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IC 03 – História e Sertões Coordenadora: Maria Aparecida S. de Souza OCUPAÇÃO DA TERRA E ‘PECUÁRIA NO ARRAIAL DOS POÇÕES NO SÉCULO XIX Manoel Alex da Silva Sousa 1 ; Rhanes Souza Alves 2 ; Maria Aparecida Silva de Sousa 3 A formação histórica do Brasil, em seus primórdios, não aconteceu de forma isolada, distante dos múltiplos acontecimentos que se processaram na Europa, em finais do século XV e início do século XVI. Ao contrário, faz parte de um contexto marcado por transformações econômicas, políticas e socioculturais intrínsecas à constituição de uma nova sociedade européia, caracterizada pelo desenvolvimento do capitalismo comercial. Em decorrência das transformações, vinculadas às necessidades de expansão do capital mercantil europeu, é que se desdobram os interesses marítimos coloniais, os quais resultaram na expansão marítimo- comercial européia e conseqüente colonização da América tropical, de modo especial, do território brasileiro. A colonização do Brasil não data de imediato à chegada dos portugueses na “nova terra” e, muito menos, a sua ocupação e povoamento. Frustrados por não encontrarem ouro, seu interesse maior, os lusos continuaram centrados no seu comércio com o Oriente, atividade que, para os anseios da época, lhes proporcionava lucros imediatos, perspectiva de enriquecimento rápido que não existia em relação ao Brasil. No entanto, a atividade comercial com o Oriente encontrou outros concorrentes e os lucros portugueses decaíram em índices alarmantes. A solução encontrada para sanar esse novo impasse, foi o início da exploração na colônia americana; segundo Nelson Werneck Sodré, “O apossamento, em si, não constitui garantia suficiente. Não assegura a posse de uma área extensa e vulnerável (...) Assim, torna- se imperativo povoar: ocupar, pela transferência de grupos humanos,(...)” 4 . Com isso, a Coroa portuguesa decidiu colonizar as novas terras, de forma que a colônia americana deveria se desenvolver num sistema que não fosse dispendioso para a metrópole, mas, um suporte na 1 Aluno do 8.º semestre do Curso de História – UESB e-mail: [email protected] 2 Aluna do 7.º semestre do Curso de História - UESB 3 Orientadora- Profª. do Deptº de História da UESB e-mail: [email protected] 4 SODRÉ, Nelson Werneck. Formação Histórica do Brasil. 11 ed. São Paulo; DIFEL, 1982, p. 60-61

Manoel Alex da Silva Sousa, Rhanes Souza Alves e Maria

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IC 03 – História e SertõesCoordenadora: Maria Aparecida S. de Souza

OCUPAÇÃO DA TERRA E ‘PECUÁRIA NO ARRAIAL DOS POÇÕESNO SÉCULO XIX

Manoel Alex da Silva Sousa1; Rhanes Souza Alves2; Maria Aparecida Silva de Sousa3

A formação histórica do Brasil, em seus primórdios, não aconteceu de forma isolada,

distante dos múltiplos acontecimentos que se processaram na Europa, em finais do século XV

e início do século XVI. Ao contrário, faz parte de um contexto marcado por transformações

econômicas, políticas e socioculturais intrínsecas à constituição de uma nova sociedade

européia, caracterizada pelo desenvolvimento do capitalismo comercial. Em decorrência das

transformações, vinculadas às necessidades de expansão do capital mercantil europeu, é que

se desdobram os interesses marítimos coloniais, os quais resultaram na expansão marítimo-

comercial européia e conseqüente colonização da América tropical, de modo especial, do

território brasileiro.

A colonização do Brasil não data de imediato à chegada dos portugueses na “nova

terra” e, muito menos, a sua ocupação e povoamento. Frustrados por não encontrarem ouro,

seu interesse maior, os lusos continuaram centrados no seu comércio com o Oriente, atividade

que, para os anseios da época, lhes proporcionava lucros imediatos, perspectiva de

enriquecimento rápido que não existia em relação ao Brasil. No entanto, a atividade comercial

com o Oriente encontrou outros concorrentes e os lucros portugueses decaíram em índices

alarmantes. A solução encontrada para sanar esse novo impasse, foi o início da exploração na

colônia americana; segundo Nelson Werneck Sodré, “O apossamento, em si, não constitui

garantia suficiente. Não assegura a posse de uma área extensa e vulnerável (...) Assim, torna-

se imperativo povoar: ocupar, pela transferência de grupos humanos,(...)”4. Com isso, a Coroa

portuguesa decidiu colonizar as novas terras, de forma que a colônia americana deveria se

desenvolver num sistema que não fosse dispendioso para a metrópole, mas, um suporte na

1 Aluno do 8.º semestre do Curso de História – UESB e-mail: [email protected] Aluna do 7.º semestre do Curso de História - UESB3 Orientadora- Profª. do Deptº de História da UESB e-mail: [email protected] SODRÉ, Nelson Werneck. Formação Histórica do Brasil. 11 ed. São Paulo; DIFEL, 1982, p. 60-61

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resolução dos seus problemas de ordem financeira, conforme ressalta Nelson Werneck Sodré,

a colonização se processaria “ (...) numa empresa que não se deve tornar carga para a Coroa,

mas alívio para esta. Era preciso, pois, colonizar.”5

Era necessário colonizar. A colonização seria a defesa das terras e, principalmente,

uma forma direta de exploração, através da qual, a Coroa tentaria suprir a crise gerada pelo

declínio comercial com o Oriente, articulando o investimento nas terras brasileiras ao

mercantilismo português. Porém, investir era o problema maior. De caráter muito mais

complexo que as feitorias do século XV, na África, o empreendimento colonial no Brasil

exigia um grande investimento financeiro, de custo muito alto para Portugal, que não

dispunha de condições; além disso, para explorar de forma efetiva, era preciso povoar, e os

lusos não estavam dispostos a arriscarem-se numa aventura perigosa financeiramente,

diferente do que era realizado na África e na Ásia.

Contudo, já que a Coroa não dispunha de recursos, o jeito foi recorrer à iniciativa de

particulares e inaugurar aqui, o sistema de capitanias hereditárias imposto nas colônias

africanas e asiáticas. Em 1534, o monarca português D. João III aplica, no Brasil, a primeira

experiência político-administrativa, dividindo o seu território em quinze grandes lotes,

compreendidos entre o litoral e a linha de Tordesilhas. Na região que hoje constitui o Estado

da Bahia, distribuíram-se três capitanias hereditárias distintas, com a extensão de cinqüenta

léguas cada uma: a Capitania da Bahia, que compreendia a Baía de Todos os Santos e o

Recôncavo, doada a Francisco Pereira Coutinho; a Capitania de Ilhéus, doada a Jorge de

Figueiredo Correia; e a Capitania de Porto Seguro, doada a Pero de Campos Coutinho.

Os capitães-donatários surgiam como proprietários particulares, desenvolvendo uma

série de atribuições, visto que, deveriam promover o desenvolvimento de suas capitanias e o

lucro da monarquia portuguesa, já que eram obrigados à “redízima das rendas à Coroa.”6 O

sistema da capitanias não deu certo. No entanto, outros fatores vão se inserindo na lógica de

ocupação do território, surgidos da própria dinâmica e necessidades internas, a grande

lavoura, o bandeirismo, a mineração e a pecuária se conjugam no processo de povoamento da

colônia, do seu interior e além fronteiras, as quais serão rompidas em meio a tal processo.

A expansão dos domínios baianos vai se configurado com o povoamento de algumas

áreas específicas. Neste processo, se destaca o povoamento do Recôncavo (com a grande

5 Idem, p. 60-616 HOLLANDA, Sérgio Buarque de. História Geral da Civilização Brasileira. A Época Colonial: Administração,economia e sociedade. RJ: Bertrand Brasil; 1997, p. 93

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lavoura, especialmente da cana-de-açúcar e do fumo) e do sertão, pelas regiões ribeirinhas, às

margens do Rio São Francisco, através da expansão das fazendas de gado; e, não podemos

esquecer, as incursões bandeirantes em busca do ouro, sendo esta atividade de grande

importância no adentramento do sertão.

Importante destaque merece a pecuária na constituição de povoados. As fazendas de

gado, geralmente, situavam-se em locais vantajosos como entroncamentos de estradas, às

margens de rios, próximos a uma capela ou a rotas de boiadas e tropas, o que levava a servir

de pousadas para viajantes7, dando origem a feiras de gado e de diversos produtos, sendo

assim, um centro atrativo de populações.8

A mineração proporciona uma intensa corrida por metais preciosos e conseqüente

concentração demográfica. Destacam-se, na Bahia: Jacobina e Rio de Contas no século XVIII.

As primeiras descobertas de ouro em solo baiano ocorreram em 1701, em Jacobina; por volta

de 1725 já era intensa a exploração do ouro em tal região.

Observando alguns dos principais fatores que contribuíram para a origem e expansão

do povoamento da Bahia, notamos a multiplicidade de circunstâncias, planejadas ou não pela

metrópole portuguesa, mas que colaboraram para a ocupação, imediata ou gradual, do

território baiano. Apesar de as diversas regiões da Bahia terem suas características próprias,

sendo ocupadas e povoadas em circunstâncias diferentes, destacando-se economias e relações

sociais variadas, há uma interligação dentro dessa diversidade, pois as atividades aqui

desenvolvidas não se isolaram, antes, complementavam-se, caracterizando toda a dinâmica

interna que, inegavelmente, existiu9.

Todavia, interessa-nos estudar o que mais nos fascina em meio a esse movimento de

expansão e ocupação do interior da colônia e, no nosso caso, da Bahia: a penetração do vasto

sertão. Aqui centramos as nossas atenções. A partir de tal adentramento e posterior ocupação

é que podemos analisar a instalação do colonizador na região, conhecida primordialmente,

como “Sertão da Ressaca” e, de modo especial, conhecer as origens do Arraial dos Poções,

7 Cf. ARAÚJO, Emanuel. Tão vasto, tão ermo, tão longe: o sertão e o sertanejo nos tempos coloniais. In:PRIORE, Mary Del (Org.). Revisão do Paraíso: Os brasileiros e o Estado em 500 anos de história. Rio deJaneiro: Campus, 2000, p. 658 SODRÉ, Nelson Werneck. Op. cit., p. 123. Cf. também SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Pecuária eFormação do Mercado Interno no Brasil. Estudos, Sociedade e Agricultura. Rio de Janeiro; 1997, n.º 8, p. 144-145.9 Cf. SILVA, Sylvio C. Bandeira de Mello. Urbanização e metropolização no Estado da Bahia: evolução edinâmica. Salvador: Centro Editorial e Didático da URBA; 1989, p. 87

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cujo povoamento faz parte desse momento histórico de penetração dos colonizadores nos

sertões.

Ao considerarmos “sertão” como toda a área interior, imensa e distante do litoral10,

podemos constatar que desde o primeiro século da colonização, essas terras, tão vastas,

começaram a ser penetradas por homens aventureiros, na ânsia pelo ouro e metais preciosos11,

bem como, pelas atividades voltadas para o apresamento indígena.

O bandeirante aparece, por muito tempo, na historiografia tradicional brasileira como

um grande herói, desbravador e conquistador dos perigosos sertões. É a epopéia dos

bandeirantes, homens fortes, corajosos, que dedicavam sua vida ao aventureirismo, a serviço

de sua majestade “(...) esse modismo mental da valentia brilhante, o desapego dramático às

comodidades da vida urbana, o sangue assignalado de guerreiros bravos e idealistas, a

ingenuidade supersticiosa de christãos primitivos (...)”12

Também os seus feitos tão exaltados, na verdade contribuíram para a matança de

milhares de populações indígenas, além de provocar uma grande mudança na paisagem

geográfica, nos lugares por onde passavam. No Sertão da Ressaca, havia a presença das

nações indígenas formadas pelos pataxós, camacãs, difundidos na região como mongoiós; e,

ymborés, apelidados pelos colonizadores como botocudos, devido a um pedaço de madeira

que pendurava nos lábios, chamado botoque. Estes, foram subordinados aos interesses dos

colonizadores ou exterminados para ceder espaço à instituição da empresa colonial. Assim

sendo, os bandeirantes se constituíram em pessoas preparadas para enfrentar todos os perigos

que se lhes apresentassem, “Não partem, todavia, sem testar, determinando suas últimas

vontades, porque sabem que a fascinação das selvas é traiçoeira; que dos tremedais lutulentos,

se levantam miasmas mortíferos”13. Assim partiam os bandeirantes, muitos deixando seus

testamentos, os quais demonstram as angústias14 presentes no homem que, a um só tempo,

amedronta e é amedrontado.

Francisco Bruzza de Spinosa, homem de Castela, é considerado o responsável pela

primeira incursão no sertão baiano, em 1553, percorrendo caminhos de Porto Seguro ao São

10 ARAÚJO, Emanuel. Tão Vasto, Tão Ermo, Tão Longe: O Sertão e o Sertanejo nos Tempos Coloniais, in:PRIORE, Mary Del (org.). Revisão do Paraíso: os brasileiros e o Estado em 500 anos de história. Rio de Janeiro:Campus; 2000, p. 79-8211 Cf. MERCDANTE, Paulo. Os Sertões do Leste. Estudo de uma Região: A Mata Mineira. Rio de Janeiro:Zahar Editores; 1973, p. 1512 CALMON, Pedro. A Conquista: História das Bandeiras Bahianas. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional; 1929,5-613 BELMONTE. No Tempo dos Bandeirantes. São Paulo: Melhoramentos; 1998, p. 171

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Francisco, “acompanhado por 12 portugueses e o missionário espanhol João de Apricuelta

Navarro”15, Spinosa fora enviado pelos próprios representantes da Coroa, ansiosos pelas

riquezas do sertão, das quais falavam os índios: “(...) diz o jesuíta de 1593, autor das Cousas

mais notáveis do Brasil, que este foi ‘o primeiro que mandou descobri sertão’.”16

Em meio a esse processo de conquista do interior, destaca-se a figura de João

Gonçalves da Costa, um dos “últimos notáveis bandeirantes da Bahia no século XVIII”17, que

desempenhou um importante papel no devassamento do sertão, pelas suas sangrentas lutas

com os aborígenes, busca de metais preciosos, abertura de caminhos, criação de gado, enfim,

pela sua atuação em prol dos objetivos colonizadores.

A descoberta do ouro na Bahia em princípios do século XVIII, especialmente em Rio

de Contas e Jacobina, deu-se a partir do processo de ocupação e expansão das atividades nas

áreas auríferas de Minas Gerais. O encontro do ouro nessas localidades baianas provocou o

deslocamento de muitas pessoas para tais centros mineradores, constituindo, assim, novos

núcleos populacionais. Jacobina foi elevada à categoria de vila em 1720, e Rio de Contas em

1724, sendo submetidas a um rigoroso controle por parte da Coroa, a fim de evitar o

contrabando e manter uma rígida arrecadação dos quintos. Nesses centros mineradores da

Bahia, desenvolviam-se novas relações sociais e econômicas, as quais caracterizavam uma

sociedade mais aberta para a mobilidade, além de propiciar o desenvolvimento do comércio,

destacando-se aqui a pecuária, voltada para o abastecimento de suas populações.

A ocupação do “Sertão da Ressaca”, região situada entre os rios: Pardo e das Contas,

ocorreu a partir da decadência das minas auríferas nas Minas Gerais e em Rio de Contas, o

que forçou a busca de novas zonas mineradoras e ainda o desenvolvimento de novas

atividades, as quais suprissem a ausência daquelas almejadas – as mineiras.

Desde inícios do século XVIII, o Sertão da Ressaca já era visado pela Coroa,

interessada em efetivar a sua ocupação, como fonte lucrativa para a metrópole: “Uma portaria

del-rei, de 22 de abril de 1728, (...)”18 informa “que a grande porção de terra que há no sertão

dessa capitania desde as minas do Rio de Contas até o Rio Pardo, Rio Verde e cabeceiras do

14 Idem, p. 14615 Ibidem, p. 1716 CALMON, Pedro. Op. cit. p. 3417 Idem; p. 17118 Ibidem; p. 171

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São Matheus eram as melhores que tinham todo o Brasil assim para a criação do gado como a

cultura de qualquer lavoura (...)”19

Na responsabilidade de investigar sobre a existência das riquezas naturais –

especialmente as minerais – nessa região, o superintendente geral das minas da Bahia20,

incluindo Minas Novas do Araçuaí, Pedro Leolino Maris, envia a Bandeira de André da

Rocha Pinto no ano de 1727 para conquistar, ocupar e povoar o sertão entre os Rios Pardo e

das Contas, buscando metais preciosos, combatendo as populações indígenas, destruindo as

comunidades quilombolas que já se encontrassem e instalando fazendas de gado, para efetivar

a ocupação do território; enfim, a sua função era explorar por completo aquela região a ele

designada. Junto a André da Rocha Pinto, aparece uma outra personalidade do bandeirantismo

na Bahia, o mestre-de-campo João da Silva Guimarães, designado para explorar o Rio São

Matheus, suas cabeceiras e afluentes. Tal bandeirante se destacou pela busca incansável pelo

ouro, além das batalhas que travou com os índios que encontrava por onde passava. Há

indícios de que tanto André da Rocha Pinto quanto João da Silva Guimarães tiveram

passagem pelo Arraial dos Poções, em meados do século XVIII, efetivando uma esparsa

exploração de ouro. Informação essa, que ainda carece de documentação específica para sua

comprovação. No entanto, nota-se que provavelmente, inicia-se aí o processo de ocupação

dessa localidade.

Contudo, conforme consta das notícias, se houve exploração aurífera, a mesma foi

esparsa e de pouca intensidade; e, o que colaborou para a efetiva ocupação da região foi

atividade pecuarista. Esta concorreu para a fixação do colonizador nas áreas sertanejas, à

medida que se estabelecessem fazendas de gado, colaborando, ainda, para a integração do

sertão à economia colonial.

Podemos destacar três momentos diferenciados para o desenvolvimento da pecuária,

no período colonial21, a começar pela fase de estreita proximidade locacional entre os currais

e o engenho, já que o gado era força de tração, transporte e alimento para o mesmo; em

seguida, com extensão das lavouras e dos rebanhos, surge a necessidade de separação das

duas atividades – no ano de 1701, foi proibida a criação do gado dentro do espaço de dez

19 Ibidem, p. 13220 Cf. SOUSA, Mª Aparecida S. de. A Conquista do Sertão da Ressaca: povoamento e posse da terra no interiorda Bahia. Belo Horizonte: UFMG; 1997, (Dissertação de Mestrado, ainda não publicada) p. 2121 Cf. SODRÉ, Nelson Werneck. Op. cit. p. 122-124; ANDRADE, Celeste Maria Pacheco de. (1990). Origens doPovoamento de Feira de Santana: um estudo de história colonial. Salvador: UFBA (Dissertação de Mestrado), p.44

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léguas da costa, sendo essa área exclusiva para o cultivo da cana-de-caçúcar22. Nesse segundo

momento, até romper, significativamente, sua fase de coexistência com a zona agrícola

açucareira; aqui, “a pecuária ganha o sertão”, no dizer de Nelson Werneck Sodré23, marcando

o terceiro momento da expansão pastoril, a qual efetiva a conquista do interior,

proporcionando uma nova fase para a economia colonial, com o desenvolvimento do

comércio interno.

A pecuária contribuiu, então, para a colonização do sertão e, portanto, não pode ser

vista como um simples fator de ocupação do interior: “Não é com justiça que se relega em

nossa história para um plano secundário. Certo que não ostenta o lustre dos feitos políticos,

nem aparece na primeira ordem dos grandes acontecimentos do país.”24

Aparecendo assim, timidamente, na história da colonização do Brasil, como atividade

subsidiária das grandes lavouras, a pecuária foi se expandindo cada vez mais, a partir das

necessidades e condições existentes, cumprindo seu grande papel de incorporação do sertão à

dinâmica colonial, ocupando, povoando e interligando o interior com o litoral. A pecuária

ocupou grandes extensões de terras interioranas, dando “ao homem colonial a noção de valor

econômico das áreas que não apresentavam riquezas minerais e que não prestavam à lavoura

comercial”25.

Desde a primeira metade do século XVII, a criação do gado já era realizada

extensivamente no sertão baiano, nas grandes sesmarias doadas pelo governo português aos

latifundiários sesmeiros Francisco Dias D’ávila, da Casa da Torre e Antonio Guedes de Brito,

da Casa da Ponte. As propriedades deste último, por exemplo, iam desde o litoral aos sertões,

incluindo a região de Jacobina26. Podemos perceber, então, que a atividade pecuarista no

sertão se deu inicialmente através da grande propriedade sesmarial27, estendendo, após, por

todo o interior, especialmente pelo vale do Rio São Francisco.

22 Cf. SOUSA, Maria Aparecida S. de. Op. cit. p. 81; PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do BrasilContemporâneo. São Paulo: Brasiliense; 2000, p. 191 PRADO Jr. Caio. Op. cit. p. 19123 SODRÉ, Nelson Werneck. Op. cit. p. 12324 PRADO JÚNIOR, Caio. Op. cit. p. 19025 HOLLANDA, Sérgio Buarque de. História Geral da Civilização Brasileira. A Época Colonial: administração,economia e sociedade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 1997, p. 21926 Cf. ANDRADE, Celeste Maria Pacheco de. Op. cit. p. 31-3227 Cf. SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Pecuária e formação do mercado interno no Brasil-Colônia. Estudos,Sociedade e Agricultura. Rio de Janeiro: 1997, n.º 8, p. 130

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Além do grande consumo pelas populações litorâneas, as grandes extensões de terras

não cultiváveis e a facilidade de se instalar uma fazenda criadora de gado28, a qual exigia

poucos recursos e mão-de-obra, enfim, um pequeno investimento, motivaram a implantação

de muitas fazendas e a conseqüente expansão da pecuária.

Com isso, os bandeirantes que se fixaram nessa região, viram na criação extensiva do

gado um fator de extrema importância para a ocupação e povoamento das terras conquistadas.

Dessa forma, com a chegada do bandeirante João Gonçalves da Costa na segunda metade do

século XVIII, o mesmo adota esse empreendimento como principal meio de efetivar a

instalação dos integrantes de sua bandeira por toda a região.

O bandeirante João Gonçalves da Costa, certamente morou no Arraial dos Poções,

onde nasceu o seu filho Manoel Gonçalves da Costa29. No entanto, instalaram-se no arraial o

seu cunhado: Timotheo Gonçalves da Costa, juntamente com os dois filhos: Bernardo e

Roberto Gonçalves da Costa iniciando o processo de povoamento dessa região, em finais do

século XVIII. Bernardo, inclusive, conforme registro do seu testamento já nasceu nos

domínios do Arraial dos Poções. Outro importante fazendeiro do arraial, é o filho natural de

João Gonçalves, Raymundo Gonçalves da Costa, este, se mostrou um exímio combatente dos

indígenas e fixa residência na Fazenda dos Morrinhos, distante sete quilômetros da sede do

arraial. A atividade econômica principal vai ser a criação do gado, que, juntamente com a

cultura do algodão e gêneros de subsistência vão compor o cenário econômico do colonizador

dessa faixa de terra do Sertão da Ressaca.

Uma das preocupações principais da bandeira chefiada por João Gonçalves da Costa é

sobrepor a resistência indígena, instalando fazendas de gado e núcleos habitacionais nos

lugares onde localizavam as aldeias, abrindo estradas que serviram de vias de comunicação

entre as diversas regiões da província da Bahia, conforme fez entre o Sertão da Ressaca e a

Capitania de Ilhéus, por onde transportou o primeiro lote de gado para aquela região: “(...)

Demarcou e abriu a estrada, que discorre a margem do Rio das Contas, donde a fez partir para

as villas da foz do mesmo rio, para Camamú e desta para todo o território das outras villas,

fazendo logo descer hum lote de gado, que foi o primeiro, que aquelles moradores virão

(...)”30. O gado criado nessa região; e, o que por aí passava, vindo das fazendas localizadas às

margens do Rio São Francisco era enviado a diversas localidades da província, sendo

28 Cf. PRADO JÚNIOR, Caio. Op. cit. p. 19329 Cf. Testamento de Manoel Gonçalves da Costa Arquivo da Primeira Vara Cível da Comarca de Vitória daConquista, Caixa Inventários nº 8 (1850-1859), sem catalogação.

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utilizado para o abastecimento dos açougues, para o transporte de madeira utilizado na

construção de navios, na Capitania de Ilhéus, além de sua aplicação na agricultura e o uso do

couro, artefato de grande utilidade na confecção de utensílios.

É por meio dessas atividades que o Arraial dos Poções vai se desenvolvendo durante

o século XIX. Assim, quando da passagem do príncipe austríaco Maximiliano de Wied-

Neuwied, que esteve em visita ao Brasil entre os anos de 1815 e 1817, faz a seguinte

observação: “Em breve achei-me no pequeno arraial de Poções, cujo vigário pareceu-me

grande apreciador de bebidas fortes, pelo menos a julgar pelo estado de completa embriaguez.

O lugar conta com uma dúzia de casas e uma capela feita de barro31. O arraial desenvolve

suas atividades econômicas, basicamente, centradas nas fazendas, visto que, àquela época era

um pequeno núcleo habitacional.

As fazendas que circundam o Arraial dos Poções desenvolveram formas de

reprodução da vida material específicas, principalmente, por meio da pecuária, atividade

econômica introduzida pelo colonizador na região. A produção agrícola, com o cultivo do

algodão, para a confecção artesanal de roupas para a população local, inclusive os escravos;

somados ao milho e o feijão, produtos constantes dos relatórios do príncipe Maximiliano;

assim como, o desenvolvimento de diversas atividades essenciais à vida da comunidade. Para

tanto, havia a utilização efetiva do escravo negro, agente presente em todos os inventários e

testamentos analisados, contribuindo de forma significativa para a produção material

necessária à vida dos moradores do arraial.

A expansão dos domínios de Rio de Contas, aos poucos, vais se tornando

imprescindível para a conquista de todo o sertão baiano: “Tanto é verdade que, 31 anos após

as descobertas das minas da Bahia, o processo de conquista e ocupação, junto com a criação

de gado e o plantio de roças, ainda se processava”32. Essa atividade é intensificada com o

início da escassez do ouro nas minas daquela região, assim como, a necessidade de se

encontrar novas minas e alternativas para o abastecimento de gêneros de primeira necessidade

para as pessoas que adentravam ao sertão. Uma das medidas adotadas pelos conquistadores

foi o estabelecimento de fazendas, onde se construíam os currais e ao redor dos mesmos

produzia-se os demais artigos necessários à sobrevivência. O que pudemos constatar em

30 Anais da Biblioteca Nacional, vol. 32, p. 53931 WIED-NEWIED, Maximiliano (princípe de). Viagem ao Brasil (1815-1817). Tradução de Edgar Sussekin deMendonça e Flavio Poppe de Figueiredo. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; 1989, p. 44532 VASCONCELOS, Albertina L. (1998). Ouro: Conquistas, Tensões, Poder. Mineração e Escravidão – Bahiado Século XVIII. Campinas: Unicamp; 1998, (Dissertação de Mestrado) trabalho não publicado. p. 227

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correspondência enviada ao rei de Portugal, datada de 28 de setembro de 1731, o vice-rei dava

notícias “sobre a conquista do Rio de Contas, afirmando que estava adiantada em mais de 80

léguas”33, descrevendo as formas pelas quais se processava tal expansão.

Estabelecer fazendas para a criação de gado e o cultivo de gêneros agrícolas

essenciais, se tornaram as principais atividades econômicas dos bandeirantes que se

instalaram nos domínios do Arraial dos Poções. Observamos a existência de uma quantidade

considerável de gado bovino, muar, eqüino e caprino em todos os inventários analisados,

dentre os maiores pecuaristas, se destacam: Raymundo Gonçalves da Costa 330 cabeças de

gado vacum, avaliados em 1.815$000 (um conto e oitocentos e quinze mil réis), em 1839;

Joana Maria da Graça com 82 cabeças, avaliadas em 927$000 (novecentos e vinte e sete mil

réis), em 1845; Rozaura Gonçalves da Costa, com 41 cabeças, no valor de 533$000

(quinhentos e trinta e três mil réis), em 1850; Joana Gonçalves do Espírito Santo, em 1898,

ainda conta com 22 cabeças de gado, dentre outros, no entanto, percebemos nessa época, a

introdução de uma nova atividade econômica, o café, que aparece neste inventário numa

quantidade de 1.300 pés, avaliados a hum mil réis cada, perfazendo um total de um conto e

trezentos mil réis, se constituindo no bem de maior valor desse inventário.

O gado era criado de forma extensiva, exposto aos ataques de animais ferozes e dos

índios. Estes viam no abate dos bois uma das formas de demonstrar o seu descontentamento

com a usurpação de suas terras empreendido pelos colonizadores. Os rebanhos viviam no

meio da mata sob olhares atentos de escravos, responsáveis diretos por seu pastoreio, segundo

observou o príncipe Maximiliano: “Uma das principais obrigações do vaqueiro é proteger os

rebanhos contra os animais carnívoros. Conhecem-se nessas solidões três espécies de grandes

felinos, que atacam os bois e os cavalos; são a onça pintada ou ‘jaguareté’, o ‘tigre’ preto, e a

onça vermelha ou ‘suçuarana’.”34 O próprio escravo era presa dos constantes ataques desses

animais e vítimas do perigoso trabalho de amansar os cavalos para o exercício de suas

funções, caso também relatado pelo príncipe da seguinte forma: “Os vaqueiros consideram

questão de honra domar assim os cavalos mais bravios, (...) algumas vezes perdem a vida,

acidente que não afeta muito o proprietário, seu senhor, pois trata-se apenas de um negro a

menos, de que ele não faz menor caso do que o gado.”35

33 Idem, p. 22734 WIED-NEUWIED, Príncipe de. Op. cit. p. 42335 Idem, p. 421

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11

Esse relato explicita o caráter de mercadoria atribuído ao escravo, especialmente o

vaqueiro, nesse caso, comparado a um boi, não apresentando nenhuma característica

sentimental ou racional, atributos do ser humano. O escravo vaqueiro é um dos

“profissionais” mais caros dentre os presentes no arraial, justificando, talvez, o peso de suas

responsabilidades, o valor monetário atribuído às suas habilidades, pois, o trabalho era um dos

mais perigosos: “Se o serviço dos vaqueiros é penoso e fatigante, em compensação passam

eles o resto do tempo na maior ociosidade, e dormem e descansam todo o dia. Comer e dormir

são as suas únicas distrações”36.

Não queremos negar com isso, a existência de conflitos entre senhor e escravo. O

tratamento desumano coexistiu no Arraial dos Poções nos moldes que nos habituamos a ler

em literatura específica. Isto fica claro, principalmente, pela existência de pelo menos um

quilombo na região: a Comunidade do Cinzento, localizado na zona rural do atual município

de Planalto, na época, área do Arraial dos Poções, a qual preserva muitas das características

do seu tempo.

Dentre os inventários analisados, um em especial nos chamou a atenção: o inventário

do padre Manoel Mendes da Costa, este, um dos primeiros padres a residir no Arraial, senão o

primeiro, conta com uma grande variedade de bens; sendo o único que consta de um canavial

de 50 braças em quadro, uma panela de alambique, o objeto mais caro do referido inventário,

avaliada por 32$000 (trinta e dois mil réis); com casas de morada no Arraial dos Poções na

Fazenda Pavão; 26 cabeças de gado vacum, cavalos, mulas, éguas; além de três escravos:

Julia, cabra de idade de quarenta e cinco anos avaliada em 700$000 (setecentos mil réis),

Dionisio, cabra avaliado em 1.000$000 (um conto de réis); e, um moleque de nome Antonio,

cabra avaliado também por 1.000$000 (um conto de réis), sendo estes, os escravos mais caros

dos relacionados nos inventários analisados.

O bandeirante João Gonçalves da Costa, contando com o auxílio dos demais membros

de sua bandeira, bem como, a participação de escravos negros e os índios submetidos ao jugo

colonizador; foi, sem dúvida o responsável pela conquista do Arraial dos Poções no Sertão da

Ressaca, e transformou-se em grande proprietário de terras, criador de gado, além de

cultivador de algodão, outra atividade importante na região, como ressaltou Caio Prado

Júnior: “O interior mais remoto também se aproveita da preferência do algodão por climas

secos. (...). Ela abrange, (...) a área que se estende a leste do Rio São Francisco,

36 Ibidem, p. 422

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compreendendo a Serra do Monte Alto, Rio de Contas, Gavião e Conquista, com centro

principal em Caetité.37

A cultura algodoeira e a pecuária, juntas, formavam as principais atividades

econômicas do Arraial da Conquista, no início do século XIX, contribuindo para a fixação do

colono na região e a inserção desta na economia colonial. O Arraial dos Poções se encontra a

partir de 1810 sob a jurisdição da Vila de Santa Ana do Príncipe de Caetité, quando esta foi

elevada à categoria de vila; e, a partir de 1840, passa a pertencer à Imperial Vila da Vitória,

antigo Arraial da Conquista; e, não raro, há registros de algodão e artefatos utilizados no

beneficiamento do mesmo em diversos inventários e testamentos analisados, bem como, o

registro de dívidas de determinada quantidade de algodão, dando a entender, que o algodão,

talvez, servisse como padrão de medida entre as trocas realizadas pelos fazendeiros da região.

A interação dessas atividades: pecuária bovina, cultura do algodoeira, além, da

agricultura de subsistência vão se constituir em elementos essenciais, propulsores da dinâmica

interna da produção econômica da região, possibilitando a fixação dos bandeirantes no Arraial

dos Poções e fazendas circunvizinhas, contribuindo significativamente para a criação dos

primeiros núcleos habitacionais, expandindo-se; e, posteriormente, dando origem às diversas

cidades que compõem grande parte do que é conhecido atualmente, como região Sudoeste da

Bahia.

O Arraial dos Poções, transformado em vila em 1880, deu origem a diversos

municípios da região, como: Ibicuí, Iguaí, Nova Canaã, Planalto, Boa Nova, Bom Jesus da

Serra, Caetanos e Mirante, dentre outros, sendo reduzido a pouco mais de dez por cento da

sua área original. No entanto, para se estruturar aí a urbanização foi necessário dizimar um

grande número de povos indígenas, levando-os ao completo extermínio. Os poucos que

restaram, viveram pelas matas do município até princípios do século XX, conforme registros

de Raimundo Meira Magalhães: “Os restantes pataxós e botocudos que até o ano de 1925

perambulavam pelas matas do município, retiraram-se para os lados do rio Pardo, onde foram

reduzidos sobre a proteção do Posto Indígena que para tal fim mantém o governo federal.”38

Dessa forma, instituiu-se no arraial a empresa colonial européia, como mais uma das etapas

de expansão do capital internacional, do cristianismo, representando pelo catolicismo em

detrimento da destruição das formas de vida e cultura aí existentes, praticada pelo indígena.

37 PRADO JÚNIOR, Caio. Op. cit. p. 14838 MAGALHÃES, Raimundo M. Monografia histórica do município de Poções. (Trabalho datilografado, sempublicação), s/d, p. 4

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Estudos como esse, servem para demonstrar a integração dos arraiais e vilas do

interior no desenvolvimento da história do Brasil; e, que a mesma não aconteceu de forma

isolada, contribuindo inclusive, para desconstruir diversos mitos que foram criados acerca da

história local, sendo que, “a ausência de estudos dessa natureza permite o surgimento de

explicações míticas sobre a história local, transmitidas de geração em geração”39. Como

acontece no município de Poções, que, carente de trabalhos científicos, cultiva a tradição oral,

cheia de mitos, lendas e histórias fantasiosas acerca dos diversos aspectos inerentes à

formação histórica da localidade.

39 SOUSA, M.ª Aparecida S. de. Op. cit. p. 163

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REFERÊNCIAS BILBIOGRÁFICAS E FONTES DOCUMENTAIS

FONTES MANUSCRITAS

Arquivo da 1ª vara cível de Vitória da Conquista (não catalogados) seção judiciário

• Inventário de Rozaura Gonçalves da Costa Caixa Inventários nº 8 (1850-1859)• Inventário de Raymundo Gonçalves da Costa Caixa Inventários nº 1 (1801-1832-/1834-1839)

• Testamento de Manoel Gonçalves da Costa Caixa Inventários nº 8 (1850-1859)• Inventário de Joana Maria da Graça Caixa Diversos nº 5 (1844-1846)• Inventário do Padre Manoel Mendes da Costa Caixa Inventários nº 6 (1846)

Arquivo da vara cível da Comarca de Poções (não catalogados) seção judiciário

• Inventário de Joana Gonçalves do Espírito Santo (1898)

Arquivo Nacional da Torre do Tombo, PortugalBrasil Avulsos• Carta ao Desembargador e Ouvidor de Ilhéus Francisco Nunes da Costa para o governo

interino da Bahia• Carta ao Desembargador e ouvidor de Ilhéus aos Exmos. Governadores (06 de agosto de

1783)

Arquivo Histórico Ultramarino, Portugal(Fundo Castro e Almeida)• Carta Patente de Capitão da Conquista do Gentio Bárbaro do Sertão da Ressaca Doc. nº

25.107• Carta Patente de capitão-mor da Conquista do Sertão da Ressaca Doc. nº 22.989

RELATOS COLONIAIS E DOCUMENTOS IMPRESSOS

Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Inventário dos documentos relativos aoBrasil existentes no Arquivo de Marinha e Ultramar de Lisboa. Bahia, v. XXXI (1909),XXXII (1912), XXXVII (1918)

WIED-NEWIED, Maximiliano (príncipe de). (1989). Viagem ao Brasil (1815-1817).Tradução de Edgar Sussekind de Mendonça e Flávio Poppe de Figueiredo. São Paulo: Editorada Universidade de São Paulo (Coleção Reconquista do Brasil, 2. Série, vol. 156)

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LIVROS ARTIGOS E DISSERTAÇÕES

ANDRADE, Celeste Maria Pacheco de. Origens do Povoamento de Feira de Santana: umestudo de história colonial. Salvador: UFBA; 1990, (Dissertação de Mestrado), p. 18-49

ARAÚJO, Emanuel. Tão Vasto, Tão Ermo, Tão Longe: O Sertão e o Sertanejo nos TemposColoniais, in: PRIORE, Mary Del (org.). Revisão do Paraíso: os brasileiros e o Estado em 500anos de história. Rio de Janeiro: Campus; 2000, p. 47-91

BELMONTE. No Tempo dos Bandeirantes. São Paulo: Melhoramentos; 1998, p. 22-228

CALMON, Pedro. (1929). A Conquista: História das Bandeiras Bahianas. Rio de Janeiro:Imprensa Nacional; 1929, p. 5-190. (These de concurso à cadeira de História do Brasil daEscola Nacional do Rio de Janeiro).

HOLLANDA, Sérgio Buarque de. História Geral da Civilização Brasileira. A Época Colonial:administração, economia e sociedade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 1997, p. 177-310

MAGALHÃES, Raimundo M. Monografia histórica do município de Poções. (Trabalhodatilografado, sem publicação), s/d,

MERCADANTE, Paulo. (1973). Os Sertões do Leste. Estudo de uma região: a mata mineira.Rio de Janeiro: Zahar Editores; 1973, p. 15 - 133

PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense,Publifolha (Grandes Nomes do Pensamento Brasileiro); 2000, p. 9-198

SILVA, Sylvio C. Bandeira de Mello. Urbanização e metropolização no Estado da Bahia:evolução e dinâmica. Salvador: Centro Editorial e Didático da UFBA; 1989, p. 73-117

SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Pecuária e formação do mercado interno no Brasil-colônia. Estudos, Sociedade e Agricultura. Rio de Janeiro; 1997, n.º 8, p. 119 - 156

SOUSA, Maria Aparecida Silva de. A Conquista do Sertão da Ressaca: Povoamento e Posseda Terra no Interior da Bahia. Belho Horizonte: UFMG; 1998. (dissertação de mestrado, obraainda não publicada)

SODRÉ, Nelson Werneck. Formação Histórica do Brasil. São Paulo: DIFEL; 1982, p. 59 -139

VASCONCELOS, Albertina L. Ouro: Conquistas, Tensões, Poder. Mineração e Escravidão –Bahia do Século XVIII. Campinas: Unicamp; 1998, p. 227 (dissertação de mestrado, obra nãopublicada)

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TROPAS E TROPEIROS NO SERTÃO DA BAHIA

Idelma Aparecida Ferreira Novais40; Maria Aparecida S. de Sousa41

O tropeirismo se desenvolveu no Brasil a partir do século XVII. Foi na mineração que essa prática cresceu,

assumindo a importância e o dinamismo do mercado abastecedor. Os difíceis acessos da região das Gerais

exigiam um tipo de animal que fosse resistente, que percorresse e suportasse as enormes distâncias, com terrenos

íngremes e ainda com o peso das cargas que buscavam suprir as inúmeras carências das populações locais.

Com a expansão da pecuária e a penetração do vasto interior do território nordestino, se ampliou a

atividade exercida pelo tropeirismo: desenvolvendo-se inicialmente nas áreas litorâneas, na região mineradora e

no sul do País, aos poucos se espalhou pelo interior do Nordeste, acompanhando a precariedade das locomoções

de comunicação regional, pois onde havia povoados, lá estava o tropeiro, figura indispensável para a superação

das dificuldades que obstaculizavam os contatos locais naqueles tempos difíceis, representando não apenas a

fonte de aquisição de mercadorias como também de informações.

Tal atividade consistia em abastecer as vilas, povoados e lugarejos com mercadorias

vindas de lugares distantes para atender as necessidades das pessoas: desde produtos

utilizados no abastecimento: carne, farinha, arroz, feijão; como também para uso geral

(ferramentas) e até mesmo produtos importados (tecidos). A intensidade e variedade das

trocas proporcionavam uma integração comercial entre regiões anteriormente privadas desse

intercâmbio, possibilitando a diminuição das distâncias características de áreas com

povoamento disperso. A tropa, normalmente formada por lotes de 10 a 12 animais, muares e

burros, é que conduzia as mercadorias, sendo guiada pelos tropeiros, homens que

protagonizaram mudanças significativas na paisagem sertaneja ao longo de dois séculos e

meio.

A origem da palavra tropa é imprecisa. Rogich Vieira acredita que o termo tenha sentido americanizado,

provindo das colônias hispânicas, principalmente Peru e Argentina. Para ele, no Brasil a palavra sofreu algumas

adaptações de acordo as regiões, sendo que nas áreas centrais teve o seu significado restringido, designando

apenas tropa de muares assínios, já para o Norte e Nordeste a tropa seria o “comboio” e o tropeiro unicamente o

“comboeiro”42. Para Aluísio de Almeida, a tropa tanto poderia se constituir de cavalos, bois, muares como

também de porcos, acrescentando a tudo isso a idéia de rebanho em marcha para a feira ou matadouro.

40 Aluna do Curso de História da UESB. E-mail: [email protected] Orientadora. Professora do Departamento de História da UESB. E-mail: [email protected]

42 VIEIRA, Rogich, A Feira de Muares de Sorocaba. IN. BONADIO, Geraldo. O tropeirismo e a formação doBrasil. Academia Sorocabana de Letras; Fundação Ubaldino do Amaral: Skol/Momesso/Caracu. 1984, p. 27-32

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Alguns historiadores divergem quanto à identificação do tropeiro. Para Licurgo Santos Filho e Paulo

Mercadante43, o tropeiro é aquele que detém a posse dos animais. Outros, como João Dornas Filho44, afirmam

que o tocador e o dono da tropa é a mesma pessoa, colocando ainda a função do tropeirismo como sendo uma

profissão, sendo o tropeiro prático e honrado nos negócios. Alcir Lenharo afirma que o tropeiro é o negociante

de tropas “solta” ou “carregada”, ou ainda “aquele que vive de negócio”, nesse caso tropa é composta por

animais carregadas ou soltas à serem negociados45. Neste trabalho o que é considerado o tropeiro é o tocador da

tropa, é aquele que vive a prática do tropeirismo, e por este está em contato direto com os animais e mercadorias,

exercendo realmente o trabalho, também porque o dono da tropa participava igualmente do trabalho.

***

O gado foi o responsável direto pela abertura das primeiras estradas do sertão. Segundo o Príncipe

Maximiliano, no Sertão da Ressaca – área que atualmente corresponde ao Planalto da Conquista e por onde

circulavam numerosos rebanhos – o bandeirante João Gonçalves da Costa, preocupado com o isolamento

daquela região, usou recursos próprios para a abertura de estradas, ainda em princípios do século XIX, sendo

amplamente apoiado pela coroa portuguesa que, no entanto, ainda não o havia ressarcido pelos empreendimentos

feitos46.

A abertura de estradas no Sertão da Ressaca teve um forte impacto no cenário regional

pois propiciou o desenvolvimento de povoados, dos transportes e das comunicações dessa

área com outros lugares como o litoral e a capital. As principais estradas seguiam os cursos

dos rios e João Gonçalves da Costa aparece como um dos pioneiros nessa empreitada haja

vista que

já que era experiente explorador dos rios daquela área,

como por exemplo o Pardo (...) Em outras palavras,

pode se afirmar que ele foi fundamental na ruptura do

isolamento do Sertão da Ressaca e adjacências47.

43 Ver respectivamente SANTOS FILHO, Licurgo. Uma Comunidade Rural no Brasil Antigo: Aspectos da vidapatriarcal no Sertão da Bahia nos séculos XVIII e XIX. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1956 eMERCADANTE, Paulo. Os Sertões do Leste: Estudo de uma Região – a mata mineira. Rio de Janeiro: Zahar,1973.44 DORNAS FILHO, João. Tropas e Tropeiros, da Academia Mineira de Letras.45 LENHARO, Alcir. As Tropas da Moderação: o abastecimento da Corte na formação política do Brasil –1808-1842. São Paulo: Símbolo, 1979.46 WIED- NEUWIED, Maximiliano. Viagem ao Brasil (1815-1817). Rio de Janeiro: Companhia EditoraNacional, , p. 439.47 SOUZA, Maria Aparecida S. A Conquista do Sertão da Ressaca: povoamento e ocupação de terra no interiorda Bahia. Belo Horizonte: UFMG. 1998 (Dissertação de Mestrado) p. 79-80.

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Essa preocupação com a abertura e também conservação de estradas pode se perceber

ainda no Código de Posturas de 1842 da então Imperial Vila da Vitória (hoje cidade de

Vitória da Conquista) que em seu artigo 20 determina:

Todo o proprietário, ou pessoa que tiver terra junto das

estradas e caminhos públicos, he obrigado a tel-as

limpas, e desramadas. Pena 10$000 reis, ou oito dias de

prizão.

Na mesma pena incorrerão os que não conservarem as

estradas, que passarem por suas terras, limpas e sem

ramagens, que embaracem o transito público48.

Além da criação de gado – fonte de renda para os sertanejos – havia também a de muares, cavalos e burros

que também contribuíram para impulsionar o mercado interno, revelando uma atividade rendosa e significativa

para os criadores e comerciantes. A nível nacional, um exemplo desse comércio é a famosa feira de Sorocaba,

referência em todo o país e ponto de encontro de tropeiros e fazendeiros oriundos de várias regiões do Brasil, em

busca dos melhores animais e dos menores preços.49

Os tropeiros foram os responsáveis diretos pela entrada dos cavalos e muares no Brasil. Segundo Rogich

Vieira, os tropeiros do sul traziam esses animais principalmente da Argentina, do Uruguai, e também do Rio

Grande do Sul e de Santa Catarina, pois estes eram tidos como os melhores para o transporte de carga. Segundo

ele, desde a década de 1750, a Coroa Portuguesa arrecadava impostos sobre a entrada e a circulação de animais

no Brasil. Isso já garantia um bom lucro para a máquina administrativa, como também para enriquecer o

mercado e os comerciantes. A compra e venda desses animais, e também para o pagamento do imposto, eram

facilitadas, uma vez que, era feito em “espécie de duplicatas” que possibilitava o parcelamento do pagamento

em um ou dois anos conforme contrato assinado. Quando o tropeiro necessitava do dinheiro, trocava a duplicata

e, mesmo perdendo alguns juros, usufruía do dinheiro para a compra de mercadorias que satisfaziam suas

necessidades imediatas50.

Os cavalos e muares eram vendidos para as montarias e para o transporte de cargas. O mais vendido era o

muar, e o seu preço era de acordo a sua qualidade. As “bestas florão” e as “berros grossos” eram os mais caros,

de qualidade excepcional; já os “refugos”, os “alcaides” eram animais ruins e difíceis de vender por serem

fisicamente debilitados. Tinham ainda os “burros xucros”, não domados, os “tambeiros” e “cargueiros”, animais

dóceis e mansos e o “fuá” animal preguiçoso. Para cada tipo de animal, o tropeiro, o comerciante e o comprador

identificavam-no de acordo as suas qualidades e funções51.

48 Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB). Código de Posturas da Câmara Municipal da Imperial Villa daVitória, 18 de maio de 1842.49 SANTOS FILHO, Licurgo. Op. Cit., p. 248.50 VIEIRA, Rogich. Op. Cit.1984, p. 32-34.51 VIEIRA, Rogich. A Princesa dos Tropeiros. Sorocaba, SP – ELU (Editora Literatura Universal), 1972, p.11,12,17, e 69.

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Ao longo das estradas se dava a fixação de ranchos, em que os tropeiros, viajantes e

boiadeiros pernoitavam, gerando assim, um pequeno comércio, tendo a venda como o

principal ponto. O rancho também era o responsável pelo surgimento de lugarejos que

posteriormente se tornariam vilas e cidades, como é o caso de Jequié, uma vez que a região

era área de pouso, de engorda e de criação de bovinos52.

Conforme verificamos através da documentação e dos depoimentos coletados com ex-

tropeiros do Sertão da Ressaca, o caminho utilizado pelos mesmos de Vitória da Conquista a

Jequié incluía o povoado Lagoa da Pedra (atual Itaipu), Inácio (hoje pertencente ao município

de planalto), Mamoneira, Manoel Roque (atual Manoel Vitorino), Buscavile, seguindo Lagoa

da Pedra de Nênego (integrantes do município de Manoel Vitorino), Rodeador, Castanhão e,

por último, Jequié. Este percurso levava sete dias com as devidas paradas nos pousos ao longo

do trajeto. A Estrada Real de Poções que ligava Vitória da Conquista a Poções não era

utilizada pelos tropeiros, a não ser que fossem diretamente até Poções, pois era um percurso

longo e penoso53.

Além desses lugares, os tropeiros oriundos de Lagoa da Pedra percorriam também

Encruzilhada, Brumado, Caetité, Rio de Contas, Jequié e Itaji. Para realizar esses trajetos e os

fretes, às vezes ficavam até meses fora de casa, mas sempre retornavam com encomendas e

notícias variadas .

A área de abrangência desses tropeiros estendia-se por outras cidades fora do roteiro já

mencionado. O ex-tropeiro José Ribeiro de Carvalho, por exemplo, residia em Iguaí e viajava

para Poções, Ponte de Astero (em Ibicuí), Itabuna, Ilhéus. Manoel Pereira da Silva, residente

em Anagé, viajava para Mata verde (Minas Gerais), Taboa dos Alves, Candeal, Condeúba e

Jequié.

Na margem das estradas se erguiam vendas e ranchos para atender as necessidades dos

viajantes e tropeiros. Os ranchos geralmente ficavam em alguma fazenda e sua estrutura era

simples, apenas um barracão com telhado e meia parede. No local os tropeiros descarregavam

as mercadorias e as protegiam contra possíveis chuvas. O ex-tropeiro José Ribeiro de

52 ARAÚJO, Emerson Pinto de. Capítulos da História de Jequié. Salvador: EGB editora, 1997, p. 48-49.53 Conforme depoimentos dos ex-tropeiros Ivan Alves Ferreira, Ivo Alves sobrinho e Sandoval Pereira deOliveira, alguns nomes sofreram alterações, mas outros permaneceram com a mesma denominação oferecidapelos tropeiros. O rancho que ficava na Cachoeira de Manoel Roque é o mesmo citado pelo PríncipeMaximiliano quando este esteve na região e se hospedou ali. WIED- NEUWIED, Maximiliano. Op. Cit., p. 447

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Carvalho afirma que, às vezes, a rancharia tinha muita tropa e quando isto ocorria, quem ia

chegando por último ia ficando no “tempo”54.

Quando não tinha rancharia com uma estrutura coberta, o tropeiro armava sua própria

barraca, que carregava junto com as mercadorias. Segundo seu Sandoval Pereira de Oliveira,

para armar a tolda, fazia-se uma vala no chão para isolar o terreno da enxurrada da chuva,

colocava quatro paus e cobria com couro para proteger a mercadoria. Para dormir, o chão

também era coberto com couro55.

As estradas que ligavam os lugares de rota dos tropeiros, no inicio do século XX, ainda

se caracterizavam por caminhos estreitos, obrigando a tropa a andar em fila. Caminhos muitas

vezes cheios de galhos que machucavam os animais e danificavam as mercadorias. Essas

estradas, de acordo com a sua localidade, nas regiões de clima seco e de caatinga como

Jequié, Anagé, Condeúba, Itaji, Caetité, entre outras, eram de difíceis acesso devido à falta

d’água, principalmente em épocas de secas prolongadas. Os animais tinham que andar

devagar e com menos peso do que o habitual, pois o sol quente os desgastavam mais. Já a

região de Poções, Ponte de Astero (em Ibicuí), Iguaí, Itabuna, Ilhéus, a dificuldade encontrada

pelos tropeiros era a chuva, que era constante nessa área, elevando o nível das águas do rio

Pardo o que obrigava os tropeiros a permanecerem no pouso durante cinco a sete dias até que

o nível do rio voltasse ao normal.

O Príncipe Maximiliano relata sobre a presença de salteadores nas estradas das margens

do rio Gavião, representando perigo para viajantes e tropeiros, que a preferiam por ser mais

curta, porém perigosa56. Já nas primeiras décadas do século passado, os ex-tropeiros que

andavam por essas estradas da região, dizem não tem sofrido roubo ou outro tipo de violência

por salteadores pelos caminhos, indicando uma certa diminuição da violência nesses locais. O

ex-tropeiro José Ribeiro de Carvalho conta que não se preocupava com isso, e que o único

perigo que enfrentavam era o fato de:

Às vezes chegava um camarada com uma surraca57 nas costas, ... eles pedia o arrancho ... aí

a gente falava assim, “que saqueiro tinha que durmir marrado”... que ficava com medo de

saqueiro, ... tinha aquela cisma58.

54 Entrevista com o ex-tropeiro José R. de Carvalho, em 31 de dezembro de 200155 Entrevista com o ex-tropeiro Sandoval P. de Oliveira, em 27 de janeiro de 2002.56 Op. Cit., p. 439.57 Surraca, saco usado nas costas pelo viajante58 José Ribeiro de Carvalho, ex-tropeiro, Op. Cit.

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Os tropeiros enfrentavam muitas dificuldades em seu cotidiano. Eram longas caminhadas, tocando os

burros e em constante estado de alerta para que nada de errado pudesse acontecer e machucar um animal ou

danificar as mercadorias. O trabalho era árduo e a disciplina rigorosa: levantavam cedo, arriavam os animais e

seguiam rumo ao seu destino.

Para aparelhar a tropa, utilizava-se arreio em couro, resistentes para agüentar o peso das cargas e o

movimento dos animais. Era necessário ajustar bem a mercadoria no animal, para que ela não quebrasse,

perdesse ou estragasse.

A cangalha era um elemento importantíssimo, pois era nela que a mercadoriaseguia segura. Era feita toda em madeira e, depois de colocada no animal, instalavam-se asbruacas, confeccionadas em couro, para não danificar a mercadoria e compostas com umatampa, também em couro, em cada lado da cangalha. As mercadorias e o peso deveriam seriguais em cada bruaca para que houvesse um equilíbrio, facilitando o transporte. Parareforçar a segurança, colocava-se um couro por cima da cangalha e da bruaca visandoproteger as mercadorias sobretudo no período de chuvas.

Depois de arriada, a tropa era organizada para seguir viagem. Eraornamentada e os animais recebiam guizos, gongolos, chocalhos. O madrinheiro59 puxava atropa e os demais o acompanhava. Segundo os ex-tropeiros, quando chegavam em umacidade ou em uma vila, o barulho dos guizos atraía a população local e eram recebidos comfesta e entusiasmo após uma longa viagem de trabalho.

Os animais exigiam um cuidado especial, tanto com a alimentação como tambémo preparo físico, pois além de caminharem longas distâncias, ainda carregavam peso de até120 quilos, subindo e descendo ladeiras. Na seca o cuidado era redobrado devido à faltad’água e o calor que desgastavam sensivelmente o animal. As doenças dos animais eramtratadas pelos próprios tropeiros. As mais comuns eram a dor de barriga, geralmentecausada por planta venenosa, e tratada com garrafadas e com rezas; Já a pisadura,provocada pelo atrito de cangalhas e outros ferimentos, eram tratados com toucinhos quentese repouso.60

Os burros eram animais ariscos e alguns apresentavam hábitos que dificultavamo trabalho do tropeiro, principalmente na hora de recolhê-los na manga, quando escondiamou fugiam. Sobre isso, o ex-tropeiro Ivan Alves conta que

Não deixava de num apresentar uma mania.. Tinha uma mesmo que todo dia que ...Arriava ela duas vezes durante a viagem ... Ela fazia de tudo pra derrubar ... pulava, caia,deitava, rolava pelo chão. Aí, tinha que consertar e só assim ela seguia viagem61.

Os tropeiros percorriam os vastos sertões abastecendo as feiras. Mas, em muitoscasos, iam de fazenda em fazenda, suprindo as vendas que existiam pelos caminhos; levandoas encomendas feitas pelos vendeiros. José Ribeiro de Carvalho, afirma que as feiras erampoucas e pequenas, e que existia mesmo era muitas vendas pelo interior que eles percorriamatendendo os pedidos dos vendeiros62.

59 O madrinheiro seguia à frente da tropa, sempre enfeitado, e tanto podia ser uma pessoa, um cachorro ou umburro.60 DORNAS FILHO, João, Op. Cit., p. 113 e relatos dos ex-tropeiros.61 Entrevista com o ex-tropeiro Ivan Alves Ferreira, em 31 de março de 200262 Entrevista com o ex-tropeiro, em 31 de dezembro de 2001

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Segundo alguns autores, como Alcir Lenharo, Adolfo Friori, Rogich Vieira,Licurgo Santos Filho, os tropeiros pagavam impostos e pedágios tanto pelos animais,mercadorias e pela passagem em alguns lugares, principalmente no Sul do Brasil. No Sertãoda Ressaca, porém, não temos registros de que esse tipo de imposto tenha sido praticado,pelo menos na documentação consultada até o momento.

Para esses tropeiros, uma das principais localidades de aquisição demercadorias era a cidade de Jequié que, nas primeiras décadas do século XX, tornou-se umimportante centro comercial, pois todos os comerciantes para ali se dirigiam em busca doscobiçados produtos vindos da capital através de trem, ou dali seguiam diretamente paraSalvador realizar suas compras e no retorno à Jequié, as tropas encarregavam detransportar as mercadorias até o seu destino.

Os tropeiros, além de procurarem nos armazéns os fretes que precisavam serfeitos, já possuíam os fregueses certos na região onde moravam e viajavam. Geralmentevendeiros que faziam encomendas para o comércio local. O Senhor Manoel Pereira da Silvaexplica que as feiras que tinham naquele tempo, início do século XX, eram poucas epraticamente só existiam nas cidades. Desse modo, nos lugares mais afastados da zonaurbana, o comércio era efetuado pelos vendeiros e fazendeiros, suprindo o consumo dasfazendas e dos moradores próximos, evidenciando a presença de um núcleo populacional aoredor das vendas. Conforme afirma Senhor Sandoval Oliveira: “E era... era cheio de venda,nas estrada tudo”63.

Na prática do tropeirismo, havia uma troca de produtos do campo para a cidadee vice-versa. Assim, na ida às cidades, o tropeiro geralmente levava produtos de subsistênciacomo carne seca, toucinho, feijão, farinha, milho, algodão e outros produtos como pedra deamolar, forno de fazer farinha, pedra de forno etc. Na volta, traziam mercadorias que nãoexistiam na região como também encomendas para os vendeiros do lugar como açúcar,rapadura, querosene, sal, roupas, tecidos, tijolo, café, sabão, peixe e até cerveja. A troca deprodutos variava de acordo a necessidade do lugar. O pagamento por essa mercadoria e pelofrete era sempre em dinheiro.

A produção da mercadoria para a comercialização era feita na própria fazendado tropeiro. Plantava feijão, mandioca e criava o gado. Em toda fazenda existia a casa defarinha. A mandioca era colhida e enviada para a casa de farinha, aí as mulheres raspavam,moíam, transformavam em massa e era levada para a prensa, retirada a água para depoislevar ao forno para torração. Depois era só ensacar, carregar os burros e comercializar. Damandioca retirava a puba e o polvilho, que eram bons para o preparo de bolos e biscoitos,não podia faltar o beiju de massa. Todo esse processo era manual.

Para o preparo da carne seca, levava um certo tempo, de 03 a 04 dias. Aprodução era muita. Matava-se de 08 a 10 vacas. Seu Ivan Alves Ferreira afirma que asvacas tanto podiam ser da própria criação como adquiridas na região. 02 ou 03 pessoaspassavam o dia e a noite observando a carne para que nenhum imprevisto ocorresse. À noitefazia-se a fogueira e dormiam no estaleiro, revezando a dormida, enquanto um dormia ooutro vigiava.

A vestimenta do tropeiro era simples: camisa de algodão e calça. Para calçarusava os chinelos (“precatas”) de couro, que eram mais confortáveis para andar. O chapéude couro era indispensável e, de acordo com José R. de Carvalho, não só para proteger dosol, mas também para transportar as agulhas, que ficavam pregadas nas abas dos chapéus,para costurar os sacos dos cereais durante a viagem e não derramá-los caso rasgassem pelocaminho. 63 Op. Cit.

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O acesso ao banho durante as viagens era bastante difícil. Geralmente o tropeirorecorria aos tanques e rios que existiam perto do pouso, quando nadavam ou utilizavam umvasilhame para jogar água sobre o corpo. Isso tudo era ao ar livre, já que não existiaestrutura mínima para as necessidades higiênicas. Nos períodos de seca, os banhos nãoocorriam com a mesma freqüência. Os homens ingressavam no tropeirismo bastante cedo. Aos 12, 13, 15 anos, desde que

suportassem as agruras do ofício. Nesse caso, dois meninos acompanhavam o tropeiro, pois os

dois juntos podiam ajudá-lo a colocar as bruacas na cangalha. As duas cangalhas deveriam ser

postas ao mesmo tempo no muar para que não houvesse acidentes nem com o animal e nem

com as mercadorias.

No Sertão da Ressaca as tropas familiares ou independentes, como era o caso de José Ribeiro de Carvalho,

que tinha sua própria tropa, mas não possuía propriedade rural, viajavam levando frete de um lugar para o outro.

Porém, existia também uma estrutura mais comercial de tropas, ou seja, firmas que alugavam-nas ou

encarregavam-se dos fretes. De acordo com Emerson Pinto de Araújo, em Jequié, todo frete era feito por tropas e

o preço era elevado pelo transporte, além da responsabilidade sobre as mercadorias. Rotordando, que já possuía

um armazém, também não demorou muito para formar a própria firma de tropas, muito bem equipada com 120

bestas64. Mesmo existindo essas firmas, a estrutura familiar do tropeirismo foi a que prevaleceu na região.

***

O tropeiro, além de homem de negócios, comerciante, assumia outras funções,principalmente como difusor de noticias, além de intercambiar bilhetes, cartas, recados e osúltimos acontecimentos dos lugares visitados. Quando a tropa chegava, todos queriam saberdas informações. Desse modo, as tropas funcionavam como correios, e os motivos não eramapenas pela demora no recebimento das notícias através de outros meios, masprincipalmente pela confiança que as pessoas depositavam nos tropeiros, pois O tropeiro erageralmente muito conhecido na vila, reconhecido como pessoa de bem que, vivendo destetrabalho, tornava-se credor de grande confiança e estima dos comerciantes65.

Um outro aspecto interessante e que merece ser mais bem investigado é aparticipação feminina, direta ou indiretamente, no universo do tropeirismo. Nos estudosconsultados sobre o tema, pouca ou nenhuma referência é feita. Embora a maioria dos ex-tropeiros entrevistados tenha afirmado que inexistiam mulheres exercendo esta função, pois,segundo eles, não agüentariam a sobrecarga de trabalho e as difíceis jornadas que otropeirismo exigia, os ex-tropeiros José Ribeiro de Carvalho e Sandoval Pereira de Oliveirapresenciaram mulheres atuando como condutores de tropa, acompanhantes e mesmoproprietárias de animais de carga, ainda que fosse bastante raro. O Senhor Sandoval diz queviu duas ou três e que

64 Op. Cit., p. 64.65 FONSECA, Humberto José & SILVA, Danilo M. da. Povoamento, Abastecimento e Cotidiano: Conquista nosséculos XVIII e XIX. IN. FONSECA, Humberto José (Org.). História e Cotidiano no Planalto da Conquista.Vitória da Conquista: Museu Regional de Vitória da Conquista/ UESB, 1998 (Memória Conquistense n 3, p.143.)

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Era a mesma mulher assim, ajeitava, botava umchapéu e tocava o lote. Panhava uma taca e saia batenoe levava. Agora outros é que ajudava botar a carga, queelas não agüentava,( e) carregava o lote66.

Como Maria Isaura Pereira de Queiroz67 ressalta, a mulher no sertãotrabalhava e assumia as mesmas tarefas destinadas ao homem. No que se refere às mulheresde tropeiros, elas ocupavam as funções anteriormente sob a responsabilidade dos maridos,quando estes seguiam viagem e ficavam até meses fora de casa. Ivan Alves Ferreira Contaque Benedita Alves Ferreira, sua mãe, tomava conta de tudo quando o marido viajava:cuidava da administração da fazenda, orientando o trabalho com a criação, da roça, da casade farinha e da casa, isso para que a produção não parasse68.

Pelo que pudemos constatar, a prática do tropeirismo no Sertão da Ressacavigorou até meados do século XX quando os animais de carga foram substituídos por outrosmeios de transporte favorecidos pela construção de novas estradas, principalmente a Br 116(Rio-Bahia), e provocando outras mudanças na paisagem sertaneja.

66 Entrevista, Op. Cit.b67 QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Os Cangaceiros. São Paulo: Duas Cidades, 1977, p. 3868 Entrevista, Op. Cit.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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DEPOIMENTOS COLETADOS:

Entrevista com o ex-tropeiro Idalino Ribeiro dos Santos. Itaipu, Vitória da Conquista, 20 desetembro de 2000.Entrevista com o ex-tropeiro José Ribeiro de Carvalho. Barra do Choça, 31 de dezembro de 2001.Entrevista com o ex-tropeiro Manuel Pereira da Silva. Itaipu, Vitória da Conquista, 02 dejaneiro de 2002.Entrevista com o ex-tropeiro Ivan Alves Ferreira. Itaipu, Vitória da Conquista, 03 de janeirode 2002.Entrevista com o ex-tropeiro Sandoval Pereira de Oliveira. Itaipu, Vitória da Conquista, 27 dejaneiro de 2002.

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