustrado, um gnero depublicao que em geral contempla a relao entre as imagens, o texto

    verbal e o prprio suporte. Uma srie de questes perpassam os cap-

    tulos deste estudo. De que modo os livros ilustrados podem, apesar de

    lineares por terem o formato de cdice, contribuir para uma maior fami-

    liarizao com os diferentes aspectos da linguagem visual to impor-

    tante em uma poca em que as imagens so produzidas e veiculadas

    massivamente? Como a leitura desse gnero de narrativa afeta o leitor

    e contribui para reconfigurar modos de percepo de si e do mundo?No captulo O livro ilustrado e sua relao com o suporte,faremos

    uma exposio dos principais componentes do livro ilustrado, res-

    saltando a importncia do suporte como arquitetura que organiza o

    percurso do leitor. As camadas de sentido desse tipo de livro no so

    apenas depreendidas a partir da relao entre imagem e texto, mas

    tambm de componentes especficos, como as guardas e as folhas de

    rosto, reveladores de detalhes que prenunciam a atmosfera da narra-

    tiva que est por vir. Diferente de um livro s de texto verbal, o livro

    ilustrado apresenta imagens que podem ser contempladas de um

    modo no linear, de acordo com o tempo de cada leitor. Por outro lado,

    o projeto grfico (que implica escolhas como o formato, a tipografia, o

    papel etc) e a composio das imagens em cada pgina estabelecem

    um determinado ritmo em consonncia com a narrativa em questo.

    No captulo O livro ilustrado e o regime contemporneo de visu-

    alidade, busca-se compreender, embora parcialmente, as relaes con-

    flituosas entre a palavra escrita e a imagem a partir do pensamento

    de Vilm Flusser. A expresso plstica e as linguagens visuais vo pro-gressivamente desaparecendo dos currculos escolares medida que

    as crianas crescem justamente em um momento em que a internet, os

    jogos de videogame e outras imagens tecnolgicas tornam-se cada vez

    mais presentes. Se os procedimentos de aprendizagem no Ocidente so

    acentuadamente logocntricos e vo aos poucos substituindo a pala-

    vra oral pela escrita, com isso desvalorizando a imagem em favor do

    discurso propositivo, essa tendncia se reflete de modo contundente

    na escola, que desvaloriza o que chamaremos de alfabetizao visual,noo definida por Kate Raney como (...) a histria de como se pensa

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    sobre o significado das imagens e dos objetos, como so compostos,

    como ns reagimos a eles ou os interpretamos, como podem funcionar

    como meios de pensamento, e como se situam dentro das sociedades

    que os engendram (apudSalisbury; Styles, 2012, p. 77).

    Embora a pintura e outras linguagens visuais no sejam decom-ponveis em elementos isolados de acordo com um esquema de regras

    convencionais (afinal, so expresses estticas), ainda assim possvel

    compreender alguns aspectos de sua linguagem plstica como a cor, a

    composio, o estilo e assim por diante, pois a familiarizao com esses

    elementos possibilita que o leitor se torne no s mais crtico como

    mais permevel experincia de leitura do livro ilustrado como das

    imagens que fazem parte do nosso cotidiano. Essencial alfabetizao

    visual a compreenso da especificidade da leitura do livro ilustradoem um mundo cuja histria calcada nos processos de transmisso de

    conhecimento legitimados pelos documentos e pela escrita, segundo

    aponta Michel de Certeau. Terminamos com uma breve anlise sobre

    a linguagem imagtica, polissmica e potica, caracterstica de certas

    produes orais xamansticas e indgenas, e sua relao com as ima-

    gens como meios imprescindveis de obteno de conhecimento.

    No captulo Da ilustrao interdependncia entre texto e ima-

    gem,voltamos propriamente discusso e anlise dos livros ilustrados,

    primeiro os compreendendo como objetos estticos cuja experincia

    de leitura implica a conexo entre a narrativa e o suporte. s diferen-

    tes modalidades de relao entre texto e imagem no espao da pgina

    correspondem momentos especficos da histria do livro ilustrado

    moderno, que comeou a ser produzido mais sistematicamente no

    fim do sculo XIX, quando a infncia se firmou como categoria social.

    Embora no se pretenda criar categorias rgidas para classificar os tipos

    de relao entre texto e imagem, apontamos uma diferena fundamen-

    tal entre os livros com ilustraes, os livros ilustrados propriamenteditos, em que imagem e texto so concebidos como uma unidade indis-

    socivel, e os livros-imagem, cujas imagens no vm acompanhadas de

    texto verbal. Fazer a distino entre esses gneros de livro nos interessa

    apenas na medida em que nos permite ver como suas caractersticas se

    mesclam e so intercambiveis em um nico livro.

    No captulo final,A infncia como intensidade e os procedimentos

    de criao, partimos do pensamento de Giorgio Agamben e de Gilles

    Deleuze para questionar a noo cronolgica de infncia, muitas vezesempregada para justificar a produo de livros ilustrados simplistas,

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    destinados s crianas, tendncia, alis, condenada com veemncia

    por Walter Benjamin, um grande admirador dos livros de imagem e

    texto. Agamben e Deleuze consideram a infncia como intensidade,

    qualidade cambiante e instvel, caracterstica tambm dos processos

    criativos e mais especificamente da literatura. Pensamos o trabalho doautor e ilustrador de um livro ilustrado como aquele feito a partir de um

    processo de devir-criana ou devir-outro, isto , empreendido por um

    sujeito poroso o suficiente para se deixar desestabilizar, fundamental

    para fazer aflorar as sensaes, sensaes estas importantes para qual-

    quer processo criador. E um processo criador feito a partir de um devir-

    -criana tambm capaz de provocar desestabilizaes no outro, neste

    caso o leitor, promovendo a cada leitura aberturas que engendram

    novas maneiras de sentir e enxergar o mundo. Terminamos o captulocom a leitura de dois livros ilustrados,Desertos (2006), de Roger Mello

    e Roseana Murray, e Viagens para lugares que eu nunca fui (2008), de

    Arthur Nestrovski e Andrs Sandoval, obras que no por acaso recriam

    percursos de viagem, metfora da experincia do sujeito sensvel, sem-

    pre em vias de deslocar seu ponto de vista.

    importante ressaltar que os livros que fizeram parte deste tra-

    jeto de pesquisa foram escolhidos no por terem linguagens homog-

    neas mas porque, independente dos seus estilos, dos mais figurativos

    aos mais abstratos, a maioria foi concebida como projeto, ao mesmo

    tempo legvel e visvel, capaz de propiciar ao leitor uma experincia

    esttica. No se pretendeu tampouco fornecer um modelo terico espe-

    cfico de leitura, como o da semitica (embora esta tenha sido mencio-

    nada), presente em grande parte das dissertaes e teses mais recentes

    sobre o tema do livro ilustrado devido ao seu imenso valor instrumen-

    tal. Tampouco contemplamos as teorias relativas recepo dos livros

    ilustrados pelo pblico infantil, aos processos de mediao de leitura

    em ambientes escolares e s anlises simblicas e ideolgicas dos sig-nificados das narrativas. Ao contrrio, buscou-se entender a especifici-

    dade do livro ilustrado enquanto objeto esttico, cujo conjunto de ele-

    mentos capaz de convocar a capacidade sensvel do leitor, que, ao se

    aproximar e se distanciar das narrativas, se pe a caminho, disponvel

    para se deixar afetar.

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    Captulo 1

    O livro ilustrado e sua relao com o suporte

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    1. O livro ilustrado e sua relao com o suporte

    Quando eu era criana, os livros ilustrados

    constituam meu espao particular, s meu.Eu passava horas virando as pginas,

    sentindo o cheiro do papel.

    Eles me faziam sonhar.

    Beatrice Alemagna

    O livro ilustrado um objeto esttico caracterizado pela relao entre o

    texto e a imagem inscritos no espao de pginas encadeadas. O signifi-

    cado de um livro ilustrado decorre portanto do modo como o texto e a

    imagem so dispostos em um suporte especfico dotado de uma tem-

    poralidade. Mesmo quando se trata de um livro s de imagens, estas

    em geral guardam uma relao com a narrativa. As mltiplas possibi-

    lidades de ilustrao, diagramao e formatos fazem dessa forma de

    expresso um vasto campo de experimentao grfico-narrativa.

    O termo livro ilustrado em geral empregado no Brasil como tra-

    duo de picture book, palavra usada nos Estados Unidos e na Ingla-terra para designar esse tipo de publicao. A traduo literal depicture

    book poderia ser algo como livro de figura, livro-imagem ou livro-dese-

    nho, o que ressaltaria o fato de que se trata de uma narrativa em que

    a imagem desempenha uma funo to importante quanto a do texto

    verbal1. Embora seu uso seja amplamente difundido no Brasil, o termo

    livro ilustrado talvez no d conta da plasticidade do gnero, uma vez

    que pode dar a entender tratar-se exclusivamente dos livros em que a

    imagem tem funo ilustrativa ou decorativa e portanto seria redun-dante e at mesmo dispensvel. preciso ressaltar ento que tal cate-

    goria inclui uma ampla gama de relaes texto-imagem. Diz respeito

    aos livros em que as ilustraes acompanham textos no original-

    mente concebidos para serem publicados com imagens (mas que no

    obstante ganham novos sentidos uma vez ilustrados), como tambm

    inclui as publicaes que apresentam uma relao de interdependn-

    1 Quando empregarmos a palavra texto a partir deste captulo ser sempre para designaro texto verbal. Essa ressalva faz-se necessria uma vez que no livro ilustrado h tambm umtexto visual ligado s imagens.

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    cia entre texto e imagem e aquelas em que as imagens no vm acom-

    panhadas de texto.2

    1.1 Os componentes do livro ilustrado

    O livro ilustrado composto primordialmente de pginas duplas que

    se sucedem. Por isso o leitor deve levar em considerao o suporte e

    todos os seus componentes para a apreenso do(s) sentido(s) da nar-

    rativa. A criao de um livro ilustrado requer um projeto que contem-

    ple as relaes entre todos os elementos texto, imagens, diagrama-

    o, tipografia, capa, guardas, formato do livro, papel, encadernao e

    impresso. Roger Chartier ressalta a importncia do suporte na produ-o de sentido do texto:

    Os textos no existem fora dos suportes materiais (sejam eles quais forem)

    de que so os veculos. Contra a abstrao dos textos, preciso lembrar que

    as formas que permitem sua leitura, sua audio ou sua viso participam

    profundamente da construo de seus significados. O mesmo texto, fixa-

    do em letras, no o mesmo caso mudem os dispositivos de sua escrita e

    de sua comunicao (2002, p. 61-62).

    Pretende-se neste captulo apontar alguns dos principais compo-nentes de um livro ilustrado. Ressaltamos, no entanto, que o potencial

    expressivo de cada um desses elementos decorre de sua inter-relao,

    isto , do conjunto que resulta do trabalho colaborativo entre autores,

    ilustradores, designers e editores. Diz Odilon Moraes:

    Da mesma maneira que um projeto de uma casa no se limita a uma ideia

    de casa, mas sim ideia de um morardentro de uma forma particular de

    disposio de espaos e ambientes, assim tambm o projeto grfico de um

    livro prope seus espaos, compostos por textos e imagens, e constri umambiente a ser percorrido (2008, p. 49, grifo original).

    2 Embora em ingls picture bookdesigne toda sorte de livros com imagem e texto, Lawren-ce Sipe (2001b) faz uma distino entre picture books e illustrated books.Os livros ilustradosseriam aqueles em que as imagens cumprem uma funo ilustrativa. Os picture books, porsua vez, apresentariam uma relao to estreita entre texto e imagem que seria praticamen-te impossvel desmembrar seus elementos sem prejudicar o sentido mais amplo da obra. No

    captulo 3 discutiremos essas categorias mais detalhadamente. Ressaltamos, no entanto, queo termo livro ilustrado quando empregado ao longo deste estudo, contemplar quaisquer pos-sibilidades de relao entre texto e imagem.

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    1.1.1 Formato

    Raramente nos damos conta de que o formato do livro possibilita uma

    determinada relao do leitor com a narrativa e seus personagens. O

    formato diz respeito s dimenses do livro, isto , ao seu tamanho eforma (quadrada ou retangular, vertical ou horizontal etc).

    Livros pequenos, fceis de segurar e de transportar, tendem a

    aproximar o leitor da narrativa, apresentando temas delicados e per-

    sonagens sensveis, possivelmente envolvidos em situaes que sus-

    citam a empatia do leitor. A princesinha medrosa (2008), de Odilon

    Moraes, um livro ilustrado de 16 x 20cm. Trata-se de uma fbula

    em que uma princesa tenta controlar os eventos em funo dos seus

    medos. O confinamento da princesa e a sua tentativa de mandarem tudo e em todos ordenando inclusive que o sol passe a brilhar

    durante vinte e quatro horas no so capazes de aplacar seu pavor

    da solido, do escuro e da pobreza.

    A despeito de suas expectativas, a personagem encontra a soluo

    para seus temores num lugar bem afastado do castelo, na companhia

    de um menino desconhecido que sabe contar as estrelas e apreciar o

    A princesinhamedrosa (2008),

    Odilon Moraes

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    burburinho de um riacho. As tardes na companhia do amigo, quando

    ela se liberta do peso das vestimentas de veludo para mergulhar no

    riacho, revelam-se o melhor antdoto para o medo.

    O livro de formato pequeno acolhe aquarelas delicadas de cenas

    que traduzem a fragilidade, fazendo do leitor cmplice dos receios maisntimos da princesa. Em uma entrevista, Moraes relembra uma anedota

    narrada por um amigo, que o inspirou a criar o livro. Quando acusada

    pelo terapeuta de no ter medo de nada, uma menina teria declarado:

    eu tenho medo puro (Moraes, 2012). Os medos da princesa seriam tra-

    dues possveis desse medo puro, talvez o medo de estar viva.

    Mame zangada (2008), de Jutta Bauer, tambm tem o formato 16

    x 20cm. A primeira pgina j apresenta o problema do personagem, um

    pinguim que recebe uma bronca da me. Diante da ferocidade materna,o filho literalmente se despedaa e as diferentes partes do seu corpo so

    lanadas nas mais diversas paisagens. As pginas com ilustraes feitas

    em aquarela revelam uma srie de lugares cuja geografia produz sen-

    saes de estranhamento e solido: o universo, o fundo do mar, a selva,

    uma cadeia montanhosa, um cenrio urbano agitado espao da impes-

    soalidade, da multido e do anonimato. O pinguim tenta se recompor, e

    suas patas percorrem territrios pouco convidativos, vazios, os confins

    ermos do mundo. O personagem s consegue sentir-se inteiro nova-

    mente com a ajuda da me que costura as partes do corpo, finalizando

    com um pedido de desculpas.

    Os livros que apresentam paisagens com frequncia tm forma-

    tos grandes, por meio dos quais possvel produzir um efeito de ampli-

    tude. Aqui, no entanto, os territrios despovoados esto circunscritos

    dentro do espao de um livro pequeno. Embora o leitor esteja diante

    de paisagens (aparentemente) exteriores, o que est em jogo a sensa-

    o subjetiva e ntima da fragmentao. A fragilidade e a desproteo

    so vertidas em imagens de lugares inspitos, frios, distantes, desertosou inundados. Restrita pgina, a paisagem assinala por contraste a

    extensa dimenso sentimental que acompanha todo pequeno corpo,

    todo corpo de criana.

    Se emMame zangadaa me recolhe e recompe o filho, conce-

    dendo-o um afago caloroso, emEl globo (2002) Isol cria uma persona-

    gem que d uma soluo bem diferente para o problema da me brava.

    O livro de 15 x 17,5cm tambm aproxima o leitor da narrativa, mas pela

    via da ironia e do humor nonsense. Camila deseja que a me que gritademais se transforme em um balo bonito, vermelho e brilhante.

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    Mame zangada(2008), Jutta

    Bauer

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    El globo (2002),Isol

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    Seu desejo instantaneamente satisfeito por ningum em particular.

    O balo vermelho gritante uma transmutao sbita do berro em

    silncio. Tudo ocorre com muita naturalidade. No h indcios de que

    se trata de um delrio da personagem e ningum desmente essa ines-

    perada transformao.No parque a menina brinca e protege o seu balo caladinho. Uma

    criana elogia: Que lindo balo!. Camila retribui: Que linda mame!.

    E cada menina segue para casa pensando: Bom... s vezes no se pode

    ter tudo. A narrativa termina suspensa, pois a me de Camila no volta

    a ser o que era antes. O livro parece ter a medida exata. Pginas grandes

    talvez produzissem um balo grande demais para ser suportado.

    s vezes a opo pelo formato pequeno pode ser fruto da necessi-

    dade de desafiar de um modo bem humorado a suposta grandeza dospersonagens. EmBob & Co. (2006), de Delphine Durand, personagens

    como o cu, o sol, a Terra, a gua, Deus e a prpria histria disputam

    o espao em branco da pgina. A interao dos personagens bojudos

    no formato quadrado do livro de 17 x 15cm desencadeia uma srie de

    conflitos cmicos.

    O tamanho inusitado de certos personagens (supostamente)

    grandiosos Deus, por exemplo, uma pequena esfera cor de rosa e

    as situaes improvveis que retardam o incio da narrativa criam uma

    atmosfera irreverente e meta-ficcional: Todos esto atrasados. O cu

    ainda est no chuveiro e a terra est arrumando os cabelos, e a gua,

    que est nas nuvens e no chuveiro ao mesmo tempo, forada a espe-

    rar tambm. E o VAZIO bate o p impacientemente. E a histria espera;

    a histria gostaria de comear....

    Os livros de formato grande so capazes de exercer um fasc-

    nio sobre o leitor. Essa sensao muitas vezes decorrente das ima-

    gens que ocupam as pginas duplas, compondo paisagens extensas

    e imponentes. o caso de Lampio & Lancelote (2006), de FernandoVilela, um livro em versos semelhantes aos de um cordel, com ilustra-

    es inspiradas nas xilogravuras, feitas a partir de matrizes em bor-

    racha. A histria narra o encontro do cavaleiro Lancelote, impresso

    na cor prata, com Lampio, cujo universo visual da cor do cobre e do

    couro. Os dois personagens se enfrentam produzindo um jogo grfico

    que toma a pgina dupla. Em seu pice, a batalha se expande numa

    pgina dupla que se desdobra em mais duas, criando um efeito de

    exploso no livro cujas dimenses j so bastante grandes e inco-muns (18,5 x 26,5cm):

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    Bob & Co. (2006),Delphine Durand

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    Apesar da narrativa do livro girar em torno de dois personagens,

    tanto o estilo das ilustraes como a escolha das cores reforam o per-

    tencimento de cada um deles s paisagens concretas por onde pas-

    sam e s suas respectivas heranas culturais. A batalha armada logo

    se transforma em enfrentamento musical. Lancelote se encanta com a

    sanfona e aprende a danar o xote. Mais do que conhecer os persona-

    gens em si, reconhecemos paisagens distintas: as sombras dos manda-

    carus no nordeste, as silhuetas dos castelos nos romances de cavalaria.

    A dimenso individual dilui-se na dimenso coletiva, a escrita do autor

    mescla-se com a tradio das narrativas populares.

    Em Abrindo Caminho (2003), de Ana Maria Machado, Elisabeth

    Teixeira tambm utiliza a amplitude da pgina para compor suas pai-

    sagens em aquarela. Nesse livro de 19 x 23cm, a autora estabelece um

    jogo intertextual que faz referncia vida de trs clebres desbrava-dores, Cristvo Colombo, Santos Dumont e Marco Polo, e trs artistas,

    Lampio &Lancelote (2006),

    Fernando Vilela

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    Tom Jobim, Carlos Drummond e Dante Alighieri, diante de uma selva,

    uma pedra e um rio, metforas condensadas de suas respectivas obras

    e impasses criativos. O texto extremamente sinttico apenas faz alu-

    so histria dos personagens: No meio do caminho de Marco tinha

    inimigo e deserto. E tinha muita lonjura pelo caminho de Alberto. Asilustraes de Teixeira so fundamentais para revelar os percursos de

    cada personagem, situando-os geografica e temporalmente.

    Outra propriedade dos livros grandes permitir ao artista a repro-

    duo de figuras humanas numa escala semelhante a de um retrato.

    Abrindo Caminho(2003), Ana

    Maria Machado eElisabeth Teixeira

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    Em vez de apresentar personagens que se perdem numa paisagem

    impessoal, O que uma criana? (2008), de Beatrice Alemagna, produz

    retratos sangrados nas pginas de 18 x 24cm, que acompanham textos

    com definies da infncia:

    As crianas tm coisas pequenas como elas mesmas: uma cama pequena,

    pequenos livros coloridos, um guarda-chuva pequeno, uma cadeira peque-

    na. Mas elas vivem num mundo muito grande; to grande, que as cidades

    no existem, os nibus se erguem no espao e as escadas no tm fim

    (Alemagna, 2008).

    Se por um lado, o texto diz que a criana pequena diante do

    mundo, por outro, ela parece imensa na pgina. Em vez de ser compa-

    rada ao tamanho do adulto, a criana sua prpria medida na ilustra-

    o. O jogo entre texto e imagem nos lembra trechos de outras histrias

    em que as variaes de tamanho traduzem os formidveis problemas

    de adequao enfrentados pela criana, como Alice no Pas das Mara-

    vilhas (2009), de Lewis Carroll, em que a personagem troca de tama-

    nho uma dzia de vezes, eRosa Maria no Castelo Encantado (2003),de

    rico Verssimo, em que uma criana de um ano enfrenta as dimenses

    imponentes de um castelo.

    A Grande Questo (2006), de Wolf Erlbruch, um livro comprido e

    estreito, cujo formato de 13 x 21,5cm, apresenta em cada uma de suaspginas duplas um personagem que se dirige ao leitor, por meio da

    palavra voc. Embora o ttulo faa referncia grande questo, esta

    no formulada diretamente mas indicada logo na primeira pgina:

    para festejar o seu aniversrio que voc est aqui na Terra, responde

    o irmo (Erlbruch, 2006). Em seguida temos uma srie de respostas de

    diferentes personagens um gato, uma pedra, um marinheiro, um sol-

    dado, um boxeador, um cego e at a prpria morte que explicam por-

    que esto aqui na Terra, revelando o quanto a experincia de estar vivo de certa forma singular e intransfervel. L-se nas entrelinhas a difi-

    culdade de estabelecer seja um cdigo de conduta extensvel a todos e

    a qualquer coisa, seja um significado unvoco para a experincia.

    Alm das respostas que variam segundo cada personagem, h

    a meno variao de significados de acordo com a passagem do

    tempo. Nada fixo. No h significados pr-definidos a serem depre-

    endidos do livro. A ltima pgina pautada e traz as palavras Datas e

    Respostas impressas no topo. Na pgina ao lado, o texto diz: Quandovoc crescer, vai encontrar outras respostas para a grande questo.

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    O que umacriana? (2008),

    BeatriceAlemagna

    A GrandeQuesto (2006),

    Wolf Erlbruch

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    Embora o formato do livro quando fechado seja estreito, as ilustraes

    so compostas no quadrado formado pela pgina dupla. impossvel

    compreender o sentido da ilustrao a partir da pgina isolada.

    Mais do que apenas se relacionar com a narrativa, o formato do

    livro muitas vezes determinante para estabelecer a dinmica de lei-tura e a direo do ato de virar as pginas. A experincia de folhear

    livros comoBalano(2007), de Keiko Maeo, eIsmlia(2006), de Alphon-

    sus de Guimaraens, com ilustraes de Odilon Moraes, estreitamente

    relacionada ao suporte escolhido.

    Balano um livro de 16,5 x 25cmque narra uma histria para

    ser lida na vertical, de modo que as pginas so viradas de baixo

    para cima, como se a costura entre a pgina dupla fosse o eixo de um

    balano. Trata-se de um texto conciso, semelhante ao de um poema.Podemos ler na pgina de cima: A noite se aproxima. Na pgina de

    baixo vemos a silhueta de alguns prdios e casas com as janelas colori-

    das, iluminadas. Com exceo dos prdios, ambas as pginas so toma-

    das de um azul claro, que poderia ser entendido como o amanhecer no

    fosse a presena das palavras. Na dupla seguinte, percebe-se que a cor

    azul intensificou-se levemente. O texto insiste: Olhe as luzes, a noite

    cintila!. Vemos outra paisagem urbana. Alguns prdios aparecem ao

    longe, menores e desfocados, pontilhados amarelos sugerem reflexos

    imprecisos de luz citadina. A luminosidade natural, instvel, escoa

    vagarosa ou apressada pela fresta entre o dia e a noite a velocidade

    dessa passagem determinada pelo ritmo do leitor ao contemplar as

    pginas. Na terceira pgina dupla, temos a paisagem panormica de

    um parque, sem texto algum, onde h pessoas desfocadas na penum-

    bra e luzes acesas um momento de suspenso.

    A pgina seguinte comea a dar sentido ao formato do livro. Um

    menino aparece em primeiro plano, sentando-se num balano, no centro

    da pgina branca: Oua o suave assobio da brisa, l-se na pgina infe-rior. O menino comea a balanar ... como um pndulo azul azul. Seu

    casaco, tambm azul, simula a cor do cu. Uma srie de pginas duplas

    vai revelando a brincadeira do menino, que ora aparece de cabea pra

    cima, ora de cabea pra baixo. O movimento de passar as pginas a

    prpria cadncia, o vaivm do balano: Pra l e pra c... Pra l e pra c....

    O texto tambm nos remete a outros aspectos, externos ao menino, que

    acompanham a experincia de balanar: As rvores se mexem de um

    lado para o outro.... Os pssaros viram sombras, a brisa sopra, a cidademergulha no cu que escurece escurece escurece, ... enquanto deixamos

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    Balano (2007),Keiko Maeo

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    Ismlia (2006),Alphonsus deGuimaraens e

    Odilon Moraes

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    pegadas no cu. Como um pndulo azul azul...(Maeo, 2007).

    A progresso do tempo concretizada pelo passar das pginas

    e pela mudana do tom de azul ao longo do livro. Numa das ltimas

    pginas duplas, o cu, antes aceso, cede escurido, exceto pelas luzes

    mnimas, distncia. E o silncio circunda a paisagem da cidade, assi-nalado pela ausncia de texto na pgina.

    Ismlia (2006) uma edio ilustrada do poema homnimo do

    poeta simbolista Alphonsus de Guimaraens. A capa, revestida com tecido

    cor de vinho, semelhante ao tom das aquarelas dentro do livro, e o ttulo

    impresso na cor prata, transmite uma certa sobriedade. Logo na primeira

    pgina, entendemos que no ser uma histria qualquer: Quando Ism-

    lia enlouqueceu, Ps-se na torre a sonhar.... A segunda pgina dupla

    mostra o porqu da opo pelo formato sanfona, que tambm deve serlido na vertical: Viu uma lua no cu, / Viu outra lua no mar (...). A enca-

    dernao recria o jogo de reflexos entre o que est no alto e o que est em

    baixo, mencionado ao longo do poema. O formato impe uma direo

    leitura, icnica do olhar da prpria personagem encarapitada na torre:

    Queria a lua do cu, / Queria a lua do mar (Guimaraens, 2006).

    As aquarelas de Odilon Moraes conferem personagem uma fra-

    gilidade ao mesmo tempo macabra e luminosa. No se pode ver com

    nitidez o seu rosto. Ismlia um sopro, etrea, lmina de luar, uma apa-

    rio em seu vestido branco luminoso. Os olhos e a boca so abismos

    negros num corpo mido. Nas ltimas pginas, a personagem se lana

    ao mar, parece que j era, antes do derradeiro salto, menos humana

    porque mais prxima da morte.3

    1.1.2 Capa, guarda e folhas de rosto

    Diferente do que muita gente imagina, a leitura de um livro ilustradono comea na primeira pgina. A capa indica a atmosfera da histria

    que o leitor est prestes a conhecer, alm, claro, de apresentar o ttulo.

    Muitas vezes a capa, a guarda (que a face interior da capa, que pode

    3 Ismlia um livro que faz parte do catlogo infanto-juvenil da editora Cosac Naify. No entan-to, a esttica sbria, a capa revestida de tecido, sem ilustrao, a suntuosidade das aquarelas eos temas ali suscitados podem muito bem despertar o interesse dos adultos, mas o livro muitasvezes passa despercebido. o caso deA tabuada da bruxa(2006), de Goethe, ilustrado por WolfErlbruch, que apresenta uma visualidade nada convencional e um poema bastante enigmti-co. Livros como esses muitas vezes ficam perdidos nas sees dos livros ditos infanto-juvenis,uma vez que nem todo adulto tem o hbito de passar por ali.

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    ser impressa com uma cor ou com alguma ilustrao) e as folhas de

    rosto (que apresentam o ttulo, o autor, ilustrador e a editora) ofere-

    cem indcios dos personagens ou podem at revelar antecipadamente

    algum objeto ou personagem fundamental na histria.4

    A capa estabelece a estrutura grfico-editorial do livro. Todas aspossibilidades so levadas em conta na criao do projeto da capa, pois

    se trata de uma espcie de porta de entrada para narrativa. Carto ou

    capa dura? Laminado, fosco ou brilhante? Com ou sem orelha? Guarda

    impressa ou no? vazada, como no caso de O guarda-chuva do vov

    (2008), de Odilon Moraes, em que h uma janela recortada, e dePsiqu

    (2010), de Angela Lago, em que pequenos furos nos deixam entrever

    brilhos prateados? Que ilustrao escolher para a capa? Como a tipo-

    grafia do ttulo se relaciona com aquela encontrada dentro do livro?Todos esses elementos so postos em relao para cativar o leitor.

    Mame grande como uma torre(2003), de Brigitte Schr e Jacky

    Gleich, tem a capa dura e uma ilustrao da personagem principal,

    que ironicamente est sempre ausente do ponto de vista da narradora,

    4 Na Europa e nos EUA, comum os livros ilustrados terem tambm uma sobrecapa, especial-mente os de capa dura. s vezes capa e sobrecapa tm composies grficas diferentes, pro-pondo um jogo ldico. No Brasil a sobrecapa no comum uma vez que encarece a publicao.

    Mame grandecomo uma torre

    (2003), BrigitteSchr e Jacky

    Gleich

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    O guarda-chuvado vov (2008),Odilon Moraes

    Psiqu (2010),Angela Lago

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    uma criana. Na ilustrao da capa, a me est curvada para caber den-

    tro dos limites do formato do livro, revelando um aspecto sobre essa

    personagem que s ser devidamente compreendido aps a leitura do

    miolo. A imagem da me grande como uma torre, como indica o ttulo,

    uma representao grfica de como sua ausncia sentida pela filhae pelo pai, que, ao contrrio da me, parece sempre pequeno.

    Elementos ou personagens da histria so com frequncia esco-

    lhidos para a capa e contracapa, mas de um modo que no revelem

    detalhes importantes sobre a narrativa. Todos os patinhos (2009), de

    Christian Duda e Julia Friese, traz na contracapa um dos personagens

    principais do livro que, a despeito do que sugere o ttulo, uma raposa.

    O fato de a raposa estar na contracapa de um modo praticamente irre-

    conhecvel pode ser lido como um indcio de que sua participao nahistria ser surpreendente.

    Muitas vezes o mesmo desenho escolhido para a capa estende-se

    at a contracapa. Em Amazonas, no corao encantado da floresta

    (2007), a silhueta de um barco compe uma paisagem noturna e

    misteriosa. Em O que uma criana? (2010), de Beatrice Alemagna,

    a capa apresenta uma srie de crianas, como se fossem pequenas

    fotografias, antecipando os retratos que tomam todo o espao das

    pginas pares dentro do livro. Contos para crianas impossveis(2007),

    de Jacques Prvert, e ilustraes de Fernando Vilela, apresenta na capa

    o mesmo jogo entre as cores amarela e preta encontrado dentro do

    livro impresso em duas cores. A tipografia do ttulo na capa tambm

    usada como ilustrao, pois as palavras so dispostas de modo que

    formam as meias de um garoto.

    Bili com limo verde na mo (2009),de Dcio Pignatari e Daniel

    Bueno, se assemelha a um livro-objeto, pois apresenta uma capa que

    se desdobra em quatro partes. Quando fechada, a capa revela um dese-

    nho moderno geomtrico e uma orelha/sobrecapa que envolve o livro.Para ler o ttulo inteiro preciso abrir essa sobrecapa. Uma vez desdo-

    bradas, as orelhas da capa e da contracapa, que isoladas apresentam

    desenhos geomtricos, formam uma imagem nica em que se l em

    letras grandes o nome da personagem do livro: Bili.

    Outros componentes tambm do indcios da atmosfera que

    o leitor encontrar dentro do livro. A guarda uma folha de papel

    resistente dobrada para formar duas pginas, uma das quais colada

    capa dura para junt-la com o miolo do livro. Quando ilustrada, aguarda estabelece um jogo ldico com o leitor, preparando-o para a

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    Amazonas, nocorao encan-

    tado da floresta(2007), Thiago de

    Mello e AndrsSandoval

    O que umacriana?,Beatrice

    Alemagna

    Todos os pati-nhos (2009),

    Christian Duda eJulia Friese

    Contos paracrianas impos-

    sveis (2007),Jacques Prvert e

    Fernando Vilela

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    Bili com limoverde na mo(2009), Dcio

    Pignatari eDaniel Bueno

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    Pedro e Lua(2004),

    Odilon Moraes

    O meninomaluquinho

    (1980), Ziraldo

    Joo Teimoso(2007), Luiz Raul

    Machadoe Graa Lima

    Acidente celeste(2006), Jorge

    Lujn e PietGrobler

    Onde vivem

    os monstros(1963),de Maurice

    Sendak

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    histria que est por vir. Apesar da encadernao em capa flexvel

    no precisar tecnicamente de uma folha de guarda, muitos livros

    simulam esse efeito.

    No livro Pedro e Lua, de Odilon Moraes, a orelha desempenha a

    funo da guarda. s vezes, em vez da guarda, h uma dupla de pgi-

    nas iniciais que fica entre a capa e as folhas de rosto. Essas pginas

    assemelham-se s cortinas de um espetculo uma vez que oferecem

    um espao de transio, em geral sem palavras, da capa para o miolo

    do livro.Psiqu estabelece uma atmosfera de encantamento que ante-

    cipa uma narrativa mitolgica sobre Eros e Psiqu. De um lado, a corprata nos incita a aproximar o rosto como se estivssemos diante de

    um espelho que nos devolve uma imagem difusa, pouco definida. Do

    outro, a escurido com pontos brancos mnimos nos transporta para

    uma dimenso csmica. S depois de virar essas duas primeiras pgi-

    nas e as folhas de rosto que se seguem (uma das quais traz impressa a

    imagem imprecisa de uma rvore), chegamos epgrafe que reafirma

    o sentimento inicial: Esta histria de encantamento. Traz vida longa

    e boa sorte a todos que a escutam ou a leem (Lago, 2010).Em Oh no, George! (2002), de Chris Haughton, as pginas iniciais

    e finais do livro fazem meno histria de um modo indireto, reve-

    lando os mveis arrumados no incio e revirados no fim, aps a pas-

    sagem do personagem principal que, apesar de querer ser bonzinho,

    acaba fazendo o que no deve na ausncia do dono. Muitas vezes essas

    pginas oferecem comentrios visuais sobre a narrativa por meio de

    imagens-sntese, como no caso do livro de Haughton.

    Nas folhas de rosto conhecemos os nomes do autor e editor, alm dottulo do livro. Com frequncia h nessas pginas pequenos elementos

    Psiqu (2010),

    Angela Lago

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    Cabelos (2006),Jeffrey Fisher

    No alto: Viagenspara lugares que

    eu nunca fui(2008), Arthur

    Nestrovski eAndrs Sandoval

    Oh no, George!(2002), Chris

    Haughton

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    ilustrados que oferecem pistas a respeito da narrativa: um personagem,

    um objeto importante para a trama e assim por diante. A tipografia e as

    cores escolhidas, bem como a composio grfica, revelam-nos muito a

    respeito no s da histria mas tambm do estilo das ilustraes.

    1.1.3 Papel e encadernao

    O projeto grfico tambm inclui a escolha do papel e a gramatura em

    funo do efeito que se pretende provocar. Papeis brilhosos tendem

    a impor uma distncia entre o leitor e a narrativa, como no caso de

    Psiqu (2010)ou deLampio e Lancelote (2006), duas publicaes que

    fazem uso das cores prata e dourada. Papeis com as superfcies porosase opacas convidam ao toque e aproximam o leitor.

    O tipo de encadernao determina como o livro vai ser apresen-

    tado e tem a ver com o tipo de capa. A encadernao de um livro de capa

    dura diferente daquela de uma publicao cuja capa de papel carto,

    que permite um acabamento com grampo ou cola e costura. A encader-

    nao com grampo mais simples. Por outro lado, como o livro fica sem

    lombada, este tende a desaparecer na estante entre tantos outros.

    Todas as decises que concernem o projeto grfico de um livro

    devem levar em considerao o tipo de narrativa em questo. justa-

    mente o estilo empregado pelo ilustrador e escritor que aponta na dire-

    o de uma determinada atmosfera. A capa e os elementos de apre-

    sentao constituem partes importantes do livro em vez de adornos

    dispensveis. O livro deve ser concebido como uma unidade em que o

    suporte parte fundamental da fabricao de sentido.

    1.2 Aspectos da ilustrao tomada isoladamente

    As ilustraes num livro ilustrado esto vinculadas ao formato cdice,

    isto , dispostas em pginas encadeadas e em geral apresentadas em

    relao com o texto. Mesmo nos ditos livros-imagem, em que no h

    texto, as imagens guardam uma relao com a narrativa. Portanto, nos

    livros ilustrados, a apreciao da imagem implica no s a apreen-

    so da relao entre esta e o texto, como entre esta e o suporte. Como

    aponta Rui de Oliveira: Sem pretender ser determinista, temos deaceitar que a ilustrao se justifica como linguagem prpria quando

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    expressa uma narrativa. Uma viagem temporal (2008, p. 78). A ilus-

    trao uma arte que se aproxima e se afasta da pintura, nutrindo-

    -se de referncias estticas provenientes desses campos e ao mesmo

    tempo propondo formas as mais variadas de entender a imagem no

    dilogo com o texto: A origem de nossas imagens so as palavras e aliteratura (Oliveira, 2008, p. 83).

    Mas justamente porque o livro constitui um conjunto arquite-

    tnico de espaos que se sucedem, temos que visitar cada dupla de

    pginas para fazer a narrativa avanar, o que torna possvel identificar

    os elementos constitutivos da linguagem visual de cada imagem iso-

    ladamente. Embora possamos apontar alguns princpios que regem a

    composio da imagem na pgina, estes servem apenas como par-

    metros gerais. Cabe lembrar que a ilustrao criada a partir de umdilogo com o texto e que este portanto capaz de ressignificar a pr-

    pria imagem no jogo constitudo pela leitura. Por isso os elementos

    apontados em seguida servem apenas de esquema geral. Rui de Oli-

    veira afirma ser possvel

    encontrar uma lgica na imagem, mesmo que parcial, apesar de sabermos

    que os amplos significados metafricos da ilustrao no podem estar cir-

    cunscritos, ou encerrados, em nenhum esquema, em nenhuma receita de

    leitura (2008, p. 101).

    1.2.1 Cor

    Uma avalanche de cores perde a fora.

    A cor s atinge sua plena expresso quando

    organizada, quando corresponde intensidade emotiva do artista.

    Henri Matisse

    O uso da cor fundamental num livro ilustrado. O esquema de cores

    proposto pelo ilustrador um dos meios privilegiados de transmisso

    no verbal de significados. Nossa reao emotiva aos diferentes tons

    em grande parte relacionada aos contextos culturais dos quais parti-

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    cipamos. Cores similares podem suscitar sentimentos e reaes muito

    diversos. Por isso so elementos expressivos fundamentais para produ-

    zir o efeito esttico que se pretende obter das ilustraes e sua relao

    com a narrativa. As escolhas da maioria dos artistas (...) so baseadas

    no em uma representao naturalista dos objetos, mas nos efeitosemocionais que as cores geram (Sipe, 2001b, p. 6).

    No livroMame zangada (2008), Jutta Bauer utiliza a cor para nos

    oferecer uma traduo visual dos sentimentos do personagem. As pri-

    meiras duas pginas tm o fundo branco, onde se destaca a cena da

    bronca. Aps o despedaamento do pinguim, as paisagens onde cada

    parte do corpo vai parar so azuladas (universo despovoado), esverde-

    adas (selva profunda) e brancas (fria neve). A cor laranja aparece ape-

    nas no fim da narrativa, quando acontece a reconciliao entre me efilho. As patas do pinguim chegam no deserto do Saara ao entardecer,

    quando uma grande sombra se deitou sobre elas. Era a mame zangada

    que tinha recolhido e costurado todos os meus pedaos (Bauer, 2008).

    Aps um afago e um pedido de desculpas da me, que encontram tra-

    duo visual no apenas no trao mas tambm nas cores calorosas do

    poente, os dois navegam em direo ao sol.

    Em um primeiro momento h apenas me e filho sobre a pgina

    branca. Aps as pginas em que a me briga com o filho, surge uma

    sucesso de paisagens. Estas so imagens do corpo-sentimento

    fragmentado, que busca em vo se recompor. Nas ltimas pginas do

    livro, as cores laranja e preto, que compem os corpos dos pinguins,

    formam tambm um enorme barco cujo contorno se confunde com o

    corpo da me. como se o espao de fora (barco) replicasse em outra

    escala as formas do afago entre me e filho.

    EmMame zangada o esquema de cor fundamental para trans-

    mitir a reao emocional do pinguim bronca da me, mas as cores

    em si no so personagens do livro como acontece em outro livro damesma autora e ilustradora, A rainha das cores (2003). No livro de

    Bauer, uma rainha autoritria convoca o azul, o vermelho e o amarelo

    para satisfazerem seus caprichos. Cada cor transmite um determi-

    nado sentimento: O azul era suave e gentil. Cumprimentou Coralina

    amigavelmente e tingiu o cu, o vermelho chegou com tanta fora

    que quase a derrubou e o amarelo era quente e claro (Bauer, 2003).

    As cores comeam a brigar entre si de modo que o reino fica coberto

    de cinza. Coralina esbraveja, ordenando que a cor cinza v embora,mas esta insiste, fica. A rainha s consegue dissolver o horizonte

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    A rainha dascores (2003),

    Jutta Bauer

    Mame zangada(2008), Jutta

    Bauer

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    monocromtico quando, exausta, comea a chorar de mansinho.

    As lgrimas aos poucos lavam a paisagem cinzenta. O desfecho

    da narrativa se d, contraditoriamente, sem palavras, quando a rainha

    dana em meio a uma srie psicodlica de tons. Nesse caso, as cores

    tm proeminncia como personagens, lembrando Flicts (1969), pri-meiro livro ilustrado de Ziraldo, feito a partir de formas geomtricas

    coloridas, pioneiro em trazer uma linguagem sinttica para a produo

    destinada s crianas no Brasil.

    Em alguns livros h uma economia estratgica no uso das cores

    ou mesmo a ausncia de certos tons.

    A ilustrao em preto-e-branco possui um leque de significados at mes-

    mo de ancestralidade na histria da ilustrao to importante quanto a

    ilustrao em cores. Talvez at pelo grafismo e contragrafismo, ou seja, opreto e branco do papel que o ilustrador tem diante de si, sua aparente exi-

    guidade de recursos apresenta uma dificuldade de resoluo muito mais

    complexa do que quando o artista dispe da possibilidade da cor (Oliveira,

    2008, p. 51).

    Pedro e Lua(2004), de Odilon Moraes, um livro em preto e branco

    que narra a histria de um menino e a morte de sua tartaruga. Moraes

    mostrou os esboos iniciais ao editor, que j considerou o livro pronto.

    O contraste entre o preto e o branco e os elementos que aparecemnos meios tons cinzentos criam uma atmosfera em que tudo parece

    banhado na luminosidade da lua, que tambm o nome com o qual

    Pedro batiza sua tartaruga: Uma noite, Pedro levava um punhado de

    pedras, quando uma pedra muito bonita cruzou o seu caminho. Pedro

    logo descobriu que era uma tartaruga, mas como seu casco parecia

    uma grande lua esverdeada, ele a chamou Lua (Moraes, 2004). O tom

    cinzento do livro transmite a melancolia implicada na perda do bicho

    de estimao.Pedro e Lua uma histria sobre a passagem do tempo esobre o luto, embora em nenhum momento estes temas sejam de fato

    mencionados. A distncia entre a lua e a Terra, a distncia entre Pedro

    e a tartaruga que se foi, so traduzidas visualmente pelos tons branco,

    preto e cinza, que por sua vez transmitem os sentimentos de angstia

    implicados nas despedidas.

    Psiqu, de Angela Lago (2010), outro livro em que o preto, o mar-

    rom e outros tons escuros preponderam. Para recontar essa histria

    mitolgica de amor, a autora e ilustradora faz uso das sombras, dos

    reflexos, dos indcios da passagem de Eros, que no pode, nem deve, ser

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    Pedro e Lua(2004), Odilon

    Moraes

    Psiqu (2010),Angela Lago

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    visto por Psiqu. Nenhum dos personagens aparece com nitidez nas

    ilustraes, pois a beleza inexprimvel de Psiqu e a interdio desta

    em relao ao rosto de Eros impedem que ambos sejam representados

    por meio da imagem:

    Ao se ver uma ilustrao, a cor no deve ser analisada a partir de seu prprio

    significado isolado. Ela em si mesma no sustenta qualquer critrio de an-

    lise. Somente quando se relaciona com a luz, com a sombra, com o momento

    psicolgico dos personagens ou com o atmosfrico da cena representada,

    ela realmente alcana sua plenitude expressiva. Logo, a cor deve ser analisa-

    da a partir de sua relao com as outras cores (Oliveira, 2008, p. 51).

    A narrativa comea com a capa do livro que, assim como a de

    Pedro e Lua,revela o cu estrelado. com o olhar voltado para o infi-

    nito que o leitor inicia ambas as histrias cujos eixos giram em tornode experincias da ordem do inefvel: a morte e o amor. O amor e a

    morte esto no limiar de, como dizem os astrnomos, dois horizontes

    opacos. Dois grandes vazios. Dois precipcios (Pina, 2013). Um texto

    publicado no fim do livro menciona a relao entre o desejo da autora

    de narrar histrias e sua lembrana do cu noturno de quando criana:

    Parece-me que tudo o que eu escrever ou desenhar se remeter sem-

    pre, de alguma maneira, a esta experincia, vi um cu cheio de estre-

    las (Lago, 2010).Psiqu to bela que a ilustradora preferiu deixar o leitor ima-

    gin-la. As primeiras pginas do livro revelam a silhueta da princesa

    beira de um abismo, vagando enquanto aguarda o destino antecipado

    pelo orculo de casar-se com uma fera que voa, queima e fere. Toda

    noite ela visitada por Eros, que s chega quando est escuro e vai

    embora antes do amanhecer. As portas douradas do palcio, entreaber-

    tas, replicam-se formando uma imagem caleidoscpica e etrea, que

    lembra os padres das asas da borboleta, um inseto ligado a esse mito.As paisagens contidas no livro esto sempre imersas na penum-

    bra, com alguns focos de luz. O leitor passeia por essas formas mal

    definidas, possivelmente enxergando monstros e perigos imaginados.

    Angela Lago traduz em cor uma sensao de queda iminente, dese-

    nhando lugares onde o cho e os elementos ao redor de Psiqu no

    so facilmente discernveis. As ltimas pginas contrastam com o res-

    tante do livro como o dia se ope noite. A luz solar traduz uma ideia

    de acalanto, embora Eros e Psiqu ainda apaream como silhuetas

    sem muita definio.

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    1.2.2 Estilo

    O estilo de um livro ilustrado depende das preferncias e da formao

    do artista, mas tambm do repertrio de imagens cujo reconhecimento

    e leitura so possibilitados pelo regime (ou regimes) de visualidade deuma determinada poca. O regime contemporneo de visualidade, em

    que proliferam as novas tecnologias, inclui formas hbridas de narra-

    tiva que apresentam combinaes as mais variadas de imagem e texto:

    (...) no podemos tratar a imagem como ilustrao da palavra nem o texto

    como explicao da imagem. O conjunto texto-imagem forma um comple-

    xo heterogneo fundamental para a compreenso das condies represen-

    tativas em geral (Schollhammer, 2001, p. 33).

    Embora esteja inscrito no cdice, um formato que remonta ao

    sculo I da era crist, o livro ilustrado contemporneo uma forma

    de narrar que se insere no regime de representao da alta moder-

    nidade por ser constitudo justamente por essa interdependncia

    entre texto e imagem.

    Uma vez que texto e imagem so imbricados, necessrio que o

    estilo visual do ilustrador esteja afinado com o texto. O estilo, por sua

    vez, se relaciona diretamente com a tcnica empregada pelo ilustra-

    dor, embora nem sempre seja possvel discerni-la, uma vez que muitosilustradores atualmente trabalham com tcnicas mistas. Sara Fanelli,

    Andrs Sandoval e Beatrice Alemagna utilizam uma combinao de

    tcnicas, como a colagem, tinta (leo, guache, aquarela) e lpis.

    As ilustraes feitas por Daniel Bueno para o livro Bili com limo

    verde na mo (2009), de Dcio Pignatari, traduzem os princpios de

    composio propostos pelos poetas concretistas para os quais a cola-

    borao das artes visuais, artes grficas, tipogrficas era fundamen-

    tal (Pignatari, 2012). Texto e ilustrao encontram-se amalgamados naspginas para criar uma totalidade verbivocovisual, o que possvel

    em funo de uma estreita harmonia com o projeto grfico. Os elemen-

    tos tipogrficos evocam desenhos e os desenhos formam letras, como

    na pgina em que a ilustrao sugere uma perna e ao mesmo tempo a

    letra L. Bueno nos oferece uma releitura dessa totalidade verbivocovi-

    sual, propondo um jogo em que os elementos grficos so como brin-

    quedos. Os desenhos so feitos a partir da juno de alguns elementos

    geomtricos fundamentais, tais como o crculo e o tringulo, que seequilibram e se desequilibram na pgina, traando o percurso instvel

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    Bili com limoverde na mo(2009), Dcio

    Pignatari eDaniel Bueno

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    de Bili. O caminho da personagem at o stio do av, numa tarde em

    que ela constata por tudo aquilo que eu sei e que eu no sei, com quase

    treze anos, a minha vida no est legal, transformado em uma expe-

    rincia plstico-sonora.

    No caso deLampio & Lancelote,temos tambm uma adequaoentre o texto e o estilo que intensifica o efeito esttico do livro. As

    gravuras feitas com carimbos por Fernando Vilela assemelham-se

    tanto xilogravura popular do nordeste como s iluminuras

    encontradas nos livros da Idade Mdia. O ilustrador foi buscar

    referncia para as roupas de Lampio nos cordis e nos registros

    fotogrficos e cinematogrficos do cangao, como o longa-metragem

    Deus e o diabo na terra do sol(1964), dirigido por Glauber Rocha.

    O estilo visual do livro dialoga com o texto em verso, que por suavez se relaciona com os registros literrios do nordeste brasileiro e

    os romances de cavalaria espanhis. Vilela ainda agua a relao das

    imagens com os personagens ao atrelar a cor prateada Lancelote

    e o tom cobre Lampio, por lembrar o couro das bolsas, chapus e

    sandlias do heri.

    O que importa em relao ao estilo que este se mostre afinado

    com a narrativa. preciso que o trao, a tcnica e o esquema de cores

    estejam condizentes com o assunto ou tema do livro ilustrado, ressal-

    tando o significado do texto. As possibilidades de criao para cada

    livro ilustrado so imensas uma vez que novas ilustraes podem

    reconfigurar o sentido da narrativa. Rui de Oliveira aponta que em vez

    de buscar reproduzir o que est no texto, o ilustrador deve criar uma

    interpretao prpria do mesmo. E aquilo que ele cria decorre de uma

    apreenso dos significados que existem entre as palavras:

    (...) a arte de ilustrar se localiza mais na sombra do que nos aspectos simb-

    licos da palavra. O olhar pergunta mais para o que est na escurido do que

    para o que est nos significados dos objetos representados luz. A ilustrao

    no se origina diretamente do texto, mas de sua aura (Oliveira, 2008, p. 32).

    A questo delicada pois pressupe um trabalho de leitura do

    texto por parte do ilustrador que contemple o que est nas entreli-

    nhas. O ilustrador desenha imaginando dar forma quilo que nem

    sempre est dito. Trata-se de uma tarefa criadora, que pressupe uma

    capacidade de apresentar imagens que de alguma forma no sejam

    meros espelhos do texto, at porque muitas vezes o texto pode sercompreendido sem a imagem: (...) a ilustrao sendo arte no

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    pode ser subordinada exclusivamente ao texto literrio, relao

    texto-imagem (Oliveira, 2008, p. 101).

    Embora a especificidade do ilustrador de livros seja criar uma

    visualidade que esteja em dilogo com a palavra, seu trabalho est

    inserido dentro de um contexto de referncias visuais e estticasespecficas provenientes no s do seu tempo como tambm da

    sua trajetria. As preferncias estticas dos ilustradores acabam

    influenciando os seus estilos. Rui de Oliveira, por exemplo, transpe

    para muitos trabalhos os princpios do pr-rafaelismo e da pintura

    medieval. Embora Oliveira seja defensor do ponto de vista de que o

    ilustrador deve dominar as tcnicas clssicas de desenho para realizar

    um trabalho de qualidade, ele tambm ressalta que o desenho tem

    como funo tornar perceptveis os objetos, e no dar formas acabadasa eles (Oliveira, 2008, p. 118). Existe sempre a tenso entre o que o texto

    sugere e a traduo visual realizada pelo ilustrador.

    H muitos tipos de relaes possveis entre o texto e a ilustrao.

    No caso dos contos de fada, e outras narrativas comoAlice no Pas das

    Maravilhas, que ao longo do tempo foram ilustrados pelos mais diver-

    sos artistas, o texto se sustenta por si s. Nesses casos, o estilo da ilus-

    trao capaz de reconfigurar o significado do texto, traduzindo aquilo

    que o ilustrador foi capaz de deduzir das entrelinhas: Justamente pelo

    poder cristalizador da imagem, o ilustrador deve ser o mais aberto

    possvel em seu trabalho (Oliveira, 2008, p. 50). A polissemia das ima-

    Alice no Pasdas Maravilhas

    (2009), LewisCarroll e Luiz

    Zerbini

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    gens fundamental para no reduzir o texto a um significado unvoco:

    Penso que o ato de criao de imagens se origina no diretamente na

    palavra, mas no entre palavras (idem, p. 149).

    A percepo do que apenas indicado ou sugerido pelas pala-

    vras depende da sensibilidade do ilustrador e do tipo de atmosfera queeste pretende criar com as ilustraes. Podemos tomar o conto popu-

    lar Chapeuzinho Vermelho como exemplo de como a ilustrao pode

    reconfigurar o texto. No caso de narrativas como essa, cuja transmisso

    dependeu da tradio oral, a escolha das palavras por quem pretende

    recont-la e das ilustraes responsvel pela criao de uma determi-

    nada atmosfera.

    Ao longo dos sculos XIX e XX, alguns detalhes da histria Cha-

    peuzinho Vermelho foram progressivamente amenizados (ou omiti-dos) por serem considerados inadequados para o pblico infantil. Mui-

    tas verses modernas do conto excluem a parte narrada por Charles

    Perrault em que Chapeuzinho Vermelho se deita na cama com o lobo

    e devorada por ele. Mas, independente dos detalhes da narrativa, os

    diferentes tipos de estilos de ilustrao atribuem ao texto sentidos

    muito singulares. As imagens de Gustave Dor (1867) revelam um lobo

    assustadoramente realista. Beni Montresor (1991) (a partir do texto de

    Perrault) e Rui de Oliveira, no livro-imagem Chapeuzinho Vermelho e

    outros contos por imagem (Sandroni; Schwarz, 2002), oferecem verses

    que dialogam com as imagens de Dor.

    Oliveira nos apresenta imagens em preto e branco de um lobo

    antropomrfico e ao mesmo tempo mitolgico. As pernas poderiam

    pertencer a um homem forte enquanto o torso musculoso nos lem-

    bra o minotauro. Alm disso, a folhagem da floresta assemelha-se

    vegetao encontrada na mata atlntica, o que ancora a narrativa em

    terras tropicais.

    A verso de Montresor, alm de ser, segundo o ilustrador, umahomenagem ao trabalho de Gustave Dor, apresenta um elegante

    lobo vestido de terno branco e chapu. Chapeuzinho claramente vive

    em uma cidade vitoriana, fato atestado pelo estilo arquitetnico das

    construes em uma das pginas duplas no incio do livro. A ilustra-

    o do lobo literalmente devorando a menina, no entanto, desmente a

    aparente civilidade da fera. A narrativa chega ao fim com uma srie de

    trs pginas sem texto em que Chapeuzinho flutua dentro da barriga

    do lobo como se fosse um beb em gestao. A silhueta de um caadorna ltima pgina apenas sugere a possibilidade de um resgate, coisa

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    ChapeuzinhoVermelho (1867),

    Gustave Dor

    ChapeuzinhoVermelho e

    outros contos porimagem (2002),

    Luciana Sandronie Rui de Oliveira

    ChapeuzinhoVermelho (1991),Beni Montresor

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    que no acontece antes do

    livro terminar.

    Walter Crane, um dos

    pioneiros na concepo do

    livro ilustrado como umaarquitetura em que a rela-

    o entre a ilustrao, o

    texto e o design so funda-

    mentais, tambm desenhou

    uma verso de Chapeuzi-

    nho Vermelho(1875) com as

    cores vibrantes que ele jul-

    gava adequadas s crianas.O seu lobo se parece com o

    de Gustave Dor, um ani-

    mal que anda sobre quatro

    patas, devora a av de Cha-

    peuzinho e depois morto por um caador, como acontece em muitas

    verses modernas do conto.

    As verses de Chapeuzinho Vermelho inspiradas nos movimen-

    tos modernos de pintura so muito diferentes dessas obras que apre-

    sentam cenrios (Montresor foi afinal um cengrafo notrio) onde se

    desenrola a ao. Kveta Pacovsk, por exemplo, apresenta um estilo gr-

    fico que nos remete ao trabalho dos pintores Joan Mir, Henri Matisse e

    Paul Klee. A ilustradora trabalha a partir da verso dos irmos Grimm

    (2008) e o seu uso das cores e das formas geomtricas contrasta com a

    economia cromtica e o estilo mais clssico de Dor e Oliveira. Tanto

    o lobo quanto Chapeuzinho so personagens desenhados a partir de

    quadrados. Pacovsk utiliza o espao da pgina em branco e nos ofe-

    rece uma floresta feita a partir de pequenos riscos vermelhos. Todos oselementos ocupam o mesmo plano na pgina, desarticulando a noo

    clssica de perspectiva. O lobo construdo a partir de traos minima-

    listas: dois olhos, um trao colorido na vertical e os dentes ressaltados.

    As formas geomtricas que no replicam o real acabam por convocar o

    leitor a participar da fabricao de sentido de um modo ldico.

    Os livros de Pacovsk apresentam linguagens grficas mais sin-

    tticas, afastando-se dos modelos clssicos representacionais, segundo

    os quais a ilustrao se apresenta como cpia das figuras no mundo:

    ChapeuzinhoVermelho (1875),

    Walter Crane

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    ChapeuzinhoVermelho (2008),

    Kveta Pacovsk

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    A arte no reproduz o visvel, mas torna visvel. A essncia da arte grfica

    conduz facilmente, e com toda razo, para a abstrao. O modo esquem-

    tico e fabuloso do carter imaginrio se oferece e ao mesmo tempo ex-

    presso com grande preciso. Quanto mais puro for o trabalho grfico, isto

    , quanto maior a nfase sobre os elementos formais em que se baseia a

    apresentao grfica, menos apropriado ser o aparato para a apresenta-

    o realista das coisas visveis (Klee, 2001, p. 43).

    Essa reduo a formas elementares relaciona-se com um pro-

    cesso mais amplo, decorrente das transformaes no campo da arte

    no comeo do sculo XX, em que o construtivismo um dos reflexos

    mais radicais. Trata-se de um estilo em que as formas geram efeitos e

    aludem s coisas do mundo em vez de represent-las. Essa nfase na

    forma, na incompletude da imagem, que no se apresenta na pgina

    como uma paisagem descritiva mas como fragmentos indiciais (no

    sentido empregado por Pierce ao falar de ndice) tambm uma carac-

    terstica do trabalho de designers que criaram livros ilustrados com

    linguagens grficas apuradas e sintticas, como Bruno Munari (2007),

    Paul Rand (2007), Leo Lionni (2005) e, mais recentemente, Katsumi

    Komagata (1997).

    Warja Lavater radicaliza a ideia de criar imagens no represen-

    tacionais ao compor narrativas constitudas por um jogo de cones,

    em que cada personagem ou cenrio representado por uma formageomtrica. Na sua verso sem texto de Chapeuzinho Vermelho (1965),

    em formato sanfona, o lobo um crculo preto, o caador um crculo

    marrom, a floresta crculos verdes e a Chapeuzinho, evidentemente, o

    nico crculo vermelho.

    Independente do estilo utilizado pelo ilustrador ao recontar a his-

    tria de Chapeuzinho Vermelho, o que importa que a narrativa seja de

    algum modo reconhecvel, mesmo que por meio de recursos como o da

    ironia, que provocam estranhamento. Alis, o fato de ser uma histriamuito conhecida que possibilita ao ilustrador fazer um contraponto s

    vezes cmico ou irnico s verses tradicionais. o caso de Uma Cha-

    peuzinho Vermelho (2008), de Marjolaine Leray, em que Chapeuzinho

    surpreende o lobo bem como o leitor. Primeiro, assim como em muitos

    livros mais recentes, em que h uma economia formal na linguagem,

    Leray trabalha com a sntese grfica. Ao longo do livro, v-se apenas o

    lobo e Chapeuzinho, dispostos sempre, com exceo da primeira dupla,

    na pgina par de cada dupla. O texto aparece na pgina mpar, comuma tipografia que parece ter sido manuscrita e assemelha-se grafia

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    ChapeuzinhoVermelho (1965),

    Warja Lavater

    UmaChapeuzinho

    Vermelho (2008),Marjolaine Leray

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    de uma criana. As falas de Chapeuzinho so sinalizadas com uma tipo-

    grafia vermelha. Quando o lobo se manifesta, temos letras em preto.

    Alm do lobo e de Chapeuzinho, no h nenhum outro elemento

    em cena exceto duas linhas pretas que sugerem a quina de uma

    mesa. Como os cenrios em geral vinculados narrativa casa da me,floresta, casa da av, caador e assim por diante esto ausentes, toda

    a emoo da histria provocada pelo trao preciso que caracteriza

    os personagens. O lobo, que parece ter sido feito de grafite, esguio,

    tem as patas longas (mesmo as dianteiras que parecem mos) e olhos

    extremamente expressivos. Chapeuzinho, por sua vez, mida, prati-

    camente um capuz ambulante, com pernas feitas com um risco fins-

    simo, que lembram aquelas de um pssaro.

    A narrativa apresenta um recorte da histria, ou seja, condensatoda a ao em apenas um encontro do lobo com Chapeuzinho, sem a

    presena da av. Comeamos com o lobo pegando Chapeuzinho pelos

    ombros e levando-a no colo at uma mesa. Comea ento uma srie de

    ameaas enfticas por parte do lobo que pretende comer Um pedao

    de carne bem vermelha e sangrenta!. Chapeuzinho reage situao

    fazendo comentrios aparentemente casuais a julgar por sua postura

    corporal e gestual: Ulal! Que orelhas enormes voc tm!, E tem uns

    olhos bem grandes, sabia? ou Gente, que dentes!. A conversa mole de

    Chapeuzinho posterga o momento em que ela ser devorada e desesta-

    biliza o lobo em suas tentativas de assust-la. Ela apresenta seu ltimo

    recurso, diz que ele no poder com-la porque tem mau hlito. Meio

    constrangido, o lobo aceita uma bala, sem se dar conta de que se trata de

    um doce fatal. Tolinho, resume Chapeuzinho na ltima pgina dupla.

    Outra releitura contempornea da histria narrada por Perrault

    Akazukin (2008), de Yukari Miyagi. Trata-se de um livro de imagem

    com pouqussimo texto (em forma de breves dilogos). Akazukin

    aproxima-se do livro de Marjolaine Leray na medida em que apre-senta um trao cujo estilo primeira vista lembra aquele dos dese-

    nhos infantis. Mas as imagens parecem feitas por crianas s pri-

    meira vista, pois o rigor da ilustradora na composio confere uma

    fora singular s pginas. No h consenso entre os ilustradores em

    relao ao que consideram uma ilustrao de qualidade. O ilustrador

    Rui de Oliveira ressalta que o artista precisa conhecer as tcnicas cls-

    sicas de desenho:

    Pela prpria caracterstica de sua profisso interpretar textos diversos ,

    o ilustrador tem que dominar corretamente a figura humana, ter noes

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    seguras de anatomia, dominar a representao do espao, da perspectiva,

    da luz, das sombras etc (2008, p. 39-40).

    O livro de Miyagi contradiz a posio de Oliveira uma vez que

    a autora e ilustradora faz uso de recursos na composio que no

    incluem a representao clssica da figura humana, mas nem por

    isso geram um resultado menos impactante. Nelson Cruz, por sua vez,

    afirma que para um livro nascer, no se necessita da tcnica apurada

    de ilustradores experientes, e sim de uma boa histria e fluncia para

    cont-la (Cruz apud Oliveira, 2008, p. 189). Podemos entender por

    fluncia a capacidade do ilustrador de engajar o leitor por meio de

    uma coerncia esttica (mesmo que tal coerncia seja uma linguagem

    visual aparentemente incoerente!), que no se reflete exclusivamente

    na ilustrao virtuosa segundo parmetros clssicos do desenho, e muitas vezes inspirada na arte moderna que rompe com o imperativo

    da representao e da perspectiva.

    Miyagi reconta Chapeuzinho por meio de uma tcnica pouco

    comum nos livros ilustrados, desenho com canetinhas hidrocor (geral-

    mente usadas por crianas). A paleta de cores das ilustraes aquela

    que se pressupe existir em um conjunto de canetas cor de rosa, azul

    piscina, azul marinho, verde claro e escuro e assim por diante e as cores

    no se misturam como fariam se a ilustradora empregasse aquarela ouqualquer outra tinta. O trao caracterstico da caneta hidrocor, falhado,

    usado para criar diferentes texturas na imagem. O lobo, por exemplo,

    aparece bem esmaecido em uma das ilustraes, como acontece com os

    desenhos feitos com pilots velhos, praticamente sem tinta.

    A histria comea antes mesmo da folha de rosto, com uma esp-

    cie de guarda em que o ttuloAkazukinaparece mltiplas vezes dentro

    de um desenho que sugere uma boca grande com dentes. Em seguida,

    temos um prlogo, que tambm funciona como uma espcie de guardasolta, em que o lobo caminha em meio floresta. A folha de rosto na

    dupla de pginas em seguida apresenta o ttulo mais uma vez em letras

    garrafais manuscritas. H elementos da histria dispostos em torno do

    ttulo, que parecem esmaecidos como se tivessem sido desenhados do

    lado inverso do papel, por onde se entrev a sombra do pilot. No h

    nenhuma tipografia sistematizada, o ttulo tem tipografias diferentes

    na capa, na guarda e na folha de rosto. Alis, uma das caractersticas

    singulares do livro que, apesar da aparente falta de p