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82 CDD. 18. ed. 152.3 613.707 DESENVOLVIMENTO MOTOR: IMPLICAÇÕES PARA A EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR I Edison de Jesus MANOEL* RESUMO Este ensaio apresenta conceitos básicos de desenvolvimento motor e suas implicações para a educação física escolar. A partir da discussão do significado do movimento para os sistemas vivos argumenta-se sobre a necessidade de uma melhor compreensão 3o "movimento como uma forma básica pela qual a interação ser humano-ambiente ocorre. A sequência de desenvolvimento motor é discutida como fonte de informações para estruturação de programas de atividade motora e para a formulação de teoria. Vários modelos de sequência são analisados e suas implicações para a pesquisa e atuação são discutidas. Maturação é vista como indissociável da experiência na sequência de desenvolvimento. A organização do sistema nervoso necessita de estímulos específicos do ambiente e a educação física escolar pode atuar como elemento facilitador desse processo. Movimentos fundamentais são discutidos a partir de duas maneiras em que a orientação ao produto e ao processo pode ser entendida: resultado do movimento vs. forma do movimento; eficiência vs. competência. UNTTERMOS: Desenvolvimento motor; Educação física escolar; Movimentos fundamentais. INTRODUÇÃO Movimentos desempenharam um papel primordial na evolução do comportamento (Leakey, 1981). A importância do movimento também é reconhecida para o desenvolvimento humano. Piaget (1982), por exemplo, mostrou a importância das experiências motoras iniciais para o desenvolvimento cognitivo. Apesar de sua importância reconhecida o movimento em si é pouco compreendido. Neste panorama surgem posições ora colocando o movimento como meio, ou seja, aprendizagem pelo movimento, ora colocando o movimento comofim,ou seja, aprendizagem do movimento. Não se trata de afirmar que uma posição é mais importante que a outra, cada qual tem seu lugar no contexto educacional. Entretanto é necessário que na Educação Física o significado e a natureza do movimento estejam bastante claros (Tani et alii, 1988). O movimento, por ser um elemento básico na interação entre o ser humano e o ambiente, constitui-se num fenómeno bastante abrangente. Isto confunde a Educação Física com o Esporte, a Dança e a Recreação (entre outros), mas o estudo de como o movimento evolui, de como se aprende o * Escola de Educação Física da Universidade de São Paulo. Desenvolvimento motor 83 movimento, de como se ensina o movimento, são tópicos de interesse da Educação Física (Manoel, 1986). A partir do significado do movimento para o ser humano, pretende-se neste artigo abordar alguns aspectos básicos sobre o desenvolvimento motor e suas implicações na Educação Física Escolar. O SIGNIFICADO DO MOVIMENTO PARA O SER HUMANO O comportamento humano constitui-se num sistema complexo e como tal apresenta vários elementos em constante interação. Tani et alii (1988) propuseram que essa complexidade seja considerada a partir de dois princípios: totalidade e especificidade. O princípio da totalidade implica que o comportamento consiste na interação de vários domínios: cognitivo (por exemplo, pensamento lógico); afetivo-emocional (por exemplo, sentimentos e emoções) e motor (por exemplo, movimentos). O princípio da especificidade propõe que essa interação varia de acordo com o contexto, tipo de atividade, quando há uma predominância de um domínio sobre os demais. Na relação todo-parte, que caracteriza o comportamento, movimentos desempenham um papel fundamental. Por exemplo, uma das formas em que o domínio cognitivo é expresso no comportamento é através da linguagem verbal, ou seja, através de uma série complexa de movimentos. No domínio afetivo-emocional tem-se igualmente a utilização de expressões faciais e posturas corporais para a veiculação de sentimentos e emoções. Assim, a capacidade para movimento é a forma mais básica pela qual interagimos no ambiente, seja numa dimensão biológica, psicológica ou sociológica (Manoel, 1989a). Movimentos são essenciais em todos os níveis de organização dos sistemas vivos e tiveram assim um papel crucial na evolução biológica e cultural (Manoel, 1989b; Maturana & Varela, 1987). Ao executar movimentos, uma criança observa o ambiente, estabelece uma meta, elabora um plano de ação para realizar essa meta, faz a verificação experimental de seu plano (através da execução motora), avalia o resultado e decide sobre correções no plano ou sobre a formulação de novos planos, começando então um novo ciclo (para mais detalhes veja Tani et alii, 1988). Desta forma, movimentos têm um papel primordial na operação básica de adaptação de organismos vivos, que envolve o planejamento e a verificação experimental. Neste processo, para que haja movimento, são necessárias informação e energia (Tani, 1979). Informação é essencial ao controle de energia para a execução económica do movimento. O aspecto fundamental desta característica do movimento é o de que a execução de movimentos gera novas informações (FIGURA 1). INFORMAÇÃO ENERGIA . MOVIMENTO . INFORMAÇÃO L_ . J FIGURA 1 - Processo onde informação controla energia para a produção de movimentos que gera novas informações (Manoel, 1984). Rev. paul. Educ. Fís., São Paulo, 8(l):82-97, jan./jun. 1994

Manoel-Edison-J.-Desenvolvimento-Motor-Implicações-para-a-educação-física-escolar-I.pdf

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  • 82 CDD. 18. ed. 152.3

    613.707

    DESENVOLVIMENTO MOTOR: IMPLICAES PARA A EDUCAO FSICA ESCOLAR I

    Edison de Jesus MANOEL*

    R E S U M O Este ensaio apresenta conceitos bsicos de desenvolvimento motor e suas implicaes para

    a educao fsica escolar. A partir da discusso do significado do movimento para os sistemas vivos argumenta-se sobre a necessidade de uma melhor compreenso 3o "movimento como uma forma bsica pela qual a interao ser humano-ambiente ocorre. A sequncia de desenvolvimento motor discutida como fonte de informaes para estruturao de programas de atividade motora e para a formulao de teoria. Vrios modelos de sequncia so analisados e suas implicaes para a pesquisa e atuao so discutidas. Maturao vista como indissocivel da experincia na sequncia de desenvolvimento. A organizao do sistema nervoso necessita de estmulos especficos do ambiente e a educao fsica escolar pode atuar como elemento facilitador desse processo. Movimentos fundamentais so discutidos a partir de duas maneiras em que a orientao ao produto e ao processo pode ser entendida: resultado do movimento vs. forma d o movimento; eficincia vs. competncia.

    UNTTERMOS: Desenvolvimento motor; Educao fsica escolar; Movimentos fundamentais.

    INTRODUO

    Movimentos desempenharam um papel primordial na evoluo do comportamento (Leakey, 1981). A importncia do movimento tambm reconhecida para o desenvolvimento humano. Piaget (1982), por exemplo, mostrou a importncia das experincias motoras iniciais para o desenvolvimento cognitivo.

    Apesar de sua importncia reconhecida o movimento em si pouco compreendido. Neste panorama surgem posies ora colocando o movimento como meio, ou seja, aprendizagem pelo movimento, ora colocando o movimento como fim, ou seja, aprendizagem do movimento. No se trata de afirmar que uma posio mais importante que a outra, cada qual tem seu lugar no contexto educacional. Entre tanto necessrio que na Educao Fsica o significado e a natureza do movimento estejam bastante claros (Tani et alii, 1988).

    O movimento, por ser um elemento bsico na interao entre o ser humano e o ambiente, constitui-se num fenmeno bastante abrangente. Isto confunde a Educao Fsica com o Esporte , a Dana e a Recreao (entre outros), mas o estudo de como o movimento evolui, de como se aprende o

    * Escola de Educao Fsica da Universidade de So Paulo.

    Desenvolvimento motor 83 movimento, de como se ensina o movimento, so tpicos de interesse da Educao Fsica (Manoel , 1986).

    A partir do significado do movimento para o ser humano, pretende-se neste artigo abordar alguns aspectos bsicos sobre o desenvolvimento motor e suas implicaes na Educao Fsica Escolar.

    O SIGNIFICADO DO MOVIMENTO PARA O SER HUMANO

    O comportamento humano constitui-se num sistema complexo e como tal apresenta vrios elementos em constante interao. Tani et alii (1988) propuseram que essa complexidade seja considerada a partir de dois princpios: totalidade e especificidade. O princpio da totalidade implica que o comportamento consiste na interao de vrios domnios: cognitivo (por exemplo, pensamento lgico); afetivo-emocional (por exemplo, sentimentos e emoes) e motor (por exemplo, movimentos) . O princpio da especificidade prope que essa interao varia de acordo com o contexto, t ipo de atividade, quando h uma predominncia de um domnio sobre os demais.

    Na relao todo-parte, que caracteriza o comportamento, movimentos desempenham um papel fundamental. Por exemplo, uma das formas em que o domnio cognitivo expresso no comportamento atravs da linguagem verbal, ou seja, atravs de uma srie complexa de movimentos. No domnio afetivo-emocional tem-se igualmente a utilizao de expresses faciais e posturas corporais para a veiculao de sentimentos e emoes. Assim, a capacidade para movimento a forma mais bsica pela qual interagimos no ambiente, seja numa dimenso biolgica, psicolgica ou sociolgica (Manoel, 1989a). Movimentos so essenciais em todos os nveis de organizao dos sistemas vivos e tiveram assim um papel crucial na evoluo biolgica e cultural (Manoel, 1989b; Maturana & Varela, 1987).

    A o executar movimentos, uma criana observa o ambiente, estabelece uma meta, elabora um plano de ao para realizar essa meta, faz a verificao experimental de seu plano (atravs da execuo motora) , avalia o resultado e decide sobre correes no plano ou sobre a formulao de novos planos, comeando ento um novo ciclo (para mais detalhes veja Tani et alii, 1988). Desta forma, movimentos tm um papel primordial na operao bsica de adaptao de organismos vivos, que envolve o planejamento e a verificao experimental. Neste processo, para que haja movimento, so necessrias informao e energia (Tani, 1979). Informao essencial ao controle de energia para a execuo econmica do movimento. O aspecto fundamental desta caracterstica do movimento o de que a execuo de movimentos gera novas informaes ( F I G U R A 1).

    INFORMAO E N E R G I A . MOVIMENTO . INFORMAO L _ . J FIGURA 1 - Processo onde informao controla energia para a produo de movimentos

    que gera novas informaes (Manoel, 1984).

    Rev. paul. Educ. Fs., So Paulo, 8(l):82-97, jan./jun. 1994

  • 84 MANOEL, E.J. A capacidade de movimento tem a propriedade de criar informaes do prprio organismo

    em referncia ao ambiente . Essas informaes so utilizadas pelo mesmo organismo na interao com o ambiente . E m b o r a uma discusso mais ampla dessa questo fuja ao escopo do presente artigo, vale ressaltar que em sistemas biolgicos e sociais so relativas as diferenciaes entre organismo e ambiente, en t re os sistemas controlador e controlado (Connolly & Manoel , 1991; Manoel , 1993).

    O C O N C E I T O DE MUDANA

    Vida e mudana esto int imamente relacionados. O metabolismo nos organismos expressa um processo de mudanas contnuas sem as quais a vida no seria possvel. O grande fascnio que esse fenmeno excerce sobre os pesquisadores o de que, apesar de todas as mudanas, ainda 6 possvel identificar-se a organizao e a regularidade no sistema vivo. Assim sistemas vivos no esto estticos em relao ao tempo, eles encontram-se num estado de equilbrio dinmico (Bertalanffy, 1977).

    N o decorrer da vida, vrios tipos de mudana podem ser identificados. H mudanas de ordem concreta (aumento da mielinizao das fibras nervosas) at abstrata (aquisio de estruturas cognitivas). H mudanas de o rdem quantitativa, como aumento na estatura, no peso corporal, que cos tumam ser denominadas de crescimento fsico. E h mudanas de ordem qualitativa, como aquisio e melhoria de funes, denominadas de desenvolvimento. Neste artigo, a preocupao est em observar as mudanas de ordem qualitativa, ou seja, o desenvolvimento. Vale ressaltar, no entanto, que o compor tamento motor de uma criana, constitui-se no resultado da interao entre os vrios tipos de mudanas (por exemplo, quantitativa e qualitativa).

    N o desenvolvimento motor , Connolly (1977) identifica dois tipos de mudanas: primeiro, as mudanas oriundas da maturao neurolgica e mudanas biomecnicas ocasionadas pelo crescimento fsico (mudanas n o "hardware"); segundo as mudanas oriundas da aquisio e reorganizao de estruturas cognitivas (mudanas no "software"). Atualmente ra ro abordar essas mudanas em conjunto ( veja um exemplo em Diamond, 1988). E m geral, os estudos focalizam-se em apenas um tipo de mudana, o que acaba levando a interpretaes simplistas do desenvolvimento.

    Vrios processos so associados mudana no compor tamento motor. E m primeiro lugar, tem-se as mudanas decorrentes de um perodo de prtica direcionado a alcanar um objetivo, denominado de aprendizagem. E m segundo lugar, tem-se as mudanas decorrentes da maturao e experincias durante a vida de uma pessoa, denominado de desenvolvimento (ontognese) . E m terceiro lugar tem-se as mudanas decorrentes de mecanismos de mutao e seleo natural em populaes no decorrer de milhares de anos, que vem a ser denominado de evoluo (filognese). E m b o r a diferentes e atuantes em escalas temporais variadas, acredita-se que esses processos so interdependentes (Hinde, 1982).

    A relao da evoluo para o desenvolvimento e aprendizagem uma matria que gera muita controvrsia, fugindo assim ao escopo do presente trabalho. Ent re tan to , vale ressaltar que fatores evolucionrios podem excercer influncia sobre o desenvolvimento motor , como por exemplo, na aquisio de habilidades motoras manipulativas (por exemplo, Connolly & Elliott, 1981).

    A relao aprendizagem e desenvolvimento foi sempre negligenciada devido aos modelos tericos que davam sustentao a cada uma delas, por exemplo, o behaviorismo na aprendizagem e a hiptese maturacional no desenvolvimento.

    N u m sentido o desenvolvimento engloba a aprendizagem visto que ele se refere ao processo de mudanas no compor tamento ao longo da vida. Assim, embora a aprendizagem seja voltada para a realizao de um objetivo especfico (por exemplo, aprender a andar de bicicleta) ela dependente do que foi adquirido at ento. D a mesma forma, a habilidade a ser adquirida passar a fazer parte do repertrio de experincias que podero influenciar aquisies futuras. Num sistema aber to , cada estado

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    Desenvolvimento motor 85 atingido pelo organismo apenas temporrio. Novas mudanas iro ocorrer e so necessrias para que o sistema no entre em processo de estagnao.

    E m toda aprendizagem, muito importante considerar a estrutura de desenvolvimento motor do aluno (Tani, 1982; Tani et alii, 1988). Negligenciar essa estrutura implica numa atitude imediatista que enfatiza apenas o presente do indivduo. Na pesquisa e na atuao profissional isto pode acarretar no perigo de dar importncia ao produto em detr imento do processo e de considerar os indivduos como sistemas fechados, sem capacidade de mudana.

    SEQUNCIA DE DESENVOLVIMENTO M O T O R

    Para que a relao aprendizagem e desenvolvimento seja melhor entendida necessrio considerar-se as descries das mudanas que ocorrem no compor tamento motor ao longo da vida. As mudanas no compor tamento motor tem sido descritas com os mais variados fins, entretanto, hoje possvel sintetizar esse corpo de conhecimentos num modelo de sequncia de desenvolvimento motor .

    Dois princpios necessitam ser considerados para uma melhor compreenso da dinmica da sequncia: continuidade e progressividade (Manoel, 1988). O princpio da continuidade afirma que o ser humano est em constante mudana. N o comportamento motor isto pode ser visto como uma expresso de sua adaptabilidade. Nesse processo h um ganho de competncia, atravs da organizao de programas de ao flexveis, que permitem ajustes motores s variaes ambientais e realizao de novos objetivos. Assim, por estar num processo contnuo de mudanas, o ser humano pode integrar-se biolgica e socialmente ao meio em que vive.

    O princpio da progressividade afirma que as mudanas no so apenas contnuas, elas so organizadas de uma forma progressiva. Ou seja, embora o processo seja contnuo, existem descontinuidades que caracterizam saltos de ordem qualitativa na organizao das aes motoras . Assim, transies so identificadas do simples para o complexo, do geral para o especfico.

    Portanto, desenvolvimento caracteriza-se por mudanas que vo da concepo at a morte . Observando as mudanas no eixo temporal da vida de uma pessoa, identifica-se uma ordem e coerncia no conjunto de mudanas, apresentando desta forma uma sequncia. A sequncia de desenvolvimento varivel em sua progresso, mas invarivel em sua ordem.

    Considerando a existncia de uma sequncia de desenvolvimento, trs aspectos devem ser considerados: em primeiro lugar, o aspecto de que a sequncia a mesma para todas as crianas, apenas a velocidade de progresso varia; em segundo lugar est o aspecto de existir uma interdependncia entre as mudanas, da surgir a afirmao de que habilidades bsicas so essenciais para que toda aquisio posterior de habilidades especficas seja possvel e mais efetiva; e em terceiro lugar est o aspecto de que a existncia de uma sequncia vem a indicar, no apenas a ordem daquilo que a criana pode aprender, mas, principalmente, as suas necessidades.

    A anlise dos vrios modelos de sequncia de desenvolvimento importante por fornecer subsdios para a estruturao de programas de atividade motora , alm de servir de base para a formulao de teorias a respeito do processo de desenvolvimento motor (Gallahue, 1989).

    U m a caracterstica da sequncia de desenvolvimento o grau de interdependncia entre os domnios do comportamento , como demonstrado por Gesell e Amat ruda (1947). Assim durante o desenvolvimento os domnios motor, afetivo-social (conduta pessoal-social) e cognitivo (conduta adaptativa e linguagem) vo se diferenciando gradualmente. Entretanto, no incio da sequncia, o comportamento motor a expresso da integrao entre os domnios, ilustrando a importncia do movimento na sequncia de desenvolvimento global do indivduo. Entre tanto , essa propr iedade do movimento foi interpretada erroneamente , onde o movimento era visto apenas como um ndice para a avaliao dos outros domnios.

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  • 86 MANOEL, E J . A natureza atribuda aos diferentes tipos de movimentos serviu de base tambm para a

    elaborao de modelos de sequncia de desenvolvimento. Com relao a essa forma de classificao, a mais influente foi a originada com a dicotomia entre movimentos de origem filogentica, movimentos naturais, e aqueles de origem ontogentica, movimentos aprendidos ou culturais.

    Todas as formas de movimento adquiridas ns primeiros anos de vida (andar, correr, saltar, manipular, etc.) eram consideradas como sendo resultado da herana filogentica. Sendo determinados pela histria evolutiva da espcie humana, os movimentos naturais no sofreriam nenhuma influncia do ambiente ou cultura. No caso da aquisio de movimentos culturais ( tocar piano, andar de bicicleta, jogar futebol, etc.) assume-se a necessidade de um perodo de experincia especfico e determinado pelo contexto scio-cultural em que o indivduo est inserido.

    Nunca houve muita preocupao em investigar as formas em que movimentos naturais e culturais interagem na sequncia de desenvolvimento. Havia, no entanto, um senso comum de que movimentos naturais constituiriam uma fase anterior a de movimentos culturais ( F I G U R A 2). Entretanto, os mecanismos atribudos a cada uma das fases, maturao para movimentos naturais e experincia para movimentos culturais, no apresentavam nenhuma forma de relao ou mesmo interdependncia.

    FIGURA 2 - Sequncia de desenvolvimento com base na dicotomia entre movimentos naturais e culturais.

    U m dos problemas centrais estava na forma em que a maturao foi definida. Gesell (1929) props a maturao como um mecanismo biolgico, e assim endgeno, de auto-regulao na formao de estruturas e aquisio de funes. E m uma srie de estudos realizados por Gesell e outros (por exemplo, Dennis, 1940; Gesell & Thompson, 1929; McGraw, 1935) houve a confirmao de que a experincia tinha um papel apenas secundrio na determinao da sequncia de desenvolvimento.' Entretanto, revises posteriores desses estudos mostraram que a varivel experincia no havia sido controlada apropriadamente . O conceito do que significa experincia mostrou ser inapropriado. Por exemplo, experincias de controle postural podem ser essenciais para o surgimento do andar independente, embora elas no sejam exclusivas para o andar. Out ro problema foi atribuir o mesmo "status" para movimentos passivos e ativos. E m movimentos ativos ocorre todo um processamento de informaes (da inteno avaliao do movimento) que so essenciais para o desenvolvimento do controle motor (veja para mais detalhes Bower, 1982; Manoel, 1989b).

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    Desenvolvimento motor 87 O inter-relacionamento dinmico entre a maturao e a experincia ressaltado em alguns

    exemplos drsticos em que h o desvirtuamento quase total de condies normais de interao ser humano-ambiente. Por exemplo, Dennis (1960) verificou que num orfanato em Teer, o ambiente com pouca estimulao levou 6 0 % das crianas de dois anos de idade a no sentar sem ajuda e 8 5 % das crianas de quatro anos de idade a no andar de forma independente. Havia ainda srios problemas de atraso no desenvolvimento cognitivo e afetivo-social.

    Num outro exemplo mais drstico tem-se o caso de crianas que vivenciaram ambientes com total isolamento de outros seres humanos. MacLean (1977) relata o caso de duas meninas, uma de cinco e outra de oito anos de idade, que foram encontradas por missionrios vivendo no meio de uma famlia de lobos no norte da ndia em 1922. Segundo esse relato, as meninas no apresentavam nenhum problema de sade, entretanto seus comportamentos envolviam, por exemplo, locomoo em quadrupedia, alimentao baseada em carne crua e ciclo noturno de atividades. A menina mais nova morreu pouco depois do contacto com os missionrios, sem causa aparente, a no ser profunda depresso aps ter sido retirada do ambiente selvagem em que vivia. A criana mais velha ainda viveu por mais 10 anos, entretanto, nunca chegou a falar apropriadamente, era pouco expressiva em termos faciais e ainda recorria a locomoo em quadrupedia em situaes de perigo. O aspecto mais fascinante deste relato o de que essas meninas estavam plenamente adaptadas ao habitat em que viviam antes de serem encontradas. Isto , elas adquiriram comportamentos (por mais estranhos que fossem em relao a cultura humana) de acordo com o contexto biolgico e social em que viviam.

    C o m o enfatizado por White (1975) a experincia tanto uma funo de condies externas como da natureza do organismo que a vivncia. O caminho exato que a sequncia ir trilhar est na dependncia da histria da interao entre o organismo e seu ambiente (Oyama, 1985). Connolly (1986) exemplifica essa dinmica com duas tarefas motoras tpicas: andar e escrever. Aos oito anos de idade toda criana normal apresenta um domnio timo sobre essas tarefas. Entretanto, atribui-se a cada uma delas origens diferentes, andar biologicamente fixado enquanto que o escrever culturalmente determinado. C o m o Connolly argumenta, as habilidades de andar e escrever so tpicas da espcie humana e, assim, so resultantes de processos ou mecanismos gerais que suportam as mudanas de controle motor, permitindo criana andar e escrever. A grande variao individual dent ro de padres tpicos da espcie reflete a dinmica de interao entre o biolgico e o social na histria de vida de cada um. Segundo Connolly, importante ter em mente que os indivduos no herdam apenas a carga gentica da espcie, eles herdam tambm a sua cultura.

    Tendo em considerao a complexidade de movimentos naturais e aprendidos conclui-se que essas formas so resultantes de um processo intrincado de interao ser humano-ambiente . D e acordo com esse processo, um novo modelo de sequncia pode ser visualizado. Nele os movimentos naturais seriam subdivididos em movimentos reflexos, movimentos rudimentares, e habilidades motoras bsicas ou movimentos fundamentais. Os movimentos culturais corresponderiam a u m a ampla gama de habilidades especficas como as do Esporte, da Dana, da Indstria, etc ( F I G U R A 3).

    A fase de movimentos reflexos estaria relacionada ao primeiro ano de vida. Nela os movimentos so desencadeados por estimulao especfica e tem funes de sobrevivncia e controle postural. A fase de movimentos rudimentares sobrepe-se fase de movimentos reflexos em termos temporais e' vai alm, at por volta dos dois anos de idade. Nessa fase, o beb demonstra as primeiras formas de movimento voluntrio, como nas tentativas de controle da cabea, tronco e membros , e locomoo e manipulao (Shirley, 1931 apresentou um modelo clssico de aquisies motoras nessa fase). A fase de habilidades motoras bsicas compreende o perodo aproximado de 2 anos at 7 anos de idade. Nessa fase, ocorre um refinamento dos movimentos radimentares b e m como aquisio de novas formas de controle postural, locomoo e manipulao. A denominao habilidade bsica vem de uma influncia direta da educao fsica que prope serem essas habilidades o alicerce para a aquisio de habilidades especficas ou culturalmente determinadas. Finalmente, a fase de habilidades de Esporte , Dana, Indstria, e t c , corresponderia ao perodo aproximado de 8 anos de idade e alm. Nessa fase os

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  • 88 MANOEL, E.J. indivduos passariam por um processo formal de prtica especfica a cada tipo de, habilidade motora ( F I G U R A 3).

    /

    H A B I L I D A D E S

    E S P O R T E

    D A N A

    I N D S T R I A

    E T C .

    FIGURA 3 - Sequncia de desenvolvimento motor com a diferenciao de movimentos naturais e aprendidos.

    Dois problemas bsicos so identificados nesse modelo de sequncia. Primeiro a noo de reatividade do organismo, e segundo, a noo de relaes aditivas para o surgimento de movimentos culturais.

    A noo de reatividade faz acreditar que a base da sequncia de desenvolvimento uma funo da estimulao externa, visto tratar de movimentos reflexos. Essa uma concepo errnea pois, em primeiro lugar, o reflexo uma estrutura bastante complexa, que no determinada plo estmulo, ainda que esteja associado a ele. A produo de um movimento reflexo o resultado de propriedades do sistema neuro-muscular. A associao com estmulos do ambiente nada mais reflete a natureza ativa do organismo buscando a interao com o ambiente . E m segundo lugar, existe uma srie de movimentos que no so desencadeados por estmulo, mas que, tambm, no so voluntrios. Esses so os movimentos espontneos de caracterstica aleatria e cclica. Thelen (1979) identificou uma srie de movimentos espontneos no primeiro ano de vida como movimentos alternados de flexo e extenso das pernas, dos pulsos, movimentos isolados da perna (chute) ou do brao, entre outros. O padro cclico desses movimentos tem levado pesquisadores a propor a existncia de "relgios" biolgicos no sistema nervoso central que gerariam esses padres oscilatrios (Keogh & Sugden, 1985; Rosenbaum, 1991;

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    Desenvolvimento motor 89 Thelen, 1986). Finalmente, em terceiro lugar, tem-se a evidncia de que o desenvolvimento motor tem incio muito antes do nascimento. Prechtl (1986) relata uma srie de estudos que registraram vrias formas de movimento apresentadas por fetos a partir da stima semana de gestao. Esses movimentos fetais envolvem desde aes globais do corpo todo at movimentos isolados de membros superiores ou inferiores. Dent ro do repertrio de movimentos fetais, possvel classificar movimentos como reflexos e espontneos. Entre tanto , as caractersticas e condies em que eles so produzidos sugerem que os movimentos fetais sejam tratados como uma categoria independente, pelo menos at que uma melhor compreenso da natureza e funo desses movimentos seja atingida.

    A noo de relaes aditivas para o surgimento da complexidade tem levado a uma simplificao das explicaes sobre a aquisio de movimentos culturais. A transio para habilidades especficas (esporte, dana, indstria, etc.) no depende da mera adio de habilidades bsicas ou movimentos fundamentais. C o m o foi discutido por Seefeldt (1980) h uma barreira de proficincia entre essas duas fases. Para suplant-la, Seefeldt afirma ser importante o refinamento de habilidades bsicas, o que ele chama de habilidades motoras transicionais. Esse problema poderia ser melhor expresso ao se considerar tambm a necessidade de uma fase em que haja o desenvolvimento de combinaes de habilidades bsicas. Assim aquisio de habilidades culturalmente determinadas dependeria de um processo de reorganizao de movimentos fundamentais.

    A questo do refinamento e combinao de movimentos fundamentais refere-se a uma rea carente de conhecimentos dentro da Educao Fsica Escolar. Existe uma grande necessidade de pesquisas de cunho bsico, mas, em situaes complexas (por exemplo numa situao real de ensino- J ML aprendizagem) e de pesquisas aplicadas que permitam identificar como se d o refinamento e a combinao de movimentos fundamentais. Por exemplo, no se sabe, em que medida, deve se dar o refinamento, enfatizando a diversificao de padres ou a sua contnua especializao numa dada situao, ou ambas. N o se sabe, tambm, quais so os pr-requisitos para comear as combinaes, ou mesmo a ordem apropriada para o desenvolvimento dessas combinaes.

    Considerando todos esses comentrios em relao ao modelo de sequncia exposto na F I G U R A 3, algumas alteraes devem ser feitas. Primeiro, a incluso da fase de movimentos fetais correspondendo ao perodo da concepo at o nascimento. Segundo, a incluso de movimentos espontneos juntamente fase de movimentos reflexos. Terceiro, a incluso da fase de combinao de movimentos fundamentais relacionada ao perodo aproximado, de sete at dez anos de idade ( F I G U R A J M 4).

    Os modelos de sequncia de desenvolvimento motor apresentam vrias implicaes para a pesquisa e atuao profissional na Educao Fsica Escolar. Especificamente, em relao atuao profissional, importante considerar que cada fase da sequncia o resultado de um longo processo de mudanas, assim como constitue-se num estado temporrio em direo a estados futuros, mais especficos e mais complexos. Cada fase reflete, por um lado, realizaes especficas, mas por out ro lado, reflete tambm uma ampla variao de atividades que o indivduo deveria ser capaz de executar habilidosamente. No conjunto, cada fase permite ao indivduo interagir competentemente em ambientes variados com objetivos especficos.

    Vrios modelos de sequncia tem sido propostos voltados a uma atuao profissional especfica. Por exemplo, Gallahue (1982, 1989) props um modelo que serviria de base para a estruturao de um programa de educao fsica escolar. Gallahue enfatiza as mudanas observveis no comportamento motor , por exemplo, movimentos reflexos, movimentos rudimentares , movimentos fundamentais e movimentos especializados. Gallahue ainda identifica em cada fase uma ampla gama de formas de movimento que deveriam ser trabalhadas pelo profissional cujo desenvolvimento teriam implicaes para as fases seguintes.

    ir

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  • 90 MANOEL, E J .

    FIGURA 4 - Sequncia de desenvolvimento que sintetiza os conhecimentos de desenvolvimento motor at o presente momento .

    Num outro modelo apresentado por Seaman & DePauw (1982), encontra-se uma abordagem visando a estruturao de programas de atividade motorapra populaes especiais. Assim, os autores levaram em conta o processo que gera a resposta motora ( F I G U R A 5).

    D e incio, verifica-se a emergncia da capacidade neural inata, fruto da auto-organizao do sistema, e que se desenvolve rapidamente na primeira dcada de vida. Nesse perodo, o crescimento de tipo neural o mais avanado na criana escolar em relao aos demais tipos de crescimento, como o sexual e o muscular (Tanner, 1965). Portanto, considerando o movimento como uma fonte de ordem e informao (veja F I G U R A 1), a aquisio de habilidade motora um pressuposto bsico para a caracterizao da Educao Fsica Escolar (Manoel, 1984).

    Seaman & DePauw (1982) enfatizam as mudanas que ocorrem na relao sensrio-motora durante o desenvolvimento motor . Os sistemas sensoriais de maturao anterior esto diretamente relacionados produo e qualidade dos movimentos. Neste sentido, a atividade motora organizada seria fundamental para a estimulao desses sistemas. O desenvolvimento da relao sensrio-motora nesse nvel constitui-se numa base essencial para todo desenvolvimento posterior, sensorial e motor . A atuao profissional nessa fase da sequncia seria ento fundamental com populaes especiais.

    Desenvolvimento motor 91

    FORMAS DE MOVIMENTO CULTURALMENTE DETERMINADAS

    HABILIDADES MOTORAS PADRES MOTORES

    RESPOSTAS SENSORIAIS-MOTORAS FUNCIOMAMENTO DE SISTEMAS

    DE AMADURECIMENTO POSTERIOR VISUAL

    FUNCIONAMENTO DE SISTEMAS DE AMADURECIMENTO ANTERIOR TTIL VESTIBULAR PROPRIOCEPTIVO

    ATIVIDADE REFLEXA. MECANISMOS DE SOBREVIVNCIA CAPACIDADE NEURAL INATA

    FIGURA 5 - Sequncia de desenvolvimento para atuao com populaes especiais (adaptada de Seaman & DePauw, 1982).

    A IMPORTNCIA DOS MOVIMENTOS FUNDAMENTAIS

    E m geral, o professor passa a ter maior oportunidade de atuar em crianas a partir da fase de movimentos fundamentais. Essa uma fase muito importante do desenvolvimento que merece uma maior ateno.

    A fase de movimentos fundamentais apresenta uma progresso onde, inicialmente, a estrutura do movimento apenas rudimentar. Por exemplo, ao arremessar, uma criana de trs anos de idade concentra toda a ao na flexo seguida de extenso do brao com o objeto (por exemplo Wild, 1938). No ficam assim diferenciados outros aspectos da estrutura do movimento, como a preparao e a finalizao do arremesso. Alm disso faltam vrios componentes da estrutura do movimento. Por exemplo, no arremesso, faltam as aes do tronco, do quadril, dos membros inferiores. N u m estgio posterior, a estrutura do movimento melhor definida com a preparao, ao principal e finalizao, entretanto, a organizao espao-temporal dos componentes dentro dessa estrutura no apropriada. Por exemplo, inicia o arremesso colocando frente a perna correspondente ao brao de arremesso. Finalmente, num terceiro estgio ocorre a aquisio da chamada forma madura do padro , caracterizada pela organizao espao-temporal adequada dos componentes da estrutura do movimento.

    Segundo Kephart (1960), um problema crucial para a aquisio de habilidades especficas a falta do pleno desenvolvimento das habilidades bsicas. Tani (1987), abordando o mesmo problema, aponta para a necessidade de voltar-se ao processo pelo qual as habilidades bsicas foram ou no adquiridas. Isto seria necessrio para que se possa compreender , caracterizar e estabelecer linhas de

    Rev.nnnl F/ltir Fh Snn Pnuln RnX-Ht.Ol ,'/,. /; lOQA

  • 92 MANOEL, E J . ao para a soluo dos problemas na aquisio de habilidades especficas.

    A atuao mais efetiva do professor de Educao Fsica na faixa escolar do ensino de primeiro grau torna-se essencial. Basicamente, 6 importante que oportunidades sejam dadas para explorao das habilidades bsicas ou movimentos fundamentais. Isto pode ser atingido com uma estruturao adequada do ambiente e adaptao da estrutura da tarefa ao nvel de desenvolvimento motor do aluno.

    Halverson (1966), Godfrey & Kephart (1969) afirmaram a importncia de se conhecer as caractersticas dos movimentos que compem as habilidades bsicas ou movimentos fundamentais, para uma contribuio mais efetiva do desenvolvimento motor do escolar. Assim, os movimentos fundamentais como andar, correr, saltar, arremessar, chutar, rebater, quicar, apresentam uma sequncia de desenvolvimento caracterizada por um aumento da eficincia biomecnica e incorporao de novos elementos estrutura do movimento (Seefeldt, 1980).

    E m b o r a a aquisio dos movimentos fundamentais na idade pr-escolar e escolar possam parecer bastante naturais, 6 muito grande o nmero de indivduos que no atinge o padro maduro nas habilidades bsicas, o que vir a acarretar srios problemas para a aquisio de habilidades especficas.

    Colocando a educao do movimento como propsito bsico da Educao Fsica Escolar, o conhecimento das caractersticas bsicas que compem o padro de movimento de fundamental importncia. Halverson (1971) colocou duas formas bsicas para a anlise do movimento: pelo produto e pelo processo. Pelo produto, verifica-se o quanto a criana corre e em que velocidade ela corre, ou a que distncia ela arremessa uma bola, ou o quanto ela saltou em distncia. Pelo processo, verifica-se as caractersticas do padro espao-temporal dos movimentos para correr, saltar etc. A anlise do processo nesse sentido muito mais significativa pa ra o estudo do desenvolvimento e para a atuao profissional. Halverson & Rober ton (1979) realizaram um estudo em que um grupo de crianas foram submetidas a um perodo de prtica no arremesso distncia. Antes da prtica, foi medida a velocidade de sada da bola e analisadas as caractersticas do padro de movimento no arremesso. Aps a prtica, os testes foram repetidos, quando se verificou que muitas crianas no melhoravam a velocidade de sada de bola, mas apresentavam uma sensvel melhora no padro de movimento. As informaes mais relevantes sobre a prtica foram obtidas atravs da anlise do processo. Flinchum (1981) e Tani et alii (1988) fornecem vrias orientaes para a anlise do processo de movimento, e implicaes dessa anlise de desenvolvimento para o ensino de pr imeiro grau.

    EFICINCIA E COMPETNCIA NO C O M P O R T A M E N T O M O T O R

    U m a tendncia bsica na sequncia de desenvolvimento o aumento dos graus de liberdade de movimento dos vrios segmentos corporais, acompanhado do necessrio domnio sobre eles (Bernstein, 1967). C o m o j foi visto anteriormente, uma criana por volta dos trs anos de idade arremessa u m a bola, mantendo prat icamente todos os segmentos do corpo fixos, com apenas o brao de arremesso participando mais efetivamente da ao. Mas a mesma criana aos dez anos de idade arremessar com uma participao coordenada dos vrios segmentos do corpo. Assim, costuma-se dizer que a criana mais eficiente nas tarefas motoras, expresso por exemplo, por um padro de movimento similar ao do adulto, ou pela capacidade de arremessar longas distncias. Dessa caracterizao surge a ideia de que, a direo do desenvolvimento estabelecida em funo de uma maior eficincia mecnica. Entretanto, o movimento e seu resultado so produtos de um processo. Para entender-se como ocorre esse processo preciso considerar o problema da competncia.

    Competncia significa a capacidade de execuo motora num nvel timo e suficiente para a soluo do problema motor . Cada indivduo pode apresentar um padro de movimento com competncia mesmo que no o faa exibindo o padro mais eficiente em termos mecnicos. Neste sentido, bebs so

    Desenvolvimento motor 93 competentes naqueles padres de movimento que so capazes de executar. Crianas com paralisia cerebral tm alteraes anatmicas importantes. Em membros superiores, isto faz com que movimentos manuais paream estranhos e ineficientes em relao aos padres de crianas normais . Entre tanto , quando se considera o processo pelo qual elas foram capazes de resolver o problema de manipulao chegamos concluso que dentro das suas capacidades e limitaes elas foram al tamente competentes .

    Para que haja competncia o indivduo necessita elaborar um plano de ao direcionado a uma meta no ambiente . U m aspecto central da competncia o de que esses planos no so rgidos, pois so continuamente reorganizados, permitindo ajustes s variaes do ambiente, assim como para atingir novos objetivos (Connolly & Bruner, 1974). neste sentido que o produto final no desenvolvimento ser uma execuo competente, expressa num padro eficiente em termos mecnicos. Com o envelhecimento muito provvel que a eficincia mecnica diminua, mas nem por isso a execuo deixar de ser competente. Provavelmente, os planos de ao continuaro a se modificar permitindo um ajuste do que possvel executar, tendo em conta a realidade pertinente ao perodo de vida em que o indivduo se encontra.

    C o m o a eficincia atingida uma questo fundamental. Consideremos, como um exemplo, uma criana tentando aprender a chutar uma bola. Inicialmente, a criana tenta chutar a bola sempre da mesma maneira, para que consiga alcanar o objetivo. Algum tempo depois, com a melhoria da habilidade, a criana passa a tentar o chute de formas variadas, em situaes que nunca foram experimentadas anteriormente. Com relao a este exemplo, encontramos trs conceitos importantes: consistncia, constncia e equivalncia motora. A criana, ao chutar, inconsistente em seu padro por deficincia de controle. Ela tenta repetir o mesmo movimento muitas vezes at atingir um padro estvel quer lhe permite alcanar o objetivo. Esse processo denominado de consistncia. A o passar algum tempo, a criana utiliza-se desse padro estvel, para ajustar-se a situaes diferentes e no experimentadas anteriormente. Esse processo denominado de constncia. Estes dois conceitos foram estabelecidos por Keogh (1977). Pode-se dizer que a competncia no desenvolvimento vista em funo da consistncia nas mltiplas formas de movimento adquiridas, e da constncia ao adaptar os movimentos nas mais variadas situaes.

    Keogh (1977) afirmou que a consistncia e a constncia esto intimamente relacionadas. A constncia s possvel a partir da consistncia nos movimentos. A o mesmo t empo a partir da constncia, novos movimentos podem ser adquiridos, iniciando novo processo de melhoria da consistncia. E m geral, o estudo da aquisio de movimentos fundamentais feita em apenas uma situao (nfase na consistncia). Entre tanto , h a necessidade de investigar esse desenvolvimento em vrias situaes (nfase na constncia).

    A relao consistncia e constncia depende da equivalncia motora. A equivalncia motora pode ser melhor entendida a partir de um exemplo. Movimentos reflexos so geralmente consistentes em seu padro espao-temporal. No reflexo de preenso, observa-se que so poucas as possibilidades de variao no padro para alcanar o mesmo fim. J nos movimentos voluntrios como pegar, receber, arremessar, existe uma maior possibilidade de variao nos padres de movimento para alcanar o mesmo objetivo, enquanto que o mesmo padro pode ser utilizado para alcanar diferentes fins. A essa propriedade d-se o nome de equivalncia motora, isto o grau de flexibilidade da relao entre meios e objetivos (Hebb , 1949). Logo, num movimento reflexo, o grau de equivalncia motora muito baixo, enquanto que num movimento voluntrio alto. interessante observar que medida em que se sobe na escala filogentica, o grau de equivalncia motora aumenta nos seres vivos. Na sequncia de desenvolvimento, inicialmente, o ser humano apresenta movimentos com baixa equivalncia motora. Com o passar do tempo, o grau de equivalncia aumenta, como pode ser verificado na relao consistncia e constncia do movimento.

    Bruner (1973) afirmou que no desenvolvimento, os padres que mediam a inteno para agir e a avaliao da ao tem origem filogentica, mas nem por isso constituem-se em padres fixos e

    Rev. paui Educ So Paulo, 8(l):82-97, jan./jun. 1994

  • 94 MANOEL, E J . invariveis. Assim h um aumento contnuo na flexibilidade dos padres de ao. O u seja, h um aumento n o grau de equivalncia motora.

    Desta forma h uma estreita relao entre a eficincia (aspectos quantitativos) e a competncia (aspectos qualitativos) no processo de desenvolvimento motor . A considerao da competncia sobre o ponto de vista da consistncia, constncia e equivalncia motora muito importante para a compreenso deste processo.

    DESENVOLVIMENTO, CULTURA E HABILIDADE

    D e maneira geral, a educao apresenta entre seus objetivos, preparar o ser humano para que ele viva de forma independente em seu meio scio-cultural. A educao busca assimilar e transmitir ao aprendiz os frutos do desenvolvimento do patrimnio cultural.

    Entre tanto , o que a cultura hoje apresenta o resultado de um longo processo de desenvolvimento. A transmisso pura e simples deste patrimnio cultural para o aprendiz poder incorrer num erro de super-especializao. H a necessidade de desenvolver aquelas habilidades que foram bsicas para o nvel de desenvolvimento atingido na cultura.

    Segundo Koestler (1969), a super-especializao leva a um beco sem sada, onde a estabilidade marcada por estagnao, e incapacidade para adaptao. A herana cultural produto de um longo processo, entretanto o aprendiz no passou pelo mesmo. Isto torna essencial a adaptao das habilidades cultulralmente determinadas oferecidas ao aprendiz. A maneira de fugir da super-especializao retomar o processo. Conhecer, compreender o significado do movimento e do desenvolvimento motor re tomar o processo.

    Neste sentido, o esporte como a dana, entre outras habilidades, fazem par te do patrimnio cultural, merecendo assim serem transmitidos aos alunos, como so, por exemplo, a arte, a literatura dos povos. Para evitar os problemas de especializao desportiva precoce, o patrimnio cultural deve ser adaptado ao nvel de desenvolvimento do aluno. O u seja muito importante diferenciarmos na educao fsica escolar, o esporte como rendimento e como contedo.

    Neste sentido, a utilizao do conceito de prontido merece ateno. Prontido refere-se faixa etria mais adequada para o incio da aprendizagem de uma tarefa. A aplicao do conceito vem ao propsito de indicar o momento ideal para o oferecimento de habilidades a serem adquiridas, de uma forma compatvel com o nvel de desenvolvimento do aprendiz. Entretanto, esta viso de prontido indicando o que mudou o nvel de desenvolvimento, deveras esttica. Deve-se ter uma viso mais dinmica do ser humano, cuja natureza bsica estar num constante processo de mudana. So necessrias informaes, no apenas do que mudou, mas de como se processam as mudanas e o inter-relacionamento entre elas (Gagn, 1979), ou seja, o conceito de prontido tem que ser visto de forma mais dinmica. Bruner (1978) j props a hiptese de "que qualquer assunto pode ser ensinado com eficincia de uma forma intelectualmente honesta, a qualquer criana, em qualquer estgio de desenvolvimento" (p.31). O conhecimento da sequncia de desenvolvimento motor fornece subsdios essenciais para uma educao que vise a formao de um ser com autonomia e capacidade integrativa na sociedade.

    Rev. paul. Educ. Fs., So Paulo, S(!):S2-97, jan./jun. 1994

    Desenvolvimento motor 95

    ABSTRACT M O T O R D E V E L O P M E N T : IMPLICATIONS F O R S C H O O L

    PHYSICAL E D U C A T I O N I

    This essay presents basic concepts of motor development and their implications for school physical education. The significance of movement for living systems is discussed. From this discussion, it is argued that movement is bet ter understood as a basic means by which human beings interact with the environment. The sequence of development is discussed as a source of information to elaborate programmes of motor activity and to formulate theories. A number of models of sequence are analysed and their implications for research and profession are discussed. It is argued that maturat ion and experience cannot be disentangled in the course of the sequence of development. T h e organization of the nervous system requires specific stimuli from the environment and school physical education can be elementary in this process. Fundamental movements are analysed from two different standpoints in product and process oriented studies: movement outcome vs. movement form; efficiency vs. competence.

    U N I T E R M S : Motor development; School physical education; Fundamental movements.

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    Recebido para publicao em: 07/04/94

    Ao Prof. Go Tani pelos comentrios e sugestes, a SEED e CAPES, Ministrio da Educao pelo apoio dado no perodo em que este trabalho foi escrito, a Deise pelo zelo no processamento do manuscrito e a Jane por suas artes grficas.

    ENDEREO: Edison de Jesus Manoel Rua Venceslau Gomes da Silva, 32 05159-030 -So Paulo - SP - BRASIL

    R^. paul. Educ. Fs., So Paulo, 8(1):82-97, jan./jun. 1994