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Magia e Anarquismo O Gnosticismo O encontro entre magia e anarquismo vem sendo preparado há muito tempo ao longo da história... O encontro entre magia e anarquismo vem sendo preparado há muito tempo ao longo da história. Embora, nas tribos ditas primitivas, o feiticeiro freqüentemente fosse parte integrante da ordem estabelecida, cuja autoridade andava pari passu com a do chefe  político - a dobradinha cacique/pajé, tão freqüente ainda hoje entre as tribos indígenas - e às vezes ambos os papéis fossem encarnados pela mesma pessoa, o xamã solitário, que vivia à margem da sociedade e era encarado com um misto de reverência e desconfiança  pela comunidade também não era uma figura incomum. À medida que adentramos os tempos históricos, essa dualidade se mantém e continuamos encontrando, lado a lado, o mago da corte, prodigalizando seus conhecimentos em benefício dos reis, e o bruxo anti-social, que persegue suas metas completamente isolado dos negócios políticos. Individualismo, porém, ainda não é anarquismo. O cultivo da individualidade e o respeito ao espaço pessoal são, na melhor das hipóteses, o terreno psicológico a partir do qual uma atitude anarquista possa se desenvolver. Em termos aristotélicos, é uma condição necessária, mas não suficiente. Para que a atitude de rejeição às coisas do mundo - especialmente as de natureza política - se cristalizasse em uma postura afim do anarquismo, foi preciso que entrasse em cena um outro fator, que atribuísse um significado ontológico à individualidade e estabelecesse, de uma vez por todas, sua oposição às hierarquias e estruturas de poder. Um sistema de dominação universal. - Esse fator foi o gnosticismo. Contemporâneo do cristianismo, mas alcançando seu ápice no século II da nossa era, o movimento gnóstico efetuou uma síntese de todas as religiões e crenças do mundo antigo, reconfigurando-as  para adaptá-las a uma nova visão de mundo. No coração do gnosticismo, está a convicção visceral de que o mundo em que vivemos não é a verdadeira realidade, mas um simulacro ilusório criado com o único propósito de escravizar a consciência humana. Assim, nossa realidade consensual é modelada e atravessada de cabo a rabo  por um mesmo sistema de dominação universal, que rege desde as leis naturais - o que hoje denominaríamos de condicionantes biológicos do nosso comportamento - até a esfera metafísica. Nossa própria psicologia é ao mesmo tempo um resultado e um instrumento para a manutenção do sistema. Os gnósticos valentinianos denominavam esse sistema de sístase, termo ao qual ainda voltaremos. E, evidentemente, a autoridade  política, em todos os seus níveis, não passa de um representante autorizado da sístase, a encarnação viva dos princípios e leis cujo único propósito é manter o ser humano submisso. Daí que o gnosticismo se caracterize por uma tendência que os especialistas denominam de antinomialismo (do grego nomos, lei), ou seja, uma oposição sistemática a todas as formas de lei e de autoridade.  Não é difícil reconhecer na tendência antinomialista dos gnósticos a raiz do anarquismo. De fato, se estudarmos a história do pensamento anarquista, veremos que ele remonta a movimentos político-religiosos que explodiram na Europa a partir do século XII, a maior parte dos quais era uma revivescên cia do gnosticismo - na primeira encarnação do Franco-Atirador, postei um texto a respeito disso que, como está fora do ar há algum

Magia e Anarquismo

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Magia e AnarquismoO GnosticismoO encontro entre magia e anarquismo vem sendo preparado há muito tempo ao longo dahistória...

O encontro entre magia e anarquismo vem sendo preparado há muito tempo ao longo dahistória. Embora, nas tribos ditas primitivas, o feiticeiro freqüentemente fosse parteintegrante da ordem estabelecida, cuja autoridade andava pari passu com a do chefe

 político - a dobradinha cacique/pajé, tão freqüente ainda hoje entre as tribos indígenas -e às vezes ambos os papéis fossem encarnados pela mesma pessoa, o xamã solitário, quevivia à margem da sociedade e era encarado com um misto de reverência e desconfiança

 pela comunidade também não era uma figura incomum. À medida que adentramos ostempos históricos, essa dualidade se mantém e continuamos encontrando, lado a lado, omago da corte, prodigalizando seus conhecimentos em benefício dos reis, e o bruxoanti-social, que persegue suas metas completamente isolado dos negócios políticos.

Individualismo, porém, ainda não é anarquismo. O cultivo da individualidade e orespeito ao espaço pessoal são, na melhor das hipóteses, o terreno psicológico a partir do qual uma atitude anarquista possa se desenvolver. Em termos aristotélicos, é umacondição necessária, mas não suficiente. Para que a atitude de rejeição às coisas domundo - especialmente as de natureza política - se cristalizasse em uma postura afim doanarquismo, foi preciso que entrasse em cena um outro fator, que atribuísse umsignificado ontológico à individualidade e estabelecesse, de uma vez por todas, suaoposição às hierarquias e estruturas de poder.

Um sistema de dominação universal. - Esse fator foi o gnosticismo. Contemporâneo docristianismo, mas alcançando seu ápice no século II da nossa era, o movimento gnósticoefetuou uma síntese de todas as religiões e crenças do mundo antigo, reconfigurando-as

 para adaptá-las a uma nova visão de mundo. No coração do gnosticismo, está aconvicção visceral de que o mundo em que vivemos não é a verdadeira realidade, masum simulacro ilusório criado com o único propósito de escravizar a consciênciahumana. Assim, nossa realidade consensual é modelada e atravessada de cabo a rabo

 por um mesmo sistema de dominação universal, que rege desde as leis naturais - o quehoje denominaríamos de condicionantes biológicos do nosso comportamento - até aesfera metafísica. Nossa própria psicologia é ao mesmo tempo um resultado e uminstrumento para a manutenção do sistema. Os gnósticos valentinianos denominavamesse sistema de sístase, termo ao qual ainda voltaremos. E, evidentemente, a autoridade

 política, em todos os seus níveis, não passa de um representante autorizado da sístase, aencarnação viva dos princípios e leis cujo único propósito é manter o ser humanosubmisso. Daí que o gnosticismo se caracterize por uma tendência que os especialistasdenominam de antinomialismo (do grego nomos, lei), ou seja, uma oposição sistemáticaa todas as formas de lei e de autoridade.

 Não é difícil reconhecer na tendência antinomialista dos gnósticos a raiz do anarquismo.De fato, se estudarmos a história do pensamento anarquista, veremos que ele remonta amovimentos político-religiosos que explodiram na Europa a partir do século XII, a

maior parte dos quais era uma revivescência do gnosticismo - na primeira encarnaçãodo Franco-Atirador, postei um texto a respeito disso que, como está fora do ar há algum

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tempo, talvez eu republique aqui. Assim, o anarquismo pode ser considerado, semnenhuma simplificação, como uma espécie de versão laica do gnosticismo, ognosticismo despojado da moldura metafísica que lhe servia de base.

Altos e baixos da magia. - Acontece que a magia ocidental, da forma como veio a se

constituir do século II em diante, também tem seus fundamentos no gnosticismo.Quando os gnósticos promoveram sua síntese de todas as religiões presentes no mundoantigo, atribuíram uma posição de destaque à filosofia neoplatônica, que tinha como

 principal objetivo entrar em contato com as forças arquetípicas, personificadas sob aforma de deuses. As fórmulas e técnicas desenvolvidas pelo neoplatonismo para invocar esses deuses foram incorporadas ao gnosticismo na íntegra, mas com uma diferençafundamental: as imagens arquetípicas passaram a ser vistas como um símbolo para averdadeira realidade, cuja percepção normalmente nos é toldada pelo mundo de sombrasque é nossa realidade consensual.

Foi assim que surgiu o que ficou conhecido no esoterismo ocidental como alta magia. Aalta magia se distingue da baixa magia (também chamada de feitiçaria) porque, nestaúltima, o mago invoca as forças arquetípicas com o objetivo de influenciar determinados aspectos da nossa realidade em seu próprio benefício ou em benefício dosque o contraram: a magia é utilizada para conseguir fama e fortuna, para derrotar inimigos ou atrair amores. É inteiramente voltada para as coisas do mundo e as forçasarquetípicas não passam de instrumento para se conseguir algum ganho material.

Por sua vez, na alta magia, que continua coerente com os pressupostos do gnosticismo,o mago procura invocar as forças arquetípicas com a finalidade de promover umaalteração em sua própria consciência, libertando-a dos padrões cognitivos ecomportamentais que alimentam o estado de sístase, na mesma medida em que mantéma consciência acorrentada ao sistema. Personificadas ou não sob a forma de deuses (issovaria de escola para escola e depende muito do estilo particular do mago), as forçasarquetípicas atuam como ácidos que dissolvem as estruturas calcificadas da consciência,liberando suas energias para a percepção de outros níveis da realidade.

É evidente que, em sendo o mago bem-sucedido nessa tarefa, ele inevitavelmente entraem choque com as hierarquias políticas, que atuam como cães de guarda do sistema.Como disse São Paulo, num contexto que só é diferente na aparência, a graça eleva ohomem acima das leis deste mundo, tornando-o independente da obediência àautoridade secular. É por esse motivo que, ao longo de toda a era cristã, na maior partedas vezes - com algumas exceções que apenas confirmam a regra -, os magos viram-seimpiedosamente combatidos pelos representantes da ortodoxia, estivessem estestravestidos de governos, sacerdotes ou cientistas. Tal perseguição habitualmente tomaduas formas, que às vezes se complementam: tenta-se calar o mago ou pela força brutaou lançando sobre ele o manto do descrédito, como se a magia não passasse de umamontoado de superstições absurdas. O grande emblema dessa perseguição contínua,

que ultrapassa fronteiras geográficas ou orientações políticas (o mago foi perseguidotanto pela inquisição católica quanto pelo totalitarismo stalinista), é a execução de

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Giordano Bruno, queimado em praça pública pela prática da magia.

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Anarquismo e gnosticismo Publicado originalmente em 22-08-2003

Falando das rebeliões populares na Boêmia e na Alemanha, na Suíça e nos PaísesBaixos do século XVI, Kropotkin escreve:

Este movimento começou por ser anarquista-comunista, pregado e posto em prática emalgumas comarcas. E, abstraindo as suas fórmulas religiosas, que constituíram umtributo pago à época, encontramos nele a mesma essência das idéias que nós,anarquistas, representamos atualmente: negação de todas as leis do Estado ou divinas¿ a consciência de cada indivíduo é que deve ser a única lei aceitável; a comuna, dona esenhora absoluta de seus destinos, recuperando, dos senhores, todas as terras, e negando

ao Estado o tributo pessoal ou em dinheiro; enfim, o comunismo e a igualdade postosem prática.[1]

De que movimentos exatamente esse, que é um dos principais ideólogos do anarquismo,estava falando, e nos quais ele reconhecia uma ancestralidade direta para os princípiosanarquistas? De que movimentos, senão das heresias cristãs que constituíram umressurgimento do gnosticismo n