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LETÍCIA DE CASTRO GUIMARÃES LUTA PELA TERRA, CIDADANIA E NOVO TERRITÓRIO EM CONSTRUÇÃO: o caso da Fazenda Nova Santo Inácio Ranchinho, Campo Florido-MG (1989 - 2001) UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA INSTITUTO DE GEOGRAFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA UBERLÂNDIA 2002

LUTA PELA TERRA, CIDADANIA E NOVO TERRITÓRIO EM … · 13 - Missa de celebração do aniversário de sete anos do assentamento Nova Santo Inácio Ranchinho, 2000..... 126 14 - Festa

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LETÍCIA DE CASTRO GUIMARÃES

LUTA PELA TERRA, CIDADANIA E NOVO

TERRITÓRIO EM CONSTRUÇÃO:

o caso da Fazenda Nova Santo Inácio Ranchinho, Campo Florido-MG (1989 - 2001)

UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA

INSTITUTO DE GEOGRAFIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA

UBERLÂNDIA

2002

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Foto: Gilson Goulart Carrijo, 1993

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LETÍCIA DE CASTRO GUIMARÃES

LUTA PELA TERRA, CIDADANIA E NOVO

TERRITÓRIO EM CONSTRUÇÃO:

o caso da Fazenda Nova Santo Inácio Ranchinho,

Campo Florido-MG (1989 - 2001)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação

em Geografia - Área de Concentração em Análise e

Planejamento Sócio-Ambiental -, do Instituto de

Geografia da Universidade Federal de Uberlândia para

f ins de obtenção do título de mestre.

Orientador: Professor Doutor Antonio Ricardo Micheloto

UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA

INSTITUTO DE GEOGRAFIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA

UBERLÂNDIA

2002

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BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________

Prof. Dr. Antonio Ricardo Micheloto (Orientador)

_____________________________________________

Prof. Dr. João Marcos Alem

_____________________________________________

Profª. Dra. Vera Lúcia Botta Ferrante

Uberlândia, ____ de _______________ de 2002

Resultado: ______________________________

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"A Liberdade da Terra não é assunto de

Lavradores

A Liberdade da Terra é assunto de todos

Quantos se alimentam dos frutos da Terra

Do que vive, sobrevive de salário.

Do que não tem casa. Do que só tem

Viaduto

Do que é impedido de ir à escola

Das meninas e meninos de rua

Das prostitutas, dos ameaçados pelo

Cólera

Dos que amargam o desemprego

Dos que recusam a morte do sonho

A Liberdade da Terra e a paz no campo

Tem nome:

Reforma Agrária” (Pedro Tierra).

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Ao meu esposo Edir e ao meu filho Pablo,

companheiros amorosos e solidários, que

compartilharam comigo os caminhos desta

construção.

Aos companheiros da fazenda Nova Santo

Inácio Ranchinho, personagens desta

história, tecida de suas lutas.

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AGRADECIMENTOS

A tecitura desta dissertação deu-se graças ao apoio e à ajuda de

pessoas e instituições, às quais gostaria de agradecer.

Ao professor Antonio Ricardo Micheloto, orientador, amigo,

incentivador e, sobretudo, compreensivo com as dificuldades por mim

enfrentadas na condução da pesquisa de campo e da redação desta

dissertação. Suas críticas e sugestões foram fundamentais para meu

amadurecimento científico, especialmente no que se refere às

recomendações quanto ao afastamento crítico no processo de

investigação, como forma de evitar o apego subjetivista à realidade

estudada.

À banca do Exame de Qualif icação, composta pelos professores

João Cleps Júnior e João Marcos Alem, com quem tive oportunidade de

discutir minha pesquisa, apresentando críticas e contribuições para o

aprimoramento deste estudo.

À FAPEMIG, pela bolsa de estudo concedida por um ano.

Aos professores e colegas do Mestrado em Geografia, pelos dois

anos de convivência e amizade, em especial às professoras Beatriz

Ribeiro Soares, Vânia Rúbia Farias Vlach, Denise Labrea Ferreira, Vera

Lúcia Salazar Pessôa, aos professores João Cleps Júnior e Rosselvelt

José dos Santos, e aos colegas Adriany Ávila de Melo, Alberto Pereira

Lopes, Carlos Póvoa, Djalma Ferreira Pelegrini, Kelly Cristine Bessa,

Leila Márcia Costa, Nádia Cristina da Silva, Roberto Eduardo Castilho,

Sérgio Sebastião Negri e Silvana de Campos Sona.

Aos funcionários do INCRA - Superintendência Regional de Minas

Gerais -, meus agradecimentos pela disponibilização de documentos e

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dados sobre o Projeto de Assentamento Nova Santo Inácio Ranchinho,

em especial à Rosanne Galuppo Fernandes Félix, amiga do curso de

Ciências Sociais, da FAFICH/UFMG, pela atenção dispensada e a

presteza com que me atendeu, quando da minha ida a essa Instituição.

Ao Jornal Correio que, por intermédio das jornalistas Ana

Guaranys e Roberta Guimarães, cedeu algumas fotos para ilustração

desta dissertação.

Ao fotógrafo Ismael (in memorian), pela solicitude na revelação de

fotografias em preto e branco. À Ione, que de maneira tão cuidadosa,

revisou a redação final deste estudo. Ao Juliano, colaborador na

elaboração do Abstract. E à geógrafa Eleusa, pela minuciosa

digitalização dos mapas.

Ao Elson Felice e ao Frei Rodrigo, agradeço a consideração

prestada no atendimento para a realização de entrevistas.

Às minhas amigas Beatriz, Bernadeth, Lídia, Lourdinha, Rosana e

à minha irmã Vera, pela interlocução de questões sobre a realização

deste trabalho.

À minha mãe e ao meu pai (in memorian), que colheram comigo os

frutos de minha criação, minha eterna gratidão.

Um agradecimento especial ao meu querido f ilho Pablo e ao meu

esposo Edir, carinhosamente apelidado Beril , que estiveram sempre ao

meu lado, mantendo com carinho e paciência, o apoio afetivo durante

todo este rico percurso.

Finalmente, aos trabalhadores e trabalhadoras da Nova Santo

Inácio Ranchinho, com quem contraí uma imensa dívida de gratidão, pela

atenção dispensada na realização das entrevistas, particularmente

Terezinha e Barroso, pela carinhosa acolhida em sua casa, possibilitando

o contato com os sujeitos da luta pela terra.

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SUMÁRIO

Banca examinadora. .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . i i

Epígrafe. .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . i i i

Dedicatória. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . iv

Agradecimentos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . v

Lista de figuras. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ix

Lista de tabelas.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . xi

Lista de abreviaturas e siglas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . xii

Resumo.. .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . xiv

Abstract. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . xv

INTRODUÇÃO... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1

1 - MODERNIDADE E MODERNIZAÇÃO DA

AGRICULTURA NO TRIÂNGULO MINEIRO/ALTO

PARANAÍBA.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

21

1.1 - Os desencontros da modernidade na realidade agrária

brasileira. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

22

1.2 - A modernização da agricultura no Triângulo

Mineiro/Alto Paranaíba e seus impactos para os

trabalhadores rurais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

26

2 - O PROCESSO DE LUTA PELA TERRA COMO

CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA.. .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

46

2.1 - Experiência, memória, identidade coletiva e cidadania. . 47

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2.2 - Histórias de vida dos sem-terra. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49

2.3 - Os equívocos da reforma agrária e a constituição do

espaço político. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

55

2.4 - A gênese da luta pela terra. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61

2.5 - As práticas que evidenciaram a disposição de luta: a

inserção dos trabalhadores no campo de disputas. . . . . . . . . .

67

2.6 - A vida cotidiana no acampamento .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79

2.7 - A chegada à terra prometida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89

2.8 - A realização de um sonho: a reforma agrária na Nova

Santo Inácio Ranchinho.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

99

3 - NOVO TERRITÓRIO EM CONSTRUÇÃO.... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 104

3.1 - O parcelamento da terra e a configuração de um novo

território. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

105

3.2 - Os novos espaços de sociabilidade. .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123

3.3 - A organização interna no assentamento: mediações e

lutas de poder. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

128

3.4 - A organização produtiva e a inserção no mercado de

produção.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

132

3.5 - Novas perspectivas de vida: entre a cidadania utópica e

a realidade vivida. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

140

CONSIDERAÇÃOES FINAIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 145

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.. .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151

ANEXOS.. .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 162

ANEXO 1 - Buscando libertação. .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163

ANEXO 2 - A Partilha da Terra, Josué, Capítulo 18, Versículo

1 a 10, Antigo Testamento. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

165

ANEXO 3 - Roteiro de entrevistas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 167

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LISTA DE FIGURAS

1 - Localização da área de estudo: região do Triângulo

Mineiro/Alto Paranaíba (MG).. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

4

2 - Trabalhadores juntando suas "tralhas" , após despejo da

Fazenda Colorado, 1990.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

69

3 - Montagem do acampamento em Vila União, 1990.. . . . . . . . . . . . . . . . . 69

4 - Incêndio ocorrido no acampamento nas margens da BR-497,

1991.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

80

5 - Distribuição de alimentos no acampamento, 1992.. . . . . . . . . . . . . . . . . 81

6 - Manifestação dos trabalhadores sem-terra, por ocasião da

visita do Ministro da Agricultura e do Presidente do INCRA

ao assentamento da Fazenda Barreiro, em Iturama, 1992.. . . . . . .

91

7 - Chegada dos trabalhadores à "terra prometida" , Fazenda

Santo Inácio Ranchinho em 19 de maio de 1993... . . . . . . . . . . . . . . . . .

93

8 - Montagem do acampamento na Fazenda Santo Inácio

Ranchinho, 1993.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

94

9 - Assentamento Nova Santo Inácio Ranchinho - Campo Florido

(MG) - 2002.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

107

10 - Conservação de área de veredas na Nova Santo Inácio

Rachinho, 1999.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

109

11 - Escola Municipal Santa Terezinha - assentamento Nova

Santo Inácio Ranchinho, 2000.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

117

12 - Tanque de expansão de leite - assentamento Nova Santo

Inácio Ranchinho, 2001.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

120

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13 - Missa de celebração do aniversário de sete anos do

assentamento Nova Santo Inácio Ranchinho, 2000... . . . . . . . . . . . . . .

126

14 - Festa de Folia de Reis, realizada no aniversário do

assentamento Nova Santo Inácio Ranchinho, 2000... . . . . . . . . . . . . . .

128

15 - Vista de um lote com produção de arroz, na Nova Santo

Inácio Rachinho, 1999.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

133

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LISTA DE TABELAS

1 - Distribuição dos créditos do POLOCENTRO.... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32

2 - Distribuição fundiária no Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba,

1970 - 1985.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

36

3 - Índice de Gini nos municípios do Triângulo Mineiro, 1985. . . . . 38

4 - Pessoal ocupado, distribuído por categoria no Triângulo

Mineiro/Alto Paranaíba, 1970, 1975, 1980, 1985... . . . . . . . . . . . . . . . .

38

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AIMFR - Associação Internacional dos Movimentos Familiares de

Formação Rural

AMEFA - Associação Mineira das Escolas Família Agrícola

APR - Animação Pastoral no Meio Rural

BASAGRO - Companhia Brasileira de Participação Agroindustrial

BID - Banco Interamericano de Desenvolvimento

CAMPO - Companhia de Produção Agrícola

CEB’s - Comunidades Eclesiais de Base

CNA - Confederação Nacional da Agricultura

CONTAG - Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura

CPT - Comissão Pastoral da Terra

CUT - Central Única dos Trabalhadores

DNTR - Departamento Nacional dos Trabalhadores Rurais

EFA - Escola Família Agrícola

EMATER – Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural

FASE - Federação de Órgãos para a Assis tência Social e Educacional

FETAEMG - Federação dos Trabalhadores da Agricultura do Estado de

Minas Gerais

IBASE - Instituto Brasileiro de Análises Sócio-Econômicas

IBGE - Insti tuto Brasileiro de Geografia e Estatística

INCRA - Inst ituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

JADECO - Japan-Brazil Agricultural Development

MIRAD - Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário

MLT - Movimento de Luta Pela Terra

MLST - Movimento de Libertação dos Sem Terra

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MST - Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra

PADAP - Programa de Assentamento Dirigido do Alto Paranaíba

PCI - Programa de Crédito Integrado e Incorporação dos Cerrados

PND - Plano Nacional de Desenvolvimento

PNRA - Plano Nacional de Reforma Agrária

POLOCENTRO - Programa de Desenvolvimento dos Cerrados

PROÁLCOOL - Programa Nacional do Álcool

PROCERA - Programa de Crédito Especial Para a Reforma Agrária

PRODECER - Programa de Cooperação Nipo-Brasileira para o

Desenvolvimento Agrícola dos Cerrados

PT - Partido dos Trabalhadores

SRB - Sociedade Rural Brasileira

UDR - União Democrática Ruralista

UNEFAB - União Nacional das Escolas Família Agrícola do Brasil

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RESUMO

Esta dissertação é resultado de uma pesquisa realizada com os trabalhadores rurais assentados na fazenda Santo Inácio Ranchinho, Campo Florido - MG, e tem como objetivo geral analisar as práticas e as formas de participação e organização coletivas, gestadas na luta pela terra, identificando nelas os indicadores da construção da cidadania e de constituição/reconfiguração do território conquistado. O eixo teórico deste trabalho é o conceito de cidadania, definido como um processo pelo qual os direitos são formulados, reivindicados, transformados pelos seres humanos concretos, sendo, sobretudo, resultado de suas experiências. O desenvolvimento deste estudo está dividido em três capítulos. O primeiro consiste em apresentar o cenário no qual os trabalhadores travaram suas lutas. Analisamos como a política de modernização da agricultura implementada no Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba foi marcada por uma forte exclusão social, produzindo efeitos perversos para os trabalhadores rurais. O segundo capítulo recupera a trajetória de luta vivenciada pelos sujeitos que demandavam terra, procurando desvelar como viveram esses anos todos, o que determinou a construção de uma organização coletiva, impondo para o espaço público o reconhecimento de suas experiências como cidadãos; e como gestaram o projeto coletivo de luta pela terra, manifestando sua emergência no cenário político. O capítulo terceiro analisa as mudanças ocorridas com a conquista do direito à terra, indicando como se deram o parcelamento e a reconfiguração do território conquistado pelos trabalhadores, a organização produtiva do assentamento, as novas formas de sociabilidade vividas no espaço conquistado, a organização interna no assentamento, bem como as novas perspectivas de vida desses agricultores, mediada pela cidadania utópica e a realidade vivida.

Palavras-chave: luta pela terra, identidade coletiva, cidadania, reconfiguração do terri tório.

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ABSTRACT

This paper results from a research held with agricultural workers who live on Santo

Inácio Ranchinho farm, in Campo Florido, Minas Gerais State, and has as a general

objective to analyze the procedures, ways of participation and collective organization,

centered in the fight for the land, identifying, on them, the pointers of the construction

of the citizenship and constitution/reconfiguration of the conquered territory. The

theoretical axle of this work is the concept of citizenship, defined as a process through

which the rights are created, demanded, transformed by concrete human beings, being,

over all, result of their experiences. The development of this study is divided into three

chapters. The first one consists in presenting the scene in which the workers had their

fights. We have analyzed how the agricultural modernization process developed in the

region of Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba was marked by a strong social exclusion,

causing extremely bad effects to the agricultural workers. The second chapter

recuperates the history of fight deeply lived by those who fought for the land, trying to

reveal how they lived all these years, what determined the construction of a collective

organization, imposing to the public space the recognition of their experiences as

citizens; how they managed the collective project for the land, revealing their

emergence in the politician scene. The third chapter analyzes the changes that took

place with the conquest of the right to the land, indicating how the division and the

reconfiguration of the territory conquered by the workers were developed, the

productive organization of the settlement, the new ways of sociability lived in the

conquered space, the internal organization in the settlement, as well as the new life

projections created by these agriculturists, measured by the utopian citizenship and the

lived reality.

Key-words: fight for the land, collective identity, citizenship, territory reconfiguration.

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INTRODUÇÃO

Será que, hoje em dia, tem sentido falar em ações coletivas, já que

vivenciamos a era da informação orientada pela racionalidade

instrumental e por um individualismo radical? Estaríamos vivendo um

processo de crise dos movimentos sociais? As utopias sociais e as

possibilidades de construção de sociedades mais justas e democráticas

esgotaram-se?

Questões como estas conduzem-nos à reflexão sobre os processos

de ações coletivas no cenário da globalização. Algumas análises sobre a

formação de atores coletivos no contexto da nova ordem mundial

indicam a crise dos movimentos sociais, em razão da hegemonia de uma

política neoliberal, que estaria produzindo uma homogeneização da

cultura, bem como a fragmentação da vida societária, indicando o

esgotamento das ideologias e das utopias (GOHN, 1997). Outras nos

apontam que o cenário conturbado da globalização não apagou as ações

coletivas desencadeadas pelos movimentos sociais (CASTELLS, 1999-b

e SCHERER-WARREN, 1999).

Se, por um lado, a globalização impõe um processo de

homogeneização dos espaços locais, políticos, sociais e culturais, por

outro, propicia reações locais oriundas de novas práticas dos movimentos

sociais, podendo vir a ser um embrião de mudanças socioculturais

(CASTELLS,1999-b).

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Compreender o sentido das mudanças que estão ocorrendo com a

emergência do processo de globalização requer entender as grandes

transformações tecnológicas trazidas por uma base material. Como indica

CASTELLS (1999-b), vivemos hoje uma nova forma de sociedade, a

sociedade em rede,

“(. . . ) caracter izada pe la globalização das at ividades econômicas

decis ivas do ponto de vis ta estratégico; por sua forma de

organização em rede; pe la f lex ibi l idade e instabi l idade do emprego

e a indiv idual ização da mão de obra. Por uma cultura da

v irtual idade real cons truída a par t i r de um sis tema de mídia

onipresente , in te rl igado e al tamente diversi f icado. E pe las

trans formações das bases mater iais da v ida - o tempo e o espaço -

mediante a criação de um espaço de f luxos e de um tempo

intemporal como expressões das at iv idades e el i te s dominantes.“

(CASTELLS, 1999-b:17) .

Desenha-se um panorama aterrador com essa nova forma de

organização da sociedade que vem se configurando no limiar do século

XXI: o empobrecimento dos países em desenvolvimento, o desemprego e

os desequilíbrios sociais crescentes; problemas com meio ambiente

sobrecarregado; privatização das empresas públicas; a perda da força de

coesão dos movimentos trabalhistas; a crise do Estado de bem-estar

social, que fez piorar as condições de vida de grande parte dos cidadãos,

enfim, a utopia da sociedade do trabalho perdeu sua força persuasiva,

não abrindo mais possibilidades futuras de uma vida melhor

(CASTELLS,1999 e HABERMAS, 1987). As análises de HABERMAS

(1987) sobre o final do segundo milênio indicam-nos uma situação de

ininteligibilidade, de esgotamento das energias utópicas, de

perplexidade. No dizer deste autor, “quando secam os oásis utópicos,

estende-se um exército de banalidade e perplexidade” (HABERMAS,

1987:114).

Entretanto, apesar dessa nova forma de organização da sociedade

indicar um mundo sem fronteiras, constituído por mercados, instituições

estratégicas e redes, onde o “espaço é definitivamente ocupado pela

velocidade do tempo” (ORTIZ, 1996:220), não podemos considerar que o

processo de globalização se faz sob o signo do fim. Fim do Estado-nação

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frente às organizações internacionais, fim das utopias diante das

diretrizes político-econômico-ideológicas para a reorganização do

capitalismo em escala mundial, f im ou dissolução das identidades

compartilhadas frente aos processos homogeneizantes da globalização,

que submetem a vida cotidiana às exigências universais do consumo.

Nesse sentido, é de fundamental importância resgatar uma questão

teórica levantada por CASTELLS (1999-b), que nos permite compreender

que, se a força homogeneizadora dos processos de globalização impõe,

por um lado, padrões comuns difundidos pelas novas tecnologias, por

outro, propicia reações locais oriundas de novas práticas dos movimentos

sociais, podendo vir a ser um embrião de mudanças socioculturais,

desafiando, assim, a nova (des)ordem mundial.

Part indo do pressuposto de que o processo de globalização, ao

invés de diluir as singularidades, pode propiciar um reforço das

identidades coletivas, apresentamos como objeto de estudo as

experiências e práticas vivenciadas por trabalhadores rurais -

assalariados, parceiros, arrendatários - na conquista da desapropriação de

3.958 ha de terra para f ins de reforma agrária. Os cenários dessa luta são

o espaço rural dos municípios de Iturama e Limeira d’Oeste, bem como a

fazenda Nova Santo Inácio Ranchinho, Campo Florido, localizados na

região do Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba, Minas Gerais (ver FIGURA

1). Os eixos deste estudo são o processo de constituição da cidadania nas

práticas de luta por terra, e a compreensão da maneira pela qual se deu a

configuração de um novo território, engendrada nas experiências de

organização e de resistência da terra conquistada pelos trabalhadores

rurais.

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A trajetória de luta desses trabalhadores, marcada por derrotas e

vi tórias, teve seu início em janeiro de 1990, quando cerca de 100

famílias de trabalhadores rurais ocuparam a fazenda Colorado no

município de Iturama, no Pontal do Triângulo Mineiro, com o apoio da

Comissão Pastoral da Terra - CPT -, Central Única dos Trabalhadores -

CUT -, Entidades Sindicais, Federação dos Trabalhadores da Agricultura

de Minas Gerais - FETAEMG - e do Movimento dos Sem-Terra - MST -,

entre outras entidades, anunciando aí a esperança de conquista de um

pedaço de terra, com o objetivo de dividir e fazer produzir o latifúndio.

O despejo mediante a ação do poder judiciário e da polícia local,

aliados à UDR - União Democrática Ruralista -, veio 24 horas depois da

experiência de ocupação da referida fazenda. Após esse despejo, a

resistência dos trabalhadores rurais tomou forma de outra ação

organizada - o acampamento realizado na estrada do distrito de Vila

União, a 30 Km de Iturama e, posteriormente, nas margens da BR 497

(Km 12).

A experiência do acampamento nas margens da estrada durou três

anos e quatro meses. Nesse período, cerca de 150 famílias viveram em

barracos de plástico preto, com péssimas condições de segurança, saúde,

alimentação, entre outras necessidades básicas. Foram registrados casos

de atropelamentos de crianças, incêndios e invasões de caminhões sobre

os barracos; ameaça dos fazendeiros de contaminação da água utilizada

pelos acampados; privação de alimentos; falta de assistência da

Prefeitura local e dos hospitais da cidade, além da violência praticada

pela Polícia Militar na tentativa da ocupação da Fazenda Varginha. No

entanto o processo de resistência vivenciado pelos trabalhadores rurais,

por meio da organização de comissões de trabalho, da realização de

assembléias, da ocupação do Instituto Nacional de Colonização e

Reforma Agrária - INCRA - e outras instâncias do Estado, exigindo

desapropriação para os sem-terra, constitui-se como experiências de

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construção de uma identidade coletiva desses trabalhadores na luta pela

terra.

Em 19 de maio de 1993, após aguardar por mais de dois anos a

decisão do INCRA no encaminhamento de desapropriação da Fazenda

Santo Inácio Ranchinho, no município de Campo Florido, os

trabalhadores instalaram-se na “terra prometida”1 e cravaram aí uma

cruz como símbolo de disposição de disputar a apropriação do latifúndio

improdutivo, constituindo, assim, um fato político de grande relevância,

que imprimiu maior visibil idade à luta pela terra no Triângulo

Mineiro/Alto Paranaíba.

Com a entrada dos trabalhadores na fazenda, o processo de luta e

resistência continuou. A instalação dos acampados deu-se de maneira

precária e improvisada, continuando a morar em barracos cobertos de

plástico preto, sem as mínimas condições de conforto, enfrentando

problemas de saúde e alimentação. Por outro lado, a ação de reintegração

de posse impetrada pela ex-proprietária da fazenda exigiu ações

contínuas de enfrentamento organizado.

Em 1994, o desencadeamento de ações coletivas fez com que a

resistência dentro do acampamento possibi litasse a efetivação da

desapropriação da Fazenda Santo Inácio Ranchinho, por parte do INCRA,

assentando 115 famílias em áreas de 25 hectares, aproximadamente. A

terra conquistada adquiriu um novo nome: Fazenda Nova Santo Inácio

Ranchinho, expressando aí o rompimento com a espoliação capitalista de

produção e a construção de um novo território.

Hoje, os trabalhadores da Nova Santo Inácio Ranchinho

reconfiguraram a terra conquistada, transformando o latifúndio

1Util izamos aqui a expressão ut i l izada pe los tr aba lhadores sem-terra. Essa expressão tem uma dimensão s imból ica, pois é vinculada à passagem bíbl ica em que o povo hebreu busca a ter ra prometida por Moisés. Sign i fica, também, a promessa fe i t a pelo Governo Federa l aos sem- terra, no sent ido de desapropriar a fazenda Santo Inácio Ranchinho.

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improdutivo em unidades de produção familiar, além de estabelecer aí

novas maneiras de produzir, novas relações sociais, novas formas de

luta, novas sociabilidades, enfim, um novo modo de vida.

Esse espaço conquistado não era uma realidade estática, reificada,

que se apresentava apenas como cenário de luta para a conquista da terra.

Ele foi t ransformado em território escolhido pelos trabalhadores para

nele construírem seus modos de vida. Dessa maneira, estabeleceram-se

práticas e ações que se configuram como processo de exercício da

cidadania e construção de um novo território a serem reconhecidas neste

estudo.

Na trajetória desses trabalhadores rurais, marcada por derrotas e

vi tórias, percebemos a formação da identidade coletiva nas lutas de

ocupação do território disputado, manifestando a sua emergência no

cenário político.

Nesse processo de construção da cidadania, os novos sujeitos

questionavam o lugar que lhes era imposto na sociedade, sendo

portadores de reivindicações que visassem resgatar seus direitos mais

elementares (civis, políticos e sociais), suprimindo, assim, sua cidadania

incompleta.

Dessa maneira, o enfoque adotado neste estudo é a análise das

práticas, formas de participação e organização coletivas, gestadas no

processo de luta pela terra, identif icando nelas os indicadores da

construção da cidadania e de constituição / reconfiguração de um novo

território. Neste sentido, as questões que se colocaram para a realização

deste trabalho foram:

- o que determinou a saída do isolamento e do anonimato desses

trabalhadores - isto é, da condição de exclusão social e da

própria cidadania - para a constituição de uma organização

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coletiva, que impõe, para o espaço público o reconhecimento de

suas experiências como cidadãos?

- em que medida as práticas vivenciadas na luta pela terra são

forjadoras de uma nova cidadania e da configuração de um novo

território?

- quais são as possibi lidades e os limites do movimento de luta

pela terra, diante das relações de forças estabelecidas com a

sociedade civil e com Estado?

- que relações podemos estabelecer entre o movimento de luta pela

terra e o processo de democratização da sociedade brasileira?

- considerando que as lutas sociais no campo se diversificam em

termos geográficos, quais são as especificidades do movimento

dos sem-terra no Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba?

- como se dá a reconfiguração do terri tório conquistado?

- como os agricultores da Nova Santo Inácio Ranchinho vêm

viabilizando sua permanência no campo e garantindo sua

reprodução social, num contexto de economia globalizada?

O presente estudo busca o entendimento da dimensão polít ica do

processo de luta pela terra, compreendendo-o como uma possibilidade de

democratização do espaço público instaurada pelas experiências de luta

pela terra, procurando apontar que não se pode pensar na construção de

um projeto democrático da sociedade brasileira sem a partic ipação dos

trabalhadores sem-terra, especialmente, sem pensar em suas propostas de

realização da reforma agrária.

Ao analisar os caminhos trilhados pelo movimento dos

trabalhadores sem-terra, hoje assentados da fazenda Nova Santo Inácio

Ranchinho, compreendemos que, mediante o processo de luta por terra,

os trabalhadores elaboram identidades coletivas, ampliam sua presença

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no espaço político, impõem para a sociedade o reconhecimento de sua

cidadania (GRZYBOWSKI, 1991), além de estabelecerem novas

territorialidades, que engendram novas alternativas de produção, novas

formas de organização e mobilização em rede, novas sociabilidades,

enfim, um novo modo de vida (CARNEIRO, 1999; GRZYBOWSKI, 1991

e MEDEIROS, 1989).

A questão da identidade coletiva, da cidadania e da

nova territorialidade nos movimentos de luta pela

terra

Compreendendo os movimentos de luta pela terra como “formas de

ações coletivas reativas aos contextos históricos-sociais nos quais estão

inseridos” , (SCHERER - WARREN, 1999:14), percebemos que tais

movimentos têm como ponto comum a busca de caminhos alternativos

para superar a situação de subordinação e exclusão a que foram

submetidos, em razão tanto da dinâmica da modernização conservadora

brasileira, como, em determinadas situações, das dif iculdades de

integração econômica aos processos globais.

A literatura sobre os conflitos de terra no Brasil indica a marca de

resistência a diferentes formas de expropriação dos trabalhadores rurais.

Como mostra GRZYBOWSKI (1994), a quase totalidade dos movimentos

sociais no campo resulta da resistência dos trabalhadores e dos

camponeses ao processo econômico e político provocado pela rápida

modernização da agricultura. As transformações promovidas pelo modelo

modernizador, que implicaram o aumento da produtividade, mecanização

agrícola e agroindustrialização, terminaram por aprofundar as

desigualdades e a exclusão social no campo.

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Ao desencadearem múltiplos processos de lutas e de resistência,

os t rabalhadores rurais elaboram suas identidades sociais, determinadas

pela consciência da situação de carência e exclusão social a que foram

submetidos. Os atores coletivos dessas lutas sociais exprimem suas

identidades por meio da afirmação como sem-terra, o que lhes dá

sustentação para reivindicar junto ao Estado o direito à terra,

manifestando, assim, sua oposição à estrutura agrária concentradora e ao

processo de desenvolvimento, que os excluem (MEDEIROS, 1999). Por

sua vez, esses atores revelam sua alteridade em relação a outros

movimentos, forjando-se como sujeitos diferentes, que buscam sua

autonomia polí tica, com linguagens e símbolos próprios2 .

As identidades elaboradas pelos trabalhadores não são dadas, mas

construídas. É no contexto de constituição de formas mais incisivas de

luta, como ocupações e acampamentos, que os trabalhadores vão

construindo suas identidades, organizando práticas sociais, expressando

suas vontades, const ituindo, enfim, um projeto de reforma agrária, que

vai, paulatinamente, ganhando visibilidade na agenda política

(MEDEIROS: 1999).

Assim, pela afirmação de suas identidades, construídas no fazer de

suas lutas, numa trajetória descontínua, marcada por derrotas e vitórias,

avanços e recuos, os movimentos de trabalhadores no campo

constituíram-se como sujeitos sociais, ampliaram sua presença no espaço

político, impondo para a sociedade o reconhecimento de sua cidadania

(GRZYBOWSKI, 1991 e MEDEIROS, 1989).

2O própr io MST, por exemplo, que surgiu da ar t iculação da Igre ja Catól ica como mediadora de diferentes exper iênc ias de luta pela te r ra , adquire sua autonomia pol í t ica ao inst i tuir -se como movimento soc ia l , expr imindo uma l inguagem própr ia, mediante suas bandeiras de lu ta como “Terra não se ganha, se conquista” e “Ocupar, resis t i r, produzir” . A produção de s ímbolos como a c ruz e a ana logia da lu ta pe la te r ra com o êxodo do povo hebreu em busca da ter ra promet ida são entendidas pelo movimento como referência para que os tr abalhadores compreendam melhor sua his tór ia , além de serem referencial pedagógico que enr iquece novas formas de organização (MOVIMENTO DOS SEM-TERRA, 1999) . Sobre as imagens de uma missão e do reino promet ido nos movimentos de lu ta por te rra , ver também MICHELOTO (1991) .

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Nessa perspectiva, as identidades coletivas são compreendidas

como construções político-estratégicas (SANTOS, 1998), estando

associadas à idéia de constituição da cidadania.

Para compreender as práticas sociais impressas pelos movimentos

de luta pela terra na constituição da cidadania, as análises de DAGNINO

(1994) constituem-se como referencial teórico fundamental. Em seu

estudo sobre os movimentos sociais e a emergência de uma nova noção

de cidadania, essa autora procura caracterizar o que denomina de nova

cidadania, como estratégia polít ica estabelecida a partir da emergência

dos movimentos sociais no cenário polí tico. Para ela, a construção da

cidadania está entrelaçada à organização dos movimentos sociais, que, na

luta por direitos - tanto o direito à igualdade como o direito à diferença -

contribuem para o aprofundamento da democracia. Ao conceber a

cidadania como nexo constitutivo entre as dimensões da cultura e da

política, a autora expõe que a nova cidadania constitui uma proposta de

novas formas de sociabilidade, que rompe com o autoritarismo social

enraizado na cultura brasileira, estabelecendo, assim, um desenho mais

igualitário nas relações sociais.

Assim, numa sociedade na qual a desigualdade econômica e a

miséria resultam de um ordenamento hierárquico e desigual de relações

sociais (DAGNINO, 1994), os movimentos sociais (inclusive os

movimentos de luta pela terra), ao contestarem o poder exercido pelas

velhas forças oligárquicas (especialmente as agrárias), minam os pilares

do autoritarismo enraizado na sociedade brasileira, contribuindo,

portanto, para a efetiva democratização social (DAGNINO, 1994 e

GRZYBOWSKI, 1991), à medida que incorporam sujeitos sociais e novos

direitos.

Focalizando direitos de cidadania sob a ótica do direito a ter

direitos (LEFORT,1991), partimos da concepção de que a cidadania não

se limita a conquistas legais ou ao acesso a direitos já estabelecidos, mas

institui, fundamentalmente, direitos inventados pelas práticas sociais,

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emergentes de lutas específicas. Nesse sentido, os movimentos de luta

pela terra agregam, em suas experiências, a criação de novos direitos,

imprimindo assim, “uma legalidade emergente construída nas formas

negociadas de arbitragem de conflitos, nas quais se processa (. . . ) uma

jurisprudência informal que opera critérios de justiça substantiva”

(TELLES, 1994:99).

Portanto , as ocupações de terra realizadas pelos movimentos,

entendidas como práticas legí timas de pressão para a efetiva

desapropriação de terras improdutivas, enunciam a criação de novos

direitos, indicando que as experiências de luta conduzem a novas

relações com a esfera pública, nas quais os novos sujeitos questionam a

ordem polít ica centrada no Estado, buscando uma nova ordem baseada

na democracia direta e participativa, além de deslocarem práticas

tradicionais de mandonismo e clientelismo.

No terreno de lutas populares e de demandas para a realização de

uma reforma agrária justa e democrática, os trabalhadores procuram

trilhar caminhos para superar a situação de exclusão e subordinação a

que foram submetidos, sendo portadores de reivindicações que visem

resgatar seus direitos mais elementares de cidadãos, além de

estabelecerem a criação de novos direitos.

Esse processo de construção da cidadania possui uma forte âncora

territorial, considerando que “a possibilidade de ser mais ou menos

cidadão depende, em larga proporção, do território onde está”

(SANTOS, 1993:81). De acordo com SANTOS (1993), as desigualdades

sociais são antes de tudo desigualdades terr itoriais, já que advêm do

lugar onde o cidadão se encontra. Dessa maneira, a constituição da

cidadania não deve estar alheia às realidades territoriais, pois “(. . .) o

cidadão é o indivíduo no lugar. A República somente será democrática

quando considerar os cidadãos iguais independente do lugar onde

estejam” (SANTOS, 1993:123).

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Desse modo, se os rumos tomados pela modernização brasi leira,

resultantes da reorganização econômica, das mudanças no padrão

tecnológico e das transformações ocorridas no mercado, vêm produzindo

um novo tipo de exclusão social, as práticas de invenção de novos

direitos e de novos pactos de convivência social, estabelecidas pelos

movimentos sociais no campo, indicam a possibilidade de construção de

“parâmetros capazes de reverter a lógica de uma modernização

selvagem que nos projeta nos caminhos do século XXI sem ainda ter

resolvido as questões clássicas de uma modernidade incompleta”

(TELLES, 1994:98).

Assim, à medida que as lutas desencadeadas por tais movimentos

avançam, o espaço rural brasileiro, marcado pela concentração fundiária

e pela espoliação capitalista excludente, vai sendo, paulatinamente,

reterritorializado, abrindo perspectivas para novas territorialidades.

Apesar da existência de lutas sociais mais localizadas, o processo

de conquista da terra tem um significado especial para os movimentos:

ele expressa um movimento de territorialização que abre perspectivas

para a conquista de novos terri tórios. No dizer do Movimento dos Sem-

Terra:

“(. . . ) cada assentamento que o MST conquis ta, ele se terri torial i za.

E é exatamente i s to que di fe rencia o MST de outros movimentos

soc iais . Quando a luta acaba na conqui sta da terra, não exis te

te rr i tor ial ização ( . . . ) Já disse o poeta ‘Quando chegar na terra,

lembre de quem quer chegar . Quando chegar na terra que tem

outros passos para dar’ . Os Sem-Terra ao chegarem na terra,

v i slumbram sempre uma nova conquis ta e por essa razão o MST é

um movimento sociote rr i torial .” (MST, 1999).

A literatura sobre a formação dos assentamentos no Brasil indica-

nos as novas possibilidades de util ização de áreas decadentes, que

adquirem novas funções, em termos econômicos, em razão da presença

da luta por terra. Além disso as atividades agrícolas desenvolvidas pelos

assentados proporcionam meios de vida mais dignos, e a reapropriação

de espaços pouco explorados assume funções políticas de del imitação do

território (MEDEIROS, 1999).

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No que se refere às novas formas de produção, estudos têm

apontado a presença de formas associativas nos assentamentos como

tentativa de superar obstáculos relacionados à produção e

comercialização, e a predominância da agricultura familiar, ancorada na

formação de pequenos grupos, ligados entre si por relações de

contigüidade, marcada por uma identidade local.

As identidades terr itoriais, apoiadas no pertencimento a uma

localidade, contradizem as tendências que preconizam a globalização

como um processo inexorável de homogeneização, que dilui as

singularidades das culturas locais. Nos territórios conquistados pelos

movimentos de luta por terra, tal sentimento de pertencimento dá-se a

partir de um processo de mobilização definido por interesses comuns,

constituindo, assim, uma identidade entrelaçada à memória coletiva3.

Nesse sentido, os atores coletivos dos assentamentos de reforma agrária

procuram sempre resgatar as lembranças de conquista da terra, como

forma de manter o grupo coeso, pois o esquecimento significa o seu

desmembramento e o estilhaçamento da identidade construída.

Entretanto, o que as experiências de ações coletivas de luta pela

terra apresentam de mais inovador é um formato de organização em

redes, buscando a articulação com outros movimentos sociais e

organizações não-governamentais para discussão e realização de projetos

comuns, mediante a formação de múltiplas redes sócio-políticas4 que se

constroem nesta era da informação.

3Para a noção de memór ia cole t iva , r emetemo-nos a HALBAWCHS (1990) , cuja contr ibuição é fundamenta l para compreende r a memór ia não como a tr ibuto individual , passando a ser considerada como par te de um processo soc ia l , em que os aspectos da consc iênc ia pessoal encontram-se l igados a de terminantes soc ia is . 4Tais redes sóc io-pol í t icas a tuam como mediadoras entre a soc iedade c ivi l e o Estado, agindo s imult aneamente em iniciat ivas loca is , nac ionais e internacionais , es tabe lecendo fóruns de debates sobre a questão agrár ia . Dent re as inst i t uições e organizações não-gove rnamentais que cons t i tuem es tes fóruns, des tacam-se: Univers idades, MST, MLST, CPT, Cár i tas Bras i le i ra , CONTAG, CUT, FASE, IBASE, entre out ras .

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Dessa maneira, podemos afirmar que o processo de globalização

não apagou as práticas e experiências de luta dos movimentos sociais no

campo, mas possibilitou a eles uma nova roupagem.

As ações coletivas gestadas pelos movimentos de luta pela terra

apresentam avanços e recuos. Entretanto, nesse cenário turbulento de

mudanças, eles continuam marcando presença no espaço político,

interpelando a realização de uma reforma agrária que promova mudanças

estruturais no campo, além de buscar novos ideais que contribuam para a

construção de uma sociedade mais democrática, dando-nos uma lição de

cidadania.

É nessa abordagem que este estudo se insere. Ao analisar as

práticas sociais de luta pela terra, desenvolvemos algumas reflexões que

nos permitiram compreender tais práticas como o processo de

constituição da identidade e da cidadania está entrelaçado ao movimento

de territorialização desencadeado pelos movimentos sociais no campo,

processo entendido como construção político-espacial. Para tanto, o

território, lugar onde os trabalhadores vivem, produzem e constituem

novas sociabil idades, é redesenhado por tais movimentos, contribuindo

para o reordenamento territorial brasileiro. Afinal, não podemos refletir

sobre a realidade agrária brasileira neste início de milênio, sem levar em

consideração o papel desempenhado pelos movimentos dos trabalhadores

sem-terra no reequilíbrio territorial.

Para compreender as práticas sociais impressas pelos movimentos

de luta pela terra, as contribuições de DOIMO (1986), DURHAM (1984),

EVERS (1984), GOHN (1997), MELUCCI (1989), PAOLI (1984) e

SADER (1988) constituem referenciais teóricos fundamentais. Tais

estudos apontam para uma nova alternativa metodológica, que rompe

com a representação homogeneizante dos movimentos sociais,

especialmente, uma certa versão do marxismo, que reconhece esses

movimentos como personificação da estrutura econômica.

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Os esquemas teóricos, inspirados na concepção marxista-leninista,

que interpretam os movimentos sociais como movimentos de massa5 ,

supostamente pouco estruturados e subordinados às organizações

sindicais ou mesmo à liderança polít ico-partidária - única instituição

supstamente apta a fazer política (EVERS, 1984) -, são considerados

insuficientes para compreender a dinâmica por eles imprimidas na

sociedade contemporânea.

Uma gama de estudos referentes à emergência de novos

movimentos sociais (DOIMO, 1986; EVERS, 1984; GOHN, 1997;

MELUCCI, 1989; PAOLI, 1984; SADER, 1988) contribuíram para a

compreensão de uma nova forma de fazer política marcada pelos

movimentos, constituída com base na sociedade civil e não apenas na

esfera estatal. Tais matrizes teóricas destacam os fatos conjunturais,

micro, do cotidiano, ao negarem as concepções que valorizam o poder

das determinações macro-estruturais. Nesse sentido, a nova abordagem

teórico-metodológica sobre os movimentos sociais ressalta a emergência

de um novo sujeito histórico, não mais configurado pelas contradições do

capitalismo ou formado pela “consciência autêntica” da vanguarda

partidária. Ao contrário, esse novo sujeito que desponta é considerado

“(. . . ) um cole t ivo di fuso, não-hierarquizado, em luta contra as

discr iminações de acesso aos bens da modernidade e, ao mesmo

tempo, crí t ico dos seus e fe i tos nocivos, a part i r da fundamentação

de suas ações em valores t radicionais , sol idários, comuni tários .

Portanto, a abordagem elimina a centralidade de um suje i to

espec í f ico, predeterminado, e vê os part icipantes das ações

cole t ivas como atores sociai s” (GOHN, 1997:123) .

Tais estudos apontam para a emergência dos movimentos sociais

no cenário político, demonstrando que o desenvolvimento de suas

práticas reivindicativas, de luta e resistência, colocaram “em xeque a

separação de uma esfera pública - estatal e portanto polít ica, e a esfera

5Na concepção dos movimentos de luta pe la ter ra, a luta por reforma agrár ia tem um cará ter corpora t ivis ta , necessi t ando obter um caráter massivo e cl ass is ta . Para esse s movimentos, a luta por te rra está vinculada a uma est ra tégia revoluc ionár ia, tendo um cará ter necessar iamente soc ial i s ta .

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privada - individual e portanto não-política” (PAOLI, 1984:56),

indicando os novos espaços políticos criados por esses movimentos, uma

vez que suas experiências de luta conduzem a novas relações com a

esfera pública, emergindo daí um sujeito novo, questionador da ordem

política centrada no Estado, buscando uma nova ordem baseada na

democracia direta e participativa.

Assim, na nova abordagem sobre os movimentos sociais, as

categorias teóricas como participação, experiência, direitos, cidadania e

identidade coletiva projetam-se para além das tradicionais temáticas das

classes.

Dessa maneira, as contribuições teóricas do novo paradigma sobre

os movimentos sociais são fundamentais, ao apontarem para uma

alternativa metodológica que realça a possibi lidade da constituição de

práticas democráticas na sociedade contemporânea.

Com essas referências, procuramos pensar o processo de luta pela

terra com base nas experiências cotidianas vividas pelos novos sujeitos

da fazenda Nova Santo Inácio Ranchinho. Para isto, utilizamos a

memória como fio metodológico deste trabalho, remetendo-nos aos

estudos de BOSI (1987) e HALBAWACHS (1990).

Para BOSI (1987:17), a memória não é sonho, mas trabalho. Por

isso mesmo,

“(. . . ) lembrar não é reviver , mas refazer, recons truir, repensar com

imagens e materiais e idé ias de hoje, as exper iênc ias do passado

( . . . ) A lembrança é uma imagem cons truída pelos materiai s que

estão agora à nossa disposição, no conjunto de representação que

povoam nossa consci ência atual . Por mais n í t ida que nos pareça a

lembrança de um fato antigo, e la não é a mesma imagem que

experimentamos na infância, porque não somos os mesmos de então

e porque nossa percepção al terou-se e com ela nossas idé ias ,

nossos juí zos de real idade e de valor.

Pela sua plasticidade, a lembrança é um material complexo para

ser organizado como fonte de pesquisa, já que ela não se constitui como

história pronta e porque é recortada pelo gosto do recordador.

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Entretanto, nem por isso a memória deve ser desprezada pelo

pesquisador, já que ela não faz parte apenas das lembranças de um

sujeito, mas de toda uma comunidade. No dizer de BOSI (1987), a

memória individual está amarrada à memória do grupo e esta à coletiva.

Por sua vez, a noção de memória coletiva está entrelaçada à idéia

de identidade e vice-versa. O sentido de continuidade presente em um

indivíduo ou grupo social depende, portanto, do que é lembrado ao longo

do tempo, assim como o que é lembrado depende da identidade de quem

lembra. Nesse sentido, a contribuição de HALBAWACHS (1990) é

fundamental para compreender a memória não como um atributo

estritamente individual, passando a ser considerada como parte de um

processo social em que aspectos da consciência pessoal encontram-se

ligados a determinantes sociais (HALBAWACHS; 1990:55).

Na busca da reconstituição da trajetória de lutas vividas pelos novos

sujeitos da Nova Santo Inácio Ranchinho, trilhamos tanto as experiências

individuais, como os acontecimentos vivenciados por todos. Dessa

maneira, o entrelaçamento da memória individual com a memória

coletiva assume um significado especial, que nos permite compreender

que o resgate da lembrança só é possível porque o grupo se mantém

coeso, pois o esquecimento significa o seu desmembramento e o

estilhaçamento da identidade construída.

Recuperar a his tória da luta dos trabalhadores pelo direito do acesso

à terra constitui-se um desafio. Trata-se de um percurso, cujos registros

foram resgatados por meio de entrevistas não-diretivas, de forma a

intervir o menos possível na fala dos entrevistados. Uma das

características desse tipo de entrevis ta é a sua habilidade em “explorar o

universo cultural próprio de certos indivíduos em referência às

capacidades de verbalização específica do grupo a qual pertencem”

(THIOLLENT, 1982:81), possibilitando, assim, o resgate da memória dos

entrevistados e o aprofundamento mais sistematizado do tema da

pesquisa. Por conseqüência, a condução das entrevistas deu-se a partir

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da indicação de um roteiro, previamente elaborado, que orientou o

desenvolvimento dos relatos dos indivíduos, permitindo a exploração de

seu universo sociocultural, sem um questionamento forçado. Uma outra

técnica utilizada foi a apresentação de fotografias e reportagens de

jornais aos entrevistados, como forma de iniciar o diálogo, além de nos

permitir reconstituir momentos significativos das experiências por eles

vivenciadas.

Para a orientação dos relatos orais produzidos pelos trabalhadores,

recorremos às consultas de fontes documentais, por meio do

levantamento e análise de documentos, entre os quais, os jornais da

imprensa nacional e regional, relatórios produzidos por órgãos

governamentais, além de panfletos e documentos elaborados pelos

próprios trabalhadores.

Desse modo, procuramos desenvolver nossa pesquisa, tentando não

só resgatar a história das lutas vividas pelos trabalhadores rurais, hoje

agricultores familiares da fazenda Nova Santo Inácio Ranchinho, mas,

sobretudo, articular suas experiências com a realidade objetiva, que se

apresenta como cenário de luta.

O capítulo primeiro desta dissertação consiste em apresentar o

cenário de fundo estrutural no qual os t rabalhadores travaram suas lutas.

Nele analisamos como a política de modernização da agricultura

implementada na região do Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba, por meio

de planos de desenvolvimento e ocupação no cerrado, foi marcada por

uma forte exclusão social, produzindo efeitos perversos para os

trabalhadores rurais. Demonstramos que os impactos resultantes do

processo de modernização nessa região favoreceram o movimento de luta

pela terra em Iturama.

O segundo capítulo recupera, através da memória, a trajetória de luta

vivenciada pelos sujeitos que demandavam terra, procurando desvelar

como viveram esses anos todos; como rememoram suas histórias de vida,

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o que determinou a construção de uma organização coletiva, impondo

para o espaço público o reconhecimento de suas experiências como

cidadãos; como gestaram um projeto coletivo de luta por terra, tecendo

regras de convivência e estratégias utilizadas para a disputa de um

território, manifestando sua emergência no cenário político.

Por fim, o capítulo terceiro analisa as mudanças ocorridas com a

conquista do direito ao acesso à terra, indicando como se deu o

parcelamento e a reconfiguração do terr itório conquistado pelos

trabalhadores, a organização produtiva do assentamento e a inserção dos

agricultores no mercado de produção, as novas formas de sociabilidade

vividas no espaço conquistado, a forma interna de organização no

assentamento, bem como as novas perspectivas de vida desses

agricultores, mediada pela cidadania utópica e a realidade vivida.

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1 - MODERNIDADE E MODERNIZAÇÃO DA

AGRICULTURA NO TRIÂNGULO

MINEIRO/ALTO PARANAÍBA

Para inserir as experiências e práticas vivenciadas pelos

trabalhadores rurais - hoje agricultores familiares da Fazenda Nova

Santo Inácio Ranchinho - no processo de conquista da terra, faz-se

necessário compreender o cenário regional no qual esses trabalhadores

travaram suas lutas. Afinal de contas, o contexto maior, que gestou os

movimentos de luta por terra, está relacionado com a resistência da

população rural ao processo econômico e polít ico provocado pela rápida

modernização da agricultura. Como indica GRZYBOWSKI (1994), os

problemas enfrentados pelos trabalhadores do campo, que por trás de

diversas formas de integração, exploração e marginalização acabaram por

aprofundar as desigualdades e a exclusão social, não se deram em razão

da falta do desenvolvimento, mas, ao contrário, deveram-se ao “sucesso”

do modelo modernizador. No entendimento desse autor, “a desigualdade

e a exclusão no campo existiam desde antes do processo modernizador,

mas através deste processo reproduziram-se em escala ampliada”

(GRZYBOWSKI, 1994:290).

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1.1 - Os desencontros da modernidade na realidade

agrária brasileira

“Produz ir cada vez mai s a l imentos para sua população e para exportação deve ser a meta de qualquer governo, espec ialmente no caso do Bras i l onde já somos 140 milhões de habi tantes e cuja principal fonte de recursos é a agricul tura.

A região dos Cerrados, que ocupa cerca de 207 mi lhões de hec tares do te rr i tório brasi leiro, sendo considerada uma das maiores áreas de expansão agr ícola do Bras i l e do mundo, tem contribuído para o aumento da produção de al imentos. Hoje com a exploração de apenas 10% de sua área agricul táve l , part ic ipa com 30% da produção nacional de grãos e com 40% de carne .

( . . . ) O Centro de Pesquisa Agropecuária dos Cerrados - CPAC foi cr iado com o obje t ivo de gerar conhecimentos que permit i ssem o estabelec imento de uma agricul tura moderna, auto-sustentada, que conservasse os recursos naturais de forma a permi t i r uma ocupação rac ional da região dos Cerrados” (BRASIL. Minis tér io Da Agricul tura, do Abastec imento e da Reforma Agrária : 1991) .

O trecho acima transcrito refere-se à apresentação do Relatório

Técnico Anual do Centro de Pesquisa Agropecuária dos Cerrados (1985 -

1987), redigido por José Roberto Rodrigues Peres, exibindo um discurso

representativo do imaginário governamental sobre a moderna agricultura

brasileira, implementada pelos programas de desenvolvimento agrário.

Nesse relatório, a região dos cerrados, tida como “grande celeiro de

alimentos do mundo”, aparece como espaço do progresso, da produção de

uma tecnologia avançada, já que incentiva a exploração da agricultura de

forma racional. A moderna agricultura f igura como elemento-chave do

progresso, do avanço, privilegiando agricultores com “espírito

empresarial” , em contraposição ao modelo “arcaico”, da tradicional

agricultura praticada nessa região.

A meta de “produzir cada vez mais alimentos para a população e

para exportação” expressa a euforia do poder público com as super-

safras, fazendo crer que a modernização da produção agrícola do cerrado

produziria impactos sociais inevitavelmente benéficos para a população.

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De fato, mais se fala da modernidade no espaço agrícola do que,

efetivamente, ela é. A miséria, o subemprego, o desemprego, a exclusão

social, os pobres, migrados do campo, produzidos pelo desenvolvimento

da agricultura, não aparecem no discurso governamental, pois fazem

parte de um passado que, supostamente, não é o tempo da modernidade.

Desse modo, recuperamos a teoria interpretativa desenvolvida por

MARTINS (2000), indicando que o processo de modernização da

agricultura é acompanhado pela reprodução do atraso: a manutenção dos

privilégios, o clientelismo polí tico, a privatização da esfera pública -

t ípicos de nossas raízes coloniais.

De acordo com MARTINS (2000), a modernidade no Brasil é

constituída pelos desencontros de tempos históricos, pelos ritmos

desiguais de desenvolvimento econômico, pelo acelerado avanço

tecnológico, pela acumulação de capital desproporcional, enfim, pela

crescente miséria globalizada. A persistência do passado, que se esconde

por t rás das aparências do moderno, faz com que a sociedade brasileira

seja marcada pela história inacabada, pela modernidade inconclusa,

reveladoras das nossas determinações estruturais. Tal reflexão permite-

nos compreender o dilema enfrentado pela sociedade brasileira, que, ao

optar pela modernização, aceita a exclusão de amplos setores da

população. Como mostra LECHNER (1990), o processo contraditório de

modernização, implementado pela expansão do capitalismo, introduz um

novo tipo de dualismo na sociedade brasileira. Não se trata de um setor

tradicional justaposto ao setor moderno, como interpretava a teoria dos

“Dois Brasis”6, podendo ser simplesmente considerado como “obstáculo

ao desenvolvimento” deste último, mas sim de uma exclusão produzida

6Refer imo-nos aqui à vi são dual i s ta produz ida por Jacques Lambert , que produz a imagem de dois Brasis : um, onde a soc iedade era tradiciona l , regionali s ta , dis tr ibuída por cr i té r ios r ígidos de hierarquia e out ro, onde a sociedade já t inha entrado na modernidade e nos padrões mais univer sais de or ientação LAMBERT, apud SADER e PAOLI (1986) .

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pela própria modernização. Esse novo dualismo instala-se em um mesmo

e único marco espacial e temporal.

Os indicadores mais notáveis desse caráter excludente da

modernização da agricultura são a elevada sazonalidade do emprego

agrícola no campo e a concentração fundiária.

A literatura sobre a introdução de um novo padrão tecnológico da

agricultura brasileira - denominada “Revolução Verde”7 - aponta-nos que

as mudanças estruturais ocorridas no campo propiciaram a dispensa, por

parte dos empresários rurais, da mão-de-obra permanente, substituindo-a

pelo trabalho temporário. O progresso técnico na agricultura não

conseguiu atingir todas as fases do ciclo produtivo, especialmente no

período da colheita, que é dos mais exigentes em termos de mão-de-obra,

reforçando as oscilações sazonais próprias do calendário agrícola,

engendrando, assim, um grande contigente de assalariados rurais,

conhecidos como volantes ou bóias-frias. Tais trabalhadores encontram

trabalho somente no pico da safra agrícola, sendo utilizados em culturas

modernas, como força de trabalho em tarefas que não foram ainda

mecanizadas.

Como bem afirmam D’INCAO (1983) e MICHELOTO (1980), tais

tarefas são remuneradas por produção, o que permite maior intensidade

do trabalho, valendo-se da exploração do trabalhador volante pela

extração da mais-valia absoluta. De acordo MICHELOTO, “tal

exploração apresenta-se como vantajosa para o capitalista, sempre que

comparada com técnicas mais avançadas e produtivas, porém

dispendiosas” (MICHELOTO, 1980:38). Por sua vez, D’INCAO (1983)

demonstra que a mecanização da lavoura não se apresenta como

7O pacote tecnológico da chamada “Revolução Verde” - composto de sementes melhoradas , mecanização, insumos químicos e b iológicos - foi introduzido no Brasi l na tenta t iva de viabi l izar a modernização, ace lerando a produção agr ícola por meio de sua padronização em bases industr iai s . Sobre esse tema, ver MARTINE (1987) .

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vantagem para os empresários rurais, em razão da facilidade de

arregimentação e do baixo custo do trabalho bóia-fria.

As tarefas remuneradas por produção obrigam os trabalhadores

bóias-f rias a incorporarem o trabalho infantil não-remunerado, como

forma de garantir o nível de renda familiar e, conseqüentemente, a

reprodução social desses trabalhadores. Tais incorporações configuram-

se como relações de trabalho não-capitalistas, que coexistem com

modernas relações capitalistas. Afirma MARTINS (1997:96) que essas

relações de trabalho socialmente irracionais enquadram-se,

perfeitamente, no processo de reprodução ampliada do capital, sendo

mais lucrativas do que as relações puramente assalariadas, definidas por

um padrão t ípico racional e legal existente entre empresários e

trabalhadores. No dizer desse autor, “a chamada acumulação primitiva

do capital, na peri feria do mundo capitalista, não é um momento

precedente do capitalismo, mas é contemporânea da acumulação

capitalista propriamente dita” (MARTINS, 2000:37).

A literatura sobre as transformações ocorridas nas relações agrárias

do agro brasileiro (GRAZIANO DA SILVA, 1999; KAGEYAMA et

al. ,1990; LEITE, 1995; MARTINE, 1991) evidencia que o modelo de

modernização da agricultura brasileira engendrou efeitos sociais,

econômicos e ambientais perversos, demonstrando o seu caráter

excludente e conservador.

Na verdade, modernização agrícola é a denominação dada ao

processo de expansão do capitalismo no campo, sendo objeto de crítica

por um conjunto de especialistas sobre a questão agrária no Brasil , que

utiliza a expressão modernização conservadora para caracterizar o padrão

de transformação tecnológica da agricultura. Modernização, porque

possibilitou mudanças na base técnica da produção agrícola, adotando o

uso de máquinas, equipamentos e insumos químicos para aumentar a

produção e a produtividade. Conservadora, porque não alterou a

tradicional estrutura fundiária do País, pelo contrário, produziu um

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efeito concentrador, além de propiciar uma exclusão crescente da massa

de trabalhadores rurais (GUANZIROLI e FIGUEIRA, 1986).

Dessa maneira, concordamos com MARTINS (1999), ao concluir

que nosso processo de modernização deu-se no marco da tradição, em

que formas sociais capitalistas e não-capitalistas são contemporâneas e

coexistem no mesmo espaço, configurando-se como uma modernidade

inacabada e um progresso incompleto. Assim, a expansão do capitalismo

no campo não só não eliminou relações sociais arcaicas e excludentes,

mas reproduziu-as sob uma nova roupagem.

A part ir dessas observações, interessa-nos recuperar a história do

processo de modernização, particularmente dos planos de

desenvolvimento implementados pelo Estado no Triângulo Mineiro/Alto

Paranaíba, que priorizaram grandes investimentos no setor agrícola,

dotando-o de bases empresariais sólidas, excluindo, assim, a produção

familiar do processo de desenvolvimento. Para tanto, procuramos

resgatar impactos que a modernização agrícola trouxe para os

trabalhadores rurais, além de buscar os significados da modernização

para os sujeitos da luta pela terra.

1.2 - A modernização da agricultura no Triângulo

Mineiro/Alto Paranaíba e seus impactos para os

trabalhadores rurais

O grande dinamismo evidenciado pelos planos de desenvolvimento

rural implementados no Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba8 trouxe, sem

8Definimos aqui o Tri ângulo Minei ro/Al to Paranaíba , de acordo com o IBGE, como uma mesorregião que engloba a s micror regiões de Uberlândia, Uberaba , Pa troc ínio, Patos de Minas, Frutal , Araxá e Itu iutaba.

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dúvida, aspectos positivos na forma de inovações mecânicas

(intensificação do uso de tratores e implementos), f ísico-químicas (uso

intensivo de corretivos, fertilizantes e agrotóxicos) e biológicas (uso de

sementes selecionadas), contribuindo para o aumento da produção e da

produtividade no setor agropecuário, além de proporcionar elevadas

taxas de crescimento regional. Contudo tal política de modernização,

marcada por uma forte exclusão social, produziu efeitos perversos sobre

os trabalhadores rurais da região, agravando, assim, as condições de vida

e de trabalho no campo.

Compreender as implicações sociais produzidas pelos planos de

desenvolvimento e de ocupação do cerrado exige que se analisem as

mudanças ocorridas na base técnica da produção agrícola, resultantes do

processo de modernização.

Como assinalam vários autores (GRAZIANO DA SILVA, 1999;

KAGEYAMA et al. , 1990; LEITE, 1995; MARTINE,1991), o processo de

modernização da agricultura no Brasil tem suas origens na implantação

de um parque industrial extensivo, a partir da década de 1950, pelo qual

se pretendia acelerar o processo de substituição de importações. A

efetivação desse modelo deu-se fundamentada em uma nova política de

desenvolvimento implementada pelo Estado a part ir de 1964, por meio da

adoção de um pacote tecnológico popularmente chamado de “Revolução

Verde”. Tal pacote preconizava, mediante uma mudança na base técnica

da produção, o aumento da produtividade agrícola para amenizar o

problema da fome, escondendo suas verdadeiras intenções: garantir a

expansão capitalista no campo. Por sua vez, a consolidação desse

processo de expansão do capitalismo seria viabil izada por ações

implementadas pelo Estado para a t ransformação da agricultura,

conjugadas aos interesses do capital estrangeiro, que era atraído para a

implantação da modernização no Brasil.

Como mostra LEITE (1995), o processo de modernização da

agricultura brasileira pode ser consubstanciado nos seguintes aspectos:

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- adoção de um novo padrão tecnológico, fundamentado no

binômio química-mineral / mecanização, que condiciona a

produção ao uso integrado de máquinas e de insumos químicos;

- aumento da produção e da produtividade, sem alterar a estrutura

fundiária;

- consolidação de uma novo padrão técnico da agricultura, com a

formação de complexos agroindustr iais , o que implicou uma

integração à montante, com a indústria químico-farmacêutica e

de bens de capital, e à jusante, com a indústria processadora;

- crescimento da participação da agricultura brasileira no mercado

externo, fundamentado tanto numa polí tica de desvalorização

cambial, como na substituição de culturas tradicionais (feijão,

mandioca, arroz) por culturas agroindustrializáveis (soja, café,

milho, cana, entre outras), voltadas para a exportação;

- constituição do crédito agrícola subsidiado, por meio da

implantação do Sis tema Nacional de Crédito Agrícola, como

instrumento fundamental de intervenção do Estado, no sentido

de promover a industrialização da agricultura. Tal política de

crédito privilegiou grandes produtores da região Centro-Sul e

produtos exportáveis.

No bojo desse processo de modernização da agricultura, desenha-

se um novo espaço agrário, resultante de um padrão de desenvolvimento

rural implementado pelo Estado. Ao adotar mecanismos de ação da

política agrícola por meio dos programas especiais de ocupação da

fronteira agrícola, visando incorporar terras agricultáveis ao sistema

produtivo, o Estado preconiza,

“(. . . )a urgência de se promover a expansão da f ronte ira - a través da ut i l i zação crescente de técnicas modernas no uso e mane jo do solo - como condição necessária tanto para maximização dos benef ícios como para uma integração mais e fet iva des tas

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áreas[agr ícolas] ao processo de desenvolv imento do País como um todo” (SALIM, 1986:298) .

O processo de difusão de um novo padrão de desenvolvimento

rural alcançou a região do cerrado brasileiro, num movimento de

ocupação das áreas agrícolas iniciado no Triângulo Mineiro/Alto

Paranaíba.

É a partir da implementação dos programas governamentais de

expansão agrícola na região, desde meados da década de 1970, que se

buscou incentivar a prática de uma agricultura “moderna e racional” no

que se refere ao emprego de novas técnicas e de processos capazes de

proporcionar mudanças na base técnica de produção, enfim, de uma nova

forma de produzir, em detrimento da tradicional agricultura praticada na

região até aquele momento. Sinônimo da expansão capitalista no campo,

o modelo de desenvolvimento agrícola adotado por esses programas

privilegia os indivíduos dotados do chamado “espírito empresarial”,

beneficiando as empresas rurais pela oferta de subsídios, incentivos e

créditos a juros baixíssimos, além da adoção de assistência técnica, de

uma grande atividade de pesquisa e extensão agrária, bem como de

investimentos de infra-estrutura (eletr ificação rural, armazenamento,

construção de estradas, dentre outros).

Nesse contexto, a agropecuária passa a ser vinculada aos interesses

da indústria do início ao f inal do processo produtivo. Como observa

SALIM (1986:300),

“(. . . ) durante a década de 60, observou-se uma redefin ição das re lações entre agricul tura e indústr ia, uma vez que os arranjos ante riores já evidenciavam sinai s de esgotamento em razão dos problemas com abastec imento do mercado interno de al imentos, com as exportações, baixa produt ividade , e tc . Em função das redef in ições adotadas, o se tor agrícola, que já se encontrava em posição desfavoráve l em re lação à indús tr ia, sofre mudanças no seu processo de produção para, cada vez mais , poder atender os in teresses indus tria is emergentes.”

A agropecuária organizada nas bases indicadas é estimulada por

diversas medidas de política agrícola e por programas governamentais,

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tendo como suporte a implementação dos Planos Nacionais de

Desenvolvimento - PND’s - , sobretudo o I PND (1972 / 1974) e o II

PND (1974 / 1979). Tais planos objetivavam, como apontam PESSÔA

(1988) e SALIM (1986), tanto a alteração do desempenho do setor

agropecuário, mediante a modificação dos métodos de produção, quanto

modernizar e dotar as atividades agropecuárias de bases empresariais.

Evidenciavam, assim, a necessidade de ocupação dos “espaços vazios”,

especialmente das áreas de cerrado, que deveriam ser incorporadas à

economia nacional, por meio de programas especiais de ocupação

agrícola, como o Programa de Crédito Integrado e Incorporação dos

Cerrados - PCI -, o Programa de Desenvolvimento dos Cerrados -

POLOCENTRO -, o Plano de Assentamento Dirigido do Alto Paranaíba -

PADAP - e o Programa de Cooperação Nipo-Brasileira para o

Desenvolvimento Agrícola dos Cerrados - PRODECER.

O primeiro plano de desenvolvimento do cerrado mineiro foi o

Programa de Crédito Integrado e Incorporação do Cerrado - PCI -,

implementado pelo Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais -

BDMG-, em 1972. Tal programa tinha o objetivo de promover a

transformação tecnológica na agricultura em uma área de 292.798

hectares nos cerrados de Minas Gerais, abrangendo as áreas do Triângulo

Mineiro, Alto Paranaíba, Paracatu, Alto e Médio São Francisco e

Metalúrgica. Como observam SALIM (1986), GUANZIROLI e

FIGUEIRA (1986), o PCI atingiu, no período de 1972 a 1974, uma área

de 111.025 hectares, número inferior em 50% da área prevista,

financiando 230 projetos, procurando atender aos grandes e médios

proprietários rurais, com área média de 483 hectares, o que demonstra o

caráter seletivo do programa, criando condições propícias para

modernizar a agricultura, concentrando recursos nas mãos de poucos

privilegiados, que se beneficiaram com juros baixos (0,6 % ao mês), com

prazo de carência variando entre 2 a 3 anos, além de um prazo bastante

elástico para amortização da dívida.

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Paralelamente ao PCI, o Governo de Minas implementou, no

mesmo período, o Programa de Assentamento Dirigido do Alto Paranaíba

- PADAP -, desapropriando uma área de 60.000 hectares, local izada entre

os municípios de São Gotardo, Ibiá, Rio Paranaíba e Campos Altos.

Como atestam GUANZIROLI e FIGUEIRA (1986:6).

“Um dos fa tores que pesou na e scolha da área foi a exis tênc ia de um complexo la t i fúndio-minifúndio, que permi t ia a aplicação do Estatuto da Terra, mediante desapropr iação por in te resse soc ial . F icou ev idenciado, assim, que os ‘setores modernos’ das c lasses dominante s, quando possuem um proje to que as beni f ic ia, são capazes de enfrentar os la t i fundiár ios .”

Para criação do PADAP, o governo mineiro por intermédio do

então Secretário de Agricultura, Alyson Paulinelli , assinou um convênio

com a Cooperativa Agrícola de Cotia, que se responsabilizou tanto pela

formação dos núcleos de colonização, como pela seleção dos colonos,

cooperados vindos do sul do país, todos niseis.

De acordo com PESSÔA (1988), a população local não foi

privilegiada pelo novo processo produtivo. A maioria foi vendendo suas

terras e instalando-se nas periferias das cidades, incorporando-se ao

processo produtivo como mão-de-obra temporária.

Por sua vez, o emprego da tecnologia na produção de grãos (milho,

soja e trigo) para a exportação produziu, na região, uma enorme mudança

no que se refere às relações da agricultura com o setor industrial, que

passou a ser fornecedor de insumos e comprador de matérias-primas.

O Programa de Desenvolvimento dos Cerrados - POLOCENTRO -

foi criado em 1975, com o objetivo de incentivar e apoiar a ocupação de

áreas dos cerrados na região do Centro-Oeste brasileiro, abrangendo os

estados de Minas Gerais (regiões do Triângulo Mineiro, Alto Paranaíba,

Paracatu e Alto Médio São Francisco), Goiás, Mato Grosso e Mato

Grosso do Sul.

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Tendo sua sustentação no II PND, que considerava a região dos

cerrados como a mais promissora para a lcançar a expansão agrícola, o

POLOCENTRO tinha como propósito incorporar 3,7 milhões de hectares

do cerrado ao processo produtivo, sendo 1,8 milhão com lavouras, 1,2

milhão com pecuária e 700 mil hectares com reflorestamento,

mobilizando, assim, tanto recursos reversíveis em linhas de crédito rural

“subsidiado a taxas de juros inferiores às vigentes e enriquecido por

condições atraentes de prazo, de amortização e carência” (FERREIRA,

1985:13)9, como não-reversíveis (a fundo perdido) no setor de

transportes, pesquisa agropecuária, armazenamento, energia e assistência

técnica.

Em que pesem os êxitos obtidos pelo POLOCENTRO em termos de

incremento da produção e da produtividade, os grandes proprietários

foram os maiores beneficiários do programa. Conforme indica

FERREIRA (1985), os financiamentos do POLOCENTRO foram

distr ibuídos em valores crescentes, de acordo com o tamanho da

propriedade.

A TABELA 1 a seguir mostra a distribuição dos créditos entre os

diferentes estratos de área.

TABELA 1 - Distr ibuição dos créditos do POLOCENTRO Estratos de área Recursos de crédito l iberados - de 100 hec tares 0,38% 100 - 200 hec tares 1,78% + de 500 hectares 76,45% Fonte: Fundação João P inhei ro apud FERREIRA (1985) .

Os dados expostos na TABELA 1 evidenciam que os grandes

proprietários absorveram a quase totalidade dos recursos f inanciados,

beneficiando-se, portanto, dos créditos governamentais altamente

subsidiados. Em contrapartida, os pequenos foram praticamente

9De acordo com GUANZIROLI e FIGUEIRA (1986) , a s condições de pagamento do crédi to rura l do POLOCENTRO são as seguintes: prazos de amor tização de 12 anos, taxas de juros infer ior es à s vigente s no mercado e sem inc idência de correção monetár ia .

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excluídos dos créditos liberados pelo POLOCENTRO, no seu período de

vigência.

Como afirmam GUANZIROLI e FIGUEIRA (1986) e PESSÔA

(1988), a atuação desse programa, que visava à modernização da

agricultura, produziu uma nova configuração no espaço agrário,

introduzindo novas culturas (soja, café) no cerrado, além de proporcionar

a valorização do preço da terra, em razão da infra-estrutura implantada

na região.

Segundo esses autores, os recursos do POLOCENTRO começaram

a ser reduzidos, a partir de 1979, objetivando diminuir a especulação

com terras, de forma a facilitar a aquisição destas pela Companhia de

Promoção Agrícola - CAMPO -, empresa responsável pela coordenação

do PRODECER.

Ainda de acordo com GUANZIROLI e FIGUEIRA (1986:117), “o

Estado realizou com o POLOCENTRO, toda a infra-estrutura necessária

à produção agrícola, sendo quase que integralmente aproveitada para a

implantação do PRODECER.”

O Programa de Cooperação Nipo-Brasileiro para o

Desenvolvimento dos Cerrados - PRODECER - é resultado de um acordo

estabelecido entre os governos brasileiro e japonês, objetivando a

incorporação da área dos cerrados ao cultivo de grãos, assim como o

incentivo a uma estrutura agrícola moderna, fundamentada na criação de

grandes unidades de produção em bases empresariais, na ut ilização de

insumos modernos e na produção voltada para exportação.

Com o PRODECER, algumas áreas de cerrado foram incorporadas

ao processo de exploração agrícola, mediante projetos de colonização

implementados pela CAMPO - Companhia de Produção Agrícola -,

empresa de capital binacional, constituída dos 51% do capital

pertencentes à Companhia Brasileira de Participação Agroindustrial

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(BASAGRO) e dos 49% pertencentes à holding japonesa Japan-Brazil

Agricultural Development (JADECO). A CAMPO selecionou produtores

ligados a grandes cooperativas agrícolas, advindos geralmente do sul do

Brasil , realizando assentamentos dirigidos em três municípios de Minas

Gerais, a saber, Iraí de Minas, Coromandel e Paracatu10.

Vale ressaltar que o modelo agrícola proposto pelo PRODECER

beneficiou os colonos de fora em detrimento dos proprietários

tradicionais residentes na região. Na redistr ibuição de terras para os

projetos de colonização, os antigos proprietários desfizeram-se das áreas

de chapadas, adquirindo "terras de cultura" nas vertentes, com relevo

impróprio para a mecanização, encontrando-se hoje em situação bastante

dif ícil .

Observa-se ainda, que, no processo de seleção dos colonos, a

CAMPO optou por escolher agricultores que tivessem bom potencial

empresarial e habil idades de gestão tecnológica das glebas nos moldes

por ela estabelecidos.

Contando com grande aporte de recursos f inanceiros, sobretudo

destinados à aquisição de terras e infra-estrutura básica, o PRODECER

beneficiou as grandes propriedades, como forma de garantir a obtenção

de altos recursos creditícios para incorporar maquinário e o volume de

insumos recomendados pela moderna agricultura implementada na

região.

Os programas de ocupação dos cerrados aceleraram o processo de

transformação do espaço agrário no Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba,

marcado, antes, pela criação extensiva de gado de corte e por uma

agricultura de subsistência, incrementando a produção de grãos voltada

para o mercado externo (PÉRET, 1997). Tais programas adotaram um

10O PRODECER foi d ividido em três e tapas: o PRODECER I, abrangendo os municípios de Ira í de Minas, Coromandel e Paraca tu - M.G; o PRODECER II, que incorpora agr icultores de Minas, Mato Grosso, Goiás, Bahia e Ma to Grosso do Sul; o PRODECER III incorpor a 80 mi l hecta res de te rra no Maranhão e Tocant ins.

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conjunto de medidas que possibi litou a alteração do perfil de produção

regional, com aumentos significativos em termos de produção e

produtividade, sem alterar, contudo, sua estrutura fundiária.

Por outro lado, o Estado, como agente impulsionador do processo

de modernização, buscou atrair o empresariado, oferecendo incentivos e

créditos a juros altamente subsidiados. Ficava claro que, para capitalizar

a produção agrícola e desenvolver um novo sistema produtivo, definiu-se

que os atores dos programas de desenvolvimento rural não podiam ser

nem os latifundiários tradicionais, nem os minifundistas, que não se

integraram ao mercado, mas sim os empresários rurais. Dessa maneira, o

Estado valeu-se do próprio Estatuto da Terra (1964), criado,

paradoxalmente, para realizar a reforma agrária, efetuar a desapropriação

de terras necessárias aos projetos de assentamento dirigido, como é o

caso do PADAP (GUANZIROLI e FIGUEIRA, 1986).

Na verdade, por trás do discurso dos defensores dos planos de

modernização, que preconizava o estabelecimento de polí ticas

alternativas à reforma agrária, mediante a distribuição de terras e

eliminação do latifúndio, estava o fato de que tais políticas não visavam

solucionar o problema dos trabalhadores sem-terra, mas sim viabil izar a

exploração capitalista da terra. Assim, o Estado estaria subvencionando a

agricultura moderna, que demandava o uso de insumos e equipamentos e

colaborando com o setor industrial que fabricava tais produtos.

Priorizava-se, dessa forma, a produção voltada para o mercado

internacional, em detrimento aos produtos de consumo básico para

alimentação, além de promover a territorialização do grande capital e da

burguesia rural (GRAZIANO DA SILVA, 1999).

Fazendo uma crí tica aos programas de desenvolvimento e ocupação

do cerrado, que preconizavam políticas de concessão de incentivos

fiscais e financiamento, MARTINS (1999:79-80) mostra que

“Em princ ípio, a aquisi ção de terras pelos grandes capita l i s tas do Sudeste animou o mercado imobil iár io, convertendo, por is so

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mesmo, os proprietários de terras em propr ietários de dinheiro e forçando-os , por sua vez , a agirem como capi tal i stas. Ao contrário do que ocorria com o modelo clássico da re lação com a te rra e o capita l , em que a te rra (e a renda te rr i torial , is to é, o preço da te rra) é reconhecida como entrave à c irculação e reprodução do capita l , no modelo brasi le iro o empeci lho à reprodução capi tal i sta do capita l na agr icultura não fo i removido por uma re forma agrária, mas pe los incentivos f i scais . O empresário pagava pela te rra, mesmo quando a terra sem documentação l íci ta e, por tanto, produto de gr i lagem, i s to é, de formas i l íc i tas . Em compensação, recebia gratuitamente, sob a forma de incent ivo f i scal , o capi tal de que necessi tava para tornar a terra produt iva. O modelo brasi le iro inverteu o modelo c láss ico. Nesse sent ido, reforçou poli t icamente a ir rac ional idade da propriedade fundiár ia no desenvolv imento capita l i s ta, re forçando, consequentemente, o si s tema ol igárquico ne la apoiado.”

É nesse contexto de uma contra-reforma agrária capitalista

(GUANZIROLI e FIGUEIRA, 1986), estabelecida pelos programas de

ocupação do cerrado no Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba, que

evidenciamos o agravamento dos problemas sociais, dentre os quais,

destacam-se a manutenção da concentração fundiária, a expropriação dos

agricultores familiares, a redução substancial de ocupações permanentes,

o empobrecimento crescente de parcela significativa da população, além

do aumento da sazonalidade do trabalho na agricultura e deterioração das

condições de reprodução da força de trabalho no campo.

Considerando a forte concentração fundiária resultante dos planos

e programas de desenvolvimento rural, procuramos identificar, na

TABELA 2 que se segue, as alterações ocorridas na distr ibuição

fundiária no Triângulo Mineiro.

TABELA 2 - Distribuição fundiária no Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba, 1970 - 1985

1970 1975 1980 1985 Grupos de estabelec imentos

- Hectares - Estab.

% Área

% Estab.

% Área

% Estab.

% Área

% Estab.

% Área

% 0 a 10 8 ,7 0,3 11,3 0,3 13,4 0,6 16,6 0,5 10 a 50 30,5 4,3 32,6 4,9 31,7 5,2 32,9 5,8 50 a 100 19,0 7,2 17,9 7,3 17,6 7,6 17,7 8,2 100 a 500 33,0 37,8 30,4 37,8 30,3 39,6 28,5 40,2 500 a 1000 5 ,4 19,4 4,7 18,4 4,5 18,5 1,9 17,9 Acima de 1000 3 ,4 31,0 3,1 31,3 2,5 28,5 2,4 27,4 Fonte: FIBGE. CENSOS AGROPECUÁRIOS - MG, 1970/1975/1980/1985.

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Os dados censitários, de modo geral, evidenciam que, no período

de 1970 a 1985, os estabelecimentos com menos de 10 hectares

aumentaram em 7,9%, sendo que sua área cresceu em apenas 0,2%. Ao

mesmo tempo, o número de estabelecimentos acima de 1000 hectares

diminuiu em apenas 1,0% e sua área teve um decréscimo de 3,6%. No

entanto, o grupo de estabelecimentos de 10.000 a 100.000 hectares

aumentou, em termos absolutos, de 4 para 8 estabelecimentos , sendo que

a área ocupada cresceu de 60.470 para 176.545 hectares respectivamente,

o que confirma que a estrutura fundiária permaneceu concentrada. Os

estabelecimentos entre 10 a 50 hectares, em 1970, correspondiam a

30,5% do total de estabelecimentos e 4,3% de área. Em 1985, tais

números passaram de 32,9% a 5,8%, respectivamente. Atribui-se que o

pequeno crescimento da participação destes estabelecimentos, em termos

de área ocupada, deve-se à partilha de herança de propriedades maiores.

A TABELA 3 indica a forte concentração fundiária nos municípios

da região do Triângulo Mineiro, expressa pelo índice de Gini11,

corroborando as análises sobre a permanência de uma estrutura fundiária

concentrada, sendo que a média da concentração fundiária nesta região é

de 0,778 em 1985.

Tais dados parecem demonstrar que, apesar da partilha de heranças

e mesmo com a inegável expansão do capitalismo na região, o

latifundismo mantém-se, reforçando seus bastiões fundiários.

As relações sociais de produção no Triângulo Mineiro/Alto

Paranaíba modificaram-se substancialmente nas décadas de 1970 e 1980,

em conseqüência do seu processo de modernização. A TABELA 4 indica

estas transformações.

11O índice de Gini é uma medida de grau de concentração qualquer . Ele assume va lor zero, quando a dis tr ibuição é iguali tá r ia , tendendo a va lor um quando a dis tr ibuição es tá concentrada nas mãos de uma só pessoa.

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TABELA 3 - Índice de Gini nos munic ípios do Tr iângulo Mine iro, 1985 Munic íp io Índice de Gini Cachoeira Dourada 0,817 Canápol is 0,864 Centra l ina 0,802 Fronteira 0,852 I turama 0,821 Monte Alegre de Minas 0,832 P lanura 0,858 Uber lândia 0,810 Água Compr ida 0,756 Campina Verde 0,761 Capinópol is 0,764 Conquis ta 0,777 Frutal 0,769 Gurinhatã 0,752 Indianópol is 0,782 Ipiaçu 0,793 I tuiutaba 0,758 Prata 0,764 Santa Vitór ia 0,772 Tupacigua ra 0,796 Uberaba 0,795 Ver íssimo 0,751 Araguar i 0,743 Campo Flor ido 0,744 Casca lho Rico 0,709 Comendador Gomes 0,716 Conceição das Alagoas 0,732 I tapagipe 0,734 São Francisco Sa les 0,734 P ira juba 0,680 Média do Triângulo 0,778 Fonte: FIBGE. CENSO AGROPECUÁRIO - MG, 1985. Fundação João P inhei ro. TABELA 4 - Pessoal ocupado, di str ibuído por categoria no Tr iângulo

Mineiro/Alto Paranaíba, 1970, 1975, 1980, 1985 Tipo de ocupação 1970 1975 1980 1985 Responsável e membros não-remunerados 105.369 111.575 116.167 125.575 Empregado permanente 18.351 34.605 53.696 62.097 Empregado temporár io 37.763 36.537 43.867 74.411 Parce iro 25.506 15.913 9.471 7.329 Ocupação total 147.660 198.864 224.545 264.161 Fonte: FIBGE. CENSOS AGROPECUÁRIOS - MG, 1970/1975/1980/1985.

Durante o processo de modernização, as formas tradicionais de

produção (parceiros, agregados) foram sendo destruídas. Os parceiros

tomaram outros destinos, tornando-se assalariados permanentes ou

temporários. Os dados evidenciam que o número de parceiros na região

sofreu uma queda brusca nas décadas de 1970 e 1980. Os 25.506

parceiros existentes em 1970 reduziram-se a 7.329 em 1985. Esta

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situação, em condições de concentração fundiária, representa a redução

das possibilidades de acesso à terra, refletindo a total expropriação dos

parceiros dos meios de produção, engendrando, assim, a proletarização e

as tensões sociais pela posse da terra.

Em detrimento da pequena presença de parceiros na região,

destaca-se o crescimento das formas de trabalho assalariadas, ficando

evidenciada uma crescente proletarização da força de trabalho, sendo que

aumentaram tanto os números de empregados permanentes como os de

temporários, nas décadas de 1970 e 1980.

O crescimento do emprego temporário na região pode ser explicado

pela expansão de algumas culturas que vinham se desenvolvendo na

região, que, por não terem o seu ciclo produtivo todo mecanizado, como

é o caso do plantio de cana-de-açúcar, café e laranja, ocupavam um

grande contingente de força de trabalho temporária12, particularmente,

nos períodos de colheita.

As formas de contratação temporária tornaram-se uma opção

racional, do ponto de vista empresarial , posto que o trabalho diarista

possibilitava uma redução de custos, em termos de encargos e obrigações

trabalhistas, especialmente nas lavouras como o café e cana, em processo

de expansão na região.

Nestas lavouras, a demanda pela contratação temporária tornou-se

dominante, ocasionando graves problemas sociais, pela intermitência da

renda e de trabalho que introduziram.

12No entanto, devemos ressa l ta r que, após 1985, esse compor tamento inver teu-se, começando a regis trar taxas nega tivas de cre sc imento do emprego temporár io, devido às i novações tecnológicas in t roduz idas nos processo produt ivo. É o caso do uso da mecanização em todas e tapas do processo produ tivo, especia lmente de cul turas como cana e café, t r azendo um impacto negativo para o emprego temporár io. Infe l izmente, não di spusemos de dados que confi rmassem esta tendência em 1990, pos to que o IBGE não rea l izou o Censo Agropecuár io nesse per íodo. Entre tanto, os dados fornecidos pe lo Censo de 1995/1996 evidenc iam um decréscimo signi f icat ivo do emprego temporár io na região. Sobre o impacto da mecanização no emprego rura l ver GARLIPP, 1999.

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O contingente de trabalhadores sem-terra na região crescia,

intensif icando o êxodo rural e a formação de um amplo segmento de

trabalhadores sem alternativa de emprego e renda, formando, assim, um

excedente de força de trabalho não absorvível no mercado de trabalho.

Vale ressaltar que uma parcela de trabalhadores rurais bóias-frias

constituía-se de pequenos proprietários que trabalhavam

temporariamente nas grandes propriedades, em geral, nos períodos de

safra, para complementar a renda familiar. Os agricultores familiares

constituíam o maior contingente de mão-de-obra ocupada, voltada,

principalmente para produção de subsistência. Organizada de forma

tradicional, tornou-se cada vez maior a fragilidade das unidades de

produção familiares, frente aos processos de intensificação das relações

capitalistas no campo, visto que perdiam sua condição de produtores

independentes.

O processo de expropriação dos trabalhadores rurais da posse da

terra e a expansão do trabalho assalariado, produzidos pela modernização

da agricultura, além das péssimas condições de trabalho, têm sido o

núcleo do problema social no campo. Nessas condições, ganharam

evidência na região as disputas de caráter trabalhista, ao lado dos

conflitos pela posse da terra.

Mas, como essa realidade agrária reflete-se no município de

Iturama, palco da gênese de luta pela terra dos parceleiros da Nova Santo

Inácio Ranchinho?

Localizada no Pontal do Triângulo Mineiro, Iturama destaca-se por

sua economia agropecuária, predominando a pecuária de corte (vide

FIGURA 1). Em 1992, o Jornal “Correio do Triângulo” (CAMILO,

1992) publicou uma reportagem sobre o município, indicando ser este o

dono do maior rebanho bovino de Minas Gerais, com nada menos que

743 mil cabeças cadastradas. Somadas as reses não cadastradas,

calculava-se que esse número poderia ul trapassar 1 milhão de cabeças,

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representando uma média de 22 bois por habitante. De acordo com os

dados apresentados pelo Censo Agropecuário do IBGE, as áreas de

pastagens plantadas em Iturama correspondiam, em 1985, a 73% da área

utilizada. A predominância da atividade pecuária, na década de 1980, foi

confirmada pela instalação de um frigorífico pertencente ao Consórcio

Brasil Central de Carnes (ligado ao Grupo ABC, hoje Grupo Algar,

sediado em Uberlândia), com capacidade de abate de 1.500 bois/dia,

produzindo uma média de 30 mil toneladas de carne por ano.

Outra atividade predominante no município é a produção de cana-

de-açúcar, que, estimulada pelo PROÁLCOOL13, começou a expandir-se

a partir do início da década de 1980, período em que aí se instalou a

Destilaria Alexandre Balbo, ocupando os espaços até então destinados,

principalmente, à pecuária extensiva e às plantações de milho, algodão e

arroz, produzidas pelas unidades familiares de produção.

A face agrária de Iturama, em 1985, era marcada pela grande

concentração de terra. Segundo dados do Censo Agropecuário do IBGE,

das 3.204 propriedades rurais do município, que ocupavam uma área

total de 532.357 ha, as pequenas propriedades representavam 67,73% do

total de estabelecimentos, ocupando somente 13,63% da área total. Por

sua vez, os latifúndios com mais de 1.000 ha (2,37% dos

estabelecimentos) detinham 32,93% da área total.

Demarcadas pelos cercamentos de terra que se estendiam nos

latifúndios, as formas tradicionais de produção, como a parceria e o

arrendamento, encontravam-se entrincheiradas. O depoimento do seu

Calu , um dos líderes do movimento de luta pela terra, hoje parceleiro da

Nova Santo Inácio Ranchinho, expressa bem o processo de expropriação

a que foram submetidos os arrendatários em Iturama.

13Vale ressa l tar que o município de I turama não foi contemplado pelos Programas de Ocupação do Cerrado, como o POLOCENTRO, PCI, PRODECER. O est ímulo do PROÁLCOOL no munic ípio deu-se em razão do cresc imento da produção de cana-de-açúcar na região que faz f ronte ira com o e stado de São Paulo, pr incipa l produtor e consumidor do álcool combust íve l e do açúcar .

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"Eu era arrendatário ( . . . ) Quando eu t rabaiava de empregado, nas fazenda, o patrão mi dava uma carta di anuência e cum meu próprio suor, eu trabaiava e pagava tudo no f im do ano e a inda sobrava um poquim. A gente prantava mi lho, arroiz e algodão, um ano aqui , outro al i , purque o patrão num dexava prantá num lugar só! Num ano a gente prantava a lavoura, quando chegava outro e le v inha e faz ia pasto. Até que nois f iquemo sem lugar prá prantá e fumo morar na cidade!" (seu Calu).

Não ter lugar para plantar significa perder direito ao uso da terra e

residir em cinturões de pobreza da cidade, trabalhando como assalariado

temporário. Trata-se de um processo de exclusão dos trabalhadores, que

não encontrando mais oportunidade de trabalho como arrendatários e

parceiros, começam a formar uma massa de trabalhadores rurais sem-

terra excluídos do processo de produção.

Nos depoimentos dos trabalhadores14, surge a denúncia da

precariedade de condições de vida e de trabalho dos bóias-frias.

"A vida do bóia-f r ia é mui to di f íci l . . . Não tem nenhuma segurança, né?! Levanta mui to de madrugada, muito cedo e pega aquele caminhão, vai pro t rabalho! Se você trabalhar o dia todo, cê recebe, se não t rabalhar, cê não recebe! ( . . . ) Então, cê tem que trabalhar o dia todo prá receber o seu dinheiro. . . Então não é fác i l a v ida do bóia- f r ia! É mui to tumul tuado. . . o caminhão, ora com fe rramenta, junto . . .Todo mundo corre r i sco de v ida! E depois, leva todo mundo junto, homem, mulher, cr iança, tudo mi sturado. . . Não tem nenhuma separação, prá fa lar, assim, i sso aqui vai machucar criança. . . E les querem saber se o caminhão tá lotado e tem pessoas prá t rabalhar prá eles!" (Branca) .

"A vida de berolo - denominação do t rabalhador volante na região do Pontal do Tr iângulo, - não dava não! Naquele tempo, eu ia pegá caminhão prá t rabaiá. . . 30, 25 km.. . suj ei to a morrer uma hora numa es trada aí , es trada ruim, che ia de buraco. . . sofrendo, chegando em casa se te, oi to hora da noi te , saindo no outro dia quatro, cinco hora! A vida de berolo não dá não!" (seu Calu) .

O sentido dado às experiências como assalariado temporário

denuncia uma outra face da modernização da agricultura: as precárias

condições de vida e trabalho (emprego sazonal, salários baixos, extensas

jornadas de trabalho, condições inseguras de transporte, entre outras).

Em 1989, os t rabalhadores rurais “bóias-frias” da Dest ilaria

Alexandre Balbo, em Iturama, traziam a público, mediante a mobilização

14Os depoimentos tr anscr i tos a segui r referem-se àqueles cole tados durante as entrevi s tas r ea l izadas na pesquisa de campo.

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e a greve, a situação de exclusão a que eram submetidos. A forma de

denúncia encontrada pelos trabalhadores da referida destilaria , em greve,

foi uma carta de esclarecimento à população da cidade:

ESCLARECIMENTO PÚBLICO

Devido às ex tremas dif iculdades enfrentadas pe los t rabalhadores da Dest i lar ia A lexandre Balbo, os mesmos reunidos em assembléia , t iveram uma pauta de Reiv indicações e uma Comissão para negociar com a Empresa.

A Pauta foi ent regue à Balbo no dia 13, tendo esta pedido um prazo de 10 dias para respondê- la. O prazo foi acei to, tendo se rali zado nova reunião com o patrão no dia 23. Como não houve uma contra-proposta no mínimo re spei tosa por parte da Empresa, uma nova Assemblé ia, com mais de 300 t rabalhadores decre tou GREVE para o dia 27/02/89.

Hoje a parali sação é de 100%, es tando os 2 .000 funcionár ios todos parados, e o Movimento é pací f ico.

Princ ipais Reiv indicações dos Trabalhadores: Salário Mínimo de NCz$191,00, pagamento de horas-extras, horas de transporte, adic ionais noturno, insalubridade e periculosidade (CLT) . Proposta da Balbo: Salário Mínimo Nacional (NCz$72,00) , quanto às outras re iv indicações pediram prazo de 150 dias para cumprir as le is trabalhis tas .

A Dest i l aria Alexandre Balbo vem espalhando pe la c idade , que alguns agitadores estão obrigando os t rabalhadores a faze rem greve e di famando as l ideranças e representante s legais dos trabalhadores. Agora cabe à soc iedade julgar nosso mov imento. A maioria dos t rabalhadores não e stá recebendo nem o salário mínimo legal , e seus f i lhos estão passando fome e enfrentando uma miséria sem precedentes ! Vis i te as 400 e Conf i rme!

Ajude os trabalhadores a vencerem a fome e a exploração, entregando sua contribuição em dinheiro ou al imentos para o fundo de greve na sede do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de I turama.

Os trabalhadores foram vitoriosos no movimento grevista,

alcançando algumas conquistas, tais como piso salarial, fornecimento

gratuito pela empresa de ferramentas e equipamentos de proteção,

controle da pesagem da cana por um trabalhador, transporte gratuito,

com ferramentas em local adequado, entre outras. No entanto, a resposta

da Destilaria Alexandre Balbo ao movimento dos trabalhadores foi a

demissão de diversos funcionários.

Por sua vez, no mesmo ano, o fr igoríf ico ligado ao Consórcio

Brasil Central de Carnes foi fechado, havendo demissão em massa dos

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trabalhadores. Aquele foi um ano em que a miséria e as condições de

vida e de trabalho - resultantes do processo de modernização da

agricultura - agravaram-se, contribuindo, assim, para as tensões sociais

no campo. Barroso, uma das l ideranças do movimento de luta pela terra

gestado em Iturama, relembra as precárias condições de vida dos

trabalhadores.

“(. . . ) Foi um ano que o fr igorí f ico de I turama fechou as suas por tas e f icou com mais de 500 trabalhadores desempregados! Foi um ano também que a entressafra da colhe ita de cana foi mui to forte, desempregou muita gente. Porque a cana é assim, só dá t rabalho no tempo da safra. O período da entressafra é um desemprego to tal , uma miséria total , a fome se alas tra!” (Barroso) .

Este é o contexto de fundo estrutural e conjuntural em que os

trabalhadores travaram suas lutas. Os impactos sociais, resultantes do

processo de modernização da agricultura no Triângulo Mineiro/Alto

Paranaíba, favoreceram o movimento de luta pela terra gestado pelos

trabalhadores rurais em Iturama.

Foi nesse cenário que os trabalhadores rurais buscaram trilhar

caminhos para superar a situação de exclusão e subordinação a que foram

submetidos, colocando em cena novos cidadãos, “como membros

integrais da sociedade, dotados de direitos civis, políticos e sociais,

capazes de se fazerem reconhecer pelos demais como sujeitos de sua

própria história e de se auto-reconhecerem como tal” (MEDEIROS,

1989:211), procurando romper com a irracionalidade do desenvolvimento

excludente e da própria “modernidade” imposta pelo projeto de

modernização da agricultura na região.

Neste trabalho, vamos buscar, pela narrativa dos trabalhadores

rurais, os momentos vivenciados pelas práticas de luta e conquista da

terra, revelando tais momentos como um processo de construção da

cidadania e, simultaneamente, de reorganização de um novo território.

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A narrativa de cada trabalhador, recuperada pela memória, leva à

reconstituição de uma história construída coletivamente, sendo, portanto,

expressão individual e coletiva de acontecimentos vividos por todos.

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2 - O PROCESSO DE LUTA PELA TERRA

COMO CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA

Como vimos, a política de modernização da agricultura

implementada na região do Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba, por meio

dos planos de desenvolvimento e ocupação do cerrado, foi marcada por

uma forte exclusão social, produzindo efeitos perversos para os

trabalhadores rurais e constituindo, assim, um cenário em que os

trabalhadores travaram suas lutas para a conquista da terra.

É nesse contexto de fundo estrutural, no qual a técnica e a

racionalidade são as tidas como molas propulsoras do progresso, que

esses trabalhadores, homens e mulheres, desvelam a face ilusória da

modernidade. Estes se impuseram ao processo de exclusão e

subordinação a que foram submetidos, “reivindicando o estatuto de

serem sujeitos - com capacidade de pensar, agir, sentir e,

principalmente, de construir uma cidadania plena, para além da

cidadania ‘regulada’.” (NEVES, 1995:58).

Com base na realidade instituída pelo processo de modernização da

agricultura na região do Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba, vemos os

trabalhadores rurais, mulheres e homens, aí se inscrevendo com suas

práticas instituintes de organização coletiva para a conquista de um

pedaço de terra. Nas trajetórias de luta por eles vivenciadas, percebemos

a existência de uma relação dialética entre as realidades objetiva e

subjetiva (BOURDIEU: 1990). Se, por um lado, esses trabalhadores

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foram objeto de um processo excludente provocado pela rápida

modernização da agricultura, por outro, eles afirmaram-se como sujeitos,

à medida que desencadearam ações coletivas na conquista e

desapropriação de um latifúndio, buscando novas maneiras de reivindicar

e exigir direitos de cidadania, criando novos espaços políticos,

estabelecendo, assim, novas relações com a esfera pública.

Neste capítulo, recuperamos, por meio da memória e das

experiências de um grupo de trabalhadores rurais, hoje moradores da

fazenda Nova Santo Inácio Ranchinho, a conquista e a desapropriação

de, 3.958 hectares de terra para fins de reforma agrária. Ao rememorar

suas experiências, homens e mulheres falam de si mesmos, reconstroem

suas trajetórias pessoais e sociais, assim como suas práticas de luta

coletiva de afirmação da cidadania, na conquista dos direitos de acesso à

terra. A recordação de fatos, lugares e ações narrados pelo grupo de

trabalhadores possibilita perceber a articulação entre objetividade e

subjetividade, mostrando a resposta que esses t rabalhadores deram aos

desafios vividos no processo de luta e conquista da terra.

2.1 - Experiência, memória, identidade coletiva e

cidadania

Os estudos sobre memória popular mostram que determinadas

experiências e trajetórias de lutas podem colaborar para o resgate da

formação de processos de identidade coletiva. Como indicam PAOLI e

ALMEIDA (1996), o trabalho de resgate da memória de experiências

populares, no início, provoca um certo estranhamento aos narradores. No

entanto, ao relatar suas experiências pessoais, começam a colorir as

narrativas, pela reflexão das trajetórias que os levaram da vida privada à

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vida pública. Dessa maneira, as lembranças de experiências vividas são

realizadas de forma individual e também coletiva. Nesse sentido,

ARRUDA (2000:29) observa que:

“Toda cons ideração da memória pressupõe a restauração de uma his tória indiv idual e cole t iva, de t rajetórias de vida que só se s ingularizam ao se cris tal i zarem em experiências par t iculares , mas cujo s igni f icado úl t imo remanesce nos percursos socialmente compart i lhados: no caráte r simból ico da l inguagem, na necessária dimensão soc ial da experi ência .”

No decurso da narrativa de cada entrevistado, desenrola-se uma

multiplicidade de experiências que relembram fatos, lugares e ações,

construindo um arquivo histórico, em que se organiza a memória do

processo de luta pela terra conquistada, unindo-se a experiência

individual com a história coletiva. Nesse processo de reconstrução das

trajetórias de luta, o narrador individualiza-se, à medida que imprime

uma singularidade a fatos e situações, trabalhando de modo peculiar sua

história de vida (ARRUDA, 2000). Tais t rajetórias trazem a marca social

da constituição de uma identidade coletiva experimentada nas práticas de

uma luta coletiva, que reivindicava o direito do acesso à terra. Dessa

maneira, a memória deixa de ser individual, como indica SANTOS

(1998), passando a constituir-se como elemento do processo de

construção da identidade coletiva.

A reconstrução da memória a partir das experiências vividas no

passado sob os influxos do presente está amarrada à construção da

cidadania, entendida como processo pelo qual os “direitos são

formulados, reivindicados, transformados e, sobretudo, vivenciados

como parte da experiência dos seres humanos concretos” (ARANTES,

1996:9). De fato, ao prestarem depoimentos orais sobre o processo de

luta pelo território conquistado, os moradores da fazenda Nova Santo

Inácio Ranchinho reinterpretam as tra jetórias por eles vivenciadas,

apontando para emergência de uma esfera pública diferenciada,

fundamentada na conquista do direito de acesso à terra.

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Com base nas narrativas realizadas por um grupo de homens e

mulheres, ex-sem-terra, procuramos analisar a trajetória de luta

vivenciada por esses sujeitos que demandavam terra, procurando desvelar

como viveram esses anos todos, como rememoram suas histórias de vida,

o que determinou a construção de uma organização coletiva, que impõe,

para o espaço público, o reconhecimento de suas experiências como

cidadãos, como gestaram um projeto coletivo de luta por terra, tecendo

regras de convivência e estratégias utilizadas para a disputa de um

território, manifestando sua emergência no cenário político. As narrações

sobre o processo de luta pela terra correspondem ao que a memória

coletiva desses homens e mulheres selecionou, constituindo-se como uma

história comum, tecida por vários sujeitos, que procuraram afirmar a sua

cidadania durante todo esse percurso.

2.2 - Histórias de vida dos sem-terra

Analisando as histórias de vida dos moradores da Nova Santo Inácio

Ranchinho, encontramos famílias originárias, em sua maioria, do Pontal

do Triângulo Mineiro - Capinópolis, São Francisco Sales, Ituiutaba,

Iturama, além dos municípios de Carneirinho, Limeira d’Oeste e União

de Minas, então distritos de Iturama.

Entrecortada por interrupções e frases curtas, a história de vida dos

trabalhadores sem-terra é relembrada como retalhos vividos por famílias

migrantes com raízes no campo, em diferentes locais.

Para Zé Pretinho, não ter terra significa não ter raízes, não criar

vínculos, além de ter a vida permeada por mudanças do local de

residência e de trabalho. O processo de idas e vindas, de um lugar para

outro, entre um patrão e outro, faz parte do seu cotidiano.

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Eu fui nasc ido numa região, numa c idade , inclusive nem não conheço, que é Candeias, Minas Gerais , que f ica pro lado de Belo Hor izonte ( . . . ) Então, de Candeias, saindo de lá, nói s mudemo prá Bambuí. Bambuí nóis mudemo prá Campos Al tos. Campos A lto é uma c idade que f ica. . . é uma terra ass im. . . como é que fala?. . . c identada! É um lugar mui to cidentado, che io de serra. . .Então, de lá , então nóis t inha um t io meu que mudou prá região de São Franc isco Sales , no Tr iângulo Mineiro ( . . . )Então nóis peguemo o trem de ferro em.. . Uber lândia. . . em Campos Alto ( . . . ) v ia jemo a noi te in te ir inha prá chegar em Uberaba no outro dia cedo! Cheguemo em Uberaba, nóis pegou o ônibu cedo ( . . . ) Nóis foi chegar em São Francisco Sale, que não é tão longe ass im, cê mesmo conhece , já tava escureceno. . . Apiamo em São Francisco e depois a gente pegou um caminhão e fomo até . . . uns v inte Km prá frente de São Franci sco, a í nóis já fomo lá, de modo de. . . apiou, aí nóis teve que andar de a pé. . . 10 km de a pé, carregando mala na cacunda! Chegar na fazenda. . . na fazenda de um tal Manoel Jacinto. . . fazenda. . . Saltadô, na beira do Rio Grande , que fa iz div isa lá cum estado de São Paulo. Então, lá nóis f icou uns tre is ano nessa fazenda, tocano roça. (Zé Pre tinho) .

Nos campos, nas roças, vivendo como parceiros, arrendatários ou

agregados, homens, mulheres, jovens e crianças faziam um pouco de

tudo. Plantavam, desmatavam regiões, criavam animais, arrendavam

terras, eram capatazes ou empregados permanentes. A vida de

perambulação afetava os antigos parceiros, ora vivendo numa fazenda,

ora mudando-se para outra. A produção para subsistência era ameaçada

pela permanente exigência de retirada da terra lavrada concedida, ou

mesmo, arrendada pelos fazendeiros. Os relatos de Zé Messias, Zé

Pretinho e seu Calu fazem uma descrição dessa trajetória:

Naquela época, meu pai num t inha terra, nóis morava em terra dos outro. . . E os fazendeiro não fazia mui ta conta! Cê pudia cr iá gado, cê pudia c riá porco, cê pudia criá de tudo! Eu me lembro que foi numa época em que começaro a proibí as c riação at ravés da égua! Oh, fulano, cê vende a égua que cê tem.. . Começaro a entrá na cabeça dos fazendeiro que a égua destruía o pasto ( . . . ) Então, a í , já começaro a se dispor das égua, né? Então, essa fo i a primeira proibição de . . . de arrendatários , né? E daí , fo i . . . já foi evi tando o número de criação que ocê pudia tê . . . e a coisa fo i fechando. . . (Zé Messias) .

A gente t rabaiava de empregado. Trabaiva na fazenda, era empregado, meeiro, prantava roça, panhava café . Não t inha o serv iço certo também não! E não era regis trado também não! No mesmo instante que tava t rabaiando por dia, ele tava pegando impreita! No mesmo instante que tava pegando impreito, ele tava mexendo cum a roça, que era a meia . Prantava milho, arroiz . . . (Zé Pre tinho) .

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( . . . ) Às veis cê f icava dois anos numa fazenda ou t reis . . . Quando o patrão via que cê cuía bem, que cê fazia a vida melhor. . . Então já mandava imbora, né? ( seu Calu).

Ao serem expropriados da terra, por não encontrarem mais a

oportunidade de trabalhar como parceiros ou arrendatários, os

trabalhadores migraram para as cidades, vivendo nos cinturões de

pobreza, formando uma massa de sem-terra, mais conhecidos como

bóias-f rias.

A experiência de Maria como trabalhadora rural começou aos 16

anos, quando deixou de viver em acampamentos ciganos e passou a

morar na periferia de Limeira d’Oeste com seu esposo Zé Pretinho. Ao

relembrar seu trabalho, o faz com tristeza e com a consciência de que

aceitava, com um certo conformismo, as péssimas condições de vida a

que ela e sua família eram submetidas.

A v ida da gente e ra muito sofr ida. . . A gente e ra mui to pobre ( . . . ) A í , nóis fo i t rabaiá. O Zé fo i t rabaiá, t inha panha de algodão, a gente começô a apanhá algodão! Uma vida mui to sofr ida. . . pagava água, a luguel , luz ( . . . ) E aí , quando comece i a trabaiá na roça, t ive que pagá uma mulhé pra oiá as menina. . . A í nóis panhava muito algodão, eu e o Zé. A gente trabaiava na roça, raleava, catava milho por quilo ( . . . ) O Zé panhava 24 arroba de algodão, eu panhava 14 arroba de algodão. . . Eu gorda do Ronaldo, de sete meis, eu panhava 14 arroba de algodão! Naquela era, nem roupa pra trabaiá na roça a gente não t i nha! Chegava à noi te , eu lavava minha brusa, porque a gente suava, né? A suje ira na roça é muita, né? Eu lavava minha brusa e f icava com e la moiada! As minhas companheira me via f icá com a brusa moiada, eu gorda de se te meis. . . - Maria , cê tá f icano louca menina! Cê vim pra roça com a brusa moiada! E eu falava: - Uai, eu não tenho outra, tenho que v im! Vim com ela suja, a gente num güenta! E aí , a gente sempre fo i muito sofr ida! A gente mudava pras carvoe ira, a gente tentava as carvoeira, a gente sofr ia muito em carvoeira! O Zé queimava. . . Mui tas veiz os fazendeiro chamava o Zé pra queimar porque ele era mui to bão pra queimar, né?! Queimar lenha! A té toda semana saía com um caminhão de carvão. . . Então e le era mui to procurado pra tá queimano! E a gente sofr ia demais na carvoeira! Minhas menina que imou os pé uma veiz , minhas duas menina, a Si lvana, o André que imou o pé na carvoeira. . . Então era uma vida muito sofr ida mesmo, sem ter n inguém pra ajudá eu lavá uma fralda deles! ( . . . ) Mui tas ve iz água t i nha que buscá, numa dis tância, não era tão longe , mais também pra mim com aquelas criança era longe. Água t i rada no poço. . . A v ida da gente tava muito sofr ida! E a gente enfrentava aquela carvoeira. . . Perdi . . . tava grávida de c inco meis e perdi , a judano o Zé a carregá cesta de carvão! Aquela cestona comprida. . . Ele ia t i rá e eu pegava dum lado, ele pegava do outro! Ensacar carvão! Não, cê precisa de vê! A Div ina, meus menino, cê

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chegava, só v ia o olho e os dente! De tanto é que e les sujava dos carvão. E muitas ve iz , i gual eu tava te fa lano, a gente não rac ioc inava porque a gente não t inha a cabeça que hoje a gente tem! Naquela hora a gente ainda achava que tava bom, né?! Hoje não, hoje a gente tem his tór ia, né?! (Maria) .

Este relato revela a representação que Maria faz da sua experiência

como trabalhadora bóia-fr ia na cultura do algodão e nas carvoeiras,

expressa em uma única palavra: sofrimento. A interpretação crítica,

realizada por Maria sobre as relações de trabalho ocorridas no campo,

está marcada pelas péssimas condições de vida: pobreza, sujeira e

esgotamento físico configuram-se como a maneira que ela concebe as

condições materiais que colocam em risco a sobrevivência dos

trabalhadores rurais. O sofrimento experimentado por essa trabalhadora

está também relacionado à desvalorização das tarefas realizadas pelos

bóias-f rias. Dessa maneira, o trabalho no campo é apresentado como um

peso, um sofrimento que jamais termina, um esgotamento constante que

fazem parte do cotidiano desses trabalhadores e t rabalhadoras (NEVES,

1995).

Em outro momento, ao fazer referência à sua condição de mulher,

Maria expressa as péssimas condições a que as trabalhadoras volantes

são submetidas na esfera doméstica: o t rabalho doméstico redobrado com

o cuidado dispensado às crianças e o fato de enfrentar longas distâncias

para buscar água, demonstrando a condição difícil vivenciada por elas.

Para Branca, a trabalhadora bóia-fria

"Não tem nenhuma segurança, né? Levanta mui to cedo e pega aque le caminhão, vai pro t rabalho! Se você t rabalhá o dia todo, cê recebe. Se não t rabalhá, cê não recebe! Além do que você não pode tá parando, porque se fosse uma coisa sua, você . . .não, vou parar agora, t ô cansada! Vou descansar! Lá não pode! Então. . . cê tem que t rabalhar o dia todo pra receber o seu dinheiro ( . . . ) Chega dentro de casa, quase não dá conta de cuidá das suas tare fas . . . As mulheres , principalmente, sofre mui to mais porque a casa de las f ica sem arrumá! Quando e la chega em casa, e la vai te que arrumá toda a casa, ela vai ter que lavá roupa de noite! E o marido vai descansá! Então, e la t rabalha muito mais que o homem. . . E acorda mui to cedo, porque e la é que vai prepará a comida, enquanto ele pode f icar um pouco mais na cama, né? A mulher é bem mais di f íc i l pra ela. A necessidade de tá ajudando o marido no orçamento, né? Porque a mulher é o esteio. . . a mulher é o e ste io de casa e . . . os

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homem não valorizam isso! A própria sociedade não valoriza." (Branca) .

Assim, o que se percebe é que, ao lado da dupla jornada de

trabalho da mulher bóia-fria - que tem como função primordial a

responsabilidade do trabalho doméstico -, as condições impostas pelas

tarefas executadas no campo coíbem os trabalhadores e trabalhadoras de

qualquer ato de autonomia e l iberdade, posto que exercem um controle

intenso sobre a força de trabalho, sujeitando-os a um tempo disciplinar

determinado pela produção15.

Sob os influxos do presente, essas mulheres identificam os

momentos de conformismo frente às diferentes situações que

vivenciaram no passado, seja em razão da “necessidade de tá ajudando o

marido no orçamento” ou porque recordam que, naquela época, “a gente

não raciocinava porque a gente não tinha a cabeça que a gente hoje

tem”. Suas experiências e lembranças são repensadas, consti tuindo uma

consciência crítica que têm do trabalho volante.

Desse modo, o que os depoimentos dessas mulheres revelam é que

suas experiências como trabalhadoras volantes foram marcadas pela

desvalorização, pelo sofrimento, pelo conformismo. Essas marcas

levantadas pelas mulheres entrevistadas talvez sejam as mais claras para

identif icar o momento de frustração que foi o processo de proletarização

dos trabalhadores do campo, já que f icavam sujeitos a inúmeras situações

de exploração e de extremos controles da vida, da liberdade, enfim, dos

seus sonhos.

Entretanto, ao realizarem uma leitura de suas experiências de vida,

os trabalhadores dramatizam tanto as condições de exploração a que

foram submetidos, como demonstram os momentos de ruptura e de

15 Como indica DAWSEY (1992) , os t raba lhadores rura is são movidos por um ideal de autonomia com for te ressonância entre pessoas com or igem socia l no campo, o que os levam a re sis t ir às condições discipl inare s a que f icam suje i tados na vida operár ia .

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negação à vida sofrida que levavam, recusando a situação de bóia-fr ia ou

mesmo de empregados permanentes.

Em seus depoimentos, os ex-sem-terra afirmam a disposição de

lutar por seus direitos, recusando a condição de bóia-fria, participando

de movimentos grevistas e de ocupação de terras.

Em 1988, quando era delegado de base do Sindicato dos

Trabalhadores Rurais de Iturama, no então distrito de Limeira d’Oeste,

Zé Pretinho organizou a primeira greve dos bóias-frias da cultura de

algodão. O que motivou a realização da greve, segundo esse

entrevistado, foi o preço pago pelos fazendeiros pela arroba colhida do

algodão, bem abaixo das expectativas dos trabalhadores. Como os

patrões não entraram em acordo com a Delegacia Sindical, iniciou-se um

processo de mobilização para a greve. Se a estratégia dos empregadores

consistia em não conceder centavo algum a mais do que já pagavam, os

trabalhadores exigiam seus direitos, caso contrário iriam impedir a saída

de caminhões que transportavam os bóias-frias. Zé Pretinho dramatiza as

estratégias de luta dos assalariados para garantir o cumprimento de suas

reivindicações:

"A greve é o seguinte: nóis ia pará todo mundo, pará todo mundo, ninguém ia saí pra apanhá algodão. A condução que fosse saí , ante s de saí nóis tava cercano, não ia passá. Os caminhonei ro que tentasse passá, a gente ia quebrá o caminhão no pau! E as pessoa. . . nóis ia t irá as pessoa pra podê ajudá nóis! Ah! Se chegasse algum caminhão antes da gente v im pros piquete, na hora de voltá, ele não entrava. Então a gente ia paral isá a c idade ! ( . . . ) Só ia vol tá a panhá algodão, depois que eles dessem 100% de aumento na panha de algodão! ( . . . ) Quando foi noutro dia, bem de madrugada, eu acordei e saí com mais tre is companhe iro . Saímo pra fazê piquete! Então nóis saímo e começamo a chamá mais gente ( . . . ) A í nóis topamo com a polícia ( . . . ) A í , perguntô - re fere-se ao policial - pra mim aonde eu lá ia! Aí eu fa le i : - Nóis vamo pra saída pra cercá os caminhão que vai levá pras panha de algodão! E hoje não é pra saí ninguém! ( . . . ) Aí os guarda fa laro assim: - Uai , nóis pode até te prendê que cê tá mui to atrev ido, v iu? - Uai,cês quisé me prendê, cês prende, mais cês vai prendê uma pessoa que tá lutando pe los meus dire i to! É um dire i to que eu tenho! ( . . . ) Então, resul tado: a greve durô quatro dia! Perdeu le i te adoidado, pruque o caminhão não ia buscá, pruque não entrava. Quatro dia de greve! A prime ira greve que eu part icipe i , a prime ira greve que ex is t iu dent ro de Limeira d’Oes te, que fo i vi tor iosa essa greve!" (Zé Pre tinho) .

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Nesse depoimento, percebemos que Zé Pretinho não está

considerando um movimento grevista apenas como um instrumento de

reivindicação. Ele dramatiza uma greve na qual os trabalhadores

constroem sua identidade social, iniciando a demarcação do espaço da

cidadania, fortalecendo a legitimidade das suas regras, em contraposição

às impostas pela polícia e pelos patrões.

Ao relatar sua história de vida, Zé Maria indica a origem de sua

disposição em plantar a vida em sua própria terra, recusando submeter-

se à condição de bóia-fria, ao participar de um movimento de ocupação

de uma propriedade que pertencera ao seu tataravô em Capinópolis.

"Bom, antes d’eu entrar no movimento dos sem-terra, eu sempre fu i . . . trabalhadô rural , ou seja, bóia- f r ia , né? Quando eu ent re i pro movimento, eu entre i a té. . . jovem, com 18 ano. . . Lá em Capinópol is mesmo que iniciou, através da minha famí l ia, que lá tem demanda de terra. . . ou se ja t inha, não tem mais! Da famí l ia Teodoro com os fazendeiro lá de Itu iutaba que gri laro a fazenda do meu ta taravô. Então, eu sempre ouv ia meus t io, os meu pai dizê que t inha ta l te rra . . . E a part i r dessa ocupação que nóis reali zamo lá em Capinópolis em 84, é que abriu. . . assim. . . horizonte pra mim entrá nesse movimento!" (Zé Maria) .

Dessa maneira, o sentido da experiência ligada às práticas de

perambulação como parceiros, arrendatários ou mesmo assalariados

temporários, mudando de fazenda em fazenda, marcando sua presença no

terreno da exclusão, certamente estimulou a luta pela terra desencadeada

em Iturama.

2.3 - Os equívocos da reforma agrária e a constituição

do espaço político

A análise do processo de luta pela terra desencadeado pelos

trabalhadores sem-terra em Iturama, conduz-nos à compreensão de

algumas condições objetivas relacionadas ao contexto de refluxo do

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movimento de ocupações de terra, diante da derrota da proposta

apresentada pelos trabalhadores para a reforma agrária, na Constituição

de 1988. Nesse sentido, é fundamental compreender as implicações que

as diversas propostas de reforma agrária, assumidas por diferentes

agentes sociais, em momentos diversos, impuseram aos personagens da

luta pela terra.

O tema da reforma agrária sempre esteve presente no debate

político nacional, de maneira mais ou menos intensa, como crítica e

denúncia do poder dos grandes proprietários sobre seus subordinados.

(MARTINS,1999 e MEDEIROS, 1993). Vinculada à discussão dos males

do latifúndio, os tenentistas já falavam, na década de 1920, da

necessidade de realizar t ransformações fundiárias como condição para

eliminar os vícios que caracterizavam o atraso polí tico no Brasil . Nos

anos de 1950, a questão da reforma agrária foi incorporada pelo

movimento camponês, que a tomou como principal bandeira de luta,

passando a ser vista como solução para a pobreza e a desorganização das

áreas rurais. Desse modo, a demanda por reforma agrária passou a ser

pensada com base nas concepções e atuações da Igreja Católica e dos

partidos de esquerda, importantes interlocutores nas lutas dos

trabalhadores rurais (MICHELOTO, 1991).

Foi no início dos anos de 1960, no entanto, que a reforma agrária

tornou-se uma demanda ampla disputada por diferentes forças sociais e

projetos diferenciados, que se convergiam para uma postura crítica em

relação à concentração da propriedade fundiária, tendo como eixo o

modelo nacional-desenvolvimentista. Como mostram MEDEIROS (1993)

e ABRAMOVAY (1994-a), a questão agrária nesse período, era vista

como um obstáculo ao desenvolvimento econômico, posto que, na

estrutura fundiária dominada pelo latifúndio, a agricultura seria incapaz

de se desenvolver tecnicamente e de contribuir para a e levação da

produção. Sob essa ótica, entendia-se que a maior parte dos

trabalhadores rurais, não tendo acesso à terra, não poderia participar do

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processo técnico, f icando à margem do mercado econômico. De acordo

com MEDEIROS (1993:6),

“Foi nesse contex to de crí t ica generali zada ao la t i fúndio que se consti tu iu soc ialmente e ganhou legi t imidade no te rreno pol í t ico a concepção de que a al teração na estrutura de propriedade se ria condição para vencer o atraso, tanto econômico (entendido principalmente como aumento da produção) como pol í t ico, com a al teração das re lações de poder. Ao mesmo tempo, no in terior das principais forças que disputavam a direção das lu tas camponesas, a re forma era entendida como condição necessár ia para o desenvolvimento e, portanto , como parte da questão nacional .”

No período nacional-desenvolvimentista, as ligas camponesas

começavam a demandar uma reforma agrária radical como contraposição

à proposta conservadora de manutenção da estrutura agrária

concentradora.

Preocupados com as tensões ocorridas no campo e temerosos com o

possível fortalecimento dos grupos de esquerda que poderiam produzir

uma desestabilização política no país, os militares tomaram a dianteira

das reformas sociais propostas pelo modelo nacional-desenvolvimentista,

abafando as disputas emergentes dos trabalhadores rurais. Após a ruptura

institucional de 1964, os militares redigiram e aprovaram o Estatuto da

Terra no Congresso Nacional, como alternativa à “uma reforma agrária

radical que levasse à expropriação dos grandes proprietários de terra

com sua conseqüente substituição por uma classe de pequenos

proprietários e pela agricultura famil iar, com sucedera em outras

sociedades” (MARTINS, 1999:80).

Mediante o Estatuto da Terra, os governos militares atuaram no

sentido de manter intacta a propriedade da terra, patrocinando a

modernização conservadora, alargando as desigualdades na agricultura,

destruindo a agricultura familiar e consolidando o latifúndio. Por t rás do

espaço legal estabelecido pela nova le i que se propunha a realizar

transformações na estrutura fundiária, o Estado autoritário reprimiu os

movimentos sociais, perseguiu lideranças, além de controlar o

movimento sindical . Para MEDEIROS (1993), o Estatuto pouco

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significou em termos de medidas concretas em relação às demandas de

acesso à terra reivindicadas pelos trabalhadores rurais.

O processo de modernização que se verificou na agricultura

brasileira, a partir da década de 1970, demonstrou que a reforma agrária

não era condição s ine qua non para o desenvolvimento econômico, como

propunha o modelo nacional-desenvolvimentista. Apesar das

transformações produzidas pela modernização tecnológica, a contenda

por acesso à terra permaneceu como reivindicação do movimento

sindical. Assim, no bojo da luta contra o regime mili tar e pela

redemocratização do país, os trabalhadores do campo voltaram a ocupar

os espaços públicos para demonstrar a outra face da modernização: a

situação de exclusão a que foram submetidos, tendo a reforma agrária

como bandeira de luta (MEDEIROS, 1993).

Diante da pressão exercida pelos movimentos sociais no campo por

um programa redistr ibutivo de terras, a Nova República surgiu com um

projeto de reforma agrária, fundamentado no Estatuto da Terra: o PNRA

- Plano Nacional de Reforma Agrária.

Anunciada por ocasião do IV Congresso Nacional dos

Trabalhadores Rurais, a primeira proposta do PNRA elegia a reforma

agrária como prioridade de governo (BRASIL, 1985), estabelecendo

como pressupostos básicos: a desapropriação por interesse social

naquelas propriedades que não cumprissem sua função social16,

considerada o principal instrumento de reforma agrária; a penalização

dos proprietários fundiários pelo não cumprimento da função social da

terra, mediante a indenização de terras desapropriadas com base no valor

declarado pelo imposto territorial rural; a garantia da participação das

16 De acordo com o que dispõe o Esta tuto da Terra, a propr iedade rura l cumpre sua função soc ia l quando, s imul taneamente, “favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que ne la labutam, assim como a de suas famí l ias; mantém níve is sat i sfatór ios de produt ividade; assegura a conservação dos recursos naturais; observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que a possuem e a cult ivam” (BRASIL, 1985:13) .

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organizações dos trabalhadores em todas as fases do projeto; a

concretização da reforma agrária por meio do assentamento dos

trabalhadores rurais, sendo que a colonização, a regularização fundiária

e os mecanismos tributários apareciam como programas complementares.

Embora o PNRA tenha proposto levar às últimas conseqüências as

possibilidades de desapropriação estabelecidas no Estatuto da Terra,

indicando como meta o assentamento de 1,4 milhão de famílias em

quatro anos, o governo da Nova República realizou, no período de 1985 a

1989, o assentamento de apenas 82.896 famílias17, demonstrando um

recuo expressivo com relação à efetivação da reforma agrária.

Na verdade, o PNRA estava longe de corresponder às expectativas

dos trabalhadores do campo, encontrando resistências nas entidades

representativas, especialmente do Movimento dos Trabalhadores Sem-

Terra - MST -, da Central Única dos Trabalhadores - CUT - e da

Comissão Pastoral da Terra - CPT -, que intensif icam suas ações de

mobilização e de ocupações de terra em diversos pontos do Brasil .

Por sua vez, a reação dos proprietários rurais com relação ao

PNRA foi imediata, sobretudo da Confederação Nacional da Agricultura

- CNA -, da Sociedade Rural Brasileira - SRB - e da União Democrática

Ruralista - UDR18 -, que entraram no cenário público para combater a

proposta de realização da reforma agrária apresentada pelos

trabalhadores. Como enfatizam BERGAMASCO e NORDER (1985),

MARTINS (1999), MEDEIROS (1993), PALMEIRA (1994) e VEIGA

(1994), o movimento dos proprietários rurais - especialmente a UDR -,

realizou uma campanha anti-reformista, articulando-se com os

empresários agroindustriais e os parlamentares no encaminhamento de

lobbies no Congresso Nacional em defesa de seus interesses, além da

realização de congressos, acampamentos em Brasília, leilões de gado

17 Fonte de dados obt ida no Rela tór io de Atividades do INCRA. 18 Entidade de representação dos grandes propr ie tár ios de ter ra, c ri ada em 1985, como reação ao PNRA.

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para engrossar as f ileiras de aliados políticos e arrecadar fundos para

suas campanhas publicitárias, bem como a promoção de ações violentas

contra expressivas lideranças de trabalhadores. Ficava visível a intrusão

de ações políticas no interior do Estado, fazendo sentir um nítido

arrefecimento das desapropriações de terra. O resultado dessas ações foi

o recuo do PNRA. As bases legais para desapropriações foram

estreitadas, mantendo-se intacto o latifúndio, seja o latifúndio por

exploração ou por dimensão, desde que cumprisse formalmente sua

função social.

Com a derrota do PNRA, a efetivação de ações que inviabilizariam

a reforma agrária deram-se na elaboração da Constituição de 1988.

Concordamos com MARTINS (1999:91), quando este afirma que:

“Os precár ios avanços na legis lação da di tadura mil i tar foram prat icamente anulados pelos const i tu int es . A ut i l i zação de concei tos de ‘propr iedade produt iva’ e de propr iedade improdut iva’ introduziu uma ampla ambigüidade na de fin ição das propriedades suje i tas à desapropriação para re forma agrária, prat icamente anulando as concepções re lat ivamente mais avançadas do Estatuto da Terra."

Com as restrições impostas pela Constituição, tornou-se possível a

efetivação de um conjunto de mecanismos de bloqueio à reforma agrária,

dentre eles, a realização de desapropriações mediante prévia e justa

indenização, mantendo o latifúndio insuscetível de desapropriação,

eliminando, assim, o caráter punitivo pelo não-uso adequado da terra

(MEDEIROS,1993).

Em que pesem as derrotas dos trabalhadores com as sucessivas

alterações do PNRA e de suas reivindicações na Constituição implicarem

num refluxo das ocupações de terra, os movimentos sociais no campo

revigoraram suas forças, lançando novos desafios para a realização da

reforma agrária.

Foi nesse cenário de recuo da reforma agrária que, em Iturama, os

trabalhadores rurais saíram do espaço privado e entraram no espaço

público, construindo uma história outra, uma outra história.

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2.4 - A gênese da luta pela terra

A desapropriação de 3.958 ha da Fazenda Nova Santo Inácio

Ranchinho surgiu como resultado de uma história de mais de quatro anos

de luta dos trabalhadores rurais.

No cenário do processo de modernização da agricultura e do

refluxo da reforma agrária, uma série de acontecimentos marcantes

pontuaram a vida dos trabalhadores rurais sem-terra, que

experimentavam novas práticas sociais, buscando superar as condições

de exploração e subordinação a que foram submetidos, saindo do espaço

privado para ocupar o espaço público (NEVES, 1995).

O depoimento de Zé Pretinho expõe que a emergência do

movimento em Limeira d’Oeste estava relacionada à precariedade das

condições de trabalho no campo.

"A gente chegava na roça, a gente tava cansado! A gente t rabaiava o dia in teir inho e de tarde a gente t inha que andá tre is hora em pé (re fere- se à carroceria do caminhão) . Foi a í , que no dia t r inta de abri l eu fa lei pra minha mulhé: - Eu quir ia tá agora no meio daque le r io, com uma corda amarrada no pescoço e uma pedra amarrada ne la , pra mergulhá, pra nunca mai s aboiá. Aí , a Maria tava atrás de mim e fa lô: - Mais pra que cê tá falano i sso? Eu fa le i: - Dis isperado com a v ida e de sabê que eu vou f icá ve lhinho subino no caminhão de bóia- f r ia pra de fendê o pão de cada dia! Então, pra levá essa v ida, antes morrê. Foi justamente na hora que me deu um t ino! Lutá pe la re forma agrária! ( . . . ) Aí , eu convide i os companheiro . . . Dia 14 de maio de 89 ia ter uma reunião lá em casa. Eles perguntaro pra que? -Uai, pra nóis começá a discuti r sobre a questão da re forma agrária, fazê ocupação de terra!"

Pelo relato de Zé Pretinho, entende-se que a proposta de ocupação

de terra surgiu, então, da ruptura com a subordinação. O grupo de

trabalhadores, visto antes como agregados, obedientes e submissos,

iniciava um processo de reação à exploração a que eram submetidos,

partindo, assim, para a luta por um pedaço de terra.

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Se, a princípio, o espaço social que esses trabalhadores ocupavam

era o de sujeitos anônimos e dispersos, ao longo do tempo eles foram

construindo uma história em comum, uma identidade coletiva na qual

inscreveram suas práticas de luta.

Além do mais, o sucesso da reforma agrária implementada na

fazenda Barreiro, em Iturama19, também motivou aqueles trabalhadores a

participarem de uma organização coletiva de luta pela terra. Barroso

explicita a motivação que determinou a saída do isolamento e do

anonimato do grupo de trabalhadores para a constituição da organização

coletiva, quando relata que:

" ( . . . ) a realidade do desemprego e das precárias condições de v ida, levou aquela gama de trabalhadores desempregados a faze r uma analogia da v ida deles de pobre esfominhado com a vida dos assentados da fazenda Barre iro! E se perguntava, se aquele grupo da Barre iro, que lu tou, sofreu, mas hoje tá na terrinha de les , tá produzino, tá desenvolvendo sua v ida, porque também nós não podemos fazer o mesmo processo?"

Os relatos desses trabalhadores revelam que a emergência do

movimento de luta pela terra em Iturama estava relacionada tanto com o

fato dos assalariados resisti rem à sua si tuação comum de excluídos dos

benefícios da modernização, quanto ao sucesso da fazenda Barreiro como

espelho da luta. Com isso, o conjunto dos trabalhadores rurais ocupou o

espaço público com a demanda por reforma agrária.

Zé Pretinho, representando a Delegacia do Sindicato dos

Trabalhadores Rurais de Iturama, iniciou, no então distrito de Limeira

d’Oeste, o processo de mobilização dos sem-terra interessados em obter

um pedaço de terra . Para isso, colocou sua residência como espaço

público de discussão e mobilização dos trabalhadores na luta por acesso

à terra. As entrevistas realizadas com esses trabalhadores revelam que, a

19 A reforma agrár ia na fazenda Barre iro foi resultado de um processo de luta desencadeado por um movimento de posse iros e t raba lhadores sem- terra em I turama, ocor r ido no per íodo de 1982 a 1988. Foi a pr imeira fazenda desapropr iada para f ins de re forma agrár ia na região. Sobre o processo de lu ta pe la te r ra na fazenda Barreiro, ver RAMOS, 1993 e MICHELOTO, 1990.

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princípio, o movimento foi espontâneo: Zé Pretinho, por iniciativa

própria, realizou a primeira reunião que contou com 27 trabalhadores.

Naquele momento, os t rabalhadores tomaram a iniciativa de consti tuir

um projeto que orientaria a luta coletiva. Eis o que recorda Zé Pretinho:

"Aí, o pessoal nesse dia foi . Foi 27 pessoa. Aí , ele s perguntaro pra mim: - O que nóis vamo discutí? Aí , eu me lembro como se fosse hoje , como se fosse hoje. . . Eu pedi pro meu menino, que eu não dava conta de escrevê , fazê um cabeçalho. Eu me lembro que coloquei assim: “Nóis , t rabalhadô rural de L imeira d’Oeste , f i zemo uma reunião na casa de José Bernardo dos Santos, conhecido como Zé Pret inho, pra discutí a re forma agrária, procurá uma ajuda melhor pra cada um, pra v ivê uma v ida digna!” Isso eu me alembro de mandá o meu menino escrevê e colocá al i ." (Zé Pret inho) .

Fica evidente que essa lembrança de Zé Pretinho configura-se

como a gestação da identidade coletiva: o que uniu os trabalhadores foi a

busca de “uma vida digna”, como forma alternativa para superar a

situação de exclusão e subordinação a que foram submetidos como

assalariados. Dessa maneira, os trabalhadores reconheceram-se como

membros de um mesmo grupo, passando a incluir sua pertença ao projeto

coletivo de acesso à terra.

Se, por um lado, a demanda de acesso à terra foi o que aglut inou

os trabalhadores, por outro, estes não conseguiram organizar, de forma

autônoma, as estratégias de luta essenciais para a constituição de seu

projeto. O próprio fato de tornarem públicas suas demandas, antes

mesmo de se articularem a uma rede de instituições que prestasse

assessoria à luta dos trabalhadores, deixou-os expostos perante seus

opositores - os latifundiários organizados pela UDR -, que mobilizavam

a polícia para reprimir qualquer ação coletiva desencadeada por aqueles

trabalhadores.

Reconhecendo o espontaneísmo inicial do movimento e a fal ta de

experiência na definição de estratégias de luta, o grupo buscou, então, a

assessoria da CPT - Regional do Triângulo -, para orientá-los na

discussão do projeto que estavam construindo. Sobre o espontaneísmo,

Edivaldo explica:

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" ( . . . ) Quer dizer, fo i um movimento, ass im, mui to. . . espontâneo! De pessoas que não t inham nada, assim, . de conhecimento, mas que t i nha as necessidades, né? De fazer essa luta , de puxar essa discussão." (Edivaldo) .

A CPT, que já prestava assessoria no assentamento da Fazenda

Barreiro, iniciou o processo de acompanhamento da organização dos

trabalhadores, recomendando-lhes que mantivessem do sigilo absoluto na

definição de suas estratégias de luta, pela atenção que as reuniões

públicas despertavam nos fazendeiros da região, podendo vir a constituir

focos de tensão e de repressão ao movimento que estava se organizando.

A partir de então, os trabalhadores deram início à fase preparatória

do movimento. Nesse período, levantaram os nomes dos interessados em

ter uma parcela de terra, realizaram reuniões constantes para definir suas

práticas e estratégias de luta, além de refletirem sobre o significado de

ocupar terra em Iturama, território político da UDR. Foi o momento de

definição das lideranças internas e de reunião das forças aglutinadoras

do movimento, articulando-o a uma rede de instituições que apoiava a

luta dos trabalhadores pela reforma agrária. Frei Rodrigo, integrante da

CPT20, e Barroso registram a preparação dos trabalhadores:

"A nossa equipe da CPT foi comunicada, então, pe lo pessoal que tava organizando (re fere- se ao processo de organização cole t iva dos trabalhadores na ocupação para f ins de re forma agrária) . . . Eu me lembro que nós fomos numa primeira reunião. . . que nós part ic ipamos ( . . . ) Eu me lembro que t inha uma l is ta de 300 pessoas ( . . . ) E foi nesse momento que nós in ic iamos. . . vamos dizer assim. . . e fe t ivamente, com esse grupo, o t rabalho. Que que nós f i zemos ? Nós entramos em contato com a CPT estadual , né? Entramos em contato com a CUT. Entramos em contato com o Movimento dos Sem-Terra ( . . . ) Eu acredito que. . . esse t rabalho que se inic iou lá na região foi um dos primeiros que teve maior art iculação! Fizemos um contato com o part ido e se procurou criar um fórum de discussão pra tá vendo como se ria essa art iculação." (Fre i Rodrigo) .

Naquele momento, o grupo tava se for talecendo, tava discut indo, ainda, a possibi l idade de fazer uma ocupação de terra. O que s ignif icava ocupar terra no Triângulo Mineiro, em I turama, nas barba da UDR.. . Então, o que a gente chamava de trabalho de

20 Até 1990 a CPT contava com uma Regional no Tr iângulo Mineiro, ano em que os in tegrantes do escr i tór io regional romperam com a direção e stadual , c r iando então, a Animação Pastoral no Meio Rura l - APR -, da qual faz par te Frei Rodr igo de Cast ro Amédée Peré t , uma expressiva l iderança na assessor ia aos movimentos dos sem-terra na região.

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in ic iação, hoje nós falamos em trabalho de base. O trabalho de base é reunir as famíl ias, tá explicano como funciona a lu ta, tá levando as pessoas a tomar consc iênc ia do que que e la vai faze r, como é que e la vai ingressar naquele grupo." (Barroso) .

Se as lideranças, junto com as entidades mediadoras que apoiavam

o movimento, realizavam a discussão política da organização do grupo,

os trabalhadores tinham pressa e disposição para lutar por seus direitos,

o que exigia a definição de ações práticas para efetivar o processo de

ocupação de um latifúndio improdutivo. Dessa maneira, realizaram

vistorias nas fazendas do município, com o objetivo de identif icar uma

área passível de desapropriação, planejando, assim, ações complexas

para a ocupação do latifúndio.

Por sua vez, o fórum de entidades, constituído inicialmente pelo

Part ido dos Trabalhadores de Iturama, Sindicato e Oposição Sindical dos

Trabalhadores Rurais, Movimento dos Sem-Terra, Central Única dos

Trabalhadores - Regional do Triângulo - e Comissão Pastoral da Terra,

iniciou, em 1989, um trabalho de articulação junto a outros sindicatos,

Igrejas, outros partidos políticos, dentre outras entidades urbanas da

região, objetivando o apoio financeiro e político ao movimento.

Comprometido politicamente com a luta dos trabalhadores sem-terra da

região, esse fórum arrecadou recursos f inanceiros para cobrir despesas

referentes à operacionalização da ocupação, tais como: alimentação,

transporte dos trabalhadores para a fazenda a ser ocupada, entre outras.

Uma deliberação t irada por esse fórum foi a liberação de dois

sindicalistas ligados ao Departamento Nacional de Trabalhadores Rurais

- DNTR/CUT -, para realizar um trabalho de articulação e socialização

das ações coletivas desencadeadas pelos trabalhadores sem-terra.

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra - MST -, que

vinha estruturando-se, ainda que de forma incipiente, em Minas Gerais,

também deslocou algumas de suas lideranças no Estado para agregar

forças políticas ao movimento iniciado no município de Iturama,

atendendo ao convite da CPT - Regional do Triângulo. Na avaliação de

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Frei Rodrigo, a aproximação com o MST foi construt iva para o

movimento, tendo em vista que:

" . . .a gente entendia, naquele momento, da necessidade de uma organização de c lasse . . . tanto que nós éramos. . . somos uma organização de Igre ja, né? Que pudesse também assumir esse processo (refere- se à lu ta pe la terra) . E como uma forma, também, de tá ajudando no crescimento do Movimento Sem-Terra no e stado de Minas Gerais ." (Fre i Rodr igo) .

Na verdade, a articulação local estabelecida entre o MST e o

DNTR/CUT, duas instituições que se originaram no interior do

movimento dos trabalhadores rurais, mas com identidades próprias,

refletia a deliberação por elas apresentadas, em nível nacional, no

sentido de articularem-se no encaminhamento das lutas por terra, em

oposição à Confederação dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG.

Tais instituições tinham a reforma agrária como bandeira de luta,

diferenciando-se, no entanto, em suas propostas sobre a concepção e

condução da reforma agrária no país. Enquanto a CONTAG enfatizava

que era necessário abrir um diálogo com o Estado na condução de

demandas por desapropriações de terras, priorizando os caminhos

institucionais, como diretrizes de luta, o MST e o DNTR/CUT entendiam

que o encaminhamento da luta pela terra se daria pela pressão direta

realizada pelos trabalhadores, tendo como principal forma de luta os

acampamentos e as ocupações massivas de terra (MEDEIROS, 1993).

O processo de mobilização e articulação estabelecido entre os

trabalhadores sem-terra e as instituições que apoiavam o movimento

resultou, então, na ocupação da fazenda Colorado no dia 23 de janeiro de

1990.

Esses trabalhadores, que eram anônimos e dispersos, sujeitos cuja

sociabilidade era marcada pela prática do mando e da obediência, a partir

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daquele momento, passaram a constituir-se como sujeito coletivo21 em

processo de luta pelo acesso à terra.

2.5 - As práticas que evidenciaram a disposição de

luta: a inserção dos trabalhadores no campo de

disputas

A ocupação da fazenda Colorado, um latifúndio de mais de 5000

ha, localizado a 60 km de Iturama, foi anunciada pelos meios de

comunicação, especialmente pela mídia impressa. As edições dos jornais

“Estado de Minas” (SEM-TERRA, 1990) e “Hoje em Dia” (CAMILO,

1990), no dia 24 de janeiro de 1990 anunciavam: “Sem-terra invadem a

Fazenda Colorado em Iturama”. A disposição dos trabalhadores sem-

terra em disputar a apropriação desse latifúndio improdutivo constituiu-

se como fato político de grande relevância, imprimindo maior

visibilidade à questão da luta pela terra na região.

Após a mobil ização de 200 trabalhadores e a realização da vistoria

na fazenda Colorado, ação indispensável ao plano de ocupação,

identif icando, sigilosamente, os aguadouros, as áreas de mata, de

pastagem, além do melhor local para ocupação, o grupo organizado, com

apoio da CPT, CUT, FETAEMG, MST, PT, sindicatos urbanos e de

trabalhadores rurais, igrejas, dentre outras entidades, tomou a decisão de

ocupar, na madrugada do dia 23 de janeiro de 1990, a fazenda Colorado.

Os representantes das instituições que apoiavam o movimento se

deslocaram para a fazenda para prestar o apoio logístico aos

21 Ut i l izamos aqui o concei to de suje i to colet ivo elaborado por SADER (1988:55), compreendido como “no sent ido de uma cole t iv idade onde se elabora uma ident idade e se organizam práticas através das quais seus membros pretendem defender seus int eresses e expressar suas vontades, const i tuindo-se nessas lu tas .”

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trabalhadores, especialmente para mediar os possíveis conflitos com

policiais militares e membros da UDR. No entanto, a ocupação realizada

pelos trabalhadores não ocorreu como haviam planejado, em razão da

ação desencadeada pela Polícia Militar em Limeira d’Oeste, que acabou

impedindo o deslocamento de cerca de 150 famílias. Edivaldo assim

reconstitui o processo de ocupação da referida fazenda:

"A pr imeira ocupação que nós f i zemos, e la não. . . não se deu da forma que a gente planejô , em função da e f ic iência da políc ia lá em Limeira d’Oeste , que foi grande , fo i maior que a nossa ( . . . ) E conseguiu f re iá grande par te dos t rabalhadores que tava saindo pra i r pra ocupação. Então, a ocupação na fazenda Colorado, não fo i uma ocupação com um grande número de famíl ias . . . Na realidade , es tavam lá dentro quarenta e poucas famí l ias ( . . . ) Mais aí nós t ivemos o apoio do Virgí l io Guimarães, como deputado, e de outras entidades várias aqui da região. . . I s so não de ixou acontecer um despe jo v iolento!" (Edivaldo) .

Após o despejo realizado pela polícia no dia seguinte, com o

respaldo da UDR, os trabalhadores dirigiram-se, pacif icamente, para o

então distrito de Vila União. Ali montaram acampamento, evidenciando

que estavam dispostos a entrar no campo de disputas para conquistarem o

direito do acesso à terra, saindo do espaço privado para constituir o

espaço público (ver FIGURAS 2 e 3). Esses novos sujeitos impuseram

sua presença na esfera pública, revelando-se por meio de seus discursos

e suas ações (ARENDT, 1991)22.

Na primeira semana no acampamento, os sem-terra,

experimentando a reação dos fazendeiros, descreveram, em carta aberta à

população de Iturama e região, suas condições de vida, a motivação que

os conduziu a partic ipar do processo de luta por uma parcela de terra,

além da disposição que tiveram para a construção da cidadania plena,

fundamentada na busca de caminhos que visavam superar a situação de

exclusão e subordinação a que foram submetidos:

22 Reme temo-nos aqui à ref lexão de Hanna Arendt sobre a plural idade humana, indicando que “na ação e no discurso os homens mostram quem são, revelam at ivamente suas ident idades pessoais e s ingulares , e assim apresentam-se ao mundo humano, enquanto suas ident idades f í s icas são reveladas, sem qualquer at iv idade própria na conformação s ingular do corpo e no som singular da voz .”(ARENDT, 1981:190) .

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FIGURA 2 - Trabalhadores juntando suas " tralhas" , após despejo da Fazenda

Colorado, 1990. Foto: Manoel Seraf im.

FIGURA 3 - Montagem do acampamento em Vi la União, 1990.

Foto: Manoel Seraf im.

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A real idade dos sem- terra de I turama é a mesma de todo o Brasi l , poucas pessoas com tanta terra sem nela nada produzir, e tantas pessoas prec isando de terra para sobrev iver e produzi r o al imento para milhões de brasi leiros , que não têm sequer para suprir a própria mesa.

O lat i fúndio c resceu nestes anos todos, às custas da miséria, da exploração e da expulsão do homem do campo. Chega! Em I turama esta s i tuação f i cou insustentável , pois a miséria cre sce a cada dia, e nós t rabalhadores não temos opor tunidade de t rabalhar. Assim começamos a nos organizar rumo à conquista da terra por dire i to e por jus t iça.

Depois de mui tas reuniões e assembléias para discuti r nossos problemas, em um número de mais de cem famí l ias , dec idimos colocar em prática um sonho de conquistar a terra e produzir . Ocupamos um imenso lat i fúndio improdutivo (Fazenda Colorado) . Este número só não fo i maior porque dezenas de famí l ias foram impedidas de se d ir igirem até o local pe lo cerco polic ial em vár ias local idades, pr incipalmente no dis t r i to de Limeira. Nós que estávamos em paz, unidos com o obje t ivo de produzir a terra, fomos despejados pe la ação da pol ícia e dos fazendeiros l iderados pela UDR, acompanhados de jagunços muito bem armados.

Apesar de toda a repressão o nosso sonho de Reforma Agrár ia, nossa disposição de lu ta e de união foi muito maior que a ganância dos la t i fundiários. Erguemos com coragem um acampamento em Vila União, que vem crescendo constantemente com a chegada de novos companheiros que t razem consigo, a confiança, a f orça, e o sonho de juntos e organizados conquistarmos a terra.

Uma caravana de t rabalhadores da região, junto com a Central Única dos Trabalhadores (CUT) , Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) , Comissão Pastoral da Terra (CPT) , Sindicatos da Região, e o Part ido dos Trabalhadores (PT) , e stão em Belo Horizonte em processo de negociação com o INCRA, e os Governos Es tadual e Federal , ex igindo solução imediata dos problemas que estamos enf rentando.

A sol idar iedade e o apoio de toda a população enviando al imentos e a ajuda na própr ia sustentação do acampamento, como já vem ocorrendo, re força a nossa lu ta que é de todos que buscam a jus t iça .

As ocupações e acampamentos são resul tado da misér ia e exploração a que estão submetidos milhões de Trabalhadores Rurais , e só terão f im no dia em que todo o t rabalhador do campo t iver acesso à terra para plantar e vive r." (TRABALHADORES RURAIS SEM-TERRA ACAMPADOS EM VILA UNIÃO, s/d) .

Nessa carta aberta, os trabalhadores revelaram sua identidade

coletiva, que vinha sendo constituída desde o momento em que

realizavam as primeiras reuniões em Limeira d’Oeste, autodefinindo-se

como “trabalhadores rurais sem-terra acampados em Vila União”. Ao

se proclamarem como sem-terra, explicitavam em nome de quem se

pronunciavam, porque se encontravam acampados, quem eram seus

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aliados e seus adversários e, sobretudo, revelavam seu projeto sócio-

político, ou seja, o sonho de conquistar o acesso à terra para plantarem a

vida.

Esses trabalhadores, ao indicarem o cenário es trutural em que

travavam suas lutas, apresentavam-se para a população como sujeitos de

sua própria história, dizendo “chega” ao processo de exclusão e

subordinação a que foram submetidos, colocando-se em cena como novos

cidadãos, que reivindicavam o acesso à terra “por direito e por justiça”.

O acampamento e a ocupação realizada no INCRA constituíram um

fato político de grande relevância, dando maior visibilidade ao

movimento na região, o que exigia um alto grau de mobilização e

organização dos trabalhadores e da rede de insti tuições que os apoiava,

desencadeando iniciativas que funcionariam como pressão junto ao

INCRA. A participação das instituições mediadoras, a exemplo da CUT,

MST, CPT e Sindicatos da região, teve importância fundamental, uma

vez que desempenhou a função de construir redes de comunicação dos

trabalhadores entre s i, como também com as instituições governamentais.

Os mediadores prestaram o apoio político necessário para o

encaminhamento das reivindicações dos sem-terra, sendo facilitadores

nas definições de estratégias de luta do movimento.

Paralelo ao auto-reconhecimento dos sem-terra como sujeitos

políticos, emergia o movimento dos proprietários de terra, organizado

pela UDR, demonstrando sua articulação política com empresários e

parlamentares, tanto em nível local como nacional.

Sentindo-se ameaçados pelas ações desencadeadas pelos sem-terra

acampados em Iturama, os grandes proprietários procuravam

desqualificar o movimento, acusando os trabalhadores de “falsos sem-

terra” . Utilizando-se da imprensa regional e nacional, a UDR acusava

haver “infil trações de comunistas e anarquistas” no acampamento dos

trabalhadores sem-terra. Articulando-se a empresários agroindustriais e

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parlamentares locais, os grandes proprietários encaminharam documentos

ao então Ministro da Agricultura23, Antônio Cabrera - que por sinal

possuía uma vasta propriedade rural no município de Iturama24 -,

acusando a CUT e o PT de “comandarem uma indústria de invasões”

[sic] . Nas palavras do Diretor Presidente da Cooperativa Agropecuária

dos Produtores Rurais de Iturama Ltda. , em ofício dirigido ao Ministro

da Agricultura, publicado no jornal “Estado de Minas” (CABRERA,

1990:4) em 01/08/1990:

“(. . . ) Somos tes temunhas que o PT e CUT es tão incent ivando invasões de terra em nossa região e o que é p ior, colocando à frente das invasões , pessoas inocentes que servem de instrumentos de ação dos l íderes pol í t icos ."

"No ense jo de evi tar maiores problemas em Iturama e região, sol ic i tamos vossa in terferência , no sent ido de nos ajudar a preservar a ordem, o re spei to e a paz em nossa c idade e munic ípio, af im de evi tar graves problemas que poderão ocorrer ( . . . )”

É interessante observar que o documento acima transcrito

constitui-se um discurso representativo do imaginário do empresariado

rural sobre os movimentos de luta pela terra. Ao solicitar a interferência

de uma autoridade governamental na ocupação realizada pelos

trabalhadores sem-terra, como forma de preservar a ordem, tal discurso

implementa a imagem de baderna ao movimento, expressando, assim, o

tradicionalismo conservador desse segmento.

O ministro Antônio Cabrera respondeu prontamente às

reivindicações dos empresários rurais e parlamentares de Iturama,

solicitando ao Ministério da Justiça a instauração de inquérito pela

Polícia Federal para apuração e investigação dos supostos envolvidos na

ocupação dos sem-terra. Em reportagem publicada no “Jornal do Brasi l”

(CABRERA, 1990), em 27/07/1990, Cabrera, encampando a linguagem

dos grandes proprietários rurais, acusava a CUT e o PT de comandar uma

23 No in íc io do seu governo, Col lor de Mel lo extinguiu , mediante a re forma adminis tra t iva , o Minis tér io da Reforma e do Desenvolvimento Agrár io, subordinando a questão agrár ia ao Ministé r io da Agricul tura. 24 Essa af irmação foi baseada nos depoimentos dos entrevis tados , indicando-nos que o minis tro , seu pai e seu f i lho t inham três propr iedades em Iturama.

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“indústria de invasões” [sic], apresentando uma lista com nomes de

representantes de instituições que apoiavam o movimento, qualif icando-

os como “falsos sem-terra” [sic], o que resultou na instauração de um

processo criminal instaurado na Justiça Federal de Uberaba - MG, como

forma de desestabilizar o processo de luta pela terra desencadeado pelos

trabalhadores em Iturama. A respeito desse processo, Edivaldo comenta:

"Eu lembro, por exemplo, que uma vez que . . . eu e mais sete companheiros fomos depor na Pol íc ia Federal . Eles tavam tachando a gente como l iderança de anarquia, de não sei o que , e ta l . ( . . . ) A Pol ícia Federal acusou a gente de formar . . . de formação de quadri lha, essas coisas, né? E aí nóis fomo colocar. . . o que era. . . qual a nossa função, cada um, né? Eu, na época, era pres idente do Sindicato ( . . . ) Então, como pres idente do Sindicato, eu , na época. . . eu colocava pro pessoal da Federal . . . que a função do Sindicato era acompanhá. . . de tá intemediando, de tá do lado dos t rabalhador . E os outro também.. . cada um t inha seu argumento, né? Porque, na realidade , a gente nunca. . . nós nunca t ivemo nenhum crime. Pode até ser que , pra eles , i s so possa se r um crime, mas a gente tá . . . Como se diz , o tempo tá mostrando que i sso não é um cr ime, é uma necessidade! Não sei , parece que pra e les i sso possa ser um crime, né? Falar que ocupar, invadir . . . É, mais acho que é uma forma de mostrar. . . que o governo, a le i . . . ta lvez , a le i que protege os la t i fundiár io é que tá errada, não é quem ocupa terra!" (Edivaldo) .

Com base na lei tura dos depoimentos dos latifundiários,

representados pela UDR, parlamentares, empresários rurais e dos

trabalhadores sem-terra, f ica evidente que esses atores sociais

disputavam espaço na cena pública, por meio de argumentações

persuasivas vinculadas à noção de direitos. Se, por um lado, os

latifundiários reivindicavam o direito i rrestri to à propriedade privada,

exercendo pressões políticas sobre o Estado para o restabelecimento da

“ordem” no campo, fundamentando-se na defesa da inviolabilidade do

direito de propriedade, por outro, os sem-terra, ao realizarem ocupações

dos espaços públicos e de propriedades improdutivas, instituíam práticas

sociais que reinterpretavam os princípios da lei, produzindo uma

jurisprudência informal fundamentada em critérios de justiça substantiva

(TELLES, 1994), estabelecendo, assim, o direito a ter direitos dos

trabalhadores sem-terra (LEFORT, 1991). Afirmando as ocupações e

acampamentos como direitos legítimos, que dão maior visibilidade à luta

pela terra, os trabalhadores contrapunham-se à denominação de invasão

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dada pelos fazendeiros. Indagados sobre a distinção que faziam entre

invasão e ocupação, os trabalhadores respondem:

" Invadir , i sso aí é uma forma que e les fala pra podê t i rá provei to! Pra diminuí bem o cara, né? Ocupô! Quer dizer que i sso é uma coisa mais. . . normal, né? Mais . . . invadiu . . . é uma coisa mui to chata, né?( . . . ) Então, e le s coloca i s so em c ima dos sem-terra pra diminui r ( . . . ) Porque , na realidade a gente ocupa porque preci sa!" (Seu Calu) .

"Bom, no meu ponto de vis ta, a di ferença entre invadir e ocupar, e la é s implesmente no sentido de . . . A conotação dessa palavra é que . . . quando fa la em invadir. . . já dá impressão como uma coisa errada! E no nosso entendimento, e ssa invasão, que é d i ta pela direi ta . . . não é uma coisa errada! Por i sso que a gente fa la em ocupá! Ocupá o e spaço! A gente vai ocupá um espaço que é nosso, por direi to! ( . . . ) a gente sabe que num passado não mui to longe, os pequeno produtores perderam suas terras na bala! ( . . . ) E aí , a gente acha que não é justo. . . que grandes gri lei ro de t erra, f ique apossando dessa te rra, às ve zes , sem produz ir nada, enquanto que o trabalhadô que quer produzí a lguma coisa. . . f ique na favela, na peri fe ria, t rabalhando de bóia- fr ia." (Edivaldo) .

Nesses dois depoimentos, podemos perceber claramente como os

sem-terra reinterpretam as concepções de invasão e ocupação,

imprimindo-lhes novas significações que conduzem ao debate sobre o

legít imo e o ilegí timo. A concepção que esses trabalhadores têm de

ocupação não se limita a conquistas legais ou ao acesso de direitos já

instituídos, mas refere-se à invenção de novos direitos, que emergem de

suas lutas específicas (DAGNINO, 1994). Nesse sentido, consideram ser

ilegí tima a situação de exclusão a que foram condenados frente ao

processo de expropriação capitalista, afirmando a legit imidade da

ocupação do espaço de latifúndios improdutivos, como um direito.

Na verdade, pode-se sugerir que a noção de legitimidade das

práticas de ocupação estabelecidas pelos sem-terra desvenda a presença

de uma nova ética dos excluídos, sancionando uma ação coletiva direta,

que é categoricamente reprovada pelos valores de ordem sustentada pelo

modelo tradicionalista dos grandes proprietários de terra25.

25 Remetemo-nos aqui à pesquisa real izada por THOMPSON, sobre os mot ins de subsis tência na Ingla ter ra do século XVIII, que desvenda a presença de um consenso popular , fundamentado numa economia moral , a respe ito de cr i tér ios de legi t imidade e i legi t imidade nas prá t icas soc ia is compar t i lhadas por membros de uma comunidade (THOMPSON, 1998) .

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Preocupado em dar visibilidade às suas lutas, o movimento

transferiu o acampamento da Vila União para as margens da BR 497, a

12 km de Iturama, numa rodovia que liga este município a Porto

Alencastro. O que as entrevistas revelam é que, se o acampamento

permanecesse em Vila União, o movimento se esvaziaria, em razão das

condições adversas que ali vivenciavam e da impossibilidade de

demonstrarem publicamente suas reivindicações num local de estrada de

terra secundária. Dessa forma, o acampamento nas margens de uma

rodovia federal tornou as lutas dos trabalhadores visíveis para a

sociedade local, constituindo-se como locus das práticas de resistência e

organização.

No campo de disputas em que se inseriram, os trabalhadores não

permaneceram passivos frente à inércia do Estado na desapropriação de

terras para o assentamento dos trabalhadores acampados, bem como ao

conflito estabelecido com os fazendeiros e seus representantes.

No dia 19 de setembro de 1990, após nove meses de espera pela

desapropriação de um latifúndio improdutivo e diante da inoperância do

governo federal, frente aos mecanismos de pressão estabelecidos pelos

sem-terra - acampamentos e ocupações de instituições como o Ministério

da Agricultura, Congresso Nacional e o próprio INCRA -, os

trabalhadores invest iram na ocupação da Fazenda Varginha, localizada

em Vila União.

No momento anterior à ocupação da Fazenda Varginha, o

acampamento, localizado na margem da BR 497 vivia um grande refluxo,

face à desistência de várias famílias de persist irem no processo de luta

pela terra. Das cento e cinqüenta famílias que viviam nesse

acampamento, restaram apenas quarenta e quatro. O desgaste, advindo

tanto do tempo de existência do acampamento como dos enfrentamentos

com os fazendeiros e com o próprio Estado, fez com que os trabalhadores

buscassem um reforço na organização interna. Para tanto, as lideranças,

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articuladas com a rede de entidades que apoiava o movimento, realizaram

um novo processo de mobilização junto aos trabalhadores rurais:

"Na minha v inda pro acampamento ( . . . ) eu já cheguei com 17 famíl ia ( . . . ) De posse das informações lá, eu já f i z um t rabalho de base, orientado pelo Zé Pret inho e o João, da Mari lda, eu trouxe 17 famil ia! ( . . . ) Quando nóis chegamo em 17 famí l ia, de uma vez, é . . . os outro que t inha saído do acampamento por. . . esmorec imento, por descrença. . . - Opa, o negócio ta bão! Vol tô tudo de novo. E de repente, o acampamento encheu!" (Zé Messias) .

De acordo com depoimento dos trabalhadores, a relação do

movimento com o Estado começava a desgastar-se, já que as propostas

apresentadas pelo INCRA e outras instâncias governamentais, no sentido

de atender às demandas dos trabalhadores, não passavam de promessas.

Por sua vez, as ações desencadeadas pelos grandes proprietários,

representados pela UDR e pelo próprio Estado, com vistas a

desqualificar as práticas de luta dos trabalhadores como baderna, exigiu

deles a ação de enfrentamento organizado. A arregimentação de forças

advindas tanto da art iculação interna do movimento, quanto das alianças

estabelecidas pela rede de entidades/instituições que apoiava os

trabalhadores, favoreceu a ocupação de mais um latifúndio improdutivo.

A reação dos grandes proprietários de terra e do Estado foi

imediata. Autorizada pelo então juiz de Direito de Iturama, Edson Magno

de Macedo, a Polícia Militar expulsou mais de 200 pessoas, dentre

mulheres, homens e crianças, à base de muita violência f ísica e

psicológica. Barroso rememora a repressão exercida pelos policiais:

"O despejo da Fazenda Varginha foi um grande sofrimento, um despejo violento.. . As pessoas foram humilhadas, amarradas, jogadas dentro d’água. Alguns sofreram afogamentos. As mulheres humilhadas, as crianças humilhadas.. . No caso das mulheres, algumas sofreram violência sexual! Não chegou a ser estrupo, mas. . . Foi uma humilhação, passavam as mãos nas mulheres para identi f icar se era homem ou mulher.. . Foi tudo muito traumático! ( . . . ) A polícia queria afrontar mesmo o movimento, afrontar a organização dos trabalhadores, no sentido de não. . . de minar mesmo o campo.. . de acabar o mal pela raiz e. . . Foi muito forte a experiência que a gente viveu! (. . .) Então, esse povo ameaçou ao extremo! (. . .) E os

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companheiros deram um testemunho de bravura, de heroísmo mesmo, de compromisso com a luta!" (Barroso).

A violência exercida pela polícia contra os t rabalhadores marcou a

presença dos fazendeiros, declarando a luta aberta contra os ocupantes da

terra. Nesse sentido, a ação do Estado sobre os conflitos no campo foi

permeada por práticas repressivas sobre os movimentos, ora abertas

como as intervenções policiais nos confl itos, ora veladas, pela omissão

quanto às ações das milícias privadas dos grandes proprietários. No caso

das práticas violentas desencadeadas pelo aparato policial em Iturama,

ficou visível a tentativa de semear o medo entre os trabalhadores, como

forma de impedir a continuidade de suas lutas. De fato, a violência

praticada pela polícia, com a conivência do poder judiciário, deixou

marcas indeléveis na memória dos trabalhadores.

No entanto as derrotas sofridas pelos trabalhadores, diante das

ações violentas desencadeadas pelos policiais, serviram como elemento

revitalizador das energias do movimento, criando, assim, condições para

seu fortalecimento.

Após o despejo violento da Fazenda Varginha e das torturas que

sofreram no pátio da Delegacia de Iturama, os trabalhadores retornaram

ao acampamento nas margens da BR 497 para revigorar suas forças,

iniciando, assim, um processo de mobilização intenso. Além de

denunciarem a violência praticada pela polícia, realizaram ocupações em

órgãos públicos e audiências com o presidente do INCRA e o ministro da

Agricultura, Antônio Cabrera, como forma de expressar suas lutas e

demonstrar a resistência e organização dos acampados, por meio de ações

reivindicatórias de desapropriação de terras para fins de reforma agrária.

Zé Maria rememora as ações reivindicatórias desencadeadas pelos

trabalhadores, junto ao INCRA e Ministério da Agricultura , a f im de

propor uma solução para o conflito entre os sem-terra e os proprietários

de terra:

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" ( . . . ) Nós procurava sempre conversá, d ialogá com o INCRA, argumentano, né? O INCRA falava que tava di f íci l , n isso e naquilo. . . A gente propunha uma solução ( . . . ) E sempre o INCRA diz ia pra nóis que a região do Tr iângulo Mineiro aqui, não e ra passível . . . não t inha te rra pra re forma agrár ia mais ( . . . ) Então nós colocou um l imite , que o nosso l imite era o Tr iângulo Mineiro . ( . . . ) Por aqui , qualquer lugar nóis quer ia terra! ( . . . ) Então, nós sempre. . . a gente cedia um pouco, mais a gente t inha uma estratégia, um l imite da nossa negociação. E al i , f o i quando a Fazenda Santo Inácio Ranchinho fo i proposta pra nós porque nós ameaçamo a entrá na própria fazenda do minis t ro Cabrera! ( . . . ) Aí , cara a cara, conversamo com e le, nós insinuamo que ia entrá na fazenda de le!" (Zé Mar ia) .

A indicação da Fazenda Santo Inácio Ranchinho, em Campo

Florido, como área passível de desapropriação para fins de reforma

agrária, foi a primeira conquista dos trabalhadores sem-terra. As

entrevistas realizadas com trabalhadores e trabalhadoras revelam que a

pressão foi o mecanismo mais eficaz nos processos de negociação com o

Estado, e, como afirma Zé Maria, foi diante da ameaça de ocupar a

fazenda do ministro da Agricultura que o Estado atendeu à reivindicação

dos sem-terra acampados em Iturama. Como a relação com o Estado era

de desconfiança, os t rabalhadores não confiavam nas promessas

realizadas, verbalmente, pelos representantes das instituições

governamentais, exigindo que os compromissos estabelecidos pelo

INCRA fossem documentados por escri to. O trecho de um documento

assinado pelo diretor do INCRA e pelas lideranças dos sem-terra,

transcrito a seguir, realça bem o resultado do poder de pressão exercido

pelos trabalhadores:

“Pontos acertados durante a reunião real izada em Brasí l i a em 12 de dezembro de 1990, com a presença do Diretor do INCRA e as l i deranças dos “ACAMPADOS DE ITURAMA”.

- Acompanhamento pr iori tário pe la DP/DF do INCRA do andamento do processo de Campo Florido, informando à CONTAG as movimentações ocorridas.

( . . . )

- Finalmente, COMO PRIORIDADE PRIMEIRA, até março de 1991 - ocorrerá a def inição do problema dos ACAMPADOS DE ITURAMA, sendo que a pr ioridade será de encaminhamento do processo de desapropriação da área de Campo F lorido (MG)”

Em 16 de abri l de 1991, foi publicada no Diário Oficial a

desapropriação, para fins de reforma agrária, da Fazenda Santo Inácio

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Ranchinho. Entretanto o processo de desapropriação não significou que a

luta dos trabalhadores estava encerrada. A fazenda em questão era um

espólio e seus herdeiros, não se sentindo derrotados, contestaram

mediante medida cautelar, o ato desapropriatório na Justiça Federal,

inviabilizando, assim, a efetivação imediata do assentamento dos

trabalhadores sem-terra.

A contestação do processo desapropriatório impôs novos desafios

aos trabalhadores sem-terra, exigindo a reelaboração permanente de suas

práticas de luta e demonstração de resistência no acampamento nas

margens da BR 497. Tratava-se de resistir na angústia da espera da

desapropriação da terra prometida, mantendo a mobilização e buscando

alternativas de sobrevivência no acampamento.

2.6 - A vida cotidiana no acampamento

A experiência do acampamento nas margens da rodovia durou três

anos e quatro meses, ou seja, de janeiro de 1990 a maio de 1993. Nesse

período, a vida em barracos de plástico, aglomerando famílias que

ficavam submetidas às condições precárias de subsistência, retratava bem

uma das faces da violência enfrentada por aqueles que já vivenciavam

uma história de exclusão social (RAMOS, 1993). As péssimas condições

de segurança, saúde e alimentação desvelavam a dimensão violenta da

nossa modernidade.

Como a permanência no acampamento era a condição necessária

para se ter acesso à terra26, os acampados viviam situações adversas. Nas

26 Regis tramos , nas ent revis tas rea l izadas, que , apesar da permanência no acampamento ser condição para o acesso à te r ra , não eram todos os membros das famí lias que permaneciam a li . Alguns entrevis tados reve lam que res idiam na zona urbana, onde t rabalhavam para dar sus tentação à renda fami lia r.

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margens da BR 497, foram registrados casos de incêndios dos barracos

(ver FIGURA 4), atropelamento de crianças, ameaças dos fazendeiros de

contaminação da água utilizada pelos acampados, disseminação de boatos

sobre o insucesso das lutas dos trabalhadores, além da perseguição e

ameaça de morte de algumas lideranças do acampamento27.

FIGURA 4 - Incêndio ocorr ido no acampamento nas margens da

BR-497, 1991. Foto: Manoel Seraf im.

As condições de alimentação, normalmente, eram bem precárias e

dependiam das arrecadações que os trabalhadores faziam junto aos

sindicatos, Igrejas e outras instituições que apoiavam o movimento, ou

mesmo de uma parte da remuneração recebida por aqueles que

trabalhavam, temporariamente, na lavoura. A busca por soluções para

superar, ainda que minimamente, as dificuldades deu-se com a

organização da cozinha comunitária. Essa prática exigiu a atuação de um

grupo para arrecadação de alimentos e de outro para preparo e

distr ibuição dos alimentos. A experiência da cozinha comunitária não

durou muito tempo, pois começou a tornar-se insatisfatória para os

27 Algumas das l ideranças do acampamento foram permanentemente per seguidas e ameaçadas de mor te por fazendeiros l igados à UDR. A estratégia u t i l izada pe los acampados para sa lvaguardar esse s trabalhadores foi o s igi lo absoluto em torno do parade iro das l ideranças, ou mesmo de qualquer dec isão t i rada em assembléias de l ibera t ivas dos sem-te rra .

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acampados, que consideravam haver muito desperdício no preparo da

comida. As famílias acampadas retornaram, então, à cozinha familiar,

sendo que os alimentos arrecadados foram repartidos por cotas, de

acordo com o tamanho da família. Muitas vezes, os alimentos tiveram

que ser racionados, chegando a faltar ocasionalmente (ver FIGURA 5).

FIGURA 5 - Di str ibuição de al imentos no acampamento, 1992.

Foto: Túlio Souza Muniz.

Sobre as condições de alimentação, seu Calu relata:

"Nóis sofremo. . . nóis v imo um f io nosso chorá, pedino um pedaço de pão e nóis num t inha pra dá! Passava um dia , dois d ia, t re is dia . . . Mais sempre t inha um f io de Deus lá fora que apoiava nossa lu ta. E quando a gente pensava que tava na pior, chegava um caminhão de mercador ia pra nóis! Tinha pacot inho que v inha com ½ qui lo de arroiz , um pacot inho de sal , né? Mais aquilo era bem-vindo, porque qualqué coisa que chegasse al i , nóis repartia!" ( seu Calu).

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Se a rede de entidades que apoiava o movimento contribuía de

forma solidária na sustentação do acampamento, o mesmo não se pode

dizer das instituições públicas e da própria sociedade local. O que as

entrevistas indicam é que a comunidade de Iturama demonstrava aversão

aos sem-terra, qualif icando-os de preguiçosos. Não contribuía com

nenhuma campanha de alimentação, acreditando ser esta uma forma de

incentivar a resistência no acampamento. Os relatos dos trabalhadores

apontam que os proprietários de terra chegaram a negar trabalho aos

sem-terra acampados, como uma estratégia para impedir qualquer fonte

de renda para aquelas famílias. A Prefeitura de Iturama, com o intuito de

boicotar a sustentação dos acampados nas margens da rodovia , chegou a

distr ibuir as cestas básicas encaminhadas pelo INCRA para os sem-terra

nas periferias da cidade. Foi necessária a ocupação dos trabalhadores nas

instalações da Prefeitura para que fossem devolvidas as cestas que lhes

pertenciam por direito.

Um outro fator que dava sustentação ao acampamento era a fé e a

esperança de conquistar um pedaço de terra. A esperança era a razão

subjetiva que motivou aqueles trabalhadores a resist irem durante mais de

três anos acampados nas margens de uma rodovia. A memória da fé e da

esperança existentes no acampamento supera a memória das dif iculdades

enfrentadas. Assim, Maria relata essa experiência:

"As famí l ia que tava al i t inha a esperança da terra saí . A mot ivação deles manter t re is anos e quatro meses al i . . . era essa! Eu acho que se f icasse se is ano, e les t i nha esperado. Por quê? A esperança de les de saí a te rra era muito grande! Aquela vontade de prantá, de chegá na te rra, de produzí era muito grande! ( . . . ) As pessoa t inha um sonho! ( . . . ) E outra coisa que al imentava a esperança, de fazê com que esse povo permaneceu esse tanto de tempo lá, fo i a fé em Deus! Nóis t inha um grupo de re f lexão, que a gente tava sempre re f le t ino e pedino à Deus. Se i lá, parece que Deus dava força pra gente tá esperano, tá passano as coisa di f íci l que passava. Fome. . . e tudo mais ." (Maria).

Germinar a fé e a esperança nos acampamentos foi a estratégia

encontrada pelos agentes pastorais da Igreja Católica, para motivar e

mobilizar os trabalhadores sem-terra a resisti rem no processo de luta por

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terra. Encontrando na Teologia da Libertação o espaço privi legiado de

atuação, os agentes da CPT/APR organizaram, no interior do

acampamento, os grupos de reflexão. Tais grupos t inham a f inalidade de

discutir problemas concretos vivenciados pelos sem-terra, tendo o texto

bíblico como referencial para reflexão (MICHELOTO, 1991). Pelo

exercício do imaginário-religioso, os grupos refletiam sobre as duras

condições que vivenciavam no cotidiano, bem como sobre a forma como

desejavam que a realidade fosse. Mediante as comparações que faziam

entre o sonho e a realidade, desenhavam o caminho a percorrer no

processo de luta. No acampamento, os trabalhadores relacionavam a

realidade vivenciada por eles com passagens da bíblia:

"E a gente l ia a B íbl ia. . . Quando aquela passagem do Moisés pra te rra prome tida. . . Sempre a gente t inha i sso na cabeça. Que um dia nóis ia pra essa t erra! Que Deus não de ixou essa terra pra uns. Deus de ixou essa terra pra todos podê sobrev ivê ( . . . ) A gente fazia aque le momento de oração. . . punha o Zé na f rente como Moisés, e o Moisés levava o povo pra terra prometida ( . . . ) do jei to que tava na Bíbl ia, a gente fazia aquela organização." (Mar ia) .

Esta passagem bíblica do êxodo para a terra prometida

representada pelos trabalhadores demonstra a crença em uma certa

estratégia divina por eles encontrada, vislumbrando, assim, a sua

disposição de lutar contra a situação a que estavam submetidos no

acampamento e organizar a caminhada para a “terra prometida” pelo

governo federal. Como afirma MICHELOTO (1991:106), os

trabalhadores encontram no discurso profético “um eficiente estímulo de

ordem psico-social” , que tem o sentido de legitimar suas ações de

resistência. É nesse discurso, pois, que os trabalhadores manifestam o

modo de expressar e organizar suas lutas.

Outra forma que os trabalhadores encontravam para fortalecer a

identidade coletiva no interior do acampamento era a realização de festas

e celebrações. Tais eventos alimentavam a animação e a res istência no

acampamento, conforme demonstra a fala de Barroso:

"Então para as pessoas preservarem no acampamento, tem que te r outros valores , outros elementos, como a f es ta , comemorar os

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aniversár ios, fazer as re zas , as celebrações, as cant igas , o Reizado, a Fol ia de Reis . . . Tinha o fu tebol , o baralho o jogo de maia! E as nossas celebrações, sempre foram celebração pol i t i zada! Celebração que ce lebrava a v ida, ce lebrava o sofr imento, ce lebrava a esperança. ( . . . ) Então, i s so ajudou a sustentar aquela comunidade!" (Barroso) .

Portanto, o acampamento era o lugar onde os trabalhadores

expressavam suas lutas. Era ali que arregimentavam forças internas para

organizar, por meio da aliança com os Sindicatos, a Igreja Católica, a

CUT, a CPT/APR e o MST, as estratégias de luta pela conquista da terra.

Para tanto, realizavam todo um trabalho de convencimento para que os

trabalhadores mantivessem a resistência no acampamento.

A experiência vivenciada no acampamento exigiu dos

trabalhadores um processo intenso de organização interna. Inspirados no

modelo comunitário da Igreja Católica - as Comunidades Eclesiais de

Base -, consti tuíram o espaço organizativo do acampamento estruturado

em comissões e grupos de vizinhança ou afinidade. Esses grupos

nucleavam os acampados em função da participação ativa de todos no

processo de tomada de decisões. As comissões de trabalho, como as de

segurança, de alimentação, de ética, de negociação, entre outras,

proporcionavam as divisões de tarefas e de responsabilidades dentro do

acampamento. Por f im, a comissão central, constituída por lideranças

dos grupos de vizinhança e por representantes das comissões de trabalho,

encarregava-se da organização interna, propondo atividades e executando

ações encaminhadas pelo coletivo dos trabalhadores.

A forma de organização que os trabalhadores construíram no

interior do acampamento possibilitava a repartição do poder, das tarefas

e da co-responsabilidade, fundamentada numa estrutura horizontalizada,

bem diversa daquelas instâncias organizativas formais que se estruturam

mediante o poder vertical, representado pelo presidente, secretário,

tesoureiro e demais membros da direção. Essa nova forma de organização

e de participação dos acampados na tomada de decisões trazia consigo

um pressuposto fundamental: um desenho mais igualitário de relações

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sociais, constituído por uma nova proposta de sociabilidade, que rompe

com o autoritarismo social enraizado na cultura política brasileira,

marcado por um ordenamento hierárquico e desigual nas relações sociais

(DAGNINO, 1994).

O estilo comunitário de organização formado em torno da luta pela

terra contava com o apoio de agentes da Pastoral da Terra, da CUT e do

MST, presenças constantes na direção do acampamento.

A princípio, a formação de uma aliança entre o MST e a CUT,

buscando uma maneira de construir uma unidade de ações em momentos

decisivamente políticos no processo de luta por terra, foi fundamental

para o fortalecimento da identidade coletiva no interior do acampamento.

Entretanto, a forma de condução do processo organizativo interno dos

trabalhadores, apresentada por essas duas insti tuições mediadoras, t inha

suas facetas diferenciadoras, o que indicava formas específicas de luta.

O movimento de luta pela terra no Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba

tinha suas especificidades e, nesse sentido, leituras diferenciadas, em

torno da natureza e dos objetivos do processo de luta que aqui se

desenvolvia, surgiam. No acampamento nas margens da BR 497, surgia

uma disputa política acirrada entre a CUT e MST, que apresentavam

projetos políticos distintos na definição de estratégias de luta,

culminando com o rompimento do movimento dos trabalhadores sem-

terra de Iturama com o MST. As falas dos trabalhadores esclarecem o

espaço de tensão entre o MST e a CUT, no interior de um movimento

instituinte.

"O MST foi o seguinte . . . A discussão polí t ica num tava bateno. Porque aí e le s é muito autori tário, në? Vamo fazê, vamo fazê! No começo, as pessoa ace i tou porque não t inha prát ica. Mais depois , e les queria mandá e as pessoa que f icava ali , queria ter d irei tos , tava lu tano por direi tos iguais e , muitas ve iz , e les quer ia por ordem, queria fazer de conta que era um fazendeiro. Então, nóis fo i sentindo i sso e, poli t icamente não deu bem!" (Maria) .

"Foi mui to interessante a part ic ipação do MST. Porque ele s também chegaro no início da caminhada. Mas chegô um momento em que ( . . . ) a época do acampamento precisava de ter . . . mui to ânimo da parte das pessoas, muita esperança. . . essa coisa prec i sava ser mui to bem alimentada! Cê precisava preparar que a

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te rra não ia resolvê com ocupação de terra! A ocupação de terra é importante, mais não é tudo no processo. Então, chegô um momento que a posição do MST, a forma como eles pensavam o acampamento, a ocupação de te rra. . . Chegô num momento. . . o acampamento achô que . . . num tava sendo viáve l . A í o pessoal resolveu a tomar a dec isão de . . . o acampamento caminhá soz inho. Foi quando houve um racha, onde o MST t eve que saí do acampamento ( . . . ) E o apoio mais forte que t inha e ra o da CUT, mais o apoio que t inha mesmo e ra das pessoa que viv ia no acampamento." (Zé Mar ia) .

"O MST foi pra região de I turama a convite nosso, mas foi uma re lação um tanto confl i tuosa. Porque mesmo a gente entendendo a força do MST, da re forma agrária , da impor tância do MST pra lu ta no Brasi l , nós t ínhamos alguns pontos de divergência, que e ra com re lação à concepção, ao método, à dinâmica. . . Então nós t ivemos algumas di f iculdades na condução do processo, porque , além do MST, t inham outras ent idades que part icipavam do processo ( . . . ) E o MST se sent ia dono da lu ta, a d ireção, inclusive! E todas e ssas entidade deveria ser , s implesmente, apoio , apoiadores da parte de sustentação logís t ica mater ial do processo. Essas entidades seriam.. . f icariam ali jadas do direi to à opinião, à part icipação, à re f lexão pol í t ica, né?" (Barroso) .

Tais relatos revelam que a fragilidade da aliança estabelecida entre

o movimento dos trabalhadores sem-terra de Iturama e o MST foi

resultante de um certo autoritarismo que norteava as ações desse

Movimento. Nesse sentido, há uma convergência com a avaliação de

LOPES et al. (1999:182), sobre as ações do MST no processo de luta por

terra em Sergipe, ao revelar que:

“Tem sido práti ca costumeira do MST descons iderar propos tas de encaminhamento t i radas em conjunto com outras entidades, mesmo tendo concordado com e las , e depois agir sozinho. Ou ainda, atuar de forma ut i l i taris ta, procurando e serv indo-se dos seus al iados apenas quando seus int eresses estão em jogo.”

Ao analisar a trajetória do MST nos últimos anos, NAVARRO

(1996) expõe que, a partir de 1987/1988, o movimento mudou sua forma

de organização, deixando de realizar consultas às suas bases, com uma

prática assídua de reuniões e decisões sistemáticas, passando a

centralizar suas decisões, tornado-se menos democrático e mais fechado

à participação de outras entidades mediadoras, isolando-se dos outros

movimentos sociais.

Há que se observar, ainda, que a trajetória de luta dos

trabalhadores sem-terra no Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba teve as

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suas especificidades. A emergência dos movimentos de luta pela terra

nesta região se deu com a iniciativa e apoio dos sindicatos filiados à

CUT. Essa entidade reconhecia o MST como vanguarda da luta pela

terra, avaliando, no entanto, que era necessário evitar o isolamento

político nos movimentos de luta por terra, como forma de suprimir o

caráter de uma luta particular dos sem-terra (MEDEIROS, 1993). Daí a

sua defesa na construção de alianças mais amplas, particularmente, com

os trabalhadores urbanos, como forma de fortalecer o movimento de

pressão / negociação junto ao Estado, por maior agilidade no processo de

viabilização da reforma agrária. Assim, na disputa travada entre CUT e

MST no interior do acampamento, a primeira ganhou maior legit imidade

para tornar-se porta-voz dos sem-terra em Iturama, especialmente porque

a CUT já realizava um trabalho de assessoria junto aos movimentos de

trabalhadores na região.

A criação e a sustentação de ações coletivas internas eram

ampliadas pelas ações externas em defesa da desapropriação da terra.

Ocupações em insti tuições públicas como o Ministério da Justiça, o

Congresso Nacional e as sedes do INCRA em Brasília e Belo Horizonte,

foram as ações desencadeadas pelos trabalhadores, quando encontravam

obstáculos no processo de desapropriação da terra, reivindicando maior

agilidade na execução da reforma agrária28.

Muitas vezes, na luta pela desapropriação da terra , os

acampamentos eram montados em frente a prédios públicos como forma

de demonstrar publicamente o processo de luta. Um fato sempre

rememorado pelos trabalhadores foi o acampamento realizado em frente

ao Congresso Nacional.

"Nói s fo i em Brasí l ia e f izemo uns barraquinho lá! ( . . . ) Mais o acampamento fo i tão organizado, tão organizado. . . que nóis cheguemo lá e. . . Oia, parô o ônibus, só se via gente f incando pau

28 Ta is ações faziam-se necessár ia s, não apenas pe la morosidade do processo de desapropr iação, mas, fundamenta lmente , em razão do recuo em que se encontrava o processo de reforma agrár ia naquele per íodo, exigindo dos trabalhadores a t ividades contínuas de enf rentamento organizado.

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( . . . ) Parece que com tr in ta minuto, nóis t i nha 28 barraquinho lá!" (Seu Calu).

Enquanto as famílias levantavam barracas em frente aos prédios

públicos, uma comissão formada por lideranças do movimento e

entidades mediadoras estabelecia negociações com o Estado sobre os

rumos tomados para a execução da política de acesso à terra.

Entretanto a forma de pressão mais eficiente daqueles

trabalhadores, diante da inércia do Estado na condução do processo de

desapropriação prometida aos sem-terra foi a ocupação direta de

instituições públicas, pela qual as famílias ocupavam um espaço de um

órgão definido como estratégico para atingir um objetivo de luta. Nesse

caso, as famílias faziam do lugar ocupado um espaço para negociação,

alimentação, dormitório e lazer para as crianças. Por sua vez, a direção e

os funcionários da instituição ocupada tinham que conviver com a

presença incômoda dos sem-terra, até que uma solução razoável fosse

encontrada no processo de negociação.

As ocupações de inst ituições públicas também ficaram marcadas na

memória dos trabalhadores:

"As ocupações se dá quando as promessa não é cumprida. O INCRA faz ia vár ias promessa e não cumpria . . . A gente ia lá e ocupava o INCRA ex igindo o cumprimento da promessa. A gente ocupava porque a gente t inha estratégia, né? Uma ve iz, eu me alembro, nóis conseguimo ocupá o INCRA nacional . A gente conseguiu ocupá todos e levador na mesma hora, e quando a turma viu, a gente já tava lá! O que a gente quir ia é forçá uma negociação e ta l ." (Lourival) .

A mobilização dos meios de comunicação, especialmente a

imprensa, foi outra estratégia utilizada pelos trabalhadores sem-terra.

Por meio da divulgação nos jornais e nas redes de televisão, os

trabalhadores levavam ao conhecimento de toda a sociedade os objetivos

de suas lutas, das ações desencadeadas pelo movimento, mobilizando a

opinião pública, que também exercia pressão junto ao Estado.

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Tais fatores f izeram com que as demandas dos sem-terra

alcançassem ressonância na esfera pública, permitindo que as lideranças

tivessem maior acesso às autoridades governamentais, conferindo, assim,

maior visibil idade ao movimento, além de colocar a luta pela terra como

centro dos acontecimentos na região.

Ao criar mecanismos próprios de luta, procurando por intermédio

deles interferir na dinâmica do processo de reforma agrária, os

trabalhadores e trabalhadoras acampados tornaram-se sujeitos de sua

própria história. É certo que as ações dos sindicatos, dos movimentos

sociais, da Igreja, dos partidos, entre outras entidades, foram

fundamentais para projetar a luta dos trabalhadores para fora, para

articular alianças, ou mesmo para fazer a costura dessa luta específica

com lutas mais gerais. No entanto, foi a partir de tensões e relações

conflituosas vivenciadas pelos sem-terra , que se desencadearam ações e

reações que iam desde a formação de uma rede solidária para sustentação

do acampamento à organização de práticas informais de negociação com

o Estado, em defesa do que consideravam legítimo, tornando-se,

portanto, sujeitos do seu próprio destino.

2.7 - A chegada à terra prometida

O movimento dos trabalhadores sem-terra em Iturama desencadeou

ações coletivas que permitiram a resistência no acampamento à beira da

BR 497 por mais de três anos, aguardando a posse definitiva da área

desapropriada pelo INCRA em Campo Florido. No entanto as ocupações

de órgãos estatais, e a realização de assembléias nos espaços públicos,

como poder de pressão organizado pelos trabalhadores sem-terra,

estavam se tornando inócuas. Cientes da inércia do INCRA e da própria

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Justiça frente ao acampamento29, os acampados realizaram, no dia 05 de

abril de 1993, nas margens da BR 497, uma assembléia com o então

ministro da Agricultura e Reforma Agrária, Lázaro Barbosa, e o

presidente do INCRA, Oswaldo Russo, reivindicando a agilidade do

Estado no processo de desapropriação. Nesse evento, os trabalhadores

registraram sua disposição de luta para a conquista da terra, carregando

uma faixa com os dizeres: “Fome: é guerra. Queremos terra” (ver

FIGURA 6). A promessa dos representantes do Estado era de que, até o

final daquele ano, os trabalhadores estariam assentados na Santo Inácio

Ranchinho. Entretanto o movimento não confiava mais nas propostas

apresentadas pelo governo federal.

Na verdade, a trajetória dos trabalhadores sem-terra em Iturama

insere-se num quadro de equívocos que foi a polít ica agrária

implementada pelo Estado, especialmente após o expressivo recuo que a

Constituição de 1988 trouxe à reforma agrária, tornando o latifúndio

insuscetível de desapropriação, pelo menos até que fosse regulamentado

o tema por meio da Lei Agrária. A Justiça, por seu lado, assinala sua

ambigüidade no tratamento da questão agrária, concedendo a imissão da

posse da área desapropriada ao INCRA e, paralelamente, dando liminar

favorável aos proprietários expropriados.

Os enfrentamentos com o Estado, o desgaste do movimento

advindo do tempo de existência do acampamento, que já somava três

anos e quatro meses de luta sem alcançar os objetivos propostos, e as

péssimas condições de saúde e alimentação foram alavancas para a

reelaboração de práticas de resistência, que definiram a ocupação da

fazenda Santo Inácio Ranchinho. Tratava-se, novamente, de romper com

a legalidade colocada pelo direito formal, instaurando-se práticas de

29 Em 17 de novembro de 1992, a Jus t iça Federa l assinou o auto de imissão de posse def ini t iva da fazenda Santo Inác io Ranchinho ao INCRA. Contudo, os propr iet ár ios expropr iados t iveram assegurados seus dire i tos de defe sa , mediante uma ação impet rada na 12ª Vara da Seção Judiciár ia de Minas Gera is , impedindo que as famí lias fossem assentadas no local .

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transgressão de normas legais e “produção de uma legalidade informal

com uma jurisdição própria e localizada” (TELLES, 1994:95).

FIGURA 6 - Manifestação dos traba lhadores sem-terra , por

ocas ião da vis i ta do Ministro da Agr icul tura e do Pres idente do INCRA ao assentamento da Fazenda Barreiro, em Iturama, 1993.

Foto: Eithe l Lobianco.

Após a decisão de ocupar a terra prometida pelo INCRA, tomada

em assembléia, os trabalhadores formaram três comissões: uma que se

encarregou de vistoriar a fazenda Santo Inácio Ranchinho, identificando

o local ideal para acamparem, como também as possibilidades e riscos de

enfrentamento com os ex-proprietários; outra responsável por definir e

executar as ações de deslocamento de Iturama para Campo Florido; e a

terceira, que buscava a articulação da rede de entidades mediadoras para

prestar apoio político na ocupação. As ações que desencadearam na

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ocupação da fazenda exigiam um sigilo absoluto dos trabalhadores para

que não se despertasse reação alguma por parte dos grandes proprietários

da região, ou mesmo do próprio Estado, no sentido de impedir o projeto

de apropriação do espaço a ser conquistado pelos sem-terra.

O que os trabalhadores e trabalhadoras revelam-nos nas entrevistas

é que, como estavam sendo permanentemente vigiados pela polícia que

rondava no entorno do acampamento, resolveram simular, após a

realização da vistoria da fazenda Santo Inácio Ranchinho, uma festa no

local com forma de despistar os policiais, enquanto preparavam a

formação de um comboio que os conduziria até a fazenda Santo Inácio

Ranchinho.

Na viagem de Iturama até a fazenda, caminhões e ônibus

percorreram mais de 250 Km, carregando as tralhas, conduzindo homens,

mulheres, jovens e crianças, que se acotovelavam em silêncio,

carregando consigo um sentimento misto de medo e esperança em chegar

à terra a ser conquis tada. O comboio percorreu estradas secundárias para

evitar as barreiras da Polícia Rodoviária Federal durante toda a noite,

chegando ao local onde montaram um novo acampamento no alvorecer do

dia 19 de maio de 1993 (ver FIGURAS 7 e 8).

O relato de Barroso revive a memória da ocupação da fazenda

Santo Inácio Ranchinho:

"Foi operação mil i tar! ( . . . ) Mas foi mui to signi f icat iva a entrada nossa em Campo F lorido! Pareceu a comi tiva no Mar Vermelho! Aquele nascer do sol , aque le dia 19 de maio fo i . . . um nascer de sol di ferente! Ali , todos nós t i vemos a convicção de que a gente tava f i ncano o pé na nossa terra! E daí , a gente não ia sair! Todos os trabalhadores pensavam is to! Todos! Al i era de fa to uma nova era!" (Barroso) .

Em sua fala, Barroso expressa o caráter messiânico do processo de

luta pela terra, resgatando a passagem do êxodo do povo hebreu à terra

prometida. A expressão “terra prometida”, muito valorizada por agentes

da Pastoral da Terra, como afirma MICHELOTO (1991), foi assimilada

pelos trabalhadores para fundamentar que o direito à terra teve uma

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dimensão simbólica, vinculando, assim, a passagem bíblica com a

promessa do governo federal em efetivar a desapropriação da fazenda

Santo Inácio Ranchinho. A convicção de fincar o pé na terra , para dela

não sair, simboliza a disposição que aqueles trabalhadores tiveram em

disputar a apropriação do latifúndio improdutivo.

O processo de ocupação da terra em Campo Florido constituiu-se,

portanto, como fato político de grande relevância, tornando-se um marco

divisor no imaginário da luta pela terra no Triângulo Mineiro/Alto

Paranaíba. A entrada na fazenda deu-se de forma pacífica, não havendo

confrontos com os herdeiros do espólio, já desapropriado pelo INCRA,

nem mesmo com a Polícia Militar. A ocupação ganhou visibilidade nos

meios de comunicação, principalmente na mídia impressa, que passou a

fazer cobertura das ações desencadeadas pelos trabalhadores, na tentativa

de efetivar a desapropriação da fazenda30.

FIGURA 7 - Chegada dos t raba lhadores à " terra promet ida" , Fazenda Santo Inácio Ranchinho em 19 de maio de 1993.

Foto: Gilson Goular t Carr i jo.

FIGURA 8 - Montagem do acampamento na Fazenda Santo Inác io

Ranchinho, 1993.

30Os jorna is da região cobr i ram o processo de ocupação na Santo Inác io Ranchinho por um per íodo de doi s meses , acompanhando quase que diar iamente as ações de disputa do la t ifúndio improdut ivo.

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Foto: Túlio Souza Muniz.

Os jornais “Correio do Triângulo” e “O Triângulo” declaravam:

“Os sem-terra ocupam fazenda em Campo Florido” (OS SEM-TERRA,

1993), “Sem-terras invadem fazenda desapropriada em Campo Florido”

(SEM-TERRAS, 1993), “Sem-terra e proprietários da fazenda se reúnem

em BH” (MARTINS, 1993), evidenciando que os trabalhadores estavam

dispostos a entrar no campo de disputas para conquistar o latifúndio

improdutivo, impondo para o espaço público, o reconhecimento de suas

reivindicações de direito ao acesso à terra, além de dar visibilidade

social às suas demandas.

Uma das herdeiras da fazenda entrou com um mandato de despejo

na Justiça de Uberaba. Entretanto o processo foi julgado de modo

favorável aos trabalhadores, que permaneceram acampados no local.

Uma outra estratégia política realizada pelos trabalhadores foi a

ida da Comissão de Negociação ao INCRA, simultaneamente ao processo

de ocupação, para apresentar as reivindicações e negociar, junto com as

entidades mediadoras, as propostas apresentadas por esse órgão ao

movimento.

Os trabalhadores t inham a clareza de que somente pelos

mecanismos de pressão levariam o Estado a efetivar o processo de

desapropriação da área ocupada . Nesse sentido, um intenso processo de

mobilização foi realizado: l ideranças do acampamento, apoiadas por

deputados estaduais e representantes da CUT e FETAEMG, participavam

de reuniões de negociação com um dos herdeiros, com a intermediação

do INCRA, objetivando a efetivação da posse de parte da área

desapropriada; trabalhadores apresentaram à Justiça Federal um dossiê,

relatando toda a tra jetória por eles vivenciada, visando sensibilizá-la

para a desapropriação da fazenda ocupada; as outras entidades que

apoiavam o movimento, reforçavam as reivindicações dos sem-terra junto

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à Justiça e ao próprio INCRA para dar uma solução favorável às famílias

acampadas na fazenda Santo Inácio Ranchinho.

A instalação dos sem-terra na fazenda ocorreu de maneira precária

e improvisada, e eles continuaram a morar em barracos cobertos de

plástico, sem as mínimas condições de conforto, enfrentando problemas

de saúde e alimentação. As famílias acampadas aglomeraram-se próximo

à represa do Córrego das Candinhas, considerada como uma área própria

para abastecer os barracos de água, além de ser aproveitável para o

plantio de uma horta comunitária. A aglomeração das famílias num

mesmo local foi necessária para manter a segurança dentro do

acampamento, já que consideravam estarem sendo permanentemente

vigiados pelos ex-proprietários, que não se viam derrotados, enquanto

prosseguiam acionando a Justiça com processos de contestação da

desapropriação.

Buscando efetivar a ocupação do território disputado, a luta e a

resistência dos trabalhadores continuavam. Ao se deslocarem de Iturama,

para conquistar a terra prometida em Campo Florido, os trabalhadores

sofreram um processo de desterri torialização, defrontando-se com o

espaço da espoliação capitalista, além de terem deixado atrás toda uma

referência cultural para se encontrarem com outra. A ocupação desse

novo espaço, const ituído como território, exigia o entendimento da nova

realidade do lugar, que, num primeiro momento, era estranha para eles.

Para se relacionarem com a nova realidade por eles experimentada, os

trabalhadores recuperaram as experiências vividas no acampamento à

beira da estrada para a organização do efetivo projeto de conquista da

terra. O modelo de organização vivenciado nas margens da BR 497 foi

instituído no acampamento da fazenda Santo Inácio Ranchinho, com a

formação da Associação local, cuja direção colegiada estruturou-se

mediante uma comissão central, comissões de trabalho e grupos

formados por afinidade, que se constituíram como grupos de produção

coletiva.

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Os trabalhadores adquiriram, por meio de doações, dois t ratores

para uso coletivo, iniciando a preparação para o plantio de arroz e feijão

de forma coletiva em áreas contínuas, onde o INCRA já havia negociado

a desapropriação definitiva31. A produção de arroz e feijão foi destinada

à sustentação das famílias acampadas, sendo que a safra agrícola 93/94

do acampamento foi de 2.419 sacas de arroz. A safra de feijão só não

teve resultados mais eficazes, em razão das geadas ocorridas naquela

ocasião. Outra experiência de produção coletiva foi a horta comunitária,

em que produziam alface, tomate, quiabo, ji ló, beringela, abóbora, entre

outras hortaliças. A formação da horta coletiva, de acordo com os

entrevistados, foi essencial para a alimentação das famílias acampadas.

A operacionalização da produção deu-se mediante o repasse de recursos

financeiros advindos de organizações não-governamentais e subvenções

de deputados estaduais. O Estado só se fez presente no repasse de cestas

básicas pelo INCRA e na viabilização do plantio de feijão, por meio de

recursos f inanceiros repassados pela Secretaria de Estado do Trabalho e

Ação Social, para aquisição de sementes, adubos e implementos

agrícolas.

A experiência de produção coletiva em pequenos grupos, ligados

entre si por identidades ancoradas em afinidades e re lações de

parentesco, local de origem ou mesmo por vinculação polí tica, foi uma

tentativa gestada pelas lideranças do acampamento como meio de

estimular a adoção de formas coletivas de exploração da terra, além de

constituir-se como uma experiência de gestão econômica do território

que seria conquistado.

A viabilização da produção, ainda na fase de acampamento,

significava, para aqueles t rabalhadores, não só a condição para a

sobrevivência das famílias acampadas, mas, fundamentalmente,

31 Como a fazenda Santo Inác io Ranchinho cons ti tu ía-se como um espólio de três herdeiras , o INCRA fechou acordo com duas, que venderam suas par te s da fazenda , cor respondente a 510 ha . A terce ira herde ira, que detinha a ma ior área do imóvel ,

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afirmação política e social, meio de legitimação frente à população e

autoridades públicas de Campo Florido.

A relação estabelecida entre os t rabalhadores e o Estado foi

marcada por pressões e reivindicações, sempre maiores que as propostas

definidas pelas instâncias governamentais ali presentes. Era uma

correlação de forças, muitas vezes, desigual. Contudo, em vários

momentos, a pressão dos trabalhadores vencia os limites colocados pelo

poder público. Exemplo disso foi a instalação de uma Escola Municipal

no local, ainda na fase de acampamento. Os trabalhadores, reivindicando

o direito à educação das crianças acampadas, ocuparam o gabinete do

Prefeito de Campo Florido, determinados a permanecer ali , até que

ficasse garantida a implementação de uma escola na fazenda Santo Inácio

Ranchinho. A reivindicação foi atendida com a designação de

professoras da rede municipal para ministrarem aulas no interior do

acampamento, bem como a imediata construção da escola, em regime de

mutirão.

Entretanto, o que revelou a determinação dos trabalhadores em

efetivar o controle do território apropriado foi a expulsão dos carvoeiros

que estavam instalados na área ocupada, bem como a retirada do gado

das pastagens de braquiária, área que a herdeira da fazenda mantinha

arrendada para fazendeiros da região, como forma de mascarar a

produtividade do latifúndio. Eis o que revelam os trabalhadores sobre os

conflitos desencadeados para a disputa do território:

"Nós começamos comprando a briga com os carvoeiros que tavam aqui, pra dizer que não dev ia mais explorar a fazenda, não dev ia que imar carvão, não t i rar madeira. . . O que t inha aqui dev ia de ser nosso! Uma vez, nós carregamo uma carre ta de madeira na marra! O dono da carvoe ira fo i e buscou a políc ia de Uberaba. . . que veio armada e ameaçou dar t i ro em nós . . . Foi um pega danado! Nós resis t imos com muita força! Foi naqueles d ias que t inha o massacre de Corumbiara! E nós. . . sustentamos toda aquela pressão!" (Barroso) .

permaneceu ir r edut ível na venda de sua par te , mantendo a ação contesta tór ia de desapropr iação na Jus t iça Federa l .

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"Passou um tempo, nóis metemo o pe i to, sem esperar a legalidade . . . Nóis botamo o gado do fazendeiro pra fora! Daqui pra frente o gado é nosso! Tinha gente que alugava o pasto. O fazende iro mesmo, não t inha gado. Eles alugavam o pas to! Nóis botamo pra fora e dissemo: - Daqui pra f rente quem aluga pas to somos nóis! Os mesmo dono de gado, que pagava pro fazende iro, se quisesse pasto, t inha que pagá pra nóis! ( . . . ) Foi um gesto de determinação! Determinação pol í t ica: quem faz o que. . . quem sabe o valor que tem, o dire i to que tem.. . quem vai usufruir das r iqueza do assentamento somos nóis! " (Zé Mar ia) .

O que esses relatos nos revelam é que os trabalhadores sem-terra

afirmaram-se como sujeitos, na persistência de conquistar o latifúndio

improdutivo para nele plantarem os seus sonhos de uma vida mais digna.

Foi nesse conjunto de práticas e ações que os trabalhadores fortaleceram

a identidade coletiva, construída no acampamento às margens da rodovia

em Iturama. Em decorrência de tais ações, reinventaram o espaço da

política, ligado ao processo de mobil ização e resistência na luta pela

terra. Nesse sentido, concordamos com SADER (1988:312), ao afirmar

que:

“Apoiando-se em valores da just iça contra as di f iculdades imperante s da soc iedade; da sol idar iedade entre os dominados, os trabalhadores, os pobres; da dignidade cons ti tu ída na própria lu ta em que fazem reconhecer seu valor; f izeram da af irmação da própria ident idade um valor que antecede cálculos rac ionai s para obtenção de objet ivos concre tos .”

Consideramos, também, que, na fase do acampamento, por força do

convívio cotidiano e dos enfrentamentos realizados coletivamente contra

seus opositores, os trabalhadores estabeleceram novas formas de

sociabilidade, possibilitadas pelo alargamento de horizontes de vida e de

novas convivências, por meio das quais “a sociedade é l iteralmente

reinventada” (MARTINS, 2000:47), rompendo, assim, com o

enraizamento do autoritarismo social.

2.8 - A realização de um sonho: a reforma agrária na

Nova Santo Inácio Ranchinho

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Como vimos, a ocupação da fazenda Santo Inácio Ranchinho pelos

trabalhadores sem-terra não era uma luta encerrada. Os acampados

apropriaram-se do espaço disputado com os antigos proprietários do

latifúndio, mas somente com a decisão da Justiça Federal a respeito da

desapropriação do imóvel para fins de reforma agrária é que seriam

portadores da vitória que os faria legítimos beneficiários da terra.

Naquele momento, fazia-se necessário que os trabalhadores se

submetessem ao mecanismo jurídico-legal, a única forma existente para

efetivação do processo de desapropriação e, conseqüentemente, do

projeto de assentamento para f ins de reforma agrária.

As ações contestatórias de desapropriação do imóvel improdutivo,

impetradas pelos proprietários expropriados, foram bem sucedidas, já

que, dentro dos marcos constitucionais que vigoravam na época, foi

possível uma interminável t ramitação burocrática dos processos

desapropriatórios nos tr ibunais. Foi somente com a instituição da Lei

Agrária, de 25 de fevereiro de 1993, que dispunha sobre a

regulamentação dos dispositivos const itucionais relativos à reforma

agrária, que se criaram mecanismos para efetivar as ações

desapropriatórias, perante o juízo federal competente, como indica

ABRAMOVAY (1992-b). Portanto, sem o estabelecimento de critérios

explícitos que definissem os índices de produtividade para cumprir a

função social da propriedade, as desapropriações para fins de reforma

agrária não ofereceriam condições jurídicas para que fossem

viabilizadas.

Os obstáculos que os trabalhadores enfrentavam para apropriação

definitiva do latifúndio improdutivo eram jurídicos. Por isso,

aguardavam a decisão do Supremo Tribunal de Justiça, que julgaria o

processo de desapropriação da fazenda Santo Inácio Ranchinho. Uma

comissão de trabalhadores viajava, freqüentemente, para Brasília para

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verificar a si tuação do processo judicial de contestação da

desapropriação e as ações de defesa do INCRA para a efetivação da

desapropriação, mantendo-se bem informada sobre o andamento do

processo.

A vitória dos trabalhadores concretizou-se no dia 05 de outubro de

1993, quando a liminar favorável aos antigos proprietários foi derrubada,

efetivando-se, assim, a desapropriação dos 3.890 ha da Santo Inácio

Ranchinho. Fundamentando-se na Lei Agrária, os juizes do Supremo

Tribunal Federal votaram favoravelmente aos interesses dos

trabalhadores, ficando estabelecido, juridicamente, o direito do acesso à

terra. O único entrave existente para o assentamento definit ivo das 107

famílias na terra, efetivamente desapropriada, era a formulação do

Projeto de Assentamento, que garantiria recursos f inanceiros para

aquisição de equipamentos, sementes, adubos, defensivos agrícolas, além

do crédito-alimentação. Os trabalhadores, mais uma vez, organizaram

diferentes formas de pressão e negociação junto ao INCRA para serem

incluídos na programação orçamentária desse órgão, garantindo, assim,

os recursos financeiros para o custeio agrícola.

No dia 11 de março de 1994, já organizados formalmente na

Associação Nova Santo Inácio Ranchinho, os trabalhadores

encaminharam um documento ao Superintendente do INCRA - MG,

contendo a pauta de reivindicações por eles formulada:

“Após cinco anos de muita lu ta, fome e mi sér ia, problemas que não foram totalmente superados, nos dirig imos a essa Superintendência, não mais como ‘sem-te rras’ e sim como produtores rurais para re latarmos as dec isões tomadas por todos assentados e apresentarmos uma pauta de re ivindicações que, se atendida, poss ibi l i tará o avanço de nossa organização e de nossa produção.

Na madrugada do dia 19 de maio de 1993, saímos da Br 497, em I turama, e entramos na Fazenda Santo Inácio-Ranchinho, em Campo Florido, para nunca mais sairmos. Fel izmente já es tamos com a imissão de posse e t í t ulo em nome da União.

Neste momento nos encontramos organizados em agrovi la e a nossa produção será toda colet iva, apesar da i rr i sória ajuda que recebemos do INCRA.

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Com a ajuda de várias entidades e da população da região, já possuímos dois t ratores e implementos, vacas , cavalos, fe rramentas , barracos cobertos com telha, e tc . e , depois de mui ta lu ta, a Pre fei tura local es tá construindo uma escola no assentamento, es tando, desde já, garant ido o ano le t ivo das crianças, com aulas sendo minis t radas em salas improvisadas.

Fundamos a Associação, baseada na organização que construímos nos t rês anos e meio em que v ivemos às margens da rodovia . Ela é composta pe la Assemblé ia Geral , os grupos de base, que são oito, a Comissão Central (coordenação colegiada) e as comissões espec í f icas: saúde , educação, meio-ambiente , f inanças, espor te e lazer , etc . Nossa Associação não possui presidente, ex iste a f igura do Animador Geral , só para efei to jur ídico, sendo que a Comissão Central re sponde pelo assentamento.

( . . . )

Diante do expos to, apresentamos a esta Super intendênc ia do INCRA, a seguinte pauta:

01) Liberação imediata de crédito al imentação, por um período mínimo de 06 meses , tendo em v ista que, em função do irr isório crédi to fornec ido pe lo INCRA até então, a produção não se rá suf ic iente para a sobrev ivência das famíl ias a té a próx ima safra;

02) Assis tênc ia médica-odontológica, urgentemente , no assentamento, bem como a doação de medicamentos e a construção imediata de um posto de saúde;

03) Liberação imediata do PROCERA, na forma de custe io e invest imento;

04) Viabi l i zação através de outros órgãos do governo, se necessár io da aquisição de máquinas, implementos agrícolas e fe rramentas;

05) Viabi l i zação da compra de bovinos le i te i ros e eqüinos para tração e locomoção;

06) Viabi l i zação da compra de sementes e outros insumos;

07) Liberação imediata do crédito moradia;

08) Viabi l i zação da construção de uma creche no assentamento;

09) Implantação de um centro de lazer, com quadras de e spor te, campo de fu tebol , parque infanti l , p isc inas, etc . ;

10) Ele tr i f icação rural , imediata, em todo o assentamento;

11) Viabi l i zação da implantação de um t ele fone público.

Sendo o que se apresenta para o momento, despedímo-nos, sol ic i tando o atendimento imediato de nossas re iv indicações." (TRABALHADORES RURAIS ASSENTADOS NA FAZENDA SANTO INÁCIO-RANCHINHO, 1994) .

O trecho do documento acima transcrito constitui um discurso

representativo dos trabalhadores sobre a trajetória de luta por eles

experimentada, desde a época em que viviam acampados nas margens da

BR 497, demonstrando que, no fazer de suas lutas, foram dando passos

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para expressar suas vontades e realizar suas escolhas. E, assim,

verificamos que, na organização da ação política e da construção de

práticas sociais para a conquista da terra, os trabalhadores foram

construindo uma identidade coletiva, impondo para o espaço público o

reconhecimento de sua cidadania (GRZYBOWSKI, 1991 e MEDEIROS,

1989). Ao indicarem que conquistaram o latifúndio improdutivo, com a

imissão de posse e o título da terra em nome da União, afirmaram sua

identidade, não mais como sem-terra, mas como produtores rurais. Como

diz ARENDT (1983), é pela ação e pelo discurso que os indivíduos

mostram quem são e revelam suas identidades. Pelo fazer de suas ações e

pelo discurso, é que esses trabalhadores, homens e mulheres, idosos,

jovens e crianças, foram construindo uma história coletiva.

Dessa maneira, foi no processo de constituição de práticas

conjuntas que a identidade coletiva, construída e fortalecida ao longo

desses quatro anos, mostrou a sua força social e política. Nesse sentido,

os t rabalhadores afirmaram sua autonomia frente ao Estado, fazendo-o

reconhecer suas reivindicações concretas: o direito à produção, à

moradia, à assistência médico-odontológica, à creche, à rede elétrica e

de telefonia, ao lazer e a um meio ambiente sustentável. Foi pela sua

autodeterminação, no processo luta e conquista da terra e da afirmação

de suas reivindicações, que transformaram suas necessidades e carências

em direitos, redefinindo o espaço da cidadania (DURHAM, 1984-a).

Naturalmente, nesse processo, o papel desempenhado pelas instituições

mediadoras foi relevante. As ações e os discursos do movimento

sindical, bem como da Igreja, representada pela CPT/APR, estiveram

presentes no movimento de luta pela terra, contribuindo para a sua

vi talidade.

Entretanto é a experiência comum dos trabalhadores, construída e

partilhada ao longo dos anos, que se configura como constituição da

cidadania. Ao fazer valer seus interesses, esses trabalhadores agruparam-

se, aliaram-se a diversos segmentos da sociedade civil , enfrentaram o

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Estado e seus opositores, “forjando-se a si mesmos como sujeitos

coletivos, com identidade sociocultural própria e formas específicas de

organização e partic ipação” (GRZYBOWSKI, 1991:14). Foi no fazer de

suas práticas sociais que reinterpretaram a realidade instituída,

imprimindo a ela novas significações, gestando, assim, uma nova ética

que rompeu com o autori tarismo social, tão enraizado na sociedade

brasileira (DAGNINO, 1994).

O sonho da reforma agrária na fazenda Santo Inácio Ranchinho

realizou-se em 26 de maio de 1994, quando o INCRA criou, naquele

espaço o Projeto de Assentamento, que passou a ser denominado como

fazenda Nova Santo Inácio Ranchinho. O conjunto de práticas sociais e

políticas estabelecido pelo movimento de luta pela terra transformou o

cenário em que os trabalhadores travaram suas lutas. O tipo de progresso

e de espaço rural aí concebido foi questionado por esse sujeito coletivo,

que passou a lutar por direitos de cidadania.

Portanto, o espaço conquistado pelos trabalhadores foi

reconfigurado e t ransformado em território, escolhido para nele

constituírem novas maneiras de produzir, novas formas de organização,

novas sociabil idades, enfim, um novo modo de vida, que serão abordados

no capítulo a seguir.

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3 - NOVO TERRITÓRIO EM CONSTRUÇÃO

As experiências vivenciadas pelos trabalhadores e trabalhadoras

sem-terra, hoje assentados na fazenda Nova Santo Inácio Ranchinho, na

luta e conquista de 3.958 ha de terra, demonstraram que, por meio de

suas práticas sociais e ações políticas, eles construíram uma identidade

coletiva que impôs para o espaço público o reconhecimento de sua

cidadania (GRZYBOWSKI, 1991 e MEDEIROS, 1989), como vimos no

capítulo anterior. Ao conquistarem a terra, procuraram reconfigurá-la,

dividindo o latifúndio em pequenas parcelas, transformando-o em

território32, um espaço no qual constituíram novas formas de

organização, novas maneiras de produzir , novas sociabil idades, um novo

modo de vida. Neste capítulo, abordaremos a experiência dos

trabalhadores assentados na Nova Santo Inácio Ranchinho com relação

ao parcelamento e à configuração de um novo território, procurando

refletir sobre o modelo organizativo estabelecido por eles na

estruturação do processo produtivo, as novas práticas de sociabilidade,

bem como as relações de poder introduzidas no interior do assentamento;

a organização produtiva e a inserção no mercado de produção, além das

perspectivas de vida desses trabalhadores diante da realidade que

vivenciam no mundo das relações econômicas.

32Identif icamo-nos com a perspec tiva de CORRÊA (1996) na conceituação de ter r i tór io, entendido como espaço revest ido de dimensão pol í t ica , afe t iva ou ambas: de um lado pode s igni f icar apropr iação mate ri al do espaço, associada ao controle efet ivo, à s vezes, legi t imado por par te de inst i tu ições ou grupos; por out ro, a apropr iação “pode assumir um dimensão afe t iva , derivada de práticas e spec ial i zadas por par tes de grupos di s t in tos def inidos” (CORRÊA, 1996:251) . A apropr iação afet iva pode est ar também associada às ident idades de grupos .

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3.1 - O parcelamento da terra e a configuração

de um novo território

A divisão da fazenda Nova Santo Inácio Ranchinho em pequenos

lotes evidenciou alguns aspectos importantes. Enquanto estiveram

acampados por um ano dentro da fazenda, os trabalhadores já haviam

discutido as formas de apropriação daquele espaço, quando planejaram a

delimitação do seu território. Recuperando as experiências vividas no

acampamento, nas quais as famílias se organizavam por grupos de

parentesco ou afinidade, os trabalhadores participaram de todo o

processo de deliberação do parcelamento da terra, que se estruturou

mediante os seguintes critérios:

- a delimitação da área de reserva legal foi consti tuída como

uma reserva coletiva, subdividida em dez áreas de vegetação do

cerrado;

- após a demarcação da área desapropriada, a divisão dos lotes

foi realizada mediante o sorteio em duas etapas: num primeiro

momento, o assentamento foi dividido em oito áreas, tendo s ido

sorteada uma área para cada grupo de parentesco ou afinidade;

no momento seguinte, cada grupo realizou novo sorteio, que

definiu a localização de cada lote;

- seriam assentadas as 107 famílias, que, efetivamente,

participaram de todo o processo de luta para a conquista da

terra, selecionadas pela própria comunidade, que se encontrava

acampada na fazenda.

A proposta autônoma de parcelamento apresentada pelos

trabalhadores foi parcialmente respeitada pelo INCRA, que dividiu a

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fazenda em 115 lotes (ver FIGURA 9), incluindo mais oito famílias além

daquelas selecionadas. A execução oficial de tal proposta significaria

uma ruptura, ainda que parcial, com a atuação do INCRA, que realizava a

demarcação das parcelas e a seleção dos beneficiários do projeto de

assentamento sem a participação efetiva dos trabalhadores no processo

decisório do parcelamento, especialmente, no estabelecimento de

critérios para sorteio e demarcação dos lotes.

Por sua vez, o INCRA foi criticado por um dos assentados, que

rememora a irresponsabilidade dessa instituição no mapeamento das

glebas da Nova Santo Inácio Ranchinho. Eis o seu depoimento:

"O parcelamento fo i fe i to dum jei to mui to. . . sem cr i tér io! De uma forma, assim, irresponsável pelo INCRA! O INCRA, através de uma foto saté l i te muito antiga. . . nem atualizou a foto saté l i te . . . f ez a cartografia , né? Mapeou, desenhou o assentamento, com um erro drást ico! Aquela fo to saté l i te mos trava bre jo, onde hoje não é bre jo mais! Área de reserva tava totalmente degradada e. . . área onde tava degradada t inha se tornado reserva, já t inha re f lorestado, regenerado! E o INCRA foi assim. . . um tanto quanto displ icente com a di fe renciação das glebas: área mui to pequena, área muito grande! Nós defendíamos que áreas com menas produtividade , ou com mais d i f iculdade de manejo fosse uma gleba maior ( . . . ) Mas o INCRA não considerou isso ( . . . ) Porque acabou prevalecendo lo te minúsculo com te rra ac identada, de 19 ha e, lote com água, com qualidade das terra mais razoável , com 34 ha." (Barroso) .

A forma como o INCRA mapeou o assentamento foi aprovada em

assembléia pelos parceleiros, que, de acordo com o depoimento de

Barroso, estavam ansiosos para realizar a demarcação das glebas, e a

proposta apresentada pelo INCRA solucionava suas necessidades mais

imediatas de sobrevivência, bem como de acesso ao crédito para custeio

agrícola. Uma outra proposta de parcelamento foi apresentada por um

grupo de trabalhadores, o que envolveria uma ruptura com a atuação do

INCRA e o estabelecimento de convênio com a Universidade Federal de

Uberlândia para real ização de análise do solo e demarcação das parcelas.

No entanto tal proposta foi reprovada pelo conjunto de trabalhadores,

visto que demandaria de três a quatro meses para conclusão dos

trabalhos.

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A demarcação das áreas de reserva coletiva, totalizando cerca de

706 ha, averbadas em cartório, foi uma conquis ta dos trabalhadores, que

tiveram oportunidade de formar lavouras e pastagens em seus lotes, sem

terem de dispor 20% de área para reserva legal. Como muitos lotes foram

completamente desmatados pelos carvoeiros, que exploravam a fazenda

quando ela estava em litígio, os parceleiros reservaram as áreas de

vegetação do cerrado (áreas de mata e de pastagens artif iciais, com o

cerrado em regeneração) como áreas de preservação permanente,

utilizando-as como fonte de recursos naturais como madeira e caça.

As áreas de reserva coletiva constituem domínios de caráter

comunal , ou seja, áreas que não pertencem individualmente a nenhum

grupo familiar, sendo vi tais para a sobrevivência de unidades familiares,

tornando-se, para os camponeses, lugares para a retirada de lenha para

combustível, madeiras para construção, além de coleta de plantas

medicinais (ALMEIDA, 1988). O uso das áreas de reserva coletiva tem

suscitado impasses entre os assentados: para alguns, elas representam a

sustentabil idade ecológica, devendo ser área de preservação permanente,

enquanto que, para outros, elas são fonte de recursos naturais, que,

utilizadas ocasionalmente, não causam sérios impactos ambientais para o

assentamento. O assentamento dispõe, também, de abundantes recursos

hídricos, existindo 15 nascentes, que formam 4 veredas, com presença de

buri tis característ icos da vegetação do cerrado, const ituindo-se área de

preservação (ver FIGURA 10).

O processo de parcelamento da terra, segundo critérios de

consolidação dos grupos de afinidade, já organizados na fase de

acampamento, foi uma experiência inédita, possibilitando uma

estruturação grupal próxima do que CANDIDO (1971:62) denomina de

uma sociabilidade caipira, que consiste em um “(. . .) agrupamento de

algumas ou muitas famílias, mais ou menos vinculadas por um

sentimento de localidade, pela convivência, pelas práticas de auxílio

mútuo e pelas atividades lúdico-religiosas”. A consolidação dos grupos

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de afinidade, ligados entre si por relações de contigüidade, ancorada

numa identidade terr itorial e apoiada no sentimento de pertencer a uma

localidade, é considerada pelos entrevistados como uma experiência

positiva de organização interna no assentamento. Na avaliação de Frei

Rodrigo, o novo modelo de organização em grupos de afinidade, que

vigorou na Nova Santo Inácio Ranchinho,

" ( . . . ) fo i nada mai s, nada menos, do que a gente inst i tuc ionalizar o que já se v ivia no acampamento." (Fre i Rodrigo).

FIGURA 10 - Conservação de área de veredas na Nova Santo

Inác io Rachinho, 1999. Fonte : Seminár io Interno INCRA/MG, 1999.

Zé Maria avalia que a consolidação desses grupos no assentamento

possibilitou a maior proximidade entre os trabalhadores:

"Essa proximidade , e ssa af in idade foi construída na época do acampamento. Porque, incrusive , pra eu tá per to do meu sogro, perto do meu cunhado, perto da minha vó. . . I sso dependeu duma discussão em grupo, duma discussão em assembréia. . . que o assentamento dev ia sê d ividido em grupo. E ex ist i a os individuais , na época, que quer ia que o assentamento fosse espalhado! Aonde que o fu lano saiu, é lá o lo te dele . Não tem af inidade, não tem nada. Nós levamo isso em assembréia , aí 75% das pessoa dec idiram que . . . t inha que respei tá as af inidade , sê em grupo, v i zinhança. . . Incrusive, is so re f lete até lá fora! Porque as pessoas que vem no assentamento. . . as pessoa comenta que, essa par te de cá do assentamento, o povo é mais humilde , o povo é mais amigo, o povo é mais d ic iprinado, o povo tem mais sol idar iedade . . ." (Zé Mar ia) .

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O relato de Zé Maria revela-nos que a apropriação do espaço

conquistado pelos trabalhadores não se constitui como uma realidade

estática, reif icada, que se apresenta apenas como espaço físico-

geográfico para nele viverem. Ele é transformado em território,

escolhido como um lugar, onde o sentimento de pertencimento a uma

localidade é valorizado por seus moradores, que mantêm um intercâmbio

entre si, constituindo-se como grupo sustentado por um conjunto de

valores tidos como identitários, que serve para diferenciá-lo com os de

“fora” (CARNEIRO, 1999). Essa base territorial, sustentada no

pertencimento a uma localidade, é o que CANDIDO (1971:65) denomina

uma naçãozinha, entendida como “uma porção de terra a que os

moradores têm consciência de pertencer, formando uma unidade

diferente da outra”

Foi sobre esse espaço, transformado em território, que os

trabalhadores imprimiram uma nova configuração, estabelecendo aí

maneiras próprias de produzir, de organizar, de estabelecer

sociabilidades, constituindo novas territorialidades33, enfim, um novo

modo de vida.

Dessa maneira, ao reconfigurarem o espaço conquistado, os

trabalhadores da Nova Santo Inácio Ranchinho transformaram o

latifúndio improdutivo em unidades de produção familiar, promovendo,

assim, um reordenamento terr itorial. Tal reordenamento foi determinado

pelas ações desencadeadas pelos trabalhadores assentados, que já se

encontravam organizados na Associação Nova Santo Inácio Ranchinho,

criada ainda na fase de acampamento.

33Para a concei tuação de te r r i tor ia l idades e novas ter r i tor ia l idades, recor remos a CORRÊA (1996) . Para esse autor , a te r ri t or ial idade “refere-se ao conjunto de prát icas e suas expressões materiai s e s imból icas que capazes de garant irem a apropriação e a permanência de um dado terri tório por um determinado agente soc ial” (CORRÊA, 1996:252) . Já as novas ter r i tor ia l idades dizem respeito à c r iação de novos ter r i tór ios , r econs truindo, parcialmente , em out ros lugares . um terr i tór io novo, que contém a lgumas carac ter í st icas do ve lho.

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O modelo de organização implementado pelos trabalhadores, como

vimos anteriormente, foi aquele vivenciado no acampamento nas margens

da rodovia, estruturado, inicialmente, de forma horizontalizada, com

direção colegiada, composta pelos coordenadores dos grupos de

afinidade, que formavam a Comissão Central. Inicialmente, o cargo de

animador geral e, posteriormente, os de presidente, secretário, entre

outros, existiam apenas para garantir a representação jurídica da

Associação. Essa nova forma de organização garantia, de acordo com

alguns dos entrevistados, a participação democrática dos assentados no

processo de tomada de decisões da vida do assentamento34. Sobre essa

nova forma de organização, Barroso relata:

"A direção colegiada ela é representada, representat iva ( . . . ) O poder máximo da Associação é a Assemblé ia! Todos os pontos são debatidos, de l iberados. A Assemblé ia, e la é soberana! Então, é um colegiado porque não ex is te uma pessoa com mais re sponsabi l idade que a out ra, que nem um pres idente, um secretário, um tesoure iro! Na direção colegiada, todos assumem a responsabi l idade! Todos! E quando faz sua tarefa, não tem que se r sempre a mesma pessoa, que é a caracter ís t i ca do presidenciali smo ( . . . ) Qualquer pessoa pode representar o assentamento, junto ao INCRA, junto a outras entidades , junto a uma at ividade qualquer. . . Então, a Assembléia de lega as pessoas. . . Então, i sso é ser colegiado." (Barroso) .

Foi o reconhecimento desse modelo de organização, por parte dos

assentados, que garantiu a representação política da Associação Nova

Santo Inácio Ranchinho, como instrumento de ordenação e controle do

novo território. Tal entidade teve uma participação efetiva, tanto no

processo de ocupação do assentamento, como na sua reconfiguração

espacial, buscando a estruturação, tanto de suas bases produtivas, como

de toda infra-estrutura local.

Como o elemento-chave da organização da Associação foi a

formação de grupos de afinidade / produção, seu papel não se restringiu

somente a questões reivindicatórias, mas, fundamentalmente, influiu na

34A aval iação da forma de organização no assentamento não es tá isenta de contradições, passando por re lações de confl i to nas mediações e disputas pelo poder pol í t ico no in ter ior do assentamento, como será vis to mais adiante .

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construção da proposta de organização do processo produtivo baseado na

utopia da produção coletiva e das experiências associativas.

A discussão estabelecida entre os mediadores externos (APR, CUT,

Igrejas, entidades sindicais) e os trabalhadores assentados sobre as

formas de organização produtiva não forjou nenhum modelo organizativo

para a produção. Cada grupo de afinidade pôde optar por formas

coletivas ou individuais de exploração da terra. Frei Rodrigo rememora a

estrutura organizacional de produção no assentamento:

"No assentamento de Campo Florido, nós (refere-se ao grupo de assessores da Animação Pas toral no Meio Rural / APR) de liberadamente, discut indo também com l ideranças dos trabalhadores de lá. . . . Nós optamos para que a forma de organização dos grupos fosse de acordo, também, com a possibi l idade da forma de v ida que eu quero levar , ou seja, quem quis colet ivo pôde, quem quis individual, também pôde." (Frei Rodrigo) .

Assim, na configuração de um modo de vida, os grupos de

produção tiveram a oportunidade de definir, autonomamente, os padrões

de processos produtivos.

Os trabalhadores experimentaram a organização coletiva de

produção, entretanto tais experiências não vigoraram no assentamento.

Ao analisarem as condições de produção coletiva, os t rabalhadores

avaliam seus aspectos negativos:

"A produção cole t iva não deu certo, não. Tinha veiz que, vamo supô: eu quer ia que o trabalho. . . o outro não queria. Eu achava que , na moda d’outro, amanhã t inha que t rabalhá. . . o outro achava que não prec isava t rabalhá. E quando for na hora de div idir o produto, nóis vamo dividir em par tes iguais! Por causa disso aí , eu tô dançano! Então, por esse mot ivo, os grupo teve todo mundo rachado. Ninguém quis cont inuá mais no cole t ivo, dessa forma. . . Foi só no primero ano que funcionô o cole t ivo. Eu acho que o cole t ivo , conforme a. . . é pra ocupação de terra, é pra alguma tensão. . . f e i to, vamo supô. . . a ocupação de terra. . . é a greve! Várias at iv idade o colet ivo funciona, mais , do contrár io, não funciona! ( . . . ) Então, a cooperat iva. . . a cooperativa funciona. . . pruque na cooperat iva eu vô recebê de acordo com a minha produção!" (Zé Pre tinho) .

"A produção já foi experimentada de tudo quanto é t ipo: t anto no cole t ivo , quanto no individual, semi-colet ivo, né? Houve uma época que o pessoal do grupo 6, grupo 8 , fazia tudo no cole t ivo. Tudo era cole t ivo ( . . . ) e que. . . a prática demons trou que não dava certo

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daque la forma, não deu certo! Porque , na realidade, o que aconteceu foi o seguinte: dentro do cole t ivo . . . vamo supô, uma gal inha que eles t inha, era do cole t ivo. Se alguém quise sse matá aque la gal inha t inha que fazê uma discussão do grupo. Então, na realidade e les passava mais tempo reunido do que t rabalhano! ( . . . ) Is so levou o pessoal daquele grupo. . . não se i se concordam com essa idé ia, mas é o que todo mundo que tava por fora vê , que o pessoal daquele grupo produzia menos que as outras pessoas ( . . . ) Uma das coisa que é colet ivo aqui, hoje, e tem dado certo é a venda do le i te . Quer dizer , a produção do le i te não é colet iva, a venda é, porque a gente vende a granel ." (Edivaldo).

O que tais depoimentos revelam é que as expectativas dos

parceleiros da Nova Santo Inácio Ranchinho, com relação ao modelo

produtivo, fundamenta-se na produção individual, o que lhes garante uma

certa autonomia no controle da organização do trabalho, buscando

efetivar um projeto de organização semi-coletiva, em que a

comercialização do produto se dá coletivamente, enquanto o espaço

produtivo permanece individual.

Essas observações estão de acordo com a literatura sobre a

formação dos assentamentos no Brasil (ABRAMOVAY, 1994-b;

FERRANTE, 1994; MEDEIROS, 1994) ao indicar que, se na fase de luta

pela terra é possível falar na prioridade de uma identidade construída

nesse processo35, não se pode dizer que, uma vez obtido o acesso à terra,

haja disposição dos assentados em “estruturar-se coletivamente para a

organização social da produção” (FERRANTE, 1994:137), mesmo

porque a organização coletiva da produção parece ser uma utopia das

instituições mediadoras do processo de luta pela terra e não resultado da

vontade dos trabalhadores.

Há que se considerar ainda que os grupos de agricultores dos

assentamentos estabelecem um novo reordenamento espacial,

fundamentado na estrutura produtiva da agricultura familiar, cuja

característica genérica é a combinação da propriedade dos meios de

produção com o trabalho familiar no estabelecimento rural, mas que não

35Esse processo de cons t rução da ident idade cole t iva acaba sendo reforçado no acampamento, por força do convívio e dos enfrentamentos vivenciados em conjunto com estranhos (MARTINS, 2000) .

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produz uma ruptura com a tradição camponesa (WANDERLEY, 1999).

Estudos sobre as realidades e perspectivas da agricultura familiar

(ABRAMOVAY, 1992-a; WANDERLEY, 1999)36 demonstram que o

agricultor familiar moderno incorpora traços específicos do campesinato:

uma autonomia relativa frente à sociedade global, uma racionalidade

econômica relativamente autônoma, além de uma sociabilidade voltada

para laços comunitários locais. Para agricultores familiares, a terra

representa, sobretudo, um modo de vida de relativa autonomia social, por

isso, suas expectativas de organização produtiva fundamentam-se, como

mostra FERRANTE (1994), na busca de trabalhar a terra em termos

individuais, representando, assim, uma situação de maior

independência37.

A opção pela forma de organização individual no processo

produtivo não signif ica uma rejeição por práticas associativas. Em seus

depoimentos, os t rabalhadores relatam experiências de compra de

insumos em conjunto, uso comunitário de quatro tratores pertencentes à

Associação, comercialização da produção de leite em comum, através do

posto de resfriamento , além das expectativas de criação de cooperativas.

O projeto de formação de cooperativas é apontado como forma de

36Tais es tudos rompem com o paradigma marxi sta sobre os camponeses, que cons truiu a imagem do campesina to como cla sse deposi tár ia de um t radic ional ismo conservador , que e sta ria fadada ao desaparec imento na soc iedade capi tal i s ta contemporâneo. Nesse sentido, ABRAMOVAY (1992-a :54) expõe que “é possível local i zar no camponês e lementos de permanência, de cont inuidade, de unidade, de um modo de ser que ex ige e merece das ciências soc iais uma caracterização própria, que não se apoie apenas em suas di fe renças com re lação a outras categorias soc iais .” 37Contudo a re la t iva autonomia soc ia l , t íp ica do campesina to, não s igni f ica a ges tação de uma forma soc ial pura, com carac ter í s t ica ant i-capi ta l i sta . Como indica MUSUMECI (1988) , os camponeses, mesmo vivendo em um grupo soc ial com tra je tór ias homogêneas, não pensam, nem agem de mane ira idênt ica quando se referem à ter ra . “Por vezes , como veremos, suas formulações sugerem uma ideologia comuni tária e uma concepção não mercant i l da terra; outras ve zes parecem expressar uma v isão radicalmente individualis ta, ut i l i taris ta, pequeno burguesa; outras, ainda, ressaltam elementos bem pouco aprovei táveis , quer pe los ideólogos do ‘capi tal ismo utópico’ , quer pe los part idár ios do ‘ soc ial i smo utópico camponês’- elementos do que poderíamos denominar de uma ‘ant iutopia autor i tária’: a terra (nem tão) l iber ta como l ocus da patronagem personalizada, da exploração comercial , da arbi trariedade e da v iolência.” (MUSUMECI, 1988:53).

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fortalecer o processo produtivo no assentamento. Contudo o que se

observa é que o cooperativismo permanece no plano da utopia, como um

sonho ainda não realizado no interior do assentamento38.

Se, por um lado, a identidade coletiva consolidada no processo de

conquista da terra é fragmentada, quando os trabalhadores decidem por

formas de organização diferenciadas do processo produtivo, por outro,

ela se fortalece em termos de conquista de uma infra-estrutura social.

Os parceleiros da Nova Santo Inácio Ranchinho tiveram acesso ao

crédito-habitação do Programa de Crédito Especial para Reforma Agrária

- PROCERA - para a construção de suas moradias. As condições de

habitabilidade são variadas, havendo desde casas grandes de alvenaria,

até mesmo casas de taipa. Algumas casas apresentam boas condições

sanitárias, tendo banheiros e rede de esgoto, enquanto outras possuem

fossas no quintal.

O abastecimento de água no assentamento é realizado mediante

sistema de captação de água do Córrego das Candinhas e de uma

nascente próxima à sede da fazenda, além da perfuração de um poço

artesiano, tendo sido aplicados recursos do PROCERA. De acordo com o

Diagnóstico Rápido Participativo Emancipador (BRASIL, 1998),

realizado pelo INCRA, apenas sete famílias não são beneficiadas com

sistema de abastecimento de água.

Com relação à eletrificação rural, os trabalhadores conquistaram o

direito à energia elétrica em 1995, mediante as ações desencadeadas pela

sua Associação junto ao INCRA, sendo que todas as parcelas e áreas

comunitárias - escolas, casa de farinha, tanque de expansão de leite -

38De acordo com os depoimentos dos entrevis tados , a formação de uma coope ra t iva no assentamento não se r ea l izou por d if iculdades quanto à burocracia na sua formal ização.

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estão eletrificadas. A eletrif icação foi executada com recursos do

PROCERA39.

O assentamento também é servido por um telefone público,

instalado na Escola Municipal Santa Terezinha, além do telefone

adquirido pela Escola Família Agrícola 19 de Maio, conectado à rede de

Internet.

Existem no local cerca de 40 km de estradas construídas que dão

acesso a todas as glebas, facilitando, assim, o escoamento da produção.

As estradas estão em bom estado de conservação, sendo que alguns lotes

possuem acesso precário até à estrada principal. A construção de estradas

vicinais e recuperação da estrada já existente foi uma das primeiras

reivindicações feitas junto ao INCRA, como forma de facilitar o acesso

dos parceleiros à infra-estrutura existente no assentamento. A execução

das obras de construção e recuperação das estradas foi de

responsabilidade do próprio INCRA, já que a atuação da Prefeitura

Municipal de Campo Florido no interior do assentamento foi considerada

ineficiente pelos assentados, havendo denúncias de omissão na

conservação de estradas.

Na área do assentamento, funcionam duas escolas: a Escola

Municipal Santa Terezinha e a Escola Família Agrícola 19 de Maio (ver

FIGURA 11). A primeira escola, mantida pela Prefeitura Municipal de

Campo Florido, conta com três salas de ensino infantil (pré-escola) e

fundamental, com turmas multisseriadas de 1ª a 4ª séries. Os alunos que

cursam da 4ª à 8ª série estudam na sede do município, sendo de

responsabilidade da Prefeitura o transporte desses alunos, do

assentamento até a escola.

39Os recursos aplicados para a execução da ele tr i f icação e do s i s tema de abastec imento de água no assentamento foram na ordem de R$ 257.194,00 e R$ 98.440,00, respect ivamente.

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FIGURA 11 – Escola Munic ipal Santa Terezinha - assentamento

Nova Santo Inác io Ranchinho, 2000. Foto: Letíc ia de Cas tro Guimarães.

A Escola Família Agrícola - EFA - atende estudantes de ensino

médio. Trata-se de uma escola comunitária que se fundamenta na

pedagogia da alternância, um modelo de educação básica e profissional,

em que a escola e a família alternam-se na formação do adolescente para

a vida e para o trabalho agrícola, sendo apropriada à realidade do campo.

Essa proposta de ensino articula teoria e prática, alternando o ambiente

da escola com o das unidades familiares de produção, buscando envolver

as famílias no projeto educativo dos f ilhos. Sendo a EFA parte de um

movimento educacional de caráter internacional, ela é gerida no âmbito

local pela Associação Escola Família Agrícola 19 de Maio. Esta

Associação está ligada à Associação Mineira das Escolas Famílias

Agrícolas - AMEFA -, bem como à União Nacional das Escolas Famílias

Agrícolas do Brasil - UNEFAB -, constituída por 95 Associações.40 O

grupo dirigente da Associação objetiva contribuir, por meio do seu

projeto pedagógico, com o desenvolvimento sustentável do assentamento

e seu entorno, fundamentando-se na adaptação da cultura camponesa e no

40A UNEFAB es tá sediada no munic ípio de Anchieta , no Espír i to Santo. Os e stados onde as Escolas Famí lias estão instaladas são: Amazonas, Amapá, Pará , Rondônia, Tocant ins , Goiás , Mato Grosso do Sul , Espí r i to Santo, Minas Gerais , Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia , Maranhão P iauí e Sergipe . A sede in ternac ional das EFA’s é a Associação Internac iona l dos Movimentos Famil iares de Formação Rura l - AIMFR - sediada em Par is , França.

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fortalecimento do associativismo e do cooperativismo. Tendo iniciado

suas atividades em 2001, com uma turma de 20 alunos na sede do

Assentamento, a Escola buscou parcerias com a comunidade local e com

a Secretaria de Educação de Minas Gerais para garantir sua manutenção,

pretendendo ampliar suas atividades para este ano.

As condições do atendimento à saúde no assentamento são

precárias. Não existe posto de saúde no local e os trabalhadores buscam

atendimento médico no posto de saúde de Campo Florido. De acordo com

o Diagnóstico Rápido Participativo Emancipador (BRASIL, 1998), um

veículo desloca-se três vezes por semana até o assentamento para

transportar os usuários do serviço público de saúde até o posto médico

local. O sistema de transportes apresenta deficiências, já que o

assentamento f ica sem transporte para casos extraordinários, além do

comprometimento no atendimento aos parceleiros da Nova Santo Inácio

Ranchinho, que não são atendidos, em razão do horário em que chegam

em Campo Florido41. Outro fator agravante para as condições de saúde no

assentamento é que não existe hospital em Campo Florido e, em caso de

emergência, as pessoas enfermas têm que se deslocar até Uberaba, 88 Km

distante do assentamento. Existe uma reivindicação antiga de construção

de uma unidade básica de saúde no local, entretanto o poder público

municipal não a viabilizou.

Em termos de equipamentos comunitários voltados para produção,

o assentamento conta com uma casa de farinha e um posto de

resfriamento de leite.

A casa de farinha foi construída pelo INCRA, como forma de

industrializar a mandioca, uma das principais culturas do assentamento,

muitas vezes, comercializada in natura para fábricas de farinha de

41O número de atendimentos no posto de saúde f ica l imi tado a uma quantidade de f ichas que são dis tr ibuídas por ordem de chegada. Normalmente , ocorre at raso no transpor te dos assentados , que não chegam no horár io de di s tr ibuição das f ichas, comprometendo seu a tendimento no Sis tema Único de Saúde .

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municípios vizinhos. No entanto a casa de farinha foi subdimensionada

pelo INCRA, que construiu uma pequena unidade artesanal de produção,

não correspondendo ao volume da matéria-prima produzida pelos

trabalhadores. Interrogados sobre a sua utilização, os assentados

respondem:

"A fábr ica de farinha não func iona. Foi um e le fante branco porque o INCRA tem algumas de terminações, que é para contar nos números , na estat í s t ica, pra di zer que tem uma fábrica de farinha aqui e nunca fo i ut i l i zada, né?" (Barroso).

"Eles t inha vontade ( re fere- se ao INCRA), fazê uma casa de far inha, mai s eu acho num entendeu como era uma casa de farinha! Purque uma casa de farinha tem que ter es trutura, né? Ela é mui to pequena. O forno. . . é uma cois inha de nada. É uma porcariazinha de nada! Não dá pra fazê nada al i! " (seu Calu) .

Tais depoimentos revelam a ineficácia do poder público ao

implementar as condições mínimas necessárias para os sistemas de

produção no assentamento. Em 1998, o INCRA, mediante um convênio

estabelecido com o Banco Interamericano de Desenvolvimento - BID -,

realizou um diagnóstico participativo sobre as condições do sistema

produtivo, bem como da infra-estrutura social no assentamento,

objetivando estruturar as unidades familiares de produção, de forma a

sistematizar e acelerar o processo de consolidação e emancipação do

assentamento42. Após a realização do referido diagnóstico, a equipe

técnica do INCRA elaborou o Plano de Consolidação do Assentamento

Nova Santo Inácio Ranchinho (BRASIL, 1998), apresentando propostas

de atividades econômicas que possibilitassem “o desenvolvimento

sustentável das parcelas, assegurando a sua viabilidade econômica, com

melhor utilização dos recursos naturais disponíveis” (BRASIL,

1998:22), dentre elas, a ampliação da casa de farinha, o incremento da

bovinocultura de lei te, instalação de um posto de resf riamento do leite,

redimensionamento da produção agrícola, além da melhoria das estradas

42A consol idação do a ssentamento refere- se à fase em que se buscará a auto-sufic iência do assentamento, com a es truturação de suas bases produt ivas e consol idação da inf ra-es trutura loca l . Já a emancipação refere- se ao per íodo em que o assentamento tornar- se-á auto- suf ic iente e os parce le iros r ecebem o t í tulo de propr iedade da te r ra .

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vicinais e construção do posto de saúde local. No entanto, tal plano não

foi implementado, trazendo um impacto negativo para as condições

socioeconômicas dos assentados.

Percebendo que o INCRA não implementaria os projetos

levantados pelos próprios trabalhadores, quando da realização do

Diagnóstico Rápido Participativo Emancipador (BRASIL, 1998), um

grupo de produtores de leite apresentou uma proposta de f inanciamento

de um posto de resfriamento de leite para uma empresa de laticínios. A

empresa f inanciou a instalação do posto e o grupo pagou o f inanciamento

com o próprio produto, comprometendo-se a comercializar coletivamente

para a fábrica de laticínios (ver FIGURA 12). Essa foi a primeira

experiência de organização semi-coletiva, como afirmamos

anteriormente, em que a comercialização se deu coletivamente, enquanto

o espaço produtivo permaneceu individual.

FIGURA 12 - Tanque de expansão de le i te - assentamento Nova

Santo Inác io Ranchinho, 2001. Foto: Letíc ia de Cas tro Guimarães.

A configuração terri torial construída no assentamento efetuou-se

por meio da luta dos trabalhadores na implementação de uma infra-

estrutura básica (saneamento básico, habitação, rede de energia, escola,

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transporte), assim como de projetos de estruturação de bases produtivas,

garantindo um padrão de vida mínimo no local. As entrevistas

evidenciam que as condições estruturais das famílias melhoraram

substancialmente após a implantação do assentamento, seja em termos

objetivos, como acesso à moradia mais digna, alimentação garantida pela

produção de subsistência, acesso à educação dos f ilhos, seja em termos

subjetivos, referentes a um novo modo de vida.

Quando são interrogados a respeito das mudanças ocorridas em

suas vidas com a conquis ta da terra, os trabalhadores referem-se sempre

à oportunidade que tiveram de engendrar uma nova temporalidade, em

que administram, autonomamente, o seu próprio tempo, diferente da

situação vivenciada como trabalhadores bóias-frias, em que o tempo

representava para eles o sacrifício, o sofrimento e o controle disciplinar.

A esse respeito, Edivaldo relata:

"Então, eu acho que com a conquista da terra, a gente acaba conquistano uma série de direi tos . E alguns fundamentais, como é esse do e studo, da al imentação. . . É você ser dono do própr io nariz! Não preci sa perguntá pro patrão: - Oh, eu posso ir na c idade? Eu tô doente . . . Eu tenho que i r no médico, eu posso i r? Ser dono do s í t io e fa lar: - Hoje eu vou no médico. . . Hoje eu vô em Uberaba resolvê um problema part icular. . . Não tenho que dar sat i s fação ao patrão. Então i sso é uma conquista de dire i tos que a gente tá conseguino." (Edivaldo) .

Esse relato revela a importância dada a uma nova dimensão do

tempo, movido por um ideal de autonomia por parte dos trabalhadores do

campo, demonstrando, assim, o processo de resistência às condições

disciplinares a que foram submetidos quando eram bóias-frias. Essas

observações estão de acordo com as reflexões de FERRANTE (1994)

sobre as motivações que levaram os trabalhadores rurais bóias-frias a

lutar para viver na terra: “(. . .) a perspectiva de trabalhar com maior

liberdade, o viver melhor, o poder ter controle de seu tempo e o produto

de seu trabalho” (FERRANTE, 1994:138) .

Por sua vez, na configuração de um novo território, os

trabalhadores procuram construir um espaço de trabalho e de vida, e o

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território é percebido como lugar de fartura, de autonomia, de liberdade

e, sobretudo, de produção e renda. Ao serem indagados sobre a

representação da terra conquistada, os trabalhadores respondem:

"Pra mim. . . essa terra. Como ela mudou minha vida, ela s igni f ica pra mim, hoje, a v ida! É mui to for te. . . Foi uma conquista mui to for te! Se eu quisé, hoje , se a famí l ia quisé , hoje, v ive r reunida. . . que é uma coi sa rara na sociedade. . . eu posso por minha famí l ia todinha nesse lo te aqui , que vai t odo mundo sobrev ivê dessa terra! É um signif icado mui to forte pra mim, signi f ica, pra mim isso! Signi f ica unidade , s igni f ica a v ida, enf im." (Lourival) .

Ter a terra, por s i só, não s ignif ica nada! Tem que te r condições de sobrev iver aqui dentro, né? Essa terra s igni f ica uma conquista mui to grande! A terra pra mim ela tem um signi f icado. . . além do sustento, a terra pra mim é um grande ens inamento! Ela me ensinou a ser mais jus to. . . a concordar que , realmente, é prec iso haver mais l ibe rdade no nosso meio, mais. . . just iça. . . Então essa terra foi uma v i tória mui to grande pra mim!" (Zé Maria) .

"Ela s igni f ica a l ibe rdade , condições de produzir . . . Acaba sendo is so aí: essa l iberdade to tal . Essa terra s igni f ica l iberdade!" (Edivaldo) .

"Essa terra, é o seguinte: o s igni f icado dessa terra pra mim. . . o que eu não t i nha antes , hoje eu tenho! Eu tenho umas vaquinha aqui, e eu não t inha! Eu tenho uma casa. . . a casa não é boa não mais . . . é melhor do que a que eu morava ne la. É , se eu não t ivesse essa terra aqui, eu não t inha e ssa casa. A conquista da. . . o conhecimento geral que eu tenho é atravéis da terra! Eu, pra dizê a verdade , tudo que eu tenho hoje, tudo que eu tenho foi um benef íc io da te rra. A terra que me deu i sso tudo! E eu lu te i pela terra! Mais atravé is da terra eu chegue i em tudo que eu queria! Então a te rra é importante nesse sent ido." (Zé Pre tinho) .

"A terra signif ica renda, poder, autonomia, l iberdade , meio de produção! Nós tamos na lu ta por um meio de produção, e tamos, de fa to, desenvolvendo e sse instrumento com sua potencial idade" (Barroso) .

Dessa maneira, é na construção de um novo território que os

assentados da Nova Santo Inácio Ranchinho buscam a auto-sustentação

das unidades familiares de produção, estabelecem relações de poder,

além de produzirem novos espaços de sociabilidade, como analisaremos

a seguir.

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3.2 - Os novos espaços de sociabilidade

Como já vimos, a sociedade é reinventada nos assentamentos,

abrindo-se para espaços mais amplos de sociabilidade, mantendo, ao

mesmo tempo, as concepções que ordenam a vida social, provenientes do

familismo e da vizinhança rurais (MARTINS, 2000).

No assentamento Nova Santo Inácio Ranchinho, as formas de

sociabilidade, marcadas por relações de contigüidade, por laços

familiares e de parentesco, são alargadas pela convivência com outras

categorias sociais, desenvolvendo, assim, uma sociabilidade específica,

constituída por uma rede de relações sócio-políticas.

As novas experiências de relações sociais t razidas pelos

trabalhadores rurais produziram um grande impacto na entorno do

assentamento. Se, no momento em que chegaram à terra conquistada, as

relações que estabeleciam com o meio externo resumiam-se ao

envolvimento com uma rede de entidades que apoiava o movimento de

luta pela terra e com as instâncias de representação do Estado, quando se

deu o processo de assentamento, esses trabalhadores ampliaram suas

redes de relações sócio-políticas, relacionando-se com múltiplos atores.

Dentre estes, podemos citar: o INCRA, a Prefeitura Municipal de Campo

Florido, a EMATER como órgão de assistência técnica, a CUT, a APR, a

FETAEMG, o PT, as Igrejas Católica e Evangélicas, a Cáritas -

organização não-governamental, l igada à Igreja Católica e voltada para a

o apoio e assessoria às organizações dos trabalhadores - e o MLST -

Movimento de Libertação dos Sem Terra -, uma organização de

trabalhadores rurais e urbanos, consti tuída com a participação de

algumas lideranças do assentamento, tendo como principais bandeiras de

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luta a reforma agrária e a construção de uma sociedade socialista43. Essas

redes de relações constituem-se como espaços de sociabilidade no

interior da Nova Santo Inácio Ranchinho, promovendo formas mais

participativas no processo de tomada de decisões da esfera pública,

rompendo, ainda que parcialmente, com práticas sociais t radicionais -

fundamentadas nas relações clientelistas e paternalistas, tão enraizadas

em nossa cultura política.

As novas práticas de sociabilidade estabelecidas no interior do

assentamento acabaram por introduzir ações políticas, por vezes

desconhecidas no âmbito do município, produzindo, assim, modificações

moleculares na cultura política local (LEITE, 2000). Exemplos dessas

alterações na cultura política local são a constituição do Conselho

Municipal de Desenvolvimento Rural de Campo Florido e da Associação

Escola Família Agrícola 19 de Maio. O Conselho Municipal de

Desenvolvimento Rural constituiu-se como a primeira experiência de

implementação de uma instância de gestão paritária - com a participação

de instituições governamentais e não-governamentais -, no

gerenciamento das políticas públicas de desenvolvimento rural em

Campo Florido, tendo a representação da Associação Nova Santo Inácio

Ranchinho na sua composição. Já a Associação Escola Família Agrícola

19 de Maio, que tem como missão contribuir com o desenvolvimento

sustentável no campo, mediante a educação da alternância, abre espaço

para outras representações do município na composição de sua diretoria,

garantindo a participação ativa dos seus membros no processo de decisão

da gestão da Escola.

43O MLST, hoje MLST de Luta (nova denominação, resultante de uma fragmentação no in ter ior do movimento) , teve uma par t ic ipação express iva de algumas l ideranças do assentamento na sua Coordenação. Sua atuação no âmbi to do assentamento não é hegemônica, sendo considerada por alguns de seus integrantes como referência ideológica nas discussões e encaminhamentos de ações cole t ivas , enquanto para out ros , a par t i cipação do MLST está l igada a questões relac ionadas a assuntos externos , mas de interesse pol í t ico para os a ssentados .

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Desse modo, alguns dos trabalhadores da Nova Santo Inácio

Ranchinho tiveram oportunidade de disseminar suas práticas de

sociabilidade, ao participar da rede de movimentos sociais de luta pela

terra, contribuindo, por meio de suas experiências, com a viabilização de

novos assentamentos na região. Destaca-se, nesse contexto, a experiência

de formação do Movimento de Luta Pela Terra - MLT - no interior do

assentamento em 1996, posteriormente integrado ao MLST, cuja atuação

no Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba tem sido expressiva, especialmente

no que se refere ao movimento de territorialização dos sem-terra.

Além do mais, os moradores da Nova Santo Inácio Ranchinho

buscam a expansão da consciência social e dos termos de convivência da

comunidade local com a sociedade mais ampla. A procura de laços de

convivência se dá nos momentos de lazer: o futebol jogado por crianças

e jovens, e a realização de festas lúdico-religiosas no interior do

assentamento constituem outras formas de sociabilidade.

As festas lúdico-rel igiosas ocorriam por ocasião do dia 19 de

maio, data em que chegaram à terra conquis tada e escolhida pelos

trabalhadores como o dia do aniversário do assentamento. Esta data tem

um significado simbólico para os moradores da Nova Santo Inácio

Ranchinho, posto que simboliza a disposição que tiveram para disputar a

apropriação do latifúndio improdutivo. A função primordial das festas de

aniversário do assentamento era reforçar a memória das práticas e ações

coletivas de luta e conquista do terri tório onde plantaram os seus

projetos de uma vida mais digna. Em seus depoimentos, os trabalhadores

e trabalhadoras exprimem a importância das festas como fonte de resgate

da memória para a comunidade que vive no assentamento:

"Uma luta do jei to que nóis f i zemo não pode ser esquec ida! ( . . . ) Então, a gente tá sempre organizano essa at iv idade ( re fere- se às fe stas ce lebrativas) . I sso é muito bom pra tá re lembrano a luta, né?" (Mar ia) .

"A festa é um momento impor tante que ce lebra a v ida dessa comunidade, é um momento mui to forte com o entrosamento com outras comunidades, pessoas de outras comunidades. Ela tem o caráte r mais ce lebrat ivo, mais pol í t ico, mais no sentido de viver o

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momento da luta! ( . . . ) Então tamos tentando recuperar a memória, no sentido de levar aquela comunidade a acreditar que só a luta pode t razer algum benef íc io, só a luta pode t razer alguma me lhora de vida." (Barroso) .

A festa comemorativa, realizada por ocasião do aniversário,

constituía-se como um momento de congraçamento entre a coletividade

do assentamento e outras comunidades com as quais mantinham relações

sociais. Como a festa assumia uma forma religiosa, fazia parte de sua

programação a celebração de uma missa marcada pela ótica da Teologia

da Libertação, cujo discurso apresentava-se nos cânticos, na leitura de

textos bíblicos e na homilia (ver ANEXO 1). É interessante observar que,

durante as celebração da missa, a passagem bíblica da parti lha da terra

entre as tribos judaicas44 era relacionada com a realidade vivenciada

pelos trabalhadores, quando conquistaram e realizaram o parcelamento

da terra (ver FIGURA 13). Como observa MICHELOTO (1991:125), o

Antigo Testamento é valorizado pela Teologia da Libertação como

símbolo da justiça agrária. No dizer desse autor:

FIGURA 13 - Missa de ce lebração do aniver sár io de sete anos do

assentamento Nova Santo Inácio Ranchinho, 2000. Foto: Letíc ia de Cas tro Guimarães.

“(. . . ) a part i lha da ant iga Palest ina entre as t r ibos judaicas é v i sta como uma verdadeira re forma agrár ia, a to exemplar que não tem apenas um s igni f icado mater ial , mas se inse re em todo um processo

44Refer ímo-nos à Par t i lha da Terra, Josué , Capítulo 18, Versículo 1 a 10, do Ant igo Testamento ( texto em ANEXO 2) .

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cultural / re l ig ioso. A te rra é herança que se recebe de um pai espec ial , o próprio Deus, e sua posse , assim como seu cult ivo devem ser base propícia para o cul to à di vindade.”

A referência à passagem bíblica da partilha da terra corresponde ao

que a memória dos trabalhadores selecionou como símbolo religioso de

legit imação do processo de luta, conquista e parcelamento da terra onde

vivem e trabalham, reafirmando, assim, a identidade coletiva dos

moradores da Nova Santo Inácio Ranchinho.

Por seu turno, o caráter lúdico-religioso da festa, além da

expressão religiosa, constituiu-se, também, como forma de lazer e meio

de interação social, como nos sugere o trabalho de CAMARGO (1979). A

realização da Folia de Reis (ver FIGURA 14), uma festa popular em que

se comemora o nascimento de Cristo, e do baile, ao cair da noite, atraiu a

população de Campo Florido e de assentamentos da região, reforçando os

laços de sociabilidade da comunidade local com a sociedade mais ampla,

confirmando as afirmações de DURHAM (1984-b) a respeito das

atividades lúdico-rel igiosas nas comunidades rurais brasileiras. Além de

contribuir para o convívio social e para o fortalecimento da sol idariedade

local, a festa reforçava o sentimento de pertencimento à localidade,

consolidando, assim a identidade territorial no assentamento, por meio

da manutenção das tradições culturais camponesas.

A memória de uma história comum, vivenciada pela comunidade

local nos períodos das festas em que comemoravam o aniversário do

assentamento, serviu para mostrar a coesão que o grupo mantinha. Os

moradores da Nova Santo Inácio Ranchinho mantiveram essa memória

viva até a realização da festa de sétimo aniversário do assentamento,

ocorrida no dia 20 de maio de 2000. No ano de 2001, não realizaram

nenhuma forma de celebração da história por eles vivenciada, podendo

significar o desmembramento do grupo e o estilhaçamento da identidade

construída durante esses anos todos.

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FIGURA 14 - Festa de Fol ia de Reis , real izada no aniver sár io do

assentamento Nova Santo Inácio Ranchinho, 2000. Foto: Letíc ia de Cas tro Guimarães.

3.3 - A organização interna no assentamento:

mediações e lutas de poder

A organização interna dos trabalhadores apresenta elementos

interessantes para a análise de práticas de disputa pelo poder exercido

nas relações internas e externas que foram sendo construídas no interior

do assentamento. Tal análise requer a compreensão de que as relações

estabelecidas nos assentamentos de reforma agrária não são, de forma

alguma, harmoniosas, mas permeadas por conflitos de interesses. Nessa

perspectiva, entendemos que o processo de organização implantado no

espaço conquistado configurou-se como expressão de relações de poder,

ou seja, o controle e a ordenação do novo terri tório consist iu-se como

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manifestação de estratégias de poder estabelecidas pelos grupos sociais

existentes no assentamento45.

O modelo de organização interna implementado na Nova Santo

Inácio Ranchinho teve, como já vimos, a Associação como representante

legal dos trabalhadores assentados e instância controladora do território

que ali se reconfigurava. A formação dessa entidade, regulamentada

juridicamente, era uma forma de organização proposta pelas instituições

mediadoras e pelo próprio Estado, que vinculava a liberação de recursos

para o assentamento à constituição de uma instância legal de

representação. Tendo sido estruturada, inicialmente, de forma

horizontalizada, com direção colegiada e constituída como fórum de

discussão e de tomada de decisão sobre questões organizacionais do

assentamento, emergem na Associação relações conflituosas, resultantes

de diferentes projetos que as insti tuições mediadoras colocavam para os

trabalhadores.

Configurando-se como espaço de disputas e de luta pelo poder no

interior do assentamento, afloravam, na Associação, feixes de relações

diferenciadas, que se manifestavam por meio de grupos de interesses,

que ora estabeleciam alianças, ora o conflito aberto entre s i. Mediadas

tanto pelo consenso, como pelo dissenso, as decisões tomadas pelos

associados em assembléias dependiam, freqüentemente, do apoio das

frações de poder representadas pelas lideranças dos grupos de afinidades,

que sempre se articulavam de acordo com seus interesses.

Um dos confrontos estabelecidos entre as lideranças do

assentamento manifestou-se por época da alteração ocorrida no Estatuto

da Associação. Constituída inicialmente, como vimos, com estrutura

horizontalizada e direção colegiada, essa entidade teve seu modelo de

45A compreensão dos assentamentos como expressão de relações de poder , remete-nos à noção de te r ri tór io apresentada por FOUCAULT (1979:157) . Para esse f i lósofo, o ter r i tór io “é sem dúvida uma noção geográf ica, mas é antes de tudo uma noção jur ídico-pol í t ica: aquilo que é controlado por um cer to t ipo de poder.”

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organização modificado por deliberação de uma assembléia geral,

realizada em 1995, no assentamento. O cargo de animador geral,

representante jurídico da direção colegiada, foi subst ituído pelos cargos

de presidente, secretário e tesoureiro, compondo, assim, uma

composição mais verticalizada na diretoria da Associação. Todavia, a

Comissão Central, formada por lideranças dos grupos de afinidades, foi

mantida, sendo portadora do poder horizontal inst ituído na formação

dessa entidade. Tal alteração foi resultado de um conflito de interesses

que estava em jogo no assentamento: o presidencialismo, contraposto à

representação colegiada na estrutura organizacional do assentamento. A

esse respeito, os trabalhadores comentam:

"A di reção colegiada é di ferente do presidenciali smo. Nela todos os assuntos são debat idos ou de liberados na assemblé ia! Então, é um colegiado porque não ex is te uma pessoa com mais re sponsabi l idade que a out ra, que nem um pres idente, um secretário, um tesoure iro! No pres idencial ismo, é sempre o presidente que dá a úl t ima palavra, o pres idente que coordena a assemblé ia , o presidente que representa fora o assentamento!" (Barroso).

"No presidencial i smo, ao invés de i r todo dia pra assemblé ia. . . Oh, gente! Como é que nóis vamo fazê? Não, a gente faz o que prec isa fazer . Quando eu tava falano na ques tão do democrat ismo. . . é nesse sentido. Eu acho que direção tem que ser pra tomá iniciat iva! É lógico que , vai tomá inic iat iva que vai por em dúvida, por em risco o bem-estar . . . o andamento das coisa. . . Tem que consul tá! Mas se é uma coi sa que é em benefíc io pro assentamento. . . não tem que f icá perguntano se quer, não! Porque o que é bom, a base vai receber de braços abertos! ( . . . ) Eu penso, que tem que ter um pouco mais de in ic iat iva por parte da direção." (Edivaldo) .

Dessa forma, percebemos que, os modelos organizacionais que

vigoraram no assentamento, variavam de acordo com os grupos de

interesses que ocupavam cargos de direção da Associação, servindo

como palco para uma rede de relações de poder que se estabelecia no

interior do assentamento.

A constituição da rede de relações de poder foi resultado de

diferentes orientações políticas que ali se configuravam, por meio dos

projetos distintos disputados pelas instituições mediadoras. Tais projetos

indicavam as formas específicas estabelecidas pelos mediadores na

concepção de modelos organizativos para a gestão do território,

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agudizando as diferenciações existentes entre grupos de interesses46, o

que demonstra que a identidade coletiva, construída na fase do

acampamento, fragmentou-se diante das relações de disputa pelo poder

político no interior do assentamento.

Contudo, quando a Associação encaminhava propostas de interesse

coletivo, como a definição de recursos para o custeio agrícola, a

construção da escola, a eletrif icação, assim como o sistema de

abastecimento de água e outros benefícios voltados para o assentamento,

vigorava a harmonização de interesses em torno de um objetivo comum.

Nos depoimentos dos entrevistados, não houve registro de subordinação

ou negociação externa que privilegiasse interesses individuais na Nova

Santo Inácio Ranchinho. Quando tomavam decisões que exigiam a

presença do Estado para o atendimento às necessidades coletivas, a

atuação dos dirigentes da Associação demonstrava a coerência e a força

de pressão.

Consideramos ainda que, se, por um lado, o processo de luta pela

terra e de formação do assentamento proporcionaram novas práticas de

participação e de sociabilidade, por outro, as relações pessoais,

clientelistas, reproduziram-se entre os assentados, confirmando as

sugestões de D’INCAO (1991), em seu estudo sobre as experiências de

organização dos trabalhadores do assentamento Porto Feliz, no estado de

São Paulo, em que mostra a permanência de tais relações. Alguns

trabalhadores registraram, em suas entrevistas, casos de l íderes que

exerciam favores pessoais, estabelecendo relações paternalistas com

alguns trabalhadores: cuidavam da compra de insumos, ajudavam na

comercialização da produção, além de outros favorecimentos. Dessa

46 Os proje tos em di sputa na Nova Santo Inác io Ranchinho expressavam a ar t iculação de diferentes forças pol í t icas que al i se manife stavam, espec ia lmente das l ideranças vinculadas ao MLST de Luta , que sustentavam a direção colegiada para a Associação, e dos representantes do segmento s indica l , defensores do pres idencia l i smo como modelo organizat ivo.

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forma, asseguravam, no plano das disputas pelo poder interno, uma

relação de f idelidade com esses trabalhadores que, sempre apoiavam suas

deliberações nas assembléias da Associação. As práticas de relações

voltadas para a manutenção do poder pessoal de alguns, são apontadas

como força desagregadora do sujeito coletivo no assentamento. Nesse

sentido, o depoimento de um entrevistado revela:

"Nós t i vemos um companhei ro nosso que debandou pro lado da pol í t ica t radicional . . . De acei tar , inc lusive, de acabar gostando dos chamegos que o governo faz! Trabalha um pouco a questão da personal idade, da vaidade e do favorecimento pessoal . Na verdade, a gente vê que um companhe iro nosso que debandou aí! De certa forma, e sta pessoa consegue desar t icular o conjunto. ( . . . ) E não fomenta a discussão, não fomenta a re f lexão, não fomenta o posicionamento. Tá mais no sent ido de predominar que no sentido de ref let i r . Mas aí , também ent ra um problema sério: tá fal tando a gente se sent i r suje i to polí t ico para propor uma al teração. Na verdade , ex is te um inconformismo, mas também, não ex is te uma proposição." (Barroso) .

O que esse relato indica-nos é que, se, por um lado, as lideranças

no assentamento exercem um poder arbitrário, por outro, os

trabalhadores mantêm-se passivos a respeito dos dirigentes,

predominando um certo conformismo no assentamento. Atribuímos tal

passividade às trajetórias de dominação vivenciadas pelos assentados.

Nesse sentido, entendemos que os feixes de convivência que se

estabeleceram nos processos de organização interna do assentamento

reproduziram, ainda que parcialmente, relações de dominação,

fundamentadas num ordenamento social dirigido por relações de poder

hierárquicas, que não promoveram uma completa ruptura com o

autoritarismo social, característico de nossa cultura política.

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3.4 - A organização produtiva e a inserção no mercado

de produção

O sistema de produção predominante na Nova Santo Inácio

Ranchinho constitui-se de pastagens formadas pelo antigo proprietário

associado a de culturas anuais como a mandioca, o arroz, o milho, a cana

forrageira e o sorgo (estas duas últimas destinadas à alimentação do

gado) (ver FIGURA 15). Observa-se também o cultivo de melancia,

abacaxi, guariroba, quiabo e moranga híbrida, ainda que em áreas

menores, variando entre 1 e 7 ha.

As culturas do arroz e do milho são destinadas ao consumo

próprio, sendo o pequeno excedente comercializado no próprio

município.

O algodão já foi produzido no assentamento com caráter comercial,

mas as entrevistas revelam o insucesso do seu cultivo, em razão da

exigência intensiva de insumos agrícolas, especialmente, de agrotóxicos,

FIGURA 15 - Vista de um lote com produção de arroz, na Nova

Santo Inác io Rachinho, 1999. Fonte: Seminár io Interno INCRA/MG, 1999.

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não havendo uma resposta positiva nos resultados da produção. Em seu

Diagnóstico Rápido Participativo Emancipador (BRASIL, 1998), o

INCRA relata um balanço econômico realizado com um produtor de

algodão, mostrando que dos 5 ha cultivados dessa cultura, o referido

agricultor aplicou R$3.000,00, apurando, na venda do produto, em torno

de R$1.400,00.

Uma outra cultura introduzida no assentamento foi a pimenta. Seu

cultivo foi comercializado, inicialmente, para uma fábrica de

condimentos, tendo sido apurado, segundo depoimento de alguns dos

entrevistados, um bom rendimento econômico. Com o sucesso do plantio

desse produto, aumentou-se sua produção no interior do

assentamento.Entretanto, a oferta da pimenta foi maior que a procura,

prejudicando, assim, sua comercialização. Alguns agricultores que

venderam a pimenta para atravessadores tiveram prejuízos. Seu Calu

comenta sobre as condições adversas a que ficaram submetidos na

comercialização da pimenta:

"Dispois que o Sinvaldo começô com a pimenta, os outro começô tudo atrás de le, né? Eu prantei , o Donize te prantô , o pessoal do outro lado prantô! Então nóis tá em 8 pessoa que tá prantano pimenta. . . Só que tem pouco compradô! Tem um do es tado de São Paulo que ve io e pagô cert inho. Pagô oito conto! Agora, ve io um de Uberlândia, esses d ias, pagano nove real . Então esse rapaiz veio e comprô mui ta pimenta aí . Acho que e le comprô uns dois mil real de pimenta! Só que pagô com cheque. . . E o pessoal vendeu as pimenta como se fosse à vis ta! Mais só que quando t rocô o cheque , o cheque tava gelado! O cara suspendeu o cheque! E eles . . . t odo mundo perdeu! Teve gente que perdeu quatrocentos conto! Agora tem mui ta gente que tem 100, 150 l i t ro de pimenta. . . Eu mesmo tenho 50 l i t ro pra vendê, mais tenho medo de vendê pra qualquer um. Só tem que vendê à v is ta. Se num vendê à v is ta, f ica compricado pra gente vendê, porque tá sujei to a tomá um pre juízo, né?"(seu Calu) .

O leite e o cultivo da mandioca constituem atividades de maior

expressão econômica do assentamento, sendo também as que ocupam a

maior área de cultivo.

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O cultivo da mandioca chegou a ocupar uma área de 184 ha em

1997, alcançando1.200 toneladas na safra agrícola de 1997/199847. Sua

comercialização se dá em nível regional, sendo vendida para

proprietários de duas grandes fábricas de farinha dos municípios de

Perdizes e Veríssimo. Apesar da comercialização de mandioca não estar

subordinada aos atravessadores, o poder de barganha dos assentados na

determinação do preço do produto é bem pequeno, posto que as fábricas

de farinha é que fixam o valor da venda, além de haver uma grande

disponibil idade desse produto no mercado agrícola, diminuindo, assim, a

sua demanda. Sobre a comercialização da mandioca, seu Calu comenta:

"Os pr imeiro que plantou mandioca aqui, foi nóis ( re fere- se ao grupo por af in idade que produz iu cole t ivamente) . Nóis demo na te lha de plantá, plantemo e deu certo! Só que naque le tempo t inha duas fábrica que comprava e agora o povo desmot ivô um pouco com a mandioca, porque num tá tendo quem compra! Cê vê que coisa! Aumentô o plant io e caiu a venda. Naquele t empo, tá com quatro anos, nóis vendemo a R$70,00 a tonelada. Hoje tá na base de R$80,00! Aumentô pouquinha coisa! E olha que naquele tempo t inha quem comprava e hoje num tem quem compra. ( . . . ) A venda da mandioca tá ruim pra vendê! (. . . ) Tinha uma fábrica em Veríssimo que levô muita mandioca nossa, mais depois começô a dá problema. . . O cara não era bom! Era bom pra comprá, educado e tudo. . . mais o pagamento começô atrasá! Atrasava os pagamento. . . Uma hora t ratava de levá em tre is viagem por semana e num levava. . . Tinha vezes que a gente arrancava e e le demorava a buscá, a mandioca f icava es tragano no solo, né? Então, tudo é pre juízo!" (seu Calu) .

De acordo com os depoimentos do seu Calu, notamos a luta dos

agricultores familiares para terem acesso ao mercado, demonstrando as

derrotas que sofreram no campo da comercialização de seus produtos,

ficando fragilizados diante da instabil idade posta pelo mercado da

mandioca e da pimenta.

Para a produção de leite, os parceleiros possuem uma área de

1.707 ha de pastagens, dispondo de um pequeno rebanho. Segundo o

Diagnóstico Rápido Participativo Emancipador (BRASIL, 1998),

produzido pelo INCRA, as pastagens encontravam-se sub-utilizadas,

47Dados obt idos at ravés do “Quadro Demons trat ivo de Produção e Comercial ização de Produtos e Subprodutos dos Projetos de Assentamento em Minas Gerais” , fornecidos pela Super intendência Regional do INCRA.

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sendo, muitas vezes, arrendadas para os fazendeiros da região. Como a

pecuária leiteira tem sido uma fonte de renda contínua para os

assentados, tornou-se vocação do local. Sua produção média diária gira

em torno de 1850 li tros, na estação das chuvas, e 1350 no período da

seca. Até 1999, a comercialização do leite era realizada de forma

individual, mediante a entrega diária a uma empresa de laticínios. Nesse

ano, um grupo composto por 53 produtores financiou, por intermédio da

empresa de laticínios, um posto de resfriamento de leite. Com a

instalação do posto, o grupo comprometeu-se a realizar a

comercialização do leite, exclusivamente, com a empresa, pagando o

financiamento com a própria produção. Com a aquisição de um tanque

resfriador, passou-se a realizar a entrega intercalada do leite, reduzindo

os gastos com o transporte. Além do mais, com a entrega intercalada, tal

grupo teve oportunidade de tirar o leite duas vezes por dia, aumentando

o volume a ser comercializado. Uma outra vantagem da produção

granelizada do leite diz respeito a sua qualidade, já que o resfriamento

evita a sua acidez. Como explica Barroso,

"Então, o nosso l ei t inho passado no caminhãozinho de lei te , que f icava rodando pe la fazenda in te ira , ou por outras f azendas até chegar no lat ic ínio, por vol ta de meio-dia, uma hora da tarde, esse le i te já e stava em es tado adiantado de ac idez . Então com o tanque , esse problema de ac idez, ele é e l iminado." (Barroso) .

Para a comercialização coletiva do leite, os produtores destinam

um litro de leite/dia para um fundo de caixa, com o objetivo de custear

as despesas do posto de resfriamento, como energia, material de consumo

e pagamento de um funcionário. De acordo com o depoimento de um

produtor, no pico da safra, chegaram a comercializar 45.000 lit ros de

leite ao mês. O valor máximo alcançado pelo litro de leite foi de R$0,35.

Entretanto, durante o segundo semestre de 2001, o valor do litro de leite

baixou para R$0,25. A oscilação do preço do leite vem acontecendo em

razão do excesso da produção, da desregulamentação do mercado, bem

como da nova tendência que vem ocorrendo com a cadeia agroindustrial

do leite, que é a concentração de empresas por grandes corporações,

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detendo, assim, um grande poder de barganha no estabelecimento dos

preços. Além do mais, os produtores do leite subordinaram sua atividade

à agroindústria do le ite, de tal forma que a indústria assume grande parte

de decisão sobre a forma de produzir.

O que os estudos sobre a realidade e as perspectivas da agricultura

familiar no Brasi l indicam é que, com esse novo modelo econômico que

está sendo implantado com o processo de globalização, os produtores

familiares tornam-se mais vulneráveis: pois, à medida que o

envolvimento do Estado na regulamentação dos preços do mercado e a

proteção a estes produtores tende a diminuir, a competição do mercado

externo tende a aumentar (BRUMER, 1999). Fica evidente a ineficácia

das políticas públicas voltadas para os assentamentos de reforma agrária,

havendo uma grande desarticulação entre a política de desenvolvimento

agrário e a política agrícola, sendo esta última influenciada pela

tendência liberalizante da economia brasileira, responsável pela perda de

terra e pela exclusão dos pequenos produtores de leite do processo de

produção (SANTOS et al. , 2001). Dessa maneira, observamos que o

sucesso ou a instabilidade da comercialização coletiva do leite no

assentamento dependerá do cenário econômico dessa cadeia produtiva,

especialmente do poder de barganha dos produtores do leite na

determinação do preço de mercado. Tudo indica que, permanecendo o

atual cenário econômico, os assentados f icarão em condições adversas de

competição.

Analisar as condições de produção e comercialização no

assentamento Nova Santo Inácio Ranchinho requer, também,

compreender as condições em que as famílias se encontravam, na fase de

implantação do assentamento.

Como referimos anteriormente, o assentamento Nova Santo Inácio

Ranchinho resultou de um intenso processo de luta dos trabalhadores

sem-terra, sendo que sua efetivação definitiva deu-se após mais de

quatro anos. Nesse período, os trabalhadores viviam em acampamentos

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sob condições precárias de subsistência, acentuando, assim, o processo

de degradação econômica de suas famílias. Além do mais, essas famílias

encontravam-se em situação provisória na fase de acampamento, período

suficiente para que os poucos bens que possuíam fossem se deteriorando.

Com isso, os limitados recursos do PROCERA destinados à produção, na

fase de implantação do assentamento, foram utilizados para pagamento

de dívidas contraídas nos armazéns de Campo Florido, aquisição de

eletrodomésticos, veículos para transporte da família e reposição de

equipamentos vendidos durante o período em que viviam acampados. Do

ponto de vista de alguns dos entrevistados, esse processo de degradação

econômica resultou em uma diferenciação social no assentamento: as

famílias que permaneceram acampadas durante mais de quatro anos

entraram nas suas parcelas em condições desiguais daquelas que

mantinham suas residências na cidade. Quando tiveram acesso aos

créditos do PROCERA, aquelas famílias descapitalizadas utilizaram

parte dos recursos com pagamento de dívidas. Nesse sentido, Branca

analisa:

"Com re lação a algumas pessoas tá com um níve l f inanceiro melhor, outras tá com mais di f iculdade. . . Então, a gente tem tre is s i tuação aqui dentro: tem pessoas que nada tem mesmo! Outras têm alguma coisinha, outras tá num níve l mais a l to. Por que que ele tá com nível mais al to? Porque o governo invest iu mais nele? Não, o governo invest iu igualmente em todos! Uns e stão bem porque os parente ajudaram, né? Então, invest i ram nele, mandaram gado, né? Tinham casa na cidade , venderam e construíram casa boa aqui . Enquanto outras vieram com um saquinho nas cos ta, com pane linha, um colchãozinho velho e que não deu pra tá em si tuação melhor hoje! Porque recebe mil reais por ano, prec isa se al imentar! E como f ica sua s i tuação na cidade? Eu acho, que é dever seu se r hones to, não é qualidade, não. Então se o armazém cede a al imentação, eu tenho que pagá. Quando aquele crédito chega, eu devo uma quant ia no armazém. Eu vou e pago aquela quantia e vou plantá na minha roça com aquela parte que dá pra mim plantá, né? Aí, geralmente, o que que acontece? Não houve dinheiro suf ic iente pra um bom preparo do solo . . . porque o governo num tá preocupado com isso, né? A í, vamo produzí menos. De modo que , quando eu colhê, não dá pra eu pagá o que eu devia pagá para o banco." (Branca) .

Tendo os assentados iniciado suas atividades produtivas já

descapitalizados, a área desapropriada pelo INCRA ia apresentando

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problemas do ponto de vista do potencial produtivo48, o que exigia

elevados custos com aquisição de insumos para preparo do solo. Como os

agricultores já não dispunham de recursos suficientes para o plantio, os

sistemas de produção tornaram-se mais vulneráveis.

Por sua vez, a assistência técnica prestada no assentamento pela

Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Minas

Gerais - EMATER-MG - incentivou a adoção da tecnologia moderna

(mecanização e quimificação da agricultura)49, exigindo dos assentados

um expressivo investimento na aquisição de equipamentos e insumos

químicos, não havendo, no entanto a respectiva resposta quanto ao

resultado de suas atividades. Fica evidente que o modelo de tecnologia

proposto por essa empresa aos agricultores não garantiu melhores

condições de produção para o assentamento, comprometendo, assim, a

sua viabilidade econômica. Como indica GRAZIANO DA SILVA

(1999:139), a geração e difusão da tecnologia pelo setor público,

mediante a implementação de uma política tecnológica, não favorece os

agricultores familiares, mas, ao contrário,

“.. .a nova organização ins t i tuc ional baseada fundamentalmente em l inhas de pesquisa por produto e na cent rali zação dos recursos disponíve is, tende a re forçar as penalizações que já são impostas pe lo s i stema econômico ao se tor de pequenos produtores .”

Ainda com relação ao acesso ao crédito, verificamos com base nos

dados fornecidos pelo INCRA, que todos os parceleiros da Nova Santo

Inácio Ranchinho chegaram a atingir o teto máximo pelo PROCERA -

Invest imento, equivalente a R$7.500,00. Esse valor, no entanto, não foi

suficiente para estruturar o sistema produtivo local, já que as famílias

48Como af irma BAVARESCO (1999) , a Cons ti tu ição de 1988 l imitou drast icamente as possibi l idades de desapropr iação de ter ras, especialmente daquelas que bem ou mal são ut i l izadas em at ividades agr ícolas . Isto fez com que o INCRA comprasse ou desapropr iasse áreas com limitações à produção agr ícola. 49Em seu Re latório Anual sobre o Proje to Nova Santo Inác io Ranchinho, o extensionis ta agropecuár io da EMATER - MG, conf irma uma melhor perspec t iva de produção, “tendo em v ista que os assentados já melhor se organizaram, se adaptaram ao cl ima, solos e cos tumes da região, acei tando e ut i l i zando melhor as tecnologias preconizadas pe la equipe técnica” (MINAS GERAIS, s /d) .

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assentadas estavam completamente descapitalizadas ao entrar em suas

parcelas. Além disso, ao recursos liberados pelo PROCERA foram

insuficientes para a correção do solo. Eis o depoimento de Zé Pretinho:

"Eu acho que o governo deveria invest ir mais nos assentamento, porque eu acho que os recurso que são enviado pro assentamento. . . acho que são mui to pouco ( . . . ) Então eu acho o que que eles passa pro assentamento é uma micharia de dinheiro! Então, acho que t i nha que invest ir mai s ( . . . ) Porque se e le dá a terra mais não dá as condições. . . Se dá a terra mais não dá as condições pra produzir , o que vai acontecer? A terra sem condição de produzir , não s ignif ica nada! Vamo supô: eu pranto arroz, mas como é que vai prantá arroz, se não tem dinheiro pra prantá arroz? Pra poder gradeá a te rra? Pra poder comprá adubo? No caso, f ica muito mais caro o plant io do que talve iz o que el e vai colhê!" (Zé Pre tinho) .

Em seu depoimento, Zé Pretinho não revela sua condição de

inadimplência com relação ao financiamento do PROCERA, o que o

impede de ter acesso a qualquer outro financiamento. A condição de

inadimplência é geral em todo o assentamento, posto que uma das

exigências para a liberação desse financiamento foi a assinatura de um

contrato, que, na verdade, nada mais é que um compromisso coletivo de

uma dívida solidária, por cujo montante dos recursos liberados todos são

responsáveis. Mesmo aqueles produtores que conseguiram pagar sua cota

ficaram inadimplentes e, automaticamente, impossibil itados de receber

novos f inanciamentos. Sem o acesso ao crédito, os assentados da Nova

Santo Inácio Ranchinho têm dificuldades em garantir a sua reprodução

social como agricultores familiares, buscando outras saídas para

manterem suas unidades de produção, como veremos a seguir.

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3.5 - Novas perspectivas de vida: entre a cidadania

utópica e a realidade vivida

Como vimos, os resultados alcançados pelo processo de produção e

comercialização na Nova Santo Inácio Ranchinho não atingiram níveis

satisfatórios, comprometendo a capacidade produtiva do assentamento e,

conseqüentemente, a reprodução social dos agricultores. As políticas

públicas implementadas no assentamento não proporcionaram uma

garantia de renda mínima para os seus beneficiários. Ao contrário, os

agricultores permaneceram à margem do desenvolvimento econômico, em

situação extremamente desfavorável para competir em um mercado no

qual prevalece a hegemonia da grande empresa e dos grandes negócios

agroindustriais.

Desse modo, a visão de que o mundo das relações econômicas que

se implantaria no assentamento seria a continuidade de um certo mundo

comunitário estabelecido na fase de acampamento permaneceu no plano

de uma cidadania utópica, ou de um mundo encantado em que se busca

lutar por uma situação ideal fundamentada na igualdade, como afirma

ABRAMOVAY (1994-b).

Na verdade, a realidade vivenciada no assentamento é a “realidade

da sociedade capitalista, onde se tem um mercado, desigualdade,

despersonalização das relações econômicas e assim por diante”

(ABRAMOVAY, 1994-b:316). Ao enfrentarem as condições desiguais de

um mercado competitivo, os agricultores da Nova Santo Inácio

Ranchinho percebem o descompasso entre o sonho de um projeto

alternativo de vida e a dura realidade em que se encontram para se

manterem como produtores rurais. Sobre o assunto, Zé Pretinho relata:

"Agora, uma das coisa que a gente acha. . . a di f iculdade é na questão da produção. . . na questão da produção. Porque a gente

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achava que . . . conquis tada a terra terminava os problema. Depois que conquista a terra é que vem os problema, da produção. E se a gente br incasse , a gente acha mui to mais di f í ci l produzí , que conquistá a te rra. Se cê não soubé. . . Aonde mui tos abandona a te rra e vai embora, porque acha que a terra. . . num tem sentido. Então, é a hora que cê tem que tomá cuidado é . . . com a produção. Sabê apl icá os recurso no lugar ce rto, e le vol ta a ser um bóia- fr ia. (Zé Pre t inho) .

Em seu depoimento, Zé Pretinho expressa bem a realidade vivida

pelos assentados: o estrangulamento do sistema de produção e

comercialização, bem como as dif iculdades que encontram para resist ir

no território por eles conquistado, indicando, assim, o receio que têm os

agricultores familiares de tornarem-se bóias-frias.

A tentativa procurada pelos assentados na formação de

cooperativas, como uma saída para viabilizar a compra de insumos para a

produção e comercialização de seus produtos, não se concretizou ainda,

permanecendo como um projeto a ser realizado para proporcionar a

sustentação econômica das unidades de produção familiar.

A fragilidade vivenciada pelos assentados em razão da falta de

créditos para produção e da imposição do INCRA em consolidar o

projeto de assentamento, sem se preocupar com a dimensão econômica

das unidades produtivas, os coloca diante do impasse de abandonar a

terra ou buscar outras saídas como forma de resistir no território

conquistado.

Uma das saídas encontradas pelos trabalhadores da Nova Santo

Inácio Ranchinho para se sustentarem na terra vem sendo o arrendamento

de suas propriedades para grandes produtores, que fornecem cana para

uma usina de produção de álcool e açúcar: a Usina Cururipe de Açúcar e

Álcool S/A.

O arrendamento de lotes é visto por alguns parceleiros como a

única saída que têm para sobreviverem no assentamento, enquanto que,

para outros, trata-se de um projeto que ameaça a sustentabilidade

econômica e ambiental do assentamento.

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Aqueles assentados que se posicionam contra o arrendamento dos

lotes para a produção da cana-de-açúcar justif icam que a adoção das

práticas agrícolas adotadas por essa monocultura pode degradar o solo,

com o passar do tempo, além de contribuir para a redução da diversidade

biológica, facilitando o surgimento de novas pragas e doenças no sistema

produtivo do assentamento, comprometendo a preservação ambiental

local. No dizer de Barroso,

"Nós vamos sofrer as conseqüências t í picas desse conce ito de produção que é a monocultura! A monocul tura, por si só, já é um afronta à agricultura fami l iar! ( . . . ) Com o arrendamento nós não te remos mais a te rra, te remos apenas o terri tór io!" (Barroso) .

Por sua vez, aqueles que defendem a introdução do arrendamento

para plantio de cana nas parcelas do assentamento avaliam que a falta de

capital individual para investir na produção poderá provocar a venda de

lotes no interior do assentamento50 e o arrendamento seria a única

alternativa possível para resisti rem na terra conquistada.

Contudo diante do impasse estabelecido no interior do

assentamento, entre as propostas de arrendar ou não arrendar as parcelas

para o plantio de cana, a primeira foi vitoriosa. Em decisão tirada em

assembléia da Associação Nova Santo Inácio Ranchinho, f icou

determinada a liberação do arrendamento das parcelas, contando ainda

com a autorização da Superintendência Regional do INCRA- MG.

O arrendamento das suas parcelas foi a solução encontrada por

muitas famílias do assentamento para resistirem em suas unidades

familiares de produção, que procurarão desenvolver, numa área restrita,

a produção para a sua subsistência. Outras famílias continuam a resisti r,

mesmo sem o acesso ao crédito, na continuidade da produção familiar,

mantendo a sua reprodução social, ainda que de forma subordinada ao

mercado competitivo e à hegemonia das grandes empresas

agroindustriais.

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Dessa maneira, o novo território conquistado pelos trabalhadores

rurais, hoje agricultores familiares da Nova Santo Inácio Ranchinho,

ainda resiste aos fortes impactos desse modelo de agricultura

modernizada, ainda que, retomando algumas das características do velho

território.

50Vale ressal tar que , de acordo com os depoimentos dos entrevis tados , não houve nenhuma venda de lotes por parte dos assentados na Nova Santo Inác io Ranchinho, pe lo menos a té o momento em que f inal izamos nossa pesquisa.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um dos primeiros aspectos revelados por este estudo diz respeito à

reflexão sobre o processo de ações coletivas no cenário da globalização,

buscando demonstrar que, ao invés de diluir as singularidades, a

globalização pode proporcionar um reforço das identidades coletivas. O

que procuramos evidenciar nesta análise foi que as novas práticas

gestadas pelos movimentos sociais podem propiciar reações locais ao

processo de homogeneização dos espaços políticos, sociais e culturais ,

imposto pela era da globalização. Fundamentamos tal pressuposto no

estudo das experiências e práticas vivenciadas por um grupo de

trabalhadores rurais sem-terra na luta para disputar a apropriação de um

latifúndio improdutivo.

Ao analisar a trajetória de luta desses trabalhadores - assalariados

rurais, parceiros, arrendatários -, marcada por derrotas e vitórias,

observamos que, por meio de suas práticas, eles apresentaram -se para o

espaço público, colocaram-se em cena como sujeitos de sua própria

história, afirmando, assim, a luta pela sua cidadania.

Para compreender as experiências e práticas dos trabalhadores

sem-terra, hoje agricultores familiares da fazenda Nova Santo Inácio

Ranchinho, analisamos o cenário regional em que travaram suas lutas

para a conquista do direito de acesso à terra. Demonstramos que o

processo de modernização da agricultura implementado na região do

Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba deixou marcas de uma forte exclusão

social , produzindo efeitos perversos para os trabalhadores rurais da

região. Esse foi o contexto de fundo estrutural que, certamente,

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estimulou a luta pela terra, desencadeando na desapropriação de um

latifúndio improdutivo.

Para resgatar a história, tecida por homens e mulheres, que

procuraram afirmar sua cidadania no processo de luta e conquista da

terra, recorremos à memória desses trabalhadores e trabalhadoras Por

meio de suas narrativas, registramos que, pelas histórias de vida, os

entrevistados revelaram suas identidades pessoais, marcadas pelo

sofrimento, pela desvalorização como seres humanos e, sobretudo, pela

frustração que sentiam com relação ao processo de exclusão e

subordinação a que foram submetidos como trabalhadores rurais bóias -

frias. Pelas suas narrativas, fica evidente que a motivação subjetiva que

os estimulou a participar de um processo organizado de luta pela terra,

foi a negação à vida sofrida que levavam como assalariados rurais.

Desse modo, constatamos que, se, a princípio, tais sujeitos,

submetidos às condições de exploração e subordinação produ zidas pelo

processo de modernização da agricultura na região, ocupavam o espaço

social como sujeitos submissos e obedientes, destituídos de seus direitos,

ao longo de suas experiências e práticas de luta, eles procuraram romper

com as péssimas condições de vida a que foram submetidos, saindo do

anonimato e do isolamento para construir uma história coletiva, na qual

inscreveram suas práticas de luta.

Tais trabalhadores, que viviam dispersos e isolados, sujeitos cuja

sociabilidade era marcada pelo mando e a obediência, vivenciaram

experiências de constituição de uma identidade coletiva, que impôs para

o espaço público o reconhecimento de sua cidadania. Por meio de suas

práticas e de seus discursos instituintes, esses homens e mulheres

reinterpretaram a realidade instituída, típica de uma sociedade

autoritária, cujas características mais visíveis são: a desigualdade

econômica, a exclusão social e, sobretudo pelo ordenamento de relações

sociais desiguais, fundamentadas numa organização hierárquica. Quando

se constituíram sujeitos de sua própria história, que lutaram pelo direito

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do acesso à terra, esses trabalhadores contestaram o poder de mando

exercido pelas velhas forças agrárias da região, minando, ainda que

parcialmente, os pilares do autoritarismo social , tã o característico em

nossa cultura polí tica.

Verificamos em nossa pesquisa que o processo de luta pela terra

que conduziu à desapropriação da fazenda Nova Santo Inácio Ranchinho,

em Campo Florido - M.G, não pode ser entendido como um processo

isolado, restrito apenas ao âmbito local. Deve, pois, ser compreendido

como um movimento que, na luta pelo estabelecimento de novos direitos

e na conquista de direitos já instituídos, constituiu, por meio de suas

práticas sociais, um projeto coletivo que estabeleceu, ju nto a outros

movimentos sociais, estratégias para a construção de uma sociedade mais

democrática.

Assim, podemos afirmar que as experiências vivenciadas no

processo de luta pela terra, tais como a reivindicação do direito de

acesso à terra, os acampamentos , as ocupações de latifúndios

improdutivos, bem como de espaços públicos, as ações de contestação e

de pressão contra o Estado, as exigências dos direitos à produção, à

moradia à saúde, à educação, dentre outras, estudadas nos limites deste

trabalho, forjaram práticas de construção da cidadania entre os

trabalhadores sem-terra, hoje, agricultores familiares. No período em que

lutaram para conquistar um latifúndio improdutivo, para nele plantar

seus sonhos de uma vida mais digna, esses trabalhadores, por int ermédio

de suas práticas de luta, recolocaram o problema da constituição do

sujeito coletivo entrelaçado à afirmação de sua cidadania, visando, tanto

resgatar seus direitos mais elementares (civis, sociais e polí t icos), como

inventar novos direitos, dentre eles, as ocupações de terras.

As ações desencadeadas pelos trabalhadores para conquistar um

pedaço de terra evidenciaram sua disposição para inserir -se num campo

de disputas, no qual se manifestam uma diversidade de forças políticas:

de um lado, tais trabalhadores aglutinavam seus interesses, mediante a

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formação de uma rede de instituições organizadas na sociedade civil,

como a APR/CPT, a CUT, o MST, as entidades sindicais, que apoiavam,

incondicionalmente, suas lutas; do outro, os grandes proprietários de

terras, organizados pela UDR, demonstravam sua força polít ica,

reagindo, violentamente, contra o movimento dos sem -terra. Permeando

essa correlação de forças, encontrava -se o Estado, em suas diversas

instâncias, agindo, ora de acordo com os interesses dos trabalhadores,

ora numa posição favorável aos proprietários rurais. Nesse processo de

correlações de forças, os trabalhadores saíram vitoriosos, com a

desapropriação do território disputado, fazendo valer seus interesses,

mediante o confronto com o Estado e com seus opositores.

Após a realização do projeto de reforma agrária na fazenda Nova

Santo Inácio Ranchinho, os trabalhadores reconfiguraram o espaço

conquistado. Desse modo, averiguamos que, para a organização de um

novo território, apresentaram novas formas de ocupação territorial ,

fundamentadas na formação de grupos de afinidade, produzindo uma

mudança significativa na dinâmica de reordenamento territorial do

assentamento.

Averiguamos que, na constituição de novas territorialidades,

baseadas em laços de parentesco, amizade, vizinhança e, sobretudo, em

formas de organização que lhes são próprias, os trabalhadores

construíram uma nova identidade no interior do assentamento, ancorada

no pertencimento à localidade. As reflexões à respeito da consolidação

das identidades terri toriais, contradizem as tendências que preconizam a

globalização como um processo inexorável à homogeneização, que dilui

as singularidades das culturas locais.

No que se refere às relações societárias, podemos afirmar que

houve um processo de aprendizagem de formas organizativas pelos

sujeitos sociais envolvidos neste estudo. As práticas de luta pela terra e

de constituição do novo território proporcionaram experiências de novas

formas de participação e de sociabilidade entre os assentad os da Nova

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Santo Inácio Ranchinho, possibilitando a abertura para concepções mais

amplas de sociabilidade. Destacou-se, nesse contexto, a disseminação de

práticas que contribuíram para a formação de novos assentamentos na

região. Contudo, as formas de sociabilidade, herdadas do familismo e das

relações de vizinhança rurais resgatadas por tais sujeitos, demonstram o

reforço às concepções tradicionais, fundamentadas num ordenamento

social hierárquico.

O registro das experiências vivenciadas por esses trabalha dores,

durante esses anos todos, demonstra que, em suas trajetórias, marcadas

por avanços e recuos, eles constituíram feixes de relações de poder,

reforçando tanto as práticas democráticas, como as relações de

dominação baseadas num poder hierárquico, não promovendo, dessa

forma, uma ruptura completa com o autoritarismo social. Tais

experiências consistem em um aprendizado complexo da prática polít ica,

na qual os grupos de interesses fazem-se e desfazem-se, manifestando-se

de formas diversas, de acordo com as situações por eles enfrentadas.

Em nossas análises sobre a organização produtiva no assentamento

estudado, pudemos observar que, em condições adversas de produção e

de inserção no mercado competit ivo, os trabalhadores vivenciam uma

outra forma de luta: a resistência no território conquistado. Esse

processo de resistência manifesta-se no retorno às relações tradicionais

de produção, como o arrendamento de lotes e outras formas de parcerias

de uma parte de suas terras.

Diante da difícil realidade vivenciad a para garantir a sua

reprodução social, em condições adversas de competição, os assentados

adotaram em seus sistemas de produção o mesmo pacote tecnológico

preconizado pela política de modernização da agricultura, que produziu

efeitos perversos para os camponeses, contribuindo, assim, para o

surgimento dos sem-terra.

Desse modo, atribuímos ao modelo tecnológico adotado no

assentamento, os insatisfatórios níveis de produção e de comercialização,

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comprometendo a capacidade produtiva e, conseqüentemente, a

reprodução social dos agricultores da Nova Santo Inácio Ranchinho.

Além disso, a reflexão sobre as perspectivas de vida no

assentamento, remete-nos à ineficácia das políticas públicas voltadas

para a reforma agrária, resultante de um descompasso entre a pol ít ica de

desenvolvimento agrário e a polí tica agrícola adotada nestes últimos

anos pela tendência liberalizante da economia brasileira. Assim,

consideramos que o efetivo apoio do Estado torna -se essencial para a

reprodução social dos agricultores familiares e para a viabilização

econômica do assentamento.

Portanto, se os agricultores familiares ainda resistem aos fortes

impactos produzidos pelo modelo de agricultura modernizada, é porque

buscam a inserção nesse contraditório espaço social , mediado pela

inclusão e exclusão, construindo estratégias de sobrevivência que visem

garantir sua nova condição social: a de sujeitos que se incorporaram ao

mundo dos direitos.

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