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Claudio Blanc
Madiba O Guerreiro da igualdade
Uma biografia de Nelson Mandela
Projeto Cultura e Memória
do Sindicato dos Padeiros de São Paulo
Presidente: Francisco Pereira de Sousa (Chiquinho Pereira)
www.padeirosspmemoria.com.br
Sumário
Prefacio: África do Sul: Uma breve história
O Jovem Xhosa
A Entrada na Política
O Sabotador
O Julgamento de Rivonia
O Prisioneiro
Winnie Mandela
O Negociador
Mandela Presidente
Mandela Volta a Se Casar
A vida do Ex-presidente
Sobre o Autor
Sindicato dos Padeiros de São Paulo - Projeto Cultura e Memória
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Prefácio:
África do Sul: Uma Breve História
Nos últimos três séculos e meio, até 1994, a história da África do Sul foi
marcada pelo conflito de diferentes povos, tanto europeus como africa-
nos. Essa característica acabou levando a um governo baseado na discri-
minação e na exclusão, o apartheid. É uma história de lutas e de intolerân-
cia, mas que, paradoxalmente, acabaram culminando na criação de um
grande país.
Talvez isso seja menos paradoxal do que pareça. De fato, esta é uma
característica humana, a de construir grandes coisas a partir do conflito
entre diferentes populações. Os Estados Unidos foram constituídos sobre
a terra que os descendentes de europeus subtraíram dos nativos e dos
mexicanos (que também a haviam tirada dos índios), e até o final da déca-
da de 60 do século passado leis municipais e estaduais restringiam os di-
reitos civis das minorias num regime que poderia se chamar de apartheid
americano.
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Também o Brasil foi construído sobre a exploração de um povo escra-
vizado em benefício de outro. A existência de excluídos neste país se deve
a esta relação torpe. Fomos o último país no Ocidente a abolir a escravi-
dão. Contudo, os escravos libertos não foram incluídos na sociedade. Dis-
criminados, não receberam educação, nem tiveram – ou lhes foi negada –
oportunidades de ascensão social. É o apartheid nacional, estampado em
qualquer favela, explícito no rosto de cada criança de rua.
Diferentemente do americano e do sul-africano, o apartheid brasileiro
não é constitucional. Não tivemos, como os Estados Unidos, as leis de Jim
Crow que proibiam casamentos inter-raciais e impediam que diferentes
raças frequentassem os mesmos lugares. Tampouco promulgamos uma
Constituição que excluía acesso social, como na África do Sul. Assim, o
apartheid brasileiro é indistinto, amorfo e, para alguns, até mesmo inexis-
tente. E por isso mesmo ele continua. Os Estados Unidos e a África do Sul
tiveram líderes que se ergueram contra uma situação clara, delineada
através das leis. O apartheid americano produziu líderes como Malcon X e
Martin Luther King. A África do Sul teve tantos outros, como Steven Biko e
Nelson Mandela.
No entanto, desses três lugares onde imperou ou ainda impera o apar-
theid ou a exclusão social, foi na África do Sul que o conflito entre os po-
vos que constituíram o país assumiu contornos mais dramáticos. Se nos
Estados Unidos os brancos se uniram para restringir os direitos dos negros
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e dos índios e no Brasil a exclusão social e econômica é fato, na África do
Sul, ao longo de sua história, colonos brancos de três países diferentes se
digladiaram pelo controle do território, negros se voltaram contra negros
e, no final, os brancos submeteram constitucionalmente negros e outras
raças.
A história da África
do Sul começa a ser
registrada pelos cronis-
tas e historiadores oci-
dentais na Era dos Des-
cobrimentos, quando
os navegantes portu-
gueses lutavam para
cruzar o Cabo das Tor-
mentas que os levaria a
abrir uma rota marítima
para as Índias. Quando
Bartolomeu de Dias
realizou a proeza em
1488, esse ponto ao sul
Malcon X, um dos líderes da luta pelos direitos civis
da África passou a ser chamada de cabo da Boa Esperança.
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Contudo, a história humana na região onde hoje é a África do Sul começou
muito antes, com a ocupação do território pelos bosquímanos, nômades
caçadores e coletores. Há indícios de que esse povo, também chamado de
khoisan, hotentote e khoikhoi, se estabeleceu no sul da África há dezenas
de milhares de anos. Além desses primeiros habitantes, no início da nossa
era, grupos bantos, como os xhosas e os zulus, chegaram a esse território
e ocuparam parte dele. Diferentemente dos hotentotes, seu modo de vida
era baseado na criação de gado.
Imediatamente depois do estabelecimento da rota marítima para as
Índias, as nações bantos e os hotentotes não foram incomodados pelos
europeus. Embora os portugueses navegassem essas águas por todo o
século XVI, eles não se estabeleceram. O conflito entre europeus e africa-
nos começou apenas quanto os holandeses decidiram fundar um posto de
abastecimento na região do cabo da Boa Esperança. Para suprir seus navi-
os em rota para o Oriente ou de volta para a Europa, a Companhia das
Índias Orientais estabeleceu, em 1652, um entreposto na área do Cabo
sob o comando de Jan Van Riebeck (1619 – 1677). A partir desse foco se
iniciaria a colonização da África do Sul.
Os holandeses se fixaram em fazendas, reivindicado cada vez mais ter-
ras para o seu gado. Esses colonos começaram a chamar a si mesmo de
africâneres (afrikaners) ou bôeres, palavra derivada do termo holandês
“boer”, que significa justamente fazendeiro. Conforme seu número au-
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mentava, os bôeres invadiram o território dos khoikhois, uma etnia rela-
cionada aos bosquímanos que ocupava a região do Cabo, e passaram a
escravizá-los.
Poucas décadas depois da vinda dos holandeses, em 1688, chegaram
os primeiros franceses huguenotes, fugindo da perseguição religiosa que
sofriam em seu país natal. Foram os membros dessa dissidência cristã que
introduziram a cultura da uva e a fabricação de vinho. Hoje, a qualidade
dos vinhos sul-africanos se compara à dos melhores produtores mundiais.
Os britânicos, o último povo europeu a colonizar o país, só chegaram
mais de um século depois, em 1795. Com Napoleão ameaçando a Europa
e o mundo, os britânicos assumiram o controle político desse importante
ponto estratégico, o cabo da Boa Esperança. Eles também jogaram mais
lenha na fogueira do conflito étnico que já grassava na colônia. Uma das
primeiras iniciativas do governo foi a de expulsar os xhosas da região, em-
purrando-os para a fronteira leste. Os novos governantes também coloca-
ram pressão sobre os bôeres. Há pelo menos três gerações na África, ten-
do estabelecido um estilo de vida próprio, os africâneres eram livres e
independentes. Por isso, relutavam em se submeter ao controle britânico.
Em 1834, os novos governantes aboliram a escravidão, o que representava
um duro golpe ao estilo de vida dos colonos de origem holandesa. Como
resposta, os bôeres começaram a emigrar para o território fora do contro-
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le britânico, em um movimento que ficou conhecido como Great Trekk, ou
Grande Jornada.
Ao longo da conquista do novo território, os africâneres, que a essa al-
tura falavam afrikaans, um dialeto próximo do holandês, mas repleto de
termos importados de outras línguas, se encontraram com os zulus, que
como eles seguiam um movimento migratório. O resultado do encontro
de povos tão distintos não foi outro senão a guerra. Os bôeres venceram
os zulus na Batalha de Blood River (Rio Sangrento), conquistando a região
onde viriam fundar dois novos países soberanos: o Estado Livre de Orange
e o Transvaal. Ao mesmo tempo, na fronteira leste do território sul-
africano, os britânicos continuavam a combater os xhosas e, a oeste, os
zulus.
Até o final da década de 60 do século 19 a África do Sul ainda não era o
país que viria a ser. Eram três enclaves europeus – os dois fundados pelos
bôeres mais a Colônia do Cabo – entremeadas por reinos bantos. Nessa
época, em 1866, foram descobertos diamantes na fronteira das colônias.
Pouco depois, em 1886, descobriu-se ouro na região aonde viria a ser fun-
dada a cidade de Johanesburgo.
Os britânicos não tardaram em buscar exercer controle sobre as regi-
ões produtoras de ouro e de diamante, anexando as colônias bôeres. Co-
mo poderia se esperar, os africâneres não aceitaram a intromissão britâni-
ca e muito menos o controle em suas ricas minas. O Transvaal reafirmou
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sua independência, e nova guerra – uma vez que os conflitos entre euro-
peus e as nações bantos ainda continuavam – eclodiu.
Grupo de zulus no inicio do século XX
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Foram duas Guerras dos Bôeres, em 1880-1881 e em 1899-1902. Os a-
fricâneres adotaram táticas de guerrilha, dificultando a vitória britânica.
No início da guerra, a supremacia foi deles. Para derrotar os guerrilheiros,
os britânicos passaram a invadir, saquear e incendiar as fazendas dos afri-
câneres, que tinham ficado sob o cuidado das mulheres, enquanto os ma-
ridos estavam na guerra. Mais que isso, os britânicos aprisionaram as mu-
lheres e filhos dos combatentes e os enviaram a uma nova e infame insti-
tuição que criaram nesse conflito: o campo de concentração. Ver suas
esposas e crianças padecendo de fome e de doenças nesses locais que-
brou o ânimo dos bôeres. Precedendo os nazistas, os britânicos provoca-
ram a morte de cerca de vinte mil pessoas nesses campos de concentra-
ção, a maioria mulheres e menores de idades. Diante disso, os africâneres
acabaram cedendo.
No início do século 20, embora unificada politicamente, a África do Sul
continuava dividida. Três séculos de guerra e ódio entre as diversas popu-
lações que haviam se estabelecido no lugar separavam como um muro
esses povos. As muitas etnias sul-africanas não conviviam bem. Ressenti-
dos com os britânicos, os bôeres buscaram conquistar cadeiras no Con-
gresso para promoverem leis que avançassem seus interesses.
Em 1948, foi estabelecida uma nova constituição que continha leis que
separavam as pessoas conforme a raça. Estava inaugurado o regime do
apartheid, ou “separação”. O casamento inter-racial foi proibido, e os ne-
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gros e outras etnias, como os imigrantes indianos, eram impedidos de
votar e de permanecer nas cidades depois de findas as horas de trabalho.
Foram transferidos para as chamadas townships, verdadeiras favelas, fo-
cos de pobreza em um país naturalmente rico.
Frente à injustiça inconcebível, surgiram líderes negros que se opu-
nham ao regime que perpetrava a desigualdade. A resposta da situação
era assassinato e terror. Em 1976, centenas crianças negras que protesta-
vam com a imposição do afrikaans como língua obrigatória foram chacina-
das pela polícia. Seus pais, parentes e simpatizantes saíram às ruas em
novo protesto e tiveram fim igual. Dessa vez, seiscentas pessoas foram
mortas.
O abuso contra os direitos humanos promovido pelo governo branco
sul-africano fez com que, em 1986, a comunidade internacional impusesse
sanções econômicas ao país. Pressionado, em 1990, o governo Frederik de
Klerk repudiou o apartheid e revogou as leis que promoviam a discrimina-
ção racial. Sua atitude, criticada pelos conservadores, foi referendada por
um plebiscito só para brancos, cujo resultado indicou que 69% dos eleito-
res eram favoráveis ao fim do apartheid. Estava aberto o caminho da re-
conciliação. Depois de séculos de conflitos, assassinatos e guerras, as di-
versas etnias e culturas podiam, enfim, vislumbrar um futuro de paz.
Hoje, a África do Sul é movida pela esperança de se construir, de fato,
aquilo que o arcebispo Desmond Tutu chamou de Raimbow Nation, a na-
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ção arco-íris, constituída pelas cores de tantos povos e etnias diferentes
que formaram esse grande país. Na construção desse novo país, destaca-
ram-se diversos líderes e ativistas obstinados. Muitos permanecem anô-
nimos, assassinados, torturados ou aprisionados pelas mãos de ferro do
regime. Outros, como Steven Biko e Desmond Tutu, serão sempre lembra-
dos pela coragem e obstinação.
Steven Biko, um herói sul-africano
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Mas a oportunidade de conduzir essa mudança fundamental coube a
apenas um homem. Um líder que, no desespero de defender sua família,
seu clã e seu povo, não hesitou em pegar em armas; que teve dignidade
de justificar seus atos perante a lei e de arcar com eles, sem nunca esmo-
recer ou abandonar sua causa. Um homem que teve coragem de perdoar
e coerência para manter o país unido. Depois de um passado tão turbulen-
to, a África do Sul produziu um líder com qualidades morais à altura do
desafio de conduzir os diferentes povos que formaram o país rumo a um
destino comum. Esse líder é Nelson Mandela.
Etnias sul-africanas.
Os Hotentotes
Os hotentotes, também chamados de bosquímanos, são os primeiros habitantes da Á-
frica do Sul. Sua sociedade é igualitária, isto é, não existe hierarquia. O lazer é muito valori-
zado por esse povo, que reserva grande parte de seu tempo para conversas, jogos e brinca-
deiras. Por conta da dieta pobre em gordura, as mulheres hotentotes menstruam mais
tarde que as outras etnias. Normalmente, têm filhos apenas aos 18-19 anos. Sua economia
se baseia em presentes. Em vez de trocarem bens entre si, eles simplesmente doam àqueles
que estão precisando. Enquanto as mulheres apanham frutos e raízes, os homens caçam
usando flechas envenenadas. Originalmente nômades, a partir dos anos 50 do século 20, os
bosquímanos foram forçados a mudar seu modo de vida tradicional e a se estabelecer em
fazendas, adotando a prática pastoril em lugar da caça e da coleta.
Os Zulus
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Os zulus são um povo de origem banto, hoje o maior grupo étnico da África do Sul, com
uma população estimada entre dez e onze milhões de pessoas. O reino zulu chegou a ter
um papel de proeminência na história da África do Sul, no século 19 e início do 20. Sob o rei
guerreiro Shaka, em 1816, os zulus se uniram a outras tribos e estabeleceram um poderoso
império, que chegou a ameaçar os colonos britânicos. Povo guerreiro, os zulus infligiram
uma humilhante derrota aos britânicos – na época o mais poderoso exército do mundo – ,
na Batalha de Isandlwana, em janeiro de 1878. Mas a Guerra Anglo-Zulu acabou sendo
vencida pelos britânicos. Depois da guerra, os zulus se dividiram em 13 subgrupos, os quais
lutavam entre si. A guerra civil só terminou quando o território zulu, a Zululand, foi absorvi-
da pelos britânicos na colônia de Natal. Atualmente, os zulus se espalharam por todo o
país, embora seu maior contingente populacional continue sendo a província de Natal.
Os Xhosas
Os xhosas, outra etnia banto, são hoje oito milhões de pessoas espalhadas por toda a
África do Sul, constituindo 18% da população do país. Sua língua é, depois do zulu, a segun-
da mais falada no país. De fato, a relação entre esses dois grupos é muito estreita. Como os
zulus, também são um povo guerreiro. O nome “xhosa” significa “feroz”. Os povos bantos
criam gado e são agricultores. Essas atividades os levaram a entrar em conflito com os
europeus, notadamente os descendentes dos colonos holandeses, os bôeres ou africâneres.
No final do século 18, a rivalidade entre os xhosas e os bôeres teve início por conta da posse
de terra. No início do século seguinte, os xhosas também se viram pressionados pelos zulus,
que migravam para suas terras.
Os xhosas produziram personalidades proeminentes na história não só no cenário da Á-
frica do Sul, mas também no internacional. Entre eles o primeiro arcebispo sul-africano,
Desmond Tutu, a cantora Miriam Makeba e o ex-presidente Nelson Mandela.
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O Jovem Xhosa
Em 18 de julho de 1918, na pequena aldeia de Myezo, os thembus,
uma nação xhosa que reina no território de Transkeian, na Província do
Cabo, assistiu ao nascimento de um novo descendente. O menino era
bisneto do inkosi enkhlu, ou rei, do povo thembu, o grande Ngubengcuka
(? – 1832). Mas foi do avô, o príncipe Mandela, que o garoto herdou o
sobrenome. Seu pai, Gadla Henry Mphakanyiswa, apesar de não ser elegí-
vel ao trono dos thembus porque sua mãe pertencia a outro clã, era o
chefe da aldeia de Myveso.
A mãe de Mandela, Nosekeni Fanny, era a terceira das quatro esposas
de Mphakanyiswa. Fanny pertencia ao clã Mpemyu Xhosa, com quem
Mandela passou grande parte da infância. Como de costume, o primeiro
nome do menino foi dado conforme suas características mais proeminen-
tes. Assim, ele foi chamado de Rolihlahla, ou “encrenqueiro”. Com efeito,
Rolihlahla Mandela traria encrencas para o regime do apartheid.
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Nelson Mandela, em 1937
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Os thembus, como outras nações xhosas, haviam enfrentado os britâ-
nicos ao longo de quase todo o século 19, quando britânicos, bôeres, xho-
sas e zulus disputavam o território que veio a ser a África do Sul. Depois da
anexação do Transvaal e do Estado Livre de Orange, os descendentes de
europeus começaram a promulgar leis que restringiam os direitos das
populações negras. Logo o pequeno Rolihlahla Mandela sentiu a interven-
ção branca. As autoridades governamentais destituíram Mphakanyiswa da
liderança da aldeia. Mesmo assim, Mphakanyiswa continuou a fazer parte
do conselho do rei, mas resolveu se mudar para outra aldeia, Qunu. M-
phakanyiswa ajudou a cimentar a ascensão de Jongintaba Dalindyebo ao
trono thembu, um esforço que iria influenciar o futuro do pequeno Man-
dela. Quando Mphakanyiswa morreu de tuberculose, o rei Dalindyebo
adotou o menino, então com nove anos.
Rolihlahla Mandela foi o primeiro membro da sua família a frequentar
a escola. Foi lá, no liceu da missão Wesleyan, próxima ao palácio do rei,
que a professora, senhorita Mdingane, deu-lhe seu nome inglês: Nelson.
Seguindo a tradição thembu, Nelson passou pelo ritual de iniciação aos 16
anos. Em seguida, o rapaz foi enviado a uma escola interna, a Clarkebury
Boarding Institute, para complementar seus estudos fundamentais. Dedi-
cado, Nelson completou o que equivaleria ao Ensino Médio em dois anos,
em vez dos três anos regulares.
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Mandela, boxeador
O rei Dalindyebo tinha planos para Nelson. Ele esperava que o rapaz as-
sumisse o lugar de seu pai no conselho real thembu. E para se preparar, o
jovem nobre xhosa foi enviado, em 1937, à faculdade Wesleyan, em Fort
Beaufort, instituição frequentada pela realeza thembu. Na faculdade se
interessou por boxe e corridas. Em seguida, Mandela foi estudar artes na
Fort Hare University. Aqui ele conheceu Oliver Tambo, com quem cultiva-
ria uma amizade ao longo de toda a vida. Na Fort Hare, Mandela também
iniciou suas atividades políticas. No final do primeiro ano da faculdade,
Mandela se envolveu em um boicote do Conselho Representativo dos
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Alunos que se opunha às regras da universidade. Como resultado, foi ex-
pulso. A instituição, porém, permitiu que ele voltasse – caso aceitasse as
regras da universidade. Mandela não voltou.
Logo depois de sair de Fort Hare, o rei Jongitaba anunciou que havia ar-
ranjado casamento para seu enteado. Mandela não gostou do arranjo e
deixou o reino thembu, mudando-se para Johanesburgo. Não muito de-
pois de chegar, Mandela conseguiu seu primeiro emprego, como guarda
em uma mina. No entanto, quando seu empregador descobrir que ele era
o enteado foragido do rei dos thembus, o jovem fugitivo perdeu seu em-
prego.
Mas Mandela estava determinado a ficar em Joeburg – como os britâ-
nicos apelidaram a cidade. Através do amigo e mentor Walter Sisulu, o
jovem começou a trabalhar como escriturário num escritório de advocaci-
a, o Witkin. Sidelsky & Edelman. Ele também se estabeleceu na township
– os guetos onde os negros eram obrigados a morar – Alexandra, ao norte
de Johanesburgo. Ao mesmo tempo, Mandela continuou seus estudos e se
diplomou em artes pela University of South Africa num curso por corres-
pondência. Logo depois de receber o diploma, ele começou o curso de
Direito na Universidade de Witwatersrand. Apesar de Mandela só vir a
completar sua formação superior na prisão, quando cursou Direito através
o Programa Externo da Faculdade de Londres, o tempo que frequentou a
Witwatersrand teve grande relevo em sua vida por causa das amizades
Sindicato dos Padeiros de São Paulo - Projeto Cultura e Memória
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que forjou. Nessa universidade ele conheceu os futuros ativistas anti-
apartheid Joseph Slovo, Harry Schwarz e Ruth First. Slovo viria a ser Minis-
tro de Moradia da administração Mandela e Schwarz foi seu embaixador
em Washington, EUA.
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A entrada na política
Em 11 de fevereiro de 2010, uma multidão se reuniu em frente à prisão
Victor Verster, em Joahanesburgo. Exatos vinte anos antes, o homem que
liderou a África do Sul no início de um novo tempo, no qual pela primeira
vez todos tinham direitos iguais independentemente de raça ou credo,
saía da prisão depois de ter cumprido uma pena de 27 anos. Durante esse
tempo, Nelson Mandela, o líder em questão, tornou-se o símbolo da luta
contra o apartheid, espécie de mártir calado por um regime intransigente
por lutar por justiça não só para si, mas para todas as nações bantos. A
libertação de Mandela significava a libertação das raças excluídas da África
do Sul. Simbolizava a redenção dos oprimidos, o fim de um regime parcial.
Um símbolo tão forte que foi fundido em bronze, forjado na estátua er-
guida na entrada da prisão Victor Verster que retrata os primeiros passos
de Mandela como homem livre. Eram os primeiros passos da África do Sul
livre. Todos sabiam disso, tanto em fevereiro de 1990, quanto hoje. Por
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isso mesmo, a multidão se reuniu ao redor da estátua do líder para co-
memorar o aniversário da sua libertação.
Presidente De Klerk e Nelson Mandela
Ultrajado pelo apartheid, Mandela
dedicou toda sua vida adulta à luta
contra o regime. Em determinado
momento entendeu que a única
forma de conseguir isso seria por
meio da luta armada. Preso, assu-
miu seus atos como justificáveis.
Condenado como sabotador, con-
tinuou a liderar a resistência pelos
meios legais. Libertado, negociou
com o presidente De Klerk a transi-
ção pacífica do apartheid à demo-
cracia.
A separação racial na África do Sul era fato há séculos, e como todos os
jovens de origem semelhante à sua Mandela sentiu o preconceito no mo-
mento em que entrou em contato com o mundo dos brancos. Adaptar-se
aos modos e maneiras exigidos pelas autoridades não era o pior. Ser dis-
criminado legalmente e ter seus direitos civis negados era inaceitável. Os
colonizadores europeus haviam criado um Estado, mas não haviam incluí-
do os outros povos que viviam naquele território. Empregavam-nos em
Sindicato dos Padeiros de São Paulo - Projeto Cultura e Memória
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suas fazendas e minas, mas não lhes davam oportunidades. Eram estran-
geiros em sua própria terra.
A biografia de Mandela se confunde com o advento do apartheid. Em
1944, quando tinha 26 anos, Mandela ingressa no Congresso Nacional
Africano, CNA, o partido político que congregava os negros. O CNA havia
sido fundado em 1912, com o nome de Congresso Nacional dos Nativos da
África do Sul e sob o lema “esqueçam todas as diferenças entre os povos
africanos e se unam em uma organização nacional única”. Em 1923, o
partido recebeu o nome que permanece até hoje.
Em 1948, poucos anos depois de Mandela se filiar ao CNA, a segrega-
ção que já acontecia na prática foi respaldada por lei. O Partido Nacional,
dominado por africâneres, venceu as eleições de 1948 e iniciou um regime
discriminatório. O apartheid, que em africâner significa “separação”, ne-
gava os direitos econômicos, sociais e políticos a todos os sul-africanos
que não fossem comprovadamente brancos. Os descendentes dos colonos
europeus assumiam espaços e posições em todos os setores do país, pú-
blicos ou privados em detrimento das minorias. Eles haviam criado as ins-
tituições, indústria e comércio e não compartilhariam os frutos de seu
esforço com outros povos ou com mestiços.
Com a instituição do apartheid, uma série de leis discriminatórias fo-
ram promulgadas. Não havia muita diferença das leis que Hitler baixou
para perseguir os judeus, logo no início do regime nazista. Em 1949, os
Sindicato dos Padeiros de São Paulo - Projeto Cultura e Memória
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casamentos inter-raciais foram proibidos; em 1950, todos os sul-africanos
foram obrigados a fazer uma declaração de registro de raça, um documen-
to que garantia ou obliterava os direitos civis de seu portador; no mesmo
ano, os negros, mestiços, indianos e outras raças foram proibidos de per-
manecer nas cidades depois do horário comercial; em 1951, foram criadas
as townships, áreas afastadas onde as raças excluídas foram forçadas a
morar; em 1953, quem não fosse branco não podia usar instalações públi-
cas, como banheiros e bebedouros; ainda em 1953, as autoridades cria-
ram um sistema educacional diferenciado para as crianças das townships.
Os investimentos em educação pública eram dez vezes menores para os
negros, que constituíam cerca de 70% da população.
Os negros, mestiços e asiáticos também não podiam empregar bran-
cos, nem podiam ter seus negócios nas áreas reservadas para estes. Para
entrar nesses espaços, precisavam ter um passe, o qual era dado desde
que a pessoa tivesse emprego comprovado naquela local. Aqueles que
não tivessem passe ao serem abordados pelas autoridades eram presos
imediatamente. Até as praias eram segregadas. As melhores, claro, eram
reservadas ao “grupo de raça branca”, conforme avisavam as placas.
Mesmo ganhando menos, os negros pagavam mais impostos que os bran-
cos e se um negro estuprasse uma branca, seria condenado à morte, en-
quanto, se fosse o branco a violentar uma negra, este recebia apenas uma
multa. Além de ter sua dignidade afrontada a cada momento, a sobrevi-
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vência econômica para qualquer membro das raças excluídas era extre-
mamente difícil.
Imediatamente após o estabelecimento
do apartheid, Mandela iniciou sua oposi-
ção ao regime. Como resposta à arbitra-
riedade legal com que seu povo era tra-
tado, ele fundamentou sua orientação
política nos ideais democráticos de igual-
dade. Embora fosse jovem, conhecia o
adágio bantu que diz “somos gente atra-
vés de outras gentes”. Era consciente da
interdependência que permeia não só a
condição humana, mas a relação entre
diferentes espécies. Essa interdependên-
cia confere o caráter de uma sociedade,
no caso dos homens, ou de um ecossis-
Mandela em trajes tribais (1961)
tema, se forem espécies animais e vegetais.
Conforme escreve Anders Hallengren em seu artigo “Nelson Mandela
and the Rainbow Culture” (Nelson Mandela e a Cultura Arco-Íris), “agressi-
vo pugilista e nacionalista que começava sua luta pelos direitos dos negros
nos anos 1940, Mandela nunca duvidou que o progresso democrático [na
África do Sul] devia se basear em igualdade, pluralismo e na multi-
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etnicidade”. Essa orientação pautaria suas ações por toda sua vida políti-
ca.
Na Campanha de Desacato de 1952, promovida pelo CNA para desafiar
o regime, Mandela se destacou como líder. A campanha se constituiu num
movimento de massa de resistência ao apartheid, estimulando os partici-
pantes a lançar campanhas futuras. Lançada conjuntamente pelo Congres-
so Nacional Africano e o Congresso Indiano da África do Sul, a campanha
seguia a tradição da satyagraha, a resistência não violenta proposta – e
colocada em prática com sucesso – por Gandhi. Os negros, indianos e
mestiço, apoiados por brancos que se uniram ao movimento – alguns dos
quais eram figuras proeminentes –, passaram a desobedecer abertamente
as leis segregacionistas frequentando locais onde não poderiam estar,
lugares como um posto de correio ou uma estação de trem.
Nelson Mandela, que era presidente da Liga Jovem do CNA, foi eleito
voluntário-chefe da campanha. Ao longo do movimento, suas qualidades
como líder de massa ficaram patentes. Por conta disso, foi eleito Presiden-
te do CNA do capítulo do Transvaal e vice-presidente nacional do partido
em 1952. O governo do apartheid, por sua vez, promulgou leis que res-
tringiam ainda mais a via da resistência pacífica. Qualquer ação, por me-
nos intensa que fosse, era motivo de prisão e condenação.
Nessa época, Mandela e seu amigo Oliver Tambo abriram um escritório
de advocacia que oferecia serviços legais preços módicos para os negros.
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31
Oliver Tambo
Em 1955, Mandela liderou o Congresso do Povo, promovido pelo Con-
gresso da Aliança, que reunia os partidos Congresso Nacional Africano,
Congresso indiano da África do Sul, o Congresso dos Povos Mestiços e o
Congresso dos Democratas. O Congresso do Povo foi um marco. Reuniu
todas as etnias do país para exigir uma nova África do Sul, livre do regime
do apartheid. Durante o evento, a Carta do Povo foi promulgada. O docu-
mento, que abria com a declaração direta “o povo deve governar!”, esta-
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32
belecia os fundamentos da causa antiapartheid. A Carta de Povo continu-
ou a ser a orientação fundamental do CNA durante décadas, inspirando
gerações de novos ativistas.
Como era de se esperar, os líderes do Congresso da Aliança foram per-
seguidos. Nelson Mandela, que tinha seus movimentos vigiados, precisou
se disfarçar de entregador de leite. Mesmo assim, acabou preso e levado a
julgamento duas vezes, em 1956 e em 1961. Não foi, porém, condenado.
Ao menos não nessas ocasiões.
O Apartheid
Com a unificação do Estado Livre de Orange e do Transvaal pela
Grã-Bretanha, os africâneres, descendentes dos colonos holandeses,
ressentidos com a perda de suas nações para os britânicos e marca-
dos pelas contínuas guerras com os zulus, buscaram ascensão políti-
ca no parlamento para garantirem seus privilégios. Em 1948, o par-
tido que representava esse estrato social , o Partido Nacional, chega
ao poder e decreta o apartheid.
Os descendentes dos britânicos, cujos ancestrais já no século 19
adotavam práticas segregacionistas não só na África do Sul, mas em
suas colônias no mundo todo, não foram afetados. Há, porém, um
elemento que separa os brancos descendentes dos holandeses dos
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descendentes de britânicos, a língua. No norte da África do Sul,
ocupado pelos africâneres, o afrikaans predomina; na província do
Cabo, o inglês é a língua principal.
Imediatamente após a promulgação do apartheid, os grupos ra-
ciais afetados negativamente, impedidos de promoverem uma
transformação pela via eleitoral, se uniram em oposição. De fato, a
oposição na áfrica do Sul não se constituía somente dos negros – a
maioria xhosa e zulu. Havia os imigrantes indianos, que haviam se
estabelecido em grande número na província de Natal, e também
mestiços das muitas raças que ocupavam o território da África do
Sul a quem também eram negados direitos civis. A eles se uniam
brancos dissidentes, que se opunham ao regime.
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34
4
O Sabotador
O Massacre de Sharpeville; Mandela lidera ataques armados; a organi-
zação MK; Box: O primeiro Casamento de Mandela
Depois de os grupos raciais segregados pelo apartheid organizarem
uma oposição e de lançarem dois movimentos contra o regime na primei-
ra metade da década de 50, o governo do presidente Hendrik Verwoerd
restringiu ainda mais a liberdade de ação dos manifestantes.
Em 1960, a administração Verwoerd também estendeu a obrigatorie-
dade dos passes às mulheres. Desde os anos 1920 os movimentos dos
negros eram restringidos pela obrigatoriedade dos passes, mas Verwoerd
endureceu ainda mais esse expediente legal. A partir de 1960, as leis dos
passes se tornaram o principal instrumento do Estado para prender e in-
timidar os que se oponham ao apartheid. Paradoxalmente, foram essas
mesmas leis que mobilizaram a resistência dos negros, indianos e mesti-
ços.
Em continuidade com o movimento de desobediência civil de forma
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35
pacífica, inspirada na satiagraha de
Gandhi, os líderes do Congresso Nacional
Africano (CNA), lançaram uma campanha
de protestos contra as leis dos passes. Os
protestos deveriam acontecer no dia 31
de março de 1960. No entanto, o partido
rival, o Congresso Pan Africanista (CAP)
decidiu se antecipar ao CNA lançando as
manifestações dez dias antes. Assim,
com o melhor espírito de resistência
pacífica, na manhã de 21 de março, uma
multidão calculada entre cinco e sete mil
pessoas procedeu até a estação de polí-
cia da township de Sharpeville e se en-
tregaram às autoridades para serem
O Mahatma Gandhi (1869 – 1948)
presos por não portarem passes. No final da manhã, a atmosfera ainda era
festiva e pacífica. Havia cerca de vinte policiais na estação, mas logo pedi-
ram reforços. As autoridades tentaram dispersar a multidão intimidando-a
com vôos rasantes de jatos F-86, simulando um ataque aéreo. Isso, porém,
não teve efeito. Ao contrário, enfureceu os manifestantes que, como davis
africanos enfrentando golias africânderes, passaram a atirar pedra nos
policiais. A resposta da polícia foi desproporcional: abriu fogo contra a
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multidão. Os números oficiais divulgados afirmavam que 69 pessoas foram
mortas, entre elas oito mulheres e dez crianças, e outras 180 ficaram feri-
das, 31 delas mulheres e 19 crianças. A chacina passou a ser lembrada
como o Massacra de Sharpeville. O CNA, de cuja liderança Nelson Mandela
fazia parte, também foi uma das vítimas. Colocado na ilegalidade, junta-
mente com os outros partidos de oposição, o CNA, embora tenha perma-
necido ativo clandestinamente, precisou recorrer a outras estratégias.
A ação das autoridades não deixava outra saída à maioria negra. A úni-
ca forma de enfrentar o regime era por meio da força. Nelson Mandela
passou a defender a fundação de um braço armado do agora clandestino
CNA. Mandela propunha o uso de táticas de sabotagem. Em 1961, depois
de deliberações, o conselho executivo do partido deu carta branca: os
membros que desejassem se envolver na campanha armada de Mandela
não seriam impedidos pelo CNA. Assim, foi fundado o braço armado do
partido, Umkhonto we Sizwe, a Lança da Nação, mais conhecido pela sua
abreviatura, MK.
Em seu famoso discurso, “Estou Preparado para Morrer”, proferido em
seu julgamento em 20 de abril de 1964, Mandela expôs os motivos que
levaram à fundação do MK: “em primeiro lugar, acreditávamos que, como
resultado da política do governo, a violência do povo africano tinha se
tornado inevitável e, a não ser que uma liderança responsável pudesse
canalizar e controlar os sentimentos do nosso povo, haveria ondas de ter-
Sindicato dos Padeiros de São Paulo - Projeto Cultura e Memória
37
rorismo que espalharia um amargor e hostilidade tão intenso entre as
raças desse país que nem uma guerra poderia produzir. Em segundo lugar,
sentimos que sem violência não haveria nenhum modo de o povo africano
ter sucesso em sua luta contra o princípio da supremacia branca. Todas as
formas legais de expressar oposição a esse princípio foram solapadas pela
legislação e nós fomos colocados em uma posição na qual ou aceirávamos
um estado permanente de inferioridade, ou teríamos de desafiar o gover-
no. Nós escolhemos desobedecer a lei. Primeiro infringimos a lei de modo
a não recorrer à violência. Quando essa forma foi considerada ilegal e o
governo recorreu a uma mostra de força para esmagar a oposição, apenas
então decidimos responder à violência com violência”.
Após sua fundação, o MK logo iniciou uma colaboração com o Partido
Comunista da África do Sul, composto principalmente por brancos que se
opunham ao regime do apartheid. O primeiro atentado do MK aconteceu
em 16 de dezembro de 1961. A campanha prosseguiu, tendo como alvo
instalações do governo, alvos militares, industriais e infraestruturas vitais.
Nelson Mandela era o coordenador das campanhas de sabotagem. Se,
porém, essas medidas se mostrassem incapazes de derrubar o regime,
Mandela também criou planos para uma campanha de guerrilha. Além
disso, ele era encarregado de levantar fundos para o MK e do treinamento
dos membros do grupo.
Wolfie Kadesh, membro da CNA e do MK, relatou em um depoimento a
Sindicato dos Padeiros de São Paulo - Projeto Cultura e Memória
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Mandela, em 1944
campanha elaborada por Mande-
la. “Sabíamos que começaría-
mos, em 16 de dezembro de
1961, a explodir os locais simbó-
licos do apartheid, como os escri-
tórios de emissão de passes, os
tribunais que julgavam os nati-
vos... correios, escritórios do
governo. Mas deveríamos fazer
isso de modo que ninguém se
ferisse, que ninguém fosse mor-
to”.
A campanha de sabotagem fra-
cassou. Depois de Mandela ter
sido preso, o MK continuou suas
atividades passando a lançar mão de táticas de guerrilha contra o regime,
o que provocou a morte de diversos civis.
Os principais atentados do MK aconteceram na década de 80. No sep-
tuagésimo aniversário da fundação do CNA, em 8 de janeiro de 1982, o
MK perpetrou um ataque contra a usina nuclear de Koeberg, próximo da
Cidade do Cabo. No mês de maio do ano seguinte, a organização plantou
bombas em Church Street, Pretoria, matando 19 pessoas. Em 14 de junho
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de 1986, o MK explodiu um carro bomba em frente ao Magoo’s Bar, na
cidade de Durban, matando três pessoas e ferindo outras 73. O MK encer-
rou suas operações em agosto de 1990, como parte das negociações que
puseram fim no apartheid.
Depois da queda do apartheid, Mandela admitiu que em sua luta con-
tra o regime o CNA também violava os direitos humanos. Não só Mandela
via as ações do MK como radicais. O governo dos Estados Unidos negaram
até 2008 a entrada de Mandela e de outros membros do CNA por serem
considerados terroristas. O então presidente sul-africano só podia entrar
no país com um visto especial emitido pela Secretaria de Estado dos EUA e
apenas para visitar os escritórios das Nações Unidas, em Nova York.
Nos primeiros anos de operação, o MK tinha seu quartel-general em
Lilliesleaf Farm, uma fazenda localizada em Rivonia, um subúrbio de Joha-
nesburgo. O local havia sido comprado em nome de Arthur Goldreich com
fundos do Partido Comunista Sul-Africano (PCSA) e do ANC. O regime pro-
ibia que alguém de etnia negra pudesse comprar uma propriedade como
aquela, por isso a aliança com o PCSA, que reunia brancos contrários ao
regime, era essencial. As autoridades, porém, estavam fechando o cerco
contra o MK.
Desde 1952, Nelson Mandela havia sido “banido” pelo governo pela li-
derança que exercia no CNA. Com essa medida, Mandela não podia mais
participar de reuniões, nem fazer discursos. No entanto, o ativista conti-
Sindicato dos Padeiros de São Paulo - Projeto Cultura e Memória
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nuou exercendo suas atividades disfarçando-se para despistar a polícia.
Um de seus disfarces preferidos era o de motorista. Isso, porém não evi-
tou que ele fosse preso.
Em 5 de agosto de 1962, depois de ter estado foragido durante sete
meses, Nelson Mandela foi preso e encarcerado no Johanesburg Fort. Sua
prisão foi possível porque a CIA, a Agência Central de Inteligência dos Es-
tados Unidos, informou às autoridades sul-africanas o local onde Mandela
estava e o disfarce que o protegia. Julgado, foi condenado a cinco anos de
trabalhos forçados por ter liderado uma greve em 1961 e por ter saído do
país ilegalmente. Contudo, sua situação iria piorar drasticamente.
Enquanto Nelson Mandela estava preso, Em 11 de julho de 1963, a fa-
zenda Lilliesleaf foi invadida e os principais líderes do CNA, MK E PCSA.
Eles foram acusados de sabotagem e traição pelo governo. Essas acusa-
ções também foram feitas a Mandela no Julgamento de Rivonia. A senten-
ça que ele e oito membros do CNA foi prisão perpétua.
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41
5
O Julgamento de Rivonia
Rivonia foi chamado de “o julgamento que mudou a África do Sul”. As-
sim referido por conta do subúrbio de Johanesburgo onde o MK, o braço
armado do Congresso Nacional Africano (CNA), tinha seu esconderijo, o
processo que julgou 16 líderes do CNA começou em 26 de novembro de
1963. Nelson Mandela já estava preso, confinado em uma cela solitária
por ter deixado o país sem passaporte e por ter incitado greve, quando o
esconderijo do MK foi descoberto. No entanto, documentos encontrados
no local ligavam Mandela a atos de sabotagem contra o regime. Ele e ou-
tros dez membros do MK foram acusados de 221 atos de sabotagem vistos
como destinados a “fermentar uma revolução violenta” no país (algumas
fontes falam em 235 atos de sabotagem). Outros dois membros do MK,
Arthur Goldreich e Halrold Volpe, ambos brancos, haviam conseguido
realizar uma fuga espetacular e evitaram ser processados. Julgados sob a
nova emenda sobre sabotagem da Lei Geral de 1962 e do Ato de Supres-
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42
são ao Comunismo, os onze acusados enfrentavam a ameaça de serem
condenados à morte.
Arthur Goldreich e Halrold Volpe
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43
Os advogados de defesa não sabiam do que seus clientes seriam acu-
sados, até o procurador efetuar a acusação. Só então souberam do que se
tratava. Imediatamente solicitaram ao juiz, Quartus de Wet, que adiasse o
início dos trabalhos. O juiz concedeu três semanas para a defesa preparar
seu caso.
Nelson Mandela tinha uma reputação internacional crescente, e o CNA
planejava usar o julgamento para angariar apoio internacional na luta
contra o apartheid. Quando o julgamento foi retomado, Mandela entrou
na corte à frente dos outros acusados. Ao se dirigir ao banco dos réus,
saudou o público negro que acompanhava o processo com o característico
punho fechado e gritou “Amandla!” (Poder). “Será nosso”, responderam
os outros. A defesa argumentou que as acusações eram vagas e não de-
terminavam exatamente o crime de cada um dos réus. O juiz de Wet con-
cordou com a defesa.
A promotoria precisou retrabalhar o caso. Em dezembro, o promotor
Percy Yutar leu as acusações contra Nelson Mandela e os outros dez
membros do MK: “Os acusados planejaram de forma deliberada e malicio-
sa e promoveram atos de violência e destruição em todo o país. O objetivo
era lançar a África do Sul no caos, desordem e tumulto, o que seria agra-
vado, de acordo com seus planos, pela operação de milhares de guerrilhei-
ros treinados empregados em várias partes do país (...) A operação combi-
nada deveria provocar um violento levante seguido, no momento apropri-
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44
ado, de uma invasão armada do país por poderes estrangeiros. Em meio
ao caos, baderna e desordem resultantes, os acusados planejavam instalar
um governo revolucionário provisório que assumiria a administração e o
controle deste país (...)”
O promotor Percy Yutar
Sindicato dos Padeiros de São Paulo - Projeto Cultura e Memória
45
Conforme Joel Joffe relatou em seu livro The State vs. Nelson Mandela
(O Estado versus Nelson Mandela), ao ouvir as acusações, os advogados
de defesa perceberam que, para a maioria dos acusados, o único veredito
possível seria “culpado”. Por conta disso, a defesa se concentrou em lutar
para evitar a pena de morte.
Mas para surpresa da defesa, os acusados tinham outros planos. Vários
deles viam o julgamento como a primeira e única oportunidade para expli-
car ao país e ao mundo o motivo pelo qual eles escolheram agir da forma
como agiram.
A acusação demonstrou seu caso. A principal testemunha da acusação
foi um ex-sabotador do MK, Bruno Mtolo, que ficou conhecido durante o
julgamento como “Senhor X”. Mtolo contou que havia recebido ordens do
Alto Comando Nacional do MK para explodir um escritório municipal, uma
usina geradora de eletricidade e uma linha elétrica. Testemunhou que
Mandela treinou ele e seus camaradas para manusearem bombas, grana-
das, minas terrestres e outras armas empregadas pelos sabotadores da
MK. Mtolo afirmou ainda que acreditava que o CNA e seu braço armado, o
MK, haviam se tornado instrumentos do Partido Comunista.
Outras testemunhas foram chamadas pela acusação, mas todas se
mostraram débeis em provar os argumentos de Yutar. Claramente haviam
sido coagidas e torturadas para disseram o que a polícia queria. Yutar
também usou diversos documentos apreendidos na fazenda Lilliesleaf,
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46
quartel-general do MK em Rivonia, como prova contra os réus. Mas estes
também não eram provas cabais, uma vez que não acrescentava nada
além do que os réus já haviam admitidos, isto é, que eram culpados de
atos de sabotagem.
A defesa teve, então, cinco semanas para se preparar. O caso foi inicia-
do com um testemunho de Nelson Mandela, feito no banco dos réus. Con-
forme ele explicou depois sobre sua arriscada decisão, “eu não queria ficar
limitado” ao formato pergunta-resposta para explicar porque ele e os ou-
tros réus julgaram promover uma campanha de sabotagem contra o go-
verno sul-africano. Em seu livro sobre o julgamento, Joel Joffe, advogado
da defesa, afirmou que ele e seus colegas temeram que o discurso de
Mandela pudesse levá-lo a ser condenado à pena capital.
Durante duas semanas, Mandela passou as noites em claro redigindo
seu discurso. Quando foi anunciado que Mandela não seria interrogado,
mas daria um testemunho, Percy Yutar se dirigiu ao juiz com veemência:
“meu senhor! Meu senhor, penso que o senhor deva avisar o acusado de
que o que ele disser do banco dos réus terá muito menos peso do que se
ele for interrogado”. Joffe conta que o juiz de Wet fuzilou um olhar frio ao
promotor e respondeu secamente: “creio, senhor Yutar, que os advogados
de defesa têm experiência suficiente para aconselhar seus clientes sem
sua assistência”.
Sindicato dos Padeiros de São Paulo - Projeto Cultura e Memória
47
Mandela começou a falar com voz calma, mas carregada de convicção.
Ele continuou a ler o discurso que havia preparado durante as quatro ho-
ras seguintes. Contou a história de sua vida, os motivos que o levaram a
participar da luta pela igualdade racial e explicou como chegou à conclu-
são que o movimento pacifista devia dar lugar a ações violentas. Só assim,
acreditava ele, a democracia multirracial que ele e o CNA tanto almejavam
para a África do Sul poderia ser conquistada. Mandela admitiu que havia
organizado atos de sabotagem. Explicou o porquê havia recorrido à vio-
lência e discorreu sobre a África do Sul pela qual estava preparado para
morrer, uma democracia multirracial onde todos os cidadãos teriam os
mesmos direitos e seriam vistos como iguais perante a lei.
Com efeito, o discurso que Mandela proferiu em 20 de abril de 1964,
batizado de “Estou Preparado para Morrer”, teve uma incrível repercus-
são. Até hoje é lembrado como um dos momentos épicos no combate ao
aparteheid.
Em 11 de junho de 1964, quando o julgamento foi concluído, Nelson
Mandela e outros sete acusados – o líder do CNA Walter Sisulu, Govan
Mbeki (pai do ex-presidente da África do Sul Thabo Mbeki), Raymond M-
hlaba, Elias Motsoledi, Ahmed Kathrada, o único idiano entre os acusados,
e o judeu Denis Goldberg – foram sentenciados a prisão perpétua. Ceden-
do à pressão internacional, que exigia que os acusados não fossem conde-
nados à morte, o juiz de Wet resolveu abdicar da pena capital, embora
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48
fosse, segundo ele afirmou ao pronunciar a sentença, “a pena apropriada
para este crime”. Os acusados sorriram aliviados. Iriam viver.
Walter Sisulu
O Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas condenou
o julgamento e incitou os países membros a promoverem sanções contra
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o regime do apartheid. Mas seriam preciso 27 anos de opressão da maio-
ria negra sul-africana até que Nelson Mandela fosse libertado e se tornas-
se, quatro anos depois que saiu da prisão, o primeiro presidente do país a
ser eleito em uma eleição multirracial.
Estou Preparado Para Morrer
Trechos do Discurso de Mandela no Banco dos Réus
Em minha juventude, no Transkei, eu ouvia os anciões da
minha tribo contar histórias sobre os tempos antigos.Entre
aquelas que eles me contaram havia as das guerras feitas por
nossos ancestrais em defesa da nossa terra. Os nomes de Din-
gane e Bambata, Himtsa e Makana, Squngthi e Dalasile, Mo-
shoeshoe e Sekhukhuni eram venerados como a glória de toda
a nação africana. Eu esperava, então, que a vida pudesse me
oferecer a oportunidade de servir meu povo e de fazer minha
humilde contribuição à sua luta pela liberdade. Foi isso que me
motivou a fazer tudo o que fiz com relação às acusações feitas
contra mim neste caso.
(...)
Eu já mencionei que fui uma das pessoas que ajudaram a
fundar o Umkhonto (MK). Eu e os outros que fundaram a orga-
nização fizemos isso por dois motivos. Primeiramente, acredi-
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távamos que, como resultado da política do governo, a violên-
cia do povo africano se tornou inevitável e, a não ser que uma
liderança responsável fosse exercida no sentido de canalizar e
de controlar os sentimento do nosso povo, ações terroristas
seriam perpetradas que produziriam grande intensidade de
amargor e de hostilidade entre as várias raças deste país, as
quais não são produzidas nem mesmo pela guerra. Em segundo
lugar, sentimos que sem violência não haveria possibilidade de
se abrir um caminho para o povo africano ter sucesso em sua
luta contra o princípio da supremacia branca. Todos os meios
legais de expressar oposição a esse princípio foram fechadas
pela legislação, e nós fomos colocados em uma posição na qual
ou teríamos de aceitar um estado permanente de inferioridade
ou teríamos de desafiar o governo. Nós desobedecemos a lei de
uma maneira que evitava qualquer uso de violência; quando
isso se tornou ilegal e o governo recorreu ao uso da força para
esmagar a oposição às suas políticas, apenas então decidimos
responder violência com violência.
Contudo, a violência que escolhemos adotar não foi o terro-
rismo. Nós que fundamos o Umkhonto (MK) éramos todos
membros do Congresso Nacional Africano e tínhamos conosco
a tradição de não violência do Congresso Nacional Africano e
de negociação como meio de resolver disputas políticas. Acredi-
tamos que a África do Sul pertence a todos os povos que nela
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vivem e não apenas a um grupo, seja branco ou negro. Não
queríamos uma guerra inter-racial e tentamos evitá-la até o
último minuto.
(...)
Ao longo da minha vida, eu me dediquei à luta do povo africa-
no. Lutei contra o domínio branco e lutei contra o domínio
negro. Cultivei o ideal de uma sociedade livre e democrática na
qual todas as pessoas possam viver juntas, em harmonia e com
oportunidades iguais. É um ideal o qual eu espero viver e reali-
zar. Mas se for necessário, é um ideal pelo qual estou prepara-
do para morrer.
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6
O Prisioneiro
Depois de condenado à prisão perpétua no Julgamento de Rivonia,
Nelson Mandela foi enviado à prisão de Robben Island, onde líderes xho-
sas que lutaram contra os colonizadores britânicos no século 19 eram
mantidos pelos britânicos. Na ilha, tanto ele como os outros os prisionei-
ros eram forçados a fazer trabalhos pesados em uma pedreira de cal.
As condições da prisão eram mínimas. Os detentos eram segregados
por raça. Os prisioneiros políticos eram separados dos presos comuns e
tinham menos privilégios do que estes. Os negros, como no resto do país,
tinham suas necessidades propositalmente negligenciadas. Até mesmo
suas rações eram menores do que a dos brancos.
Mandela era classificado como “prisioneiro do grupo-D”, a mais baixa
categoria entre os detentos. Como tal, ele tinha permissão de receber
apenas uma visita e uma única carta a cada seis meses. Essas raras cartas
eram mantidas pelos censores durante longos períodos antes de serem
entregues a seus destinatários e quando eram encaminhadas aos prisio-
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neiros, tinham grande parte de seu conteúdo obliterada. Muitas vezes, era
simplesmente impossível as ler.
Além dos trabalhos forçados, da minguada ração e do isolamento qua-
se absoluto com o mundo exterior, Nelson Mandela também enfrentava
ameaças contra sua existência. Ao longo dos seus anos na prisão, a repu-
tação de Nelson Mandela como o mais proeminente líder da causa antia-
partheid cresceu. A comoção em torno dele era tal que suas fotografias
foram proibidas na África do Sul. E com a projeção de Nelson Mandela,
também aumentava a indignação da comunidade internacional.
Robben Island
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Em 1969, o BOSS (South African Bureau of State Security), a inteligência
do apartheid, elaborou um plano para assassinar o líder negro. Conforme
o agente Gordon Winter relatou em seu livro de 1981, Inside BOSS (Por
Dentro do BOSS), ele (Winter) foi infiltrado na prisão para supostamente
resgatar Mandela. Durante a fuga, agentes da BOSS deveriam matá-lo.
Dessa forma, sua morte seria justificada, e o regime se livraria de um pri-
sioneiro incômodo, cuja causa atraía cada vez mais simpatizantes no mun-
do todo. Contudo, o plano foi frustrado pela inteligência britânica.
Na prisão, Mandela também voltou a estudar. Ele tinha um diploma em
artes, havia estudado direito e, embora não tivesse se formado, também
exercera a profissão de advogado. Agora, ele retomava o curso, feito por
correspondência através do Programa Externo da Universidade de Lon-
dres. De fato, desde que foi preso em 1962, o tempo que Mandela tinha
livre era dedicado a estudar e a lecionar.
Com efeito, Robben Island se tornou um verdadeiro campus para os
prisioneiros políticos. Ao fazerem o trabalho na pedreira, extraindo cal, a
vigilância sobre eles era relaxada. Assim, os prisioneiros debatiam suas
visões políticas e divulgavam conhecimento entre si. Mandela queria que
um espírito semelhante ao das universidades reinasse em Robben Island.
Palestras secretas eram realizadas com regularidade entre os prisioneiros,
tanto negros como brancos. Ele também estudou afrikaans e conversava
frequentemente com carcereiros e empregados brancos da prisão. Isso
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permitiu que ele passasse a entender melhor a mentalidade da minoria
bôer. Conforme escreveu Anders Hallengren em seu artigo “Nelson Man-
dela and the Rainbow of Culture” (Nelson Mandela e o Arco-Íris de Cultu-
ra), “Mandela se identificou com esses descendentes dos imigrantes ho-
landeses do século 17 e percebeu que, sob outras circunstâncias, ele
mesmo poderia ter desenvolvido pontos de vista semelhantes aos deles”.
Essa experiência, adquirida ao longo dos
anos em que esteve encarcerado em Rob-
ben Island, Mandela ampliou sua consciên-
cia ideológica – conhecimento que seria
usado na elaboração da nova Constituição
sul-africana. A partir dessa percepção, con-
forme observa Hallengren, “o notável espíri-
to de reconciliação de Mandela surgiu,
quando africanos e africâneres formaram
um governo de coalizão”.
Conforme o tempo passava, os prisionei-
Mandela em Roben Island
ros foram desenvolvendo cada vez mais formas de burlarem a vigilância e
de se comunicarem. Embora os presos políticos constituíssem um grupo
bastante heterogêneo – entre eles estavam membros da elite intelectual
negra, bem como pessoas sem qualquer educação –, as ideias e a troca de
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conhecimento cresciam cada vez mais na “Universidade Mandela”, como
Robben Island acabou sendo apelidada.
Apesar de valorizarem a cultura africana, os debates eram inspirados
pelas obras de autores europeus. Mais do que os livros sagrados das reli-
giões dos presos – a Bíblia, o Alcorão e o Bhagavad Gita – William Shakes-
peare (1564 – 1616) era a maior fonte de inspiração dos prisioneiros.
Constantemente citada e discutida, parte da obra do dramaturgo inglês
refletia a situação dos encarcerados. Como Hamlet, o príncipe dinamar-
quês da peça de mesmo nome, que havia sido enganado por um rei crimi-
noso, os prisioneiros políticos foram vítimas de um governo brutal. Como
em Júlio Cesar, também eles estavam tramando para derrubar um gover-
no despótico. Com em Mcbeth, pensavam eles, o regime do apartheid
estava igualmente condenado a ruir. Passagens de textos como Coriolano
e Henrique V os estimulavam a lutar.
O trecho preferido de Mandela era a passagem de Julio Cesar que diz:
“os covardes morrem muitas vezes antes da sua morte; o valente só prova
a morte uma única vez”. Nelson Mandela compreendia perfeitamente a
coragem descrita nesse trecho. Era a coragem que sempre moveu sua
luta, que fez com que ele arriscasse a vida no banco dos réus ao proferir
seu discurso histórico. O verdadeiro líder é imbuído de coragem e justiça.
E a personalidade de Nelson Mandela havia sido forjada por esses valores.
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Ao longo dos anos 70, especialmente depois do massacre promovido
pela polícia no Levante de Soweto, quando, em 16 de junho de 1976,
quando mais de quinhentos estudantes negros que protestavam contra a
imposição do afrikaans em sua grade curricular, foram chacinados pela
polícia, Mandela se tornava um ícone, mesmo apesar de amordaçado pelo
regime. Não obstante os esforços das autoridades para calar o líder negro,
suas pregações aos prisioneiros da sua raça foram influentes a ponto de
influenciar toda uma geração de novos líderes.
As pressões da comunidade internacional também aumentaram depois
do Levante de Soweto. Duras sanções econômicas foram impostas à África
do Sul, obrigando o governo a um movimento de rever a política segrega-
cionista.
Em março de 1982, depois de passar 18 anos confinados em Robben Is-
land, Mandela foi transferido para a prisão Pollsmoor, não muito distante
de onde estava. Junto com ele também foram transferidos outros líderes
do CNA que haviam sido condenados com ele no Julgamento de Rivonia:
Walter Sisulu, Andrew Mlangeni, o sul-africano de origem indiana Ahmed
Kathrada e Raymond Mhlaba. Provavelmente as autoridades tomaram
essa decisão para neutralizar a influência que Mandela e esses líderes do
CNA exerciam sobre uma nova geração de ativistas antiapartheid encarce-
rados em Robben Island. De acordo com o partido da situação, o Partido
Nacional, o qual havia instituído o apartheid em 1948, o motivo da trans-
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ferência foi outro. Segundo essa versão, Mandela e a liderança do CNA
foram transferidos para Pollsmoor para iniciar um contato entre eles e o
governo sul-africano.
De fato, tímidas negociações começaram a ser efetuadas, um indicativo
de que, pressionada pelas sanções econômicas e também por atentados
do MK, Pretoria começava a ceder. Em 1985, o presidente P.W. Botha
ofereceu libertar Mandela, desde que ele convencesse o MK a cessar a
luta armada. Muitos ministros do Partido Nacional aconselharam Botha a
não oferecer esses termos. Sabiam que Mandela não abriria mão do es-
forço armado em troca de ganho pessoal. Eles tinham razão: Mandela
recusou a oferta. Em um comunicado que conseguiu passar ao mundo
exterior por meio de sua filha Zindzi, ele afirmava, “apenas um homem
livre pode negociar. Um prisioneiro não pode firmar contratos”.
A partir desse ponto, a situação começou a se inverter. Agora era o
Partido Nacional que procurava Mandela. A primeira reunião entre Man-
dela e a administração Botha se deu de forma informal, quando o líder
antiapartheid estava internado no Volks Hospital, na Cidade do Cabo, re-
cuperando-se de uma cirurgia de próstata. Nessa época, o slogan Free
Mandela (Libertem Mandela) ecoava em todo o Ocidente. O vice-ministro
da Defesa Kobie Coetsee foi visitá-lo no hospital, abrindo caminho para
uma série de encontros que ocorreram ao longo dos quatro anos seguin-
tes. Embora esses contatos pavimentassem a trilha para futuras negocia-
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ções, quase nenhum progresso foi feito. Por outro lado, as restrições ao
prisioneiro foram caindo paulatinamente.
Presidente P.W. Botha
Em 1988, Mandela foi novamente transferido para a prisão Victor Vers-
ter, onde permaneceria até sua libertação. Na Victor Vester, Mandela
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podia receber visitas, o que permitiu que ele iniciasse articulações com a
liderança negra. Ele, porém, continuava a se recusar a negociar com o
governo na situação de prisioneiro.
O final do seu suplício se anunciou em 1989, quando o presidente Pie-
ter Botha, apelidado por seus correligionários de “O Grande Crocodilo”,
sofreu um derrame e foi substituído por Frederik Willem de Klerk. Em
fevereiro de 1990, De Klerk anunciou finalmente o fim do apartheid e a
libertação de Nelson Mandela.
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Winnie Mandela
A segunda esposa de Nelson Mandela, Winnie Mandela, é outra figura
de grande estatura na história recente da África do Sul. Mas diferente-
mente do marido, as opiniões sobre ela estão longe de ser unanimes. Há
aqueles para quem ela é a Mãe da Nação. Para outros, porém, ele deveria
estar presa, sentenciada à prisão perpétua. Essa mulher capaz de desper-
tar sentimentos tão antagônicos demonstrou ao longo de sua carreira uma
coragem quase irracional – tão irracional quanto algumas de suas ações
mais radicais.
Aqueles que conhecem Winnie afirmam que ela é aquele tipo de mu-
lher que chama a atenção quando entra em uma sala cheia de gente. Além
de sua beleza natural, hoje ofuscada pelo tempo, ela se veste com as colo-
ridas roupas tradicionais africanas, o que torna impossível não notá-la.
Também na luta contra o apartheid Winnie não deixou de ser percebida.
Nomzamo Winifred “Winnie” Zanyiwe Madikizela nasceu em 26 de se-
tembro de 1936, em Bizana, Transkei, no seio de uma família xhosa. Sua
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mãe, Nomathamsanga Mzaidume, era professora de economia doméstica
na escola local e faleceu quando Winnie tinha apenas oito anos. Seu pai
trabalhava no Departamento de Florestas e Agricultura do Transkei, uma
província “independente”, ou bantustão (veja definição de batustão na
seção Curiosidades), em meio à África do Sul.
Nelson Mandela e Winnie, recém casados
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A família de Winnie tinha mais poses do que a maioria dos negros da
África do Sul. Winnie frequentou a Universidade de Witwatersrand, Joha-
nesburgo, formando-se como assistente social com especialização em
Ciências Políticas. De fato, Winnie foi a primeira pessoa da raça negra –
homem ou mulher – a se tornar uma assistente social em seu país.
Protegida pela prosperidade da família, em seus anos como estudante,
Winnie esteve alheia à gritante desigualdade social que os negros enfren-
tavam. Foi só quando começou a trabalhar como assistente social no Ba-
ragwanath Hospital, o maior hospital do mundo, localizado na township de
Soweto, que ela se deu conta da enorme disparidade entre a privilegiada
minoria branca e a miserável maioria negra. “Quando eu trabalhei como a
primeira assistente social negra no Hospital Baragwanath”, declarou certa
vez Winnie, “comecei a me politizar, comecei a perceber a pobreza abjeta
à qual a maioria das pessoas era obrigada a viver, as terríveis condições
criadas pelas desigualdades do sistema”.
No final dos anos 50, inflamada pelas injustiças que via no hospital, a
jovem assistente social não tardou em participar do movimento antiapar-
theid. Em 1957, conheceu um advogado e ativista político 18 anos mais
velho que ela. Nelson Mandela, o nome do advogado, havia recém divor-
ciado sua primeira esposa. Ele e Winnie se casaram no ano seguinte, e os
filhos – na verdade filhas – não tardaram em vir. Zenani nasceu em 1959 e
Zindzi, em 1960. A vida familiar de Nelson e Winnie, nesses primeiros a-
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nos, estava longe de ser normal. Em 1958, Winnie foi presa no que seria a
primeira de uma série de detenções. Quanto a Nelson, destacado líder do
Congresso Nacional Africano, suas muitas viagens para organizar campa-
nhas o deixavam longe de casa a maior parte do tempo.
Quando Nelson foi preso em 1962, Winnie foi banida, o que equivale a
uma prisão domiciliar. No entanto, em 1967, ela simplesmente ignorou a
determinação e foi visitar o marido na prisão, na Cidade do Cabo. Por con-
ta disso, ela teve de amargar um mês na cadeia. Ao longo da vida ela foi
presa diversas vezes. Em uma dessas prisões, ela ficou um ano e meio em
uma solitária, no corredor da morte. O governo acreditou que isso quebra-
ria os ânimos de Winnie, mas o efeito foi contrário.
Ao sair da prisão em 1975, Winnie parecia ter disposição redobrada pa-
ra a luta. Imediatamente ela começou a participar da Liga Feminina do
Congresso Nacional Africano. Embora essa ala do partido da maioria negra
fosse imediatamente colocada na ilegalidade, nem Winnie nem suas com-
panheiras desanimaram. Sua insistência novamente a colocou atrás das
grades.
Em 1976, ela participou do Levante de Soweto, o qual culminou em
uma chacina, com cerca de quinhentos negros assassinados pela polícia do
regime. Winnie ficou seis meses na prisão e, depois de ter sido libertada,
não pôde voltar a Soweto. Como de costume, ela não aceitou ser banida e
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visitou aquela township diversas vezes. A cada uma delas, era presa e ti-
nha de passar alguns meses na prisão.
Mas Winnie acabou se embriagando com a violência em que vivia. Ao
enfrentar essa realidade, ela mesma acabou por adotar a brutalidade co-
mo meio de fazer valer suas intenções. E então ela se maculou irremedia-
velmente e de heroína tornou-se criminosa. Winnie fundou uma agremia-
ção com nome inocente, o Mandela United Football Team. Mas a inocên-
cia estava apenas no nome. O clube de futebol era formado por guarda-
costas que passavam mais tempo protegendo Winnie do que jogando.
Logo surgiram rumores de que a equipe estava se envolvendo em ativida-
des clandestinas. Qualquer um que se opusesse a eles era eliminado.
O discurso de Winnie se tornou cada vez mais inflamado. Em abril de
1985, ela pregou abertamente que os informantes do governo, negros que
traíam a causa antiapartheid, deviam ser mortos pelo “colar”. A terrível
execução consistia de se colocar pneus encharcados com gasolina ao re-
dor do acusado e acesos.
A situação fugiu de controle em 1989, quando o time de futebol se-
questrou quatro adolescentes da casa do ministro metodista Paul Verryn ,
entre eles Stompie Seipei, de apenas 14 anos. O menino foi encontrado
morto a facada dias depois. Seu corpo apresentava sinais de tortura. Mais
tarde, o guarda-costas de Winnie, Jerry Richardson, acusou Winnie de
ordenar o sequestro e o assassinato de Seipei.
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Ela defendeu-se afirmando que
mandara tirar os jovens da casa
do reverendo porque suspeitava
que eles estavam sofrendo abusos
sexuais. Winnie acabou condena-
da a seis anos de prisão pelo en-
volvimento no crime, mas apelou
da sentença e acabou tendo ape-
nas de pagar uma multa. Um de
seus guarda-costas pagou pelo
crime, sendo condenado. Contu-
do, a reputação de Winnie ficou
irremediavelmente abalada. A
poucos meses da libertação de
Nelson Mandela da prisão, o he-
roísmo que sempre a caracterizou
Stompie Seipei
foi eclipsado pelos crimes que ela perpetrou.
A libertação de Nelson Mandela em 1990 tirou momentaneamente a
negativa atenção que recaia sobre ela. Ironicamente, a saída de Mandela
da prisão foi o prenúncio da queda de Winnie. Reunidos pela primeira vez
depois de trinta anos, o casamento de Nelson e Winnie não sobreviveu às
notícias de que ela havia sido infiel a ele enquanto Nelson estava na pri-
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são. Quando Mandela foi eleito presidente, Winnie sequer foi convidada
para a cerimônia de posse. Mesmo assim, ela ocupou o posto de vice-
ministra de Artes, Cultura, Ciência e Tecnologia. Onze meses depois, ela
foi exonerada do cargo por suspeita de corrupção.
O arcebispo Desmond Tutu
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Durante a transição para a democracia, Winnie assumiu uma postura
em menos conciliatória com relação à comunidade branca do que Nelson
Mandela. Em 1997, ela foi ouvida pela Comissão da Verdade e Reconcilia-
ção, encarregada de ouvir os crimes cometidos durante o apartheid e de
anistiar, ou não, os algozes do regime. O arcebispo Desmond Tutu , presi-
dente da comissão, reconheceu a importância de Winnie na luta contra o
apartheid, mas pediu que ela se desculpasse e admitisse seus erros. Win-
nie admitiu, então, que as coisas haviam “saído do controle”.
Em 2003, Winnie enfrentou um novo julgamento, dessa vez por fraude
e desvio de fundos. Considerada culpada, ela foi condenada a cinco anos
de prisão. Winnie resignou sua posição de parlamentar e de líder da Liga
Feminina do Congresso Nacional Africano. Em 2004, ela apelou da senten-
ça e a Corte de Pretória sentenciou que os crimes de fraude não foram
cometidos para obter ganho pessoal e suspendeu a sentença.
Apesar do envolvimento de Winnie no bárbaro assassinato de uma cri-
ança, de ela ter sido infiel ao grande ícone da luta antiapartheid e de ter
sido condenada por fraude, ela continua ocupando um lugar proeminente
no palco da política sul-africana. Nas eleições gerais de 2009, o CNA a co-
locou em quinto lugar na sua lista eleitoral, atrás apenas de nomes como o
do atual presidente da África do Sul, Jacob Zuma, do ex-presidente Kgale-
ma Motlanthe, do vice-presidente Baleka Mbete e do ministro das Finan-
ças Trevor Manuel . Esse resultado indica que o partido considera que
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Winnie ainda é capaz de atrair votos, especialmente entre as camadas
menos favorecidas da população.
Stompie Moeketsi
0 jovem ativista James Seipei era mais conhecido como Stompie Moeketsi.
Nascido em 1974 e criado em Soweto, a maior township da África do Sul, Stompie
começou sua carreira de ativista com apenas dez anos, quando participou de
protestos nas ruas de Soweto. Logo, o garoto assumiu uma posição de liderança
no movimento juvenil antiapartheid daquela township. Ele foi o preso político
mais jovem do país, ao ser detido com 11 anos. Stompie passou seu 12º aniversá-
rio na prisão. Aos 13 anos, foi expulso da escola.
Mas apesar do ativismo e de sua proeminência no movimento, Winnie Man-
dela suspeitou que Stompie fosse informante da polícia, relatando as ações polí-
ticas organizadas no gueto. Em 29 de dezembro ele foi sequestrado. Seu corpo foi
encontrado dias depois, com a garganta rasgada. Jerry Richardson, um dos guar-
da-costas de Winnie foi condenado pelo crime. Richarson insistiu, porém, que
Winnie havia dado ordens para sequestrar quatro rapazes. Stompie era o mais
jovem deles. Os quatro foram duramente brutalizados, mas Stompie teve pior
sorte.
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O Negociador
O mês de fevereiro de 1990 anunciava o início de um novo tempo para
a África do Sul. Depois de séculos de conflito racial e de décadas de um
regime que oprimia qualquer etnia que não fosse de origem europeia, o
início dos anos 90 apontavam na direção do fim do apartheid. No dia 2
daquele mês, o então presidente Frederik de Klerk autorizou a volta do
Congresso Nacional Africano (CNA) e de outros partidos que havia sido
postos na ilegalidade em 1960. Mais que isso, o presidente anunciou que
Nelson Mandela, o ícone da luta contra o apartheid, seria libertado em
breve. Pouco depois, em 11 de fevereiro, Mandela saiu da prisão Victor
Verster. Era um evento de tal magnitude que foi televisionado ao vivo
para todo o mundo.
Falando para bilhões de pessoas que o assistiam, Mandela declarou seu
comprometimento com a paz e a reconciliação com a minoria branca que
tanto oprimiu seu povo. Contudo, Madiba, o título que designa os anciões
do seu clã pelo qual Mandela é carinhosamente chamado, foi categórico
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ao declarar que a luta armada promovida pelo CNA não estava terminada.
Sua libertação não implicava o fim do conflito. Afinal, desde 1985 ele recu-
sava condicionar sua libertação ao fim do esforço militar. “Nossa opção
pela luta armada em 1960, com a formação de um braço militar do CNA (o
Umkhonto we Sizwe) foi uma ação puramente defensiva contra a violência
do apartheid. O fatores que exigiram a luta armada ainda existem hoje.
Não temos outra opção a não ser continuar. Expressamos a esperança de
que um clima que leve à negociação seja estabelecido em breve, de forma
que não seja mais necessária a luta armada”, declarou Mandela. Em se-
guida, complementou afirmando que seu objetivo principal era trazer a
paz à maioria negra e garantir a ela o direito ao voto tanto nas eleições
locais como nas nacionais. Depois de ter passado 27 anos enjaulado, o
velho leão continuava a rugir.
As negociações para acabar como apartheid começaram ainda em
1990, em 4 de maio. Naquela data, o CNA e o governo se reuniram na
residência presidencial, Groote Schuur. O encontro resultou na Minuta de
Groote Schuur, um compromisso que os dois partidos firmavam entre si
para por um fim ao clima de violência que imperava no país. O documento
também sustentava que os líderes se esforçariam para remover obstácu-
los à negociação, o que incluía a anistia de exilados e prisioneiros políticos.
Em agosto daquele ano, as partes emitiram um novo documento, a Minu-
ta de Pretória, a qual, entre outros pontos, determinava a suspensão da
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luta armada por parte do CNA e de seu braço militar, o Umkhonto we Siz-
we.
A residência presidencial, Groote Schuur
Em 1991, o CNA promoveu sua primeira conferência nacional desde
que voltou à legalidade, e Mandela foi escolhido unanimemente como
presidente da organização. Seu velho amigo Oliver Tambo, que havia lide-
rado o CNA quando Mandela estava preso, foi eleito presidente nacional.
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A essa altura, as negociações já incluíam outros partidos. Apesar do es-
forço que os líderes faziam, a relação que mantiveram foi tensa. Em 1991,
Mandela acusou de Klerk de ser líder de “um regime desacreditado e de
minoria”. Os debates entre as partes foram conduzidos sobre um pano de
fundo de violência em todo o país. Os partidos da oposição afirmavam que
havia uma força paramilitar patrocinada pelo Estado que buscava deses-
tabilizar o país.
O esforço das negociações levou ao Acordo de Paz Nacional, de 14 de
setembro de 1991, assinado pelos representantes de 27 e organizações
políticas e líderes tribais, abrindo caminho para a primeira Convenção por
uma África do Sul Democrática, ou CODESA, conforme a sigla em inglês.
A primeira CODESA, iniciada em 20 de dezembro de 1991, reuniu 19
grupos, inclusive o Partido Nacional, o CNA, o Congresso Indiano Sul Afri-
cano e o Partido Comunista Sul Africano. A conferência resultou no esta-
belecimento de grupos de trabalho que deveriam abordar temas específi-
cos.
Depois do CODESA, o Partido Nacional perdeu as eleições para o ultra-
direitista Partido Conservador, outra agremiação da minoria branca. De
Klerk anunciou, então, um referendo apenas para brancos sobre as refor-
mas e a continuidade das negociações. O resultado do plebiscito foi que
69% dos eleitores desejavam a continuidade das reformas e negociações.
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O CODESA II começou em maio de 1992, mas não avançou. As negocia-
ções foram interrompidas depois do massacre de Boipatong, em junho de
1992, quando 46 residentes daquela township foram mortos por membros
do Partido Inkhata pela Liberdade, que defendia o nacionalismo zulu, infil-
trados em Boipatong por agentes do governo. Eram negros assassinando
negros com o apoio dos brancos. Mandela retirou o CNA das conferências,
acusando o governo de De Klerk de cumplicidade no massacre.
Mandela e o CNA se retiram das negociações, mas não ficaram inativos.
Incitando uma campanha de ação em massa, buscaram uma alternativa às
negociações com o governo. Mas a iniciativa foi barrada por nova tragé-
dia, o massacre de Bisho, em setembro de 1992, quando um exército do
“Estado” nominalmente independente de Ciskei, na prática um enclave
xhosa dentro da África do Sul (veja “Bantustões” na seção “Curiosidades”)
abriu fogo contra manifestantes, matando 28 pessoas. Novamente, eram
negros assassinando negros. O grave evento trouxe o espectro de uma
guerra civil que assombrou as lideranças, fazendo-as entender que as ne-
gociações eram o único caminho a ser tomado. Assim, as conferências
foram retomadas.
As negociações prosseguiram por um caminho espinhoso. Entre outras
dificuldades, os zulus exigiam maior autonomia para seus territórios e
temiam perder seu status de monarquia. O ódio e o medo que permea-
vam negros, brancos e outras etnias sul-africanas continuou a marcar com
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sangue as negociações que garantiriam aos bantus, indianos e mestiços
seus direitos civis. Em abril de 1992, o líder do CNA Chris Hani foi assassi-
nado pelo imigrante polonês ultradireitista Janusz Walus, exacerbando o
temor de que a violência irrompesse de vez em todo o país. O assassinato
fazia parte de um plano da ala de extrema-direita sul-africana para inter-
romper as negociações que levariam ao fim do apartheid. Uma vizinha de
Hani, uma mulher africâner, chamou a polícia ao ouvir os disparos. Walus
foi preso imediatamente.
Na ocasião, Mandela fez um discurso apelando pela reconciliação, um
prenúncio do que seria seu governo a partir do ano seguinte. “Esta noite
eu me dirijo a cada sul-africano, negro ou branco, do fundo do meu ser.
Um homem branco, cheio de ódio e preconceito, veio ao nosso país e per-
petrou um ato tão vil que toda a nação está agora à beira de um desastre.
Uma mulher branca, de origem africâner, arriscou sua vida para que pu-
déssemos conhecer esse assassino e levá-lo à justiça (...) Agora é hora de
todos os sul-africanos se unirem contra aqueles, independentemente de
suas origens, querem destruir aquilo pelo que Chris Hani deu sua vida – a
liberdade de todos nós”, conclamou Mandela.
As palavras de Mandela não evitaram os conflitos que se seguiram ao
assassinato de Hani. Mas o martírio de Chris Hani fez com que os negocia-
dores de ambos os lados sedimentassem o inevitável, a total extinção do
apartheid. Assim, foram marcadas as primeiras eleições democráticas das
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quais todos os sul-africanos, independentemente de suas origens, partici-
pariam. As eleições aconteceriam em 27 de abril de 1994, pouco mais de
um ano depois do assassinato de Chris Hani.
Chris Hani
O esforço de Mandela e de De Klerk foi reconhecido pela comunidade
internacional quando os dois foram premiados com o Nobel da Paz, em
1993.
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Mandela Presidente
Com o fim do apartheid e o avanço das negociações entre as diversas
etnias que constituem a África do Sul, o país se viu ameaçado pelo espec-
tro de uma guerra civil. Atentados em pubs e bairros multirraciais não
eram raros. Extremistas negros não queriam dividir o país com os brancos,
nem estes desejavam ser governados pela maioria africana. Os zulus, o
maior grupo negro, não queriam perder sua autonomia, entrando em con-
flito com outras nações bantos. Temendo serem perseguidos pela maioria
negra, como aconteceu em várias das antigas colônias europeias quando
se tornaram independentes, os líderes dos vários grupos extremistas
brancos fundaram a Frente Nacional Africâner, em 1993, tencionando
fazer a mesma coisa que seus ancestrais, quase duzentos anos antes, isto
é, fundar um país independente no Transvaal. Apesar da instabilidade, o
governo de Frederik de Klerk marcou finalmente as primeiras eleições
multirraciais da África do Sul para 27 abril de 1994.
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O Congresso Nacional Africano de Nelson Mandela obteve 62% dos vo-
tos. Mandela tomou posse em 10 de maio de 1994, tornando-se o primei-
ro presidente negro do país. O governo Mandela também era encabeçado
por Frederik de Klerk, do Partido Nacional, como vice-presidente, e de
Thabo Mbeki (que viria a substituir Mandela como presidente em 1999)
também como vice-presidente.
Provavelmente, o fato mais importante do mandato de Nelson Mande-
la foi o esforço pela conciliação dos povos que constituem a colcha de
retalhos raciais que é a África do Sul. Seu esforço foi reconhecido interna-
cionalmente, projetando ainda mais sua figura. Mandela foi capaz de for-
mar o Governo Arco-Íris, assim chamado porque foi a administração mais
multiétnica jamais estabelecida naquele país.
Mandela já havia colocado isso em prática quando foi eleito presidente
do Congresso Nacional Africano (CNA), em 1990, depois que o partido
voltou à legalidade. A liderança do CNA passou a ser constituída de forma
multirracial, com sete negros, sete indianos, sete brancos e sete mestiços.
Seu governo obedeceu às mesmas diretrizes. Os ministros de Estado da
administração Nelson Mandela incluíam negros, brancos, indianos, mesti-
ços, cristãos, hindus, muçulmanos, comunistas, liberais... Era, de fato, um
arco-íris de raças, orientações e tendências políticas, consoante com suas
intenções de estabelecer uma democracia multiétnica onde todos, inde-
pendentemente de suas origens, tinham direitos iguais.
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Para promover composição multir-
racial no governo – e também em
um claro esforço de unir todos os
grupos sul-africanos –, entre abril
de 1994 e fevereiro de 1997, o país
foi governado sob os termos de
uma Constituição interina. Essa
Constituição garantia que qualquer
partido que tivesse pelo menos
vinte cadeiras na Assembleia Na-
cional poderia requerer uma ou
mais pastas e participar dessa for-
ma do novo governo. Esse arranjo
O presidente Nelson Mandela
ficou conhecido como o Governo da Unidade Nacional. A maior parte das
vagas da Assembleia Nacional foram ganhas pelo Congresso Nacional Afri-
cano nas mesmas eleições que elegeram Mandela presidente. Os outros
dois partidos a conseguir uma votação considerável, o Partido Nacional,
de ascendência africâner, e o Partido Inkatha da Liberdade, que agrega os
zulus e que é, hoje, o quarto maior partido sul-africano, lançaram mão da
garantia constitucional e requisitaram pastas no governo. Mandela, po-
rém, estendeu essa prerrogativa aos outros partidos que não haviam con-
quistado um mínimo de vinte cadeiras na Assembleia Nacional.
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Apesar de o regime de segregação ter acabado, a economia, a polícia, o
controle das infraestruturas, a polícia e outras instituições importantes
continuavam – e continuam, embora em grau cada vez menor – nas mãos
dos brancos. Os negros ainda careciam de acesso social. Assim, depois de
conseguir eliminar o apartheid e chegar ao poder, Mandela dirigiu seus
esforços no sentido de evitar o domínio negro. Seu objetivo era superar o
ódio enraizado entre essas comunidades ao longo de séculos de conflito e
de segregação.
Entre seus esforços, Mandela deu seu apoio pessoal ao odiado time
branco de rúgbi, o Springboks, quando a África do Sul sediou a Copa do
Mundo de Rúgbi, em 1995. Usando com sabedoria o entusiasmo nacional
que um esporte pode proporcionar, o presidente conseguiu unir os sul-
africanos – negros, brancos, indianos e mestiços – em torno do Spring-
boks, mostrando aos cidadãos daquele país que não havia mais separação:
eram todos sul-africanos e deveriam se unir para juntos construírem uma
nação. A Copa do Mundo de Rúgbi de 1995 foi transformada no filme In-
victus por Clint Eastwood.
A ideologia da Nação Arco-Íris foi claramente espelhada na nova Cons-
tituição da República da África do Sul elaborada durante a administração
Mandela e colocada em vigor em 1996. É uma das mais modernas e mais
radicais Cartas Magnas do mundo no que se refere a direitos humanos. Ela
contém uma extensa Declaração de Direitos, onde diversos parágrafos
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sobre igualdade se destacam. “O Estado não pode discriminar injustamen-
te direta ou indiretamente qualquer um com base em raça, gênero, sexo,
estado de gravidez, estado civil, origem étnica ou social, orientação sexual,
idade, incapacidade física, religião, consciência, crença, cultura, língua e
nascimento”, determina um desses parágrafos.
O Springboks, em 2005
Igualmente, a Constituição de 1996 enumera as línguas oficiais do país.
Todas as línguas dos povos sul-africanos são permitidas, tanto no governo
provincial como no nacional, outro avanço no sentido de promover a Na-
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ção Arco-Íris. “As línguas oficiais da República”, estabelece o documento,
“são o sepedi, sesotho, setswana, siswati, tshivenda, xitsonga, afrikaans,
inglês, isindebele, isixhosa e isizulu”.
Outra questão delicada abordada pela Constituição de 1996 é o hino
nacional sul-africano. De acordo com a nova Constituição, o hino nacional
é determinado pelo presidente da república por meio de proclamação.
Assim, o hino da nova África do Sul passou a ser o Nkosi Sikelel’ Africa,
uma velha canção entoada pelos revolucionários, cantada por Mandela e
seus companheiros por décadas a fio.
Cientes de que a única forma de proporcionar inclusão social é por
meio do estudo, os redatores da Constituição enfatizaram a importância
da educação. “Todos têm o direito: a) à educação básica, inclusive a edu-
cação básica para adultos; e b) à educação estendida, a qual o Estado, por
meio de medidas condizentes, tem o dever de disponibilizar e de dar aces-
so progressivamente”, reza a Carta Magna.
Outra importante iniciativa da administração Nelson Mandela no senti-
do de transformar a África do Sul em uma democracia multirracial foi a
instituição da Comissão Para a Verdade e a Reconciliação. A Comissão,
presidida pelo arcebispo Desmond Tutu, funcionava nos moldes de um
tribunal, onde as vítimas de violações dos direitos humanos eram convi-
dadas a testemunhar a respeito do que sofreram. Os perpetradores de
violência também podiam testemunhar e pedir anistia tanto dos processos
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civis como criminais. Uma das testemunhas a responder diante da Comis-
são pelos crimes dos quais teria sido acusada durante o apartheid foi Win-
nie Mandela, ex-esposa do presidente. Embora não tenha admitido os
crimes de que era acusada, Winnie declarou que “as coisas saíram do con-
trole”. A iniciativa foi muito elogiada e é considerada por muitos como
tendo sido um componente crucial para a transição a uma verdadeira de-
mocracia no país.
No âmbito internacional, Mandela também afirmou a posição da Áfri-
ca do Sul como potência e liderança regional. Entre outras ações, o presi-
dente comandou a primeira operação militar pós-apartheid, quando a
África do Sul enviou tropas para Lesoto em setembro de 1998 a fim de
proteger o governo do primeiro-ministro Pakalitha Mosili, eleito legitima-
mente e ameaçado de ser derrubado pela oposição.
Uma das maiores críticas feitas à administração Mandela é com relação
à sua inação frente à crise da AIDS na África do Sul. Vozes como a do juiz
sul-africano e ativista contra a AIDS Edwin Cameron se ergueram contra
Mandela pelo descaso com que abordou a questão. Seis anos depois de
deixar a presidência de seu país, Mandela perdeu um filho vítima da AIDS.
No fim do mandato, Mandela admitiu que pode ter falhado ao não dar
tanta atenção à epidemia da AIDS. Imediatamente depois de se aposentar,
Mandela passou a encabeçar uma campanha pessoal contra a AIDS.
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Pakalitha Mosili
Outro aspecto negativo do governo Mandela foi que durante seu man-
dato o índice de violência e de criminalidade aumentou. Em sua campanha
presidencial, Mandela e o Congresso Nacional Africano afirmaram que seu
governo traria “empregos, paz e liberdade”. A peça central dessa política
era o Plano de Reconstrução e de Desenvolvimento, que prometia a cons-
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trução de 300 mil casas populares por ano, acesso à água tratada, esgoto e
eletricidade, melhorias na rede de saúde pública, empregos que seriam
gerados pelo governo e uma ampla reforma agrária.
Contudo, embora os africanos que tiveram acesso à educação tenham
de fato melhorado suas condições sociais, a realidade das townships ainda
era a pobreza e o desemprego. Os jovens pobres viam os negros que tive-
ram acesso à educação progredirem e observaram que os brancos conti-
nuavam a deter seus privilégios, enquanto suas perspectivas pouco havi-
am mudado. E mais uma vez se desiludiram. Revoltados, muitos negros
pobres recorreram ao crime como meio de buscar ascensão social. A cri-
minalidade era realidade nas townships na era do apartheid, mas pela
primeira vez invadiu as cidades e os subúrbios.
Os primeiros cinco anos da democracia sul-africana não atingiram mui-
tas das ambiciosas metas econômicas e de desenvolvimento social estabe-
lecidas pelo CNA. A disseminação da criminalidade espalhou medo por
todo o país e desestimulou o tão necessário investimento estrangeiro,
aumentou o temor da população branca que levou a uma grande emigra-
ção de jovens profissionais dessa etnia. Apesar de alguns itens do Plano de
Reconstrução e de Desenvolvimento tenha atingido algumas metas, espe-
cialmente aquelas relacionadas ao abastecimento de água tratada, o pro-
grama foi abandonado no final do governo Mandela.
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Na verdade, o sucesso da administração Nelson Mandela está no fato
de ter estabelecido os fundamentos de uma nova nação. Seus méritos
estão na política de reconciliação e na nova Constituição – além, claro, do
seu próprio exemplo como líder.
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Mandela Volta a se Casar
Em 18 de julho de 1998, data em que completava 80 anos, o então pre-
sidente da África do Sul, Nelson Rolihlahla Mandela, se casou pela terceira
vez. A noiva, Graça Machel, na ocasião com 52 anos, é viúva do presidente
de Moçambique, Samora Machel. A cerimônia, que contou com poucos
convidados, foi realizada na casa de Mandela, no elegante subúrbio de
Houghton, em Johanesburgo – a mesma que aparece no filme Invictus, do
diretor Clint Eastwood. O casamento, presidido pelo bispo metodista
Mvuve Dandala, foi selado com troca de alianças incrustadas de diamantes
e de um longo beijo dos noivos. “Foi uma bela cerimônia”, disse a assesso-
ra de Mandela, Priscila Naidoo.
O relacionamento de Mandela e Machel veio a público no ano anterior
ao casamento. Mandela afirmou que efetivou seu relacionamento com
Graça Machel através do casamento porque havia uma pressão “insupor-
tável” dos amigos para isso. De acordo com declarações de Mandela na
época, membros do clero de diversas religiões insistiam que o casal estava
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dando um mau exemplo ao não se casar. “Até mesmo no Parlamento, os
deputados me diziam que eu deveria me casar”, confidenciou o então
presidente.
Samora e Graça Machel
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O casal manteve um relacionamento aberto durante dois anos, até que
a “pressão insuportável” dos líderes sul-africanos os levasse a se casar.
Mesmo assim, os noivos mantiveram discrição. A cerimônia de casamento
foi mantida em segredo porque, disse o casal, não sabíamos quais dos
“numerosos amigos” que ajudaram a África do Sul no combate ao apar-
theid deveriam ser convidados. Também afirmaram, com certa modéstia,
que não queriam provocar engarrafamentos nas ruas de Joeburg, como os
sul-africanos apelidaram sua maior cidade.
Graça Machel resistiu ao casamento
porque não queria que a união prejudi-
casse seu trabalho como ativista dos
direitos das crianças e pelo fim da po-
breza em Moçambique. Além disso,
como ex-primeira-dama daquele país e
notória combatente pela independên-
cia de Moçambique, ela pretendia con-
servar seu status em sua terra natal.
Machel é presidente da Fundação De-
senvolvimento da Comunidade, sediada
em Maputo, a capital moçambicana,
onde busca fornecer meios para que
pessoas e comunidades possam se
Nelson Mandela e Graça Machel
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manter e se desenvolver.
De fato, Graça Machel é uma das figuras mais influentes e populares de
Moçambique. Por conta disso, mesmo tendo se casado com Mandela,
Graça continua residindo em seu país natal e conserva o nome de seu
primeiro marido, morto em um acidente aéreo na África do Sul.
De acordo com a jornalista Vukani Magubani, que entrevistou Graça
Machel à época do casamento com Mandela, “é fácil ver porque a ex-
primeira-dama de Moçambique capturou a atenção de um dos solteirões
mais amados e admirados do mundo, o (então) presidente da África do Sul
Nelson Mandela”. Na entrevista dada a Magubani, da revista Ebony South
Africa, Machel afirmou entre “risos e rubores” que depois de ter sofrido
tanto tempo com a morte do marido ela estava vivendo uma felicidade
que pensou nunca mais vir a sentir novamente.
A biografia de Graça Machel, a primeira mulher a se tornar primeira-
dama de dois países diferentes, tem diversos pontos de congruência com
a de Nelson Mandela. Em sua página do Facebook, Graça afirma que “o
sentido de minha vida, desde jovem, é buscar lutar pela dignidade e pela
liberdade do meu povo”. Qualquer semelhança com o as motivações de
Nelson Mandela não é mero acaso.
Graça vem de uma família pobre, criada na Moçambique rural. Seu pai
morreu vinte dias antes de ela nascer, em 17 de outubro de 1945. Seu
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nascimento aliviou um pouco o sofrimento de sua mãe e irmãos. Por isso
recebeu o nome de Graça – um presente divino. Em seu leito de morte, o
pai fez seus filhos prometerem que educariam a irmã que estava por nas-
cer, pois ele não estaria mais por perto. E assim eles fizeram.
Graça foi uma aluna excelente. Quando concluiu a escola secundária,
ganhou uma bolsa para ir estudar em Lisboa. Na Europa, seu ativismo
político cresceu tanto que não passou desapercebido das autoridades. A
polícia secreta portuguesa passou a segui-la, e Graça saiu do país, indo se
refugiar na Tanzânia, onde recebeu treinamento militar. Sua intenção era
lutar contra o colonialismo português.
Quando o conflito chegou ao fim, Graça participou das negociações pe-
la independência com o governo português. Ela foi a única mulher a parti-
cipar das negociações. Em seguida, ela foi apontada ministra da Educação
do novo governo – novamente a única mulher a ocupar uma posição dessa
dimensão. Graça continuou a trabalhar no governo pelos 14 anos seguin-
tes.
Hoje, ela continua com seu ativismo e, juntamente com Nelson Mande-
la, participa do grupo chamado Os Anciões, que busca fazer avançar diver-
sos temas sensíveis no mundo todo. Mas por conta de tantas atividades
em tantos lugares diferentes, eles continuam a viver em casas separadas.
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A Vida do Ex-Presidente
Quando o mandato de Nelson Mandela terminou, em 14 de junho de
1999, depois de cinco anos de governo, ele já havia decidido não concor-
rer a um segundo termo. Aos 81 anos, depois de amargar 27 anos na pri-
são, de passar quatro longos e tensos anos negociando o fim do apartheid
e de comandar a transição histórica pela qual a África do Sul passou, re-
conciliando brancos e negros, o velho leão sentia que era hora de se reti-
rar da vida pública.
Isso, porém, não implicava que Mandela deixaria de atuar nos bastido-
res. Depois de concluir seu mandato, ele passou a colaborar com diversas
organizações que trabalham por avanços sociais e pela defesa dos direitos
humanos. Mandela participou do movimento Faça a Pobreza Virar Histó-
ria. O torneio de golfe Nelson Mandela, instituído por ele, levantou mais
de vinte milhões de rands, a moeda sul-africana, para instituições de cari-
dade que mantêm crianças, desde que aconteceu pela primeira vez, em
2000. Com efeito, o evento se tornou a iniciativa esportiva mais bem su-
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cedida em termos de levantar fundos para instituições de caridade em
todo o mundo. Mandela também dá seu apoio à SOS Children’s Village, a
maior organização mundial dedicada a cuidar de crianças órfãs ou aban-
donadas. Outra importante causa a que Madiba, o título adotado pelos
anciões do clã de Mandela pelo qual ele é chamado em sinal de reverên-
cia, tem dedicado seus esforços desde 2000 é o combate à AIDS. Apesar
de seus esforços no combate à doença, a qual se tornou crônica na África
do Sul, seu filho Makgatho Mandela morreu vítima da AIDS, em janeiro de
2005.
No início dos anos 2000 a saúde de
Madiba começou a dar sinais de des-
gaste. Em julho de 2001, ele foi diag-
nosticado com câncer de próstata e
foi submetido a um tratamento a base
de radiação que durou sete semanas.
Afastado das vistas do público, em
2003, a morte de Mandela foi errone-
amente anunciada pela rede america-
na de notícias CNN. O obituário do ex-
presidente sul-africano já havia sido
escrito e foi divulgado no website da
CNN por conta de um problema no
Makgatho Mandela
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sistema de proteção de senhas. A informação falsa foi imediatamente
contestada, mas essa não foi a única vez que a morte de Mandela foi a-
nunciada incorretamente.
Em 2007, um grupo de direita espalhou um boato de que Nelson Man-
dela estava morto e que essa informação estava sendo omitida do público,
pois, conforme a falsa notícia, depois do funeral de Madiba, os brancos
sul-africanos seriam massacrados pela maioria negra. Embora falso, esse
rumor espelhava o medo que continua a assolar os sul-africanos de ori-
gem europeia. De fato, Mandela estava passando férias em Moçambique,
país natal de sua terceira esposa, Graça Machel. Felizmente, o rumor não
teve o efeito esperado, isto é, provocar um levante da população branca.
Em junho de 2004, quando estava com 85 anos, Mandela anunciou que
sairia definitivamente da vida pública. Com a saúde debilitada, ele plane-
java passar mais tempo com a família. Mas Mandela avisou também que
não tinha a intenção de se esconder do público. Queria apenas estar em
uma posição, conforme ele colocou, de “chamar quando eu quiser”, em
vez de ser “chamado a fazer coisas e a participar de eventos”. Desde o ano
anterior, suas aparições públicas já haviam diminuído sobremaneira.
No dia em que completou 89 anos, Mandela, sua esposa Graça Machel
e o arcebispo Desmond Tutu fundaram um grupo ao qual chamaram Os
Anciões. A ideia, baseada nos conselhos tribais, era oferecer sua sabedoria
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e seus dividendos políticos para ajudar a enfrentar os piores problemas
mundiais. O arcebispo Tutu é o presidente da organização, que conta com
membros proeminentes, como o ex-presidente americano Jimmy Carter e
o ex-secretário-geral da ONU Kofi Annan. “Esse grupo pode falar aberta-
mente, trabalhando tanto publicamente como por trás das cenas em
quaisquer ações que precisem ser tomadas”, comemorou Mandela. “Jun-
tos trabalharemos para levar coragem onde houver medo, promover con-
córdia onde houver conflito e inspirar esperança onde houver desespero”.
Em 18 de julho de 2008,
Madiba comemorou seu 90º
aniversário. Em Londres, um
concerto foi realizado ao ar
livre, no Hyde Park, para
celebrar a data. Em seu dis-
curso de aniversário, Mande-
la mais uma vez mostrou
porque é o líder africano de
maior estatura moral, ape-
lando aos ricos de todo o
mundo que sejam solidários
com os pobres.
Em 5 de dezembro de
O ex-presidente americano, Jimmy Carter
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2013, depois de uma infecção pulmonar prolongada, Mandela faleceu, em
sua casa, cercado por familiares.
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Sobre o Autor
Claudio Blanc é escritor, tradutor e editor, autor de cerca de 600 artigos sobre História, Ciência, Literatura e Filosofia, publicados em revistas como Discovery Magazine, Filosofia Ciência & Vida, Revista do Explorador e Grandes Líderes da História. É autor, entre outros, dos livros Aquecimento Global e Crise Ambiental, Uma Breve História do Sexo, O Lado Negro da CIA e O Homem de Darwin. Entre seus livros infanto-juvenis estão Histó-rias Sopradas no Tempo e De lenda em Lenda se Cruza Fronteiras, indica-do como Altamente Recomendável pela Fundação Nacional do Livro Infan-to-Juvenil. Claudio Blanc também assina até o momento da publicação deste livro a tradução de 40 obras nos mesmos campos de conhecimento sobre os quais escreve, entre elas os best-sellers Fumaça e Espelhos, de Neil Gaiman, e O Relatório da CIA – como será o mundo em 2020?
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a fonte deve ser citada
Projeto Memória: www.padeirosspmemoria.com.br