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MAIS QUE UMA RELEITURA MITOLÓGICA: O TEATRO · PDF filedestino é desconhecida por ele, apenas pelo autor que expõe ao público para que este tome ... Jacqueline de Romilly, e Claude

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MAIS QUE UMA RELEITURA MITOLÓGICA: O TEATRO DE EURÍPIDES E

ARISTÓFANES COMO INSTRUMENTO DE PODER

DOLORES PUGA ALVES DE SOUSA*

De maneira geral, as discussões acadêmicas que apresentam conceitos da

funcionalidade social do teatro ático perpassam três grandes linhas de pensamento. Na

primeira, é possível combinar com a perspectiva de Jean-Pierre Vernant (VERNANT, 1973) e

(VERNANT; VIDAL-NAQUET, 1977) de que o teatro teria a função de educar a plateia

sobre os ideais da polis. Concebem-se análises sobre a instituição do teatro como um fator de

completude do “espírito da cidade”, com avaliações que perpassam análises abstratas e

filosóficas sobre as tragédias e comédias. Essa visão se determina pela perspectiva religiosa

dos festivais que levaram as peças teatrais ao público da época, por vezes, romantizando e

homogeneizando o caráter político. Na segunda linha, o viés da função também religiosa e

ritualista apresentada por Bernard Deforge (DEFORGE, 1997), que, seguindo a perspectiva

do mitólogo Walter Burkert, analisa a tragédia em si mesma como um ritual de consagração a

Dionísio: um deus que representa tanto a vida quanto a morte, e, por isso, o herói trágico e sua

morte servem como uma referência sacrificial ao público. Portanto, é a partir da tragédia que

se consigna os rituais fúnebres.

Na terceira linha de pensamento, encontra-se a fundamentação deste projeto: a

perspectiva do teatro como espaço da denúncia, conforme Ubaldo Puppi (PUPPI, 1981). Para

ele, assim como para René Girard, a violência trágica, por exemplo, reflete estruturas de

poder, sobretudo das instituições da antiguidade. A fatalidade pela qual o herói possui como

destino é desconhecida por ele, apenas pelo autor que expõe ao público para que este tome

consciência; uma consciência coletiva.

A abordagem política e social são pontos cruciais no pensamento de Puppi para o

exame das peças teatrais. Assim também o será para o atual projeto, que concebe uma análise

* Doutoranda em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Professora D.E. da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS/CPCX).

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de dois poetas do século V a. C. a partir das obras dramáticas Bakxai (As Bacantes), tragédia

de Eurípides de 406/5 a.C. – última peça que escreveu antes de vir a falecer – e Bátraxoi (As

Rãs), comédia de Aristófanes, de 405 a.C., aprofundando investigações sobre as mensagens

sociopolíticas dessas obras, buscando elementos que descortinem suas hetaireias, as facções

políticas dos poetas, e suscitando perspectivas que permitam uma ampliação dos olhares sobre

os sujeitos históricos envolvidos na construção e produção das peças teatrais, seu

funcionamento enquanto instrumento de traduções sociais, denúncias, críticas ou

conformidades dos valores da época.

Para ampliar essas discussões, é importante a construção de um debate acerca das

teorias desenvolvidas pela historiografia francesa tradicional sobre o tema, a saber, de

historiadores tais como Jean-Pierre Vernant, Pierre Vidal-Naquet, Jacqueline de Romilly, e

Claude Mossé, cujos textos, apesar de atestarem a discussão da cidadania ou do teatro antigo

como conectada aos temas gerais da polis (da cidade) – sua criação, suas leis e seus

desdobramentos –, têm se situado no revés dessa abordagem do campo de disputas políticas

para os estudos da antiguidade clássica, sobretudo de Atenas.

De acordo com Nicole Loraux, restaria questionar se as abordagens antropológicas

da Grécia não estariam despolitizando a cidade (Cf. LORAUX, 2005, p. 18), uma vez que o

grego é considerado sempre em sua alteridade de “outro” e por isso devidamente mitificado e

ritualizado para se aproximar de nós, quase subalternos a uma cultura fixada, unificada, sem

conflitos, pois construída em bases sólidas e inquestionáveis.

Ora, a instransponível distância que nos separa da Antiguidade não poderia de modo algum bastar para garantir a existência de um “homem grego” uno e indivisível, no qual todos os afetos estariam em consonância. Se é verdade que “o homem grego não pode ser recortado em camadas” [referindo-se a uma fala de Vernant], nossa tarefa [...] é postular, apesar disso, como já fazia Platão, que não há psiquismo – designado em grego pela palavra alma (psukhe) – que não reúna em sua interioridade instâncias conflitantes. Em resumo, uma maneira de devolver o homem grego à sua multiplicidade. (LORAUX, 2005, p. 23-24).

Segundo Loraux, o mito, presente na maioria das pesquisas tradicionais, consagrou

análises do ritual e práticas que homogeneizaram uma alteridade grega. Nesse ínterim, a

historiadora propõe uma análise política renovada, em que pese não mais um simples

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apontamento das “mudanças de dirigente e de constituição” (p. 31), mas, compreender dentro

das instituições e dos valores gregos, as divisões e os conflitos presentes na “cidade grega”.

Para ela, como para este projeto, é preciso “descentralizar a cidade dela mesma” (p. 33),

propondo uma pesquisa que construa uma comparação de Atenas com ela mesma, na

avaliação de seus múltiplos traços e interesses sociais em jogo, neste caso, a partir dos estudos

do teatro como instrumento de poder, na disputa de poetas e demais integrantes da produção

da antiga tragédia e comédia. Ainda segundo Loraux, evitar a “unidade do homem grego”

traduz a polifonia das vozes e discursos, renunciando um raciocínio grego que se suponha

legítimo (Cf. p. 35).

A abordagem pela via de análises morais, filosóficas e generalizantes sobre o teatro

grego está presente em pesquisas como de Vernant, Vidal-Naquet e Romilly (Cf. ROMILLY,

1980 e ROMILLY, 1998). Para os primeiros, além da determinação “de uma consciência e de

um homem trágicos” (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 1977, p. 9), a defesa de um “espírito”

da época é uma presença constante em suas análises. A matéria da tragédia faz parte de um

pensamento social “próprio da cidade” (p. 13), cidade esta pensada no singular. Para esses

historiadores, a tragédia se situa em um momento de incertezas e por isso constituída de

contradições e problemas entre uma tradição religiosa e mítica e o advento do pensamento

racional e filosófico; entre a avaliação do “caráter do herói” na peça (ethos), e, sobretudo, a

imposição da onipotência dos deuses (daimon), elementos sobressalentes nas análises das

obras artísticas (Cf., p. 23). A visão jurídica e das leis estariam também presentes, no entanto,

representando apenas a unicidade da polis.

Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet endossam a visão aristotélica (Cf. p. 28-

29), especificamente do capítulo XIII da obra Poética, quando Aristóteles explica que o

fundamento trágico só se estrutura pela não consciência humana dos atos, por uma “falha” em

sua própria essência, que o impede de enxergar a verdade da evolução do espírito, o que

somente seria alcançado pelos deuses. Com o auxílio de uma das principais fontes teóricas do

teatro antigo lançadas, os autores franceses ajudam, assim, a fundamentar a legitimação de um

pensamento apolítico e sem elementos das especificidades dos períodos históricos das obras,

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das regiões e interesses sociais dos poetas trágicos antigos, uma vez que defendem sobretudo

a perspectiva espiritual e religiosa do fundamento trágico, assim como observa Aristóteles.

Claude Mossé, além de afirmar que as representações teatrais fundamentariam a

“unidade da cidade” (MOSSÉ, 1993, p. 63), ainda chega a situar as análises do teatro grego

dentro de um tópico sobre “a atividade religiosa do cidadão” (p. 62), já de antemão deixando

a arte poética relegada como apenas um apêndice da religiosidade e do valor do mito de uma

época. Seu exame sobre a criação dos festivais de teatro da antiguidade, ao invés de conceber

em si mesmo um campo de concorrência na arena das ideias sociais e políticas, se constituiu

apenas como “festas em honra de Dionísio” (p. 63), deus que a tradição vinculou como

representante do teatro entre outros fatores.

Jacqueline de Romilly também acusa a fundamentação dos festivais de teatro grego

vinculada ao culto de Dioniso, com a construção de seu templo e do teatro em Atenas como

um artifício do tirano Pisístrato no movimento de urbanização da Grécia no século VI a. C

(Cf. 1998, p. 8). No entanto, em novos estudos arqueológicos, tem-se percebido que,

conforme já foi dito anteriormente, a construção dos primeiros teatros era direcionada para a

preparação dos jovens gregos à guerra (Cf. DUARTE, 2008, p. 21-22) e, para além disso,

muito se tem discutido, por exemplo, sobre a função crítica da tragédia (e posteriormente da

comédia) de se posicionar justamente contra o poder centralizado dos tiranos. Pensar “a

origem do teatro” sob as mãos da tirania, seria, então, um pensamento equivocado da questão,

muito embora esses estudos têm definido uma série de pesquisas, inclusive brasileiras sobre o

tema (Cf. CASTIAJO, 2012).

A questão geral que acaba por delinear a problemática desta pesquisa é que os

estudos mais tradicionais tanto não souberam ampliar o debate da funcionalidade sociopolítica

do teatro em uma perspectiva mais analítica e crítica, quanto não conseguiram fazer um

apanhado menos generalizado e homogêneo da própria democracia, especialmente a

ateniense. Ao contrário de uma visão evolucionista do processo, Kurt Kaaflaub e Josiah Ober

analisam-o em rupturas descontínuas, que demarcam os interesses da aristocracia presente na

disputa de poder em cada momento (Cf. RAAFLAUB; OBER; WALLACE, 2007). Levantam

críticas da ideia aristotélica da Constituição de Atenas em conceber Sólon como o responsável

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pelo “surgimento da democracia”, pois, embora tenha sido um arconte cujo poder no

Conselho do Aerópago tenha-o colocado frente à resolução de uma crise agrária, a cidadania

ainda não se fazia na prática e suas medidas alicerçaram ainda mais a rivalidade aristocrática

pelo poder das cidades com as lideranças das tiranias – questão apontada inclusive por Mossé

(Cf. 1993, p.21), apesar da estudiosa ainda refletir o processo dentro das ações políticas

apenas pelas obras desses legisladores.

De fato, esses líderes, competitivos, flexíveis e hábeis o suficiente para moldar a

polis, sua posição e as mudanças institucionais e políticas tomaram uma parte cada vez maior

de demos – da população comum – como seus grupos de seguidores: sua hetaireiai. Eles se

posicionaram contra a liderança de inimigos políticos aristocratas até que a demos conseguiu

gerir seus negócios de maneira independente, passando a escolher seus líderes (Cf.

RAAFLAUB, In: RAAFLAUB; OBER; WALLACE, 2007, p. 17-18). É assim que, seja com

Sólon, Clístenes, Elfialtes ou Péricles – os dois últimos apresentando reformas tais como a

dissolução dos poderes do Conselho do Aerópago entre a boule, a ecclesía (assembleia) e o

tribunal de justiça, além de criarem misthos (pagamento) dos magistrados, construção do

Partenon e Acrópole, etc (Cf. JONES, 1997, p. 22-23) –, segundo Ober, os indivíduos

responderam às mudanças nas leis e reformas de maneira criativa àquilo que percebiam no

ambiente político de cada época levando ao resultado de uma ação coletiva que não é de

forma alguma vista de maneira equânime: mas um “corpo diversificado de cidadãos” (OBER,

In: RAAFLAUB; OBER; WALLACE, 2007, p. 83).

Nesse sentido, Clístenes é importante, por exemplo, na ruptura que levou as

transformações na legislação de Atenas, mas o foco maior é o agente coletivo. Ober destaca

que ele não possuía uma forte ideologia e estava disposto a aceitar um alto cargo de arconte

sob a tirania. Mas sua família era contra, o que lhe rendeu outra posição política. O fato de ter

trazido consigo as demos antes desprezadas como sua hetaireia na luta pelo reconhecimento

político demonstra sua nova estratégia (Cf. p. 86-87). Por isso, os aristocratas não

“acordaram” simplesmente para a “nova ordem das coisas”, mas a democracia foi tolhendo à

margem uma mudança epistêmica, quando as opções políticas da elite ateniense foram se

reduzindo para dentro da ordem democrática e se tornarem “oradores populares”, mas

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trabalhando para derrubar a democracia. Não é sem sentido que esses fatos levaram Atenas a

um golpe oligárquico em 411 a. C. – momento de crise pelos conflitos do Peloponeso, apenas

alguns anos antes do período das peças teatrais de Eurípides e Aristófanes escolhidas para esta

pesquisa.1

Sobre esses conflitos é possível pensar que ao final do século V a. C., em meio a essa

crise do modelo de democracia inicialmente construído por Atenas, seus oligarcas buscavam

apoio de Esparta pelos interesses políticos e os democratas esperavam que Atenas os ajudasse

(Cf. JONES, 1997, p. 30). Entre os aliados dos atenienses estaria a Sicília, que a partir de 427

a. C. pediria socorro à cidade contra Siracusa, aliada do Peloponeso. Ao longo de algumas

lutas, Atenas conseguiu um contingente de prisioneiros espartanos, e as tensões foram sendo

suscitadas com diplomacia e pedidos de paz que mal se cumpriam nas regiões onde Atenas e

Esparta detinham alianças (Cf. p. 30-34).

Foi nesse momento histórico que, de nascimento nobre e educado no seio da família

de Péricles estaria Alcibíades, que representava o regresso de políticos aristocratas (os aristoi

– os melhores / bem nascidos) no poder. Em 420 a. C., ele havia convencido os atenienses a

lhe dedicarem uma frota para a exploração de regiões insatisfeitas com o Peloponeso e

conseguirem ampliação do seu poderio. Acusado de realizar paródias sacrílegas nas

celebrações dos Mistérios de Elêusis – rito de iniciação no culto às deusas Deméter e

Perséfone nesta região da Ática – e chamado para enfrenta-los, Alcibíades fugiu para Esparta

onde deu conselhos sobre como submeter sua cidade natal (p. 34-36). Com os estados

revoltando-se contra o poderio ateniense a partir de 412 a. C., e com a aliança dos espartanos

junto à Pérsia – os primeiros estando dispostos a barganhar as cidades da Ásia Menor e

conquistarem o Egeu –, Alcibíades chegou a propor com os persas que deixassem de apoiar os

espartanos e, em troca, oficiais de Atenas derrubariam sua democracia e ele poderia voltar

para casa. Com a ausência da frota ateniense na cidade:

1 Sobre esse assunto é necessário apontar, inclusive, que a escolha por essas obras de Eurípides e Aristófanes do final do século V a. C. se justificaria pela maior facilidade para se abordar a questão problemática apresentada na pesquisa: a desconstrução de uma perspectiva de democracia como uma prática social uniforme, homogênea e sem conflitos. São nos momentos de crise que se torna possível perceber com mais afinco as disputas, especialmente das elites pelo poder político em jogo.

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[...] o golpe oligárquico prosseguiu. Aquele era o momento pelo qual esperavam muitos dos críticos da democracia radical. A população de Atenas foi levada, pelo terror, a criar um corpo de quatrocentos cidadãos que deveria assumir o controle imediato do governo. [...] Na verdade, o fato de tantos cidadãos estarem ausentes da cidade pode explicar o sucesso inicial dos oligarcas. Os democratas de Samos [região de forte frota ateniense], então, chamaram de volta Alcibíades, perfeitamente disposto a oferecer seus serviços a qualquer um por vantagem pessoal. (JONES, 1997, p. 38).

Segundo Peter Jones, os oligarcas justificaram suas ações prometendo o uso de 5 mil

cidadãos nas decisões políticas o que não passava de discurso. Em 411 os atenienses os

pressionaram e os derrubaram pelo governo dos 5 mil, restaurando aquilo que consideravam

os moldes democráticos da cidade em 410 a. C (Cf. p. 39). De qualquer maneira, a presença

de todos esses elementos de disputa de poder devem ser levados em consideração para se

reavaliar a própria perspectiva de uma “democracia ideal”.

Apesar de todas essas questões, segundo Loraux, a própria ideia de disputa não

poderia ser apontada e debatida em Atenas em um momento histórico cuja construção e,

posteriormente busca de manutenção de um ideal democrático se fazia necessário. No

discurso dos políticos, então, comprava-se o pensamento de que o conflito era “[...] uma

exceção, uma catástrofe, uma epidemia que se apoderou do corpo cívico em sua totalidade.

Em uma só palavra: a ‘doença’ da cidade [...]” (2005, p. 138), um discurso que convenceu

historiadores como Vernant quando este aponta que a cidade era feita de “semelhantes”

responsáveis pela “unidade da polis” (Cf. VERNANT, 1972, p. 42).

No âmbito do teatro, essa multiplicidade de fatores sociais deve ser pensada para a

análise dos festivais ocorridos na Ática, sobretudo os de Atenas, objeto desta pesquisa, tais

como As Leneias e a Grande Dionísia. Isabel Castiajo aponta que o festival das Leneias

acontecia em meados de janeiro e, segundo lexicógrafos, provavelmente no mercado da

cidade, a noroeste da Acrópole, na Ágora. Pelos seus escritos, apresentavam-se comédias, mas

os comediógrafos também poderiam apresentar em outros concursos. Era um festival que teria

iniciado por volta de 440 a. C. e era puramente ático. Os estrangeiros participavam da Grande

Dionísia, que representava o maior festival deles, contemplando comédias, mas com enfoque

nas principais tragédias do ano (Cf. CASTIAJO, 2012, p. 13-21). Esta acontecia em março em

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Atenas e contemplava a “ostentação” da ideia de civilidade e democracia presentes no

discurso político de unidade e grandiosidade e, por isso, tinha o intento também de ser uma

mostra para os estrangeiros que visitavam a cidade justamente nessa época. Muito

provavelmente a peça Bakxai (As Bacantes) de Eurípides tenham se apresentado no mesmo

festival da Grande Dionísia junto à peça Bátraxoi (As Rãs) de Aristófanes em 405 a. C., após

esta ter sido exibida nas Leneias do mesmo ano.

Dentro dessa organização dos festivais, havia toda uma política para o teatro. O

trabalho dos poetas como de todo aspirante à “cidade ideal” era escrutinada pelos magistrados

e seus rivais durante o planejamento e realização dessas competições. Os atenienses

mantinham uma preocupação filosófica de manutenção do estado de identidade pelo viés da

valorização pedagógica da tragédia para os cidadãos. Daí a busca de fiscalização coercitiva da

maneira como se conduziam os coros. Nestes termos, o sistema da choregia, no qual ricos

cidadãos gregos (os coregos) eram escolhidos pelo arconte-epónimo para financiar os coros

disponíveis era não apenas uma forma de vários desses elementos constituintes do teatro

honrarem seus deuses, mas também de desempenho em festivais e fundo de competição entre

as elites. Tem o papel de transmitir o poder da arché ateniense pela cultura da “segurança da

cidade” assim como o poder naval (Cf. WILSON, 2000, p. 2; 4). Conciliado a esta questão,

apesar de ainda não existir um fundo estatal voltado para o teatro no século V. a. C. (a

theorika), já era possível considerar um financiamento estatal para a participação de cidadãos

pobres como espectadores a partir de decisões nas assembleias (Cf. ROSELLI, 2009), além de

caber ao Estado a responsabilidade pelo pagamento dos atores e honorários dos poetas

escolhidos para os festivais, assim como o prêmio atribuído ao vencedor (Cf. CASTIAJO,

2012, p. 21).

Essa discussão traz um debate tanto sobre a visão ingênua de estabilidade política e

social da democracia da polis, quanto da definição de cidadania, demonstrando a lacuna

existente entre ideologia e prática, e a necessidade de aprofundamento das pesquisas pelo

estudo do teatro no viés econômico e a influência do pagamento das liturgias dos ricos

cidadãos que deveriam prestar serviços de financiamento para a comunidade. O sistema das

liturgias (liturgiai) estava estritamente ligado com a honra e o prestígio das elites sociais e

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cívicas. A participação nos festivais estava diretamente centrada em noções de status,

identidade e obrigação honorífica (Cf. WILSON, 2000, p. 25).

De acordo com Peter Wilson, foi a partir da época de Clístenes que podemos

observar a preocupação em listar os “vitoriosos” nos festivais, segundo um monumento

instituído no século IV a.C.. O período de Clístenes foi pensado como uma ruptura no sentido

primordial desses eventos – que se colocavam antes apenas como competições de ditirambos,

ou seja, apresentações de cantos corais de louvor. Aristóteles, na obra Constituição de Atenas,

ao vincular o surgimento da choregia e outras liturgias com a “revolução democrática” de fins

do século VI a.C., acaba por fazer uma relação causal entre aquilo que entende como

desenvolvimento democrático e uma “revolução cultural” em Atenas, não observando o

sentido do controle da polis pelas instituições da choregia e o sistema de litourgiai. A

influência dos tiranos e da aristocracia nesse sistema cultural implantado (como “patrões”

pessoais) pelas performances corais urbanas (Grande Dionísia), demonstra a existência dessa

busca de controle (Cf. p. 13-14; 18).

Wilson nos aponta que diferentemente do que se imagina – inclusive contrária à

perspectiva da Constituição de Atenas de Aristóteles –, o sistema das liturgias não era uma

questão de imposição formal e administrativa, mas especialmente para os festivais,

permaneceu para os ricos como uma questão de escolha de “render-se entusiasticamente para

o demos” (p. 54). Tratava-se de um domínio ao mesmo tempo cultural, político e econômico.

Sobre esse aspecto, Eric Csapo ainda nos apresenta os theatronai, que embora não tenha

evidências arqueológicas de sua presença no Teatro de Dionísio a comparação circunstancial

das evidências em períodos posteriores pode tornar sua presença provável (Cf. CSAPO, In:

WILSON, 2007):

Financing the festival combined money from the state, from donors, from private investors [...]. By the late fifth century bc, the Athenian Dionysia caused some thirty talants to change hands, most of it during the five days of the festival itself. This goes well beyond the means of the traditional aristocratic or sanctuary patronage that sponsored earlier athletic and musical festivals. It amounts to more money than five times the annual income of Hipponikos, the richest man in fifth-century Greece. As Bremer noted, the complexity of this kind of funding made drama less “sponsor-directed” and more “audience-oriented” than the cultural products patronized by aristocrats and tyrants. At the same time, the complexity and scale of the investment

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introduced monetary interests with a direct financial stake in maximizing public participation in the festival. This was, most conspicuously, the chief interest of the theatronai or theatropolai, entrepreneurs who paid the city for a franchise to build and manage the theater and to profit from the collection of admission fees. Maximizing attendance was thus also in the interest of the city that sold the franchise (for as much as an estimated two talants). From the beginning theater had at least an impulse to expand into the mass-entertainment industry we know it to have been by the end of the Classical period.2 (CSAPO, 2010, p. 83).

Como é possível perceber, o jogo político da organização do teatro estava nas mãos

tanto do Estado quanto desses indivíduos ricos que traduziam seus interesses pelos

financiamentos, neste caso dos theatronai, do pagamento de altas franquias para as cidades no

intuito de construir ou administrar teatros os quais pudesse fazer funcioná-lo à sua maneira

para conseguirem o maior número de audiência possível e seguindo as regras dos arcontes-

epónimos, maiores representantes dos interesses do Estado. Esse debate traz em pauta a

necessidade de refletir sobre a atuação da cultura política na antiguidade grega também no

sentido de desconstruir a visão extremamente coletiva da democracia e também do teatro.

Através dos temas e da dramaturgia das peças, é possível, assim, identificar o jogo de

interesses dos grupos políticos que estiveram por trás de seus financiamentos. No caso de

Atenas, na própria análise dos textos teatrais propostos na pesquisa verificam-se suposições

de interesses, ora de oligarcas emergentes, com vislumbre sobre a guerra, o comércio

mercantil e o exterior, e, por isso, ligados ao porto do Pireu, ora de aristocratas, os “melhores”

e “bem nascidos”, ligados à própria terra e à agricultura, cultuando somente seus deuses e

2 “O financiamento do festival combinava dinheiro do Estado, de doadores, de investidores privados [...]. Até o final do século V a. C., o ateniense Dionísia [o Grande Dionísia] causou cerca de trinta talantos para mudar de mãos, a maior parte durante os cinco dias do festival em si. Isto vai bem além dos meios de patrocínio aristocrático ou santuário tradicional que patrocinou festivais esportivos e musicais anteriores. Isso equivale a mais dinheiro do que cinco vezes a renda anual de Hipponikos, o homem mais rico do século V da Grécia. Como Bremer observou, a complexidade deste tipo de financiamento fez o drama menos "dirigido pelo patrocinador" e mais "orientado pelo público" do que os produtos culturais patrocinados por aristocratas e tiranos. Ao mesmo tempo, a complexidade e a dimensão do investimento introduziu interesses monetários com um financiamento direto em maximizar a participação do público no festival. Este foi, mais visivelmente, o principal interesse dos theatronai ou theatropolai, os empresários que pagaram uma franquia à cidade para construir e gerir o teatro e para lucrar com a cobrança de taxas de admissão. Maximizando o comparecimento foi assim também no interesse da cidade que vendeu a franquia ( tanto quanto cerca de dois talantos ). De início o teatro tinha pelo menos um impulso de se expandir para a indústria do entretenimento de massa que conhecemos ter sido até o final do período clássico.” [tradução nossa].

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execrando tudo que representa o estrangeiro. O símbolo do poder aristocrata está na figura da

Ágora e a tradição do debate público.

Segundo Eric Csapo, quanto à análise artística das peças antigas, a partir do final do

século V a. C. é possível verificar esse apelo na construção de personagens cada vez mais

individualizados (Cf. 2008, p. 160), em que o coro, embora representasse tradicionalmente o

“corpo cívico” democrático, perde cada vez mais sua importância ou modifica sua função

cênica. De qualquer forma, mesmo com essas mudanças, permanece o discurso oficial

democrático da “igualdade”, pois aquilo que é diferente é estigmatizado, como a

representação de um coro totalmente diferenciado a exemplo da própria peça As Bacantes, em

que o coro não representa a “cidade”, mas o “outro”. De acordo com o estudioso, as obras

passam a apresentar cada vez mais uma espécie de “realismo social”, com uma linguagem

mais próxima da realidade, diferentemente da “pompa” utilizada por poetas como Ésquilo,

por exemplo – muito embora ainda não é possível vincular o movimento realista da arte nesse

período.

A linguagem das interpretações de Eurípides e Aristófanes, nas últimas décadas do século V, tendia para o realismo social, na representação do discurso comum, mas isso não produziu mudança na vida, uma vez que a diversidade da linguagem na pólis era mal representada como discurso comum sem diferenças sociais. A estética emergente era um realismo limitado pela perspectiva do cidadão democrático, cujo “outro” era um estranho, um estrangeiro, ou possivelmente uma mulher [caso do coro das mulheres de As Bacantes]. Mas ele evitou a representação linguística da diferença social no corpo do cidadão, e até mesmo na população residente. Essa era uma distinção que apelava mais para as elites antidemocráticas que prontamente equacionaram a diferença cultural entre elite e massa [...]. (CSAPO, 2008, p. 168).

Seja pelos traços da linguagem da peça, a caracterização dos personagens, os

conceitos e termos gregos utilizados, bem como a estética, todos são instrumentos de análise

da tragédia de Eurípides e a comédia de Aristófanes escolhidas como fontes documentais.

Aliadas as outras discussões do projeto, esta pesquisa pretende ser uma ferramenta de

enriquecimento dos estudos na área.

De forma geral, este trabalho apresenta as seguintes problemáticas: de que maneira a

historiografia francesa tem trabalhado o tema da democracia e do teatro ateniense?

Comparado a isso, como os recentes estudos anglo-americanos auxiliam a pesquisa para

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descortinar conceitos e ampliar questões referentes à atuação dos cidadãos ricos e do público

no teatro dentro das disputas de poder, incluindo os estudos da arqueologia teatral? Quais as

mensagens sociais e políticas das obras dramáticas a serem examinadas nesse projeto? O quê

Aristóteles tem para nos dizer, sobretudo do século V a. C. e sobre a poética e como é

possível construir uma comparação dessas ideias? De que forma conciliar essas discussões

com as análises das instituições presentes no teatro grego antigo e a descoberta das hetaireias

dos poetas?

Referências Bibliográficas

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