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nais e de trabalhadores e as marcas que uma cultura caracterizada pela hierarquia e pelo favor deixam nas organizaes camponesas. Outros textos enfatizam as diferentes formas de resistncia que passaram a ocorrer sob as novas condies criadas pelo golpe para a transformao do campo. So sucessivamente abordados conflitos no Acre, Mato Grosso, Par e sul do pas. Tambm se salienta que os conflitos nas dcadas de 1970 e 1980 no se limitaram s lutas de resistncia na terra, mas igualmente ocorreram nas reas onde predominavam as relaes assalariadas. Por fim, uma anlise do plano das redes de relaes localmente constitudas lembra como a poltica perpassa e perpassada pelo cotidiano das relaes sociais. Ao longo do livro possvel constatar diferen diferentes formas pelas quais se manifestou a questo agrria e obter instrumentos relevantes para a sua compreenso, tanto do perodo que ele abrange como das heranas que se fazem presentes no debate atual.

Os artigos aqui reunidos formam um abrangente panorama das manifestaes polticas do campesinato brasileiro, de 1945 at meados dos anos 80. No entrecruzar de histrias especficas se vislumbra a dinmica de uma memria que est por ser resgatada, reconstruda e explicitada nas suas mltiplas dimenses, apresentando o trabalhador do campo como sujeito importante dos debates sobre os destinos do pas.

Lutas camponesas contemporneas: condies, dilemas e conquistas vol. I Fernandes, Medeiros e Paulilo (Orgs.)

Lutas camponesas contemporneas: condies, dilemas e conquistasvol. IO campesinato como sujeito poltico nas dcadas de 1950 a 1980Bernardo Manano Fernandes, Leonilde Servolo de Medeiros e Maria Ignez Paulilo (Orgs.)

Partindo do processo de redemocratizao do pas em 1945, os artigos reunidos por Bernardo Manano Fernandes, Leonilde Servolo de Medeiros e Maria Ignez Paulilo montam um abrangente panorama das manifestaes polticas do campesinato brasileiro at meados dos anos 80. Trata-se de um perodo em que a articulao das lutas camponesas com outras foras, como o Partido Comunista e a Igreja Catlica, transforma o trabalhador do campo em sujeito poltico importante, com suas demandas sendo integradas ao debate sobre os destinos do Brasil. Essa dimenso nacional aponta para a diversidade das lutas camponesas. No entrecruzar de casos especficos se vislumbra a dinmica de uma histria que est por ser resgatada nas suas mltiplas dimenses. Mais do que recu recuperar uma memria de conflitos, este livro aponta para as diferentes possibilidades analticas de reconstruir e explicitar essa memria. Os trs primeiros artigos contextualizam o perodo que antecede o golpe militar de 1964. Em seguida, analisado o papel dos militantes originrios dos segmentos subalternos, as tenses entre entidades de representao patro-

Coleo Histria Social do Campesinato no Brasil

NEAD

UNESP

Lutas camponesas contemporneas: condies, dilemas e conquistas

FUNDAO EDITORA DA UNESP Presidente do Conselho Curador Herman Voorwald Diretor-Presidente Jos Castilho Marques Neto Editor-Executivo Jzio Hernani Bomm Gutierre Assessor Editorial Antonio Celso Ferreira Conselho Editorial Acadmico Cludio Antonio Rabello Coelho Jos Roberto Ernandes Luiz Gonzaga Marchezan Maria do Rosrio Longo Mortatti Maria Encarnao Beltro Sposito Mario Fernando Bolognesi Paulo Csar Corra Borges Roberto Andr Kraenkel Srgio Vicente Motta Editores-Assistentes Anderson Nobara Arlete Zebber Christiane Gradvohl Colas

LUIZ INCIO LULA DA SILVA Presidente da Repblica GUILHERME CASSEL Ministro de Estado do Desenvolvimento Agrrio DANIEL MAIA Secretrio-executivo do Ministrio do Desenvolvimento Agrrio ROLF HACKBART Presidente do Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria ADONIRAM SANCHES PERACI Secretrio de Agricultura Familiar ADHEMAR LOPES DE ALMEIDA Secretrio de Reordenamento Agrrio JOS HUMBERTO OLIVEIRA Secretrio de Desenvolvimento Territorial JOAQUIM CALHEIROS SORIANO Coordenador-geral do Ncleo de Estudos Agrrios e Desenvolvimento Rural VINICIUS MACRIO Coordenador-executivo do Ncleo de Estudos Agrrios e Desenvolvimento Rural MINISTRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRRIO (MDA) www.mda.gov.br NCLEO DE ESTUDOS AGRRIOS E DESENVOLVIMENTO RURAL (NEAD) SBN, Quadra 2, Edifcio Sarkis Bloco D loja 10 sala S2 CEP: 70.040-910 Braslia/DF Telefone: (61) 2020-0189 www.nead.org.br PCT MDA/IICA Apoio s Polticas e Participao Social no Desenvolvimento Rural Sustentvel

BERNARDO MANANO FERNANDES LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS MARIA IGNEZ PAULILO (Orgs.)

Lutas camponesas contemporneas: condies, dilemas e conquistasO campesinato como sujeito poltico nas dcadas de 1950 a 1980volume 1

2009 Editora UNESP Direitos de publicao reservados : Fundao Editora da UNESP (FEU) Praa da S, 108 01001-900 So Paulo SP Tel.: (0xx11) 3242-7171 Fax: (0xx11) 3242-7172 www.editoraunesp.com.br [email protected]

CIP Brasil. Catalogao na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ F82 v.1 Lutas camponesas contemporneas: condies, dilemas e conquistas, v.1: o campesinato como sujeito poltico nas dcadas de 1950 a 1980 / Bernardo Manano Fernandes, Leonilde Servolo de Medeiros, Maria Ignez Paulilo (orgs.). So Paulo: Editora UNESP; Braslia, DF: Ncleo de Estudos Agrrios e Desenvolvimento Rural, 2009. 327p. (Histria social do campesinato brasileiro) ISBN 978-85-7139-948-8 (Editora UNESP) ISBN 978-85-60548-49-1 (NEAD) 1. Camponeses Brasil Histria. 2. Camponeses Brasil Condies sociais. 3. Camponeses Brasil Atividades polticas. 4. Brasil Condies rurais. 5. Posse da terra Brasil. 6. Movimentos sociais rurais Brasil Histria. I. Fernandes, Bernardo Manano. II. Medeiros, Leonilde Servolo de. III. Paulilo, Maria Ignez Silveira. IV. Ncleo de Estudos Agrrios e Desenvolvimento Rural. V. Srie. 09-3678. CDD: 305.5633 CDU: 316.343

Editora aliada:

Histria Social do Campesinato no Brasil Conselho Editorial Nacional MembrosMembros efetivos Ariovaldo Umbelino de Oliveira (Universidade de So Paulo) Bernardo Manano Fernandes (UNESP, campus de Presidente Prudente) Clifford Andrew Welch (GVSU & UNESP, campus de Presidente Prudente) Delma Pessanha Neves (Universidade Federal Fluminense) Edgard Malagodi (Universidade Federal de Campina Grande) Emlia Pietrafesa de Godi (Universidade Estadual de Campinas) Jean Hebette (Universidade Federal do Par) Josefa Salete Barbosa Cavalcanti (Universidade Federal de Pernambuco) Leonilde Servolo de Medeiros (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, CPDA) Mrcia Maria Menendes Motta (Universidade Federal Fluminense) Maria de Nazareth Baudel Wanderley (Universidade Federal de Pernambuco) Maria Aparecida de Moraes Silva (UNESP, cmpus de Araraquara) Maria Ignez Paulilo (Universidade Federal de Santa Catarina) Marilda Menezes (Universidade Federal de Campina Grande) Miguel Carter (American University, Washington DC) Paulo Zarth (Uniju) Rosa Elizabeth Acevedo Marin (Universidade Federal do Par) Sueli Pereira Castro (Universidade Federal de Mato Grosso) Wendy Wolford (Yale University) Coordenao Horcio Martins de Carvalho Mrcia Motta Paulo Zarth

SUMRIO

APRESENTAO COLEO 9 PREFCIO 19 INTRODUO 23Bernardo Manano Fernandes, Leonilde Servolo de Medeiros e Maria Ignez Paulilo

1 Ao poltica e atores sociais: posseiros, grileiros e a luta pela terra na Baixada Fluminense 35Mario Grynszpan

2 Trombas: um ensaio revolucionrio 57Paulo Ribeiro da Cunha

3 O Master e as ocupaes de terra no Rio Grande do Sul 71Cordula Eckert

4 A gnese do sindicalismo rural no Paran: reexes sobre as carreiras de dirigentes 93Osvaldo Heller da Silva

5 Organizaes rurais e camponesas no estado do Par 117Gutemberg Armando Diniz Guerra

6 Os com-terra e os sem-terra de So Paulo: retratos de uma relao em transio (1946-1996) 139Clifford Andrew Welch

7 Desmobilizao e conito: relaes entre trabalhadores e patres na agroindstria pernambucana 171Moacir Palmeira

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Sumrio

8 No limiar da resistncia: luta pela terra e ambientalismo no Acre 201Elder Andrade de Paula e Silvio Simione da Silva

9 Campesinato e Igreja na fronteira o sentido da lei e a fora da aliana 223Neide Esterci

10 Um movimento que marcou poca: a Corrente Sindical Lavradores Unidos de Santarm 245Jean-Pierre Leroy

11 O movimento dos atingidos por barragens: atores, estratgias de luta e conquistas 265Maria Jos Reis

12 A luta de classes em dois atos: notas sobre um ciclo de greves 287Lygia Sigaud

13 Como uma famlia: sindicatos de trabalhadores rurais na Zona da Mata de Minas Gerais, 1984-2000 307John Comerford

Sobre os autores 325

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APRESENTAO COLEO

Por uma recorrente viso linear e evolutiva dos processos histricos, as formas de vida social tendem a ser pensadas se sucedendo no tempo. Em cada etapa consecutiva, apenas so exaltados seus principais protagonistas, isto , os protagonistas diretos de suas contradies principais. Os demais atores sociais seriam, em concluso, os que, por alguma razo, se atrasaram para sair de cena. O campesinato foi freqentemente visto dessa forma, como um resduo. No caso particular do Brasil, a esta concepo se acrescenta outra que, tendo como modelo as formas camponesas europias medievais, aqui no reconhece a presena histrica do campesinato. A sociedade brasileira seria ento congurada pela polarizada relao senhorescravo e, posteriormente, capitaltrabalho. Ora, nos atuais embates no campo de construo de projetos concorrentes de reordenao social, a condio camponesa vem sendo socialmente reconhecida como uma forma ecaz e legtima de se apropriar de recursos produtivos. O que entendemos por campesinato? So diversas as possibilidades de denio conceitual do termo. Cada disciplina tende a acentuar perspectivas especcas e a destacar um ou outro de seus aspectos constitutivos. Da mesma forma, so diversos os contextos histricos nos quais o campesinato est presente nas sociedades. Todavia, h reconhecimento de princpios mnimos que permitem aos que investem, tanto no campo acadmico quanto no poltico, dialogar em torno de reexes capazes de demonstrar a presena da forma ou condio camponesa, sob a variedade de possibilidades de objetivao ou de situaes sociais. Em termos gerais, podemos armar que o campesinato, como categoria analtica e histrica, constitudo por poliprodutores, integrados ao jogo de foras sociais do mundo contemporneo. Para a construo da histria social do campesinato no Brasil, a categoria ser reconhecida pela produo, em modo e grau variveis, para o mercado, termo que abrange, guardadas as singularidades inerentes a cada forma, os mercados locais, os mercados9

Apresentao coleo

em rede, os nacionais e os internacionais. Se a relao com o mercado caracterstica distintiva desses produtores (cultivadores, agricultores, extrativistas), as condies dessa produo guardam especicidades que se fundamentam na alocao ou no recrutamento de mo-de-obra familiar. Trata-se do investimento organizativo da condio de existncia desses trabalhadores e de seu patrimnio material, produtivo e sociocultural, varivel segundo sua capacidade produtiva (composio e tamanho da famlia, ciclo de vida do grupo domstico, relao entre composio de unidade de produo e unidade de consumo). Por esses termos, a forma de alocao dos trabalhadores tambm incorpora referncias de gesto produtiva, segundo valores sociais reconhecidos como orientadores das alternativas de reproduo familiar, condio da qual decorrem modos de gerir a herana, a sucesso, a socializao dos lhos, a construo de diferenciados projetos de insero das geraes. O campesinato emerge associadamente ao processo de seu reconhecimento poltico, ora negativo, ora positivo. Por tais circunstncias, a questo poltica, constituda para o reconhecimento social, enquadrou tal segmento de produtores sob a perspectiva de sua capacidade adaptativa a diferentes formas econmicas dominantes, ora pensadas pela permanncia, ora por seu imediato ou gradual desaparecimento. Como em muitos outros casos de enquadramento social e poltico, uma categoria de auto-identicao, portanto contextual, produto de investimentos de grupos especficos, desloca-se, sob emprstimo e (re)semantizao, para os campos poltico e acadmico e, nesses universos sociais, sob o carter de signo de comportamentos especialmente htero-atribudos ou sob o carter de conceito, apresenta-se como generalizvel. Vrios autores, retratando a coexistncia do campesinato em formaes socioeconmicas diversas, j destacaram que o reconhecimento dessa nominao, atribuda para efeitos de investimentos polticos ou para reconhecimento de caractersticas comuns, s pode ser compreendido como conceito, cujos signicados denem princpios gerais abstratos, motivo pelo qual podem iluminar a compreenso de tantos casos particulares. Para que a forma camponesa seja reconhecida, no basta considerar a especicidade da organizao interna unidade de produo e famlia trabalhadora e gestora dos meios de produo alocados. Todavia, essa distino analiticamente fundamental para diferenciar os modos de existncia dos camponeses dos de outros trabalhadores (urbanos e rurais), que no operam produtivamente sob tais princpios. Percebendo-se por essa distino de modos de existncia, muitos deles se encontram mobilizados politicamente para lutar pela objetivao daquela condio de vida e produo (camponesa). Em quaisquer das alternativas, impe-se a compreenso mais ampla do mundo cultural, poltico, econmico e social em que o campons produz e se reproduz. Da coexistncia com outros agentes sociais, o campons se10

Lutas camponesas contemporneas: condies, dilemas e conquistas

constitui como categoria poltica, reconhecendo-se pela possibilidade de referncia identitria e de organizao social, isto , em luta por objetivos comuns ou, mediante a luta, tornados comuns e projetivos. A esse respeito, a construo da histria social do campesinato, como de outras categorias socioeconmicas, deve romper com a primazia do econmico e privilegiar os aspectos ligados cultura. Ao incorporar as mltiplas dimenses da prtica dos agentes, destacamos o papel da experincia na compreenso e explicitao poltica das contradies do processo histrico. Essas contradies revelam conitos entre normas e regras que referenciam modos distintos de viver, em plano local ou ocupacional, colocando em questo os meios que institucionalizam formas de dominao da sociedade inclusiva. Tais postulados sero demonstrados nos diversos artigos desta coletnea, voltada para registros da histria social do campesinato brasileiro. A prtica faz aparecer uma innidade de possibilidades e arranjos, vividos at mesmo por um mesmo grupo. Quanto mais se avana na pesquisa e no reconhecimento da organizao poltica dos que objetivam a condio camponesa, mais se consolidam a importncia e a amplitude do nmero de agricultores, coletores, extrativistas, ribeirinhos e tantos outros, nessa posio social ou que investem para essa conquista. A diversidade da condio camponesa por ns considerada inclui os proprietrios e os posseiros de terras pblicas e privadas; os extrativistas que usufruem os recursos naturais como povos das orestas, agroextrativistas, ribeirinhos, pescadores artesanais e catadores de caranguejos que agregam atividade agrcola, castanheiros, quebradeiras de coco-babau, aaizeiros; os que usufruem os fundos de pasto at os pequenos arrendatrios nocapitalistas, os parceiros, os foreiros e os que usufruem a terra por cesso; quilombolas e parcelas dos povos indgenas que se integram a mercados; os serranos, os caboclos e os colonos assim como os povos das fronteiras no sul do pas; os agricultores familiares mais especializados, integrados aos modernos mercados, e os novos poliprodutores resultantes dos assentamentos de reforma agrria. No caso da formao da sociedade brasileira, formas camponesas coexistem com outros modos de produzir, que mantm relaes de interdependncia, fundamentais reproduo social nas condies hierrquicas dominantes. Assim, a ttulo de exemplo, ao lado ou no interior das grandes fazendas de produo de cana-de-acar, algodo e caf, havia a incorporao de formas de imobilizao de fora de trabalho ou de atrao de trabalho livre e relativamente autnomo, fundamentadas na imposio tcnica do uso de trabalho basicamente manual e de trabalhadores familiares, isto , membros da famlia do trabalhador alocado como responsvel pela equipe. Esses fundamentais agentes camponeses agricultores apareciam sob designao de colonos, arrendatrios, parceiros, agregados, moradores e at sitiantes, termos que no podem ser compreendidos sem a articulao11

Apresentao coleo

com a grande produo agroindustrial e pastoril. Se recuarmos um pouco no tempo, veremos que, ao lado de donatrios e sesmeiros, apareciam os foreiros, os posseiros ou designando a condio de coadjuvante menos valorizada nesse sistema de posies hierrquicas os intrusos ou invasores, os posseiros criminosos etc. Os textos da histria geral do Brasil, nos captulos que exaltam os feitos dos agentes envolvidos nos reconhecidos movimentos de entradas e bandeiras, trazem tona a formao de pequenos povoados de agricultores relativamente autrquicos. Posteriormente, tais agentes produtivos sero celebrados pelo papel no abastecimento dos tropeiros que deslocavam metais e pedras preciosas, mas tambm outros produtos passveis de exportao e de abastecimento da populao das cidades ou das vilas porturias. Desse modo, o campesinato, forma poltica e acadmica de reconhecimento conceitual de produtores familiares, sempre se constituiu, sob modalidades e intensidades distintas, um ator social da histria do Brasil. Em todas as expresses de suas lutas sociais, seja de conquista de espao e reconhecimento, seja de resistncia s ameaas de destruio, ao longo do tempo e em espaos diferenciados, prevalece um trao comum que as dene como lutas pela condio de protagonistas dos processos sociais. Para escrever sobre essa histria preciso, portanto, antes de tudo, reetir sobre a impositiva produo dessa amnsia social ou dessa perspectiva unidimensional e essencializada, que apaga a presena do campesinato e oculta ou minimiza os movimentos sociais dos camponeses brasileiros, consagrando com tradio inventada a noo do carter cordato e pacco do homem do campo. Ou fazendo emergir a construo de uma caricatura esgarada do pobre coitado, isolado em grande solido e distanciamento da cultura ocial, analfabeto, mal-alimentado. Ora, tais traos aviltantes, para olhares que os tomassem como expressivos da condio de vida e no do sujeito social, revelavam as bases da explorao e da submisso em que viviam, seja como agentes fundamentais ou complementares do processo produtivo da atividade agroindustrial e exportadora. Estimulados a coexistirem internamente, ao lado ou ao largo da grande produo, os agentes constitudos na condio camponesa no tinham reconhecidas suas formas de apropriao dos recursos produtivos. Assim sendo, so recorrentemente questionados e obrigados a se deslocar para se reconstituir, sob as mesmas condies, em reas novamente perifricas. Da mesma forma, em outras circunstncias, so submetidos a regras de coexistncia consentidas e por vezes imediatamente questionadas, dada a exacerbao das posies hierarquizadas ou das desigualdades inerentes s condies de coexistncia. A presena dos camponeses , pois, postulada pela ambigidade e desqualicao, quando os recursos por eles apropriados se tornavam objeto de cobia. Entendemos, no entanto, que, sob processos relativamente12

Lutas camponesas contemporneas: condies, dilemas e conquistas

equivalentes, esses agentes elaboraram, como trao comum de sua presena social, projetos de existncia fundamentados em regras legtimas e legais, princpios fundamentais para a construo de um thos e de regras ticas, orientadores de seu modo de existncia e coexistncia. Sob tais circunstncias, a constituio da condio camponesa torna o agente que lhe corresponde o portador de uma percepo de justia, entendida aqui no como uma abstrao terica sobre o direito aos recursos produtivos, e sim como uma experincia baseada em modos de coexistncia: sob formas de comunidade camponesa; na labuta diria pela sobrevivncia; na relao com a natureza; e nas prticas costumeiras para a manuteno e a reproduo de um modo de vida compatvel com a ordem social, institucionalizada por aqueles que se colocam socialmente como seus opressores. Levando em considerao o conjunto de fatores que vimos destacando, podemos caracterizar alguns elementos constitutivos de certa tradio do campesinato brasileiro, isto , como expresso da existncia permitida sob determinadas constries e provisoriedades e sob certos modos de negociao poltica. Essa negociao no exclui resistncias, imposies contratuais, legais ou consuetudinrias, ou questionamentos jurdicos, que revelam e rearmam a capacidade de adaptao s condies da produo econmica dominante. Menos do que um campesinato de constituio tradicional, no sentido da profundidade temporal da construo de um patrimnio material e familiar, vemos se institucionalizar, como elemento distintivo, um patrimnio cultural inscrito nas estratgias do aprendizado da mobilidade social e espacial. Estratgias que visam, entre outros objetivos, busca do acesso aos recursos produtivos para a reproduo familiar e a explorao de alternativas, oferecidas pelas experincias particulares ou ociais de incorporao de reas improdutivas ou fracamente integradas aos mercados. Os camponeses instauraram, na formao social brasileira, em situaes diversas e singulares e mediante resistncias de intensidades variadas, uma forma de acesso livre e autnomo aos recursos da terra, da oresta e das guas, cuja legitimidade por eles rearmada no tempo. Eles investiram na legitimidade desses mecanismos de acesso e apropriao, pela demonstrao do valor de modos de vida decorrentes da forma de existncia em vida familiar, vicinal e comunitria. A produo estrito senso se encontra, assim, articulada aos valores da sociabilidade e da reproduo da famlia, do parentesco, da vizinhana e da construo poltica de um ns que se contrape ou se rearma por projetos comuns de existncia e coexistncia sociais. O modo de vida, assim estilizado para valorizar formas de apropriao, redistribuio e consumo de bens materiais e sociais, se apresenta, de fato, como um valor de referncia, moralidade que se contrape aos modos de explorao e de desqualicao, que tambm foram sendo reproduzidos no decorrer da existncia da posio camponesa na sociedade brasileira.13

Apresentao coleo

As formas exacerbadas de existncia sob desigualdades socioeconmicas se expressam, sobretudo, na explorao da fora de trabalho coletiva dos membros da famlia e na submisso aos intermedirios da comercializao, que se associam a outros agentes dominantes para produzir um endividamento antecipado e expropriador. Essas formas de subordinao, que pem em questo as possibilidades de reproduo da condio camponesa, contrapem-se avaliao de perenizadas experincias positivas de construo da condio camponesa. Um exemplo de experincias positivas a institucionalizada pelos sitiantes, dotados de autonomia para se agregarem por vida coletiva em bairros rurais. No contexto de lutas sociais, os trabalhadores foram construindo um sistema de crenas partilhadas e inscritas em seu cotidiano de lutas pela sobrevivncia e reproduo social. Essas lutas so orientadas pela denio do acesso aos recursos produtivos, de forma legal e autnoma, como fator fundamental para sua constituio como agente produtivo imediato, isto , contraposto ao cativo ou subjugado no interior das fazendas e, por tal razo, dispondo de relativa autonomia. Nos termos dessa tradio, a liberdade um valor para expandir uma potencialidade, ou seja, capacidade para projetar o futuro para os lhos e para socialmente se valorizar como portador de dignidade social. Na construo da formao social brasileira, o modo de existir reconhecido pela forma camponesa, menos que um peso da tradio da estabilidade e de longas genealogias, como ocorre, por exemplo, em formaes sociais europias, uma idia-valor, orientadora de condutas e de modos de agregao familiar ou grupal. Na qualidade de valor, um legado transmitido entre geraes, reatualizado e contextualizado a cada nova gerao que investe nessa adeso poltica. O peso desse legado, quando no compreendido, leva aos estranhamentos muito comuns em relao persistncia da luta pelo acesso aos recursos produtivos e mesmo em relao ao deslocamento de trabalhadores denidos como urbanos, que engrossam movimentos de sua conquista. As possibilidades de existncia que a condio camponesa permite vo se contrapor, em parte por equivalncia comparativa, s condies de explorao de trabalhadores da indstria, do comrcio e de servios. Esses traos, sempre presentes porque realimentados como um legado de memrias familiares e coletivas, vo atribuir sentido s constantes mobilidades de trabalhadores. Os deslocamentos justicam-se pela busca de espaos onde haja oportunidade de pr em prtica modos de produzir e de existncia, desde que fundamentados pela gesto autnoma dos fatores produtivos, das condies e produtos do trabalho e da orientao produtiva. Levando em conta tais elementos, denidos como constitutivos de uma tradio e alargando a compreenso da diversidade de situaes, rearmamos a presena do campesinato como constitutiva de toda a histria do Brasil. Tais produtores estiveram vinculados explorao colonial,14

Lutas camponesas contemporneas: condies, dilemas e conquistas

integrando-se a mercados locais ou a distncia; rearmaram-se como posio desejada no decorrer da transio do trabalho escravo para o trabalho livre; abasteceram os processos de agroindustrializao de produtos destinados exportao; e, entre outras tantas situaes, por mais de um sculo, vm ocupando a Amaznia. Atualmente, apresentam-se como um dos principais atores da cena poltica, constituda para tornar possvel a construo de sociedade erguida sobre bases mais igualitrias, capazes, ento, de fundamentar os princpios democrticos de coexistncia social e poltica. Portanto, as negociaes em torno das alternativas de ocupao do espao fsico e social marcaram e impregnaram a proposio de modos de vida orientados por valores cuja elaborao tornou possvel a legitimidade da coexistncia poltica e cultural. Modos de vida que tambm rearmam o direito luta pela autonomia, emblematizada pela clebre referncia vida na fartura. Ora, tudo isso, relembramos, fora construdo no contexto de imposio de formas de dominao objetivadas com base na grande produo. Por esse motivo, a vida segundo a lgica expropriatria objetivada na grande propriedade foi concebida como destruidora da dignidade social. A honra estava (assim e inclusive) pautada pela defesa do acesso alimentao, todavia em condies socialmente concebidas como adequadas reproduo saudvel do trabalhador e dos membros de sua famlia. Dessa forma, no Brasil, os produtores agregados pela forma de organizao camponesa esto presentes como atores sociais que participaram e participam da construo da sociedade nacional. Esse reconhecimento no se funda to-somente em uma dimenso politizada de defesa dessa visibilidade social. Ele tambm se explica pelos princpios de constituio das formas hegemnicas de organizao da produo social. Destacaremos trs dimenses desse protagonismo. Em primeiro lugar, o campesinato representa um plo de uma das mais importantes contradies do capital no Brasil, que consiste em sua incapacidade de se libertar da propriedade fundiria. O signicado que a propriedade da terra tem at hoje, como um elemento que ao mesmo tempo torna vivel e fragiliza a reproduo do capital, gera uma polarizao (de classe) entre o proprietrio concentrador de terras (terras improdutivas) e aquele que no tem terras sucientes. Desse fato decorrem duas conseqncias principais. Por um lado, essa contradio no residual na sociedade brasileira, constituindo-se um dos pilares de sua estrutura social; por outro, a principal luta dos camponeses pela construo de seu patrimnio, condio sine qua non de sua existncia. Essa luta foi e continua sendo muito forte em diversos momentos e sob as mais variadas formas. Ela tem um carter eminentemente poltico e corresponde ao que se costuma chamar o movimento campons. Assim, a luta pela terra e pelo acesso a outros recursos produtivos no assume apenas a dimenso mais visvel das lutas camponesas. Ela se processa igualmente em um nvel menos perceptvel, por outras formas de resistncia15

Apresentao coleo

que dizem respeito s estratgias implementadas pelos camponeses para trabalhar, mesmo em condies to adversas, e assegurar a reproduo da famlia. Essa dimenso tem, de fato, menor reconhecimento pela sociedade e mesmo na academia. Ao se armar historicamente essa dimenso, importante ressaltar a capacidade dos camponeses de formular um projeto de vida, de resistir s circunstncias nas quais esto inseridos e de construir uma forma de integrao sociedade. Essas so prticas que tm um carter inovador ou que revelam grande capacidade de adaptao e de conquistas de espaos sociais que lhes so historicamente inacessveis. Consideramos necessrio registrar e reconhecer as vitrias, por mais invisveis que sejam. Por ltimo, h uma terceira dimenso, tambm pouco reconhecida, at mesmo entre os acadmicos, que consiste na valorizao da forma de produzir do campons. Esta se traduz pela adoo de prticas produtivas (diversicao, intensicao etc.), formas de uso da terra, relaes com os recursos naturais etc. Formam-se, assim, os contornos de um saber especco que se produz e se reproduz contextualmente. claro que o campesinato no se esgota na dimenso de um mtier prossional, nem a ela corresponde um modelo imutvel, incapaz de assimilar mudanas, mas imprescindvel para que se possa compreender seu lugar nas sociedades modernas. Sua competncia, na melhor das hipteses, um trunfo para o desenvolvimento de uma outra agricultura ou para a perseguio da sustentabilidade ambiental e social como valor. E, na pior das hipteses (para no idealizar a realidade), um potencial que poderia ser estimulado na mesma direo. No sem conseqncia que sua existncia seja hoje to exaltada como um dos pilares da luta pela reconstituio dos inerentes princpios de reproduo da natureza, to subsumidos que estiveram e continuam estando a uma racionalidade tcnica, em certos casos exagerada pela crena em uma articializao dos recursos naturais reproduzidos em laboratrios e empresas industriais. Ora, os princpios de constituio e expanso do capitalismo desconhecem e desqualicam essa competncia. Do ponto de vista poltico, a negao dessa dimenso, tanto direita (que defende a grande propriedade como a nica forma moderna ou modernizvel) quanto esquerda (que terminou enfatizando apenas a dimenso poltica da luta pela terra), tem como conseqncia a negao do campons como agricultor. As polticas agrcolas chamadas compensatrias s reforam a viso discriminadora. Em concluso, reiteramos, por um lado, a universalidade da presena do campesinato, que abarca os diversos espaos e os diferenciados tempos. E tambm, por outro, a variedade de existncias contextuais, visto que essa variedade s indica a valorizada adaptabilidade dos agentes e dos princpios abrangentes de constituio da forma camponesa. Portanto, mesmo que corresponda revalorizao de uma tradio (patrimnio de valores institucionalizados nas memrias e na projeo social), a reproduo do campesinato nas sociedades contemporneas um fato social do mundo16

Lutas camponesas contemporneas: condies, dilemas e conquistas

moderno, e no resqucio do passado. Por essa perspectiva, ultrapassa-se a velha e surrada concepo unilinear da inexorvel decomposio do campesinato. Como os processos histricos tm demonstrado, ela no tendncia geral ou lei inevitvel. Em vez dessa concepo, que, rearmando a substituio das classes fundamentais, augura (e at vaticina) o m do campesinato, escolhemos pensar e registrar as mltiplas alternativas, resultado de conquistas e resistncias de atores sociais que se referenciam a um modo de produzir e viver coexistente com um mundo moderno. Entrementes, nesse mesmo mundo, cujos analistas vm acenando (e, por que no, tambm vaticinando) com o desemprego em massa como princpio de constituio econmica, em que a diversidade cultural rearmada para fazer frente a uma vangloriada homogeneizao poltica e cultural, que os camponeses se reorganizam em luta. Por essa conduta clamam exatamente pela manuteno da autonomia relativa, condio que o controle dos fatores de produo e da gesto do trabalho pode oferecer. Conselho Editorial

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PREFCIO

Apresentamos aos leitores especialmente aos militantes camponeses, aos interessados e aos estudiosos da questo camponesa no Brasil uma obra que o resultado de um fantstico esforo intelectual e coletivo. A elaborao da Histria Social do Campesinato no Brasil envolveu grande nmero de estudiosos e pesquisadores dos mais variados pontos do pas, num esforo conjunto, planejado e articulado, que resulta agora na publicao de dez volumes retratando parte da histria, resistncias, lutas, expresses, diversidades, utopias, teorias explicativas, enm, as vrias faces e a trajetria histrica do campesinato brasileiro. A idia de organizar uma Histria Social do Campesinato no Brasil aorou no m de 2003, durante os estudos e os debates para a elaborao de estratgias de desenvolvimento do campesinato no Brasil que vinham sendo realizados desde meados desse ano por iniciativa do Movimento de Pequenos Agricultores (MPA), com envolvimento, em seguida, da Via Campesina Brasil, composta, alm de pelo prprio MPA, pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), pelo Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), pelo Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), pela Comisso Pastoral da Terra (CPT), pela Pastoral da Juventude Rural (PJR), pelo Conselho Indigenista Missionrio (Cimi) e pela Federao dos Estudantes de Agronomia do Brasil (Feab). Essa idia foi ganhando corpo quando se envolveram, primeiro, o pesquisador Horcio Martins de Carvalho e os pesquisadores Delma Pessanha Neves, Mrcia Maria Menendes Motta e Carlos Walter Porto-Gonalvez, que decidiram, em reunio nas dependncias da Universidade Federal Fluminense (UFF), no incio de 2004, com dirigentes da Via Campesina, lanar o desao a outros tantos que se dedicam ao tema no Brasil. O resultado foi o engajamento de grande nmero de pesquisadores, todos contribuindo de maneira voluntria. Foram consultadas cerca de duas centenas de pesquisadores, professores e tcnicos para vericar se a pretenso de elaborar uma Histria Social do19

Prefcio

Campesinato no Brasil tinha sentido e pertinncia. A idia foi generosamente aceita, um Conselho Editorial foi constitudo, muitas reunies foram realizadas, os textos foram redigidos e o resultado a publicao destes dez volumes da Coleo Histria Social do Campesinato no Brasil. Nesta Coleo apresentamos diversas leituras sobre a histria social do campesinato no Brasil. Nossa preocupao com os estudos sobre o campesinato se explica pelo fato de, na ltima dcada, ter havido um avano dos trabalhos que promoveram os mtodos do ajuste estrutural do campo s polticas neoliberais. Nessa perspectiva, a realidade do campo foi parcializada de acordo com os interesses das polticas das agncias multilaterais que passaram a nanciar fortemente a pesquisa para o desenvolvimento da agricultura. Esses interesses pautaram, em grande medida, as pesquisas das universidades e determinaram os mtodos e as metodologias de pesquisa com base em um referencial terico de consenso para o desenvolvimento da agricultura capitalista. Desse ponto de vista, o campesinato tornou-se um objeto que necessita se adequar ao ajuste estrutural para que uma pequena parte possa sobreviver ao intenso processo de explorao e expropriao do capitalismo. Poucos foram os grupos de pesquisa que mantiveram uma conduta autnoma e crtica a essa viso de mundo em que o capitalismo compreendido como totalidade e m de todas as coisas. Nesse princpio de sculo, o conhecimento ainda mais relevante como condio de resistncia, interpretao e explicao dos processos socioterritoriais. Portanto, control-lo, determin-lo, limit-lo, ajust-lo e regul-lo so condies de dominao. Para criar um espao em que se possa pensar o campesinato na histria a partir de sua diversidade de experincias e lutas, a Via Campesina estendeu o convite a pesquisadores de vrias reas do conhecimento. Quase uma centena de cientistas responderam positivamente nossa proposta de criar uma coleo sobre a histria do campesinato brasileiro. Igualmente importante foi a resposta positiva da maior parte dos estudiosos convidada para publicar seus artigos, contribuindo com uma leitura do campesinato como sujeito histrico. O campesinato um dos principais protagonistas da histria da humanidade. Todavia, por numerosas vezes, em diversas situaes, foram empreendidos esforos para apag-lo da histria. Esses apagamentos ocorrem de tempos em tempos e de duas maneiras: pela execuo de polticas para expropri-lo de seus territrios e pela formulao de teorias para exclu-lo da histria, atribuindo-lhe outros nomes a m de regular sua rebeldia. Por tudo isso, ao publicar esta importante obra, em nosso entender, de flego e profundidade, queremos fazer quatro singelos convites.20

Lutas camponesas contemporneas: condies, dilemas e conquistas

Convite Leitura Esta obra merece ser lida pela riqueza de informaes, pela abrangncia com que aborda o tema e pela importncia da histria social do campesinato para compreender o Brasil. Convite ao Estudo Alm da mera leitura, uma obra que deve ser estudada. preciso que sobre ela nos debrucemos e reitamos para conhecer esse tema em profundidade, quer em escolas, seminrios, grupos de estudo, quer individualmente. Esta Coleo um desao, pois retrata uma realidade que, aqueles que estiverem comprometidos em entender o Brasil para transform-lo, precisam conhecer profundamente. Convite Pesquisa Esta obra, composta de dez volumes, fruto e resultado de muita disciplinada e dedicada pesquisa. , portanto, desao a mais investigaes e a que outros mais se dediquem a esses temas. Embora uma obra vasta, com certeza mais abre do que encerra perspectivas de novos estudos, sob novos ngulos, sobre aspectos insucientemente abordados, sobre realidades e histrias no visibilizadas, com enfoques diferenciados. H muito que desentranhar da rica e variada histria social do campesinato brasileiro, e os autores desta obra sentir-se-o imensamente realizados se muitas, rigorosas, profundas e novas pesquisas surgirem estimuladas por essa sua importante iniciativa. Convite ao Debate Esta no uma obra de doutrina. E mesmo as doutrinas devem ser expostas ao debate e ao contraditrio. Quanto mais uma obra sobre a histria. Convidamos ao debate dos textos, mas, alm disso, ao debate sobre o sujeito social do qual a Coleo se ocupa: o campesinato e sua trajetria ao longo da histria do Brasil. E que esse no seja um debate estril ou esterilizante que se perde nos meandros da polmica pela polmica, mas que gere aes na sociedade, nas academias, nos centros de pesquisas e nas polticas de Estado em relao aos camponeses e ao mundo que os circunda e no qual se fazem sujeitos histricos. A Via Campesina do Brasil reconhece e agradece profundamente o trabalho rduo e voluntrio dos membros do Conselho Editorial e de todos os envolvidos no projeto. Sem o desprendimento e o zelo desses professores, sem essa esperana renovada a cada dia pelas mais distintas formas e motivos, sem a acuidade acadmica, o cuidado poltico e a generosidade21

Prefcio

de todos os envolvidos no teramos alcanado os resultados previstos. De modo especial nosso reconhecimento ao professor Horcio Martins de Carvalho. Agradecemos tambm ao Ncleo de Estudos Agrrios e Desenvolvimento Rural (Nead), do Ministrio do Desenvolvimento Agrrio. Ao promover estudos e pesquisas sobre o universo rural brasileiro o Nead viabilizou, com a Editora da UNESP, a publicao desta Coleo. A Via Campesina experimenta a satisfao do dever cumprido por ter participado desta importante iniciativa, desejando que se reproduza, se multiplique e gere frutos de conscincia, organizao e lutas nas bases camponesas em todo o territrio nacional. Via Campesina do Brasil agosto de 2008.

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INTRODUO

O tomo da coleo Histria Social do Campesinato no Brasil, intitulado Lutas camponesas contemporneas: condies, dilemas e conquistas, trata das manifestaes polticas do campesinato brasileiro, tomando como ponto de partida o perodo que se inicia com a redemocratizao do pas em 1945, aps oito anos de regime ditatorial, congurados no chamado Estado Novo. No presente volume, o primeiro, apresentamos alguns artigos que permitem dar um panorama, ainda que parcial, do que foram as lutas camponesas desde o nal da dcada de 1940 at meados dos anos 80. No volume seguinte, trataremos de eventos mais recentes. Toda periodizao traz consigo srios riscos de apagar o passado e inaugurar um novo tempo, no qual so ressaltadas as rupturas, e pouca importncia acaba sendo dada s continuidades. Esse risco foi enfaticamente apontado pelo historiador ingls Edward Thompson, quando, na sua anlise sobre a formao da classe operria inglesa na passagem do sculo XVIII para o XIX, arma que muito freqente, visto que toda narrativa tem que comear em algum ponto, que vejamos apenas as coisas novas (Thompson, 1987, p.23). Por essa razo, iniciamos explicitando alguns critrios que marcaram o recorte temporal adotado, de forma a tentar minimizar os efeitos que ele possa ter na compreenso da histria das lutas camponesas em nosso pas. Seguindo as pistas que aquele historiador levanta, referindo-se s opes analticas que fez, tambm possvel constatar, em nossa histria, um forte elemento de continuidade em relao ao passado. Como ele arma em seu estudo, perpetuam-se aspiraes, temores, tenses, mas que se revelam num novo contexto, com nova linguagem e argumentos e num equilbrio de foras modicado (Thompson, 1987 p.23). O perodo de nossa histria que se inicia em 1945 tem como uma de suas marcas o esforo de articulao das lutas no campo com outras foras polticas nacionais. a partir dele que comea a ser produzida uma nova linguagem, na qual o campesinato passa a gurar como sujeito poltico importante e suas demandas passam a ser articuladas a um debate sobre23

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os destinos da nao. tambm o momento em que novas formas de organizao e mediao se constituem ou em que, j constitudas de h muito, passam a voltar-se para uma ao mais intensa junto aos trabalhadores do campo. Grande parte dos artigos apresentados neste volume analisa justamente esse processo, a partir de estudos sobre conitos singulares, que ocorrem em diferentes pontos do pas. Como os demais volumes da presente coleo mostram sobejamente, foram diversas as formas que o trabalho no campo assumiu ao longo de nossa histria (como foreiro, morador, colono, parceiro nas grandes fazendas; como produtores autnomos, com vnculos frouxos com o mercado e diferentes nveis de formalizao do acesso terra, por meio de posse, arrendamento ou propriedade; como produtores extrativistas; e mais uma imensa gama de variaes, impossvel de ser aqui enumerada). Ao longo do tempo, tambm foram diversos os seus modos de aparecer no espao pblico e diversos os antagonistas e demandas apresentados. No entanto, uma caracterstica recorrente desse longo percurso o fato de serem grupos e lutas localizadas, no sentido de que no desenvolveram articulaes capazes de produzir algo que se aproximasse da construo de uma linguagem de classe. Esse padro comeou a sofrer mudanas e a ser lentamente rompido no ps-guerra, em decorrncia de inmeros fatores que se interpenetram e se complementam. Um deles foi o fato de que, na segunda metade do sculo XX, diferentes formas de conito existentes no meio rural brasileiro passaram a unicar-se, por meio da produo e da difuso de concepes que buscavam aglutinar essas lutas ao redor de projetos de mudana e bandeiras comuns. Para tanto, foi central, num primeiro momento, a mediao do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que procurava estar presente nas regies de conito, dando apoio poltico e jurdico aos trabalhadores; editando um jornal, que socializava as notcias das lutas; realizando encontros e congressos, que produziam auto-reconhecimento e delimitao de adversrios (Medeiros, 1995). Ao mesmo tempo, esses eventos consolidavam demandas provenientes das situaes particulares e as articulavam com bandeiras de luta mais amplas, que se sintetizaram nas reivindicaes por transformaes fundirias, que lhes garantissem acesso terra, e por direitos trabalhistas. Foi por meio dessa mediao poltica que os pontuais e dispersos, porm recorrentes, conitos no campo ganharam visibilidade, e foram dados os primeiros passos na direo da constituio de uma identidade poltica (campons) em contraposio s linguagens locais que identicavam os trabalhadores do campo, como colonos, moradores, parceiros, meeiros etc. (Martins, 1981). Foi ainda por meio dela que fazendeiros, senhores de engenho, usineiros etc. comearam tambm a ser unicados por intermdio das categorias latifndio e latifundirios que, como apontam Palmeira (1971) e Novaes (1997), designavam mais do que controle sobre uma grande extenso24

Lutas camponesas contemporneas: condies, dilemas e conquistas

de terra e passavam a conotar relaes de poder e autoridade, explorao e violncia. nesse mbito tambm que a demanda por reforma agrria se torna a bandeira poltica que sintetiza o desejo de ter acesso terra, de eliminar do latifndio e de ver esse desejo reconhecido legalmente e incorporado quer nas polticas pblicas, quer no corpo legal do pas. Ao trabalho de organizao do Partido Comunista em diversas regies brasileiras se acrescentou o da Igreja Catlica que, desde os anos 50, mas em especial no incio da dcada de 1960, desenvolveu uma intensa atividade de evangelizao dos trabalhadores do campo. Ao mesmo tempo, reconhecia-os como portadores de direitos e buscava afast-los do perigo comunista. Aproximando-se de uma nova forma dos trabalhadores, formando lideranas ao mesmo tempo religiosas e polticas, criando escolas radiofnicas, a Igreja Catlica teve um papel central na consolidao de alguns valores (em especial os relacionados crtica ao comunismo) e na difuso de outros, como o de que os trabalhadores deveriam se organizar e buscar seus direitos.1 Um outro elemento que caracteriza o novo contexto o fato de que ele trouxe consigo um debate em torno do desenvolvimento, palavra polissmica, que ganhava signicados to diversos e contrapostos como, entre outros, crescimento econmico; melhoria das condies de vida da populao; necessidade de conter o xodo rural; transformaes estruturais profundas, que permitissem a superao do modo de produo capitalista. Em todas as diferentes matrizes de projetos de desenvolvimento, que ento se constituram, havia tambm um debate sobre o signicado da agricultura e seu lugar nesse processo (e, note-se, o que estava em discusso era a agricultura e no o rural, ou seja, tratava-se de uma nfase nas dimenses produtivas). Assim, falava-se no s em atraso estrutural, em necessidade de modernizao tecnolgica e difuso de assistncia tcnica, em crdito para apoio produo, na importncia da ampliao da educao no meio rural, mas, tambm, na necessidade de transformaes na estrutura fundiria, por meio de uma reforma agrria. Este ltimo termo ganhava vrios sentidos, relacionados s concepes de desenvolvimento que estavam em disputa: para alguns era condio para a expanso do capitalismo no campo, com a destruio do latifndio e sua transformao em unidades camponesas de produo, capazes de dinamizar o mercado interno para as indstrias nascentes; para outros, era o primeiro passo para uma revoluo socialista, por meio da quebra do poder das foras mais atrasadas, consideradas como restos feudais. Poderia ainda signicar um instrumento capaz de refrear os conitos no campo, por meio de intervenes localizadas, ou um caminho1

Uma anlise cuidadosa desse processo de mudana no padro da ao da Igreja Catlica, tendo com referncia emprica o estado da Paraba, apresentada por Regina Novaes (NOVAES, 1997).

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Introduo

para a criao de uma classe mdia rural, que pudesse servir como fator de estabilizao poltica e amortecimento para eventuais crises. No nosso objetivo aqui discutir as concepes que orientavam as diferentes percepes do que deveria ser o desenvolvimento (ou a revoluo, como preferiam alguns), mas to somente apontar que o debate potencializava as lutas no campo e, por sua vez, tambm era pautado por elas. No nosso modo de entender, esse no era um debate apenas terico, e as vrias possibilidades, vinculadas aos projetos polticos diferenciados, s ganhavam sua razo de ser e expresso poltica porque os conitos no campo se articulavam e conquistavam visibilidade, explicitando demandas coletivas e uma espcie de economia moral das populaes rurais (Thompson, 1997). Essas noes se amalgamavam com a legislao existente, na qual buscavam suporte, e com a atualizao poltica de concepes religiosas, legitimando reivindicaes. No incio dos anos 60, Francisco Julio, principal porta-voz das Ligas Camponesas do Nordeste, por exemplo, armava que seus instrumentos de trabalho eram a Bblia e o Cdigo Civil (Julio, 1962). Tanto ele como os militantes do Partido Comunista faziam dos advogados que aderiam causa dos camponeses mediadores essenciais dos conitos em curso. Da mesma forma, ao longo das dcadas de 1960, 1970 e 1980, como vrios artigos que integram a presente coletnea demonstram, foi comum a presena de segmentos da Igreja Catlica (em alguns casos tambm da Luterana) apoiando as lutas, no s materialmente, mas tambm fornecendo justicativas religiosas para as demandas que se desenvolviam e se expressavam na esfera poltica. Vrios dos artigos includos no presente volume apontam para a dimenso nacional que as lutas camponesas assumiram j a partir dos anos 50/60, e mostram sua diversidade, no s no que se refere aos segmentos sociais que as impulsionavam, mas tambm no que diz respeito s mediaes que as tornavam visveis e as situavam no campo de disputa extralocal. Cada um dos trabalhos aqui apresentados recobre uma situao particular e no seu entrecruzar que se vislumbra a dinmica de uma histria que ainda est por ser resgatada nas suas mltiplas facetas, que ainda necessita ser indagada e aprofundada. Por meio deles, tambm ca evidente a presena de diferentes formas de violncia, da grilagem de terras, da ao do Estado, ora apoiando as lutas, ora criando instrumentos para cont-las, ou mesmo reprimindo-as e criminalizando-as. Do ponto de vista metodolgico e das questes eleitas pelos que contriburam para a presente coletnea, como centrais para constituir o o condutor das diferentes narrativas que aqui se apresentam, verica-se tambm um amplo espectro de abordagens. Alguns autores enfatizam o campo de disputa em que as lutas se desenvolveram e ganharam sentido, outros a presena das mediaes partidrias, sindicais ou religiosas, dando destaque26

Lutas camponesas contemporneas: condies, dilemas e conquistas

mais ao papel delas do que s formas assumidas pelos conitos; outros ainda destacam a prtica dos trabalhadores como elementos centrais desse processo de constituio do campesinato como ator poltico. Efetivamente, procurou-se, para alm de recuperar uma memria das lutas, mostrar as diferentes possibilidades analticas de reconstruir e explicitar essa memria. Ao longo deste livro possvel constatar tambm diferentes formas pelas quais se manifestou a questo agrria, e obter instrumentos relevantes para a sua compreenso tanto no perodo que ele abrange como das heranas que se fazem presentes no debate atual. Os trs primeiros artigos aqui includos voltam-se especicamente para o perodo que antecede o golpe militar e tratam de conitos menos conhecidos, pois que menos abordados pela literatura corrente.2 O primeiro deles, de autoria de Mario Grynszpan, embora referido ao estado do Rio de Janeiro, uma referncia para o entendimento das lutas camponesas de resistncia, que aconteciam em todas as regies do pas. Partindo do pressuposto de que a ao poltica central para a conformao dos grupos sociais, o autor mostra como, no estado do Rio de Janeiro, os despejos de lavradores ganharam expresso, na Baixada da Guanabara, no exatamente pela quantidade de famlias que estavam sendo despejadas, mas porque foi a partir daquela regio que comearam a se organizar, resistindo s expulses. O artigo mostra que as denncias de ameaas de despejo, que vinham luz pelos jornais, em especial pelos que, por sua posio poltica, davam algum tipo de suporte s lutas, eram um dos meios utilizados pelas lideranas camponesas na luta pela permanncia na terra. Ou seja, eram a prpria resistncia e as denncias feitas que transformavam uma tentativa de retirar um grupo de lavradores de uma rea num despejo, entendido como categoria poltica. Da mesma forma, nesse processo tenso, congurava-se a categoria posseiro, que, embora j existente no corpo legal brasileiro, ganhava, nesse contexto, uma conotao poltica. Em contraposio a ela, os que se diziam proprietrios passaram a ser considerados grileiros, ou seja, sem direito legal terra de que haviam se apropriado, muitas vezes, de forma fraudulenta. Ao longo do texto, Grynszpan explora como a armao dessas categorias estava relacionada a um trabalho das lideranas e mediadores, muitas delas vinculadas ao Partido Comunista, na busca de construir uma representao legtima e uma determinada forma de percepo dos conitos. Mostra ainda como os posseiros, organizados em associaes, passaram, em algumas situaes, a fazer ocupaes que atraam lavradores de diversas partes do2

Tendo em vista que o volume II do tomo Formas de resistncia camponesa: visibilidade e diversidade de conitos ao longo da Histria, organizado por Mrcia Motta e Paulo Zarth, da presente coleo contm um artigo que trata das Ligas Camponesas, optamos por no incluir neste tomo um artigo a respeito. No entanto, convidamos o leitor tanto a se apropriar dele como da j importante literatura a esse respeito. Ver, entre outros, Andrade (1964; 1986); Aued (1986); Azevedo (1982); Bastos (1984); Camargo (1973), Furtado (1964).

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estado, inclusive de reas urbanas, possibilitando a espacializao da luta pela terra. Esse processo tambm estimulou os debates que contriburam para a reforma agrria como pauta poltica das organizaes camponesas. Na seqncia, o texto de Paulo Cunha apresenta as lutas de Trombas e Formoso, em Gois, que, como no caso anterior, estavam intimamente relacionadas intensicao da grilagem de terras na regio. Trombas e Formoso, assim como a Baixada Fluminense e Porecatu, no Paran, foram resistncias camponesas expressivas da histria das aes do PCB no campo. No artigo em pauta, privilegiando o olhar para a dimenso organizativa, o autor chama a ateno para a importncia da inspirao buscada pelos comunistas na Revoluo Chinesa e d especial nfase ao dos dirigentes na denio dos caminhos seguidos e sua importncia no processo de visibilizao da luta, permitindo que ela ultrapassasse sua dimenso local. Analisa ainda as aes dos comunistas em apoio aos posseiros, a partir dos limites e possibilidades, proximidades e distanciamentos da compreenso e das relaes polticas entre o PCB e os camponeses. Enfatizando uma leitura que privilegia a localizao das lutas de Trombas e Formoso no interior da conjuntura poltica nacional e mundial, Cunha destaca os seus momentos mais signicativos, de modo a fornecer elementos para a compreenso das complexas articulaes que as marcaram e as tornaram uma referncia histrica da formao do campesinato brasileiro enquanto sujeito poltico e para os movimentos camponeses que se formaram no processo de resistncia no nal da ditadura e na redemocratizao do pas. O terceiro artigo da coletnea, de autoria de Crdula Eckert, apresenta a formao dos primeiros acampamentos de sem-terra no Rio Grande do Sul, ainda no incio dos anos 60, e a constituio do Movimento dos Agricultores Sem-Terra (Master). Ao longo do texto, aponta a grande quantidade de acampamentos formados no estado, o pblico que os alimentava e as estratgias adotadas (algumas delas mais tarde retomadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), surgido na mesma regio, quase vinte anos depois. Entre as estratgias, destacam-se os acampamentos nas estradas prximas s reas pretendidas, de forma a evitar que a ao pudesse ser caracterizada como invaso de propriedade. Os demandantes de terra buscavam, assim, criar condies para dicultar a represso policial. O artigo oferece tambm indicaes das relaes que se estabeleceram entre o nascente movimento e o PCB, bem como a ao da Igreja Catlica, que passou a impulsionar outras formas de organizao dos agricultores, que se contrapusessem s organizaes de sem-terra. Como parte desse cenrio, so discutidas as reaes que o Master provocou por parte dos proprietrios, organizados por meio da Federao da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul). Finalmente, so apresentadas as relaes com os poderes pblicos, em especial com o governo estadual, nas gestes de Leonel Brizola e Ildo Meneghetti, detalhando os apoios e tambm a violncia que28

Lutas camponesas contemporneas: condies, dilemas e conquistas

se abateu sobre os trabalhadores ainda antes do golpe militar. A anlise das lutas camponesas se desdobra, por outro vis analtico, na contribuio de Osvaldo Heller da Silva sobre o Paran. O autor inicia seu artigo com o conito de Porecatu, uma luta de posseiros contra a expropriao, e, na seqncia, enfoca a organizao dos trabalhadores no norte paranaense, centrando sua abordagem num componente muitas vezes esquecido nas anlises da constituio das organizaes voltadas representao poltica de segmentos subalternos: o papel dos militantes originrios do prprio grupo. Ao longo do texto, abarcando dois perodos distintos (antes e aps o golpe militar), reete sobre a tenso existente entre devoo e interesse, modstia e ambio, para tentar explicar a complexidade envolvida na anlise do papel dos dirigentes. Para tanto, considera no s a ao dos comunistas como tambm dos quadros da Igreja Catlica na formao dos sindicatos e nos desdobramentos do sindicalismo ps-golpe militar, e destaca os mecanismos sutis por meio dos quais algum se torna porta-voz de um grupo, dando especial nfase importncia do capital poltico acumulado nesse processo e aos dilemas que ele impe representao poltica. O artigo tambm aborda as possibilidades de relaes de dependncia e clientelismo no interior dos movimentos sociais. Alguns dos autores que contribuem para este volume dedicaram-se a analisar, com especial cuidado, as tenses que se constituiriam nas relaes entre entidades de representao patronais e de trabalhadores, como o caso do artigo de Guttemberg Guerra Diniz; ou ainda as marcas que uma cultura pontuada pela hierarquia e pelo favor deixam nas organizaes de camponesas, como abordado por Clifford Andrew Welch. Guttemberg Guerra Diniz traa um panorama das organizaes no campo, no Par dos anos 50 ao nal da dcada de 1980, enfatizando, em dois momentos (antes e durante a ditadura militar), o processo de disputa entre as organizaes porta-vozes dos trabalhadores e as entidades ligadas aos proprietrios de terra pela representao poltica, em especial visando ao acesso a crditos ociais. Nesse movimento analtico, joga luzes sobre segmentos pouco estudados os pequenos e mdios proprietrios que tambm passaram a ser objeto da concorrncia poltica. Para atra-los, o setor patronal procurou caracterizar suas organizaes prprias de representao como de produtores, o que lhes dava um carter mais abrangente e colocava a disputa em novos parmetros. O artifcio de mudana de denominao signicou tambm uma disputa territorial, visando a consolidar a base poltica da federao patronal, que rene predominantemente os produtores capitalistas. Todavia, tambm promoveu a polarizao, o que deu destaque para o importante papel do campesinato e de suas formas prprias de organizao. Clifford Welch recupera, de modo peculiar, uma parte pouco conhecida da histria da questo agrria do Pontal do Paranapanema, discutindo aes dos sem-terra e utilizando o termo com-terra para se referir aos grandes29

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proprietrios e grileiros do Pontal. interessante ressaltar que esse termo contrasta com a expresso com-terra, freqentemente utilizada por rgos estatais para se referir populao assentada em projetos de assentamentos rurais. Revisitando a idia de homem cordial de Srgio Buarque de Hollanda, polemiza em torno dessa construo de brasilidade, para entender o que permanece e o que muda na relao dos sem-terra e os grandes proprietrios rurais. Segundo ele, a noo de cordialidade mascara as condies de dominao e violncia que perpassam o mundo rural. A partir de um histrico dos conitos na regio do Pontal do Paranapanema, em So Paulo, conclui que mesmo os integrantes do Movimento de Trabalhadores Rurais SemTerra (MST), ao mesmo tempo em que desaam os poderes estabelecidos, conservam elementos da cultura patriarcal, na qual a cordialidade tem seu papel. Por isso, para o autor, s possvel entender os conitos do meio rural brasileiro e, especialmente, o comportamento de seus lderes, se os pesquisadores tiverem presente que a ligao dos sem-terra com a formao social tradicional que lhes deu origem no desapareceu completamente. No geral, a literatura sobre os conitos sociais no Brasil tem enfatizado a importncia do golpe militar de 1964 como divisor de guas na compreenso das lutas no campo: as lideranas foram perseguidas, muitas delas assassinadas, outras se tornaram clandestinas e exiladas em seu prprio meio. Outras ainda conseguiram exlio no exterior. Muitas das organizaes sindicais emergentes, bem como as Ligas Camponesas, foram desestruturadas, e as entidades que davam apoio s lutas, como o Partido Comunista e a Ao Popular, foram desbaratadas e suas lideranas perseguidas ou assassinadas. No entanto, um erro acreditar que esse processo repressivo eliminou os conitos ou que a memria deles desapareceu para os que vivenciaram as lutas. Esse tema cuidadosamente tratado por Moacir Palmeira, que chama a ateno para um vis metodolgico recorrente nos estudos sobre conitos sociais, quando se voltam para os momentos mais espetaculares das lutas e excluem experincias menos visveis, mas nem por isso menos importantes. Partindo de um vasto material de pesquisa sobre a Zona da Mata pernambucana, o autor mostra como o perodo ps-golpe foi marcado por estratgias patronais de expulso de moradores e foreiros, de forma a evitar que eles, com base na legislao trabalhista aprovada em 1963 (o Estatuto do Trabalhador Rural), criassem direitos e zessem jus a indenizaes. Palmeira analisa as novas formas de resistncia que ento surgiram na regio, caracterizadas pelo enfrentamento cotidiano no interior de engenhos e usinas, tendo por base a legislao existente. Para tanto, foi central o apoio dos sindicatos, que, pela sua histria anterior, faziam parte do universo de referncia dos trabalhadores. Foram essas organizaes que, num contexto de relativa desmobilizao e represso, passaram a tornar a lei um instrumento de luta e a acionar coletivamente os patres na Justia.30

Lutas camponesas contemporneas: condies, dilemas e conquistas

Os quatro artigos seguintes enfatizam diferentes formas de resistncia, que passaram a ocorrer sob as novas condies criadas pelo golpe militar para a transformao do campo: macios investimentos em modernizao; estmulos creditcios, scais e de infraestrutura, em especial a construo de estradas ligando locais antes isolados, para que empresas se voltassem para novas regies, em especial a amaznica; ou ainda construo de grandes barragens tendo em vista produo de energia. So sucessivamente abordados conitos no Acre, Mato Grosso, Par e sul do pas, diretamente relacionados a esses processos. Elder Andrade de Paula e Silvio Simione, em artigo sobre as lutas dos seringueiros do Acre ao longo da expanso e do reuxo das empresas seringalistas, abordam a importncia da resistncia cotidiana e o peso que nela adquire a noo de direito terra. Na mesma linha de artigos anteriores, tambm no Acre, o papel dos sindicatos, criados na regio somente nos anos 70, por ao direta da Contag, foi fundamental para o apoio luta dos seringueiros, medida que produziu a negao de uma relao jurdica (o arrendamento) e armou outra, enquadrando os extratores de borracha como posseiros e, assim, apresentando-os como legtimos portadores do direito terra. nesse contexto que surgiram, j em meados da dcada de 1970, novos experimentos de mobilizao coletiva, os empates, cujo objetivo era impedir o desmatamento de reas para implantar pecuria bovina. Essas aes de resistncia, como os autores demonstram, esto nas razes de vrias inovaes: das formas de organizao, com a criao do Conselho Nacional dos Seringueiros em meados dos anos 80; da apropriao da terra, com a criao das reservas extrativistas; e das demandas em torno da manuteno da oresta, que acabam por se articular com as bandeiras preservacionistas e ganhar repercusso internacional. O artigo seguinte, de autoria de Neide Esterci, analisa os efeitos da chegada de uma grande empresa em Santa Teresinha, Mato Grosso, e a resistncia dos posseiros e seus aliados, em particular a Igreja Catlica, num momento em que, sob inuncia da Teologia da Libertao, se davam os primeiro passos para a constituio da CPT. Apelando, na defesa da terra onde viviam, simultaneamente para as leis e para os costumes, contra os novos interesses que aportavam na regio, os camponeses buscavam garantir seu territrio. Nele, vrias formas de uso e domnio particulares se acomodavam a partir de critrios de pertinncia e de direitos constitudos em razo do trabalho investido, das relaes sociais e lugares construdos, dos afetos e das memrias. Nesse processo, a ao de agentes da Igreja Catlica foi fundamental para o fortalecimento da resistncia dos posseiros, o que, por sua vez, alimentava o trabalho pastoral no enfrentamento expanso das empresas capitalistas na regio. A resistncia aos efeitos dos novos processos que se desencadearam a partir dos anos 70 tambm discutida por Jean Pierre Leroy, que analisa31

Introduo

as lutas dos camponeses de Santarm, no Par, e a criatividade nelas contida. Os personagens centrais foram os colonos do Sul, que chegaram Transamaznica em meados da dcada de 1970, e os trabalhadores que vinham do Nordeste, em especial do Maranho, em busca de terras livres para produzir. Atrs de alternativas de sobrevivncia, uns e outros construram uma slida rede organizativa local, com apoio da Igreja Catlica, em torno dos grupos de revenda, e estabeleceram as bases para enfrentar a poltica de compra de arroz, considerada espoliativa, feita pela Companhia Brasileira de Alimentos. Esse processo culminou num enfrentamento com a direo do Sindicato de Trabalhadores Rurais local e com a formao de uma oposio sindical que, mesmo derrotada nas eleies, tinha um enorme poder de mobilizao, por meio de um movimento que se celebrizou como Corrente Sindical Lavradores Unidos. Esse movimento participava ativamente das aes e lutas locais (resistncias a expulses da terra, formao de grupos de revenda, reivindicaes de atendimento mdico, de postos de sade, de transporte coletivo) e marcava presena ativa na direo de delegacias sindicais e nas assemblias. O autor mostra, assim, outra faceta das lutas camponesas: a da disputa pelo controle das organizaes que buscam falar em seu nome. Tambm chama a ateno para o fato de que havia uma slida articulao entre a Corrente Sindical e o movimento sindical em escala nacional, participando de reunies na luta pela autonomia das organizaes dos trabalhadores e gerando lideranas que, ao longo dos anos 80, se destacariam na organizao do Departamento Nacional dos Trabalhadores Rurais da CUT. O artigo seguinte, de autoria de Maria Jos Reis, trata do processo pelo qual os agricultores da regio conhecida como Alto Uruguai (Rio Grande do Sul e Santa Catarina), selecionada para ser local de construo de uma usina hidreltrica, passaram da situao de vtimas desinformadas e passivas a interlocutores combativos. Ao longo de seu texto, a autora procura mostrar o descaso do Estado em fornecer informaes aos que seriam atingidos pelas guas do lago a ser formado, em discutir as formas de indenizao, dialogar com no proprietrios e buscar negociaes coletivas e no individuais. Voltado mais para questes tcnico-econmicas, o Estado pouco cuidou dos problemas suscitados pela necessidade de reordenao territorial, migrao compulsria, rompimento de laos comunitrios e risco de empobrecimento das populaes que viviam na regio. Com isso, desencadeou-se um processo de organizao que culminou na criao, em 1985, do Movimento dos Atingidos pelas Barragens (MAB), que envolveu tambm outros grupos que vivenciavam situaes semelhantes. Mais uma vez, mostrou-se vital nesse processo o apoio das Igrejas (no caso, Catlica e Luterana), bem como dos Sindicados de Trabalhadores Rurais da regio, ligados ao chamado sindicalismo combativo, originrio das oposies sindicais que ali se constituram no nal dos anos 70 e incio dos anos 80.32

Lutas camponesas contemporneas: condies, dilemas e conquistas

Os conitos no campo nas dcadas de 1970 e 1980 no se limitaram s lutas de resistncia na terra. Elas tambm ocorreram nas reas onde predominavam as relaes assalariadas, como o caso da Zona da Mata nordestina, cujos conitos so abordados no presente volume por Moacir Palmeira, referindo-se aos anos 70. Para tratar das lutas desses segmentos nos anos 80, no artigo de Lygia Sigaud so analisados dois momentos, com dinmicas prprias, mas profundamente articulados entre si, de forma que um no se explica sem o outro: o momento das greves, marcado por expressivas mobilizaes, e aquele das lutas menos visveis e espetaculares pelo cumprimento dos acordos conseguidos. Seguindo um o de argumentao prximo ao apresentado por Palmeira, e dando continuidade a ele medida que ressalta a importncia das lutas cotidianas, a autora alerta para o fato de que elas contriburam decisivamente para que as antigas obrigaes relacionadas tradio dos engenhos fossem transmutadas em obrigaes garantidas juridicamente. Entre elas a casa para morar, a terra para plantar, o auxlio na doena, a garantia de trabalho para os lhos etc. Esses aspectos levaram Sigaud a relativizar as distines absolutas entre luta pela terra e luta pelos direitos, uma vez que a dinmica do mundo social as superpe. Como a autora assinala para reforar seu argumento, da mesma forma como o acesso terra e moradia fazia parte dos acordos das greves, foram esses mesmos os personagens que conduziram as ocupaes de terra na dcada de 1990. Fechando o volume, o artigo de John Comerford, com base em uma pesquisa na Zona da Mata mineira, introduz uma abordagem dos sindicatos que valoriza a importncia de uma anlise do plano das redes de relaes localmente constitudas. Ao longo do texto, o autor aponta a forte relao entre o sindicalismo e as comunidades eclesiais de base, bem como o papel do sindicato nos realinhamentos e nas disputas entre faces polticas dos municpios estudados. Sua anlise se volta para os rearranjos das tramas de relaes entre famlias e vizinhos, bem como no interior das famlias, a partir da atuao dos sindicatos, mostrando como a poltica tambm perpassa e perpassada pelo cotidiano das relaes sociais. Longe de esgotar a riqueza de situaes do perodo que recobrem, os artigos apresentados neste volume, bastante representativos para a compreenso da dimenso poltica da histria social do campesinato, so apenas uma amostra da complexidade e variedade de questes a serem abordadas quando nos voltamos ao estudo das mobilizaes no campo. Com ele, acreditamos poder contribuir para trazer luz uma parcela ainda pouco conhecida dessa histria. Numa anlise de conjunto, os leitores vericaro que os textos fornecem um rico panorama das lutas no campo e suas nuances, fazendo deslar um conjunto heterogneo de personagens, que mostram quo diverso o leque de conguraes, variveis no tempo e no espao, que a categoria33

Introduo

campesinato abrange. Da sua leitura, emerge tambm uma variedade de formas organizativas (associaes, sindicatos, confederaes sindicais, ligas, grupos que se organizam para vender a produo, conselhos etc.) que, antes de mais nada, indicam a diversidade de experimentos sociais que precisam ser mais conhecidos. Lutando contra grileiros, contra empresas agropecurias, fazendeiros e senhores de engenho; contra as polticas pblicas que os expropriam, quer das suas terras, quer do produto de seu trabalho, vai se delineando um campesinato ativo, rebelde, capaz de se organizar e de expressar suas demandas, ora se apoiando na legislao, ora armando o direito costumeiro contra ela; constituindo organizaes prprias, lutando por recuper-las, quando apropriadas por interesses distintos do seu; sendo reprimido, mas renascendo de suas heranas enraizadas. Articulados com a Igreja, com organizaes partidrias, com polticos, os camponeses se relacionam com uma innidade de mediaes, num jogo tenso, mas fundamental para a estruturao e consolidao de suas organizaes e lutas. Bernardo Manano Fernandes Leonilde Servolo de Medeiros Maria Ignez Paulilo

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1 AO POLTICA E ATORES SOCIAIS: POSSEIROS, GRILEIROSE A LUTA PELA TERRA NA

BAIXADA FLUMINENSE*Mario Grynszpan

A ao poltica do campesinato, bem como sua participao em grandes processos de transformao social, tem sido tema de diversos estudos. Autores como Barrington Moore Jr. (1975), Theda Skocpol (1979), Eric Wolf (1973 e 1979), Hamza Alavi (1969), Eric Hobsbawm (1978) e Teodor Shanin (1979), apenas para citar algumas das contribuies mais signicativas, debruaram-se de forma sistemtica sobre a questo. Em que pesem suas diferentes abordagens e nfases distintas, uma preocupao central permeia todos os trabalhos, qual seja, a de detectar os fatores que levam mobilizao dos camponeses ou a permitem. A forma como a questo colocada indica que, via de regra, o ponto de partida das anlises o campesinato j constitudo enquanto grupo, previamente ao poltica. Essa ao marcaria, portanto, a sua emergncia, sua chegada ao proscnio saindo das sombras em que se encontrava. Mesmo quando existe uma preocupao com o processo de formao do grupo em si, o que se observa que a reexo conduzida de modo tal como se ele j existisse em latncia, objetivando-se com a agregao de indivduos para a realizao de seus interesses. Ao tomar os grupos sociais como dados, as anlises, em geral, perdem a perspectiva de que eles podem ser formados na e para a ao poltica, ou ainda de que essa ao pode conferir novos contornos a grupos preexistentes. Deixam, assim, de atentar para o fato de que a forma objetivada como os grupos se apresentam, com nomes prprios, organizaes, porta-vozes* Este artigo foi publicado, pela primeira vez, na revista Dados, v.33, n.2, de 1990. Agradeo ao editor de Dados, Charles Pessanha, pela autorizao para a reproduo do texto neste livro.

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Ao poltica e atores sociais

e reivindicaes, fruto de um conjunto de aes e de lutas, de todo um trabalho de denio, de agrupamento, de representao e de mobilizao.1 Tais questes constituiro o o condutor deste artigo. Nele, procurarei mostrar como a ao poltica pode ser, ela mesma, conformadora de grupos e atores sociais. Buscarei, porm, analisar o processo no como fruto da ao isolada de um nico agente, mas, sim, como resultante da inter-relao e da concorrncia entre diversos agentes pelo controle e pela representao do novo ator. O estudo estar centrado no caso das lutas pela terra no estado do Rio de Janeiro, no perodo que vai de 1950 a 1964. Particularmente rico e revelador para as questes que sero enfocadas, o estado do Rio no tem sido, at aqui, objeto de forte ateno por parte dos cientistas sociais estudiosos da mobilizao camponesa que marcou o Brasil nos anos anteriores ao golpe de 1964. Os trabalhos existentes tm se voltado, em particular, para a regio Nordeste, principalmente o estado de Pernambuco, e para a atuao das Ligas Camponesas. Abrindo espao na imprensa, as aes do campesinato fluminense assumiram uma feio radical incluindo, no raro, choques armados com a polcia. Elas eram, comumente, caracterizadas pelos grandes peridicos como rebelies, levantes e guerrilhas rurais.2 Jornais como O Estado de S. Paulo e Correio da Manh, tecendo analogias com a recm-ocorrida Revoluo Cubana, denunciavam que estaria em curso, no estado do Rio, um plano de agitao do meio rural.3 Os principais contendores nesses conitos, tal como se pode observar no noticirio, eram, de um lado, lavradores estabelecidos na terra havia alguns anos, referidos, em geral, como posseiros, e de outro, grileiros, falsos proprietrios interessados em despej-los. Era, assim, em particular contra os despejos que se dava a mobilizao dos lavradores uminenses. Os despejos parecem ter se constitudo, ento, num dos mais srios problemas sociais existentes na rea rural do estado. Eles ocorreram numa extensa regio, abrangendo desde municpios localizados mais ao norte, como So Joo da Barra, Miracema e Maca, at outros como Vassouras, Paracambi e Barra Mansa, passando por Cabo Frio, Casimiro de Abreu, Silva Jardim e Trajano de Moraes. Atingindo um grande nmero de lavradores, eles assumiram um carter dramtico e violento, com tiros, queima de casas e destruio de plantaes.1

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Valho-me aqui, em larga medida, da reexo de Luc Boltansky (1982) sobre a formao dos executivos, na Frana, enquanto grupo social. Ver, por exemplo, os jornais Luta Democrtica, Rio de Janeiro, 8 e 9/10/1961, p.1 e 3; ltima Hora, edio do estado do Rio de Janeiro, Niteri, 9/5/1963, p.2; Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 30/6/1963, 1o caderno, p.25. Ver Correio da Manh, Rio de Janeiro, 28/9/1962, 1o caderno, p.3, e 6/4/1963, 1o caderno, p.6. Ver tambm O Estado de S. Paulo, So Paulo, 17/12/1963, p.13, e 14/1/1964, p.5.

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Lutas camponesas contemporneas: condies, dilemas e conquistas

Ainda que disseminados por boa parte do estado, os despejos, de acordo com os jornais e com os depoimentos de pessoas que os vivenciaram, foram mais recorrentes, mais intensos, na regio a que se referem como Baixada.4 A regio chegou mesmo a ser comparada pelo jornalista Maurcio Hill, do dirio ltima Hora, ao Nordeste brasileiro que, assolado pela seca, se caracterizava por uma gritante situao de misria e pelo xodo peridico de camponeses que abandonavam as terras. Para Hill, os despejos faziam da Baixada um Nordeste sem seca.5 Esse quadro, contudo, no parece ser corroborado pelos dados estatsticos referentes rea rural da Baixada. Pelo contrrio, eles indicam que a situao, no que diz respeito sada de lavradores das terras, no era mais crtica na regio do que no restante do estado. certo que ocorreu ali, entre 1950 e 1960, uma queda de 19,4% e de 37% no nmero de trabalhadores temporrios e no de parceiros nos estabelecimentos rurais, respectivamente. Entretanto, para o Rio de Janeiro como um todo, o decrscimo foi mais acentuado, tendo alcanado 20,8% no caso dos trabalhadores temporrios e 56,1% no dos parceiros. J o nmero de trabalhadores permanentes que, no estado, no mesmo perodo, sofreu uma reduo de 21,4%, aumentou em 9,4% no conjunto da Baixada (Grynszpan, 1987, p.61-2). Ao lado disso, o nmero de estabelecimentos rurais controlados por arrendatrios na regio, que em 1950 somava 522, subiu para 1.554 em 1960. Tal aumento se deu, particularmente, entre pequenos e mdios arrendatrios (Grynszpan, 1987, p.37). , no entanto, no caso dos posseiros, que a defasagem entre a Baixada dos jornais e da memria dos atores, por um lado, e a dos censos, por outro, se mostra de maneira mais evidente. Os dados estatsticos no nos indicam que eles tivessem sido, de fato, a categoria de lavradores mais atingida4

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A expresso Baixada era bastante utilizada pelos jornais, nos anos 50 e 60, para designar um conjunto de municpios uminenses localizados nas cercanias da cidade do Rio de Janeiro e que foi palco no apenas de despejos, mas tambm de reaes por parte dos lavradores. Ela abarcava reas como Duque de Caxias, Nova Iguau, Mag, Itagua, Itabora e Cachoeiras de Macacu, diferindo, portanto, do termo Baixada Fluminense, tanto em sua acepo usual quanto naquela dos gegrafos de ento. Tal como usualmente empregado, Baixada Fluminense tem um referencial eminentemente urbano e, por isso mesmo, rene municpios como So Joo do Meriti e Nilpolis, que, j naquele momento, no tinham maior importncia agrcola. Quanto aos gegrafos, que at aquele perodo desenvolveram intensas pesquisas nas reas rurais do estado, o seu critrio denidor de Baixada Fluminense era o siogrco. Dessa maneira, a regio abrangia toda a extensa faixa de terras localizada entre a Serra do Mar e o Oceano Atlntico, vindo desde o municpio de Campos at o de Itagua. Bastante ampla, essa concepo inclui reas por demais diversas e que no tm signicao para os processos que estou analisando. Assim, trabalharei, simplesmente, com a categoria Baixada, mantendo o sentido em que era empregada, tanto por jornais quanto por atores de poca, quando se referiam mobilizao camponesa no Rio de Janeiro. Eventualmente, sempre que necessrio reportar-me Baixada Fluminense, f-lo-ei no sentido siogrco. Maurcio Hill, Baixada, Nordeste sem seca, ltima Hora, edio do estado do Rio de Janeiro, Niteri, 30/8/1962, p.5.

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Ao poltica e atores sociais

pelos despejos. Pelo contrrio, sua presena aumentou de forma bastante acentuada no momento mesmo em que os despejos se intensicaram, isto , na dcada de 1950. Praticamente no gurando nos quadros do censo relativos aos municpios da Baixada em 1940, j em 1950 os posseiros passam a controlar 253 estabelecimentos rurais, saltando, em 1960, para 1.596. De 0,03% do total de estabelecimentos recenseados na regio em 1940, eles passam, em 1960, a ocupar 24,2% (Grynszpan, 1987, p.37). Na verdade, essa defasagem apenas aparente. Os despejos tiveram sua maior concentrao na Baixada no porque ali os deslocamentos de lavradores das terras tivessem sido mais intensos, mas, sim, porque foi a partir daquela regio, justamente, que eles comearam a se organizar, resistindo contra as expulses. As denncias de ameaas de despejo nos jornais eram um dos meios utilizados pelas lideranas camponesas na luta pela permanncia na terra. Era a prpria luta, a resistncia, a denncia, que transformava uma tentativa de retirar um grupo de lavradores de uma rea num despejo. Atravs da luta, portanto, conformava-se o despejo como categoria poltica. somente a partir da ligao entre luta e despejo que o aumento concomitante das tentativas de expulso e da presena dos lavradores na Baixada, principalmente como posseiros, pode ganhar sentido. No processo de luta contra os despejos, lavradores estabelecidos como parceiros, moradores ou arrendatrios, alm dos prprios ocupantes de reas aparentemente abandonadas, mas que passaram, posteriormente, a ser reivindicadas, comearam a reconhecer-se como posseiros, negando a autoridade daquele que se dizia proprietrio e que, por seu turno, passou a ser alcunhado de grileiro. Alm disso, as reas onde as resistncias contra os despejos foram bem-sucedidas, ainda que temporariamente, acabaram por se transformar em plos de atrao para outros lavradores que para l rumaram em busca de terras. E mais, novas reas passaram a ser ocupadas por posseiros, num movimento organizado, em larga medida, por entidades camponesas. J no incio dos anos 60, as ocupaes de terras na Baixada se intensicaram bastante e, com elas, tambm a presena de posseiros. Os jornais noticiavam que numerosas famlias de lavradores movimentavam-se pela regio procura de fazendas onde pudessem se estabelecer. Firmava-se, portanto, uma imagem da Baixada como rea de terras disponveis para ocupao, atraindo posseiros de outras regies do estado e mesmo de fora dele.6 As dimenses e as caractersticas desse processo, como mostrarei ao longo do presente artigo, esto diretamente associadas ao poltica que, na Baixada, no apenas as lideranas camponesas mas tambm outros6

Ver, por exemplo, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 28/6/1962, 1o caderno, p.5, e 30/6/1963, 1o caderno, p.25; Correio da Manh, Rio de Janeiro, 28/6/1962, 1o caderno, p.3; ltima Hora, edio do estado do Rio de Janeiro, Niteri, 13/5/1963, p.3, e 15/5/1963, p.2.

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Lutas camponesas contemporneas: condies, dilemas e conquistas

agentes que com elas competiam, e mesmo o Estado, exerceram sobre os lavradores. Foi atravs da ao e da disputa polticas que se conformaram e que foram nomeados, os grupos que se mobilizaram na regio, assim como tambm os prprios inimigos contra os quais se mobilizaram. Essa ao, entretanto, como buscarei ressaltar, fez mais do que atribuir novos contornos e identidade aos grupos existentes. Atravs de um intenso trabalho de arregimentao, de agrupamento e de mobilizao de lavradores para a ocupao de terras, constituram-se grupos de posseiros, o que terminou, igualmente, por imprimir a uma regio antiga como a Baixada caractersticas de rea de fronteira. Tal fato, sem dvida, confere especicidade e relevncia ao caso uminense, diferindo-o do pernambucano no qual a ao das Ligas Camponesas incidiu sobre foreiros j localizados nos engenhos, e no qual as invases de terras foram bastante reduzidas.7 Se a interveno poltica foi fundamental para a denio dos atores e do espao privilegiado das lutas pela terra no estado do Rio, cabe antes perquirir, contudo, as condies que, na Baixada, tornaram os lavradores propensos ao.

DECADNCIA, OCUPAO E EXPULSOA Baixada uma rea cuja ocupao, bastante antiga, data ainda do sculo XVI. Dedicando-se, a princpio, ao cultivo da cana e produo de acar, ela foi, aos poucos, perdendo terreno para a regio de Campos, ao norte do estado. Igualmente o caf teve por ali uma passagem, ainda que reduzida e localizada, antes de se xar no vale do Paraba. Observava-se, assim, um gradativo desinteresse e um abandono daquelas terras pelos grandes proprietrios (Santos, 1984, p.24). A situao da Baixada, j no nal do sculo XIX, era de decadncia, runa e abandono. Seus rios e canais de drenagem deixaram de ser limpos e desobstrudos, o que levou ao alagamento de grandes trechos de terrenos e favoreceu a disseminao de doenas (Mendes, 1950, p.75-8). Foi na dcada de 1930 que o Governo Federal iniciou a implementao de medidas sistemticas de recuperao, no apenas da Baixada, apesar de ter sido ela o alvo das maiores atenes e investimentos, mas da Baixada Fluminense de maneira geral.8 Criou-se para tanto, em 1933, uma Comisso de Saneamento da Baixada Fluminense. Essa comisso elaborou um plano geral coordenado para a regio, abrangendo desde a realizao de obras hi-

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Entre os estudos sobre as Ligas Camponesas e a mobilizao do campesinato nordestino ver, particularmente, Camargo (1973). Das obras realizadas, at o ano de 1944, em toda a extenso da Baixada Fluminense, a metade, aproximadamente, incidiu sobre as reas mais prximas cidade do Rio de Janeiro. Cf.: Mendes (1950, p.113) e Lamego (1964, p.297).

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Ao poltica e atores sociais

drulicas, que visavam a melhorar a salubridade e recuperar as reas frteis, at o fomento da colonizao das terras pblicas e do desenvolvimento de culturas intensivas, passando pelo estabelecimento de uma rede viria e de transportes para o escoamento da produo (Ges, 1939, p.19-20). Tratavase de reforar o que se dizia ser a vocao agrcola da regio, tornando-a um celeiro do Distrito Federal e do estado como um todo. Embutida no plano estava j uma representao da Baixada como regio de fronteira. como se ela tivesse retornado, com o abandono e o alagamento, a um estado anterior chegada do colonizador. Sua recuperao, assim, assumia o carter de desbravamento. Com a recuperao, as terras poderiam receber pequenos lavradores, colonos, que, instalados em ncleos por um projeto dirigido e controlado pelo Estado, as tornariam produtivas. Deve-se ressaltar, contudo, que a poltica de criao de ncleos coloniais bem como a idia de formao de um cinturo verde ao redor do Rio de Janeiro no caram restritas aos anos 30. A partir da dcada de 1940, elas foram incentivadas, tambm, por crises de abastecimento vividas durante, e logo aps, a Segunda Guerra Mundial (Arezzo, 1984, p.1). Foram sete os ncleos coloniais criados no estado do Rio at o ano de 1955. Todos eles se localizavam na Baixada Fluminense e interessante observar q