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Universidade Federal do Rio de Janeiro
MACHADO DE ASSIS: ESCRITA LITERÁRIA NA CRÔNICA
OITOCENTISTA
Thaís Fernandes Velloso
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2017
2
MACHADO DE ASSIS: ESCRITA LITERÁRIA NA CRÔNICA
OITOCENTISTA
Thaís Fernandes Velloso
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, como requisito necessário
para obtenção do Título de Mestre em
Literatura Brasileira.
Orientador: Professor Doutor Adauri
Silva Bastos
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2017
3
MACHADO DE ASSIS: ESCRITA LITERÁRIA NA CRÔNICA OITOCENTISTA
Thaís Fernandes Velloso
Orientador: Professor Doutor Adauri Silva Bastos
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira).
Examinada por:
______________________________________________________________________
Professor Doutor Adauri Silva Bastos – Orientador, UFRJ
_______________________________________________________________________
Professor Doutor Alcmeno Bastos – UFRJ
______________________________________________________________________
Professor Doutor Victor Manuel Ramos Lemus – UFRJ
______________________________________________________________________
Professora Doutora Anélia Montechiari Pietrani – UFRJ, Suplente
______________________________________________________________________
Professor Doutor Ronaldo Lima Lins – UFRJ, Suplente
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2017
4
V441m
Velloso, Thaís Fernandes
Machado de Assis: pretensões literárias na crônica oitocentista / Thaís Fernandes Velloso. -- Rio de Janeiro, 2017.
107 f.
Orientador: Adauri Silva Bastos.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de
Pós-Graduação em Letras Vernáculas, 2017.
1. Crônica. 2. Literatura. 3. Ficção. 4. História. I.
Bastos, Adauri Silva, orient. II. Título.
5
Agradecimentos
À Rita Fernandes, minha mãe, pelo amor indescritível que ameniza o peso do mundo.
A Alexandre Velloso, meu pai, pelo coração inigualável que me mostra a todo tempo o
que é humanidade.
À Jade Guimarães, minha afilhada, que chegou para relembrar o olhar da criança que
vez ou outra escapa de mim.
A Dennis Castanheira, pelo afeto de um laço de amizade que, cada vez mais fortalecido,
não nasceu para ser desfeito.
À Luana Castro, por me mostrar há tantos anos que confiar em alguém é possível.
À Marcela Bondim, pelo companheirismo de sempre.
À Yárina Rangel, pelas risadas compartilhadas desde que sentávamos uma ao lado da
outra na sala de aula do Pedro II.
À Thaís Ribeiro, pela sintonia e pela dedicação em se fazer presente.
À Ana Paula de Luca, pela serenidade que amansa as tempestades.
À Luisa Andrade, pela animação que torna qualquer conversa mais agradável.
A Dau Bastos, meu orientador, pelo incentivo e pela ajuda que me faz seguir em frente.
Ao Al-Farabi, o canto que traduz tão bem meu Rio de Janeiro, por ter sido protagonista
de minhas alegrias.
6
Resumo
A proposta desta dissertação de mestrado é analisar a crônica de Machado de
Assis com ênfase em seu potencial literário. Para isso, utilizamos especificamente
crônicas da seção “A Semana” datadas de um momento em que o escritor já tinha
experiência com publicações em periódicos, uma vez que “A Semana” só se inicia em
1892, quando o autor somava mais de três décadas de escrita regular de crônicas.
Recorremos também à série “Bons Dias!” e a outras crônicas que julgamos relevantes
para o desenvolvimento do estudo. Diante dessa perspectiva, abordamos inicialmente o
surgimento do folhetim no Brasil e traçamos um paralelo entre Machado de Assis e José
de Alencar, sabendo que uma breve comparação entre os dois poderia contribuir para a
elucidação de algumas características que o gênero apresentou nos trópicos. Em
seguida, tratamos exclusivamente de Machado de Assis, apresentando um panorama
geral de suas crônicas, com o objetivo de esmiuçar seu estilo e ver em que medida o
cronista dialoga com a construção do narrador machadiano. Verificamos, desse modo,
que os cruzamentos entre a crônica, o conto e o romance do escritor realçam pontos em
comum e diferenças entre os três gêneros, portanto ampliam e aprofundam a visão dos
escritos ficcionais do autor.
Palavras-chave: crônica, literatura, ficção, história.
7
Abstract
The purpose of this dissertation is to analyze the chronicles by Machado de
Assis, emphasizing his literary potential. We focused specifically on chronicles from the
section “A Semana” published when the author had already experience with
newspapers, for “A Semana” only started in 1892, when he had completed more than
three decades of regular writing of chronicles. We also resorted to the series “Bons
Dias!” and other chronicles that we considered relevant for the development of the
studies. From this perspective, we initially approached the emerging of the chronicle in
Brazil and traced a parallel between Machado de Assis and José de Alencar, believing
that a brief comparison between them could contribute to the elucidation of some
characteristics that the gender presented in the topics. Following, we dealt exclusively
with Machado de Assis, showing a general view of his chronicles, aiming to scrutinize
his style and see how the chronicler have influenced the construction of Machado de
Assis’ narrator. This way, we could verify that the crossings between the chronicle, the
short story and the romance by the writer highlight a common ground and some
differences between these three genders, therefore enlarging and deepening the vision of
the fiction by the author.
Keywords: chronic, literature, fiction, history.
8
Sumário
Introdução .................................................................................................. 09
1. O folhetim no Brasil................................................................................ 17
1.1. José de Alencar: um folhetinista pioneiro................................... 20
1.2. O folhetim e o folhetinista: aproximações entre José de Alencar
e Machado de Assis...................................................................... 25
2. O cronista Machado de Assis.................................................................... 36
2.1. Crítica ao folhetim........................................................................ 38
2.2. Pseudônimos................................................................................. 39
2.3. Cronista político............................................................................ 47
2.4. A urbanidade na crônica de Machado de Assis............................. 50
3. A crônica como gênero literário.................................................................. 57
3.1. A ficção na crônica.......................................................................... 59
3.2. A relação entre ficção e história...................................................... 64
3.3. A literariedade na crônica............................................................... 72
3.4. A interação entre cronista e leitor................................................... 77
4. Da crônica ao conto e ao romance.............................................................. 81
4.1. Aproximações entre a crônica e o conto......................................... 82
4.2. A transição para o livro................................................................... 86
4.3. Da crônica ao romance.................................................................... 91
Conclusão......................................................................................................... 99
Referências....................................................................................................... 105
9
Introdução
A proposta deste estudo é analisar algumas crônicas de Machado de Assis tendo
em vista sobretudo seu conteúdo literário, a fim de demonstrar como um texto com viés
documental não se restringe ao contexto em que se insere. Nesse sentido, decidi estudar
a crônica machadiana porque a maioria dos estudos sobre a obra do escritor se concentra
em sua ficção. Ainda que sua produção veiculada em jornal tenha sido praticamente
ininterrupta durante sua vida, a crítica a respeito do cronista não é tão vasta, o que pode
ser explicado pelo fato de a crônica ser um gênero menor.
Antonio Candido ratifica isso ao comentar que “não se imagina uma literatura
feita de grandes cronistas, que lhe dessem o brilho universal de grandes romancistas,
dramaturgos e poetas” (1984, 5), ressaltando, contudo, que essa particularidade da
crônica não é um defeito “porque sendo assim ela fica perto de nós” (1984, 5). Eduardo
Portella, por sua vez, relaciona a frivolidade do texto à corrida vida urbana: “que valor
poderia ter [a crônica] em meio às preocupações do momento? [...]. Consolemo-nos, é
isto mesmo a vida de uma cidade, uma hora tétrica, outra frívola” (1998, 180).
Essa característica não demonstra, porém, que o gênero deva ser esquecido ou
que não mereça uma abordagem mais apurada. Um estudo bastante significativo sobre a
crônica machadiana é o do crítico inglês John Gledson, que dedicou dois livros ao tema
– Por um novo Machado de Assis, com três capítulos que tratam exclusivamente de
crônicas de “Bons dias!” e “A semana”; e Machado de Assis: ficção e história, que
também apresenta um capítulo sobre “Bons dias!”. Além disso, o ensaísta organizou
Machado de Assis: A semana, edição crítica com todas as crônicas de 1892 e 1893, com
notas, publicadas na Gazeta de Notícias.
Minha monografia de final de curso, escrita após pesquisa de iniciação científica
sobre o mesmo tema, se concentrou em duas crônicas de “A Semana”. Baseada na
edição de John Gledson, pude aprofundar a relação existente entre a crônica de 22 de
maio de 1892 e a de 11 de setembro do mesmo ano, em que o escritor aborda duas
teorias que se entrelaçam, sendo a segunda o desdobramento da primeira. A partir do
desenvolvimento desse trabalho, meu interesse pela pesquisa cresceu e me levou a
elaborar um projeto de mestrado cuja execução me possibilitou ampliar o estudo sobre a
originalidade do cronista.
10
Sabendo que há muitos estudos bons sobre as teorias machadianas em sua
produção ficcional, seja em conto ou romance, pensei em não abordar essa
característica. Entretanto, meu interesse em continuar a pesquisa se deve justamente ao
fato de o escritor ter abordado duas teorias na composição de crônicas distintas e
cronologicamente espaçadas. Chama a atenção, portanto, a ligação entre uma crônica
escrita em maio e outra em setembro, como se um texto normalmente
descompromissado de conexão com outro ganhasse uma unidade semelhante à que
ocorre, por exemplo, com contos publicados em um mesmo livro.
Assim, busquei analisar o processo mediante o qual uma teoria se desdobra em
outra num gênero que normalmente não se compromete com essa conexão.
Inicialmente, percebemos que Machado de Assis nem sempre trata a crônica como um
texto avulso, pois muitas vezes faz alusão a algo que havia sido mencionado na crônica
anterior ou em outra mais antiga. Esse aspecto é facilmente identificado ao lermos os
textos em sequência – embora não tenham sido produzidos com essa finalidade –, como
acontece na organização em livro feita por John Gledson, já que essa leitura mais atenta
e contínua difere daquela que caracteriza as publicações em jornal. O caráter alusivo se
verifica também nas menções a notícias e reportagens de diversos jornais nacionais, os
quais, fora de seu contexto próprio, podem prejudicar a compreensão.
Nas duas crônicas do ano de 1892, a que dediquei minha pesquisa, explorei a
“teoria das ideias grávidas” e a “teoria das ações grávidas”, respectivamente, a fim de
perceber características em comum entre os dois textos. Considerando que o conceito de
gravidez se relaciona ao surgimento de algo, temos uma ideia gerando uma nova ideia e,
por outro lado, uma ação que implica o nascimento de outra ação.
Para formular essas teorias, Machado antecipa na crônica de 22 de maio sua
“teoria das ideias”, que se divide entre as ideias “votadas à perpétua virgindade”, as
“destinadas à procriação” e, por fim, as que “nascem já de barriga” (Assis apud
Gledson: 1996, 62). De acordo com o cronista,
esta divisão explica toda a civilização humana. Para onde quer que
lancemos os olhos, qualquer que seja a raça, o meio e o tempo, acharemos a
genealogia distinta destas três classes de ideias, isto desde o princípio do
mundo até a hora em que a folha sair do prelo. Assim, a ideia de Eva,
quando se resolveu a desobedecer ao Senhor, vinha já grávida da ideia de
Caim. Ao contrário, a minha ideia de possuir duzentos contos morre com o
11
véu de donzela, a menos que algum leitor opulento não a queira fecundar”
(1996, 62).
É com base nesse raciocínio que o escritor também estabelece a “teoria das
ações grávidas” na crônica de 11 de setembro de 1892, exemplificada por um fato
referente à situação econômica da época: “a emissão bancária nasceu tão grossa que era
de adivinhar a gravidez da encampação” (1996, 117). Nesse sentido, entendemos que a
encampação é a consequência de uma ação que, por ter sido mal realizada, já
pressupunha outra como tentativa de resolução.
A partir da apresentação dessas teorias, de seus desdobramentos e da
possibilidade de empregá-las em casos diferentes uma vez que independem de períodos
históricos, verificamos que Machado de Assis produz a crônica de um modo pouco
comum. Enquanto geralmente os cronistas partem de um episódio para comentá-lo, ele
utilizava um ou outro acontecimento como pretexto de uma reflexão mais teórica, ou
filosófica, que não se restringia à época de publicação do texto. Uma das maneiras de
ilustrar a teoria das ideias grávidas, por exemplo, remete a Eva e Caim, ratificando que a
aplicação das teorias desenvolvidas na composição das crônicas é universal – não local
ou temporária.
Diante dessa perspectiva, o cronista desenvolve um raciocínio que implica uma
teoria estar grávida de outra: primeiramente, explica sua teoria das ideias, que origina a
teoria das ideias grávidas e que, por sua vez, se desdobra na teoria das ações grávidas.
Paralelamente, o pensamento transmitido por essas teorias influencia, de certa forma, o
desenvolvimento de minha pesquisa, considerando que tento produzir um trabalho
grávido de outro (iniciação científica; monografia; anteprojeto de mestrado; dissertação)
com o objetivo de aprofundar um pouco a crítica relacionada à crônica machadiana.
Para tanto, é necessário analisar o início das publicações em folhetins no Brasil
para posteriormente compreendermos o folhetinista e o cronista Machado de Assis e
reconhecermos seu estilo próprio, a fim de perceber em que medida a construção de sua
crônica se mostra singular em relação aos demais escritores. Machado começou a
publicar regularmente em jornal no ano de 1859, em O Espelho, mas os folhetins
passaram a fazer parte da imprensa brasileira em 1836, quando José Justiniano da
Rocha, redator de O Cronista, resolveu implementá-los no jornal.
Sendo assim, outros folhetinistas deixaram sua marca na seção antes de
Machado de Assis, o que nos desperta a curiosidade de saber o que era publicado ao
12
menos por algum desses escritores pioneiros. Assim, analisaremos de maneira geral o
folhetim em sua formação inicial, sabendo que foi produzido, por exemplo, por
Francisco Otaviano, Joaquim Manuel de Macedo e mais intensamente por José de
Alencar, responsável pela seção “Ao correr da pena” nos jornais Correio Mercantil e
Diário do Rio, nos anos de 1854 e 1855.
Diante desse cenário, serão abordados no primeiro capítulo desta dissertação o
momento em que o folhetim despontou na imprensa brasileira e, com a intenção de
compreendê-lo, faremos uma breve análise de alguns textos publicado por José de
Alencar. Após isso será possível explicitar a originalidade de Machado de Assis – em
que aspectos difere e que inovações proporciona – em relação a Alencar e outros
escritores, considerando que cada um possui seu modo particular de escrita e sua
específica contribuição para a imprensa e também para as letras nacionais.
Inicialmente, o folhetim era “apenas uma seção quase que informativa, um
rodapé onde eram publicados pequenos contos, pequenos artigos, ensaios breves,
poemas em prosa, tudo, enfim, que pudesse informar os leitores sobre os
acontecimentos daquele dia ou daquela semana” (Sá: 2007, 8). Aos poucos essa seção
do jornal foi se transformando até se tornar a crônica que conhecemos hoje. Entretanto,
a mudança de nomenclatura não ocorreu repentina e definitivamente, como se fosse
possível estabelecer o momento exato em que uma substituiu a outra.
Por ter sido um processo natural, de modo que os escritores ora eram tratados
como folhetinistas, ora como cronistas, não se identifica com precisão o instante da
transição. Seja como for, sabemos que atualmente não se usa mais o termo “folhetim”
para designar o espaço dedicado à crônica no jornal.
Depois de analisarmos a produção de outro cronista, cabe esmiuçar o folhetim e
a crônica como gênero, perceber suas características, especificidades e mudanças, para
só então estudá-los sob a ótica de Machado de Assis. Nesse sentido, serão abordadas no
capítulo seguinte as particularidades dessa seção com a finalidade de perceber as
transformações ocorridas ao longo do tempo, como a que Paulo Barreto, conhecido
como João do Rio, promoveu mais a fundo:
Paulo Barreto percebeu que a modernização da cidade exigia uma mudança
de comportamento daqueles que escreviam a sua história diária. Em vez de
permanecer na redação à espera de um informe para ser transformado em
13
reportagem, o famoso autor de As religiões no Rio ia ao local dos fatos para
melhor investigar e assim dar mais vida ao seu próprio texto (Sá: 2007, 8).
Considerando o modo como a crônica era e ainda é produzida – tendo em vista a
diferença entre aquela época e a atual –, é nítido que se trata de um texto que mescla
história e ficção. A crônica, portanto, encontra respaldo histórico para sua criação na
medida em que combina elementos ficcionais e referências a contextos sociais. Esse é
um dos motivos, aliás, que contribuem para que permaneça sendo vista como um gênero
menor, já que acaba vinculada a um determinado período, então muitas vezes não
sobrevive ao tempo.
No entanto, deixar de analisar com acuidade esse texto jornalístico apenas por
ser datado, de fácil entendimento e de rápida leitura é perder a oportunidade de
contribuir para um estudo mais profundo sobre o escritor e sua obra. Ao dedicar um
capítulo de seu livro Machado de Assis: ficção e história às crônicas de “Bons dias!”,
John Gledson afirma que,
se endossarmos a crença de que as crônicas não têm importância, sendo
apenas uma tarefa de rotina com o objetivo de garantir a subsistência de um
homem que trabalhava com jornalismo desde a juventude, corremos o risco
de deixar de perceber a importância da série que Machado publicou entre 5
de abril de 1888 e 28 de agosto de 1889, intitulada [ou começando com as
palavras] “Bons dias!” e terminando com “Boas noites!” (2003, 135).
Sendo assim, recorreremos a John Gledson para explicitar a importância de tal
série e também analisaremos a relevância de crônicas publicadas em outros periódicos,
a fim de estabelecer um panorama geral sobre a produção do cronista. Dessa forma será
possível ambientar a crônica machadiana antes de entrar propriamente em uma análise
mais cuidadosa da mesma.
No terceiro capítulo, identificaremos as especificidades e as inovações do
escritor, para destacar algumas diferenças em relação aos folhetinistas que o
antecederam e compreender seu estilo. Para tanto, serão analisadas algumas crônicas da
série “A Semana”, com foco na originalidade da escrita de Machado de Assis e em suas
“pretensões literárias” na crônica, para usar a expressão de John Gledson:
14
Artur Azevedo, em O álbum, em janeiro de 1893, diz que “atualmente
escreve Machado de Assis, todos os domingos, na Gazeta de Notícias, uns
artigos intitulados ‘A Semana’, que noutro país mais literário que o nosso
teriam produzido grande sensação artística” [o que já mostra uma
consciência de que se tratava de obras com pretensões literárias um pouco
acima da norma deste gênero] (Gledson: 1996, 13).
Assim como Artur Azevedo revela e John Gledson endossa, a crônica
machadiana contém uma literariedade talvez mais trabalhada ou, em outras palavras,
rara no gênero. É isso que pretendemos explorar ao analisar as especificidades do
cronista, pois cabe a nós – pesquisadores do tema –, mais do que reconhecer tais
“pretensões literárias”, identificá-las e analisá-las no interior do texto.
A interação entre ficção e história é bem explícita nas crônicas de Machado de
Assis, considerando o vínculo entre o assunto das crônicas da Gazeta de Notícias, por
exemplo, e o romance Esaú e Jacó. Em ambas as produções o escritor indica que “nada
se mudaria; o regímen, sim, era possível, mas também se muda de roupa sem trocar de
pele” (Assis: 1982, 168), o que significa que, para ele, a substituição da Monarquia pela
República não implicaria mudança positiva alguma, já que a oligarquia permaneceria no
poder.
Analisaremos, então, a aproximação que há entre a crônica e outros gêneros
produzidos pelo autor, como o conto e o romance, a fim de perceber como a crônica,
que mescla ficção e história, se relaciona com os textos ficcionais. Portanto, é evidente
que, para além do tema dos textos, as características percebidas na crônica não ficam a
ela restritas. O estilo ultrapassa os gêneros e permanece como elemento principal de
identificação do autor, garantindo-lhe originalidade. Como a crônica trabalha à sua
maneira a ficção, entendemos que essa produção em jornal de certa forma apresenta
aspectos próprios de sua criação literária.
Não por acaso encontramos em contos e romances do escritor um modo de
narrar comum aos três gêneros. Com base nessa semelhança que caracteriza a obra
machadiana, analisaremos no último capítulo deste trabalho a relação da crônica com o
conto “Ideias de canário” e também com o romance Esaú e Jacó. O diálogo com o
leitor, por exemplo, forte característica do narrador machadiano, é um aspecto
trabalhado tanto na crônica quanto na ficção. No que diz respeito aos conceitos de
15
ficção e de história, basearemos esta pesquisa nos estudos de Luiz Costa Lima e
Wolfgang Iser.
Em se tratando do penúltimo romance de Machado de Assis, Gledson afirma que
“é interessante mapear as aparições em ‘A Semana’ da imagem dos irmãos rivais, que,
claro, adquiriu uma importância crucial no enredo de Esaú e Jacó” (2006, 191). Ao
destacarmos uma aproximação sobretudo de estilo entre a crônica e o conto, portanto,
percebemos que, além desse aspecto, as crônicas de “A Semana” e Esaú e Jacó
curiosamente se aproximam também no que diz respeito ao tema político abordado.
Outro fator a ser explorado é a publicação de Quincas Borba, romance
desenvolvido primeiramente em folhetim e, só depois, publicado em livro. Como aponta
Ana Cláudia Suriani da Silva em Machado de Assis: do folhetim ao livro, “as
experiências de leitura nos formatos folhetim e livro são diferentes por causa das
alterações feitas no texto pelo escritor” (2015, 20), fato que indica que Machado de
Assis adaptou sua obra a cada veículo de publicação. Será possível verificar, então, as
transformações ocorridas até a segunda versão, em livro, antecedida pela versão do
romance-folhetim, gênero que, segundo Marlyse Meyer em Folhetim: uma história,
teve origem nos jornais franceses:
Inventado pelo jornal, e para o jornal, o feuilleton-roman, como era
chamado a princípio, acabou sendo fator condicionante da vida do mesmo.
Nasceu na França, na década de 1830, concebido por Émile de Girardin, que
percebeu, na época de consolidação da burguesia, o interesse em
democratizar o jornal, a chamada grande presse, e não mais privilegiar só os
que podiam pagar por caras assinaturas. Para aumentar o público leitor
havia, pois, que barateá-lo (1996, 30).
Nesse sentido, pretendemos também abordar a relação entre o folhetim e o
romance, iniciada com as publicações em jornal dos romances-folhetins, para percorrer
a produção de Machado de Assis e acompanhar diferenças e semelhanças percebidas no
folhetim, no romance-folhetim, na crônica, no conto e, por fim, no romance. Sabendo,
porém, que este trabalho se concentra fundamentalmente na crônica machadiana, a
recorrência a outros gêneros é uma maneira de compreender como a escrita em jornal
também revela, em alguma medida, o estilo do escritor e aspectos próprios de sua
narrativa.
16
Por fim, esperamos que, após análise dos textos selecionados, possamos
demonstrar a relevância do Machado cronista e revelar como uma publicação em jornal,
apesar de datada e contextualmente condicionada, pode permanecer. Ao organizar um
ensaio sobre os primeiros anos da série “A Semana”, Gledson afirmou:
Este ensaio, então, tenta situar as crônicas escritas entre 1892 e 1893 no seu
momento histórico, e assim torná-las mais compreensíveis como série,
embora, obviamente, não tenham sido escritas para ser lidas como uma
sequência. O seu objetivo é limitado: não pretendo, sobretudo, abordar os
muitos e fascinantes aspectos literários dessas obras, em parte porque
acredito que esse conhecimento do contexto seja uma preliminar
imprescindível a toda compreensão válida delas, inclusive a literária (2006,
209).
Inegavelmente, as notas dessa organização em livro, porque contextualizam,
auxiliam bastante o leitor. No entanto, para além do objetivo de John Gledson, que
muito contribuiu para seu estudo, interessa-nos esmiuçar a crônica machadiana a fim de
abordar exatamente seus muitos e fascinantes aspectos literários. É esse o desafio que
pretendemos revelar e desvelar em nossa pesquisa.
17
1
O folhetim no Brasil
Foi na França, no início do século XIX, que surgiu o folhetim, texto publicado
no jornal com uma finalidade diferente das notícias e reportagens próprias desse veículo
informativo. Produzido com leveza e descomprometido com o tratamento aprofundado
dos temas, a seção ocupava o rodapé dos periódicos sem a obrigatoriedade de discutir
um assunto específico, sendo destinada a uma variedade que comportava também a
ficção encontrada, por exemplo, em pequenos contos.
A partir daí se criou o feuilleton-roman, inaugurado em 1836 e dividido, de
acordo com Marlyse Meyer (1996), em três fases: a primeira, de 1836 a 1851, foi
protagonizada por Eugène Sue, escritor e militante socialista; a segunda, de 1851 a
1871, remeteu ao período político de Luís Napoleão, em que prevalecia a obra de
Ponson du Terrail; e a terceira, por fim, comportou a época de 1872 a 1914, referente a
autores mais ligados ao conservadorismo, como Émile Richebourg e Xavier de
Montépin.
A influência da imprensa francesa é percebida por meio do registro de que até
1842 os romances-folhetins eram publicados quase diariamente no Jornal do Comércio:
“enquanto continuam se sucedendo listas de antigas ‘moderníssimas novelas’, no rodapé
do jornal vão se sucedendo as fatias de romance-folhetim traduzidas dia após dia do
francês, introduzindo angústia e suspense com o fatídico ‘continua-se’” (Meyer: 1996,
283). Desse modo, a tradução das novelas permitiu que autores europeus fossem
bastante lidos e reconhecidos durante o processo de adaptação e formação do folhetim
brasileiro.
Eugène Sue, por exemplo, é um dos principais nomes dessa época, como afirma
Marlyse Meyer:
Em 26 de setembro de 1843 um anúncio do Jornal do Comércio dá o toque
da presença da verdadeira grande novidade do momento, anunciador da
erupção prestes a sacudir a imprensa cabocla: “Quem tiver a obra Mystères
de Paris, por Eugène Sue, e quiser vendê-la, dirija-se à rua do Ouvidor, 87,
loja de Mongie” (1996, 281).
18
Por esse motivo, a tradução dos Mistérios de Paris foi aguardada com ansiedade
pelo público que havia se habituado à leitura dos folhetins: “Até que, finalmente,
chegam ao rodapé, em português, os tão esperados Mistérios de Paris. A data é 1º de
setembro de 1844, tradução de R. [Joaquim José da Rocha]” (Meyer: 1996, 283). Anos
depois, José de Alencar faz alusão a Eugène Sue em um de seus textos de domingo, o
que confirma a popularidade do escritor:
Nicolau, vendo que nada arranjava com os seus primos da Áustria e da
Prússia, assentou de aliar-se com o Judeu Errante, um certo indivíduo
inventado, no tempo em que ainda se inventada, e correto e aumentado no
Século 19 por Eugênio Sue (1973, 40).
No Brasil, o folhetim começou a ser publicado em 1836. No século em que a
metrópole francesa influenciava o mundo culturalmente, a propagação desse modelo
também aconteceu na imprensa, o que explica a difusão dessa seção nos jornais
brasileiros. Inicialmente, os folhetins comportavam breves contos, artigos ou ensaios
curtos e resenhas, por exemplo, de peças de teatro, como este texto de julho de 1867, no
jornal O Arlequim, sobre um drama de Furtado Coelho:
Representa-se atualmente no teatro Gymnasiano um drama em oito quadros
extraído do incomensurável romance de Ponson du Terrail. No drama
apresenta-se [de Anicet Bourgeois] ROCAMBOLE, sob o aspecto de
homem mau. É o neófito do afamado Clube dos Valetes de Copas.
Rocambole entra em cena escalando janela e roubando uma burra.
As leitoras do Jornal do Comércio, afeitas à ressurreição de Rocambole,
devem ter sentido uma impressão desagradável vendo o seu querido herói
sob uma luz tão feia.
Mas compensadas talvez pela satisfação de assistirem ao desempenho, bom
em geral, de uma composição dramática, um tanto descuidada no seu todo,
de Furtado Coelho. [...] Rocambole o audaz, Rocambole o homem que não
sabia o que era pusilanimidade, Rocambole o atrevido (Meyer: 1996, 290).
Nesse sentido, percebemos que o folhetim trabalhava principalmente com o ato
de registrar, seja a divulgação de um livro, a análise de uma peça ou uma notícia muito
19
comentada na semana. De acordo com Jorge de Sá, o princípio básico da crônica é
“registrar o circunstancial” (2007, 6). Para entender isso, entretanto, é preciso relembrar
um episódio ocorrido antes mesmo de os folhetins serem concebidos, referente à carta
de Pero Vaz de Caminha a D. Manuel.
O que se tem na carta, mais do que mera descrição espacial, é o olhar despertado
e aguçado para o ambiente brasileiro. Sabendo que esse é o primeiro registro
impulsionado pela paisagem do local, “o texto de Caminha é criação de um cronista no
melhor sentido literário do termo, pois ele recria com engenho e arte tudo o que ele
registra” (Sá: 2007, 5; grifo do autor). Isso não significa, no entanto, afirmar que se trata
de um texto literário, o que abordaria nova discussão, mas que a produção recorre a
instrumento de construção literária em sua composição, isto é, à capacidade de recriar o
real.
Ainda que a carta tenha uma conotação documental, não deixa de também
recriar à sua maneira a realidade, o que é uma função da arte. Com base nisso,
entendemos que as crônicas publicadas mais tarde nos jornais carregam essa
característica do registro e paralelamente constituem uma narrativa que, embora seja
marcada também pelo imaginário da ficção, se diferencia do conto:
O conto tem uma densidade específica, centrando-se na exemplaridade de
um instante da condição humana, sem que essa exemplaridade se refira à
valoração moral, já que uma grande mazela pode muito bem exemplificar
uma das nossas faces. A crônica não tem essa característica. Perdendo a
extensão da carta de Caminha, conservou a marca de registro circunstancial
feito por um narrador-repórter que relata um fato não mais a um só
receptor privilegiado como el-rei D. Manuel, porém a muitos leitores que
formam um público determinado (Sá: 2007, 7; grifo do autor).
A figura do “narrador-repórter”, destacada por Jorge de Sá, sintetiza bem o
entrosamento entre literatura e jornalismo na composição da crônica. De um lado, o
narrador, que é elemento obrigatório no texto ficcional, e, de outro, o repórter, que é
essencial para o jornal. Por representar a mistura entre essas duas áreas, a crônica está
sempre sujeita à discussão sobre ser ou não um texto literário. O que vimos até agora é
que independentemente disso ela se vale sim de alguma instrumentação literária, apesar
20
de também carregar, ao menos majoritariamente, a característica de não sobreviver ao
tempo, como é também o caso de certas obras ficcionais.
Entretanto, há crônicas que fogem do rótulo da frivolidade e se distanciam do
olhar passageiro. Na orelha do livro que reúne todas as publicações de “Ao Correr da
Pena”, seção que José de Alencar manteve no Correio Mercantil, lê-se:
Nem por ser um conjunto de crônicas relativas a uma época diferente da
nossa perde o interesse: grandes escritores não se vencem pelo tempo; seus
pensamentos e suas concepções, pelo que revelam de essencial do homem e
da sociedade, pela análise e pelo retratar de fatos objetivos e subjetivos, pela
capacidade de ornamentar e de sugerir, como o artista, e pelo vigor do
pensamento, como o filósofo, eles não sucumbem jamais (1973, s.p.).
Alencar foi, sem dúvida, um importante nome no processo de assimilação e
apropriação do modelo folhetinesco francês, tendo iniciado suas publicações aos 25
anos no Correio Mercantil. Por esse motivo, faremos uma breve análise de sua seção no
periódico a fim de verificar características anteriores a Machado de Assis que podem ou
não dialogar com seu estilo. A comparação entre os dois escritores, portanto, servirá
para situar cronologicamente o folhetim, perceber suas características próprias e
identificar elementos que demonstram a originalidade de cada autor.
1.1. José de Alencar: um folhetinista pioneiro
A série “Ao Correr da Pena” começou a ser publicada no Correio Mercantil em
1854, quando Alencar se tornou o responsável pela escrita do rodapé da primeira página
do jornal aos domingos, antes assinado pelo redator Francisco Otaviano. O escritor se
lançou então como cronista num contexto marcado pelo fim do tráfico de escravos com
a Lei Eusébio de Queirós em 1850 e pelo surgimento de bancos, companhias e
empresas, o que consequentemente provocou problemas como a especulação e a
agiotagem.
Diferentemente do que ocorreu na imprensa francesa, que consolidou no
folhetim escritores já consagrados em seu cânone, no Brasil a produção folhetinesca foi
essencial para revelar novos escritores, como José de Alencar e Machado de Assis. De
acordo com Weslei Roberto Candido,
21
o jornal, no século XIX brasileiro, exerceu uma importante função na
formação e consolidação das letras no país. Órgão divulgador da literatura
francesa que chegava nos paquetes e logo era traduzida nos rodapés dos
jornais, a imprensa também funcionou como divulgadora dos novos
escritores nacionais, como o próprio Alencar (2009, 125).
Suas produções ficcionais, então, surgiram somente depois das recorrentes
publicações em periódicos, de modo que José de Alencar se revelou romancista em
1856, com Cinco minutos, e Machado de Assis em 1872, com Ressurreição. Tal fato é o
que permite analisarmos nesta pesquisa, mais adiante, o paralelo do cronista com o
narrador machadiano.
Escritas em uma época de modernização urbana, as crônicas de “Ao Correr da
Pena” abordam as perspectivas esperançosas daquele tempo, “a sensação ilusória de
prosperidade que se apoderou de todo o mundo” (Alencar: 1973, 17). É recorrente
também o tema da especulação, o alerta contra aqueles que se aproveitam do mercado
das ações e o registro – ou a denúncia – do descompromisso de certas companhias, por
exemplo. Tanto que, como vemos em uma carta de José de Alencar ao Correio
Mercantil em julho de 1855, é esse o tema que o faz abandonar sua seção no periódico,
uma vez que os amigos hostilizados a quem se refere são os dirigentes de companhias
irregulares e os coniventes com a especulação e a agiotagem:
Sempre entendi que a “revista semanal” de uma folha é independente e não
tem solidariedade com o pensamento geral da redação; principalmente
quando o escritor costuma tomar a responsabilidade de seus artigos,
assinando-os.
A redação do Correio Mercantil é de opinião contrária; e por isso, não
sendo conveniente que eu continuasse “a hostilizar os seus amigos”, resolvi
acabar com o Correr da Pena para não comprometê-la gravemente (1973,
19).
Apesar desses temas mais comuns, a crônica é um texto que não se prende nem
se limita, sendo por isso capaz de abranger assuntos diversos a partir da capacidade
coesiva do autor em estabelecer conexões. Naturalmente, Alencar aborda um pouco de
22
tudo em seus folhetins – entre muitas outras temáticas, fala de arte, carnaval, política,
modernização da cidade.
Cabe também lembrar que, já assumindo o tom polemista que marca sua
personalidade, o cronista, ainda que tenha assimilado o folhetim francês, não se
restringiu a copiá-lo, muitas vezes dialogando com esse modelo e por vezes
questionando-o. Nesse sentido, percebemos na leitura de seus folhetins que inicialmente
há o diálogo constante com o que era noticiado no alto da página do jornal e, com o
tempo, sua escrita no rodapé dessa página se alastra a outros temas, aproximando-se
mais de procedimentos literários.
Logo em seu primeiro folhetim publicado no Correio Mercantil, datado de 3 de
setembro de 1854, Alencar comenta que “escritos ao correr da pena são para serem lidos
ao correr dos olhos” (1973, 27). Esclarecendo para o leitor como deve ser feita a leitura,
o autor acaba também definindo em linhas gerais o folhetim: um texto breve, ágil, leve e
que em geral não precisa de atenção profunda para ser compreendido. Fazer uma leitura
“ao correr dos olhos” é passar pelo texto como passam por nós as notícias: ainda que
possam receber comentários, são logo esquecidas e substituídas por outra mais nova.
Nesse sentido, Alencar se preocupa em explicar o título da seção, recorrendo
para isso a um conto fantástico em que uma fada, representando a poesia ou a
imaginação, “tomou as formas de uma pena [...] e entregou-se a seu amante de corpo e
alma” (1973, 27). Posteriormente, referindo-se a si mesmo e ao redator que o antecedeu
na mesma seção do jornal, afirma que um dia o herói do seu conto, “chamado a estudos
mais graves, lembrou-se de um amigo obscuro, e deu-lhe a sua pena de ouro” (1973,
28). A passagem da seção de um a outro escritor, como salienta abaixo, representa
evidentemente uma mudança de estilo:
A fada tinha sofrido uma mudança completa: quando a lançavam sobre a
mesa, só fazia correr. Havia perdido as formas elegantes, os meneios
feiticeiros, e deslizava rapidamente sobre o papel sem aquela graça e
faceirice de outrora. Já não tinha flores nem perfumes, e nem centelhas de
ouro e de poesia: eram letras, e unicamente letras, que nem sequer tinham o
mérito de serem de praça, o que serviria de consolo ao espírito mais
prosaico. Por fim de contas, o outro, depois de riscar muito papel e de rasgar
muito original, convenceu-se que, a escrever alguma coisa com aquela fada
23
que o aborrecia, não podia ser de outra maneira senão – Ao correr da pena
(1973, 28).
No folhetim de 24 de setembro, em que proporciona ao leitor a metalinguagem
de pensar o próprio gênero veiculado no rodapé da página, Alencar propõe uma reflexão
que, na verdade, mais se parece com indignação:
O namorado acha que o folhetim não presta porque não descreveu certo
toillete, o caixeiro porque não defendeu o fechamento das lojas ao domingo,
as velhas porque não falou na decadência das novenas, as moças porque não
disse claramente qual era a mais bonita, o negociante porque não tratou das
cotações da praça e finalmente o literato porque o homem não achou a
mesma ideia brilhante que ele ruminava no seu alto bestunto.
Nada, isto não tem jeito! É preciso acabar de uma vez com semelhante
confusão e estabelecer a ordem nestas coisas. Quando queremos jantar,
vamos ao Hotel da Europa; se desejamos passar a noite, escolhemos entre o
baile e o teatro. Compramos luvas no Wallerstein, perfumarias no
Desmarais e mandamos fazer roupa no Dagnan. O poeta glosa o mote que
lhe dão, o músico fantasia sobre um tema favorito, o escritor adota um título
para seu livro ou o seu artigo. Somente o folhetim é que deve sair da regra
geral e ser uma espécie de panaceia, um tratado de omni scibili et possibili,
um dicionário espanhol que contenha todas as coisas e algumas coisinhas
mais? (1973, 40).
De fato, a liberdade folhetinesca que permite o escritor tratar de qualquer
assunto e com o poder de decidir atribuir maior importância a um ou a outro, ou
simplesmente falar de um tema que não tenha importância alguma, é uma característica
que também possibilita a opinião insatisfeita do leitor que espera abordagem diferente.
Por outro lado, quem produz o texto tem a autonomia de explorá-lo à sua maneira, o que
faz com que as supostas discordâncias quanto ao tema tratado não sejam fator
determinante para avaliar o autor.
Interessa observar que o trecho supõe uma crítica do literato ao folhetinista,
simulando que aquele julgaria mal o folhetim porque seu autor não teria sido capaz de
ter “a mesma ideia brilhante que ele ruminava no seu alto bestunto”. Curiosamente,
24
“bestunto” significa capacidade mental limitada, caracterizando uma pessoa de pouca
inteligência. Ao escrever que o literato, diferentemente do folhetinista, rumina uma
ideia brilhante “no seu alto bestunto”, o autor ironiza a figura do literato devido à crítica
que direciona ao folhetim. Dessa forma, a comparação entre os dois ratifica que a
crônica, ainda que hoje possa ser considerada gênero literário, em muito se diferenciava
de um texto literário no momento em que começou a fazer parte do jornal. Mesmo
porque, à época, ainda não havia sido consolidada a literatura brasileira.
O fato a ser analisado é que, ao mencionar uma suposta crítica de um literato ao
folhetim, Alencar de certa forma reconhece a crônica como texto mais simples, que não
tem – nem pretende ter – as mesmas ideias encontradas na literatura. Isso não quer
dizer, entretanto, que a crônica não possa também ter ideias brilhantes. Sua
característica de ser um gênero menor não expressa necessariamente pouca qualidade,
apenas mostra o espaço que ocupa no jornal. Esse espaço é evidenciado em sua seção no
Correio Mercantil, indicada como Páginas menores, reproduzida na seguinte imagem:
25
Figura 1 - fonte: AEL (Arquivo Edgar Leueroth)
Com seu espaço claramente definido no periódico, ao pé da página, o folhetim
traz comentários subjetivos sobre as últimas notícias, que são objetivamente tratadas no
restante do jornal. Dessa maneira, a designação de “páginas menores” indica que, apesar
de ser um registro, é somente a impressão de um ou mais registros, que pode variar de
acordo com a percepção de cada leitor. Sendo a interpretação de uma pessoa – o escritor
– sobre um ou mais fatos noticiados, o texto folhetinesco pode se distanciar um pouco
da realidade na medida em que seu autor se aproxima da ficção por meio da “poesia ou
imaginação” possibilitada pela fada transformada na pena que escreve.
26
Após a imagem da fada, Alencar apresenta o folhetinista como “uma espécie de
colibri a esvoaçar em ziguezague e a sugar, como o mel das flores, a graça, o sal e o
espírito que deve necessariamente descobrir no fato o mais comezinho” (1973, 39).
Depois de recorrer às imagens da fada e do colibri, o escritor por fim compara o
folhetinista a uma formiga com asas:
Ainda isto não é tudo. Depois que o mísero folhetinista por força de vontade
conseguiu atingir a este último esforço da volubilidade, quando à custa de
magia e de encanto fez que a pena se lembrasse dos tempos em que voava,
deixa finalmente o pensamento lançar-se sobre o papel, livre como o espaço.
Cuida que é uma borboleta que quebrou a crisálida para ostentar o brilho
fascinador de suas cores; mas engana-se: é apenas uma formiga que criou
asas para perder-se (1973, 39).
Diante dessa perspectiva, entendemos que o trabalho do folhetinista,
aparentemente leve e prazeroso devido à produção de um texto ágil, é na verdade árduo
e penoso, sendo por isso comparado ao da formiga. Entretanto, o autor não se prende
porque pode lançar seu pensamento, “livre como o espaço”, sobre o papel, daí a
metáfora de uma formiga com as asas que possibilitam explorar qualquer caminho.
A ideia de facilidade relacionada à produção do folhetim, que pode parecer de
fácil elaboração tendo em vista que discute qualquer tópico, é negada ou ao menos
questionada quando se pensa no prazo de entrega do texto para ser publicado. Ao
contrário da ficção a ser publicada em livro, que geralmente é finalizada quando o autor
decide, a crônica precisa ser escrita de acordo com o prazo estipulado pelo jornal e
combinado com o escritor. É necessário, assim, que se tenha um texto pronto a cada
semana para ser publicado – no caso de Alencar, todos os domingos.
Em 1 de outubro de 1854, o folhetinista produz uma carta ao redator, em vez do
costumeiro texto de jornal, para se desculpar da preguiça:
Meu caro redator. – Faço ideia do seu desapontamento quando receber esta
carta em vez da nossa Revista costumada dos domingos;
[...]
É já prevenindo esta eventualidade que tomo o prudente alvitre de escrever-
lhe, e não ir verbalmente desfiar o longo rosário de desculpas que a minha
27
imaginação, sem que lho encomendasse eu, teve o cuidado de ir preparando
apenas pressentiu os primeiros pródromos da preguiça (1973, 43-4).
Ao longo da carta, o folhetinista relata ironicamente tudo o que fez durante a
semana e que o impossibilitou de escrever para o periódico. Ainda assim, não deixa de
se referir a assuntos relacionados ao período semanal:
Entretanto é pena que isto sucedesse, porque havia bastante que dizer-se
sobre esta semana. Além dos divertimentos que lhe falei, do baile do
Campestre, da chegada de um literato cego que nos veio pedir hospitalidade
acompanhado de sua Antigone, houve um fato que interessa muito a
população desta cidade.
O desembargador Figueira de Melo foi nomeado Chefe de Polícia desta
corte, e deve tomar posse hoje, dia de São Jerônimo, seu patrão.
[...]
Veja que pena! Com tanta notícia importante, não temos artigo
hebdomadário! Mas console-se; a semana que vem não se anuncia menos
brilhante (1973, 51).
Todas as justificativas usadas para a falta de elaboração do texto são exatamente
o que compõe o folhetim desse domingo, de modo que a carta ao redator funciona como
um diálogo que incorpora acontecimentos semanais e, por isso, se situa temporal e
espacialmente. A desculpa pelo descompromisso com o texto é utilizada para produzi-
lo.
Por vezes a escrita também acabava sendo realizada devido à falta do que
escrever, a exemplo da crônica de 21 de outubro de 1855, a segunda da série que
começou a publicar no Diário do Rio de Janeiro, meses depois de encerrar sua atuação
no Correio Mercantil:
Estava olhando para o fundo do meu tinteiro sem saber o que havia de
escrever, e de repente veio-me à ideia um pensamento que teve Afonso
Karr, quase que em idênticas circunstâncias.
28
Lembrei-me que talvez aquela meia onça de líquido negro contivesse o
germe de muita coisa grande e importante; e que cada gota daquele pequeno
lago tranquilo e sereno podia produzir uma inundação e um cataclismo.
De fato o que é um tinteiro?
É à primeira vista a coisa mais insignificante do mundo; um traste que custa
mais ou menos caro, conforme o gosto e a matéria com que é feito.
Entretanto, pensando bem é que se compreende a missão importante que
tem um tinteiro na história do mundo e a influência que pode exercer nos
futuros destinos da humanidade.
Assim, por exemplo, aquele meu tinteiro, que ali está encostado a um canto,
se por voltas deste mundo fosse parar à Europa, podia tornar-se célebre na
história do gênero humano” (1973, 282).
Nesse caso, a crônica inicia com uma divagação. Pronto para escrever e ao
mesmo tempo sem saber sobre o que dissertar, o escritor desenvolve um pensamento
mais filosófico acerca de um objeto aparentemente insignificante e segue sua reflexão
por meio de hipóteses: Lamartine ou Vítor Hugo poderiam tirar do tinteiro um poema
ou um drama; “Napoleão declararia guerra à Europa [...] e a guerra do Oriente
terminaria de repente” (pp. 282-3). Era possível conceber, então, que “todas essas coisas
grandes dormiam talvez no fundo do [...] tinteiro, e dependiam apenas de um capricho
do acaso” (p. 283).
Alencar, no entanto, justifica a falta de assunto para a crônica alegando ser
apenas um “obscuro folhetinista da semana”:
Para mim porém, para mim, obscuro folhetinista da semana, o que podia
haver de interessante nas ondas negras da tinta que umedecia os bicos de
minha pena?
Um devaneio sobre o teatro lírico, uma poesia sobre algum rostinho
encantador, uma crítica mais ou menos espirituosa sobre a quadra atual, tão
fértil em episódios interessantes para uma pena que os soubesse descrever e
comentar?
A minha pena porém já não presta para essas coisas; de travessa, de ligeira,
e alegre que foi em algum tempo, tornou-se grave e sisuda, e olha por cima
do ombro essas pequenas futilidades do espírito humano (1973, 283).
29
O que se tem, portanto, é um cenário social desfavorável à leveza e ao
tratamento das “futilidades do espírito humano”: “como se pode hoje brincar sobre um
assunto, escrever uma página de estilo mimoso, falar de flores e de música, se o eco da
cidade vos responde de longe: – Pão – epidemia – socorros públicos – enfermarias!”
(1973, 283). Depois de discorrer um pouco sobre tal cenário, o cronista retorna ao
pensamento inicial, referente ao tinteiro, buscando no objeto, eixo temático da crônica,
uma maneira de terminar o texto:
Começo de novo a olhar para o fundo do meu tinteiro para ver se ainda há
alguma coisa.
Esperai! Lá vejo surgir o que quer que seja – um pequeno ponto, um ponto
quase imperceptível e confuso, que vai pouco a pouco se tornando mais
distinto, como uma vela que desponta no horizonte entre a vasta amplidão
dos mares.
Talvez nos traga coisas interessantes e curiosas; notícias que vos
compensem da insipidez destas páginas ingratas.
Oh! O ponto cresce, cresce! Vai tomando a fisionomia de uma espécie de
porteiro de secretaria, ou de bedel de academia.
Agora vejo-o, distintamente; é um amigo velho!
– Bem-vindo, meu bom amigo, bem-vindo, amigo sincero dos folhetinistas e
dos escritores, bem-vindo, ponto final!
Não há remédio, senão ceder-vos o lugar que vos compete; ei-lo,
[.] (1973, 286; grifo do autor).
Toda essa digressão que conecta o início ao fim da crônica revela que, embora se
trate de um texto que registra e comenta fatos semanais, o gênero permite que o autor
não se limite a isso. Diferentemente das notícias e reportagens, que relatam
informações, a crônica tem a liberdade de misturar a realidade com o imaginário, de
modo que esse imaginário é o que a aproxima da ficção.
Diante desse exemplo, percebemos que a curta série de Alencar no Diário do
Rio de Janeiro comporta folhetins mais descompromissados ou menos preocupados
com a fidelidade ao restante do jornal. Assim, o texto publicado no rodapé da página se
torna mais autônomo em relação às notícias, substituindo a condição de comentá-las
30
pela maior exploração do tom subjetivo, verificado, por exemplo, na naturalidade das
divagações.
Essa mesma característica pode ser percebida já no primeiro folhetim dessa nova
série, também intitulada “Ao correr da pena”, em que, depois de comentar que “estão
mudados os tempos” e que “são diferentes os dias de agora” (1973, 277), o autor inicia
um diálogo com a leitora:
E agora, minhas leitoras, deixai-me dar-vos um conselho, que estou certo
haveis de acolher com toda aquela amabilidade com que outrora
acompanháveis os ziguezagues desta minha pena caprichosa, que bem vezes
vos dava sérios motivos para um arrufo, para um enfado.
Voltemos porém ao conselho; não penseis já que é algum conselho muito
grave, muito sério, vestido de calça e casaca preta com gravata branca – à
guisa de um antigo conselheiro da coroa.
Não; – é um pequeno conselho bem próprio para moças bonitas como sois,
– um conselho que tem além de todas as outras vantagens, o merecimento
de mostrar as pérolas de vossos dentes, e de fazer da vossa boca uma
florzinha cor de rosa.
Aconselho-vos que, apesar dos tempos em que estamos, apesar de tanta
tristeza e melancolia que envolve esta bela cidade, apesar de tudo, apesar
mesmo das lágrimas, não deixeis de sorrir (1973, 278; grifo do autor).
A interação com o leitor, que é uma marca da produção literária de Machado de
Assis, inclusive da ficção, era bastante comum nos folhetins. Veremos, mais adiante,
que esse aspecto do romance machadiano pode ter sido influenciado por sua atuação
profissional como cronista, assim como outras características próprias de seu estilo.
No que diz respeito ao diálogo de Alencar com a leitora, artifício que permite o
entrosamento e a maior atenção ao texto devido ao caráter informal, notamos que o
conselho do folhetinista não deixa de ser também uma digressão. Por não tratar
propriamente de um assunto semanal, evita o tom documental e se aproxima do tom
reflexivo, optando por explicar não seu ponto de vista sobre um acontecimento, mas sua
concepção do sorriso:
Notai porém que eu digo simplesmente sorrir e não rir.
31
O riso é esta expressão vulgar com que exprimimos a alegria e o bom
humor; é muitas vezes mesmo um movimento nervoso, sem sentido, sem
significação, um hábito que se contrai como tantos outros, como o costume
de estalar os dedos, de alisar o bigode, ou endireitar o colarinho.
Assim rir, quando alguém sofre, quando nossos irmãos padecem, é uma
ofensa amarga, um insulto à dor e a desgraça; porque esse riso, se não é um
escárnio, é uma indiferença fria, é uma insensibilidade estúpida.
Mas o sorriso é diferente.
O sorriso é esta exalação da alma que nos momentos de calma e
tranquilidade vem desabrochar nos lábios, e abrir-se como uma dessas flores
silvestres que o menor sopro desfolha (1973, 279).
Essa maior exploração da subjetividade no folhetim, mais frequente na seção do
Diário do Rio do que na seção antiga e inicial do Correio Mercantil, demonstra um
processo de amadurecimento do escritor, que imprime maior confiança à sua
imaginação na medida em que não condiciona sua produção somente ao registro e aos
comentários das notícias veiculadas pelo jornal. Desse modo, o folhetinista trabalha sua
capacidade criativa e naturalmente caminha para se afirmar como ficcionista. Tanto é
assim que O Guarani foi primeiramente publicado em folhetim, no Diário do Rio de
Janeiro, no ano de 1857, e só depois desenvolvido em livro para ser publicado no fim
desse mesmo ano.
Essa trajetória de escrever folhetins e depois se dedicar à ficção é também o
caminho que Machado de Assis percorre. Com base na breve análise que fizemos dos
folhetins do Ao correr da pena, é possível estabelecer paralelos entre Alencar e
Machado a fim de perceber como o suporte jornalístico definiu características próprias
do gênero crônica e como Machado desenvolveu seu estilo narrativo também
influenciado por esse gênero.
1.2. O folhetim e o folhetinista: aproximações entre José de Alencar e Machado de
Assis
Vimos que Alencar define o folhetinista como “uma espécie de colibri a
esvoaçar em ziguezague, e a sugar, como o mel das flores, a graça, o sal e o espírito que
deve necessariamente descobrir no fato o mais comezinho” (1973, 39). Essa mesma
32
imagem do colibri relacionada ao folhetinista é recuperada por Machado de Assis,
embora explicada de outra forma:
O folhetinista é a fusão admirável do útil e do fútil, o parto curioso e
singular do sério, consorciado com o frívolo. Esses dois elementos,
arredados como polos, heterogêneos como água e fogo, casam-se
perfeitamente na organização do novo animal [...]. O folhetinista, na
sociedade, ocupa o lugar do colibri na esfera vegetal; salta, esvoaça, brinca,
tremula, paira e espaneja-se sobre todos os caules suculentos, sobre todas as
seivas vigorosas. Todo o mundo lhe pertence; até mesmo a política (1986,
959).
Fica claro, assim, que ao folhetinista cabe o papel de explorar quaisquer temas
sem que lhe seja imposta a obrigação de ser especializado em um deles. O fato de os
autores dos folhetins representarem as letras nacionais, uma vez que se dedicavam
profissionalmente a essa área, possibilitava sua autonomia em relação ao que era escrito.
Assim, o cronista tem a liberdade de comentar o assunto que estiver em pauta, podendo
atribuir a isso uma maior ou menor atenção, tal como ocorre com qualquer pessoa em
uma conversa informal e corriqueira.
Afrânio Coutinho ressalta que “também pelo fato de seus autores serem
habitualmente poetas, a crônica adquiriu desde o início um tom lírico, uma tendência ao
comentário leve sobre os fatos do dia ou da semana” (1990, 298). Nesse sentido, a
crônica se configura como texto que mescla o tom lírico e o registro circunstancial a
partir de uma linguagem mais simples devido à informalidade que a aproxima do
diálogo.
Esse tom dialógico que, como foi demonstrado, aparece já nos folhetins de José
de Alencar, faz também parte dos de Machado de Assis. Sendo uma estratégia de
prender a atenção do leitor por meio de uma interação direta, é comum que este seja
citado ou mesmo solicitado durante o texto. É o que ocorre, por exemplo, em uma
crônica da série “Bons dias!”:
BONS DIAS!
Hão de reconhecer que sou bem criado. Podia entrar aqui, chapéu à banda, e
ir logo dizendo o que me parecesse; depois ia-me embora, para voltar na
33
outra semana. Mas, não, senhor; chego à porta, e o meu primeiro cuidado é
dar-lhe os bons dias. Agora, se o leitor não me disser a mesma coisa, em
resposta, é porque é um grande malcriado, um grosseirão de borla e capelo;
ficando, todavia, entendido que há leitor e leitor, e que eu, explicando-me
com tão nobre franqueza, não me refiro ao leitor, que está agora com este
papel na mão, mas ao seu vizinho. Ora bem! (Assis apud Gledson: 2003,
140).
Como se pode notar, a interação entre autor e leitor é uma marca do folhetim,
uma vez que está presente não só nas publicações em periódico de Machado de Assis,
mas também nas de Alencar. É, portanto, uma característica própria desse suporte
jornalístico, que demanda uma estratégia de envolver o leitor no assunto e fazer com
que ele pareça estar participando de uma conversa informal.
Entretanto, ainda que o artifício seja o mesmo, percebemos que a maneira de
interagir é diferente, o que denota diferença também no estilo de cada folhetinista.
Alencar manifesta preocupação em agradar as leitoras – dando-lhe “um pequeno
conselho bem próprio para moças bonitas como sois” – e a certeza de que seus escritos
as agradam (“agora, minhas leitoras, deixai-me dar-vos um conselho, que estou certo
haveis de acolher com toda aquela amabilidade com que outrora acompanháveis os
ziguezagues desta minha pena caprichosa”). Já Machado de Assis opta por tratar o leitor
ironicamente, alcançando uma intimidade por meio da zombaria, como acontece quando
o autor afirma que o leitor que não lhe devolvesse os “bons dias” seria um grosseirão e
logo depois comunica que estaria falando de outro leitor, não o que estava lendo seu
texto naquele momento.
Do mesmo modo que ocorre na crônica de “Bons Dias!”, essa interlocução e a
maneira como é feita são vistas nas posteriores obras de Machado. No início de
Memórias póstumas de Brás Cubas, por exemplo, afirma: “A obra em si mesma é tudo:
se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote
e adeus” (2008, 18). Enquanto Alencar sente que seus leitores o acolhem “com toda
aquela amabilidade”, Machado não manifesta impressão positiva sobre a recepção de
sua obra.
Outra aproximação que pode ser feita entre os dois é o registro dos
acontecimentos semanais por meio do que chegava pelos jornais. Assim, a maior parte
de suas crônicas comenta um fato noticiado, não um fato presenciado. Machado de
34
Assis se dedicava à leitura de periódicos diversos, inclusive estrangeiros, que lhe davam
matéria para compor a crônica. Daí que encontrarmos em seus textos alusões a algum
jornal, como acontece na crônica de 25 de setembro de 1892: “O Jornal do Comércio
lembrou que a coleta foi promovida por uma comissão de respeitáveis membros da
Associação Comercial e com ela se construiu o belo edifício do Campo de S. Cristóvão,
doado ao Governo e ocupado por duas escolas” (Assis apud Gledson: 1996, 125).
Essa característica de produzir a crônica por meio do registro de um momento
vivenciado foi mais explorada posteriormente por João do Rio, que buscava dar mais
vida ao texto colocando nele um fato que havia presenciado. No entanto, isso também
ocorre nas crônicas de Machado de Assis, ainda que com menor frequência. Em crônica
de 8 de outubro de 1893, por exemplo, o escritor comenta seus encontros com José de
Alencar na livraria Garnier:
Daquelas conversações tranquilas, algumas longas, estão mortos quase
todos os interlocutores, Liais, Fernandes Pinheiro, Macedo, Joaquim
Norberto, José de Alencar, para só indicar estes. De resto, a livraria era um
ponto de conversação e de encontro. Pouco me dei com Macedo, o mais
popular dos nossos autores, pela Moreninha e pelo Fantasma branco,
romance e comédia que fizeram as delícias de uma geração inteira. Com
José de Alencar foi diferente; ali travamos as nossas relações literárias.
Sentados os dois, em frente à rua, quantas vezes tratamos daqueles negócios
de arte e poesia, de estilo e imaginação, que valem todas as canseiras deste
mundo” (1996, 312).
Embora José de Alencar tenha iniciado como folhetinista antes de Machado de
Assis, os dois eram contemporâneos e mantiveram contato, tanto que, em uma carta de
18 de fevereiro de 1868, Alencar revela que considera Machado o primeiro crítico
brasileiro: “O senhor foi o único de nossos modernos escritores que se dedicou
sinceramente à cultura dessa difícil ciência que se chama crítica [...]. Do senhor, pois,
do primeiro crítico brasileiro, confio a brilhante vocação literária, que se revelou com
tanto vigor”. Sendo assim, interessa fazer essa breve comparação entre a produção dos
dois em uma seção de jornal incipiente no Brasil para acompanhar o surgimento e os
desdobramentos do folhetim e o modo como era escrito e concebido por cada um desses
escritores.
35
Após estudarmos um pouco o folhetim de José de Alencar e estabelecermos uma
relação entre ele e Machado de Assis, entendemos que, apesar de o texto publicado no
rodapé da página do periódico ter características que o particularizam como um gênero
textual, cada autor produz à sua maneira, criando seu próprio estilo à medida que
exercita sua escrita.
Sendo assim, buscamos analisar a crônica de Machado de Assis a fim de
perceber sua originalidade e, consequentemente, sua contribuição para o gênero.
Sabendo, porém, que tal gênero também contribui para o desenvolvimento de sua obra,
veremos como ocorre a relação do cronista com a formação do narrador machadiano e
de que modo o autor explora a crônica como um gênero literário.
36
2
O cronista Machado de Assis
Machado de Assis inicia sua atividade como cronista em O Espelho e termina na
Gazeta de Notícias, completando cerca de quase cinquenta anos dedicado à imprensa.
Depois de seu trabalho em O Espelho, escreveu para o Diário do Rio de Janeiro, a
Semana Ilustrada, O Futuro, a Ilustração Brasileira, o Cruzeiro e, finalmente, a
Gazeta. Em Machado de Assis na literatura brasileira, Afrânio Coutinho mostra uma
divisão dessas crônicas feita por Eugênio Gomes, que diz existir nas primeiras –
referentes ao período de 1861 a 1867 – uma tendência romântica, enquanto nas demais
acredita haver uma mudança que explora mais o espírito crítico, o humor e o tom
psicológico.
Essa classificação se assemelha à divisão que a crítica tradicional atribui à ficção
do autor, afirmando que seus romances se dividem em dois períodos, sendo o primeiro
romântico e o segundo, iniciado com a publicação de Memórias póstumas de Brás
Cubas, realista. Entretanto, já em seu primeiro romance o escritor declara que a obra se
afasta das características romanescas: “Não quis fazer romance de costumes; tentei o
esboço de uma situação e o contraste de dois caracteres; com esses simples elementos
busquei o interesse do livro” (2007, 14).
Por outro lado, é também verdade que o próprio ficcionista reconhece a divisão
de sua obra em dois momentos: “Este foi o meu primeiro romance. [...] Como outros
que vieram depois, e alguns contos e novelas de então, pertence à primeira fase da
minha vida literária” (2007, 12). Essas duas fases, porém, não estão diretamente
relacionadas à escola romântica ou à realista, mas sim ao processo natural de
amadurecimento que ocorre à medida que o autor exercita sua escrita, desenvolvendo,
assim, seu estilo.
Esse processo de amadurecimento é natural também em relação à produção das
crônicas. Vimos no capítulo anterior que José de Alencar, durante os dois anos em que
publicou na seção “Ao Correr da Pena” no Correio Mercantil e no Diário do Rio,
evoluiu em sua maneira de produzir os folhetins ao explorar mais seu imaginário ou,
ainda, a experimentação.
Considerando que essa transformação pela qual os escritores passam pode ser
percebida no romance machadiano, o mesmo acontecerá com suas crônicas, que
constituem o gênero mais praticado pelo autor. Afinal, enquanto seu primeiro romance
37
foi publicado em 1872, suas crônicas começaram a fazer parte dos jornais cariocas já no
ano de 1859.
A própria crônica sofreu transformações ao longo do tempo. A alteração do
termo “folhetim” para “crônica”, que aconteceu sem que seja possível saber o momento
exato da mudança do nome, é explicada por Afrânio Coutinho: “venceu e generalizou-
se afinal o termo ‘crônica’, ficando ‘folhetim’ para designar mais a seção, na qual se
publicavam não só crônicas senão também ficção e todas as formas literárias” (1990,
297). Sabemos, contudo, que, em seu sentido primitivo, “crônica” tem caráter de relato
histórico, o que evidencia outra modificação:
Em português, a partir de certa época, a palavra foi ganhando roupagem
semântica diferente [...]. Assim, “crônica” passou a significar outra coisa:
um gênero literário de prosa, ao qual menos importa o assunto, em geral
efêmero, do que as qualidades de estilo, a variedade, a finura e argúcia na
apreciação, a graça na análise de fatos miúdos e sem importância, ou na
crítica de pessoas (Coutinho: 1990, 296).
O tom lírico alcançado pela crônica, que pode ser explicado pelo hábito de ser
escrita por autores que são também poetas, é o que define a transformação pela qual o
gênero passou. Por nunca ter sido um texto objetivo como a reportagem, por exemplo, a
crônica se permitiu uma variedade não só de assuntos, mas também relacionada à
multiplicidade de gêneros textuais que ocupavam o espaço do folhetim no jornal:
resenha, ensaio, ficção. Assim, sua evolução se deu
diretamente ligada ao jornalismo. Este fato levou muitos críticos a negar à
crônica o caráter de permanência. De qualquer modo, ela só pode ser
considerada gênero literário quando apresentar qualidade literária,
libertando-se de sua condição circunstancial pelo estilo e individualidade do
autor (Coutinho: 1990, 298).
Nesse sentido, entendemos que o que faz a crônica ser um gênero literário é
sobretudo o estilo do autor, que trabalha o texto, seleciona as palavras, explora a
metáfora e produz uma composição original. Dessa forma, a análise de algumas
crônicas de Machado de Assis, respeitando a cronologia, é necessária para percebermos
38
a originalidade do cronista e o desenvolvimento de sua escrita durante todo o tempo
dedicado aos jornais do Rio de Janeiro.
2.1. Crítica ao folhetim
Em 1859, ao discorrer sobre a própria seção que era então novidade no Brasil,
Machado de Assis comenta que “o folhetinista é originário da França, onde nasceu, e
onde vive a seu gosto, como em cama no inverno. De lá espalhou-se pelo mundo, ou
pelo menos por onde maiores proporções tomava o grande veículo do espírito
moderno; falo do jornal” (Assis apud Coutinho: 1990, 296). Por ser originário da
França, portanto, é comum que esse espírito moderno seja influenciado pelo país
europeu. Porém, percebendo que havia imitação em vez de construção própria do
modelo folhetinesco, o autor critica a ausência de originalidade na produção brasileira:
Alguns vão até Paris estudar a parte fisiológica dos colegas de lá; é
inútil dizer que degeneraram no físico como no moral.
Força é dizê-lo: a cor nacional, em raríssimas exceções, tem tomado o
folhetinista entre nós. Escrever folhetim e ficar brasileiro é na verdade
difícil.
Entretanto, como todas as dificuldades se aplanam, ele podia bem tomar
mais cor local, mais feição americana. Faria assim menos mal
à independência do espírito nacional, tão preso a essas imitações, a esses
arremedos, a esse suicídio de originalidade e iniciativa.1
Dessa maneira, percebemos já uma postura crítica em relação à escrita nacional,
que, de acordo com o escritor, deveria se desprender da cópia de um modelo de texto
jornalístico e investir na reinvenção dessa seção, com base em um estilo próprio que
garantisse uma produção original e inovadora. Nesse sentido, a consideração de José de
Alencar sobre Machado de Assis ser o primeiro crítico brasileiro recebe total
credibilidade, mesmo porque ele iniciou o exercício da crítica literária aos dezenove
anos de idade, quando ainda não era romancista.
1 Trecho retirado do Domínio Público (http://www.dominiopublico.gov.br), assim como
outros citados ao longo desta pesquisa.
39
Diante da contundente crítica direcionada aos folhetinistas, entendemos que o
autor tem o cuidado de garantir inovação em seus escritos, que, embora não neguem o
reconhecimento do folhetim francês, certamente não o têm como padrão a ser
cegamente seguido. É possível então constatar que suas crônicas apresentam
características que a singularizam num contexto referente a esse gênero.
2.2. Pseudônimos
Uma característica dos folhetins de Machado que não faz parte dos de Alencar,
por exemplo, é a utilização de pseudônimos. As “Crônicas do Dr. Semana”, da Semana
Ilustrada, começaram a ser publicadas em 1861. Podemos afirmar que os pseudônimos
servem também como eixo temático que de certa forma agrupam os textos da mesma
seção. É por meio do tema da ciência e da medicina que o autor, sob pseudônimo, se
apresenta nessa primeira crônica da série:
CLÍNICA CIRÚRGICA DO DR. SEMANA
8 DE DEZEMBRO DE 1861
O Dr. Semana tem a honra de participar ao respeitável público que se acha
nesta corte, onde fixou sua residência, pronto sempre a ministrar aos
necessitados os socorros de sua infalível ciência.
Não produzirá a relação das memórias que tem no Instituto Imperial de
França e que o fizeram conhecido em ambas as Américas. Limita-se a
publicar, apenas, o resultado de sua clínica durante o curto espaço de tempo
em que aqui se acha.
Estes dados estatísticos são úteis: trazem proveito. A humanidade lucra com
eles, quando insertos nas folhas diárias de grande extração, porque fica
sabendo onde ir procurar a saúde e conhecer de perto quais têm sido os
triunfos da ciência.
Aí vai a estatística.
40
Tumores sub epidérmicos — Operei 200. Estes tumores são formados por
uma substância perlea mais ou menos consistente. Opero-os com uma
simples manobra digital, ou quando muito com o auxílio da extremidade
aberta do cilindro oco da chave da máquina gnomônica de Nuremberg.
Todos quantos operei eram do rosto, e foram coroados de sucesso.
Ditos microscópicos ou acari-phlyctenoides — Tratei de alguns por meio da
grattage com a rugina unguicular do Dr. Egratigneur.
Quistos — Operei 40. Emprego metódico das agulhas d’Inglaterra (por um
processo meu). Todos estes quistos eram formados pelo pulex penetrans,
com acidentes locais, como phlogose, prurido, tensão e calor urente.
Consegui banir da prática o uso da nicotina em pó e o carbonato calcário
para favorecer a cicatrização.
Hérnias glóssicas através do orifício oral — Tenho curado um grande
número sem operação sangrenta. Reduzo-as por meio de uma hábil e
engenhosa combinação de esforços musculares. Operação rápida e sem dor.
N. B. — Emprazo os meus colegas desta corte para uma apreciação e
discussão, cujo proveito será seguro. Este acidente de hérnias glóssicas é
mais comum do que se pensa, sobretudo em indivíduos de temperamento
dúbio e caráter ingênuo. Dois casos vi complicados com luxação da
mandíbula.
Corpos estranhos — Fragmentos dos tecidos musculares tendinosos e
aponeuróticos, decoctos e putrefatos, profundamente implantados em vastas
escavações devidas à cárie dos processos odônticos dos maxilares.
Odontalgias. Extração por meio da engenhosa alavanca do Dr. Curedent.
Excretos superabundantes — Dez casos de substância superexcretada das
glândulas ceruminosas dos condutos auditivos externos. Emprego da
mencionada alavanca, modificada por mim. Superexcreção das glândulas de
41
Meibonnio; imensos casos. Loções metódicas com protóxido de hidrogênio;
cura constante.
Ortopedia — Desvio sinistroso dos apêndices capilares da extremidade
cefálica do corpo, no plano compreendido entre os pontos occipital, frontal e
temporais, incluindo vértex. Emprego constante (em 100 casos) do
myriodonte de caout-chouc dos Drs. Chassepoux e Niobey.
Amputações — Dos extremos livres dos referidos apêndices pelo processo
de Mr. Beaumely e com tesouras de minha invenção. Casos numerosos; cura
sem acidente.
São estas as operações que tenho praticado nesta corte em uma quinzena.
Possuo agradecimentos, cientificamente redigidos e com assinaturas
reconhecidas, que podem ser examinados no meu consultório, à Rua dos
Arcos n.° 66.
Dr. Semana
(grifos do autor).
Nesse caso, o folhetinista atua como um personagem vinculado à medicina e,
ainda que não trate somente desse assunto ao longo da seção, utiliza tal característica
para compor ficcionalmente sua crônica. O mesmo ocorre na publicação de 15 de março
de 1863, em que o agora “Dr. Semanopata” termina o texto com uma última receita: “O
melhor remédio para não morrer de febre amarela é... morrer de outra moléstia”.
Desperta a atenção na crônica citada acima o segundo parágrafo, que, visto sob
uma perspectiva diferente, se coaduna à crítica que Machado de Assis faz à cópia do
folhetim francês. Ao afirmar que “não produzirá a relação das memórias que tem no
Instituto Imperial de França” e assim “limita-se a publicar, apenas, o resultado de sua
clínica durante o curto espaço de tempo em que aqui se acha” – isto é, no Brasil –, o
autor talvez queira valorizar justamente aquilo que é capaz de ser criado no país, em vez
de consentir com a perpetuação de um modelo da França.
No que diz respeito a essa mesma seção, é também interessante verificar a
crônica dedicada à gramática. Dividida em cinco capítulos, somando a isso o prólogo e
a introdução, reúne “preleções de gramática” e explica as partes da oração, a sintaxe, o
42
dativo, o acusativo e o ablativo. A introdução, por sua vez, deixa claro que essa
explicação não isenta o contexto semanal e recorre ao desenvolvimento da própria
Semana Ilustrada para ser concebida:
A gramática semanal é a arte que ensina a declarar bem os pensamentos da
Semana Ilustrada, por meio de caracteres ou de textos burlescos e chistosos.
Divide-se em quatro partes: Ortografia, Prosódia, Etimologia e Sintaxe.
A Ortografia ensina a escrever certo o que sai publicado na Semana, quando
o tipógrafo não comete algum erro ou o revisor se esquece de emendar
alguma letra trocada.
A Prosódia ensina, a saber, tudo quanto a Semana oferece a seus leitores,
uma vez que estes não sejam meninos de escola ou carroceiros que só
saibam assinar o nome — o que é muito raro entre os entusiastas do referido
jornal.
A Etimologia ensina a conhecer a origem das palavras e caricaturas da
Semana, se, porventura, os leitores forem espirituosos; no caso contrário, a
etimologia é, para eles, uma parte supérflua da gramática, e então podem
pedir aos vizinhos que a expliquem, ou aos missionários capuchinhos do
Castelo.
A Sintaxe ensina a ligar todas as palavras e caricaturas, para que se
compreenda que a Semana Ilustrada sabe onde tem o nariz, e não precisa do
espírito do Punch ou do Journal pour rire para divertir os filhos do Brasil
(grifos do autor).
Apesar de esses textos serem atribuídos a Machado de Assis, em verdade há uma
dificuldade em identificar os verdadeiros autores das crônicas da Semana Ilustrada. Isso
ocorre porque, como a assinatura do texto não era feita pelo próprio autor e sim por um
pseudônimo que não revelava a identidade do escritor, não era apenas um que ficava
responsável pela publicação do folhetim. Sendo assim, há textos que podem ter sido
escritos por outro autor em vez de Machado de Assis. Segundo Jean-Michel Massa,
quem era importante na imprensa do Rio colaborou, em maior ou menor
grau, na Semana Ilustrada. Ainda que nos limitemos aos anos de 1860-
1870, é difícil determinar os textos efetivamente escritos por Machado de
43
Assis, tantos eram os pseudônimos que pululavam e, ao que parece, sem
proprietário fixo (1971, 620-1).
Se não podemos afirmar que essas duas crônicas comentadas são de fato de
Machado de Assis, ainda assim é importante que se faça o registro para verificarmos
como o gênero era produzido. Atualmente, por exemplo, não se vê o uso de
pseudônimos nos jornais. Entretanto, esse foi um recurso marcante do jornalismo
exercido pelo escritor.
Embora não haja a certeza de quem é o verdadeiro autor das crônicas,
curiosamente nos remetemos mais uma vez à crítica de Machado de Assis ao ler nesta
última que “a Semana Ilustrada sabe onde tem o nariz, e não precisa do espírito do
Punch ou do Journal pour rire para divertir os filhos do Brasil”. Aqui o autor aborda
claramente a problemática que envolve a imitação do folhetim francês, uma vez que a
revista não depende do espírito dos periódicos da França para ser desenvolvida.
Na Ilustração Brasileira, onde atuou de 1876 a 1878, seu pseudônimo era
Manassés. Nesse suplemento, Machado de Assis passou a ter responsabilidade total
sobre as publicações, pois não havia mais a necessidade de dividi-la com outros
cronistas. A leitura de algumas crônicas dessa seção deixa ver uma característica já
ressaltada no primeiro capítulo desta pesquisa: que o narrador busca nos periódicos as
informações a comporem seu texto. No ensaio “As crônicas de Machado de Assis na
Ilustração Brasileira”, Silvia Maria Azevedo pondera que essa atitude de selecionar nos
diários aquilo que comentaria em texto com os leitores demonstra “o caráter volátil e
efêmero de suas crônicas, assim como permite interpretar, por esse outro ângulo, a
escolha simbólica do pseudônimo, partindo do significado do nome: Manassés, ‘o que
faz esquecer’” (2008, 289).
Sendo assim, entendemos que a seleção do nome para autoria da crônica não é
feita aleatoriamente, uma vez que se coaduna justamente com o propósito do gênero, ou
ao menos com um aspecto seu, que é o de ser passageiro. Situada cronologicamente e
contextualizada histórica e socialmente, a crônica, tal como Manassés, em geral também
se faz esquecer porque passa de acordo com o tempo.
Manassés é então a figura do leitor de jornal que utiliza a crônica como espaço
de discussão dos fatos semanais. Isso permite que o cronista seja categorizado por si
mesmo como um contador de histórias:
44
A condição de leitor de jornal impede o cronista da Ilustração Brasileira de
sair às ruas, e permaneça na redação, à espera de que as notícias cheguem
até ele, o que o transforma em um “puro contador de histórias”, como irá
dizer na crônica de 15 de março de 1877. Um “contador de histórias”,
prossegue o cronista, ao contrário do historiador – “inventado, por ti,
homem letrado, humanista” – “foi inventado pelo povo, que nunca leu Tito
Lívio, e entende que contar o que passou é só fantasiar” (2008, 289).
Mais uma vez, ressalta-se a relação da ficção com a crônica. Diferentemente do
historiador, que interpreta os arquivos e fatos documentados a partir do relato fiel à
realidade, para o cronista a história é um instrumento a que se atribuem olhares
diversos. Ou seja, ao autor da crônica é permitida uma criação que, embora registre
acontecimentos, tenha também a liberdade de ficcionalizá-los, se assim desejar. No
entanto, não cabe ao cronista enganar o leitor, mas sim conduzi-lo a uma nova reflexão
estimulada pelo texto.
Dessa forma, o cronista se diferencia do repórter porque, enquanto para este o
acontecimento é um fim, para aquele é apenas um pretexto. Para o repórter, basta que a
informação seja transmitida; para o cronista, é necessário entreter o receptor, interagir e
ter a habilidade de fazer com que ele assimile e absorva imperceptivelmente suas ideias
à medida que realiza a leitura.
Isso pode ser exemplificado em uma crônica da Ilustração Brasileira publicada
em 15 de agosto de 1876, em que o autor inicia o texto falando sobre a festa da Glória,
cita a festa da Penha e comenta, depois, as corridas de cavalos e touros. Imerso nesse
assunto, começa a escrever o que pensa sobre alguns animais, afirmando não gostar de
cavalos, mas de burros, sim. O modo como defende a ideia de ser a favor do burro e
contra o cavalo convence o leitor, que naturalmente concorda com seu ponto de vista.
A referência ao burro é o que permite a coesão temática que o leva ao tema
referente ao fato de a maior parte da população não saber ler, e que, por sua vez, faz o
leitor pensar na problemática social do analfabetismo político:
E por falar neste animal, publicou-se há dias o recenseamento do Império,
do qual se colige que 70% da nossa população não sabem ler.
Gosto dos algarismos, porque não são de meias medidas nem de metáforas.
Eles dizem as coisas pelo seu nome, às vezes um nome feio, mas não
45
havendo outro, não o escolhem. São sinceros, francos, ingênuos. As letras
fizeram-se para frases; o algarismo não tem frases, nem retórica.
Assim, por exemplo, um homem, o leitor ou eu, querendo falar do nosso
país, dirá:
— Quando uma Constituição livre pôs nas mãos de um povo o seu destino,
força é que este povo caminhe para o futuro com as bandeiras do progresso
desfraldadas. A soberania nacional reside nas Câmaras; as Câmaras são a
representação nacional. A opinião pública deste país é o magistrado último,
o supremo tribunal dos homens e das coisas. Peço à nação que decida entre
mim e o Sr. Fidélis Teles de Meireles Queles; ela possui nas mãos o direito
superior a todos os direitos.
A isto responderá o algarismo com a maior simplicidade:
— A nação não sabe ler. Há só 30% dos indivíduos residentes neste país que
podem ler; desses uns 9% não lêem letra de mão. 70% jazem em profunda
ignorância. Não saber ler é ignorar o Sr. Meireles Queles; é não saber o que
ele vale, o que ele pensa, o que ele quer; nem se realmente pode querer ou
pensar. 70% dos cidadãos votam do mesmo modo que respiram: sem saber
por que nem o quê. Votam como vão à festa da Penha — por divertimento.
A Constituição é para eles uma coisa inteiramente desconhecida. Estão
prontos para tudo: uma revolução ou um golpe de Estado.
Replico eu:
— Mas, Sr. Algarismo, creio que as instituições...
— As instituições existem, mas por e para 30% dos cidadãos. Proponho
uma reforma no estilo político. Não se deve dizer: “consultar a nação,
representantes da nação, os poderes da nação”; mas “consultar os 30%,
representantes dos 30%, poderes dos 30%”. A opinião pública é uma
metáfora sem base; há só a opinião dos 30%. Um deputado que disser na
Câmara: “Sr. Presidente, falo deste modo porque os 30% nos ouvem..” dirá
uma coisa extremamente sensata.
E eu não sei que se possa dizer ao algarismo, se ele falar desse modo,
porque nós não temos base segura para os nossos discursos e ele tem o
recenseamento.
46
Esse artifício de encontrar a coesão por meio da temática – ou de uma palavra
que engloba temas diferentes – é comum na crônica machadiana. É o que permite que o
autor pule de um a outro assunto sem perder a coerência. Muitas vezes isso ocorre por
meio da exploração do significado de uma palavra, como quando, ao falar do “burro”
em seu sentido literal, o do animal, o cronista faz alusão imediata ao sentido figurado,
que remete à carência de inteligência ou de esperteza.
Apesar de ser recorrente em Machado, tal estratégia na verdade parece
imprescindível para a composição do próprio gênero, independentemente de quem seja
o autor. Por termos um texto curto que, ambientado espacial e temporalmente, discorre
sobre assuntos diversos na ânsia de dar conta de todos ou quase todos os
acontecimentos da semana, é necessário que o cronista tenha mesmo habilidade para
encontrar mecanismos de coesão que comportem a repentina passagem de um a outro
tópico.
Essa característica, comum à crônica de Machado de Assis, não é exclusividade,
portanto, de um de seus pseudônimos. Ao contrário da heteronímia do poeta Fernando
Pessoa, que cria outros eus poéticos – cada um com uma personalidade peculiar –, a do
cronista não tem o objetivo de construir perfis próprios para cada nome. Ainda que
possam se diferenciar em um ou outro aspecto, representam o mesmo estilo e, assim, a
originalidade do escritor.
Antes da série “Bons Dias!”, seus textos eram publicados sob o pseudônimo de
Malvolio na Gazeta de Notícias. Como lembra John Gledson, foi o próprio jornal que
deu a informação:
Às perguntas de vários de nossos assignantes sobre quaes sejam os
escriptores que na Gazeta de Notícias usam de pseudonymos satisfazemos
com as seguintes informações... MALVOLIO [“Gazeta de Hollanda”] e
LELIO [“Balas de Estalo”] Machado de Assis (Gledson: 2003, 138).
Já em “Bons Dias!” e em “A Semana” foi suspenso o uso de pseudônimo,
ficando as crônicas sem assinatura. A diferença entre as duas séries, como também
aponta Gledson (2003), é que na segunda o público tinha conhecimento da autoria, ao
passo que na primeira Machado só foi identificado devido a uma coleção manuscrita de
identificação de pseudônimos que havia na Biblioteca Nacional e que José Galante de
Sousa descobriu.
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Sabendo que o uso recorrente de pseudônimos atendia a um propósito, por mais
que não tenhamos a certeza de qual seja, é possível especular que essa prática se deve à
relação entre o cronista e o periódico: ainda que o escritor tenha autonomia para
produzir seu texto, essa liberdade é relativa porque ele está subordinado às regras de
funcionamento do jornal. Um exemplo claro disso é o episódio referente à saída de José
de Alencar do Correio Mercantil, quando esclareceu em uma carta à redação o motivo
de sua demissão.2
Assim, entendemos que os pseudônimos ajudavam o cronista a se mascarar.
Utilizando um nome fictício, aumentava a possibilidade de dizer, mesmo que por meio
de estratégias discursivas, aquilo que a assinatura real talvez o impedisse de publicar.
Uma vez estabelecido o compromisso com o jornal, é provável que o autor preferisse
não correr o risco de encerrar sua colaboração por escrever algo em total discordância
de seus superiores.
Ainda assim, a política é matéria recorrente na crônica de Machado de Assis
desde que o escritor passou a se dedicar ao jornalismo. Seja por meio do pseudônimo
que esconde a verdadeira autoria, seja pela falta de assinatura que deixa publicamente
subentendido quem é o autor, a verdade é que o cronista sempre abordou o tema em sua
atuação no jornal.
2.3. Cronista político
Por muito tempo Machado de Assis foi considerado apolítico e despreocupado
com as questões sociais de sua época. No entanto, a alguém que se dedicou à escrita de
crônicas por tanto tempo não é possível atribuir escapismo ou indiferença a aspectos
históricos, uma vez que a produção desse gênero implica conhecimento do cenário
político e social. Tanto é assim que, logo ao iniciar suas publicações em O Espelho,
disse que todo o mundo pertence ao folhetinista, “até mesmo a política” (1986, 959).
Veremos no próximo capítulo, por exemplo, que na série “A Semana”,
desenvolvida logo após a assinatura da Lei Áurea e a instauração da República, é
comum Machado denunciar, a seu modo, a farsa do novo regime, que permitiria a
continuação do poder oligárquico, e o relativismo da abolição. Além disso, é habitual
seus textos trazerem comentários sobre a crise decorrente da política do Encilhamento,
2 Ver capítulo 1, p. 21, nesta dissertação.
48
formulada pelo então ministro da fazenda Rui Barbosa no governo de Deodoro da
Fonseca, e sobre as reformas urbanas que já causavam impacto no Rio de Janeiro.
Outro aspecto que evidencia o caráter político do cronista é sua abordagem das
eleições, manifestando atenção à votação e pedindo ao leitor que participe ativa e
conscientemente como cidadão. Na publicação do dia 7 de agosto de 1892, somos
advertidos quanto ao grande mal que a sociedade enfrentava:
Toda esta semana foi empregada em comentar a eleição de domingo. É
sabido que o eleitorado ficou em casa. Uma pequena minoria é que se deu
ao trabalho de enfiar as calças, pegar do título e da cédula e caminhar para
as urnas [...].
Variam os comentários. Uns querem ver nisto indiferença pública, outros
descrença, outros abstenção. No que todos estão de acordo é que é um mal,
e grande mal (1996, 99).
É pertinente, portanto, considerar que Machado de Assis se preocupava com os
caminhos políticos do país. A imagem de apolítico perde o sentido quando se examinam
sobretudo suas publicações em jornal. A ausência do eleitor em dia de votação ser
definida como “grande mal” demonstra, por si só, um posicionamento e um tom
reflexivo quanto às questões políticas.
Logo no início de “A Semana”, outras crônicas também revelam preocupação
em relação à participação consciente dos eleitores, uma vez que reitera ao leitor a
importância de seu voto: “Adeus, vai votar. Escolhe a tua intendência e ficarás com o
direito de gritar contra ela” (1996, 144). O cronista reconhece seu papel como cidadão e
encoraja outros a fazerem o mesmo, ressaltando que o questionamento, a manifestação
ou a oposição a qualquer candidato eleito só fazem sentido a partir do momento em que
há mobilização e participação ativa nas eleições.
Sendo este um tema bastante explorado na crônica, interessa observar o modo
como é feita a abordagem do assunto. Luiz Costa Lima define como “malabarismo de
mestre de capoeira” o mecanismo que Machado de Assis utiliza para escrever sobre
algo que demanda cautela. Na época em que a série “A Semana” estava sendo
produzida, a imprensa se encontrava sob censura. Assim, “o passe de Capoeira está em
a crônica, flagrantemente, se desviar do tema que anunciara” (1998, 184).
49
Embora Luiz Costa Lima desenvolva tal raciocínio com base nas crônicas da
Gazeta de Notícias, essa característica faz parte do estilo do autor, significando que o
desvio de assunto é uma estratégia adotada por Machado não só para se esquivar de
julgamentos, mas também para proporcionar reflexão. Afinal, passar de um a outro
assunto de forma coerente não é uma forma de se isentar do olhar crítico; é, antes de
tudo, uma maneira de criticar contando com a capacidade do leitor de perceber nas
entrelinhas a reflexão promovida pelo texto.
Para ilustrar o “malabarismo de mestre de capoeira”, Luiz Costa Lima recorre à
crônica de 15 de maio de 1892, em que Machado afirma que “tudo é ovo” e, por meio
de tal constatação, faz um questionamento a respeito do determinismo. Nessa crônica, é
feito o seguinte comentário acerca da proposta de votação da constituinte que definiria o
modo como o país seria governado: “a assembleia dos quinhentos, longe de ser o ovo de
Colombo, parece ser um simples ovo de Convenção Nacional” (1996, 58). As notas de
Gledson possibilitam a compreensão desse trecho: “Convenção Nacional” é a tradução
de Convention Nacionale, modelo de governo da França em 1872, época de deposição
do rei e do Terror. Sendo assim, há uma comparação implícita entre esse episódio
francês e o momento político brasileiro, também marcado pela saída do rei e por um
período de terror.
O malabarismo de mestre de capoeira é identificado, porém, na dúvida gerada no
leitor logo depois de fazer essa afirmação, quando salienta o seguinte: “agora, se o ovo
traz dentro de si uma águia ou um peru, é o que não sei” (1996, 58). Diante dessa
perspectiva, percebemos que o cronista não deixa de relacionar o caso brasileiro ao
francês, mas, ao mesmo tempo, fecha o assunto alegando não saber o que será gerado,
livrando-se, assim, de julgamentos que possam identificar claramente seu
posicionamento e talvez criticá-lo. Desse modo, a referência metafórica ao ovo, “em vez
de anular o alfinete, o amplia. Se o alfinete fere o terror florianista, a ginga fere mais
longe: cutuca o determinismo em que se fundava o culto da ciência e o otimismo do
progresso” (Lima: 1998, 186).
Esse mecanismo evidencia, portanto, o tom reflexivo da crônica, que de início
comporta uma crítica passível de reflexão e, em seguida, gera uma dúvida que também
demanda um leitor que pense sobre o tema discutido. Assim, entendemos que Machado
de Assis, ao contrário do que acreditava boa parte da crítica, era altamente político, já
que suas crônicas abordavam o tema mesmo em momentos em que essa discussão era
praticamente abolida, tendo em vista a censura a que o jornal estava submetido.
50
Sua relação com temas políticos e sociais se expandia à esfera nacional e à
internacional, mas muitas vezes se dedicava à própria cidade onde vivia, revelando a
grande associação da crônica ao universo urbano. Como Machado viveu a época de
modernização do Rio de Janeiro, influenciada pela cultura das metrópoles francesas, é
comum encontrarmos em suas publicações todo esse processo que visava a construir
uma cidade mais civilizada e, paralelamente, menos inclusiva.
2.4. A urbanidade na crônica de Machado de Assis
Machado de Assis passou toda a sua vida no Rio de Janeiro, de onde raramente
saiu. Nasceu em 1839 no Morro do Livramento e, ao longo dos anos, residiu no Centro,
nas proximidades do Largo do Machado, e no Cosme Velho. Essa realidade
naturalmente é transferida para a crônica e, curiosamente, também para sua obra
ficcional.
Nessa paisagem urbana tão presente em suas produções, destaca-se a atenção
especial atribuída à rua do Ouvidor. Localizada ali, a livraria Garnier, onde vez ou outra
conversava com José de Alencar e outros letrados da época, “era um ponto de
conversação e de encontro”. A rua, por extensão, acabava sendo o resumo do Rio, tal
como afirma o narrador machadiano do conto “Tempo de crise”:
A rua do Ouvidor resume o Rio de Janeiro. A certas horas do dia, pode a
fúria celeste destruir a cidade; se conservar a rua do Ouvidor, conserva Noé,
a família e o mais. Uma cidade é um corpo de pedra com um rosto. O rosto
da cidade fluminense é esta rua, rosto eloquente que exprime todos os
sentimentos e todas as ideias.
Percebemos a relevância dessa rua para o autor ao notarmos que, quando não
discorre propriamente sobre ela, como faz no trecho acima, a seleciona como cenário
não só de suas crônicas, mas também de outros gêneros. Pelo fato de a crônica ter
marcadamente uma relação com o real, ainda que reconheçamos nela um flerte com o
ficcional, é compreensível que o Rio de Janeiro seja mesmo o pano de fundo principal
dessa produção textual. No entanto, é comum que a cidade seja o cenário mais
explorado também em sua ficção.
51
Já em seu primeiro romance é feita alusão à Ouvidor, confirmando seu
reconhecimento como a rua que abriga o movimento da cidade, onde são descobertas as
notícias e contados os boatos. Dessa forma, é sobretudo na rua do Ouvidor que a vida
acontece no Rio de Janeiro. É lá que as informações são dadas, para só então serem
propagadas e percorrerem os demais cantos da cidade. Em Ressurreição, quando fica
decidido o casamento entre Félix e Lívia, o irmão da noiva se encarrega de divulgar a
notícia:
A notícia foi referida por ele na rua do Ouvidor, esquina da rua Direita
[hoje, Primeiro de Março]. Daí a dez minutos chegara à rua da Quitanda.
Tão depressa correu que um quarto de hora depois era assunto de conversa
na esquina da rua dos Ourives. Uma hora bastou para percorrer toda a
extensão da nossa principal via pública. Dali espalhou-se em toda a cidade
(Assis: 2007, 105).
Nessa passagem o narrador revela exatamente como corre a notícia na cidade: a
partir da Ouvidor. Depois de comentada nessa rua, é lançada às ruas mais próximas, até
chegar a todas as outras regiões do Rio. Diante dessa realidade, transmitida nesse caso
por um episódio ficcional, temos a noção da importância da Ouvidor para Machado de
Assis, o que, aliás, não era uma exclusividade sua, uma vez que outros escritores
também a exaltavam, a exemplo de Joaquim Manuel de Macedo, que escreveu
Memórias da Rua do Ouvidor, afirmando, já de início, que ela era “a mais passeada e
concorrida, e mais leviana, indiscreta, bisbilhoteira, esbanjadora, fútil, noveleira,
poliglota e enciclopédica de todas as ruas da cidade do Rio de Janeiro” (2002, 19).
Sabemos, então, que era basicamente unânime a opinião sobre a Ouvidor ser a
principal via da cidade, mas ainda assim é interessante a frequente abordagem que
Machado de Assis faz dela, e das demais ruas do Rio, em sua obra. É nas crônicas,
porém, que identificamos não só a presença de espaços cariocas, mas sobretudo
comentários a respeito desses lugares, das modificações ocorridas com o tempo e com o
novo olhar lançado para a civilização urbana.
A influência que o folhetim sofreu da imprensa francesa não foi um caso isolado
ocorrido somente para que houvesse o desenvolvimento da imprensa brasileira. Naquele
período, os teatros, cafés, bulevares e todo o modo de vida parisiense eram modelo de
cultura e civilização a ser seguido. Essa concepção desencadeou uma série de medidas
52
que visavam a um processo de higienização e promoviam a eliminação ou o
mascaramento dos setores mais pobres da sociedade. As reformas implantadas eram
feitas com o objetivo de embelezar a cidade e tentar imitar o progresso das metrópoles
francesas. Com base nesse pensamento, o maior cortiço do Rio de Janeiro foi derrubado
no início de 1893 e se tornou matéria da crônica de Machado no dia 29 de janeiro desse
ano:
Gosto deste homem pequeno e magro chamado Barata Ribeiro, prefeito
municipal, todo vontade, todo ação, que não perde o tempo a ver correr as
águas do Eufrates. Como Josué, acaba de pôr abaixo as muralhas de Jericó,
vulgo Cabeça de Porco. Chamou as tropas, segundo as ordens de Javé;
durante os seis dias da escritura, deu volta à cidade e depois mandou tocar
as trombetas. Tudo ruiu, e, para mais justeza bíblica, até carneiros saíram de
dentro da Cabeça de Porco, tal qual da outra Jericó saíram bois e jumentos.
A diferença é que estes foram passados a fio de espada. Os carneiros não só
conservaram a vida mas receberam ontem algumas ações de sociedades
anônimas (1996, 186-8; grifos do autor).
Como podemos perceber, inicialmente o leitor tem a sensação de que o cronista
em alguma medida aprova a atitude do prefeito, já que começa o texto dizendo gostar
“deste homem pequeno e magro chamado Barata Ribeiro”. Entretanto, logo depois faz
um comentário instigante sobre a vantagem que uma ou mais empresas teriam com o
desabamento do cortiço. Ao estabelecer uma comparação – valendo-se de imagens
bíblicas – entre os carneiros que saíram do cortiço e os bois e jumentos que saíram da
cidade de Jericó, afirma que, enquanto estes foram mortos, aqueles seriam aproveitados
para gerar lucro à Empresa de Melhoramentos do Brasil, como indica Gledson (1996)
em suas notas explicativas.
Para encerrar a discussão, Machado de Assis mais uma vez recorre à
comparação desse episódio com o bíblico, comentando que no desabamento do Cabeça
de Porco não havia casa de mulher para salvar, diferentemente do que aconteceu em
Jericó, onde a dona de uma das casas acolheu mensageiros de Josué, atitude que
garantiu a permanência de sua moradia. Não existindo casa para preservar nesse
processo de demolição do cortiço,
53
tudo pereceu portanto, e foi bom que perecesse. Lá estavam para fazer
cumprir a lei a autoridade policial, a autoridade sanitária, a força pública,
cidadãos de boa vontade, e cá fora é preciso que esteja aquele apoio moral,
que dá a opinião pública aos varões provadamente fortes (1996, 188).
Mais uma vez, há a dúbia interpretação sobre o posicionamento do escritor em
relação ao ocorrido, outro fato que exemplifica o “malabarismo de mestre de capoeira”
definido por Luiz Costa Lima. Ao mesmo tempo que sugere concordar com a ação da
prefeitura porque a lei deve ser cumprida e ele tem de fazer parte do “apoio moral que
dá a opinião pública”, o cronista aparenta tratar esse apoio como uma obrigação, algo
que “é preciso” existir; além disso, deixa uma sugestiva ironia ao se referir às
autoridades como “varões provadamente fortes”.
Esse recurso irônico revela uma estratégia de criticar discretamente aquilo que o
jornal em que a crônica estava sendo publicada não criticou. Afinal, quando houve a
destruição do Cabeça de Porco, a Gazeta de Notícias acompanhou o acontecimento sem
demonstrar qualquer opinião contrária à do prefeito, que foi acolhida e também
defendida pela opinião pública. Desse modo, é evidente que para Machado de Assis,
atuante em uma imprensa que aprovava a ação, existia a dificuldade de expressar um
pensamento na contramão dos periódicos.
Tanto é assim que, não podendo se estender na discussão do tema, manifesta
certo alívio, acompanhado de constrangimento, por não ter mais o que comentar a
respeito disso: “Tudo pereceu portanto, e foi bom que perecesse”. É possível que, nesse
caso, o cronista, em vez de estar ignorando o assunto, na verdade esteja lamentando a
forma como se deu todo o processo – famílias foram retiradas do local implorando às
autoridades que as deixassem ficar porque não tinham onde morar.
Vemos ainda que existe uma crítica relacionada a essa medida da prefeitura
depois que decide dar uma explicação, também irônica, para o motivo de ter recorrido à
Bíblia:
Não me condenem as reminiscências de Jericó. Foram os lindos olhos de
uma judia que me meteram na cabeça os passos da escritura. Eles é que me
fizeram ler no livro do Êxodo a condenação das imagens, lei que eles
entendem mal, por serem judeus, mas que os olhos cristãos entendem pelo
único sentido verdadeiro (1996, 188).
54
Na introdução de A Semana, Gledson chama a atenção para esse trecho,
deduzindo que Machado esteja atacando a imprensa e, por extensão, grande parte de
seus leitores, que, “tomando o símbolo pela realidade” (1996, 25), se mostram
satisfeitos com o ocorrido, em vez de buscar resoluções que de fato contribuam para um
projeto de cidade que não seja excludente. Sabendo que a passagem bíblica a que o
cronista se refere diz respeito à condenação que Deus faz das imagens, recomendando
que não nos curvemos diante de qualquer imagem de escultura do que há no céu, na
terra ou nas águas, entendemos assim que tanto a imprensa como os leitores em geral se
contentavam com a representação de uma realidade (a destruição do cortiço
representava um passo para uma nova civilização) e não buscavam verdadeira
alternativa de mudança urbana (uma alternativa que não eliminasse habitantes em nome
do progresso).
A partir dessa perspectiva, constatamos que muitas vezes a crônica de Machado
de Assis vai além da simples assimilação e da mera referencialidade, exigindo um
“leitor atento, verdadeiramente ruminante” (1982, 145), parecido com o de Esaú e Jacó,
que estabelece relações, reflete sobre elas e identifica os possíveis caminhos de
interpretação do texto. Reconhecemos, nesse sentido, que, se a passagem citada fosse
lida “ao correr dos olhos” – relembrando José de Alencar –, possivelmente essa crítica à
imprensa e aos leitores não seria identificada com precisão.
Com base no registro da destruição do maior cortiço da cidade e nos sucintos
comentários acerca do assunto, é nítido que o processo de modernização urbana,
calcado em um padrão europeu, de alguma maneira incomoda o cronista Machado de
Assis. Naturalmente, a série “A Semana” aborda bastante o contraste entre os aspectos
tradicionais da cidade e as recentes características modernas, que visam transformar o
Rio de Janeiro. Essa seção da Gazeta de Notícias, portanto, recorre às ruas cariocas
talvez com mais intensidade que as demais seções publicadas pelo autor em outros
jornais.
Mais adiante, nessa mesma crônica de 29 de janeiro de 1893, entra em cena a rua
do Ouvidor, que, como já ressaltamos, é presença frequente não só no texto jornalístico
do escritor: “Fora com estes sapatos de Israel. Calcemo-nos à maneira da Rua do
Ouvidor, que pisamos, onde a vida passa um burburinho de todos os dias e de cada hora.
Chovem assuntos modernos” (1996, 190). Nesse trecho há a relação direta da Ouvidor
com a renovação urbana, uma vez que é nela que chovem assuntos modernos.
55
A influência francesa sobre a cultura da cidade é vista até mesmo no Carnaval,
fato comentado por Machado de Assis em 12 de fevereiro de 1893:
Esta gente vai sair três dias à rua com o furor que traz toda a restauração.
Convidada a divertir-se no inverno, preferiu o verão, não por ser melhor,
mas por ser a própria quadra antiga, a do costume, a do calendário, a da
tradição, a de Roma, a de Veneza, a de Paris [...].
Os meus patrícios iam ter um bom carnaval – velha festa, que está a fazer
quarenta anos, se já não os fez. Nasceu um pouco por decreto, para dar cabo
do entrudo, costume velho, datado da Colônia e vindo da metrópole (1996,
195).
Sendo assim, estava no momento de eliminar o entrudo, “costume velho”, e
modernizar a festa de acordo com a tradição parisiense. Evidentemente o plano não deu
certo, pois a resistência cultural, ainda que sob forte discriminação, manteve suas
manifestações populares ligadas à matriz africana. Talvez relacionada à extensão dos
bulevares, no carnaval a rua do Ouvidor também abarcava uma concentração
significativa de pessoas. Em A subversão pelo riso, Rachel Soihet salienta que
para ali corriam pessoas de todos os cantos da cidade. Uns alugavam
janelas, outros ficavam na rua tentando abrir passagem em meio às pessoas,
divertindo-se a lançar água – apesar das proibições – e, mais tarde,
punhados de confete ou lança-perfume um nos outros (2008, 63).
Percebemos, então, que motivo não falta para Machado fazer tanta alusão à rua
do Ouvidor, já que era realmente nela que a cidade respirava, fosse no cotidiano ou nos
subversivos dias carnavalescos. Considerando que sua crônica aborda frequentemente
espaços do Rio de Janeiro – ruas, livrarias, praças, teatros, entre outros –, constatamos
que o cenário carioca e, consequentemente, a análise comentada do progresso e dos
problemas que ele implica proporcionam ao leitor, mais do que mera referência
espacial, uma experiência urbana ligada à vida do escritor.
Assim, no momento em que convive com um texto que mescla recordação e
recriação própria do imaginário, reconhecendo características e identificando detalhes
de uma experiência urbana contada pelo cronista, o leitor deixa de ser espectador de um
56
cenário e passa a ter a sensação de ser personagem dessa vivência na cidade. Tendo em
vista que o espaço urbano não é o principal elemento da crônica, ao menos podemos
afirmar que, além de situar o leitor, ele garante o prazer do texto e certamente é um
instrumento relevante na composição do texto jornalístico. Segundo John Gledson,
seria um exagero dizer que o Rio de Janeiro era “protagonista” em sua
ficção, mas por certo é um pano de fundo onipresente, e um conhecimento
mais ou menos detalhado da geografia física e [sobretudo] social da cidade
dá uma compreensão melhor da obra e, em consequência, um prazer extra
(2006, 347).
Entendemos, com base nesse pensamento, que a urbanidade em Machado de
Assis é um tema que não pode ser ignorado no estudo de sua crônica, uma vez que é
bastante explorado não só como cenário, mas também como assunto semanal a ser
comentado. A título de curiosidade, julgamos interessante demonstrar, por meio de um
relato de Manuel Bonfim relembrado por John Gledson, que os impactos da
modernização urbana preocupavam Machado a ponto de lhe causarem tristeza:
Saindo certa tarde da Garnier, em companhia de Machado de Assis, ante a
multidão suarenta e apressada que desfilava pela rua do Ouvidor, o
romancista, vendo aquela infinidade de homens a se cruzarem sem trocar
um olhar ou um cumprimento, aquela rua do Ouvidor tão diferente da que
ele conhecera, dissera, sacudindo a cabeça com tristeza: “Festa de
estalagem, todos dançam e ninguém se conhece” (1996, 358).
Compreendendo a crônica como um exercício do cotidiano e tendo o
conhecimento de que o dia a dia de Machado de Assis se passa na cidade do Rio de
Janeiro, fica fácil perceber que o escritor acompanha as transformações sociais e esboça
suas opiniões a respeito. É acima de tudo a frieza e a eliminação do contato direto com o
outro, a falta de troca de olhar ou cumprimento, que motivam sua lamentação. Por ter
experimentado o tempo em que na Ouvidor tudo acontecia, principalmente a conversa,
vivenciar depois essa rua sem o movimento acolhedor que antes possuía indica que, em
suas crônicas, a urbanidade carioca está diretamente associada à relação das pessoas
com a cidade e com outros cidadãos.
57
3
A crônica como gênero literário
Conforme foi apresentado no capítulo anterior, as crônicas do início da série “A
Semana” são muito marcadas pelo tema da cidade em transformação, abordando um Rio
de Janeiro que começou a se modificar no século XIX com base na influência cultural
das metrópoles francesas. A esse registro dos acontecimentos muitas vezes é somada
alguma reflexão, de modo que o fato é utilizado como pretexto para um
questionamento.
Além disso, por vezes a crônica de Machado de Assis extrapola os limites do
real, mostrando que é possível que a ficção também seja instrumento de criação de um
texto jornalístico. Nesse caso, o termo “crônica” está claramente dissociado de seu
sentido inicial, o de relato histórico. Apesar de servir como registro de uma época, o
texto se desconecta da realidade à medida que ficcionaliza um acontecimento.
De acordo com Jorge de Sá, “a crônica oscila entre o visto e o imaginado”
(2007, 71), o que significa que em geral não é possível identificar o que é registro e o
que é recriação do real, uma vez que o autor escreve subjetivamente. Nesse sentido, o
imaginário do cronista é desenvolvido junto àquilo que vivenciou, aproximando o
gênero em questão de outro, o conto.
Por outro lado, existe a possibilidade de criar um texto a partir do que revela
substancialmente o imaginário do escritor. Dessa forma, identificamos por vezes sem
dificuldade que o acontecimento relatado não aconteceu, mas foi desenvolvido por meio
da capacidade de ficcionalizar, que, como defende Iser (2013), é facultada a toda e
qualquer pessoa.
Para verificar como ocorre essa identificação do imaginário, recorremos à
análise da publicação de 16 de outubro de 1892, que começa com a alusão à
inauguração dos bondes elétricos:
Não tendo assistido à inauguração dos bondes elétricos, deixei de falar
neles. Nem sequer entrei em algum, mais tarde, para receber as impressões
da nova tração e contá-las. Daí o meu silêncio da outra semana. Anteontem,
porém, indo pela praia da Lapa, em um bonde comum, encontrei um dos
elétricos, que descia. Era o primeiro que estes meus olhos viam andar.
58
Para não mentir, direi que o que me impressionou, antes da eletricidade, foi
o gesto do cocheiro. Os olhos do homem passavam por cima da gente que ia
no meu bonde, com um ar de superioridade. Posto não fosse feio, não eram
as prendas físicas que lhe davam aquele aspecto. Sentia-se nele a convicção
de que inventara não só o bonde elétrico, mas a própria eletricidade. Não é
meu ofício censurar essas meias glórias, ou glórias de empréstimo, como lhe
queiram chamar espíritos vadios. As glórias de empréstimo, se não valem
tanto como as de plena propriedade, merecem sempre algumas mostras de
simpatia. Para que arrancar um homem a essa agradável sensação? Que
tenho para lhe dar em troca?
Em seguida, admirei a marcha serena do bonde, deslizando como os barcos
dos poetas, ao sopro da brisa invisível e amiga. Mas, como íamos em
sentido contrário, não tardou que nos perdêssemos de vista, dobrando ele
para o Largo da Lapa e Rua do Passeio, e entrando eu na Rua do Catete.
Nem por isso o perdi de memória. A gente do meu bonde ia subindo aqui e
ali, outra gente entrava adiante e eu pensava no bonde elétrico. Assim fomos
seguindo; até que, perto do fim da linha e já noite, éramos só três pessoas, o
condutor, o cocheiro e eu. Os dois cochilavam, eu pensava.
De repente ouvi vozes estranhas; pareceu-me que eram os burros que
conversavam, inclinei-me [ia no banco da frente]; eram eles mesmos (1996,
135).
Ratificamos, já no início da crônica, o registro do processo de modernização
pelo qual a cidade passava nesse momento. A novidade do bonde elétrico impressionava
os habitantes e, sendo Machado um deles, naturalmente o fato também lhe despertava a
atenção. Ainda assim, percebemos que, mais do que falar apenas sobre a eletricidade, o
autor enfatiza uma característica humana proporcionada por seu uso: o ar de
superioridade, aqui percebido no cocheiro.
Nesse caso, o cronista problematiza uma questão a partir de sua própria relação
com o outro. Evidentemente, essa superioridade de quem conduzia agora o bonde
elétrico está atrelada ao pensamento de que o novo deveria ser valorizado, em
detrimento do tradicional. Muitos enxergavam nas metrópoles francesas a superioridade
da modernização. Foi essa concepção, por exemplo, que levou à destruição do cortiço
Cabeça de Porco, que nada tinha de moderno. As reformas urbanas, nesse sentido, eram
59
feitas com a finalidade de construir uma cidade sofisticada e, consequentemente,
discriminatória, uma vez que renegava a classe e a cultura populares e tudo o que era
considerado, a respeito de civilização, modernamente inferior.
O destaque para o ar de superioridade do cocheiro, portanto, é uma maneira de
demonstrar o que acontecia naquele período e, paralelamente, como se comportavam as
pessoas diante disso tudo. Ao mesmo tempo, porém, o cronista pondera: “Para que
arrancar um homem a essa agradável sensação? Que tenho para lhe dar em troca?”.
Reconhece que, embora a atitude daquele homem o impressione negativamente, não há
por que interferir na sensação que o embala.
Após essa divagação, retorna a comentar o novo transporte, que agora conta com
uma “marcha serena”, diferentemente do antigo. Com o afastamento do bonde elétrico,
o autor introduz na crônica um episódio sem dúvida fictício, que é o diálogo travado por
dois burros. Segundo Wolgang Iser,
a relação dupla da ficção com a realidade deveria ser substituída por uma
relação tríplice. Como o texto ficcional contém elementos do real sem que
se esgote na descrição deste real, seu componente fictício não tem o caráter
de uma finalidade em si mesma, mas é, enquanto fingido, a preparação de
um imaginário (2013, 31).
Nesse sentido, o crítico aponta para a insuficiência da oposição entre realidade e
ficção, sugerindo que a relação estabelecida entre dois aparentes pólos seja substituída
por outra que comporte três elementos: o real, o fictício e o imaginário. Na primeira, há
um processo eliminatório no qual a ficção é identificada pela exclusão daquilo que
define a realidade. No entanto, tal processo não abrange a complexidade dos textos
literários, que comportam “algo que, embora existente, não possui caráter de realidade”
(2013, 32). Por isso se faz necessária a substituição da interpretação opositiva pela
tríade composta pelo real, pelo fictício e pelo imaginário.
3.1. A ficção na crônica
De acordo com a perspectiva de Iser, entendemos que a encenação da conversa
entre dois burros constitui o imaginário do escritor diante de uma cena real que, ao
mesmo tempo, está sendo recriada no momento da escrita. Desse modo, “se o fingir não
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pode ser deduzido da realidade repetida, nele emerge um imaginário que se relaciona
com a realidade retomada pelo texto” (Iser: 2013, 32).
Esse imaginário configura o fio condutor da crônica, o mote para sua
composição. É a partir dele que o autor, utilizando os bondes elétricos como tema inicial
do texto, desenvolve uma reflexão acerca da justiça, possibilitada pelo olhar de um
animal. Para entendê-la, reproduzimos o diálogo relatado – ou imaginado – pelo
cronista, que o apresenta de forma irônica:
Como eu conheço um pouco a língua dos Houyhnhnms, pelo que dela conta
o famoso Gulliver, não me foi difícil apanhar o diálogo. Bem sei que cavalo
não é burro; mas reconheci que a língua era a mesma. O burro fala menos,
decerto; é talvez o trapista daquela grande divisão animal, mas fala. Fiquei
inclinado e escutei:
– Tens e não tens razão, respondia o da direita ao da esquerda.
O da esquerda:
– Desde que a tração elétrica se estenda a todos os bondes, estamos livres,
parece claro.
– Claro, parece; mas entre parecer e ser, a diferença é grande. Tu não
conheces a história da nossa espécie, colega; ignoras a vida dos burros desde
o começo do mundo. Tu nem refletes que, tendo o salvador dos homens
nascido entre nós, honrando a nossa humildade com a sua, nem no dia de
Natal escapamos da pancadaria cristã. Quem nos poupa no dia vinga-se no
dia seguinte.
– Que tem isso com a liberdade?
– Vejo, redarguiu melancolicamente o burro da direita, vejo que há muito de
homem nessa cabeça.
– Como assim? bradou o burro da esquerda estacando o passo. O cocheiro,
entre dois cochilos, juntou as rédeas e golpeou a parelha.
– Sentiste o golpe? perguntou o animal da direita. Fica sabendo que, quando
os bondes entraram nesta cidade, vieram com a regra de se não empregar
chicote. Espanto universal dos cocheiros: onde é que se viu burro andar sem
chicote? Todos os burros desse tempo entoaram cânticos de alegria e
abençoaram a ideia dos trilhos, sobre os quais os carros deslizariam
naturalmente. Não conheciam o homem.
61
– Sim, o homem imaginou um chicote, juntando as duas pontas das rédeas.
Sei também que, em certos casos, usa um galho de árvore ou uma vara de
marmeleiro.
– Justamente. Aqui acho razão ao homem. Burro magro não tem força; mas
levando pancada, puxa. Sabes o que a diretoria mandou dizer ao antigo
gerente Shannon? Mandou isto: “Engorde os burros, dê-lhes de comer,
muito capim, muito feno, traga-os fartos, para que eles se afeiçoem ao
serviço; oportunamente mudaremos de política, all right!”
– Disso não me queixo eu. Sou de poucos comeres; e quando menos
trabalho, é quando estou repleto. Mas que tem capim com a nossa liberdade,
depois do bonde elétrico?
– O bonde elétrico apenas nos fará mudar de senhor.
– De que modo?
– Nós somos bens da companhia. Quando tudo andar por arames, não somos
mais precisos, vendem-nos. Passamos naturalmente às carroças.
– Pela burra de Balaão! exclamou o burro da esquerda. Nenhuma
aposentadoria? nenhum prêmio? nenhum sinal de gratificação? Oh! mas
onde está a justiça deste mundo?
– Passaremos às carroças – continuou o outro pacificamente – onde a nossa
vida será um pouco melhor; não que nos falte pancada, mas o dono de um
só burro sabe mais o que ele lhe custou. Um dia, a velhice, a lazeira,
qualquer coisa que nos torne incapaz, restituir-nos-á a liberdade...
– Enfim!
– Ficaremos soltos na rua, por pouco tempo, arrancando alguma erva que aí
deixem crescer para recreio da vista. Mas que valem duas dentadas de erva,
que nem sempre é viçosa? Enfraqueceremos; a idade ou a lazeira ir-nos-á
matando, até que, para usar esta metáfora humana – esticaremos a canela.
Então teremos a liberdade de apodrecer. Ao fim de três dias, a vizinhança
começa a notar que o burro cheira mal; conversação e queixumes. No quarto
dia, um vizinho, mais atrevido, corre aos jornais, conta o fato e pede uma
reclamação. No quinto dia sai a reclamação impressa. No sexto dia, aparece
um agente, verifica a exatidão da notícia; no sétimo, chega uma carroça,
puxada por outro burro, e leva o cadáver.
Seguiu-se uma pausa.
62
– Tu és lúgubre, disse o burro da esquerda. Não conheces a língua da
esperança.
– Pode ser, meu colega; mas a esperança é própria das espécies fracas, como
o homem e o gafanhoto; o burro distingue-se pela fortaleza sem par. A
nossa raça é essencialmente filosófica. Ao homem que anda sobre dois pés,
e provavelmente à águia, que voa alto, cabe a ciência da astronomia. Nós
nunca seremos astrônomos; mas a filosofia é nossa. Todas as tentativas
humanas a este respeito são perfeitas quimeras. Cada século...
O freio cortou a frase ao burro, porque o cocheiro encurtou as rédeas, e
travou o carro. Tínhamos chegado ao ponto terminal. Desci e fui mirar os
dois interlocutores. Não podia crer que fossem eles mesmos. Entretanto, o
cocheiro e o condutor cuidaram de desatrelar a parelha para levá-la ao outro
lado do carro; aproveitei a ocasião e murmurei baixinho, entre os dois
burros:
– Houyhnhnms!
– Foi um choque elétrico. Ambos deram um estremeção, levantaram as
patas e perguntaram-me cheios de entusiasmo:
– Que homem és tu, que sabes a nossa língua?
Mas o cocheiro, dando-lhes de rijo uma lambada, bradou para mim, que lhe
não espantasse os animais. Parece que a lambada deve ser em mim, se era
eu que espantava os animais; mas como dizia o burro da esquerda, ainda
agora: – Onde está a justiça deste mundo? (1996, 135-8).
Em verdade, a concepção revelada nesse diálogo tem relação com a Abolição
dos Escravos, decretada em 1888, portanto ainda recente em 1893. Não é difícil notar
em crônicas machadianas o questionamento da Lei Áurea, sem que isso manifeste
discordância, e sim certo cuidado com a efusão provocada por ela. No diálogo, notamos
semelhanças entre o burro e o escravo, sintetizadas sobretudo na frase “o bonde elétrico
apenas nos fará mudar de senhor”.
Nesse caso, a novidade da eletricidade se associa à da Abolição, ambas
marcando um momento de transformação em que, na prática, não se mudaria muito:
assim como os burros, os escravos, depois de libertados, não receberiam qualquer
assistência, o que provocaria outro modo de submissão para sobreviver, além da
dificuldade de inserção social decorrente do preconceito. O diálogo jocoso e
63
aparentemente despretensioso entre os animais, que forma uma espécie de fábula
filosófica, evidencia a alienação das pessoas que, iludidas com o fim da escravidão,
ignoram a relativização da mesma.
O que nos interessa, no entanto, é verificar a interação entre o real, o fictício e o
imaginário, a fim de perceber na composição da crônica a realidade repetida como signo
e o imaginário como efeito. A conversa entre os burros rompe o plano do real, sendo,
portanto, a criação de um episódio que, embora seja possível conceber como existente,
na verdade não existe. Nesse sentido, o leitor se vê diante de uma encenação que “pode
conceber o intangível” e “apresentá-lo na forma de simulacro” (2013, 23).
De acordo com Luiz Costa Lima, “na ficção, o material histórico entra para que
permita a revisão de seu significado, que adquire a possibilidade de se desdobrar em seu
próprio questionamento” (1989, 106). Ainda que a crônica não seja um texto
preponderantemente ficcional, dele se aproxima pelo objetivo de questionar
determinada realidade histórica. Enquanto o inatingível – representado pela conversa
entre dois animais – se apresenta na forma de simulacro, possibilita problematizar um
acontecimento e gerar reflexão a respeito do assunto abordado.
A maneira encontrada pelo autor de comentar o tema, talvez pelo
posicionamento da própria imprensa, é explorando sua imaginação, aqui imbricada com
a realidade vivenciada. Fugindo da objetividade e da referencialidade passíveis de
prejudicar a relação com as autoridades do jornal, o cronista faz com que a recriação da
cena e o investimento na subjetividade garantam a comicidade da crônica e, mais do que
isso, o caráter reflexivo proporcionado pelo humor irônico do cronista. Iser explica que,
quando a realidade repetida no fingir se transforma em signo, ocorre
forçosamente uma transgressão de sua determinação. O ato de fingir é,
portanto, uma transgressão de limites. Nisso se expressa sua aliança com o
imaginário. O imaginário é por nós experimentado antes de modo difuso,
informe, fluido e sem um objeto de referência, manifestando-se em
situações que, por serem inesperadas, parecem arbitrárias, situações que ou
se interrompem ou prosseguem noutras bem diversas (2013, 33).
Nesse sentido, a aparente arbitrariedade do imaginário provoca o inesperado no
texto, em alguma medida surpreendendo o leitor e apresentando, evidentemente, uma
novidade. Isso ocorre, por exemplo, quando o cronista relata ouvir os burros
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conversando: “De repente ouvi vozes estranhas; pareceu-me que eram os burros que
conversavam, inclinei-me [ia no banco da frente]; eram eles mesmos”.
Como explica ainda Iser, o ato de fingir e o imaginário se relacionam, posto que
não são a mesma coisa, de modo que o fingir almeja um objetivo e é esse objetivo que
permite uma configuração ao imaginário, fazendo com que ele seja conduzido do que é
difuso – projeções ligadas ao onírico – ao que é determinado. Logo, “no ato de fingir, o
imaginário ganha uma determinação que não lhe é própria e adquire, desse modo, um
atributo de realidade” (2013, 33). É como se o imaginário de alguma forma fizesse
sentido, em vez de se associar a um âmbito mais surrealista. A lucidez apresentada no
diálogo dos burros, por exemplo, possibilita a atribuição de realidade ao imaginário do
autor, de modo que o leitor acompanha a conversa com atenção e é convencido pelas
ideias ali debatidas.
De acordo com a perspectiva de Iser, o fictício se manifesta a partir da relação
da realidade com o imaginário. Entendemos, assim, que o fictício, na crônica aqui
selecionada, é o resultado da imbricação entre a abordagem do bonde elétrico como
tema (realidade) e o diálogo imaginado a partir de uma experiência vivenciada pelo
cronista (imaginário). É dessa forma que o fictício proporciona a “irrealização do real e
a realização do imaginário”.
Obviamente, nosso objetivo não é tentar demonstrar a crônica como um texto
predominantemente ficcional, como pode ser o romance, mas sim enfatizar que nela
pode haver atributos da ficção, diferentemente do que acontece com um texto
jornalístico dito objetivo, como são as reportagens. Assim, entendemos que é possível
estudar a crônica à luz da teoria literária a partir do momento em que o texto revela um
caráter ficcional.
3.2. A relação entre ficção e história
Sabendo que cabe à crônica um caráter ficcional geralmente extraído do
imaginário do autor, fica claro que o texto comporta uma relação entre ficção e história,
já evidenciada pela proximidade entre literatura e jornalismo, que, por sua vez, se revela
de imediato na figura do “narrador-repórter” designado por Jorge de Sá. Como vimos, a
crônica aqui analisada, referente ao dia 16 de outubro de 1892, é prova disso.
Desenvolvida ficcionalmente, não deixa de manifestar uma crítica à Abolição: “Pela
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burra de Balaão! Nenhuma aposentadoria? Nenhum prêmio? Nenhum sinal de
gratificação? Oh! Mas onde está a justiça desse mundo?”.
Nesse sentido, a crônica mescla os discursos ficcional e histórico e se diferencia
do conto e do romance talvez por estar mais próxima do registro do que da criação
(poiesis) em si. Sobre essa questão dos discursos, Luiz Costa Lima explica o seguinte:
Pensar numa caracterização exclusiva da literatura – diria melhor: do
discurso ficcional – que a separe absolutamente das outras formas
discursivas conduz ao fracasso analítico. A solução contrária, porém, não é
menos insuficiente: nada diferencia o discurso ficcional [...]. O discurso
ficcional constitui uma modalidade de discurso entre vários outros
discursos. O discurso se constitui na área intermediária entre a langue e a
parole: cada modalidade discursiva se distingue pelo uso de um protocolo
diferencial que, de sua parte, é motivado por uma aporia que o move [...]. Se
a revelação da “verdade” faz parte da aporia da maioria dos discursos –
desde o técnico até o científico, desde o cotidiano até o religioso –, o
discurso ficcional começa por se diferenciar porque não faz da “verdade”
sua aporia. Como dizia Philip Sidney já no século XVI, “o poeta nada
afirma, por isso não mente” (2010, 98; grifos do autor).
O próprio Machado de Assis, em crônica da série “A Semana”, apresenta essa
mesma ideia: “Nada afirmo, porque me falta a devida autoridade teológica; uso da
forma dubitativa” (1996, 76). Sendo assim, o autor relativiza uma possível verdade e
questiona em vez de fazer pura e simples afirmação. Seguindo a perspectiva de Costa
Lima, constatamos que a obra de Machado de Assis, incluindo suas crônicas, não tem a
verdade como aporia – ao menos como foco principal, no caso das crônicas –, já que o
narrador de seus contos e romances não é doutrinário, da mesma forma que o cronista é
muitas vezes reflexivo, em vez de categórico.
Tendo em vista que os demais discursos – histórico, científico, entre outros –
depositam na verdade todo o valor de sua manifestação, o discurso ficcional, que segue
na contramão dessa concepção, aposta naquilo que pode se afastar do real, ou da
“verdade”, e investe no que não é comprovável. No entanto, essa diferenciação não
necessariamente separa a ficção da história, pois é plenamente possível e até comum
66
que o discurso histórico seja explorado pelo ficcional, geralmente com o objetivo de
perspectivar o que foi documentado.
No romance, o narrador machadiano valoriza a perspectivação ao trabalhar a
harmonização dos contrários. A obra apresenta, simultaneamente, a consciência racional
do narrador irônico e a experiência emocional do personagem. Com base nessa
composição, Ronaldes de Melo e Souza salienta:
Em Machado, o narrador se compraz dos gestos e atos, assumindo todo o
gênero de caracteres, desempenhando diferentes papéis, articulando uma
alternância sistemática de perspectivas, modulando vários pontos de vista,
sempre recusando a inflexão inercial de se mobilizar na representação
doutrinária de um só papel, na adoção monológica de um ponto de vista
pretensamente normativo (2006, 15).
Transpondo essa lógica para a crônica, apesar das evidentes diferenças entre os
dois gêneros, notamos que o uso “da forma dubitativa” pelo cronista se assemelha ao
caráter do narrador que prefere o multiperspectivismo ao tom autoritário e limitador de
um único ponto de vista. Nesse sentido, o cronista Machado de Assis também é capaz
de apresentar ao leitor visões distintas de um mesmo episódio, apostando mais no
pensamento, muitas vezes filosófico, do que no julgamento de uma ideia.
Assim, conforme defende Costa Lima, não concebemos “a caracterização do
ficcional como algo que se ponha contra a história” (2010, 105). Um exemplo que
ratifica isso é o romance Esaú e Jacó, que explora o discurso histórico na composição
da obra ficcional. A ideia que movimenta o romance, entretanto, começa a ser
desenvolvida simplificadamente na crônica, como aponta John Gledson: “Quase no
princípio da série, em 15 de maio de 1892, aparece o primeiro de vários presságios de
Esaú e Jacó, onde este tema da cisão binária nas classes dominantes rege a estrutura do
romance” (1996, 17).
No capítulo “O mimetismo antagônico em Esaú e Jacó” do livro digital
Machado de Assis: urbano, cosmopolita e carioca (Velloso, 2016), demonstramos
brevemente essa relação entre a crônica e o romance a partir da integração da ficção
com a história. Para explicar como isso acontece, recorremos à crônica de 15 de maio de
1892, pois nela o cronista expressa certo desconforto com a mudança de governo,
alegando que a passagem da Monarquia para a República, no Brasil, não é
67
acompanhada de uma profunda reforma do modo de governar. A mudança de regime,
de acordo com essa perspectiva, não representa uma grande conquista porque a
oligarquia permaneceria no poder.
Essa crônica, também interpretada por Luiz Costa Lima para desenvolver o
conceito de “malabarismo de mestre de capoeira” explicado no capítulo anterior,
apresenta reflexões relacionadas à disfunção social da Abolição dos Escravos e da
República. É, em suma, um texto questionador de dois momentos que, aos olhos da
maioria da população, pareciam profunda e imediatamente transformadores. No início
da crônica, Machado de Assis já revela, com sua peculiar ironia, problemas posteriores
à assinatura da Lei Áurea:
Não há abertura de Congresso Nacional, não há festa de Treze de Maio, que
resista a uma adivinhação. A sessão legislativa era esperada com ânsia e
será acompanhada com interesse. A festa de Treze de Maio comemorava
uma página da história, uma grande, nobre e pacífica revolução, com este
pico de ser descoberta uma preta Ana ainda escrava, em uma casa de S.
Paulo. Após quatro anos de liberdade, é de se lhe tirar o chapéu. Epimênides
também dormiu por longuíssimos anos, e quando acordou já corria outra
moeda; mas dormia sem pancadas. A preta Ana dormiu na escravidão, não
sabendo até ontem que estava livre; mas como o sono da escravidão só se
prolonga com a dormideira do chicote, a preta Ana, para não acordar e saber
casualmente que a liberdade começara, bebia de quando em quando a
miraculosa poção (1996, 57).
Percebe-se nitidamente que o cronista denuncia a prática contínua da escravidão
mesmo depois de decretado seu fim. A rigor, o sistema escravocrata ainda permaneceria
por muito tempo, de maneira velada, como subterfúgio para os negros que,
ilusoriamente libertados, continuavam dependentes de seus senhores para sobreviver.
Ao valorizar a “adivinhação”, Machado de Assis revela o princípio adotado para
a composição da crônica, referente à ideia de surpresa ou de novidade, explicitado na
frase “tudo é ovo”, que se repete ao longo do texto. Curiosamente, no último parágrafo
há um trecho que diz respeito não só ao tema tratado na crônica, mas também a uma
característica própria de sua obra ficcional. Discorrendo sobre as opiniões que circulam
sobre a Câmara, de que nesse espaço há muito barulho, o cronista comenta: “Tanto
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melhor, eu nunca amei a concórdia. Concórdia e pântano é a mesma fonte de miasmas e
mortes. Um grego dá a guerra como o ovo da vida” (1996, 59).
Referindo-se ao grego Empédocles, que voltará a ser evocado com o mesmo
propósito em crônica de 30 de julho de 1893 para corroborar que “a paz tem benefícios,
não contesto; mas a guerra – aqui cito Empédocles – é a mãe de todas as coisas” (1996,
275), o cronista Machado, mais uma vez, garante em sua escrita o apreço pela
valorização de pontos de vista distintos e conflitantes. Seguindo essa mesma linha de
raciocínio, Ronaldes de Melo e Souza demonstra que é no romance que tal
complexidade é aprofundada e, consequentemente, responsável pela modernização e
inovação do gênero:
O narrador que atua como fingidor e desempenha a função do ator que se
reveste de múltiplas máscaras confuta o estatuto tradicional do autor que
submete o leitor ao domínio imperial da sua autoridade [...]. O caráter
cambiante do narrador machadiano não tem nada de volúvel. O narrador que
finge múltiplas vozes ou que realiza a mimesis de várias atitudes constitui o
exemplo extremo e sério da genuína representação da alteridade.
Caracterizado como fingidor, cumpre a sublime função dramática de
transmissor credenciado dos sentidos culturalmente consentidos pelos
diversos estratos sociais da comunidade histórica. Não apresenta nenhuma
ideologia particular. Pelo contrário, representa a disputa das ideologias em
luta (2006, 15-6).
Dessa maneira, percebemos que a inovação do narrador do romance e do conto
machadianos encontra indícios de seu desenvolvimento no pensamento que, muito
antes, o autor comentava vez ou outra na crônica, já que nesta manifesta desprezo pela
concórdia e, ao sustentar a concepção de a guerra ser o ovo da vida, demonstra que a
vida nasce dos contrários, portanto da “disputa das ideologias em luta”.
A confirmação de que “tudo é ovo”, indicando que “o partido operário pode ser
o ovo de um bom partido conservador” (1996, 58), é, assim, uma antecipação da
temática política abordada anos depois em Esaú e Jacó. Curiosamente, até mesmo a
temática amorosa, que corresponde mimética e antagonicamente à política, é em alguma
medida citada nessa crônica, quando o autor se refere a dois rapazes, fato que nos
remete vagamente aos personagens Pedro e Paulo: “Tudo é ovo, amigo. A carta que
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estás escrevendo à tua namorada pode ser o ovo de dois galhardos rapazes, que antes de
1920 estejam secretários de legação. Pode ser também o ovo de quatro sopapos que te
façam mudar de rumo. Tudo é ovo” (1996, 59).
A ideia comentada na crônica, de que há a possibilidade de um partido operário
resultar em um partido conservador, aparece também no romance: “Nada se mudaria; o
regímen, sim, era possível, mas também se muda de roupa sem trocar de pele” (Assis:
1982, 168). Além disso, em Esaú e Jacó o personagem Batista se recorda “do Visconde
de Albuquerque ou de outro senador que dizia em discurso não haver nada mais
parecido com um conservador do que um liberal, e vice-versa” (Faoro: 1988, 78).
Diante dessa perspectiva, entendemos que a obra machadiana comporta uma
profunda relação entre ficção e história ou, ainda, entre literatura e sociedade. No que
diz respeito a Esaú e Jacó, corroboramos aquilo que apontou Ronaldes de Melo e
Souza:
Acrescentando a crítica da República em diversos textos, particularmente no
romance Esaú e Jacó, pode-se afirmar que, na visão machadiana, o
problema fundamental do Brasil não é a Monarquia nem a República, mas,
sim, a Oligarquia Absoluta. Este diagnóstico lúcido e atualíssimo é
verdadeiramente genial. Monárquico ou republicano, o poder de fato é
oligárquico (2006, 28).
Logo, percebemos que o olhar aguçado de Machado de Assis sobre tudo o que
acontecia no país – contrariando a crítica que o considerava homem alheio a seu tempo
– aponta para problematizações absolutamente necessárias. Nesse caso, o cronista,
sujeito das letras nacionais, se porta como um formador de opinião ou, em outras
palavras, provocador de reflexões sobre temas cruciais na sociedade. Valendo-se da
ironia, a crônica de 21 de agosto de 1892 termina exatamente com a abordagem dessa
mesma discussão sobre os governos monárquico e republicano, demonstrando mais uma
vez o incômodo referente à oligarquia:
Agora, como a opinião há de estar em alguma parte, desde que não esteja
nos eleitores, nem no chefe de Estado, é provável que passe ao único lugar
em que fica bem, nos corredores da Câmara, onde se planearão as quedas e
as subidas dos ministros – poucas semanas para tocar a todos –, e assim
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chegaremos a um bom governo oligárquico, sem excessos, nem afronta, e
natural, como as verdadeiras pérolas (1996, 109).
Com base nisso, compreendemos e endossamos a ideia machadiana de que,
independentemente de estar fazendo parte de uma Monarquia ou uma República, o
homem valoriza o poder acima de tudo, inclusive de seus próprios ideais. Na defesa
dessa concepção, o cronista indica a existência de um mimetismo que, apesar da
aparência dicotômica, mostra que ambos os lados têm a mesma finalidade, portanto são
iguais.
Ao aprofundar esse pensamento na ficção, o autor cria uma romance em que
dois irmãos, Pedro e Paulo, possuem ideologias distintas, mas curiosamente manifestam
atitudes iguais para atingirem seu objetivo, que são um e o mesmo: o poder, no enredo
político; e a mesma mulher, no enredo amoroso. Para entender a configuração de cada
um dos personagens, vale a explicação de Ronaldes de Melo e Souza, que para isso
utilizou a definição do “mimetismo antagônico”:
José Nunes de Oliveira Filho elucida o mimetismo antagônico de Pedro e
Paulo, apoiando-se no esquema conceptual do desejo mimético elaborado
por René Girard. O objeto da disputa constitui mero pretexto da rivalidade
dos irmãos gêmeos. Quando Pedro compra uma gravura de Luís XVI, Paulo
adquire uma gravura de Robespierre. Ao republicano Paulo se contrapõe o
monarquista Pedro. A falsa diferença dos gêmeos reduplica o domínio
indistinto da oligarquia brasileira nos períodos da Monarquia e da
República. O móvel recôndito das opções políticas se relaciona com a
vontade pessoal de poder, e não com as convicções ideológicas. Destruídas
as gravuras de Luís XVI e Robespierre, o motivo da luta de Pedro e Paulo se
desloca para a escolha de uma mesma mulher (Souza: 2006, 165).
Os dois enredos que compõem o romance – o político e o amoroso – seguem a
mesma lógica, explicitando que Pedro e Paulo, metaforicamente representando
Monarquia e República, na verdade são um e o mesmo. Enquanto no primeiro enredo a
vontade de poder se sobrepõe às convicções ideológicas de cada um e por isso os torna
iguais, no segundo a mulher pela qual os dois são apaixonados enxerga essa igualdade
no que aparentemente é diferente.
71
Evidenciada a disfunção estrutural e social do novo regime, já que o poder
oligárquico continua sendo dominante, o conflito político entre os personagens irmãos
se converte em amoroso quando passam a desejar Flora. Uma vez que Pedro e Paulo
foram identificados como sendo um só, ela se apaixona pelos dois e se vê incapaz de
decidir com qual ficará. É assim que começa a ter alucinações:
As duas vozes confundiam-se, de tão iguais que eram, e acabam sendo uma
só. Afinal, a imaginação fez dos dois moços uma pessoa única [...].
Ora, é de saber que, durante a comissão do pai, Flora ouviu mais de uma vez
as duas vozes que se fundiam na mesma voz e mesma criatura. E agora, na
casa de Botafogo, repetia-se o fenômeno. Quando ouvia os dois, sem os ver,
a imaginação acabava a fusão do ouvido pela da vista, e um só homem lhe
dizia palavras extraordinárias (Assis: 1982, 203).
Nesse sentido, a união dos duplos feita por Flora ao tornar Pedro e Paulo um só
se relaciona ao fato de, no Brasil, Monarquia e República serem também duplos que
possuem um desejo mimético. Além disso, a indecisão faz com que, no desfecho do
romance, Flora morra sem optar por um dos dois rapazes. Assim, a moça simboliza a
disfunção estrutural da sociedade, enquanto Pedro e Paulo simbolizam a farsa da
mudança do regime monárquico pelo republicano.
Sob a ótica machadiana, a análise desses sistemas políticos aparentemente
antagônicos permite interpretarmos que, ao governar do mesmo modo – diferenciando-
se apenas nos discursos e não na prática –, os dois regimes passam a ser um e o mesmo,
pois ambos estão entregues à oligarquia brasileira. É exatamente isso que ocorre com os
irmãos no enredo amoroso do romance, fenômeno elucidado pela visão de Flora.
É inegável que Esaú e Jacó foi impulsionado pela crônica da série “A Semana”,
que tratava não só da mesma temática, mas também do mesmo princípio de
composição, relativo à ideia de que “tudo é ovo”. Na crônica, a abordagem desse
pensamento foi feita de modo mais simples, como o próprio gênero exige, e no romance
pôde ser aprofundada e desdobrada em dois enredos correlatos.
Entendemos, assim, que Machado de Assis explora a ficção e a história na
crônica, dentro dos limites impostos pelo gênero, e também aborda o plano histórico no
desenvolvimento do ficcional, confirmando a concepção de que ficção e história não são
âmbitos completamente opostos. Nesse sentido, a crônica não se limita ao registro de
72
um episódio ou à documentação de uma realidade, pois não se esgota na realidade a que
se refere. Escrito de maneira subjetiva, o texto mistura o visto e o imaginado e, nesse
processo de invenção, recebe também um caráter fictício, que por sua vez se relaciona
ao literário.
3.3. A literariedade na crônica
A revelação da crônica como texto literário constitui um desafio porque, como
opina Luiz Costa Lima, “não há como caracterizar linguisticamente um texto como
literário”, de modo que “a literatura se define por um aspecto que o texto assume”
(2010, 146). Defendendo, tal como Iser, que “a raiz do ficcional se encontra sim na
admissão da cláusula condicional do ‘como se’, não sendo por isso mesmo exclusivo do
literário” (2010, 144), o crítico esboça algumas diferenças percebidas entre o ficcional e
o literário a partir da compreensão de que a literatura abarca uma expansividade
formada por gêneros ficcionais.
Nesse sentido, entendemos que, embora não seja simples identificar
objetivamente o literário – uma vez que este se relaciona a um aspecto assumido pelo
texto –, é possível concebê-lo como gênero ficcional, sabendo que a ele se associa o
caráter reflexivo do texto, como salienta Luiz Costa Lima:
Continuo a tomar o lírico como um gênero ficcional, mas seu fundamento é
um “como se” calado, que se desdobra na liberdade de conceber uma cena
reflexiva e não necessariamente evocativa ou muito menos de ordem
pragmática (2010, 147; grifo do autor).
Dessa forma, consideramos os textos de Machado de Assis em jornal também
como literários não só porque têm a capacidade de desenvolver reflexões, mas
sobretudo porque não se limitam à tentativa de repetir ou registrar a realidade,
demonstrando o trabalho com a escrita e a exploração de um estilo que naturalmente
amadureceria com o tempo.
Como afirma Antonio Candido, não é possível imaginar uma literatura feita por
grandes cronistas, mesmo porque a crônica nada tem a ver com grandeza. Sendo muito
próximo do cotidiano, dos fatos do dia a dia e das experiências humanas, é um texto
criado a partir das miudezas da vida, que, no entanto, a olhos atentos podem ser de
73
enorme importância. Diante dessa perspectiva, a crônica tem a capacidade de
desbanalizar o banal.
Apesar de não garantir a formação de uma grande literatura, o gênero tem seu
espaço no âmbito literário quando é produzido por um escritor que experimenta nela seu
estilo e explora as ideias com particularidade, embasamento e coerência. Sobre a relação
da crônica com a literatura, Afrânio Coutinho comenta:
A crônica será tanto mais literária quanto mais fugir às exigências do
espírito de reportagem, atingindo o melhor de sua realização formal quando
consegue fundir os supostos contrários – a literatura e o jornalismo – com
um teor autônomo pela força da personalidade do escritor refletida em seu
estilo e em suas ideias (1990, 301-2).
No que diz respeito à “força da personalidade do escritor”, um aspecto
interessante a ser ressaltado é a possibilidade de reconhecer o autor por meio do texto
escrito. Tal como ocorre muitas vezes na ficção, em que o modo de escrita de um conto
ou um romance, por exemplo, permite a identificação do autor em questão, também na
crônica é possível que essa identificação aconteça, vide as publicações em jornal de José
de Alencar e Machado de Assis. Como ambos têm uma personalidade singular, às vezes
conseguimos perceber de quem é a autoria de determinada crônica.
É inegável que na crônica, assim como ocorre na ficção, o escritor trabalhe e
exercite sua escrita com vistas à criação ou à afirmação de seu estilo. Sabemos, no
entanto, que a produção jornalística se submete a normas impostas pelos periódicos e
por seu próprio estatuto, enquanto os textos ficcionais dispõem de mais liberdade. Logo,
o estilo do cronista acaba sendo desenvolvido de maneira simples, assumindo um tom
mais informal e comunicativo, correspondente à conversa e ao diálogo corriqueiro.
Sendo assim, acaba se relacionando à linguagem utilizada no tempo em que o
texto se insere. Isso porque
a crônica deve empregar de preferência a linguagem da atualidade [...]. Sem
essa prática, a crônica deixaria de refletir o espírito da época, uma vez que a
língua corrente constitui a mais viva expressão da sociedade humana, no
tempo. A linguagem, e mais expressivamente a gíria social, é um tempero
importantíssimo na confecção de uma crônica (Coutinho: 1990, 301).
74
Essa preocupação com uma linguagem mais despojada não acontece
necessariamente, por exemplo, na composição de um romance, a não ser que o autor
assim o queira. O caráter coloquial da crônica é um dos fatores a torná-la representativa
de determinado período, muitas vezes contribuindo para a fugacidade que inviabiliza
sua permanência.
Entretanto, tal fator não impede que a crônica, como gênero menor que é, seja
lida e estudada se produzida por um autor que a singulariza por meio de seu estilo e de
sua personalidade. Reconhecemos, apesar disso, seu caráter de entretenimento,
corroborado por Afrânio Coutinho: “Para corresponder ao objetivo de entreter, o jornal
introduziu a crônica entre as suas páginas destinadas à informação séria e dura” (1990,
298).
A dose de diversão garantida pela crônica em meio a tantas notícias e
reportagens transmitidas com seriedade e certa formalidade é um dos motivos que
tornam o gênero desimportante. Pensando nisso, lembramos que muitos letrados e
literatos não admitem que a literatura seja tratada como entretenimento, uma vez que
isso reduziria seu valor. De fato, a literatura é uma forma de conhecimento como
qualquer outra. No entanto, a desvalorização do entretenimento está ligada a um
condicionamento cultural que enaltece o trabalho e degrada o lazer, atribuindo maior
valor às obrigações e denegrindo a descontração e o riso.
Analisados sob ótica diferente, esses valores se invertem, de modo que o lazer se
torna mais importante que o trabalho e a dureza. Como não é essa a ideia que vigora em
sociedade, afirmamos que a crônica trata das “desimportâncias” do mundo. É assim que
se configura como gênero das miudezas – “Houve negócios grandes, mas eu não sou
pretor, curo só dos mínimos” (1996, 256) –, lançando um olhar atento ao que passa
despercebido e extraindo do pequeno grandezas que podem se revelar extraordinárias.
A respeito disso, a crônica machadiana não parece, ainda que tenha também esse
efeito, haver sido produzida apenas para entreter e, na verdade, mostra-se capaz
sobretudo de incitar a capacidade reflexiva dos leitores. Além disso, o tratamento
simples que o próprio texto jornalístico exige não impede o escritor de utilizar
mecanismos que o particularizam como cronista:
Machado de Assis [...] atingiu na crônica o mais alto grau de perfeição. Sua
aguda técnica de observar os fatos, captando-lhes a essência, especialmente
os miúdos do cotidiano, em todos os locais, seja na vida familiar, social e
75
pública, seja no parlamento, seja no plano internacional, seja nos
acontecimentos culturais, propiciava-lhe sempre o meio de comentá-los de
maneira leve, graciosa, irônica, sutil, que sempre encanta ainda hoje à sua
leitura, quando o circunstancial desapareceu, permanecendo o estilo, a arte,
o pensamento, os artifícios literários [a alusão histórica, o epíteto, o
imprevisto, a citação erudita, a máxima, o provérbio, a metáfora, a alegoria,
o paradoxo, o trocadilho, como aponta Eugênio Gomes] que tornam as suas
crônicas verdadeiras obras-primas literárias. De tudo ressuma uma
personalidade artística de gênio inigualável, na qual o cronista se equivale
ao romancista e ao contista, como um gênero de criação estética a colocá-lo
entre os maiores escritores universais (Coutinho: 1990, 305).
Não arriscamos aqui corroborar a ideia de que suas crônicas são “verdadeiras
obras-primas literárias”, até porque o próprio Machado de Assis nunca quis reuni-las em
livro – talvez por achar que texto produzido sob encomenda devesse se limitar à
aparição no periódico –, mas podemos afirmar que elas contêm uma literariedade que
permite identificá-las como gênero literário, uma vez que já carregam o estilo e a arte
com que o escritor revolucionou o romance brasileiro.
Entendemos que sua maneira particular de escrever crônica possibilita, sim,
pensar uma equivalência entre o cronista, o contista e o romancista Machado de Assis,
como comenta Afrânio Coutinho. Em todos esses gêneros o escritor inovou, seja por
meio de características que compõem seu estilo – a ironia, o humor fino, a
harmonização de elementos ou ideias contrárias –, seja pelo teor crítico, lúcido e
reflexivo. Importa comentar, ainda, a capacidade da crônica de comportar outros
gêneros em um só, como salienta Artur da Távola:
A crônica é a canção da literatura. Pode dizer o mesmo que a sinfonia. Mas
o faz aos poucos. Ao simples. Para todos. No volume diário de oferta de
leitura, a crônica é, ao mesmo tempo, a poesia, o ensaio, a crítica, o registro
histórico, o factual, o apontamento, a filosofia, o flagrante, o miniconto, o
retrato, o testemunho, a opinião, o depoimento, a análise, a interpretação, o
humor. Polivalente. Poli/valente. De ouros (1986, 14).
76
Ainda que tal afirmação possa ter pontos questionáveis, inquestionável é que a
crônica realmente seja um gênero aberto a tantas possibilidades oferecidas pela
literatura, podendo mesmo unir o miniconto e o ponto de vista filosófico, o ensaio e o
registro de um episódio, o acontecimento histórico e o humor, entre outros. Sendo
assim, parece também inquestionável que Machado de Assis tenha explorado com
maestria essa polivalência da crônica, destacando-se na experimentação do gênero.
Considerando que é “uma forma de arte imaginativa, arte da palavra, a que se
liga forte dose de lirismo” (Coutinho: 1990, 303), à crônica corresponde a vivência e o
imaginário do autor, que explora literariamente essas duas experiências a fim de
produzir um texto leve e, ao mesmo tempo, consistente. Assim, a subjetividade da arte
se impõe à objetividade do jornal:
Como salientou Eduardo Portella, o fundamental na crônica é a superação
de sua base jornalística e urbana em busca da transcendência, seja
construindo “uma vida além da notícia”, seja enriquecendo a notícia “com
elementos de tipo psicológico, metafísico”, ou com humour, seja fazendo “o
subjetivismo do artista” sobrepor-se à preocupação objetiva do cronista
(Coutinho: 1990, 303-4; grifos do autor).
Nesse sentido, vimos que a crônica machadiana vence todos esses
condicionamentos e, assim, diferencia-se do jornalismo. Por mais que seja veiculada
pelo periódico, está além do teor informativo; e por mais que se ambiente
majoritariamente na cidade, muitas vezes trata também de temas que se distanciam do
local e adquire caráter mais universal.
Marcada, portanto, pela personalidade do escritor, pela experimentação de seu
estilo e pela abordagem de temas que podem abrir espaço para o pensamento filosófico,
psicológico ou metafísico, a crônica continua em seu reduzido espaço literário. Não
pretende mesmo ser mais do que pode e deve, mas garante sua autonomia e
originalidade. De acordo com Antonio Candido,
a grandeza de uma literatura, ou de uma obra, depende de sua relativa
intemporalidade e universalidade, e estas dependem por sua vez da função
total que é capaz de exercer, desligando-se dos fatores que a prendem a um
momento determinado e a um determinado lugar (2006, 53).
77
Ainda que a temporalidade seja fortemente marcada na crônica machadiana, é
certo que muitas vezes o modo de abordar um tema situado no tempo torna o texto
independente desse período histórico, portanto passível de ser lido, discutido e
interpretado em outra época. É o que acontece, por exemplo, com a crônica referente
aos bondes elétricos, que analisamos neste capítulo, uma vez que, valendo-se de assunto
relacionado à sociedade naquele período, trata de um tema universal, que é a justiça.
Tanto é assim que estabelece uma certa relação com um romance, como vimos
ao analisar a ligação entre “A Semana” e Esaú e Jacó. Entretanto, tal relação não se
limita a esse caso, sendo possível identificar elementos na crônica, entre os quais já
elencamos alguns, que antecipam as buscas empreendidas por Machado de Assis em
escritos propriamente ficcionais, de maneira que também no conto encontramos pontos
em comum com a narrativa jornalística. Apesar de ser um tópico que aprofundaremos
no próximo capítulo, cabe destacar o entrosamento com o leitor, que, mais tarde,
passaria também a ser uma marca da ficção machadiana.
3.4. A interação entre cronista e leitor
É comum que uma obra literária seja considerada plena, de modo que baste em
si mesma, sendo valorizada então a criação do escritor e pouco o olhar do leitor sobre
ela. Em Literatura e sociedade, Antonio Candido salienta que essa concepção está
atrelada à “hipótese de uma virtude criadora do escritor, misteriosamente pessoal”
(2006, 82), que lhe dá autonomia total em relação à força que a obra alcança.
Entretanto, como pondera o crítico, a análise literária busca definir os fatores de criação
dessa obra e de alguma forma traçar seus limites:
Quando investigamos tais fatores e tentamos distingui-los, percebemos, na
medida em que é possível, que os mais plenamente significativos são os
internos, que costeiam as zonas indefiníveis da criação, além das quais,
intacto e inabordável, persiste o mistério. Há todavia os externos [...];
secundários, não há dúvida, como explicação, dependendo de um ponto de
vista mais sociológico do que estético; mas necessários, senão à sondagem
profunda das obras e dos criadores, pelo menos à compreensão das
correntes, períodos, constantes estéticas (Candido: 2006, 83; grifos do
autor).
78
Nesse sentido, entendemos que os fatores internos estejam ligados ao imaginário
do autor e à produção do fictício, ao passo que os fatores externos estejam mais
relacionados à realidade que uma obra explora. Assim, tais fatores compõem a tríade
que Iser (2013) formula – o real, o fictício e o imaginário –, que por sua vez substitui a
oposição simples e pouco eficiente de realidade versus ficção.
No que diz respeito à crônica, sabemos que os fatores externos, relacionados ao
ponto de vista sociológico ou histórico, são muito importantes. Naturalmente isso
acontece também na crônica de Machado de Assis, que recria os acontecimentos do
período e os utiliza como pretexto para a produção do texto. Vimos, no entanto, que a
crônica também se vale de fatores internos, próprios da imaginação do autor, que de
algum modo também ficcionaliza e compõe literariamente suas publicações semanais.
Apesar de sua relativa liberdade, a crônica depende também do leitor, tanto no
que diz respeito à recepção pelo público como também em relação à interpretação
proporcionada por olhares diferentes. Uma vez que tem os pequenos fatos do dia a dia
como matéria-prima, tratando de diversos temas, a crônica se mostra próxima do leitor,
pois suscita nele aquilo que o cotidiano já provoca, que são as reflexões diárias. Desse
modo, entre o cronista e o leitor se constrói uma relação de cumplicidade, manifestada
muitas vezes pela menção direta do primeiro ao segundo.
Não é raro perceber nas crônicas de Machado de Assis o esforço de conquistar o
leitor, seduzi-lo e introduzi-lo na crônica, convidando-o a participar do jogo do texto,
seja por meio do diálogo por vezes iniciado pelo vocativo, seja pelo no uso do verbo em
primeira pessoa do plural, que engloba seu interlocutor. Segundo Wolgang Iser, o “jogo
do texto” possibilita a coexistência do fictício e do imaginário e, para tanto, é necessária
a participação do leitor nesse jogo:
Nas palavras de Bateson, a leitura “é como a vida, um jogo, cujo propósito
consiste em descobrir as regras que se modificam continuamente e
permanecem não reveláveis”. Isso é válido para a estrutura de jogo do texto,
à medida que as regras de sua legibilidade não são dadas, muito menos
reveladas [...]. Essas regras, com relação aos jogos do texto, apenas indicam
que nem tudo é possível; a restrição da escolha entre possibilidades não
estabelece as condições da combinação, nem orienta a decisão a ser tomada
em cada caso. Como essas regras fixam a limitação do jogo mas não o
79
produzem, são elas reguladoras mas não prescritivas. Pois não oferecem
mais do que o impulso para o aleatório; a regra aleatória se distingue da
regra constitutiva por não possuir um determinado código. Isso significa que
a leitura deve “descobrir” a regra aleatória do jogo do texto [...]. O leitor
reage adequadamente ao jogo do texto somente se jogar o texto de acordo
com a regra aleatória, descobrindo-a simultaneamente (Iser: 2013, 370-1).
Em uma narrativa ficcional, o leitor pode receber tudo fragmentado, inacabado e
fora de ordem. Sendo assim, é ele quem atribui sentido à narrativa, suplementando os
“vazios” que a compõem. De acordo com a Estética da Recepção, da qual Iser faz parte,
o leitor é receptor-autor e, assim, possui papel ativo na obra, diferentemente daquele que
lê passivamente as narrativas tradicionais. No caso da crônica, também é possível tratar
do “jogo do texto”, pois o leitor, apesar de comumente visto como um interlocutor,
também interpreta o texto e lhe atribui sentidos particulares.
Envidentemente, a linguagem simples da crônica e sua leitura facilitada em geral
não demandam um leitor “verdadeiramente ruminante”, como Machado solicita em
Esaú e Jacó. Por outro lado, o leitor adquire papel importante na medida em que,
experimentando as sensações de vivência que o texto proporciona, se conecta ao que
está sendo narrado e então constitui suas próprias formulações e pensamentos sobre tais
experiências. Nesse sentido, a provocação da capacidade crítica do leitor é o que torna a
crônica fundamental no periódico.
A crônica, por estar entre o jornalismo e a literatura, acaba não sendo definida
com propriedade de nenhum dos dois campos. Por ser um registro em jornal, não figura
totalmente como literária; por conter lirismo, também não é interpretada como texto
genuinamente jornalístico. Diante disso, a crônica cria um diálogo com o ficcional e o
não-ficcional, permitindo que a literatura se aproxime mais da simplicidade do dia a dia.
Nesse aspecto, a singularidade das crônicas de Machado reside no tratamento
diferenciado em relação ao não-ficcional, uma vez que os acontecimentos reais que
aborda não constituem muitas vezes o cerne de seu texto. De acordo com Gustavo
Corção,
de um lado teríamos as crônicas que se submetem aos fatos, e que
pretendem fornecer material contemporâneo à peneira dos historiadores; e
de outro teríamos aquelas crônicas que se servem dos fatos para superá-los,
80
ou que tomam os fatos do tempo como pretextos para as divagações que
escapam à ordem dos tempos (1986, 328).
A capacidade de escapar à ordem dos tempos é o que permite que a crônica
machadiana permaneça fazendo sentido em outras épocas e para novas gerações.
Notamos que, diferentemente dos cronistas atuais, Machado de Assis, mesmo que
constantemente mudasse de assunto com o objetivo de tratar do que para ele tivesse
maior importância, se sentia na obrigação de abordar ao menos sucintamente os
acontecimentos semanais. No entanto, essa abordagem não faz com que sua crônica se
submeta aos fatos; ao contrário, estes servem apenas de material fugaz para a elaboração
de um texto comprometido com o estilo do autor e, portanto, com sua personalidade
literária.
Esse comprometimento permite identificarmos a relação do Machado cronista
com o Machado ficcionista, uma vez que a crônica, produzida anteriormente a outros
gêneros, antecipa em alguma medida seu estilo. Em Um mestre na periferia do
capitalismo, por exemplo, Roberto Schwarz salienta que muitas estratégias particulares
detectadas nos romances machadianos já haviam sido utilizadas na composição das
crônicas. Naturalmente, o mesmo se pode dizer dos contos, já que a obra como um todo
se destaca, entre outros motivos, por ser, a um só tempo, singular e inconfundível.
81
4
Da crônica ao conto e ao romance
Como buscamos demonstrar, a prosa ficcional de Machado de Assis é
cronologicamente precedida por muitas de suas crônicas e naturalmente carrega
características discursivas e um estilo explorados, ainda que de maneira mais simples,
em suas publicações em jornal. Ao discorrer sobre os acontecimentos da semana, o
cronista prefere abordar com maior ênfase questões mais universais, em vez de
compactuar, por exemplo, com a espetacularização da modernidade. Assim, trata as
questões locais de modo despretensioso, utilizando-as como pretexto para divagações,
reflexões filosóficas e invenção de fábulas, tudo isso geralmente acompanhado de um
tom humorístico.
Diferentemente de suas crônicas iniciais, a exemplo das publicadas no Diário do
Rio de Janeiro, quando criticava mais abertamente – talvez ingenuamente – o assunto
comentado, na fase mais madura Machado de Assis incita a reflexão a partir de um
estilo mais próximo daquele que Luiz Costa Lima denominou de “malabarismo de
mestre de capoeira”. Nesse sentido, o autor evita o tom polemista, disfarçando a
seriedade dos temas por meio da galhofa, da ironia, da digressão e da mudança de
assunto repentina e proposital. Tal processo de construção faz com que a crônica
machadiana tenha a diversão proporcionada pelo humor, a experiência possibilitada
pelas vivências do escritor e também o convite à reflexão.
Devido à sua atuação particular e inovadora na crônica, podemos afirmar que o
escritor valorizou um gênero inferiorizado, demonstrando que, mesmo sendo
reconhecidamente menor, é um gênero capaz de render um texto arguto e imbuído de
senso crítico e caráter reflexivo. Experimentando à sua maneira a narrativa ficcional e a
pluralidade de vozes, o cronista se mascara para construir um texto avesso à polêmica e,
ao mesmo tempo, estabelecer pontos de vista que garantem a crítica e levam ao
pensamento acerca das ideias discutidas. Por meio de suas inovações, o autor se torna
referência para cronistas posteriores, como Rubem Braga, que dariam continuidade à
modernidade da crônica.
Sendo assim, Machado de Assis, consagrado na literatura sobretudo por causa de
seus romances, também possui destaque no cenário literário devido às suas publicações
em periódicos. Não à toa é possível identificar uma relação entre a crônica e o conto e,
82
ainda, entre a crônica e o romance, ratificando que, mesmo em texto jornalístico, o
escritor mostrava indícios da formação de seu estilo narrativo.
4.1. Aproximações entre a crônica e o conto
Como aponta Flora Süssekind a respeito da relação de Machado de Assis com o
jornal, “as formas que assume esse diálogo constante com a imprensa, com a impressão,
teriam papel decisivo na sua produção ficcional” (2003, 200). Julgamos, portanto, que o
estudo da crônica machadiana é relevante não só para o gênero, mas também para
verificar como se desenvolveu sua escrita, a fim de perceber seu amadurecimento como
autor. É inegável que sua atuação jornalística em muito contribui para a compreensão e
interpretação de sua produção literária:
O afastamento do posto de redator do Diário e o olhar mais crítico para o
veículo possível dos ensaios ficcionais no Brasil do século XIX – o jornal –
logo deixariam rastro na produção machadiana. É exatamente como espaço
de ensaio, passível de errata, que passa a encarar as folhas fluminenses. Daí
as inúmeras versões de um conto como “Uma excursão milagrosa”,
divulgado no Jornal das Famílias, em 1866, e que colava trechos de outro,
publicado sob o título “O país das quimeras” no Futuro em 1862, de um
comentário ao livro Peregrinação à província de São Paulo, de Zaluar
(Süssekind: 2003, 204).
A autora destaca a produção em jornal também como uma preparação, um
ensaio “passível de errata”, em que o escritor testa o texto e, posteriormente, tem a
possibilidade de atualizá-lo e publicá-lo, por exemplo, como outro conto. O aspecto leve
e ágil da crônica permite, nesse caso, que ela funcione como um esboço de algo mais
aprofundado e distante da efemeridade proposta pelo jornal, uma vez que “o conto tem
uma densidade específica” (Sá: 2007, 7), enquanto a crônica não possui tal
característica.
Apesar das diferenças entre um e outro gênero, ambos se aproximam em
diversos aspectos. No que diz respeito ao pensamento filosófico, por exemplo, vimos no
capítulo anterior que na crônica de 16 de outubro de 1892 há um registro de um diálogo
entre dois burros imaginado pelo autor, em que um animal explica a outro a relação de
83
sua espécie com a filosofia: “A nossa raça é essencialmente filosófica. Ao homem que
anda sobre dois pés, e provavelmente à águia, que voa alto, cabe a ciência da
astronomia. Nós nunca seremos astrônomos; mas a filosofia é nossa” (1996, 137). De
acordo com essa e outras ideias que se desenrolam ao longo do texto é que o autor
parece criar uma fábula filosófica.
Curiosamente, o mesmo processo temático de criação é percebido no conto
“Ideias do canário”, em que, tal como ocorre na crônica referida, um homem entende a
língua de um bicho e é principalmente este quem desenvolve uma história marcada pelo
humor, também parecida com uma fábula, e imbuída de reflexões bem próximas do
campo filosófico. Lembrando a “alegoria da caverna” de Platão, o narrador caracteriza a
loja de belchior onde estava o canário como “escura, atulhada das cousas velhas, tortas,
rotas, enxovalhadas, enferrujadas” (2002, 83) e demonstra que era possível, de dentro da
caverna, buscar a luz: “Logo que olhei para ele, entrou a saltar mais baixo e acima, de
poleiro em poleiro, como se quisesse dizer que no meio daquele cemitério brincava um
raio de sol” (2002, 84).
Se tínhamos na crônica um jumento que nos fazia pensar sobre sua condição de
puxador de bonde, numa alusão à condição dos escravos após a assinatura da Lei Áurea,
afirmando que “o bonde elétrico” – representando, aqui, novos tempos – “apenas nos
fará mudar de senhor”, no conto nos deparamos com um canário que apresenta outro
ponto de vista para uma situação. Indagado pelo personagem sobre o dono da loja de
belchior ser também dono do passarinho, este lhe replica:
– Que dono? Esse homem que aí está é meu criado, dá-me água e comida
todos os dias, com tal regularidade que eu, se devesse pagar-lhe os serviços,
não seria com pouco; mas os canários não pagam criados. Em verdade, se o
mundo é propriedade dos canários, seria extravagante que eles pagassem o
que está no mundo (2002, 85).
Como é comum na narrativa machadiana, são apresentados dois pontos de vista
diferentes para uma mesma situação: o primeiro se refere ao ponto de vista do homem,
que naturalmente enxerga o pássaro como propriedade do dono da loja; o segundo, ao
ponto de vista do canário, que, de modo contrário, vê o dono da loja como um criado
seu. Tal como ocorre na crônica de 1892, é o animal quem proporciona determinada
reflexão, nos dois casos sobre a condição humana da alienação. Enquanto na crônica
84
temos uma crítica à euforia alienadora dos cidadãos para com a Abolição, no conto a
alienação humana é animalizada para que seja percebida sob a ótica do canário.
Nesse sentido, o canário altera sua perspectiva acerca do mundo de acordo com
a mudança espacial que sofre. Antes, para ele o mundo era uma loja de belchior, em que
“o canário é senhor da gaiola que habita e da loja que o cerca. Fora daí, tudo é ilusão e
mentira” (2002, 86); depois, quando passa a morar na casa de seu interlocutor, o mundo
passa a ter outra definição:
– O mundo, respondeu ele, é um jardim assaz largo com repuxo no meio,
flores e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul por cima; o
canário, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, donde
mira o resto. Tudo o mais é ilusão e mentira (2002, 87).
O tom professoral do canário, bem como sua pretensão, contribui para a
formação da pilhéria, garantindo o humor do texto. Apresentando um ponto de vista
incomum, o personagem provoca uma reflexão sobre a alienação baseada no ponto de
vista único, muitas vezes adotado como verdade universal.
Depois de o canário ter fugido, fato que fez com que o homem que o comprou na
loja de belchior haja procurado muito pelo bicho, o pássaro o surpreende em cima do
galho de uma árvore: “– Viva, Sr. Macedo, por onde tem andado que desapareceu?”
(2002, 88). E indagado sobre aquele mundo feito de jardim e repuxo, o canário
responde:
– Que jardim? que repuxo?
– O mundo, meu querido.
– Que mundo? Tu não perdes os maus costumes de professor. O mundo,
concluiu solenemente, é um espaço infinito e azul, com o sol por cima.
Indignado, retorqui-lhe que, se eu lhe desse crédito, o mundo era tudo; até já
fora uma loja de belchior...
– De belchior? trilou ele às bandeiras despregadas. Mas há mesmo lojas de
belchior? (2002, 89).
A estrutura irônica do conto, confirmada pelas falas inesperadas do canário, nos
leva a críticas possibilitadas por um pensamento filosófico ou existencial, num processo
85
reflexivo que conduz o leitor a pensar sobre as possíveis verdades que podem também
existir no outro. Nesse caso, o texto ratifica a ideia de que “todo ponto de vista é a vista
de um ponto” (Boff: 1997, 9). Ou seja, uma visão única sobre as coisas é algo limitado,
que não dá conta, portanto, da pluralidade de óticas capazes de ser atribuídas a um
mesmo episódio ou assunto. Nesse sentido, tanto a crônica como o conto são
perpassados por uma das características notáveis da obra de Machado, que é o
multiperspectivismo.
Inegavelmente, os dois textos a que nos referimos também mostram a pena da
galhofa nos escritos de Machado de Assis, que é uma forte marca de seu estilo. Para
Afrânio Coutinho,
o humorismo de Machado é uma válvula de escapamento da sua angústia e
dos recalques de sua alma, acumulados através das injustiças da vida, da
maldade humana, do sofrimento físico e moral, do espetáculo do mundo. É
o disfarce da própria miséria pelo riso dos ridículos alheios (1990, 131).
Na verdade, o humorismo de Machado tem menos a ver com uma espécie de
válvula de escape aos problemas do mundo do que com a revelação, ou mesmo
exposição, do comportamento humano. Em seus romances, por exemplo, a estrutura é
irônica porque a consciência racional do narrador revela a incapacidade do homem de
lidar consigo mesmo, como é o caso de Félix, em Ressurreição, que “é essencialmente
infeliz”. A ironia, aqui, é percebida logo no nome do protagonista, que, apesar de estar
associado à felicidade, não é capaz de vivenciá-la.
Diante dessa perspectiva, entendemos que o humor identificado na conversa dos
burros na crônica dos bondes elétricos é igualmente percebido, no conto, no diálogo do
canário com o sr. Macedo, revestido de ideias que, embora pareçam comuns aos olhos
do canário, são absurdamente incomuns a olhos humanos. Baseado em um discurso
irônico e filosófico, “Ideias de canário” proporciona uma reflexão importante acerca da
existência humana, tratando, assim, de um tema universal, tal como a crônica a que nos
referimos.
Como já sabemos, muitos dos contos e romances de Machado de Assis foram
publicados na imprensa, divididos em colunas em jornais como O Cruzeiro e revistas
como a Revista Brasileira. Com base nisso, Marlyse Meyer atribui a Machado a
possibilidade de ser o inventor do conto seriado brasileiro (1998, 20), uma vez que
86
narrativas como “O alienista” foram divulgadas primeiramente de forma seriada em
periódicos e só depois lançadas em volume.
Essa divisão dos contos, portanto, aproxima-os do folhetim, já que o texto passa
a ser distribuído em fascículos com o compromisso de ser publicada semanal ou
mensalmente. Assim, é natural que uma produção submetida a prazos e outros
condicionamentos exigidos pelos jornais ou pelas revistas cause determinada influência
no processo de criação do escritor.
4.2. A transição para o livro
No século XIX, quando Machado de Assis iniciou suas publicações em jornais,
era comum que os romances fossem publicados em folhetins, sendo divulgado um
capítulo a cada semana conforme o espaço destinado ao texto no rodapé da página.
Desse modo, ao folhetim cabia a primeira divulgação de uma obra ficcional, que
posteriormente poderia ser modificada, com alterações significativas ou não, para ser
publicada em livro.
Sendo assim, podemos perceber no romance machadiano características
próprias das páginas folhetinescas, como o tamanho dos capítulos, que dependia da área
que lhe era reservada no periódico, e a interação entre narrador e leitor, bastante comum
nas publicações em jornal. À exceção de Ressurreição, até Quincas Borba todos os seus
romances foram divulgados em folhetim, o que nos permite analisar como ocorreu o
processo de transição para o livro.
Como aponta Marlyse Meyer sobre a influência do folhetim-romance,
comum a todos, e importantíssimo, era o suspense e o coração na mão, um
lencinho não muito longe, o ritmo ágil de escrita que sustentasse uma leitura
às vezes ainda soletrante, e a adequada utilização dos macetes diversos que
amarrassem o público e garantissem sua fidelidade ao jornal, ao fascículo e,
finalmente, ao livro (1996, 303).
Podemos dizer que em Machado de Assis, no que diz respeito aos aspectos
elencados por Marlyse Meyer, o mais comum talvez seja a capacidade de prender o
leitor por meio da interação muitas vezes direta – utilizando o vocativo – ou pelo tom
conversacional que permaneceu mesmo nos livros. Conquistar o leitor por meio do
87
folhetim naturalmente fazia com que os jornais vendessem assinaturas, sendo possível
ainda que, ao serem publicadas posteriormente em volume, as obras ampliassem as
chances de sucesso, garantindo lucro ao escritor nos dois suportes de divulgação.
Embora haja nítidas diferenças entre o folhetim e o romance, encontramos traços
do primeiro no segundo. Assim, características próprias do folhetim condicionam a
narrativa, de modo que esta pode sofrer alterações ao ser passada para o livro. O próprio
Machado, na advertência à primeira edição em livro de A mão e a luva, menciona o fato
de haver determinadas condições que influenciam a qualidade artística do romance,
como lembra Ana Cláudia Suriani da Silva em seu estudo Machado de Assis: do
folhetim ao livro:
Esta novela, sujeita às urgências da publicação diária, saiu das mãos do
autor capítulo a capítulo, sendo natural que a narração e o estilo padecessem
com esse método de composição, um pouco fora dos hábitos do autor. Se a
escrevera em outras condições, dera-lhe desenvolvimento maior, e algum
colorido mais aos caracteres, que aí ficam esboçados. Convém dizer que o
desfecho de tais caracteres – o de Guiomar, sobretudo – foi o meu objeto
principal, senão exclusivo, servindo-me a ação apenas de tela em que lancei
os contornos dos perfis. Incompletos embora, terão eles saído naturais e
verdadeiros? (Assis apud Silva: 2015, 52).
Duas afirmações despertam a atenção no trecho acima: o desenvolvimento da
obra submetido às convenções folhetinescas e a inovação machadiana de não produzir
uma obra sujeita a ações encadeadas, como era comum aos romances da época, criados
com base em uma narrativa lógica e linear. Nesse sentido, fica clara certa insatisfação,
ou mesmo algum lamento, do escritor em relação a limitações que precisou respeitar,
comprometendo em alguma medida seu estilo, que em tais condições não pôde ser tão
explorado como gostaria. Ainda assim, vemos que o autor se diferencia de outros por
valorizar mais os caracteres dos personagens que as ações da trama. Agindo dessa
maneira, oferece uma obra que evidencia as experiências emocionais desses
personagens e, por outro lado, demonstra a racionalidade de um narrador que atua
conscientemente e julga suas atitudes. Assim, temos uma abordagem do conflito entre
razão e emoção que funciona para abranger, literariamente, a complexidade humana,
com seus conflitos internos e existenciais.
88
Uma característica do romance que nitidamente permanece devido à publicação
anterior em folhetim é a organização regular dos capítulos, em sua maioria dispostos no
mesmo tamanho por causa do espaço sempre igual oferecido pelo jornal. Isso já não
acontece, por exemplo, em Iaiá Garcia, que foi escrito sem precisar se submeter aos
limites das páginas do periódico, uma vez que quase todos os capítulos não cabem
inteiros na seção do rodapé, estendendo-se muitas vezes ao rodapé da página seguinte.
No caso de Memórias póstumas de Brás Cubas, como salienta Ana Cláudia
Suriani da Silva, não mais havia correspondência entre capítulos e fascículos, porém o
romance foi escrito em série na Revista Brasileira, que, por ser uma revista dedicada a
estudos literários e culturais, publicava longos textos que poderiam ocupar mais de uma
edição, como foi o caso desse romance de Machado de Assis. Outro aspecto que
facilitou sua publicação em série foi seu caráter anedótico. Composto aparentemente por
narrativas breves, “faz com que vários capítulos tenham uma unidade intrínseca, mesmo
quando lidos individualmente” (2015, 61). É assim que a obra, vale registrar, demonstra
o todo pela parte, possibilitando que uma de suas partes, quando bem interpretada,
proporcione uma ideia geral da completude do romance.
O fato de Memórias póstumas de Brás Cubas ser facilmente adaptado à
publicação seriada já havia sido comentado, inclusive, por John Gledson:
[Brás Cubas] se divide em episódios, anedotas etc., que, na maioria das
vezes, são autossuficientes e, com frequência, lembrados por si mesmo – “O
almocreve” [capítulo 21] é o exemplo mais famoso, mas o livro inteiro é
construído desse modo. Onde as personagens do princípio aparecem no fim
– como é o caso de Marcela e Eugênia, por exemplo –, esse reaparecimento
é igualmente episódico e a moral bem evidente. Memórias póstumas de
Brás Cubas foi originalmente publicado em fascículos e, tivesse sido ou não
escrito como um seriado, o fato é que se adapta a essa forma (Gledson apud
Silva: 2015, 61).
Com base nesses apontamentos, percebemos que os primeiros romances de
Machado de Assis estão interligados ao folhetim, seja por serem precedidos por essa
seção jornalística, seja por serem posteriormente divulgados em fascículos de revista.
Enquanto A mão e a luva, Helena, Iaiá Garcia e Brás Cubas mantêm um paralelo mais
perceptível com a linguagem e as características do folhetim, a obra que mais rompe
89
com esse modelo é Quincas Borba, o último romance também publicado em um veículo
da imprensa.
A divulgação do romance foi feita em A Estação num período de cinco anos. No
processo de transição para livro, a narrativa sofreu bastantes alterações, sobretudo se
comparada às anteriores, pois o escritor, além de eliminar ou introduzir novos capítulos,
mudou alguns trechos sintaticamente e modificou um pouco a cronologia. De acordo
com essas transformações – e muitas outras que não elencamos nesta pesquisa –,
Quincas Borba em livro se torna totalmente diferente daquele da imprensa. Nesse
sentido, corroboramos a ideia de que a obra seja “um divisor de águas [...] entre um
modo de escrita e publicação vinculado ao folhetim e outro ao livro” (Silva: 2015, 64).
A partir disso, é possível compreender que, ao serem transpostos para o livro, os
romances-folhetins não são simplesmente transferidos, como se o livro fosse apenas um
suporte que reunisse as publicações em jornais ou revistas. Há, portanto, um novo
trabalho de releitura, reedição e alteração do texto, em que o autor pode mudar uma
narrativa ficcional já divulgada sem precisar se preocupar com prazo de entrega ou
formato de página, de modo que o folhetim acaba servindo como esboço de uma versão
definitiva, como é o caso de Quincas Borba:
A relação do escritor com o folhetim entrou em crise durante a sua
composição e com ele [Quincas Borba] se encerrou. Em primeiro lugar,
Quincas Borba foi o romance que sofreu o maior número de interrupções
durante a serialização. Em segundo, é aquele cuja publicação se estendeu
por um período mais longo. Em terceiro, foi o mais revisado, sendo desta
forma o único que possui duas versões. Finalmente, foi o último romance
publicado originalmente de forma seriada (Silva: 2015, 269).
Apenas os três últimos romances de Machado de Assis, portanto, não possuem
vínculo direto com o folhetim, uma vez que Quincas Borba rompe essa relação. Assim,
sua atuação como cronista nos jornais é sem dúvida relevante para sua formação como
escritor, já que foi nas páginas do periódico que desenvolveu um estilo depois
aprofundado na ficção. O próprio Machado, em período inicial do compromisso com a
seção folhetinesca, destaca a importância do jornal, que para ele é mais democrático do
que o livro, indicando também a superioridade do livro em relação às estruturas
arquitetônicas:
90
A humanidade perdia a arquitetura, mas ganhava a imprensa: perdia o
edifício, mas ganhava o livro. O livro era um progresso: preenchia as
condições do pensamento humano? Decerto; mas faltava ainda alguma
coisa; não era ainda a tribuna comum aberta à família universal, aparecendo
sempre com o sol e sendo como ele o centro de um sistema planetário. A
forma que correspondia a estas necessidades, a mesa popular para a
distribuição do pão eucarístico da publicidade, é propriedade do espírito
moderno: é o jornal. O jornal é a verdadeira forma de república do
pensamento. É a locomotiva intelectual em viagem para mundos
desconhecidos, é a literatura comum, universal, altamente democrática,
reproduzida todos os dias, levando em si a frescura das ideias e o fogo das
convicções (Assis apud Süssekind: 2003, 202).
A concepção do jornal como veículo de uma literatura comum e universal é o
que explica, de acordo com Machado de Assis, que esta seja altamente democrática,
como não acontece com livro, que alcança um público mais restrito. O fato de o
periódico ser diário e facilmente acessível aproxima o leitor da literatura da crônica, tal
como sublinha Antonio Candido ao afirmar que o bom de a crônica ser um gênero
menor é que assim ela fica mais perto de nós.
Entendemos então que essa seção do jornal também possibilita a exploração do
literário e permite, por meio da crônica, que o leitor comum, e não necessariamente o
leitor ruminante – educado para ser receptor-autor de uma obra –, receba doses diárias
de lirismo e seja capaz de interpretá-las. Naturalmente, isso desperta a reflexão e
implica a interação do leitor com o texto, reforçando sua relação com a literatura.
Tanto é assim que a crônica de Machado de Assis possui grande laço com seu
romance, seja pelo estilo do escritor aparecer em ambos, seja pelos condicionamentos
do folhetim fazerem parte também das narrativas ficcionais. É comum, como já
apontamos, que a ficção machadiana seja desenvolvida a partir de temáticas ou técnicas
identificadas, ainda que de forma simples, no texto em jornal – como acontece na
relação de Esaú e Jacó com as crônicas de A Semana, conforme apresentamos no
capítulo anterior.
91
4.3. Da crônica ao romance
Em Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis, importante
estudo sobre a obra do escritor, Roberto Schwarz comenta que várias estratégias
específicas do romance machadiano podem ser encontradas já em suas crônicas, que
começaram a ser escritas bem antes das produções ficcionais. Tal relação entre um
gênero e outro ocorre não apenas tematicamente, mas, para o crítico, também no que diz
respeito à técnica narrativa.
Para Schwarz, o narrador das crônicas demonstra a volubilidade narrativa que
desenvolve a ebriedade no discurso de Brás Cubas e explica sua arbitrariedade temática,
fator naturalmente muito explorado pelo cronista. É assim que se identifica a “prosa
borboleteante”:
Na ocasião a prosa borboleteante era velha conhecida não só do romancista,
como de muitos outros literatos brasileiros, que a praticavam nos folhetins
semanais da imprensa, imitando modelos franceses. A miscelânea de
crônica parlamentar, resenha de espetáculos, notícia de livro, coluna
mundana e anedotas variadas, com intuito de recreio, compunha um gênero
bem estabelecido – e de estatuto “pouco sério”. Devido talvez a esta
conotação duvidosa, várias de suas propriedades formais acabaram entrando
para a feição do novo período machadiano (2012, 230-1).
Que a atuação como cronista influenciou o romancista, como demonstramos ao
longo desta pesquisa, não é novidade. O questionável na tese de Schwarz, no entanto, é
associar ao narrador machadiano uma “conotação duvidosa” e tratá-lo como um sujeito
inconstante, que com facilidade muda princípios e opiniões. É verdade que, em se
tratando de texto encomendado para jornal, sua finalidade de entreter realmente torna
mais frágil a seriedade da escrita, sendo valorizados o humor e a leveza que o cronista
demonstra em seu processo criativo. Porém, o narrador do romance machadiano, apesar
de também ser capaz de mudar de assunto – e não de opinião –, não apresenta uma
volubilidade supostamente desenvolvida a partir do modo de fazer crônica.
Schwarz salienta a existência de traços comuns à crônica e a Memórias
póstumas de Brás Cubas, particularmente para pensar o “progresso literário” de
92
Machado de Assis. Assim, reitera que, se o escritor já dominava sua técnica narrativa
desde cedo, era outra a razão para sua evolução como ficcionista:
Nos anos setenta, quando escrevia os seus quatro romances fracos, quase
privados de atmosfera contemporânea, Machado já era forte nas piruetas
petulantes e cosmopolitas do folhetim semanal. O que faltava, para
completar a configuração artística da maturidade, não era portanto o
procedimento narrativo. A viravolta pendente, que permitiria incorporar à
elaboração romanesca uma técnica disponível e comum a muitos, era de
ordem ideológica (2012, 232).
Nessa ótica, o crítico defende uma divisão da obra machadiana em duas fases: a
primeira, romântica, “supunha lealdades morais e compromisso com a promoção social
dos pobres, sobretudo os mais dotados”, de modo que essa lealdade e esse compromisso
“deveriam primar sem mistura sobre a definição burguesa do interesse, à qual no
entanto os proprietários não podiam também deixar de estar submetidos” (2012, 232;
grifo do autor); e a segunda, realista, explora outro ponto de vista, capaz de manifestar,
por meio da volubilidade narrativa, a ambiguidade própria da classe dominante. De
acordo com Schwarz, portanto, a nova fase de Machado de Assis, que expressa sua
maturidade com Brás Cubas, revela um princípio formal que soluciona os impasses
identificados na primeira fase.
Para o crítico, a volubilidade narrativa reflete o caráter volúvel da elite
brasileira. Essa concepção, no entanto, é passível de dois questionamentos: o fato de a
elite não ser volúvel, uma vez que apenas finge mudar de posição mas na verdade
sempre age da mesma forma; e o fato de esta interpretação não ser literária mas
ideológica. A visão marxista de Schwarz, nesse sentido, faz com que a literatura seja
equivocadamente analisada sob um viés não literário.
Apesar da correlação entre o narrador da crônica e o narrador do romance, este
se diferencia daquele por causa de seu caráter dramático. Diferentemente da tese de
Schwarz, outra interpretação, literária em vez de ideológica, explica o
multiperspectivismo do narrador machadiano, que não se confunde com volubilidade
porque não há mudanças de pontos de vista, mas, sim, apresentação de pontos de vista
distintos e igualmente válidos. Sendo assim, o narrador considerado volúvel é, na
verdade, multiperspectivado.
93
Ronaldes de Melo e Souza chama a atenção para o comportamento do narrador
machadiano como mediador dramático, ressaltando que, atuando dramaticamente, não
narra com base em sua própria perspectiva porque representa outros eus. Diante disso,
não é possível a concepção de um narrador volúvel, uma vez que este não se comporta
como ser singular e doutrinatário, mas se despersonaliza a fim de personificar outros eus
e, assim, explorar a pluralidade de ideias. Dessa forma,
o narrador que se dramatiza na representação dos inúmeros personagens que
atuam no teatro do mundo histórico-social singulariza-se como narrador que
se metamorfoseia em função do papel desempenhado. Não pode ser
confundido com o narrador maneiroso e leviano a que se refere Sílvio
Romero nem com o narrador volúvel de Roberto Schwarz, porque
representa os outros eus, e não o próprio eu (Souza: 2006, 7).
Como já foi demonstrado anteriormente, o fato de Machado de Assis usar “da
forma dubitativa” em suas crônicas não reitera um caráter volúvel por parte do cronista,
mas sim a importância da apresentação de perspectivas diferentes. A divisão de sua obra
em duas fases, como defende Eugênio Gomes em relação às crônicas e Roberto
Schwarz em relação aos romances, não se caracteriza por um nítido rompimento que
identifica um progresso narrativo. A categorização das primeiras crônicas como textos
românticos e das mais recentes como filosóficas ou reflexivas permite a falsa impressão
de que nenhuma crônica inicial suscita reflexão. Do mesmo modo, dividir os romances
de Machado em românticos e realistas, adotando Memórias póstumas de Brás Cubas
como símbolo de um rompimento associado aos chamados estilos de época, é também
simplificar o processo de amadurecimento do escritor, sem considerar as nuances entre
uma fase e outra. Até mesmo porque os primeiros romances machadianos desconstroem
ironicamente o romantismo, não podendo, portanto, ser considerados românticos.
Evidentemente, é possível identificar duas fases de escrita com base nesse
amadurecimento natural. Assim como o cronista amadurece, o ficcionista também,
ambos desenvolvendo o mesmo estilo e adequando-o a cada gênero. Esse processo
permite uma relação literária da crônica com o romance porque revela a técnica
narrativa e a estrutura irônica da obra machadiana, seja na aparente simplicidade do
texto jornalístico, seja na maior complexidade do texto ficcional.
94
Além disso, a correlação da crônica especificamente com Esaú e Jacó não se
limita àquela crônica de A Semana. Se é certo que, como analisamos no terceiro
capítulo, existe uma relação direta entre os dois textos, é também possível afirmar que a
temática do romance fora explorada em diversas outras crônicas, uma vez que o
escritor, tanto no jornal como no livro, não negligenciava assuntos políticos,
contrariando alguns críticos que opinavam que o autor era alheio ao Brasil.
Em série anterior a A Semana, o cronista já revela seu pensamento nada volúvel
sobre os acontecimentos recentes, a saber, a Abolição e a instauração da República. Na
crônica do dia 11 de maio de 1888, de Bons Dias!, vemos sua reflexão acerca desses
fatos:
BONS DIAS!
Vejam os leitores a diferença que há entre um homem de olho aberto,
profundo, sagaz, próprio para remexer o mais íntimo das consciências (eu,
em suma), e o resto da população.
Toda a gente contempla a procissão na rua, as bandas e bandeiras, o
alvoroço, o tumulto, e aplaude ou censura, segundo é abolicionista ou outra
coisa; mas ninguém dá a razão desta coisa ou daquela coisa; ninguém
arrancou aos fatos uma significação, e, depois, uma opinião. Creio que fiz
um verso.
Eu, pela minha parte, não tinha parecer. Não era por indiferença; é que me
custava a achar uma opinião. Alguém me disse que isto vinha de que certas
pessoas tinham duas e três, e que naturalmente esta injusta acumulação
trazia a miséria de muitos; pelo que, era preciso fazer uma grande revolução
econômica, etc. Compreendi que era um socialista que me falava, e mandei-
o à fava. Foi outro verso, mas vi-me livre de um amolador. Quantas vezes
me não acontece o contrário!
Não foi o ato das alforrias em massa dos últimos dias, essas alforrias
incondicionais, que vêm cair como estrelas no meio da discussão da lei da
abolição. Não foi; porque esses atos são de pura vontade, sem a menor
explicação. Lá que eu gosto da liberdade, é certo; mas o princípio da
propriedade não é menos legítimo. Qual deles escolheria? Vivia assim,
como uma peteca (salvo seja), entre as duas opiniões, até que a sagacidade e
95
profundeza de espírito com que Deus quis compensar a minha humildade
me indicou a opinião racional e os seus fundamentos.
Não é novidade para ninguém que os escravos fugidos, em Campos, eram
alugados. Em Ouro Preto fez-se a mesma coisa, mas por um modo mais
particular. Estavam ali muitos escravos fugidos. Escravos, isto é, indivíduos
que, pela legislação em vigor, eram obrigados a servir a uma pessoa; e
fugidos, isto é, que se haviam subtraído ao poder do senhor, contra as
disposições legais. Esses escravos fugidos não tinham ocupação; lá veio,
porém, um dia em que acharam salário, e parece que bom salário.
Quem os contratou? Quem é que foi a Ouro Preto contratar com esses
escravos fugidos aos fazendeiros A, B, C? Foram os fazendeiros D, E, F.
Estes é que saíram a contratar com aqueles escravos de outros colegas, e os
levaram consigo para as suas roças.
Não quis saber mais nada; desde que os interessados rompiam assim a
solidariedade do direito comum, é que a questão passava a ser de simples
luta pela vida, e eu, em todas as lutas, estou sempre do lado do vencedor.
Não digo que este procedimento seja original, mas é lucrativo. Alguns não
me compreenderam (porque há muito burro neste mundo); alguém chegou a
dizer-me que aqueles fazendeiros fizeram aquilo, não porque não vissem
que trabalhavam contra a própria causa, mas para pregar uma peça ao Clapp.
Imagina-se bem se arregalei os olhos.
— Sim, senhor. Saiba que o Clapp tinha o plano feito de ir a Ouro Preto
pegar os tais escravos e restituí-los aos senhores, dando-lhes ainda uma
pequena indenização do seu bolsinho, e pagando ele mesmo a sua passagem
da estrada de ferro. Foi por isso que...
— Mas então quem é que está aqui doido?
— É o senhor; o senhor é que perdeu o pouco juízo que tinha. Aposto que
não vê que anda alguma coisa no ar.
— Vejo; creio que é um papagaio.
— Não, senhor; é uma República. Querem ver que também não acredita que
esta mudança é indispensável?
— Homem, eu, a respeito de governo, estou com Aristóteles, no capítulo
dos chapéus. O melhor chapéu é o que vai bem à cabeça. Este, por ora, não
vai mal.
96
— Vai pessimamente. Está saindo dos eixos; é preciso que isto seja, senão
com a Monarquia, ao menos com a República, aquilo que dizia o Rio-Post
de 21 de junho do ano passado. Você sabe alemão?
— Não.
— Não sabe alemão?
E dizendo-lhe eu outra vez que não sabia, ele imitando o médico de Molière,
dispara-me na cara esta algaravia do diabo:
— Es dürfte leicht zu erweisen sein, dass Brasilien weniger eine
konstitutionelle Monarchie als eine absolute Oligarchie ist.
— Mas que quer isto dizer?
— Que é deste último tronco que deve brotar a flor.
— Que flor?
— As
BOAS NOITES
(Assis apud Gledson: 2003, 142-9).
Viver entre as duas opiniões, nesse caso, não representa volubilidade, mas sim
entregar-se a ponderações que permitem analisar dois lados de uma mesma situação a
fim de questioná-la. Mais uma vez, há aqui indícios de uma personalidade narrativa que
não impõe a concepção do narrador a partir de uma única verdade que julga as demais
como inferiores. Já no início do texto o autor aponta a importância de “remexer o mais
íntimo das consciências”, desconfiando daquilo que aparenta ser socialmente benéfico.
A ausência de modéstia nada mais é que um artifício humorístico. A partir dele
Machado convida o leitor a pensar a real validade do processo abolicionista, mostrando
que “a Abolição não é um movimento da escuridão para a luz, mas a simples passagem
de um relacionamento econômico e social opressivo para outro” (Gledson: 2003, 145).
Nesse sentido, ao começar o texto já se diferenciando do restante da população, está
considerando esse restante como a maioria abolicionista, que não questiona o
movimento.
Entretanto, o que o cronista parece buscar é exatamente os motivos que levam ao
abolicionismo e ao seu contrário, reclamando que “ninguém dá a razão desta coisa ou
daquela coisa”, de modo que são frágeis as opiniões e esvaziados os significados. Em
um discurso comumente irônico, Machado de Assis conduz o texto garantindo que
obteve uma opinião racional depois de refletir sobre as duas opiniões. Como aspecto
97
característico de sua narrativa, no entanto, não apresenta uma argumentação totalmente
explícita, como se utilizasse a crônica como um processo reflexivo acerca do tema,
preferindo fazer o leitor pensar junto ao cronista.
Assim, utiliza exemplos que possam ilustrar sua reflexão, como o aluguel de
escravos e o “bom salário” que estes, ao que parece, alcançaram. A alusão a Clapp – em
um episódio ficcional em que o presidente da Confederação Abolicionista devolve
escravos fugidos a seus respectivos donos –, como aponta Magalhães Júnior, “é
pilhérica” (apud Gledson: 2003, 145). Nesse sentido, o cronista relativiza a eficácia da
tão aclamada Abolição, demonstrando que “a liberdade conduz a outra forma de
submissão dos fracos aos fortes” (Gledson: 2003, 145).
Por fim, a partir do que aparenta ser uma drástica alteração de assunto, o autor
termina a crônica despertando o leitor para outra mudança questionável: a da Monarquia
para a República. Recorrendo ao alemão com a frase “Seria fácil provar que o Brasil é
mais uma oligarquia absoluta do que uma monarquia constitucional”, Machado afirma
que, mesmo num processo aparentemente transformador do governo, o poder
permaneceria com a oligarquia. Mais uma vez, portanto, reiteramos a ideia transmitida
em Esaú e Jacó de que, assim como se mudam os governos, é também possível mudar
de roupa sem trocar de pele. Ou seja, a forma de governar, independentemente do
regime, continuará sendo a mesma.
Diversas outras crônicas de Bons Dias! tratam deste assunto e de outros
referentes ao cenário político da época. Para Gledson, porém, a importância da série vai
além da temática que em geral aborda:
Se o objetivo deste capítulo fosse simplesmente defender a importância de
um estudo das crônicas de Machado, eu não poderia começar com nada
melhor do que com esta série “Bons dias!”. Não é apenas por coincidir com
acontecimentos importantes como a abolição da escravidão ou a formação
do gabinete liberal, em junho de 1889. É, fundamentalmente, pelo fato de
constituírem uma série; são algo mais que as crônicas que Machado, por
acaso, escrevia na época. Naturalmente, não podem ser lidas como um
romance [mesmo como romance-diário que abrange o mesmo período,
Memorial de Aires], mas também não são uma simples continuação da série
da “Gazeta de Hollanda”, que Machado parou de publicar em 20 de
98
fevereiro de 1888, e que, por sua vez, ele iniciara em novembro de 1886
(Gledson: 2003, 137).
O crítico destaca, ainda, o fato de as crônicas dessa série serem anônimas,
diferentemente das anteriores, fato que proporcionou ao escritor maior liberdade ao criá-
las. A Semana também era de certo modo anônima, pois o texto não trazia assinatura,
mas era de conhecimento público que quem as publicava era Machado de Assis. Essas
duas séries, às quais nos dedicamos com mais ênfase nesta pesquisa, correspondem a
uma fase mais madura do escritor, com romances já publicados. Isso é essencial para
perceber a relação da crônica com o conto e com o romance, uma vez que seu estilo
singular como ficcionista estava sendo desenvolvido.
Sendo assim, ratificamos que o estudo do Machado cronista é importante não só
para a compreensão e a interpretação de sua própria obra, mas também para entender o
desenvolvimento e as mudanças ocorridas no gênero crônica desde sua aparição nos
trópicos.
99
Conclusão
A partir de uma pesquisa centrada nas principais crônica das séries A Semana e
Quincas Borba – ambas sem assinatura mas reconhecidamente escritas por Machado de
Assis e representativas de sua fase madura –, demonstramos que os textos publicados
em jornal pelo escritor revelam, em alguma medida, o desenvolvimento de seu estilo e
contribuem para a formação da crônica como gênero literário.
Com a implementação do folhetim no Brasil, realizada por José Justiniano da
Rocha, foi possível traçar um paralelo entre os folhetinistas José de Alencar e Machado
de Assis a fim de verificar em que aspectos se diferenciam ou se aproximam e, assim,
também perceber características próprias do texto que era publicado no rodapé dos
jornais. Desse modo, delineamos um breve percurso do folhetim, desde sua aparição na
imprensa brasileira até as publicações de Machado de Assis, que passaram a fazer parte
dos jornais regularmente pouco mais de vinte anos após o surgimento dessa seção.
Com base nisso, pudemos verificar a relação de Machado com o folhetim, as
críticas relacionadas ao gênero – referente à cópia dos modelos franceses pelos
folhetinistas, que, para o escritor, deveriam buscar originalidade – e a maneira do autor
de criar suas crônicas, inicialmente por meio de pseudônimos que de certa forma
mascaravam sua identidade autoral. Tal artifício proporcionou maior liberdade ao
cronista para tratar, por exemplo, de temas políticos, já que o assunto muitas vezes não
podia ser abertamente comentado devido à ideologia veiculada e até mesmo imposta
pela imprensa. Ainda assim, a política sempre foi bastante abordada por Machado, tanto
nas crônicas iniciais como nas mais recentes, em que não mais utilizava pseudônimos.
Além disso, vimos que um aspecto bem explorado pelo escritor, próprio da
crônica carioca, é a relação com a cidade e com as pessoas que nela habitam.
Demonstramos, assim, que a crônica machadiana torna relevante o cenário urbano não
por fazer dele o principal do texto, mas por inseri-lo na crônica de modo a torná-lo
peculiarmente relevante, caracterizando o gênero por meio de um espaço singular.
Como mostramos, a interação entre o Rio de Janeiro e a crônica machadiana tem a ver
também com a vida do escritor, pois ele praticamente não saiu da cidade.
A forma de conduzir o texto – a partir de técnicas narrativas que indicam um
estilo particular e de um tom irônico que viria a marcar até mesmo estruturalmente a
obra de Machado de Assis –, possibilita o reconhecimento da crônica como gênero
literário. Além de o cronista não se limitar ao registro ou ao simples comentário de um
100
ou mais episódios, mas os utilizar como pretexto para proporcionar reflexão ao leitor,
percebemos que sua crônica explora a ficção pelo imaginário do autor. Nesse sentido,
entendemos que os discursos histórico e ficcional, com base no que explicita Luiz Costa
Lima, se mesclam na crônica machadiana, possibilitando que a tríade proposta por
Wolfgang Iser, composta pelo real, pelo fictício e pelo imaginário, também seja
identificada.
Essa relação entre ficção e história ratifica o entendimento da crônica como
gênero eminentemente literário. Sabendo que a identificação do caráter literário no texto
não é simples e lembrando mais uma vez que “a literatura se define por um aspecto que
o texto assume” (Lima: 2010, 146), o que pode garantir essa característica é a
experimentação do estilo machadiano, que a afasta a crônica das exigências da
reportagem e a aproxima de uma criação que revela a personalidade do escritor. Nesse
caso, o cronista se assume não apenas como repórter que registra determinado
acontecimento, mas também e sobretudo como narrador que mistura o visto e o
imaginado.
Assim, pudemos explorar a relação da crônica com o conto e o romance de
Machado de Assis. Entendemos que sua composição narrativa, suas ideias e a
universalidade de seus textos podem ser percebidas, cada uma à sua maneira, na
extensão desses três gêneros. Vimos que, embora os gêneros evidentemente se
diferenciem entre si, na crônica o escritor também explora um estilo próprio, que seria
naturalmente aprofundado em seus romances. A partir desse estilo ou da temática
abordada, é plenamente possível verificar aproximações entre os gêneros citados.
De acordo com estes apontamentos, demonstramos que a crônica se destaca na
obra machadiana não somente pela dedicação do escritor à atuação praticamente
ininterrupta nos jornais por quase cinquenta anos, mas por ser um texto importante tanto
para compreender o desenvolvimento de seu estilo narrativo como também para obter
maior conhecimento das ideias e opiniões do cronista. Além disso, confirmamos que o
estudo de suas crônicas é fundamental para aprofundar a pesquisa do folhetim e da
crônica no Brasil, podendo situá-los no cenário literário.
Ao longo desta pesquisa sobre a crônica de Machado de Assis, inicialmente
desenvolvida a partir do reconhecimento de teorias formuladas pelo escritor que
conectavam uma crônica a outra, despertou a atenção esse ponto em comum entre a
crônica e o romance, gênero em que também nos deparamos com teorias pensadas nesse
caso pelo narrador – a exemplo da lei da equivalência das janelas, em Brás Cubas, e a
101
filosofia do Humanitismo, em Quincas Borba. Não sendo portanto exclusividade do
romance, o desenvolvimento de teorias se consagra como uma marca filosófica e
reflexiva da obra machadiana.
Com base nesse aspecto, pretendemos buscar outros elementos que pudessem
aproximar gêneros distintos da crônica a esse texto em jornal a que Machado começou a
se dedicar desde muito cedo. Sabendo que sua ficção se destaca sobretudo devido à
inovação que proporcionou, um dos interesses deste trabalho foi perceber a relação dos
textos ficcionais de Machado, como o conto e o romance, com a crônica, que mescla
realidade e ficção por funcionar também como registro de um acontecimento em
periódicos.
A partir da leitura dos estudos de John Gledson, em que se encontra o
apontamento da conexão de uma crônica da série A Semana com Esaú e Jacó, foi
possível aprofundar o olhar a respeito desse assunto e compreender o desenvolvimento
do estilo machadiano em gêneros que tratam do mesmo tema, mas obviamente com as
características de cada um, de modo que a crônica apresenta um estilo mais simples, ao
passo que no romance há maior desenvolvimento desse estilo. Isso acontece devido às
especificidades de composição de cada gênero, como o próprio Machado afirma ao
comentar que na publicação de A mão e a luva em folhetim teria sido “natural que a
narração e o estilo padecessem com esse método de composição” e que, “se a escrevera
em outras condições, dera-lhe desenvolvimento maior” (Assis apud Silva: 2015, 52).
O desdobramento da temática da crônica em um romance, como apontou
Gledson, evidencia a existência de paralelos na obra machadiana. Após a leitura de
Karlheinz Stierle, Wolfgang Iser e Luiz Costa Lima sobre a ficção, com destaque para
os dois últimos, percebemos que a crônica de Machado de Assis em alguma medida
trabalha a ficção e, assim, demonstra técnicas narrativas mais simples, que nos
romances o autor utilizaria de maneira aprofundada. Assim, o perspectivismo, que na
crônica geralmente aparece por meio da apresentação de mais de uma opinião sobre um
mesmo assunto, no romance é desenvolvido mais a fundo, de modo que o autor introduz
na literatura o tema da cisão da consciência. Dessa forma, tanto na crônica como no
romance ou no conto, como também vimos, Machado trabalha o perspectivismo a fim
de demonstrar que o sentido dos enunciados varia conforme o ponto de vista.
Tudo isso acontece no cenário carioca, que faz da crônica um texto
essencialmente urbano, nascido da informalidade de uma conversa na rua. O escritor,
102
como lembra Marcelo Moutinho em O Globo em 28 de fevereiro de 2015, possibilitou
que a conversa fiada se tornasse literatura:
Machado de Assis desconfiava que a crônica nasceu de um papo trivial
entre duas vizinhas. “Entre o jantar e a merenda, sentaram-se à porta, para
debicar os sucessos do dia”, relata. Reclamavam do calor que castigava a
cidade. Do sol passaram à ceia de ontem, e da ceia às ervas, às plantações,
aos moradores do bairro. Conversa fiada, que o próprio Machado ajudou a
transformar em gênero literário.
A paisagem urbana, que muitas vezes é o cerne da discussão no texto, é o ponto
que une as publicações de diversos cronistas a Machado, como João do Rio, Olavo
Bilac, Lima Barreto, Rubem Braga, João Antônio, Fernando Sabino e muitos outros. O
conflito entre o Rio “bárbaro” e o “moderno” foi – e continua sendo – tema bastante
abordado nas crônicas. Enquanto Bilac defendia o término na Festa da Penha em nome
do progresso civilizatório, por exemplo, Lima Barreto se posicionava contra as
repressões e extinções que aconteciam devido ao processo de modernizar a cidade.
Assim como afirma ainda Moutinho, “[o cronista] se confunde com a cidade, sente-se
parte de seu calçamento, argamassa dos muros, do burburinho da multidão”.
Além dessa interação da crônica com a cidade, interessa indicar brevemente a
relação entre Machado de Assis e Rubem Braga – ainda que não tenha sido explorada
nesta pesquisa – no que diz respeito ao conteúdo político das publicações. A inserção do
primeiro como cronista na imprensa brasileira foi, na época, um modo de romper com o
alheamento do jornal em relação às problemáticas sociais e rotineiras, de certa forma
despertando o leitor para a crítica e a discussão políticas: “Machado reconhece a
diferença entre as correntes filosóficas e as ideias frouxas da redação e tece, através da
ambiguidade dos valores sociais, textos que dão ao leitor uma visão ampla da
representação do jornal na sociedade” (Pereira: 2004, 70). Rubem Braga também
escreveu crônicas a respeito de momentos políticos, como “A Revolução de 30” e “Na
Revolução de 30”, ambas publicadas no livro Aventuras, organizado por Domício
Proença Filho. Entretanto, uma nítida diferença percebida entre os dois é que, enquanto
Machado comenta os assuntos geralmente a partir do que era noticiado, Rubem Braga
costuma relatar experiências próprias. Ainda assim, aproxima-se de Machado ao refletir
criativamente na crônica:
103
O cronista Rubem Braga se vale dos seus textos seja para refletir, de modo
criativo, sobre o presente, seja para trazer de volta o passado, na memória
afetiva. Tudo retorna, na recordação e na palavra. Mas o escritor vai além da
simples história pessoal: leva o leitor a sentir-se próximo das sensações que
destaca. Sente a crônica (Proença Filho: 2002, 10).
Diante dessa perspectiva, vemos que a memória afetiva, que não é uma
característica das publicações de Machado, passa a estar mais presente na crônica
carioca. É um novo modo de escrita, que conquista o leitor por meio de outros artifícios
mais ligados a experiências emocionais. Assim, o autor não busca se mascarar, como
muitas vezes acontece na crônica machadiana, em que o escritor utiliza a ficção para
tentar não ficar em evidência. A crônica contemporânea muitas vezes nasce de
recordações do autor e de memórias que traçam um paralelo com a atualidade, de modo
que o cronista se apresenta como personagem principal do texto.
Nesse caso, Rubem Braga produz a partir de um acontecimento do cotidiano,
como é comum à crônica, permitindo que o texto se submeta ao episódio. Assim, seu
escrito é criado como discurso literário, mas sem perder de vista o fato. Diferentemente
disso, Machado de Assis, ao explorar ficcionalmente o texto, transcende o episódio
comentado, fazendo com que esse caráter ficcional seja crucial para refletir sobre os
âmbitos político e social da cidade e do país em sua época. É dessa maneira, portanto,
que o autor demonstra o potencial da crônica como gênero literário.
Atualmente, as crônicas de jornal se diferenciam, ainda que por vezes
encontremos algumas aproximações, do estilo machadiano de provocar reflexão por
meio da apresentação de pontos de vista distintos. Em geral, são escritas a partir do
ponto de vista exclusivo do cronista, ainda que também façam o leitor pensar e criticar o
que se diz.
A urbanidade, tão explorada por Machado, é uma característica que permanece
como marca peculiar do gênero, como podemos constatar, por exemplo, nesta crônica
de 31/08/2015 publicada por Joaquim Ferreira dos Santos no jornal O Globo:
Esta cidade outrora peripatética, hoje escondida em algum lugar das
multidões estressadas e dos engarrafamentos não menos, vai dar no
domingo uma olhadinha aqui fora para ver se ainda há tempo de reverter
104
esse progresso de araque. Setenta anos depois de acabarem com a Praça
Onze, reabre-se com desenho espetacular a Praça Mauá. Como plus da
novidade, fecham-se aos carros os dois quilômetros da Avenida Rio Branco.
Para quê? Ora, meu caro, para a mais urgente prioridade da civilidade
urbana, a mais terapêutica das recomendações sociais e a mais cara
necessidade de saúde pública: para o mais puro bestar.
Como se vê, a linguagem se adapta ao tempo, a interação com o leitor continua
sendo utilizada como artifício de aproximação entre quem escreve e quem lê e o Rio de
Janeiro permanece como cenário principal e até mesmo como tema. Considerando as
reformas pelas quais a cidade passou recentemente, os cariocas tiveram um período
bastante relacionado, por exemplo, com o bota-abaixo do prefeito Pereira Passos, não
por acaso citado em outro momento dessa mesma crônica de Joaquim Ferreira dos
Santos.
A crônica, nesse sentido, se atualiza mas não perde de vista todo o
desenvolvimento inicial que contribuiu para as naturais modificações do gênero. A
importância de Machado de Assis, portanto, está nessa contribuição. Aliando o texto
jornalístico à ficção, explorando a escrita literária e seu estilo próprio, bem como
produzindo um texto potencialmente reflexivo, o autor se consolidou como influência
para os cronistas que o sucederam, os quais, cada um a seu modo, continuaram
modernizando a crônica e expandindo o olhar dos leitores por meio de uma literatura
que – relembrando a afirmação de Antonio Candido – fica perto de nós.
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