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11 – 1 – Eu sei que você sabe que... Às vezes não basta simples- mente saber uma coisa – temos que saber que mais alguém sabe. Ou que outros sabem que nós sabemos que eles sabem que... Estas consi- derações levam ao conceito de “conhecimento geral” , e ele tem conseqüências. Depois que uma coisa se torna de conhecimento geral, torna-se possível fazer deduções sobre o raciocínio de outras pessoas. Os bem-educadíssimos monges da ordem Perplexiana gostam de ar- mar ciladas lógicas uns para os outros. Certa noite, quando os freis Ar- quibaldo e Benedito dormiam, frei Jonas entrou pé ante pé na cela deles e pintou uma mancha azul no cocuruto da cabeça raspada de cada um. Quando os dois acordaram, ambos viram, é claro, a mancha na cabeça do outro, mas, sendo bem-educados, não abriram a boca. Cada qual pensou vagamente se também estaria com uma mancha azul na cabeça, mas era bem-educado demais para perguntar. Foi então que frei Zenão, que nun- ca assimilara muito bem a arte da diplomacia, entrou e começou a soltar risadinhas. Interrogado, lembrou-se dos bons modos e recusou-se a di- zer uma palavra além de:

Mania de Matemática - Cap.01

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Às vezes não basta simplesmentesaber uma coisa –temos que saber que maisalguém sabe. Ou que outrossabem que nós sabemos queeles sabem que... Estas consideraçõeslevam ao conceito de“conhecimento geral”, e ele temconseqüências. Depois queuma coisa se tornade conhecimento geral,torna-se possível fazerdeduções sobre o raciocíniode outras pessoas.

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    1 Eu sei que voc sabe que...

    s vezes no basta simples-

    mente saber uma coisa

    temos que saber que mais

    algum sabe. Ou que outros

    sabem que ns sabemos que

    eles sabem que... Estas consi-

    deraes levam ao conceito de

    conhecimento geral, e ele tem

    conseqncias. Depois que

    uma coisa se torna

    de conhecimento geral,

    torna-se possvel fazer

    dedues sobre o raciocnio

    de outras pessoas.

    Os bem-educadssimos monges da ordem Perplexiana gostam de ar-mar ciladas lgicas uns para os outros. Certa noite, quando os freis Ar-quibaldo e Benedito dormiam, frei Jonas entrou p ante p na cela deles epintou uma mancha azul no cocuruto da cabea raspada de cada um.Quando os dois acordaram, ambos viram, claro, a mancha na cabea dooutro, mas, sendo bem-educados, no abriram a boca. Cada qual pensouvagamente se tambm estaria com uma mancha azul na cabea, mas erabem-educado demais para perguntar. Foi ento que frei Zeno, que nun-ca assimilara muito bem a arte da diplomacia, entrou e comeou a soltarrisadinhas. Interrogado, lembrou-se dos bons modos e recusou-se a di-zer uma palavra alm de:

  • 12 MANIA DE MATEMTICA

    Pelo menos um de vocs est com uma mancha azul na cabea.Ambos os monges sabiam disso, claro. Mas de repente Arquibaldo

    ps-se a pensar. Eu sei que Benedito est com uma mancha no cocuruto,mas ele no sabe que... Ser que eu estou com uma mancha? Bem, supo-nhamos que no; nesse caso, deduzo imediatamente da observao deZeno que ele est. Mas ele no se mostrou nem um pouco embaraado xi, isso significa que eu devo estar manchado de azul! Nessa altura, derepente, Arquibaldo ficou vermelho como um pimento. Benedito tam-bm enrubesceu, exatamente no mesmo instante, quase exatamente pelamesma razo.

    Sem o comentrio inocente de Zeno, nenhum dos dois teria podidofazer esse raciocnio, e no entanto o filsofo no lhes dissera aparente-mente nada que j no soubessem.

    Esse efeito torna-se ainda mais intrigante quando o experimentamoscom trs monges. Agora os freis Arquibaldo, Benedito e Cirilo dormemem sua cela, e Jonas lambuza de azul a cabea dos trs. Novamente, quandoos freis acordam, cada um repara a mancha azul na cabea dos dois ou-tros, mas nada diz. Esse impasse lgico rompido quando Zeno jogasua bomba:

    Pelo menos um de vocs est com uma mancha azul na cabea.Bem, isso leva Arquibaldo a refletir, e o que ele pensa isto: Suponha-

    mos que eu no esteja com uma mancha. Nesse caso Benedito est vendouma mancha em Cirilo, mas no em mim, e pode se perguntar se ele prprioest com uma mancha. E pode fazer o seguinte raciocnio: Se eu, Benedito,no estiver com uma mancha, Cirilo est vendo que nem Arquibaldo nemeu estamos com uma mancha, e pode deduzir imediatamente que ele pr-prio est manchado. Como Cirilo, que um lgico exmio, teve tempo desobra para fazer este raciocnio e at agora no se mostra nada embaraado, sinal de que eu, Benedito, estou borrado de azul. Ora, como Benedito,que tambm um lgico exmio e teve tempo de sobra para fazer este racio-cnio, tambm no parece embaraado at agora, s posso concluir que naverdade eu, Arquibaldo, estou com uma mancha. Nesse instante Arqui-baldo fica vermelho como um pimento e igualmente vermelhos ficamBenedito e Cirilo, que seguiram linhas de raciocnio muito parecidas.

  • 13EU SEI QUE VOC SABE QUE.. .

    O mesmo tipo de argumentao funciona para quatro, cinco ou maismonges supondo-se novamente, por enquanto, que todos esto com ococuruto pintado de azul. Suas dedues vo se tornando mais compli-cadas, mas, no importa quantos monges haja, o anncio de que pelomenos um deles est com uma mancha azul na cabea provoca uma ca-deia dedutiva que leva cada um a concluir que ele prprio est com acabea manchada. Quando o nmero grande, torna-se til usar alguminstrumento para marcar o tempo, de modo a podermos sincronizar asreflexes dos envolvidos, e introduzirei um daqui a pouco, quando co-mearmos a analisar o que est se passando. Coisas igualmente parado-xais acontecem quando alguns monges esto com uma mancha na cabeae outros no retornarei a isso.

    Existem muitos enigmas deste tipo, envolvendo crianas com rostossujos, pessoas com chapus ridculos numa festa, duas pessoas que estode posse de nmeros inteiros positivos consecutivos mas no sabem qualdelas tem o maior existe at uma verso nada politicamente corretasobre infidelidade conjugal entre os membros de uma tribo insular. To-dos eles so indubitavelmente intrigantes, pois todo o processo desen-cadeado por algum que anuncia um fato perfeitamente evidente paratodos os envolvidos. No entanto, quando comeamos a analisar o que sepassa, fica claro que, na verdade, o anncio contm informao nova.Neste caso, a informalidade da linguagem, tantas vezes til, obscurece oque se passa.

    Voltemos ao primeiro exemplo com os dois monges. Zeno anuncia: Pelo menos um de vocs est com uma mancha azul na cabea.Que sabem realmente os monges? Bem, Arquibaldo sabe que Benedito

    est com uma mancha, e Benedito sabe que Arquibaldo est com umamancha. Mas estes fatos no so a mesma coisa. Quando Arquibaldo ouvea afirmao de Zeno e conclui que isso ele j sabia, um de vocs paraele Benedito. Mas quando Benedito ouve a afirmao de Zeno e con-clui que isso ele j sabia, seu um de vocs Arquibaldo. No se trata,em absoluto, da mesma afirmao. O que a declarao de Zeno faz no apenas informar a Arquibaldo que algum est com uma mancha. Elatambm lhe informa que agora Benedito sabe que algum est com uma

  • 14 MANIA DE MATEMTICA

    mancha, e se trata do mesmo algum. Assim, a afirmao de Zeno nodiz a Arquibaldo nada de novo sobre o que o prprio Arquibaldo sabe,mas diz de fato a Arquibaldo algo de novo sobre o que Benedito sabe.

    Quebra-cabeas lgicos desse tipo so conhecidos como enigmas de co-nhecimento comum, e todos se baseiam nos mesmos mecanismos. O queimporta no o contedo da afirmao: o fato de todos saberem que todosos outros sabem daquilo. Assim que esse fato se torna de conhecimento co-mum, torna-se possvel raciocinar sobre as reaes dos demais a ele.

    Voltemos aos monges. Suponha agora que h cem monges, todos comuma mancha na cabea, todos na ignorncia disso e todos lgicos assom-brosamente rpidos. Para sincronizar o pensamento dos monges, supo-nha que o abade tem uma sineta.

    De dez em dez segundos tocarei esta sineta anuncia o abade. Istolhes dar tempo de sobra para fazer as dedues lgicas necessrias. Ime-diatamente depois que eu tocar a sineta, todos aqueles entre vocs quetiverem conseguido deduzir que esto com uma mancha, levantem a mo.

    Transcorrem dez minutos de silncio. Exceto pelo toque repetido dasineta do abade, nada acontece.

    Ah, que cabea a minha! Eu me esqueci. Aqui est mais uma infor-mao: pelo menos um de vocs est com uma mancha azul na cabea.

    Em seguida nada acontece por 99 toques de sineta, e de repente, apso 100o toque, todos os cem monges levantam a mo ao mesmo tempo.

    Em essncia, a lgica da situao a seguinte. O monge nmero 100,digamos, pode ver que todos os outros 99 esto com manchas. Se euno estiver com uma mancha, ele pensa, os outros 99 sabem disso. Issome exclui completamente dos clculos. Portanto, se eu no estiver man-chado, eles esto fazendo todas as sries de dedues que podem serfeitas com 99 monges. Se eu tiver discernido corretamente a lgica para99 monges, aps 99 toques todos eles levantaro a mo. Assim o mongenmero 100 espera o 99o toque, e nada acontece. Ah, ento minha su-posio estava errada eu s posso estar com uma mancha. A sinetatoca pela 100a vez, ele levanta a mo. Idem para os outros monges.

    A lgica para 99 monges (sobre a base hipottica de que o monge 100no est manchado) a mesma: agora o monge 99 prev que os outros 98

  • 15EU SEI QUE VOC SABE QUE.. .

    levantaro a mo ao 98o toque, a menos que ele mesmo, monge 99, estejacom uma mancha. E assim por diante, sucessivamente, at que finalmen-te chegamos a um nico monge hipottico, que no v nenhuma manchaem lugar algum, fica surpreso ao saber que algum est com uma ndoa,imediatamente deduz que s pode ser ele mesmo e levanta a mo aps oprimeiro toque.

    Este um caso de induo matemtica, que diz que se alguma pro-priedade de nmeros inteiros n se aplica quando n = 1, e se sua validadepara n implica sua validade para n + 1 qualquer que seja n, ela deve servlida para todo n.

    At agora, supus que todos os monges estavam com uma mancha,mas por um raciocnio semelhante voc pode se convencer de que esteno um requisito essencial. Suponha, por exemplo, que, no total de cemmonges, 68 esto com uma mancha. Nesse caso, com perfeita lgica, nadaacontece at o 68o toque da sineta, instante em que todos os que tmmanchas levantam a mo simultaneamente, mas nenhum dos outros.

    Os enigmas de conhecimento comum foram amplamente investiga-dos, e algumas referncias teis podem ser encontradas num artigo deDavid Gale (ver Sugestes de leitura no fim deste livro). O exemplo maismatemtico e o de mais longo alcance ali descrito foi inventado porJohn Conway (Princeton University) e Michael Paterson (University ofWarwick, Reino Unido). Imagine um ch de matemticos loucos. Cadaconviva usa um chapu em que est escrito um nmero. Esse nmerodever ser maior ou igual a zero, mas no precisa ser um nmero inteiro;alm disso, o nmero de um dos convidados deve ser no-zero. Arranjeos chapus de modo que nenhum jogador possa ver seu prprio nmero,mas possa ver os de todos os outros.

    Passemos ao conhecimento comum. H uma lista de nmeros pen-durada na parede. Um deles o total de todos os nmeros nos chapusdos jogadores mas ningum sabe qual deles o total correto. Finalmen-te, suponha que o nmero de possibilidades na lista menor ou igual aonmero de jogadores.

    A cada dez segundos uma sineta toca, e todos os que souberem seuprprio nmero ou, o que d no mesmo, souberem o total correto, uma

  • 16 MANIA DE MATEMTICA

    vez que todos podem ver os nmeros de todos os outros devem anun-ciar o fato. Conway e Paterson provaram que, com perfeita lgica, algumconviva acabar por fazer esse anncio.

    primeira vista, isso paradoxal. Suponha, por exemplo, que h trsjogadores, e no chapu de todos est escrito o nmero 2, ao passo que nalista pendurada na parede l-se 6, 7, 8. Cada jogador v um subtotal de 2+ 2 nos chapus dos outros dois, logo, o nmero no seu prprio deve ser2 ou 3 ou 4. Portanto cada um dos outros est olhando ou para 2 + 2, oupara 2 + 3 ou para 2 + 4, e qualquer um dos totais 6, 7 ou 8 possvel(lembre-se de que alguns jogadores, embora no todos, podem ter zeroem seus chapus). Assim, nenhum total pode ser excludo. No entanto,graas sineta, os jogadores podem fazer inferncias a partir do fato deque os outros jogadores ainda no anunciaram conhecer os nmeros. Acada toque, alguns conjuntos de nmeros so excludos, e isso conduz inesperada concluso de Conway e Paterson.

    Para ter uma idia do que est em jogo, considere apenas dois jogado-res, e suponha que a lista pregada na parede 6, 7. Como os prpriosnmeros no so conhecidos, chame-os x e y. O que ambos os jogadoressabem que x + y = 6 ou x + y = 7. Agora, um pouco de geometria. Ospares (x, y) que satisfazem essas duas condies so as coordenadas dedois segmentos de linha no quadrante positivo do plano (Figura 1.1).

    Se x ou y forem maiores que 6, o jogo terminar aps o primeirotoque, porque o outro jogador poder ver imediatamente que um total de6 impossvel. Os pares (x, y) para os quais isso acontece so mostradosna Figura 1.2. (Aqui preciso ter um pouco de cuidado: os pontos (1, 6)e (6, 1), situados nas extremidades dos segmentos marcados, no soeliminados. Falta uma extremidade aos segmentos eliminados, aquela maisprxima do meio das linhas inclinadas.) Se nenhum dos dois jogadoresresponder aps o primeiro toque, essas possibilidades so eliminadas. Ojogo terminar ento no segundo toque, se x ou y forem menores que 1.Por qu? O outro jogador pode ver o chapu com um nmero menor que1, e sabe que seu prprio nmero 6 ou menos; portanto, o total de 7 excludo. Os pares para os quais o jogo termina no segundo toque somostrados na Figura 1.3.

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    y

    7

    6

    0 6 7

    y

    7

    6

    0 6 7

    Figura 1.1Dois segmentos de linha correspondem

    aos nmeros possveis nos chapus.

    Figura 1.2Se os nmeros carem nos segmentos

    representados por linhas grossas,o jogo termina ao primeiro toque.

    y

    7

    6

    0 6 7

    Figura 1.4Prosseguindo ao longo de duas escadas entre

    as linhas, descobrimos por quanto tempo ojogo continua para qualquer par de nmeros(o nmero de toques exigido est marcado

    nos segmentos apropriados; falta a cadasegmento a extremidade situada mais pertodo centro das linhas inclinadas). Aqui, o maior

    nmero de toques requerido 8.

    y

    7

    6

    0 6 7

    Figura 1.3Se os nmeros carem nestes segmentos,

    o jogo termina ao segundo toque.

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    Levando-se adiante essa linha de raciocnio, os pares (x, y) para osquais o jogo cessa aps um dado toque formam as sucessivas diagonaisde duas escadas, uma que desce a partir do alto esquerda e uma quesobe a partir de baixo direita, como na Figura 1.4. Esses segmentosdiagonais esgotam rapidamente as possibilidades. De fato, neste caso, ojogo deve parar ao oitavo toque. (Por causa das extremidades ausentesque mencionei, os nmeros (3, 3) requerem oito toques. Todas as outraspossibilidades requerem sete ou menos.)

    O mesmo tipo de argumentao resolve o problema no caso de qual-quer lista para dois jogadores, e nos permite at descobrir o nmero m-ximo de toques de sineta exigido. A prova para um nmero maior dejogadores muito simples, mas matematicamente sofisticada. O artigo deGale expe todos os detalhes. Como um desafio, descubra o que aconte-ce com trs jogadores, todos com o nmero dois no chapu, e a lista 6, 7,8, tal como foi mencionado antes. Voc deveria descobrir que nada acon-tece por 14 toques, e em seguida, ao 15o toque, todos os trs jogadoresanunciam seus nmeros.