Lygia Fagundes Telles - O Encontro

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Lygia Fagundes Telles

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O encontroLygia Fagundes TellesEm redor, o vasto campo. Mergulhado em nvoa branda, o verde era plido e opaco. Contra o cu, erguiam-se os negros penhascos to retos que pareciam recortados a faca. Espetado na ponta da pedra mais alta, o sol espiava atravs de uma nuvem."Onde, meu Deus?! - perguntava a mim mesma - Onde vi esta mesma paisagem, numa tarde assim igual?"Era a primeira vez que eu pisava naquele lugar. Nas minhas andanas pelas redondezas, jamais fora alm do vale. Mas nesse dia, sem nenhum cansao, transpus a colina e cheguei ao campo. Que calma! E que desolao. Tudo aquilo - disso estava bem certa - era completamente indito para mim. Mas por que ento o quadro se identificava, em todas as mincias, a uma imagem semelhante l nas profundezas de minha memria? Voltei-me para o bosque que se estendia minha direita. Esse bosque eu tambm j conhecera com sua folhagem cor de brasa dentro de uma nvoa dourada. J vi tudo isto, j vi... Mas onde? E quando?Fui andando em direo aos penhascos. Atravessei o campo. E cheguei boca do abismo cavado entre as pedras.Um vapor denso subia, como um hlito daquela garganta de cujo fundo insondvel, vinha um remotssimo som de gua corrente. quele som eu tambm conhecia. Fechei os olhos. Mas se nunca estive aqui! Sonhei, foi isso? Percorri em sonho estes lugares e agora os encontro, palpveis, reais? Por uma dessas extraordinrias coincidncias teria eu antecipado aquele passeio enquanto dormia?Sacudi a cabea, no, a lembrana - to antiga quanto viva - escapava da inconsistncia de um simples sonho. Ainda uma vez fixei o olhar no campo enevoado, nos penhascos enxutos. A tarde estava silenciosa e quieta. Contudo, por detrs daquele silncio, no fundo daquela quietude eu sentia qualquer coisa de sinistro. Voltei-me para o sol que sangrava como um olho empapando de vermelho a nuvenzinha que o cobria. Invadiu-me a obscura sensao de estar prxima de um perigo. Mas que perigo era esse e em que consistia?Dirigi-me ao bosque. E se fugisse? Seria fcil fugir, no? Meu corao se apertou, inquieto. Fcil, sem dvida, mas eu prosseguia implacvel como se no restasse mesmo outra coisa a fazer seno avanar. V-se embora depressa, depressa! - a razo ordenava enquanto uma parte do meu ser, mergulhada numa espcie de encantamento, se recusava a voltar.Uma luz dourada filtrava-se por entre a folhagem do bosque que parecia petrificado. No havia a menor brisa soprando por entre as folhas enrijecidas, numa tenso de expectativa.A expectativa est s em mim - pensei, triturando entre os dedos uma folha avermelhada. Veio-me ento a certeza absoluta de j ter feito vrias vezes esse gesto enquanto pisava naquele -mesmo cho que arfava sob os meus sapatos. Enveredei por entre as rvores. - E nunca estive aqui, nunca estive aqui - fui repetindo a aspirar o cheiro frio da terra. Encostei-me a um tronco e por entre uma nesga da folhagem vislumbrei o cu plido. Era como se o visse pela ltima vez. A cilada - pensei diante de uma teia que brilhava suspensa entre dois galhos. No centro, a aranha. Aproximei-me: era uma aranha ruiva e atenta, espera. Sacudi violentamente o galho e desfiz a teia que pendeu em farrapos. Olhei em redor, assombrada. E a teia para a qual eu caminhava, quem? quem iria desfaze-la? Lembrei-me do sol, lcido como a aranha. Ento enfurnei as mos nos bolsos, endureci os maxilares e segui pela vereda.Agora vou encontrar uma pedra fendida ao meio. E cheguei a rir, entretida com aquele estranho jogo de reconhecimento: l estava a grande pedra golpeada, com tufos de erva brotando na raiz da fenda. Se for agora por este lado, vou encontrar um regato. Apressei-me. O regato estava seco mas os pedregulhos limosos indicavam que provavelmente na prxima primavera a gua voltaria a correr por ali.Apanhei um pedregulho. No, no estava sonhando. Nem podia ter sonhado, mas em que sonho podia caber uma paisagem to minuciosa? Restava ainda uma hiptese: e se eu estivesse sendo sonhada? Perambulava pelo sonho de algum, mais real do que se estivesse vivendo. Por que no? Da o fato estranhssimo de reconhecer todos os segredos do bosque, segredos que eram apenas do conhecimento da pessoa que me captara em seu sonho. Fao parte de um sonho alheio - disse e espetei um espinho no dedo. Gracejava mas a verdade que crescia minha inquietao: se for prisioneira de um sonho, agora escapo. Uma gota de sangue escorreu pela minha mo, a dor to real quanto a paisagem.Um pssaro cruzou meu caminho num vo tumultuado. O grito que soltou foi to dolorido que cheguei a vacilar num desfalecimento, e se fugisse? E se fugisse? Voltei-me para o caminho percorrido, labirinto sem - esperana. Agora tarde! - murmurei e minha voz avivou em mim um ltimo impulso de fuga. Por que tarde?A folha que resvalou pela minha cabea era a seca advertncia que colhi no ar e fechei na mo, que eu no buscasse esclarecer o mistrio, que no pedisse explicaes para o absurdo daquela tarde to inocente na sua aparncia. Tinha apenas que aceitar o inexplicvel at que o n se desatasse, na hora exata.Enveredei por entre dois carvalhos. Ia de cabea baixa, o corao pesado mas as passadas eram enrgicas, impelida por uma energia que no sabia de onde vinha. Agora vou encontrar uma fonte. Sentada ao lado, est uma moa.Ao lado da fonte, estava a moa vestida com um estranho traje de amazona. Tinha no rosto muito branco uma expresso to ansiosa que era evidente estar espera de algum. Ao ouvir meus passos, animou-se para cair em seguida no maior desalento.Aproximei-me. Ela lanou-me um olhar desinteressado e cruzou as mos no, regao. - Pensei que fosse outra pessoa, estou esperando uma pessoa...Sentei-me numa pedra verde de musgo, olhando em silncio seu traje completamente antiquado: vestia uma jaqueta de veludo preto e uma extravagante saia rodada que lhe chegava at a ponta das botinhas de amarrar. Emergindo da gola alta da jaqueta destacava-se a gravata de renda branca, presa com um broche de ouro em forma de bandolim. Atirado no cho, aos seus ps, o chapu de veludo com uma pluma vermelha.Fixei-me naquela fisionomia devastada. J vi esta moa, mas onde foi? E quando?... Dirigi-me a ela sem o menor constrangimento, como se a conhecesse h muitos anos.- Voc mora aqui perto?- Em Valburgo - respondeu sem levantar a cabea.Mergulhara to profundamente nos prprios pensamentos, que parecia desligada de tudo, aceitando minha presena sem nenhuma surpresa, no notando sequer o disparatado contraste de nossas roupas. Devia ter chorado. E agora ali estava numa pattica exausto, as mos abandonadas no regao, alguns anis de cabelo caindo pelo rosto. Nunca criatura alguma me pareceu to desesperada, to tranqilamente desesperada, se que cabia tranqilidade no desespero. Perdera toda a esperana e decidira resignar-se. Mas sentia-se a fragilidade naquela resignao.- Valburgo, Valburgo... - fiquei repetindo. O nome no me era desconhecido. E no me lembrava de nenhum lugar com esse nome em toda aquela regio.- Fica logo depois do vale. No conhece Valburgo?- Conheo - respondi prontamente. Tinha agora a certeza de que esse lugar no existia mais.Com um gesto indiferente, ela tentou prender o cabelo que desabava do penteado alto. Afrouxou ansiosamente o lao da gravata, como se lhe faltasse o ar. O bandolim de ouro pendeu, repuxando a renda. Esse broche... Mas j no vi esse mesmo broche nessa mesma gravata?!- Eu esperava uma pessoa - disse com esforo, voltando o olhar dolorido para o cavalo preso a um tronco.- Gustavo?Esse nome escapou-me com tamanha espontaneidade que me assustei, era como se estivesse sempre em minha boca, aguardando aquele instante para ser dito.- Gustavo - repetiu ela e sua voz era um eco. Gustavo.Encarei-a. Mas por que ele no tinha vindo? E nem vir, nunca mais. Nunca mais.Fixei obstinadamente o olhar naquela desconcertante personagem de um antiqussimo lbum de retratos. lbum que eu j folheara muitas vezes, muitas. Pressentia agora um drama com cenas entremeadas de discusses to violentas, lgrimas. A cena esboou-se esfamadamente nas minhas razes, cena que culminou naquela noite das vozes. exasperadas. De homens. De inimigos. Algum fechou as janelas da pequena sala frouxamente iluminada por um candelabro. Procurei distinguir o que diziam quando atravs da vidraa embaada vi delinear-se a figura de um velho magro, de sobrecasaca preta, batendo furiosamente a mo espalmada na mesa enquanto parecia dirigir-se a uma mscara de cera que flutuava na penumbra.Moveu-se a mscara entrando na zona de luz. Gustavo! Era Gustavo. A mo do velho continuou batendo na mesa e eu no podia me despregar dessa mo to familiar com suas veias azuis se enroscando umas nas outras numa rede de fria. Nos punhos de renda de sua camisa destacavam-se com uma nitidez atrozos rubis de suas abotoaduras. Um dos homens avanou. Foi Gustavo? Ou o velho? A garrucha avanou tambm e a cena explodiu em, meio de um claro. Antes do negrume total vi por ltimo as -abotoaduras brilhando irregulares como gotas de sangue.Senti o corao confranger-se de espanto, quem foi que atirou, quem foi?! Apertei os ns dos dedos contra os olhos. -Era quase insuportvel a violncia com que o sangue me golpeava as fontes.- Voc devia voltar para casa.- Que casa? - perguntou ela abrindo as mos.Olhei para suas mos. Subi o olhar at seu rosto e fiquei sem saber o que dizer: era parecidssima com algum que eu conhecia tanto.- Por que no vai procur-lo? - lembrei-me de perguntar. Mas no esperei resposta. A verdade que ela tambm suspeitava de que estava tudo acabado.Escurecia. Uma nvoa roxa - e que eu no sabia se vinha do cu ou do cho - parecia envolv-la numa aura. Achei-a impregnada da mesma falsa calmaria da paisagem. -Vou-me embora - disse apanhando o chapu.Sua voz chegou-me aos ouvidos bastante prxima. Mas singularmente longnqua. Levantei-me. Nesse instante, soprou um vento gelado com tamanha fora que me vi enrolada numa verdadeira nuvem de folhas secas e poeira. A ramaria vergou num descabelamento desatinado. Verguei tambm tapando a cara com as mos. Quando consegui abrir os olhos ela j estava montada. O mesmo vento que despertara o bosque, com igual violncia arrancou-a daquela apatia: palpitava em cima do cavalo to eltrico quanto as folhas vermelhas rodopiando em redor. Espicaado, o animal batia com os cascos nos pedregulhos, desgrenhado, indcil. Quis ret-la..- H ainda uma coisa!Ela ento voltou-se para mim. A pluma vermelha de seu chapu debatia-se como uma labareda em meio da ventania. Seus olhos eram agora dois furos na face de um tom acinzentado de pedra.- H ainda uma coisa - repeti agarrando as rdeas do cavalo. Ela arrancou as rdeas das minhas mos e chicoteou o cavalo. Recuei. Aquela chicotada atingiu em cheio o mistrio. Desatou-se o n na exploso da tempestade. Meus cabelos se eriaram. Era comigo que ela se parecia! Aquele rosto era o meu.- Eu fui voc - balbuciei. - Num outro tempo eu fui voc! - quis gritar e minha voz saiu despedaada. To simples tudo, por que s agora entendi?... O bosque, a aranha, o bandolim de ouro pendendo da gravata, a pluma do chapu, aquela pluma que minhas mos tantas vezes alisaram... E Gustavo? Estremeci. Gustavo! A saleta esfumaada, se fez ntida. Lembrei-me do que tinha acontecido. E do que ia acontecer.- No! - gritei, puxando de novo as rdeas. Um raio chicoteou o bosque com a mesma fora com que ela chicoteou o cavalo. Ele empinou, imenso, negro, os olhos saltados, arrancando-se das minhas mos. Estatelada, vi-o fugir por entre as rvores.Fui atrs. O vento me cegava. Espinhos me esfrangalhavam a roupa. Mas eu corria, corria alucinadamente na tentativa de impedir o que j sabia inevitvel. Guiava-me a pluma vermelha que ora desaparecia, ora ressurgia por entre as rvores, flamejante na escurido. Por duas vezes senti o cavalo to prximo que poderia toc-lo se estendesse a mo. Depois o galope foi se apagando at ficar apenas o uivo do vento.Assim que atingi o campo, desabei de joelhos. Um relmpago estourou e por um segundo, por um brevssimo segundo, consegui vislumbar ao longe a pluma debatendo-se ainda. Ento gritei, gritei com todas as foras que me restavam. E tapei os ouvidos para no ouvir o eco de meu grito misturar-se ao rudo pedregoso de cavalo e cavaleira se despencando no abismo.