Machado de Assis Historiador - Sidney Chalhoub

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    Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutandopor dinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo

    nvel.

  • Dedico aLara, a minha Helena,

    Lucas e Sandra, de novo, e sempre

  • Sumrio

    Prlogo e agradecimentos

    1. Paternalismo e escravido em HelenaArgumentoA ideologia senhorial: descrioA ideologia senhorial: uma leitura a contrapeloMisria e chocolateEntreato tericoEscravido

    2. A poltica cotidiana dos dependentesPercurso e argumentoDe Helena a Iai GarciaBrs Cubas e as mulheresA experincia da derrotaHistria e forma literria

    3. Cincia e ideologia em Memrias pstumasde Brs Cubas

    Anedota requentada e argumentoSobre genealogia e outros assuntos de famliaSobre borboletas, superstio e superioridade naturalVida lutaNarizes metafsicos

    4. Escravido e cidadania: a experincia histrica de 1871MarianaA arte de bordejarLucinda, de Joaquim Manoel de MacedoA rvore da escravidoLiberdade aos frutosPeclio e alforria forada

  • Jos de Alencar e a experincia da derrotaMatrculaFundo de emancipaoNmero ilimitado de membrosDesfecho: cidadania e literatura na sintaxe da excluso

    NotasFontesBibliografia

  • Prlogo e agradecimentos

    A pesquisa que originou este livro iniciou-se, inadvertidamente, em fins da dcada de 1980.Redigia, poca, um livro sobre a histria da escravido no Rio imperial. Por acidente depercurso, que j no cabe aqui relembrar, retornei obra de Machado de Assis enquantoescrevia aquele texto. Viajei ento em suas pginas impregnadas do velho Rio, aquela cidadede distino senhorial, rua do Ouvidor, teatro lrico, folhetins, poltica, burocracia, finanas etodo o resto escravos, agregados, caixeiros, operrios, cortios, febre amarela, varola...Como historiador, desde sempre, fora esse resto que me interessara. A releitura deMachado, mediada por vrios anos de pesquisa sobre a histria social do Rio no sculo xix,foi dessas experincias intelectuais que no passam, e ainda assim deixam saudade. Surpreso,encontrava naqueles textos exposio detalhada das polticas de dominao social quebuscava reconstituir a partir de outras fontes histricas; perplexo, percebia ali muita alegoriae reflexo sistemtica sobre a experincia social de escravos, dependentes e outros sujeitosque, dizia-se, no estavam no centro da obra de Machado. Aos poucos, e aps outra longapesquisa sobre epidemias na Corte imperial sombra dos textos machadianos, pareceu-me de bom alvitre deixar de mudar de assunto.

    Em meados dos anos 1990, incomodado com a carncia de informaes mais diretas sobreas idias polticas e sociais do romancista, passei a investigar com cuidado a vida dofuncionrio pblico Joaquim Maria Machado de Assis. Conhecedor dos meandros daadministrao imperial, ciente da possibilidade de encontrar tesouros insuspeitados nalgunsdaqueles maos e mais maos de rotina burocrtica, li tudo que pude encontrar sobre otrabalho na segunda seo da Diretoria da Agricultura do Ministrio da Agricultura durante operodo no qual Machado chefiou tal repartio de meados dos anos 1870 at o final dadcada de 1880. Descobri logo que os principais assuntos da seo eram poltica de terras eescravido neste caso, mais precisamente, estava encarregada de acompanhar a aplicaoda lei de 28 de setembro de 1871, depois apelidada Lei do Ventre Livre.

    O resultado da coleta foi desigual. Nos livros de minutas de avisos e ofcios redigidos narepartio quase nada est assinado. Esse problema foi fcil de resolver, pois bastou arranjaralgumas pginas fotocopiadas com a caligrafia de nossa personagem e passar dias divertidosno Arquivo Nacional, a identificar sinuosidades habituais dessa ou daquela letra. Aps algumtreino, achava os manuscritos do bruxo num relance. Para aumentar a minha autoconfiana,encontrava, mui raramente, um bilhete ou outra coisa deveras assinada pelo chefe da seo.

  • De qualquer modo, parecia evidente, pelo estudo da rotina do servio, que Machadoexaminava, pelo menos superficialmente, tudo que circulava em seu setor. Tambm se tornourazovel supor que era o principal responsvel pelas diretrizes polticas gerais do trabalho daseo, ainda que isso pouco signifique quanto orientao geral da Diretoria da Agricultura,ainda menos do Ministrio da Agricultura, mais remotamente ainda do governo imperial... Defato, aprendi bem mais durante a pesquisa nas situaes em que foi possvel recuperar comalgum detalhe, sobre uma qualquer questo baila, o debate entre os funcionrios da segundaseo e os de outros setores do governo imperial superiores em hierarquia, na esmagadoramaioria dos casos.

    Todavia, a coleta mostrava-se desigual num outro aspecto, mais difcil de contornar.Encontrei desde o incio um volume impressionante de material sobre poltica de terras. Aseo opinava cotidianamente sobre invaso de terras devolutas, demarcao e medio deterras, posses, sesmarias, terras de aldeamento, corte de madeiras e outras tantas questesfundirias. Durante alguns anos, li, selecionei, copiei, comprei microfilmes, juntei enfimquantidade absurda de material sobre o tema, que est agora a atravancar a bibliotecadomstica. No usei nada disso neste texto. Com o tempo, notei a ausncia quase completa deavisos e ofcios sobre escravido e emancipao de escravos nos livros que consultava.Avanava na pesquisa, recorria a outras fontes e tinha notcia desse ou daquele aspecto da leide 28 de setembro de 1871 discutido na seo, porm no achava nada disso na documentaomanuscrita da repartio. Talvez por acreditar que pesquisa em arquivos nunca encontraobstculos, apenas sugere novas pistas, busquei cercar a segunda seo em outros setores efontes da administrao pblica. Tinha de descobrir pareceres sobre a lei de 1871, peloencanto do desafio, mas tambm porque o meu modo de ler os romances de Machado dependiamuito visceralmente de interpretar o sentido da experincia histrica da dcada de 1870, todaela marcada pelos debates para a aprovao da dita lei e pelas conseqncias de suaaplicao.

    De incio, fiz o bvio. Li todos os relatrios ministeriais da Agricultura e seus anexos,alguns deles incrivelmente ricos e detalhados, mais outras fontes impressas, leis eregulamentos. Nalgum ponto, passei a compulsar os pareceres sobre escravido, muitos delessobre aspectos da lei de 1871, nos papis do Conselho de Estado. L estava a segunda seo aformular vrias das consultas enviadas aos conselheiros, a emitir pareceres e rplicas svezes transcritas, outras vezes resumidas, outras vezes mui rapidamente mencionadas. Avantagem dessa documentao estava pois na chance de vislumbrar Machado de Assis e asegunda seo numa arena de luta, numa gama de interesses diversos e contraditrios, mesmoque circunscritos pela estrutura e rotina da administrao pblica. Ainda que fosse ilusrioesperar encontrar, em tais fontes e circunstncias, longas expanses de Machado sobre suasidias polticas e sociais, o fato que havia uma ou outra passagem sugestiva a merecerreleituras numa rede apertada de interlocuo social. Esse acidente de percurso ocupou-me os

  • ltimos trs anos, talvez mais, no sei dizer. Ao terminar o quarto captulo, havia aportado emalgum lugar, e dei por concluda essa etapa. Quanto poltica de terras, cousas futuras,quem sabe.

    A organizao deste volume traduz, digamos assim, as duas vertentes que constituram oesforo de investigao. Os trs primeiros captulos interpretam romances de Machado deAssis, em busca do sentido das mudanas histricas do perodo, segundo a viso dele, econforme a sua inteno, ou ao arrepio dela. No sei se me entendem. O prprio Machado mesocorre, por meio de seu narrador dalm-tmulo, para dizer que o melhor prlogo o quecontm menos cousas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado. Que assim seja. Aleitora entender bem o intuito desses captulos ao ler o primeiro deles. O quarto e assazlongo captulo apresenta os resultados da pesquisa sobre o debate, a aprovao e a aplicaoda lei de 28 de setembro de 1871. Captulo tradicional de Histria, enfim, para fundamentar omodo de ler as histrias nos trs primeiros. Verdade que tudo isso confunde um tanto ascoisas. No me ocorreria ler as histrias de determinado modo sem o estofo da Histria queconto depois, mas que no aprendi depois. Tambm verdade que no veria Histria nenhumanas histrias de Machado de Assis sem a experincia intelectual de ler outros intrpretes dele,com os quais tento estabelecer um dilogo mais direto. Refiro-me, principalmente, a JohnGledson e a Roberto Schwarz. O primeiro incentivou-me algumas vezes, em conversaspessoais e por correspondncia, e devo agradecer-lhe por isso tambm.

    Aos agradecimentos, pois. Como sempre, minha dvida principal para com o ArquivoNacional, onde realizei praticamente toda a pesquisa. Sou muito grato a Helena, Rogrio,Stiro e Valria, que me auxiliam h anos na sala de consulta do Arquivo. Na Unicamp,utilizei as bibliotecas do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas, do Instituto de Estudos daLinguagem e do Centro de Memria, e agradeo a todos os funcionrios a gentileza com queme atendem. Nos Estados Unidos, estive no Institute for the Humanities, da Universidade deMichigan, no primeiro semestre de 2000. Durante alguns meses trabalhei em condiesexcelentes, apoiado por equipe atenciosa e pela tima biblioteca da universidade. O cnpqpresta auxlio financeiro ao projeto desde 1996, por meio de bolsa de produtividade empesquisa; a Fapesp concedeu-me bolsa de ps-doutorado, o que permitiu prolongar a estadiana Universidade de Michigan.

    So tantos anos a apresentar seminrios e palestras sobre Machado de Assis, no Brasil enos Estados Unidos, que impossvel lembrar de todos que me brindaram com sugestes ecomentrios crticos. Nos Estados Unidos, agradeo em especial a Peter Beattie, Dain Borges,Brodwin Fischer, Richard Graham, Sandra Graham, Aims McGuinness, Rebecca Scott eThomas Trautmann. Mui especialmente, a Sueann Caulfield, que me acolheu em Michigan eincentivou este projeto todo o tempo. David Treece enviou, de Londres, comentrios sobreverso anterior do terceiro captulo. Na Unicamp, meu carinho e gratido s amigas eparceiras de tantos anos: Maria Clementina Pereira Cunha e Silvia Lara. Nossos debates em

  • seminrios so s vezes to intensos, sempre to ricos, que possvel que eu tenha roubadouma ou outra idia delas sem me dar conta. Robert Slenes continua meu mestre, ponto. Foi elequem sugeriu, h muito tempo, talvez nem se lembre, o retorno a Machado de Assis. Ainda nombito do Centro de Pesquisa em Histria Social da Cultura (Cecult), Cludio Batalha eCarlos Roberto Galvo Sobrinho apoiaram sempre, criticaram quando necessrio. Cludio feztambm a gentileza de me resolver inmeros assuntos domsticos quando estive por longoperodo, e com toda a famlia, nos Estados Unidos. Henrique Espada Lima Filho e LeonardoAffonso de Miranda Pereira foram grandes companheiros de trabalho no Cecult; e continuosob a proteo indispensvel de Uliana Ferlim e Luciana Barbeiro. Michael Hall leu,comentou e corrigiu as primeiras verses redigidas em ingls dos segundo e terceirocaptulos. Aos funcionrios do Arquivo Edgard Leuenroth, da Unicamp, agradeo a consulta aum ou outro documento, mas sobretudo a pacincia com que aturaram um diretor um tantoavoado, outro quanto ausente, nesses ltimos meses. Regina Horta Duarte enviou sugestes ecrticas de Belo Horizonte. Margarida de Sousa Neves comentou verso do terceiro captuloem mesa-redonda da Anpuh/2001 com aquela amlgama de agudeza crtica e carinho deque s ela parece capaz. O texto foi defendido como tese em concurso ao cargo de professortitular, na Unicamp, em julho de 2003. Agradeo aos membros da banca por sua leitura atentae generosa: Arnaldo Contier, Janice Theodoro da Silva, Angela Maria de Castro Gomes, JooJos Reis e talo Tronca. Finalmente, um agradecimento especial a Marta Garcia, daCompanhia das Letras, pela gentileza e cuidado na preparao de meus livros.

    um prazer reconhecer que este trabalho foi concebido e nutrido, em grande parte, nassalas de aula. Ministrei vrios cursos sobre histria e literatura ao longo da dcada de 1990,vrios deles sobre Machado de Assis. Os trs primeiros captulos, de fato, surgiram napreparao das aulas para tais cursos. Nesse perodo, vrios alunos que freqentaram essasdisciplinas formaram-se na graduao, fizeram mestrado, concluram doutorado, ingressaramno ps-doutorado..., ou se foram para outras universidades. Outros continuaram roda, algunsna torcida explcita para que eu conclusse o texto. Sou grato a todos pelas perguntas e peloceticismo construtivo, expresso s vezes numa careta, num olhar enviesado. Menciono trsdeles, de quem tenho aprendido muito, na leitura do que escrevem, e naquilo que dizem sobreo que escrevo: Gabriela dos Reis Sampaio, Jefferson Cano e Leonardo Affonso de MirandaPereira.

    Quanto famlia, apoio incondicional, que no h como agradecer, ficando a esperana deretribuir de igual modo. Pais e sogros acolheram-me no Rio, em tantas viagens de pesquisa.Na casa de meus pais encontrei refgio para escrever, vez ou outra, quando precisava dededicao integral ao texto. Sandra continua a meu lado, firme, uma tese atrs da outra.Qualquer palavra de gratido pouca. Lucas e Lara nasceram e crescem enquanto o pai l eescreve sobre Machado de Assis. Nos ltimos meses, mostram-se revoltados com tantos finsde semana mornos, sem graa. Lara promete colocar-me de castigo: um ms sem trabalhar

  • no computador. Lucas quer navegar na internet. Alegria, crianas, podem brincar nestageringona.

  • 1. Paternalismo e escravidoem Helena

    argumento

    Ao contar suas histrias, Machado de Assis escreveu e reescreveu a histria do Brasil nosculo xix. Essa hiptese vem sendo defendida, a meu ver de forma bastante convincente, porcrticos literrios como Roberto Schwarz e John Gledson, e tem se revelado importante paradesvendar e potencializar significados nos textos machadianos.1 Na tica de Schwarz, a obrade Machado interpretada como um comentrio estrutural, por assim dizer, sobre asociedade brasileira do sculo xix: o romancista expressa e analisa aspectos essenciais aofuncionamento e reproduo das estruturas de autoridade e explorao vigentes no perodo.Schwarz procura mesmo explicar a trajetria da obra machadiana como um processo deexperimentao e busca de um dispositivo literrio que capta e dramatiza a estrutura dopas, transformada em regra de escrita.2 Gledson, por outro lado, est mais preocupado emperseguir o movimento da histria nos escritos de Machado: o crtico demonstra, numprocedimento sistemtico de decifrao de aluses e alegorias, que o romancista comentouintensamente as transformaes sociais e polticas de seu tempo. Se a pena de Gledson revelaum Machado empenhado em interpretar o sentido da histria, tambm mostra que tal esforo acompanhado de um processo no menos intenso de dissimulao e despistamento do leitor,que no raro v o seu esforo de entendimento solenemente enviado para as calendas gregas.

    claro que as perspectivas de Schwarz e Gledson se completam, e que questes deestrutura e de movimento so pertinentes e precisam estar presentes na anlise da texturasempre complexa, quando no deliberadamente minada, do romance machadiano. Afinal, oprprio Machado j nos mandara a todos para as calendas gregas no captulo lxxii deMemrias pstumas de Brs Cubas. L est o crtico e biblimano, um sujeito magro,amarelo e grisalho, que, setenta anos depois, encontra um exemplar nico das Memrias e seempenha em decifrar seus aparentes despropsitos. Esse sujeito, que parece amar os livrosacima de todas as coisas, e que tambm estrbico, mope, calvo e corcunda, vira e revira aspalavras, examina-as por dentro e por fora, e finalmente desanima de tentar entender os seussignificados. Isso soa como advertncia, porm funciona como vertigem.

    Neste captulo, o objetivo apresentar um modo de ler Helena em que a viso de Machadosobre a histria social e poltica do Brasil em meados do sculo xix ocupa o centro da

  • concepo e estrutura narrativa da obra. Em resumo, esse romance seria uma interpretao dasociedade brasileira durante o perodo de hegemonia do projeto saquarema o temposaquarema, na expresso cunhada por Ilmar Mattos.3 Em Helena, os acontecimentos narradosesto situados na dcada de 1850, o que permite a Machado uma anlise pormenorizada davigncia de uma hegemonia poltica e cultural, historicamente especfica, que informa eorganiza a reproduo das relaes sociais desiguais. Em outras palavras, uma poltica dedomnio assentada na inviolabilidade da vontade senhorial e na ideologia da produo dedependentes garante uma unidade de sentido totalidade das relaes sociais, que parecemento seguir o seu curso natural e inabalvel. Todavia, Helena no podia ser apenas o registrode certa estrutura de dominao: Machado escreveu tal romance em 1876, evocando asprticas sociais e o clima vigentes na dcada de 1850. Ou seja, preciso ler Helena emsuas duas historicidades: a da narrativa anos 1850 e a do autor 1876 , e considerarque houve, de permeio, a crise social e os debates polticos intensos que culminaram na lei de28 de setembro de 1871, depois conhecida como Lei do Ventre Livre. Escrito na perspectivade quem presenciara a emergncia da crise nas formas tradicionais de domnio, Helena setorna tambm uma revelao, s vezes sutil, outras vezes aberta e at informada pelopropsito da denncia, dos antagonismos e da violncia inerentes s relaes sociais vigentesdurante o tempo saquarema.

    a ideologia senhorial: descrio

    Os captulos iniciais do romance, e especialmente o segundo, so uma cuidadosa descrioda ideologia senhorial. Morto o conselheiro Vale, personagem de famlia tradicional epertencente s primeiras classes da sociedade, as aes e tenses convergem para asdisposies testamentrias do finado. O episdio parece exemplar e concentra o significadosocial mais decisivo a um determinado iderio de dominao de classe: a vontade do chefe defamlia, do senhor-proprietrio, inviolvel, e essa vontade que organiza e d sentido srelaes sociais que a circundam. Um dos momentos mais cruciais e ritualsticos desse idealde dominao/subordinao o da morte seguida da abertura de testamento; de fato, o que ficaexpresso em tal contexto que a vontade senhorial carrega tamanha inrcia que continua agovernar os vivos postumamente. Por um lado, o testamento a manifestao mxima de umavontade senhorial, sendo ao mesmo tempo o encaminhamento da continuidade de uma polticade domnio que precisa sobreviver ao ato derradeiro daquela vontade especfica. Por outrolado, a situao do testamento, e posterior inventrio, apresenta sempre um potencial detenso e conflito: os herdeiros defendem seus interesses, e freqentemente se desentendem, noprocesso de partilha dos bens; os agregados e dependentes em geral vivem a incerteza dapermanncia de arranjos passados; e os escravos, via de regra o elo mais frgil, enfrentam orisco de ver suas famlias e comunidades divididas entre os herdeiros ou bruscamente

  • destrudas por transaes de compra e venda.O conselheiro Vale, todavia, tivera um nico filho, o jovem Estcio, personagem de

    robustas qualidades e formado em matemticas. Na ausncia de tenso e partilha entreherdeiros, os ricaos do Andara poderiam talvez esperar um processo tranqilo de sucessofamiliar. Aberto o testamento, com todas as formalidades de praxe, descobre-se que oconselheiro reconhecia uma filha natural, de nome Helena, declarada herdeira da parte que lhetocasse de seus bens. Mais ainda, e numa demonstrao cabal de que o esprito do mortoconhecia perfeitamente o seu direito de governar os vivos, o conselheiro ordenava que amenina fosse viver com a famlia em Andara, e que todos a deveriam tratar com desvelo ecarinho, como se de seu matrimnio fosse (H, cap. ii).4 Em outras palavras, no satisfeito emlegar as suas propriedades, o conselheiro Vale dispunha que os seus tambm lhe deviamherdar os sentimentos.

    No cu azul e lmpido armou-se logo a tempestade, e Machado, em seguida, e ainda semabandonar por uma linha sequer o ponto de vista estritamente senhorial, estuda as tensesinternas classe dominante. Aquilo no podia ser, revoltava-se d. rsula, irm do finado, tiado guapo donzel das matemticas. Se o reconhecimento de Helena j era por si s um ato deusurpao e um pssimo exemplo (H, cap. ii), a boa senhora parecia especialmente irritadacom o fato de o defunto procurar impingir-lhe a menina no seio da famlia e de seus castosafetos (H, cap. ii). Que o finado perfilhasse a menina, v l, so as tais licenas jurdicas,mas governar-lhe os sentimentos em situao to melindrosa que no havia de ser. Narealidade, toda a arenga de d. rsula sobre a severidade dos costumes e a pureza de seussentimentos acaba se amoldando forma de um preconceito de classe: nada se sabia sobre aorigem dessa menina, nada constava sobre a me, alm do nome. Como fazer ascender assimuma mulher de ordem inferior? Aquilo fora um excesso, argumentava por seu turno o dr.Camargo, mdico e amigo da famlia. Esse dr. Camargo tinha um sonho, que consistia emcasar sua filha Eugnia, a flor dos seus olhos (H, cap. i), com o herdeiro do Andara; porconseguinte, o dito esculpio interpretou a perfilhao de Helena como uma subtraoindevida aos bens que, no futuro, seriam de Eugnia. Fora definitivamente um excesso, custa de direitos alheios (H, cap. ii). Machado impiedoso quanto aos motivos do dr.Camargo, chega a compar-lo a um rptil (H, cap. vii), e se delicia em descrever a frvolaEugnia como uma das mais brilhantes estrelas entre as menores do cu fluminense (grifomeu, H, cap. v).

    O fato, porm, que os preconceitos de d. rsula e a cupidez pecuniria do doutoracabaram se esvaindo diante de Estcio, o legtimo herdeiro das prerrogativas morais emateriais do conselheiro. No surpreende que tenha de ser assim, pois o filho era o principalinteressado em que as ltimas vontades do pai fossem cumpridas; com efeito, o ritual desubmisso s determinaes derradeiras do finado significava solidificar a prpria condiode Estcio como detentor, da em diante, do poder de exerccio da vontade senhorial. Na

  • fico ou inveno caracterstica dessa poltica de domnio, Estcio passava a encarar omundo sua volta como mera expanso, qui uma concesso, de sua vontade. Machado fazcom que o jovem encare os eventos como uma espcie de destino de classe, e chega, comefeito, a explicar que ele no cedia nem esquecia nenhum dos direitos e deveres que lhedavam a classe em que nascera (H, cap. ii). a Estcio, portanto, que fica a incumbncia deaparar as divises internas e disciplinar as resistncias e ambies que poderiamcomprometer o rumo natural das coisas. E o rapaz bate o martelo, com firmeza, mas com apolidez e a elegncia que eram um dever em sua condio. Assim, ao constatar a insatisfaoda tia com o reconhecimento de Helena, Estcio conclui porm que uma vez que seu paiassim o ordenava [...] ele a aceitava tal qual, sem pesar nem reserva (H, cap. ii); em seguida,ao responder s ponderaes do dr. Camargo de que o conselheiro teria sido mais prtico ejusto caso tivesse se limitado a deixar um legado a Helena, o rapago do Andara dispara quea estrita justia a vontade de meu pai (H, cap. ii); cada vez mais incisivo, Estcio pingaponto final discusso: No quero saber [...] se h excesso na disposio testamentria demeu pai. Se o h, legtimo (H, cap. ii). Diante da firmeza inquebrantvel do mancebo, sresta ao rptil um recuo estratgico: Camargo admite serem inteis os seus esforos e afirmaque o melhor era cumprir a resoluo do finado, lealmente, sem hesitao nem pesar (H,cap. ii); pouco adiante, em conversa com d. rsula, o doutor observa que Estcio aceitava osfatos filosoficamente e at com satisfao, e concorda que mais nada h do que cumprirtextualmente a vontade do conselheiro (H, cap. ii). A satisfao de Estcio, que o doutordizia no compreender, facilmente explicvel: ele conseguira manter o controle dosacontecimentos, entrava no pleno exerccio de suas prerrogativas senhoriais, e evitava ainda orisco de uma diviso definitiva do patrimnio numa partilha no amigvel. Afinal, a vontadedo conselheiro expressa em testamento tinha fora legal, e Helena adquiria direitos que, casousurpados, poderiam originar uma longa, incerta e desgastante batalha judicial. Estcio era,efetivamente, o hbil depositrio de uma tradio, um chefe de famlia/senhor/proprietrio,garantidor e continuador de toda uma hegemonia poltica e cultural.

    a ideologia senhorial: uma leituraa contrapelo

    Disse Estcio: que venha a menina. E assim se fez. Moa feita, de dezesseis para dezesseteanos, educada num colgio de Botafogo, Helena tinha prendas tais que deviam empalidecer asmooilas bem-nascidas sua volta: magnfica voz de contralto, pianista distinta, timadesenhista, fluente em francs e sabendo um pouco de ingls e italiano, alm da costura e dosbordados de costume (H, cap. iv). No que tange beleza, belssima. Apesar do mistrioquanto sua origem, e da resistncia inicial que comeava na tia rsula, passava pelosamigos da famlia e chegava at s senzalas, Helena acabou seduzindo todos menos,

  • claro, o rptil do Camargo , pois a donzela conseguia polir os speros, atrair osindiferentes e domar os hostis (H, cap. iv).

    Nada disso, todavia, era ainda o melhor de Helena. Se nos captulos iniciais do livroMachado descrevera a ideologia senhorial e explorara as tenses internas classe dominante,com Helena ele nos lana no bojo dos antagonismos de classe constitutivos dessa polticaespecfica de domnio. O processo extremamente sutil, por isso tenho dificuldade de avaliaro tanto de planejamento e o quanto de intuio havia nos procedimentos narrativos deMachado. A chave do problema, talvez a chave do livro, consiste em perceber que h napersonagem Helena, apesar das aparncias em contrrio, uma viso de mundo que lhe prpria, e que no pode ser entendida se referida apenas ideologia senhorial. Dito de outraforma, a protagonista decerto conhecia e compartilhava os significados sociais gerais que,regidos por Estcio e criaturas semelhantes, reproduziam aquele universo de relaes sociais;o fato crucial, no entanto, que Helena, por sua posio ambivalente, est condenada a umaintrojeo crtica dos valores e significados que organizam o mundo a partir do ponto de vistade Estcio.

    O primeiro aspecto a observar que Helena tem um mtodo prprio, por assim dizer, deconversar e de, conversando, interpretar a realidade sua volta. Tal mtodo est exposto emdetalhe no captulo vi, em meia dzia de pginas surpreendentes. Tudo comea com umaaparente puerilidade da mocinha: estando em companhia de Estcio e de d. rsula, a filha doconselheiro revela que, ao folhear um livro de geometria, tivera o desejo de aprender a montara cavalo. Como no parecia haver a qualquer relao manifesta de causa e efeito, o espantofoi geral. A pimentinha, satisfeita da travessura, explica ento que folheava o livro degeometria quando ouviu um tropel de cavalos e, chegando janela, ficara encantada com agarbosidade da amazona que passava; estava esclarecido, por conseguinte, o desejo deaprender a montar a cavalo. Na linha abaixo, Estcio j se oferece para dar lies deequitao irm, e os dois acertam uma aula para a manh seguinte.

    O episdio to inslito e pueril que o leitor dificilmente se deter em examinar o queHelena est fazendo na passagem. No entanto, a leitora atenta suspeitar talvez que Helenamentiu. A puerilidade do motivo inicial e depois a descrio visivelmente forada eidealizada da amazona provocam a suspeio. A mocinha pretende passear a cavalo, pormno quer pedir esse favor abertamente a Estcio, e logo ela inventa uma histria que obriga odonzel do Andara a oferecer-lhe as lies. O fundamental no contexto que Helena sabeinduzir em Estcio o comportamento que lhe interessa a ela; em outras palavras, a mooilaconhece perfeitamente as cadeias de causa e efeito que constituem a estrutura mental domancebo.

    A trama torna-se mais clara no dia seguinte, na ocasio em que havia de ocorrer a tal aulade equitao. Helena apresenta-se a carter, supostamente compenetrada de sua condio dealuna. Logo adiante, o homem das matemticas descobre, primeiro espantado, depois bem-

  • humorado, que a galhofeira da irm sabia cavalgar perfeitamente. Digo mal, pois h muitotutano na suposta galhofa. Leia com ateno o dilogo entre os dois jovens:

    No me dir voc, perguntou ele, por que motivo, sabendo montar, pedia-me ontem lies? A razo clara, disse ela; foi uma simples travessura, um capricho... ou antes um clculo. Um clculo? Profundo, hediondo, diablico, continuou a moa sorrindo. Eu queria passear algumas vezes a cavalo; no era possvelsair s, e nesse caso... Bastava pedir-me que a acompanhasse. No bastava. Havia um meio de lhe dar mais gosto em sair comigo; era fingir que no sabia montar. A idiamomentnea de sua superioridade neste assunto era bastante para lhe inspirar uma dedicao decidida. (H, cap. vi) Por um lado, tem-se aqui a confirmao de que, do ponto de vista da leitora, necessrio

    acompanhar os movimentos de Helena em estado de alerta mximo; ou seja, em certo sentido,h sempre a possibilidade de a rapariga estar mentindo, ou de estar omitindo coisas, e logoela no confivel. Por outro lado, e uma vez compreendido que a pequena tem um intelectosofisticado e capaz de dissimulaes, percebemos que ela se torna bastante confivel comointrprete da ideologia senhorial. Helena sabe que, no mundo ideal de Estcio, coisas epessoas aparecem apenas como expresso da vontade dele, e logo o rapaz e seus semelhantesgostam de se imaginar controladores de uma espcie de economia de concesses e favores.Helena tambm sabe, como veremos adiante, o quanto essa viso unilateral do mundo encerrade possibilidade de arbtrio e soluo violenta de conflitos. No momento, basta reter que amoa percebia que a melhor maneira de obter alguma coisa de Estcio era inculcar-lhe umasuperioridade qualquer; em outras palavras, ela decodifica com preciso os motivos doSenhor gemetra, e com isso consegue arrancar dele aquilo que deseja, com astcia, massem pedir nada, nem tampouco lutar abertamente. E como o momento de galhofa, a beldadechega a explicar ao rapago o quanto havia sido fcil induzi-lo a determinado comportamento.

    claro que Helena no poderia ser to astuciosa se no fosse crtica na mesma medida isto , a condio de sua astcia a capacidade de anlise e distanciamento em relao aoponto de vista de Estcio. De fato, o ncleo do mtodo crtico de Helena consiste narelativizao sistemtica da perspectiva de Estcio. O mtodo se anuncia, como que poracaso, ainda no trecho em que ela aparece pronta para montar a gua Moema e iniciar a aulade equitao (H, cap. vi). Em estilo grotescamente professoral, Estcio adverte: Venaprimeiramente o medo. A moa responde na bucha: No sei o que medo. Surpreso, mastentando no perder a pose de professor, o donzel ironiza a valentia da aprendiza de amazona,e afirma que ele, de sua parte, sabia o que era o medo. A jovem, contudo, prossegueimperturbvel: O medo um preconceito dos nervos. E um preconceito desfaz-se; basta asimples reflexo. Em seguida, Helena conta que em pequena no entrava em sala escuraporque lhe haviam ensinado a acreditar em almas de outro mundo; mais tarde, interrogou-sesobre a possibilidade de uma pessoa morta voltar terra, e como fazer a pergunta era j lhe

  • dar resposta, livrou-se de tamanha tolice, declarando-se agora capaz de ir passear noite numcemitrio. H aqui, de novo, um qu e tanto de galhofa; todavia, isso no nos deve ludibriarquanto ao significado da passagem: contra as idias feitas os preconceitos de Estcio,Helena anunciava atitude de reflexo e crtica sistemtica; mais do que isso, a reflexo eraarma diante da qual os preconceitos se desfaziam. O mundo de Estcio, portanto, pareciaprestes a sofrer um assalto de exame e crtica.

    E assim se fez. Os dois jovens passeavam, e a conversa em certo momento versava sobre asvantagens da riqueza; disse Estcio:

    Valem muito os bens da fortuna [...]; eles do a maior felicidade da Terra, que a independncia absoluta. Nuncaexperimentei a necessidade; mas imagino que o pior que h nela no a privao de alguns apetites ou desejos, de suanatureza transitrios, mas sim essa escravido moral que submete o homem aos outros homens. A riqueza compra at otempo, que o mais precioso e fugitivo bem que nos coube. V aquele preto que ali est? Para fazer o mesmo trajeto quens, ter de gastar, a p, mais de uma hora ou quase. Antes de acompanharmos o que Helena ir fazer desse pedacinho de filosofice senhorial,

    cabem algumas observaes. A fala de Estcio apresenta um movimento interessante: a fortunavale muito porque garante a independncia absoluta; ora, se a independncia absoluta, asobrigaes ou os deveres so nenhuns. Ou seja, na viso de mundo de Estcio no haverialugar para a noo de reciprocidade, no existiria espao para o reconhecimento dos direitosde outrem. Em sua forma pura isto , caso existisse fora de um contexto de luta de classes, a ideologia de Estcio seria como o Deus do Gnesis: criaria um mundo a partir do nada;dito de outra forma, criaria um mundo que seria a mera expanso de sua vontade. Todavia,como essa ideologia produto e ao mesmo tempo instituinte de um contexto de luta de classes,ela apenas aquilo que permite a Estcio pensar e dizer que est concedendo quando, naverdade, estiver cedendo a presses, ou ao menos reconhecendo a existncia de antagonismossociais.

    O segundo movimento da fala de Estcio a oposio entre independncia absoluta eescravido moral. Como vimos, na situao ideal, a tal independncia absoluta, Estciono tem entraves morais, pois a moral e tudo o mais so apenas produtos de sua vontade; ooposto disso a dependncia moral absoluta, a escravido. A expresso escravido moralnesse contexto no apenas eufemismo ou qualquer outro recurso de retrica: ao contrrio,ela exprime o lugar preciso da instituio da escravido no imaginrio senhorial. Aescravido a situao de mxima dependncia nessa sociedade em que o centro da polticade domnio a produo de dependentes. No por acaso que, logo em seguida, Estcioprocura exemplificar e reforar o seu argumento contrastando a sua situao diretamente coma do preto, que era, ao parecer, escravo. Senhor e escravo so os dois extremos de umacadeia que comea na independncia absoluta e termina na escravido moral, nasubmisso completa, que seria a caracterstica da escravido.

  • Insisto, porm, que continuamos no mbito do mundo que Estcio gostava de imaginar. SeEstcio fosse Deus, e o romance de Machado de Assis se tornasse o Gnesis, ainda assimestaramos apenas nos versculos iniciais das Escrituras. Pois que ento venha o homem, elogo a mulher, e logo, logo o pecado, e veremos que a ideologia de Estcio opera num mundoque se faz na luta de classes s para insistir nessa expresso irritante, ridcula, fora demoda. Chega, porm, de blasfmias, e Eva, ou melhor, Helena, quem procura trazer Estciode volta Terra, e introduzi-lo ao pecado.

    Helena atentou no quadro que o irmo lhe indicava. Viu um preto com cerca de quarentaanos e duas mulas. Sentado no capim, o preto esburgava uma laranja e deitava pedaos dacasca ao focinho de um dos animais. O homem mostrava-se alegre com o passatempo infinitamente alegre, segundo o narrador e, no entanto, parecia tratar-se de um cativo. Apequena reflete sobre o que dissera Estcio, a respeito de a riqueza possibilitar a compra dotempo, e retruca finalmente:

    Tem razo, disse Helena: aquele homem gastar muito mais tempo do que ns em caminhar. Mas no isto uma simplesquesto de ponto de vista? A rigor, o tempo corre do mesmo modo, quer o esperdicemos, quer o economizemos. O essencialno fazer muita coisa no menor prazo; fazer muita coisa aprazvel ou til. Para aquele preto o mais aprazvel , talvez,esse mesmo caminhar a p, que lhe alongar a jornada, e lhe far esquecer o cativeiro, se cativo. uma hora de puraliberdade. (H, cap. vi) O objetivo de Helena na passagem mostrar a Estcio que a viso de mundo dele no pode

    ser o critrio ou a medida de todas as coisas. A moa tenta inutilmente, como veremos fazer com que o mancebo perceba que sua relao com o mundo precisa conter algo alm deprocedimentos autoconfirmadores. H valores, conceitos, formas de interpretar a realidadeque negam, ou pelo menos relativizam, a ideologia de Estcio. O exemplo em torno do qualocorre o dilogo entre os dois jovens , na verdade, um tanto esdrxulo. Afinal, no seentende bem o porqu de o guapo donzel do Andara estar preocupado em comprar horas eminutos, pois que ele vivia de brisa ou melhor, dos aluguis e outros rendimentos dafortuna que herdara. Helena no criticar a perspectiva de Estcio por esse caminho, se bemque poderia faz-lo, e o verdadeiro pai da menina, Salvador, o far de forma muito didtica eamarga num trecho que logo veremos. A moa no parte para um discurso de denncia; elaprocura desfazer com argumentos, como anunciara, os pilares de sustentao do pensamentode Estcio. De incio, Helena apresenta um argumento, digamos, terico: a experincia dapassagem do tempo depende do ponto de vista; assim, a menina contrasta a concepoprodutivista defendida pelo rapaz a de um tempo que se compra, no caso de Estcio, semhaver um porqu com a idia de tempo til ou aprazvel que remete a uma noo pr-capitalista, de tempo por tarefa, sem o ritmo marcado pelo relgio ou pela produo. Essanegao terica da perspectiva de Estcio, porm, no basta a Helena. O preto beira daestrada talvez estivesse administrando o tempo de modo a lidar melhor com o cativeiro,

  • procurando quem sabe ampliar ou garantir um espao de autonomia j arrancado ao senhor uma hora de pura liberdade. A referncia agora se faz prtica, e Estcio pressionado aencarar os antagonismos sociais.

    A tentativa de Helena foi intil, e o rapago no abandonou por um segundo sequer o seucrculo de idias. Estcio riu, insinuou que a donzela estava sofismando, e elogiou ahabilidade da irm para defender as causas mais melindrosas. Em seguida, resumiu numafrase o que entendera da fala de Helena: Nem estou longe de crer que o prprio cativeiro lheparecer uma bem-aventurana, se eu lhe disser que o pior estado do homem. As palavrasde Estcio operam uma inverso retrica curiosa, pois ele, que no conseguia pensar a no sercomo senhor de escravos, acusava Helena de reabilitar a escravido. Na verdade, oraciocnio varonil permanece o mesmo: a escravido a situao de mxima dependncia, eessa condio, para quem preza a independncia absoluta, o pior estado do homem. Porconseguinte, Estcio s consegue imaginar aquilo que possa pensar um escravo, em qualquercircunstncia, como reflexo ou espelhamento de sua prpria maneira de ver as coisas; emoutras palavras, os escravos conceberiam a sua condio sempre a partir dos significadossociais gerais impostos pelos senhores. O intuito de Helena fora sugerir que o fato dasubordinao no caso, o cativeiro no acarretava a inexistncia de formas alternativasde interpretar a realidade e, se estou correto, a donzela percebe at mesmo que tais valoresalternativos surgem no processo cotidiano de luta contra a opresso o preto procurava lidarcom o tempo de modo a esquecer o cativeiro e alcanar uma hora de pura liberdade.

    A frase de Estcio insinuando que Helena edulcorava a escravido no faz do guapo donzelum crtico de tal instituio. Estcio, ao contrrio de Helena, s consegue acesso instituioda escravido de forma abstrata: como ele incapaz de relativizar valores e de perceberdiferenas, o jovem nem sequer chega a conceber a idia de opresso. Para o gemetra, osoutros existem apenas como dependentes, ou seja, como elementos confirmadores dedeterminada poltica de domnio, e logo a escravido est explicada como parte constitutivada ordem natural das coisas; acontecia to-somente que os escravos eram os mais dependentesentre os dependentes. apenas nesse sentido que deve ser tomado o comentrio de Estciosobre o cativeiro como o pior estado do homem. A perspectiva crtica est em Helena;Estcio mero repetidor da tica dos escravocratas.

    O ritmo vertiginoso e a dialtica dessas pginas de Machado no cessam de surpreender.Se o leitor relaxa por um instante, j lhe vai o entendimento para as calendas. Diante da prolade Estcio, que acabamos de ver, Helena parece desanimar de uma discusso sria e retornar zombaria. O irmo lanara-lhe o desafio de defender a causa melindrosa de que ocativeiro era uma bem-aventurana; ainda conduzindo a gua Moema, a moa responde:

    Sim? retorquiu Helena sorrindo; estou quase a fazer-lhe a vontade. No fao; prefiro admirar a cabea de Moema. Veja,veja como se vai faceirando. Esta no maldiz o cativeiro; pelo contrrio, parece que lhe d glria. Pudera! Se no ativssemos cativa, receberia ela o gosto de me sustentar e conduzir? Mas no s faceirice, tambm impacincia. (H,

  • cap. vi)

    C estamos, sem dvida, de volta galhofa. Ocorre, porm, que Helena continua a falar decativeiro. Numa sociedade escravista, escravos e animais encontram-se muitas vezes em lugarsemelhante no que tange estrutura legal e at s representaes sociais: num inventrio post-mortem, por exemplo, escravos e animais aparecem lado a lado como os bens semoventes dosenhor/proprietrio; nos discursos de denncia contra a escravido, era comum que os crticosdo regime acentuassem seus horrores traando paralelos entre a condio dos escravos e a dosanimais irracionais sua volta. Pois ento a galhofa de Helena torna-se dissimulao. Eladeclara que no vai fazer a vontade do irmo e, portanto, no defender a causa de que ocativeiro uma bem-aventurana. Todavia, ela comea imediatamente a falar de uma cativaque no maldiz o prprio cativeiro, que tem o gosto de me sustentar e conduzir isto ,que tem orgulho de servilidade, para lembrar o ttulo de um dos captulos de Memriaspstumas de Brs Cubas. Estcio nada percebe, mas sua viso de mundo est, de novo, sobfogo cerrado. A explicao simples: sendo impossvel fazer com que Estcio relativize nempor um momento sequer a sua prpria ideologia, Helena volta ao exerccio de expor talideologia, s que de forma um tanto irnica, at debochada. Na realidade, o filho doconselheiro poderia imaginar a condio do escravo de duas maneiras, ambas rigorosamentecoerentes com o seu crculo de idias. A primeira a que j foi mencionada: Estcio secompara diretamente ao escravo, avalia a condio do outro a partir apenas dos valores queservem para dimensionar a sua prpria condio, e ento conclui que o cativeiro o piorestado do homem. A segunda maneira a que Helena desenvolve metaforicamente por meiode Moema: nesse caso, o senhor no se compara ao escravo de modo direto, mas imaginaaquilo que ocorre na mente do cativo quando este pensa a prpria condio. Como o escravoseria um dependente moral do senhor, ele avalia a sua situao tendo como critrio o podersenhorial e a conseqente proteo que tal poder lhe confere. Estcio era um homempoderoso, logo seus criados deviam ter boa dose de orgulho de servilidade. tambm o queocorre com Moema, que se sente toda faceira porque est conduzindo o corpinho esbelto deHelena; isto o que nos explica a galhofeira narcisista, quando pergunta: Se no ativssemos cativa, receberia ela o gosto de me sustentar e conduzir?. Em suma, e ao contrriodo que declarou a Estcio, Helena desenvolveu o argumento de que a escravido era umabem-aventurana, e teve ainda a perspiccia de faz-lo da nica forma em que seriacoerente com a viso de mundo de Estcio. O guapo donzel do Andara continuou sementender.

    Helena ainda explora um pouco mais a metfora de Moema. Os meneios de cabea da guatalvez no fossem apenas faceirice; poderiam denotar impacincia. Tal sentimento da guaexplicar-se-ia pelo desejo de sair correndo pela estrada da Tijuca afora, sentindo-se algumacousa senhora e livre (H, cap. vi). Nesse caso, a cativa no estaria sentindo orgulho de

  • servilidade, porm desejo de liberdade. Na frase seguinte, Helena inclina a cabea e comeaa conversar com Moema; por um momento, e ainda num clima de mera chacota, a menina seidentifica com a gua cativa, estando ambas sujeitas ao domnio de um homem que aomesmo tempo meu irmo e meu inimigo. H, portanto, um certo movimento em todo essedilogo: primeiro, Moema um animal que tem seus sentimentos humanizados e ento, sendo agua dependente de Helena, parece que lhe d glria a situao de cativa de to augustasenhora; segundo, Helena, que senhora em relao a Moema, sente-se sob o domnio deEstcio, e logo compartilha com a gua as agruras da dependncia e o impulso em direo liberdade. Em suma, h aqui a descrio de uma lgica ou poltica de dominao quereaparece e se refora em inmeras situaes especficas de controle e subordinao.

    Nesse momento, Estcio desconfia de alguma coisa; Helena poderia estar prestes a dispararcom a gua. Em outras palavras, a moa talvez pensasse em cometer uma desobedincia, poiso rapaz recomendara enfaticamente que o passeio deveria ocorrer com a mxima precauo.Helena tivera mesmo de prometer que iria pacificamente. De novo, Machado descreve aideologia senhorial de modo bastante preciso: para Estcio, a diferena isto , a expressode vontades outras que no a sua prpria e a de seus pares s poderia ser entendida comodesobedincia ou rebeldia. Fora da subordinao completa pois na tica senhorial asubordinao sempre completa, no obstante o fato de os dependentes estaremhierarquizados , s havia a rebeldia. Zumbi ou Pai Joo, rebeldia ou coisificao, assimreza a tradio, e no apenas a de Estcio. Para chamar Helena disciplina, Estcio fechauma vez mais o seu crculo mental. Vejamos a continuao do dilogo:

    Helena! interrompeu Estcio; voc muito capaz de disparar a correr. E se fosse? Eu deixava-a ir, e nunca a traria em meus passeios. Voc monta bem; mas no desejo que faa temeridades. Ns somosresponsveis, no s por sua felicidade, mas tambm por sua vida. (H, cap. vi)

    O rapaz retorna idia de um mundo que a projeo de sua vontade: no s a felicidade,mas tambm a vida de Helena passa a depender do guapo donzel. A menina no deixa de notara especiosidade de tal argumento e, aps o instante habitual de reflexo, relativiza outra vez oponto de vista de Estcio:

    Quer dizer, perguntou ela, que se eu fosse vtima de um desastre, no faltaria quem o imputasse minha famlia? Justo. Singular gente! No h de ser tanto assim... (H, cap. vi)

    misria e chocolate

    At este ponto, temos observado Estcio como expresso de poder isto , como vignciade determinada hegemonia poltica e cultural. Todavia, Helena tambm percebia quanto havia

  • de fora virtual, de potencial para a humilhao e a violncia, na viso de mundo de Estcio.De fato, a moa parece agir como quem est consciente de que a qualquer momento pode seencontrar sob a ameaa de invaso e rapina. O enredo intrincado do romance acabaressaltando a fragilidade da posio de Helena, que, ao fim e ao cabo, descobre-secompletamente indefesa. Supondo que tenho leitores, e supondo, o que infinitamente maisrazovel, que tais leitores tambm o so de Helena, todos se lembraro que o conselheiromentira em seu testamento. Helena no era filha do conselheiro; este, tendo uma vida amorosapouco catlica, arranjara um caso extraconjugal com a me da menina, e se fizera protetor deambas. Na origem da posio de Helena junto famlia Vale, portanto, havia um ato de puravontade, de puro arbtrio senhorial: o conselheiro inventara essa paternidade, produzindo umafico de enormes conseqncias para as pessoas sua volta. Essa caracterstica da tramaprope uma explicao formal para o fato de Helena saber mais, de ela poder captar comperfeio a complexidade das relaes de poder na qual estava inserida. Afinal, Helenaencontrava-se na condio singular de ter dupla filiao paterna: o pai verdadeiro, Salvador,era algum que amargara todas as humilhaes e sofrimentos pelos quais poderia passar umhomem pobre e dependente nessa sociedade; o pai adotivo, o conselheiro Vale, era o senhortodo-poderoso e benevolente, que abraara resolutamente a causa da proteo de me e filha.E reparem que ningum mal-intencionado: apesar de mulherengo por ndole e distrao, oconselheiro no tivera o propsito de humilhar Salvador, pois a me de Helena se disseraviva. Enfim, uma metade de Helena estava na posio de compreender inteiramente osofrimento de um dependente papai Salvador , ao passo que a outra metade no podiadeixar de reconhecer e se sentir grata pela proteo oferecida por um senhor/proprietrio papai Vale, o conselheiro. Num momento crtico, o prprio Salvador, ao descrever a situao,afirma que o pai lutava com o pai (H, cap. xxvi). A moa move-se em terreno socialambguo, liminar, pois est imbuda de um sentimento de gratido e de uma agudeza crticaque lhes so igualmente inescapveis.

    O que se segue que Helena tem plena conscincia do potencial de violncia inerente posio de Estcio. Se contrariado, e sendo incapaz de admitir a alteridade, Estcio exigiriaque o outro se anulasse, ou ento ele mesmo partiria para a empresa de destruio. Comovimos, Helena administra o cotidiano, e preserva o seu tanto de autonomia, com astcia edissimulao, temperando ainda as suas atitudes com uma pitada de chalaa. s vezes, porm,em situaes de perigo iminente, a rapariga obrigada a escolher entre a submisso e arebeldia.

    Ela se recolhe submisso, por exemplo, logo aps ter explicado a Estcio o ardil queutilizara para induzi-lo s aulas de equitao. O rapaz sorri a princpio, mas fica srio apsum instante, ocorrendo ento a seguinte cena:

    J lhe negamos algum prazer que desejasse?

  • Helena estremeceu e ficou igualmente sria. No! murmurou; minha dvida no tem limites. (H, cap. vi) Surgindo num contexto de manifesta franqueza e cordialidade, a pergunta repentina do filho

    do conselheiro equivale a uma agresso: Estcio observa a Helena o fato de que ela est sob asua proteo, sendo a fortuna e a posio familiar do moo a origem da possibilidade de arapariga agora ter desejos e poder satisfaz-los. claro que Estcio no tem a dimenso exatada violncia do golpe que desfechara, pois ele no sabia ainda da mentira do testamento. Dequalquer modo, Helena est prostrada, e sua resposta a capitulao: minha dvida no temlimites. A capitulao permite que Estcio retorne sua atitude habitual, e ele o faz de formaexemplar. Ao perceber que cometera uma descortesia, ele rompe o silncio:

    Voc ficou triste, disse Estcio; mas eu desculpo-a. Desculpa-me? perguntou a moa erguendo para o irmo os belos olhos midos. Desculpo a injria que me fez, supondo-me grosseiro. (H, cap. vi) Em suma, temos de volta o velho Estcio: foi ele quem cometeu a injria e,

    paradoxalmente, ele tambm quem se arroga a prerrogativa de desculpar a injuriada. Nessapassagem Estcio que assume um tom de brincadeira, procurando desanuviar a tenso queele prprio criara. O contedo da chalaa deveras significativo: Estcio consuma a agressoe atribui a si mesmo o direito de perdoar; isto se explica porque no h qualquer referencialexterno ao mundo do homem das matemticas, e logo seria inconcebvel que ele cometesse umato de violncia. Com efeito, no h como conceber um ato de agresso, j que o mundoimaginado por Estcio constitudo por dependentes e, no limite, um mundo de dependentes a negao da alteridade. Logo, no se reconhece a existncia de um objeto externo passvelde ser agredido. Seria desnecessrio insistir no tanto de onanismo mental que h em talconcepo de mundo, e tolice ignorar o quanto Machado mostra-se ciente disso muito antes deescrever as Memrias pstumas de Brs Cubas.

    Em outra cena em que Estcio parte para uma conduta invasiva, a reao de Helena maiscomplexa, no podendo ser interpretada como submisso, e no sendo exatamente rebeldia.Estcio teimava em descobrir quem era o mancebo por quem a irm estava apaixonada;Helena deixara escapar uma meia confisso, no podia revelar o resto, e o rapaz acabacedendo a um mau impulso. Vejamos a passagem:

    Um dia, a insistncia de Estcio teve tal carter de autoridade, que pareceu constranger e molestar Helena. Ela replicoucom um remoque; ele redargiu com uma advertncia spera. Ouvindo a palavra do irmo, Helena susteve o passo, e fitou-o com um olhar digno, um desses olhares que parecem vir das estrelas, qualquer que seja a estatura da pessoa. (H, cap. x) Estcio, portanto, procurou utilizar suas prerrogativas senhoriais a autoridade para

    arrancar o segredo irm. A menina tentou se esquivar como de hbito com um remoque

  • , mas o donzel tornou-se ainda mais incisivo. Para suster a invaso, Helena deixa claro aEstcio que ela no se submeteria, lanando-lhe o tal olhar vindo das estrelas. O rapazentende ento que prosseguir seria optar pela rapina, pela fora pura e simplesmente. Aoresolver pela retratao, Estcio levado a reconhecer que h limites para o exerccio davontade senhorial e recua diante da contingncia de ter de se aprofundar no uso da fora. Esse um instante raro de Estcio no romance, pois ele obrigado a admitir que existe um mundopara alm do comprimento do prprio nariz. Aliviada com o recuo do agressor, Helenaexplica, de forma necessariamente enigmtica para Estcio, o porqu de ela precisar resistir:

    no v melindre, a prpria necessidade da minha posio. Voc pode encar-la com olhos benignos: mas a verdade que s as asas do favor me protegem... Pois bem, seja sempre generoso, como foi agora; no procure violar o sacrrio daminha alma. (H, cap. x) Estcio continuava a ignorar o logro do testamento, e logo no podia perceber o alcance

    das palavras de Helena. A rapariga conseguira resistir ao ataque deixando claro a Estcio quehavia limites autoridade dele, havia um espao de autonomia pelo qual ela iria zelar e quelhe garantia a inviolabilidade do sacrrio da alma. Estcio no avanara porquereconhecera a legitimidade do direito de Helena a essa autonomia relativa. O drama deHelena, porm, que ela sabia que sua posio no era legtima, que sua autonomia era, nolimite, indefensvel, pois seu direito no fora fruto de uma conquista ou de uma paternidadeverdadeira, mas de uma mentira benvola e protetora do conselheiro. Em outras palavras,Helena reconhecia que, caso a verdade viesse tona, ela estaria reduzida condio dedependncia mais abjeta, sem qualquer direito ao sacrrio da alma e obrigada submissocompleta. Enfim, descoberta a trama do testamento, Helena se tornaria aquela dependente quepovoava habitualmente o imaginrio de Estcio: um nada, sem direito algum, cuja prpria vidapareceria uma concesso da vontade senhorial. Helena tinha de morrer, pois tamanhadependncia s podia existir mesmo numa instncia imaginria, e o romance machadianoprocurava o movimento histrico real.

    O momento de maior violncia de Estcio no romance, todavia, ainda estava por vir.Helena procurava escapar ao amor impossvel que surgia entre ela e aquele que era ao mesmotempo seu irmo e seu inimigo. A beldade empurrava Estcio para os braos de Eugnia, afilha de Camargo, estrela mais brilhante entre as menores do firmamento, ao mesmo tempoque, auxiliada pelo padre Melchior, arranjava um noivo para si prpria. No lhe foi difcildescobrir que Luiz Mendona, o melhor amigo de Estcio, ardia a seus ps. O filho doconselheiro soube do noivado da irm durante uma viagem a Cantagalo, onde o dr. Camargo efamlia esperavam impacientemente pela morte de uma fazendeira que talvez lhes fizesse umlegado. Desvairado com a notcia, Estcio volta Corte pronto para fazer valer a suacapacidade de humilhar e submeter os circundantes. Consultado sobre o casamento da irm,ele nega o seu consentimento. Num lance brutal, Estcio humilhara Mendona referindo-se a

  • seu crdito, e insinuando assim que o fim exclusivo do noivo era a riqueza da moa (H,cap. xix). Dessa vez, no entanto, a atitude de Helena de completa insubmisso. Ela noaceita a deciso do irmo, dispe-se a renunciar herana do conselheiro para afastar asuspeita de que o noivo agia por interesse e desafia abertamente o rapago do Andara:Mendona j o fruto proibido, concluiu a moa; comeo a am-lo. Se ainda assim meobrigar a desistir do casamento, ador-lo-ei (H, cap. xix).

    Em suma, o que vimos at o momento que, em Helena, Machado empreende uma anlisebastante lcida das polticas de domnio vigentes durante o tempo saquarema. A histria deEstcio e Helena, antes que o drama choroso de um amor impossvel, a descrio doperodo de hegemonia inconteste da classe senhorial-escravista, cuja crise profunda oromancista vivenciara entre 1866 e 1871, e cujo desmanchar ele assistia com olharinvestigativo no decorrer da dcada de 1870. Ao escrever Helena, Machado no tinha maisiluses quanto continuidade das estruturas tradicionais de poder. A perspectiva de anlise j bem crtica e, de certa forma, ele faz emergir a sua abordagem deixando que Helena fale porele. Se Machado no tem mais iluses, sofre porm com o impasse e no v alternativa. Aambigidade da personagem principal traduzia a experincia histrica de um sem-nmero dedependentes nesse tempo e sociedade: ainda seduzidos de alguma maneira pela ideologiasenhorial, Helena e seus semelhantes podiam mostrar-se sinceramente gratos a seus senhoresou benfeitores especficos, e assim permaneciam relutantes em sacudir a inrcia das estruturastradicionais de poder; outrossim, os anos de crise haviam agudizado a perspectiva crtica maisgeral, explicitando as injustias inerentes poltica de domnio senhorial. Por um lado, a crisetornara a crtica inevitvel acreditar era j impossvel; por outro, no parecia haver umasada, e o discurso que era de anlise acaba se reestruturando como denncia.

    Se metade de Helena a anlise fina e j outro tanto irnica de determinados mecanismosde poder, a outra metade torna-se denncia amargurada das iniqidades vigentes em taisprticas de dominao. Duas personagens encarnam o sentido de denncia do romance: umalgoz, o dr. Camargo, e uma vtima, o papai Salvador. No vou me ocupar aqui das vilaniasdo dr. Camargo, pois o repertrio o de sempre: frio, calculista, interesseiro e chantagista, anica caracterstica marcante do doutor que ele tinha o requinte de beijar a filha apenas nasocasies em que sobrevinham acontecimentos que pareciam facilitar-lhe a ambio de casarEugnia e Estcio. Assim, a menina foi beijada quando do falecimento do conselheiro, quandodo almejado pedido de casamento e, muito afetuosamente, quando da morte de Helena.

    Mas deixemos de lado os beijos do rptil, pois com Salvador que o contedo de dennciado livro assume um carter ao mesmo tempo mais abrangente e historicamente especfico.Nesse momento, Machado abandona os procedimentos to sutis quanto demolidores de Helenae parte para o discurso direto e contundente. A sofisticao analtica e a dissimulao damenina deixam o centro da narrativa; o leitor pode afundar-se na poltrona e simplesmenteacreditar no que est lendo. Tendo pilhado Helena no instante em que esta saa da casa de

  • papai Salvador, Estcio, que ainda ignorava a verdadeira histria da menina, utiliza comopretexto a necessidade de curar um ferimento para tentar arrancar alguma coisa queledesconhecido com quem Helena travava relaes. O moo no escolhe tal alvitre sem certahesitao, pois o espetculo da pobreza lhe repugnava aos olhos saturados de abastana (H,xxi). Aps alguns minutos de conversa, Salvador fez um comentrio qualquer sobre os motivosde sua penria. O donzel do Andara, que no tinha razo alguma para pressa porm queriacomprar horas e minutos, que vivia de brisa porm exaltava as virtudes do trabalho, retrucaque um homem ainda jovem, forte e inteligente no tem o direito de cair na penria (H, cap.xxi). O pai de Helena responde sem rodeios, para ressaltar o tanto de ingenuidade que haviano ponto de vista do senhor/proprietrio:

    Sua observao, disse o dono da casa sorrindo, traz o sabor do chocolate que o senhor bebeu naturalmente esta manhantes de sair para a caa. Presumo que rico. Na abastana impossvel compreender as lutas da misria, e a mxima deque todo o homem pode, com esforo, chegar ao mesmo brilhante resultado, h de sempre parecer uma grande verdade pessoa que estiver trinchando um peru... Pois no assim... (H, cap. xxi) O tom da crtica muda bastante nesse contexto: onde antes havia sutileza e galhofa, temos

    agora a denncia, se bem que mantendo ainda a ironia. De qualquer modo, o contedo dacrtica o mesmo: tanto Helena quanto papai Salvador colocam-se numa perspectiva exterior ideologia senhorial, e tentam fazer com que Estcio relativize a sua maneira de pensar. Ofilho do conselheiro, todavia, permanece bebendo o chocolate e trinchando o peru, at que,algumas pginas adiante, os homens encontram-se de novo, em presena do padre Melchior, eSalvador conta ento toda a sua histria (H, cap. xxv). O pai de Helena enfatiza outra vez aidia de que, em sua vida, quanto mais trabalhara mais empobrecera, e depois narra como foralevado a abrir mo de lutar pela mulher e pela filha em funo da proteo e da segurana queo conselheiro dispunha-se a proporcionar. Essa histria de renncia e humilhao, cujaorigem estava no poder e nos caprichos da vontade senhorial, chega a emocionar o jovemmancebo, mas no sabemos at que ponto podia lhe abalar as estruturas. A morte de Helenainterrompe o processo, e mantm a verossimilhana do romance. Afinal, Helena no podiaexistir no estado de sujeio mais abjeta, e a descoberta da mentira do testamento arrebatava-lhe a possibilidade de uma perspectiva crtica e autonmica. Em suma, os antagonismossociais esto identificados e delineados, mas ainda no so descritos num processo demudana histrica. Machado de Assis est, em 1876, a interpretar a sociedade do perodoanterior crise de 1871; o aprofundamento dos antagonismos e o conseqente desmanchar daspolticas tradicionais de dominao sero temas presentes em Iai Garcia.

    entreato terico

    claro que esta leitura que venho propondo para Helena deve bastante a Roberto Schwarz

  • e sua descoberta de que Machado de Assis, ao contrrio das aparncias e de interpretaesconvencionais, sempre teve muito a dizer sobre as relaes sociais de dominao vigentes noBrasil do sculo xix. No entanto, e apesar de concordar com Schwarz nesse sentido maisessencial, meu argumento apresenta especificidades que vale ressaltar.

    Para Schwarz, o objetivo de Machado em Helena contribuir para o aperfeioamento dopaternalismo.5 Segundo ele, a ideologia do romance seria a de que cabe severidade doamor familiar e ao sentimento cristo a moralizao das diferenas sociais, para que estas setornem livres das baixezas e das humilhaes que possam eventualmente inspirar. Ou seja, aideologia do livro, bastante inspida, seria a de que a famlia e a religio deveriam civilizaros ricos e consolar os pobres e dependentes, e dessa forma Helena, tanto quanto os demaisromances da primeira fase de Machado, poderiam ser descritos como trabalhos deliberada edesagradavelmente conformistas.6 O movimento profundo de Helena estaria no contrasteentre essa inteno morigerada e civilizatria mais geral e o comportamento deverasturbulento e indisciplinado das personagens.7 Esse objetivo conformista acabaria por conter afora potencialmente dissolvente da anlise racional e profunda do paternalismo, que Schwarzdemonstra estar presente, mas que, em sua opinio, no chega a ser crtica, pois no seinteressa pelo movimento das contradies reais nem interfere.8

    Penso que Schwarz no percebeu todo o alcance da crtica e a fora da denncia contidosem Helena, e h ao menos trs explicaes para isso. Em primeiro lugar, e apesar de correr orisco de ser ainda mais repetitivo, enfatizo o deslocamento de enfoque que me pareceessencial na leitura desse romance: como venho tentando demonstrar, o movimento profundode Helena a descrio dos antagonismos constitutivos das polticas de domnio vigentes noperodo anterior crise de fim dos anos 1860 e incio da dcada de 1870. Como fez questode registrar em inmeros textos, Machado de Assis considerava decisivos os anos de agitaopoltica e social que culminaram na promulgao da lei de 28 de setembro de 1871 e, de fato,muito daquilo que escreveu nas dcadas seguintes tinha a preocupao de interpretar osacontecimentos daquele perodo, assim como avaliar as conseqncias. A crise haviaprovocado em Machado um distanciamento crtico que no tinha volta. Ele, que conhecia asrelaes paternalistas por experincia histrica e trajetria individual, expe em Helena, comlucidez e clareza talvez impossveis antes de 1871, tanto a unilateralidade da viso de mundosenhorial como as dificuldades e perigos inerentes posio do dependente. A chave deHelena, o romance, a ambivalncia de Helena, a personagem: ela est no interior daideologia senhorial porque possui gratido e porque conhece e manipula bem os smbolos evalores que constituem e expressam tal ideologia; ela est fora das relaes paternalistasdevido ao fato de que consegue relativiz-las, e logo perceb-las claramente enquanto podere, no limite, fora ou imposio. A perspectiva crtica permite a Helena, como j foi dito, apreservao de certa autonomia, sendo que a impossibilidade de tal autonomia, no fim doromance, a destruio da ambivalncia e da possibilidade crtica a alternativa a morte,

  • ou a transformao histrica. A transformao histrica seria o assunto de Iai Garcia; emHelena, o cenrio ainda a hegemonia do projeto saquarema. Enfim, no consigo ver emHelena, por um momento sequer, que Machado pudesse ter em vista o aperfeioamento dopaternalismo.

    O segundo problema, alis, aquilo que se entende por paternalismo. Meus leitores,supondo sempre que os tenho, tero notado que evitei, at h poucas linhas, utilizar essapalavra. bvio que a no-utilizao da palavra no significa que eu tenha ignorado osproblemas pertinentes a tal conceito; ao contrrio, boa parte deste texto tem sido uma anlisedo paternalismo a partir da interpretao daquilo que um romance de Machado, analisadocomo testemunho histrico, pode nos revelar a respeito de uma sociedade em que talideologia assume carter hegemnico. O conceito de paternalismo complexo, a palavraprecisa ser usada sempre levando-se em conta certas cautelas, e ento evitei empreg-la atque houvesse condies de esvazi-la de sua vocao para causar confuso. H elementossuficientes em Machado para fundamentar uma definio convencional, por assim dizer, depaternalismo: trata-se de uma poltica de domnio na qual a vontade senhorial inviolvel, ena qual os trabalhadores e os subordinados em geral s podem se posicionar comodependentes em relao a essa vontade soberana. Alm disso, e permanecendo na ticasenhorial, essa uma sociedade sem antagonismos sociais significativos, j que osdependentes avaliam sua condio apenas na verticalidade, isto , somente a partir dosvalores ou significados sociais gerais impostos pelos senhores, sendo assim invivel osurgimento das solidariedades horizontais caractersticas de uma sociedade de classes. No preciso observar que os movimentos de Estcio no romance so uma exposio mais do queconvincente dessa acepo da palavra paternalismo.

    Todavia, j h cerca de trs dcadas de produo acadmica na rea de histria social parademonstrar que, se entendido unicamente no sentido mencionado, o paternalismo apenas umaautodescrio da ideologia senhorial; ou seja, nessa acepo, o paternalismo seria o mundoidealizado pelos senhores, a sociedade imaginria que eles se empenhavam em realizar nocotidiano. Em textos famosos, escritos desde o incio da dcada de 1970, Thompson eGenovese este abordando um contexto em que tambm havia escravido , e depoismuitos outros historiadores, mostraram que a vigncia de uma ideologia paternalista nosignifica a inexistncia de solidariedades horizontais e, por conseguinte, de antagonismossociais.9 Em outras palavras, e para citar Rebecca Scott, outra especialista na histria daescravido, subordinao no significa necessariamente passividade, e os historiadores vmencontrando numerosas maneiras de examinar as iniciativas dos escravos sem desconsiderar aopresso, de explorar a criao de sistemas alternativos de crenas e valores no contexto datentativa de dominao ideolgica, de aprender a reconhecer a comunidade escrava mesmoconstatando o esforo contnuo de represso a algumas de suas caractersticas essenciais.10As palavras de Scott ajudam a pensar no s a situao dos escravos, mas tambm a dos

  • dependentes em geral, em sociedades em que havia a hegemonia poltica e cultural dopaternalismo. No preciso observar que os movimentos de Helena no livro so umaexposio mais do que convincente da complexidade histrica do conceito de paternalismo eda vigncia da alteridade no centro mesmo dos rituais senhoriais que insistiam em ignor-la.Em resumo, meu argumento que, talvez tolhido em excesso por definies convencionais depaternalismo, comuns poca em que escreveu Ao vencedor as batatas, Schwarz no tevecomo descortinar inteiramente a dialtica extraordinria dos movimentos de Helena noromance de Machado.

    Finalmente, e o leitor atento j ter suspeitado, o terceiro problema aquilo que se entendepor escravido. Por um lado, parece claro que para Machado a crise da sociedade senhorial-escravista originava-se basicamente no processo histrico de emancipao dos escravos. Poroutro lado, as referncias instituio da escravido nos romances machadianos no somuito freqentes e, ao que parece, nem centrais ao desenvolvimento da narrativa. TantoSchwarz quanto Gledson registram o seu desconforto diante desse suposto paradoxo. Schwarzoferece uma soluo terica para o problema: a escravido era a relao produtivafundamental, porm no se constitua no nexo efetivo da vida ideolgica no Brasil do sculoxix. A explicao disso estaria no fato de que a subordinao dos trabalhadores na relaoprodutiva de base isto , na escravido estaria assegurada pela fora.11 J osagregados e dependentes em geral viam-se envolvidos na teia complexa do favor, que garantiaa subordinao da pessoa por meio de mecanismos de proteo com contraprestao deservios e obedincia. Assim, sendo a escravido mantida unicamente pela violncia direta,nossos escritores oitocentistas preferiam tematizar o Brasil a partir do problema dopaternalismo e do controle social dos dependentes livres, sem dvida mais simptico do queo nexo escravista.12 Estaria explicado, ento, o porqu de a escravido no ser o nexoefetivo da vida ideolgica.

    Certa vez, num debate sobre a sua prpria obra, Schwarz afirmou que necessrioentender essa realidade como uma estrutura: dependente, escravo, proprietrio, e observouque a relao particular com os dependentes depende da existncia da escravido, seconfigura a partir dela, inclusive um dos pavores bsicos do dependente era ser tratado comoescravo, coisa que ele precisava evitar a todo custo.13 Esta ltima observao bastantepromissora, mas Schwarz no chega a explorar o seu potencial; em suma, ele postula, pormno demonstra, a existncia do vnculo estrutural entre escravido isto , o controle socialexercido sobre os trabalhadores escravos e paternalismo a poltica de domnio quegarantia a subordinao dos dependentes. O resultado prtico desse problema na obra deSchwarz que ele exclui o tema da escravido da obra de Machado; ou seja, como o assuntono parece estar presente e de fato no se apresenta de forma ostensiva , ento se concluique ele efetivamente no est presente. Tal o procedimento de Schwarz ao analisar o temada escravido em Machado; todavia, e para sermos apenas justos, Schwarz exatamente quem

  • mais fez at hoje para demonstrar a insuficincia de semelhante mtodo em se tratando dainterpretao dos textos do bruxo do Cosme Velho.

    John Gledson encaminha outra soluo para o problema. Em seu captulo sobre QuincasBorba em Fico e histria, Gledson argumenta que para Machado a escravido umimportante elemento causal de mudana e que uma das explicaes para a dificuldade doromancista na redao desse livro fora exatamente a busca de uma soluo artstica queexprimisse a sua interpretao da histria do perodo. Em sntese, para Gledson, era assimque o problema aparecia para Machado: a abolio da escravido no ocorreu atravs dosprprios escravos, que no podem, assim, represent-la; todavia, tambm no parecia corretodescrever o processo como simples expresso dos interesses dos proponentes da emancipaogradual.14 O assunto era complexo, e Machado teria encontrado uma maneira de registrar aimportncia da escravido por meio dos conflitos internos de Rubio e seu lento processo dealienao mental, sendo que s vezes essa personagem parece exprimir o inconscientecoletivo daquela sociedade.15 A soluo de Gledson engenhosa, e quase que certamenteno equivocada ao supor tanta engenhosidade em Machado, porm permaneceassumidamente uma tentativa de abordar as intenes manifestas do romancista; penso, porm,que no que concerne ao tema da escravido, em especial talvez nos romances anteriores aBrs Cubas, boa parte do testemunho histrico de Machado pode estar alm de suas intenes.

    escravido

    Em Helena, quase tudo o que se diz sobre a instituio da escravido est contido nosmovimentos de Vicente, o pajem da protagonista. Em sua primeira apario, Vicente descrito como cria da casa e particularmente estimado do conselheiro (H, cap. iv). Taldescrio do cativo tem objetivo bem definido: como pautavam seus sentimentos pelos de d.rsula, os escravos da famlia ficaram inicialmente insatisfeitos com a chegada de Helena;Vicente, no entanto, pelo fato de haver sido to estimado pelo conselheiro, aceitou logo aquelaque se lhe apresentava como filha do finado senhor e se tornou ento um fiel servidor deHelena, seu advogado convicto nos julgamentos da senzala (H, cap. iv). O comentrio maiscrucial da passagem, todavia, o de que a dedicao de Vicente rapariga era despida deinteresse, porque a esperana da liberdade, se a podia haver, era precria e remota (H, cap.iv). A necessidade de mencionar a esperana da alforria ou at de justificar a sua possvelausncia num contexto em que se procurava enfatizar a dedicao de um escravo bastantereveladora: como j abordei com detalhe em outro texto, um dos aspectos centrais da polticade domnio na escravido, pelo menos at 1871, era o fato de que o ato de alforriar consistiaem prerrogativa exclusiva dos senhores. Em outras palavras, cada escravo sabia bem que,excludas as fugas e outras formas radicais de negao do cativeiro, sua esperana deliberdade dependia do tipo de relacionamento que mantivesse com seu senhor particular. A

  • idia era convencer os escravos de que suas chances de alforria passavam necessariamentepela obedincia e fidelidade em relao aos proprietrios. Alm disso, conforme o exemplonotvel do africano Raimundo em Iai Garcia, a concentrao do poder de alforriarexclusivamente nas mos dos senhores fazia parte de uma ampla estratgia de produo dedependentes, de transformao de ex-escravos em negros libertos ainda fiis e submissos aseus antigos proprietrios.16

    Em suma, essa primeira viso de escravido constante em Helena sugere que h umimportante elemento em comum nas polticas de domnio exercidas sobre escravos edependentes: em ambos os casos, e permanecendo sempre na tica da classe dos senhores eproprietrios, as relaes sociais de dominao esto assentadas no pressuposto dainviolabilidade da vontade senhorial. Se for esse mesmo o contedo do testemunho histricode Machado, ento ser possvel traar mais paralelismos entre os movimentos de Vicente eos de outros dependentes que temos acompanhado no romance. Uma cena interessante aquelaem que Helena resume para Estcio, em termos que seriam inteligveis para o mancebo, qual otipo de relao que ela tinha com Vicente. Estcio ficara amuado porque a irm fizera opasseio matinal a cavalo sem a sua companhia; ele se dizia preocupado com a possibilidadede a mooila sofrer um acidente. Interpelado por Helena, que fingia no entender bem omotivo da casmurrice do rapaz, Estcio confessa que no gostara de saber que a moa saraapenas em companhia de Vicente: Est certa de que no corre nenhum perigo indo s com opajem?. Em seguida, Estcio pede a Helena que no saia nunca sem mim. Veja a resposta:

    No sei se poderei obedecer. Nem sempre voc poder acompanhar-me; alm disso, indo com o pajem, como se fosse s;e meu esprito gosta, s vezes, de trotar livremente na solido. (H, cap. ix) Ou seja, Helena no podia obedecer, pois Vicente era seu cmplice nas visitas que fazia

    secretamente a papai Salvador; e ento, para justificar diante de Estcio os passeios quedecerto continuaria a fazer em companhia do moleque, a rapariga emprega o recurso que sabiautilizar to bem: ela narra a Estcio uma verso para a sua relao com Vicente que se mostraapenas uma reproduo da ideologia do guapo donzel. Assim, Vicente um nada diante davontade de Helena, e a moa chega a produzir a prola de que indo com o pajem, como sefosse s.

    Esse momento foi, obviamente, outro exemplo de dissimulao da pequena. Adiante, onarrador da histria quem nos oferece verso diferente para o relacionamento entre Helena eVicente. A moa fora fazer mais uma visita a papai Salvador, porm voltava triste porque noo encontrara em casa. O pajem, que tambm vinha triste porque pautava os seus sentimentospelos da senhora, na verdade no pautava os seus sentimentos pelos da senhora (sic):

    O pajem levava os olhos na moa com um ar de adorao visvel; mas, ao mesmo tempo, com a liberdade que d aconfiana e a cumplicidade fumava um grosso charuto havans, tirado s caixas do senhor. (H, cap. xv)

  • O trecho notvel, pois sugere que o movimento de Vicente em relao a Helena

    semelhante ao de Helena em relao a seus protetores/algozes: por um lado, h oreconhecimento pela proteo senhorial a adorao visvel de Vicente e a gratido deHelena; por outro, h a possibilidade de traduzir essa obedincia em conquistas ou espaosde autonomia a liberdade de fumar o charuto havans em Vicente, o direito ao sacrrio daalma em Helena. A referncia ao charuto mais interessante ainda porque qui remetia oleitor de Helena ao contexto da escravido urbana, que era, afinal, o tanto de experinciahistrica mais familiar a Machado. Perdigo Malheiro faz o seguinte comentrio sobre asituao dos escravos urbanos nas ltimas dcadas da instituio da escravido:

    Nas cidades j se encontram escravos to bem-vestidos e calados, que, ao v-los, ningum dir que o so. At o uso dofumo, o charuto sobretudo, sendo alis um vcio, confundindo no pblico todas as classes, nivelando-as para bem dizer, hconcorrido a seu modo para essa confraternidade, que tem aproveitado ao escravo; o emprstimo do fogo ou do charutoaceso para que um outro acenda o seu e fume, tem chegado a todos sem distino de cor nem de classe. E assim outrosatos semelhantes.17

    Mesmo com o devido desconto s idealizaes e exageros de Perdigo Malheiro, parece

    relevante o fato de Machado utilizar o exemplo do charuto para exprimir o tanto de liberdadeconquistado por Vicente. E charuto tirado s caixas do senhor, para ser fumado na frente dasenhora. Machado talvez registre aqui algo que percebido pelos escravos como umaaproximao, ao menos simblica, condio de liberdade. Na verdade, e apesar daobservao inicial sobre o desinteresse que havia na dedicao de Vicente a Helena, o quevemos que a conduta fiel e obediente do pajem acaba por tornar mais concreta a suaesperana de alforria. Estcio quem nos informa a esse respeito: tendo visto Helena deixar acasa de Salvador em companhia do pajem, ele cogita em interrogar o cativo que era oconfidente e o cmplice de Helena. O filho do conselheiro acaba desistindo de utilizar essealvitre, mas antes ainda se recorda de que Helena lhe pedira uma vez a liberdade daqueleescravo (H, cap. xxi).

    A interveno mais importante de Vicente na histria ocorre no auge da crise entre Helena ea famlia do conselheiro. Ao desconfiar que a senhora padecia, o pajem interpela o padreMelchior para descobrir o que estava ocorrendo. O padre desconversa e manda o molequesossegar, mas este permanece inquieto e comenta que h alguma coisa que o escravo nopode saber; em seguida, e para reafirmar a sua resoluo de fazer algo por Helena, Vicentediz ao padre que tambm o escravo pode saber alguma cousa que os brancos tenham vontadede ouvir (H, cap. xxiv). O pajem parece estar agindo de movimento prprio, como dirdepois Melchior (H, cap. xxiv), e uma interpretao historicamente verossmil para a atitudede Vicente, alm da adorao visvel pela senhora, seria a de que ele entendia que suaesperana de alforria estava estreitamente ligada ao destino de Helena e possibilidade de

  • esta manter o exerccio da vontade senhorial. No esse, todavia, o encaminhamento explcitoque Machado d ao problema. Tudo o que temos a interpretao que Helena oferece para omovimento prprio de Vicente e, nesse momento, a moa apenas reproduz, alis combastante pieguice, a ideologia senhorial. Assim, ao saber que Vicente revelara ao padre averso que ela lhe contara isto , a de que Salvador era seu irmo , a pequena faz umaorao a Deus porque infundiu a no corpo vil do escravo to nobre esprito de dedicao.Delatou-me para restituir-me a estima da famlia (H, cap. xxiv). Se pensarmos na galhofeiradeliciosa de outras partes do romance, torna-se patente que Helena agora descarrilou, poisconsegue ser to insossa quanto Estcio. O fato, no entanto, que o descarrilamento de Helena, sua maneira, um testemunho histrico: sendo a senhora de Vicente, a moa repete emrelao a este, pelo menos num momento de crise, determinada lgica de domnio, e entointerpreta o movimento do escravo como mera subordinao vontade senhorial.

    Em suma, se h em Helena elementos suficientes para colocar em xeque a definioconvencional de paternalismo j mencionada, tambm verdade que h nesse romanceindcios suficientes para questionar a idia da vigncia de uma separao muito marcada entrepaternalismo e escravido, outro pressuposto importante na chave de leitura de Schwarz.Voltemos preciosa observao do prprio Schwarz de que a situao dos dependentesdepende da existncia da escravido, se configura a partir dela, inclusive um dos pavoresbsicos do dependente era ser tratado como escravo, coisa que ele precisava evitar a todocusto. A observao correta, corretssima, e d ensejo s observaes finais deste captulo.Em primeiro lugar, h algo que venho repetindo neste texto exausto: do ponto de vista deEstcio e criaturas semelhantes, o pressuposto da inviolabilidade da vontade senhorial estavapresente nas polticas de domnio tanto de escravos quanto de agregados e dependentes emgeral e, como a escravido era a situao de mxima dependncia, isso que esclarece osentido da afirmao de que a situao dos dependentes se configura a partir da condio dosescravos. Em segundo lugar, e isto se segue da observao anterior, o pavor do dependente emser tratado como escravo era bastante concreto, talvez freqentemente informado pelo perigoreal de escravizao. Sabemos ao menos que havia amplos setores da populao dita livreque viviam sob a presso constante de uma possvel escravizao ou reescravizao. No casodos negros que j haviam recebido a carta de alforria, a situao era variada. Havia aquelesque tinham de cumprir clusula de prestao de servios, o que os colocava por algum tempo,s vezes por vrios anos, numa posio ambgua entre a liberdade e o cativeiro. At apromulgao da lei de 1871, existia ainda a possibilidade de o senhor revogar a alforria pormotivo de ingratido, o que reala a subordinao e a incerteza contidas nessa liberdadeconferida aos libertos. Em suma, havia condies intermedirias entre a escravido e aliberdade que, ao mesmo tempo em que matizam a viso tradicional de uma sociedaderigidamente dividida em senhores e escravos, sugerem o tanto de precariedade inerente condio desses dependentes.

  • Alm disso, continuam a faltar pesquisas sistemticas sobre a ameaa e a ocorrnciaconcreta da escravizao ilegal. A tranqilidade escandalosa com que centenas de milhares deafricanos introduzidos no pas aps a lei antitrfico de 1831 permaneciam ilegalmenteescravizados assim como seus descendentes salta aos olhos e sugere a magnitude dessecostume senhorial e o tamanho do perigo que rondava a populao livre de cor em geral.Tambm necessrio observar com desconfiana a prtica comum, na Corte e alhures, dedeter para averiguaes indivduos suspeitos de serem escravos.18 Numa sociedade em quehavia a escravido, e logo a vigncia de uma lgica de dominao assentada na privatizaodo controle social, um dependente, especialmente se pobre e de cor, arriscava bastante ao seafastar da vizinhana em que podia ser imediatamente referido a determinado universo derelaes pessoais. A rede que perseguia e capturava escravos fugidos tinha um entrelaamentopreciso e regular ou lanava a ameaa e a suspeio sobre amplos setores da populaolivre de cor? Dito isso, e apesar desse tanto que h em comum na poltica de domniovigente para escravos e dependentes, claro que a condio de escravo era muito diferentedaquela do livre dependente. Sabemos isso porque os escravos lutavam intensamente pelaliberdade, e via de regra organizavam suas vidas em funo da expectativa de alcanar esseobjetivo. As caractersticas mais essenciais do tipo de dependncia a que estavam submetidosos escravos eram o castigo fsico e a condio de propriedade esta os deixava sempre soba ameaa das transaes de compra e venda e, por conseguinte, diante da possvel ruptura deseus laos de famlia e comunidade.

    Enfim, meu argumento que, ao centrar suas histrias nos antagonismos entre senhores edependentes, Machado de Assis abordava, na verdade, a lgica de dominao que erahegemnica e organizava as relaes sociais no Brasil oitocentista, includo a o problema docontrole dos trabalhadores escravos, a relao produtiva de base. Ao fazer isso, o romancemachadiano produzia outro registro realista extremamente sutil e eficaz: como a ambinciasocial dos textos era basicamente o interior de propriedades senhoriais da Corte, no seriaverossmil fundar o enredo na escravido. De fato, na segunda metade do sculo xix, e maisainda aps a lei de 1871, Estcio, Brs Cubas, Bentinho e todos os demais membros dessagaleria viviam num mundo em que a visibilidade da escravido permanecia inevitvel, mas aostentao de tal visibilidade seria uma gafe, um pecado, ou quem sabe sobretudo um perigo.Ao escolher a ambincia senhorial urbana da Corte, Machado de Assis tambm adotou aaparncia que suas personagens procuravam aparentar; no entanto, qualquer leitor do sculoxix saberia observar essa aparncia a contrapelo, e o bruxo certamente contava com esseolhar.

  • 2. A poltica cotidianados dependentes

    percurso e argumento

    Ao completar o percurso do captulo anterior, chegvamos concluso de que as polticasde dominao vigentes na sociedade brasileira do sculo xix poderiam ser apropriadamentedescritas como paternalistas. Vimos que tal lgica de domnio estava presente tanto nasestratgias de subordinao de escravos quanto de pessoas livres dependentes, e que suacaracterstica principal era a imagem da inviolabilidade da vontade senhorial. O mundo erarepresentado como mera expanso dessa vontade, e o poder econmico, social e polticoparecia convergir sempre para o mesmo ponto, situado no topo de uma pirmide imaginria. Opaternalismo, como qualquer outra poltica de domnio, possua uma tecnologia prpria,pertinente ao poder exercido em seu nome: rituais de afirmao, prticas de dissimulao,estratgias para estigmatizar adversrios sociais e polticos, eufemismos e, obviamente, umvocabulrio sofisticado para sustentar e expressar todas essas atividades.

    Ao menos desde a publicao do livro clssico de Roberto Schwarz, Ao vencedor asbatatas, sabemos que Machado de Assis foi mestre nesses meandros e expositor arguto de taltecnologia de dominao.1 Em Helena, o cenrio desenhado em torno da abertura dotestamento do conselheiro Vale descrio exemplar, se bem que levada s fronteiras doabsurdo, de um ritual de afirmao da vontade senhorial: o conselheiro to conhecedor desuas prerrogativas a estrita justia a vontade de meu pai (H, cap. ii), diria Estcio que resolve no s legar seus bens, mas tambm seus sentimentos em relao a Helena. EmIai Garcia, Valria luta contra a inteno do filho em escolher uma esposa sem levar nadevida conta as tradies de famlia, cabedais e relaes adquiridas, elementosdefinidores das primeiras classes da sociedade (conforme o vocabulrio de H, cap. i).Sendo assim, adota o alvitre de mandar Jorge guerra para separ-lo da virgem amada,porm pessoa de certa espcie , e recorre honra nacional para dar colorido nobre eaugusto (IG, cap. ii) causa e dissimular seus verdadeiros objetivos de um casodomstico saa uma ao patritica (IG, cap. iii). Em Helena, Estcio busca estigmatizar osadversrios de forma impiedosa. Mendona esmagado com uma breve aluso a seu crdito(H, cap. xix), atribuindo-se-lhe dessa forma mero interesse econmico no casamento comHelena. Em seu primeiro encontro com Salvador, Estcio procura recrimin-lo por sua

  • pobreza, pois um homem forte, moo e inteligente no tem o direito de cair na penria (H,cap. xxi). Ou seja, para o guapo donzel do Andara, que vivia de brisa, ou melhor, das rendasprovenientes de seus cabedais, pobreza defeito moral, imputando-se assim a Salvador asuspeita do vcio da ociosidade. Quanto aos eufemismos da dominao paternalista,estavam por toda parte, em Machado e alhures, e basta lembrar que no Brasil oitocenti