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Manual de Favela

Manual de Favela - University of São Paulo

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AUP0654 - Projeto da PaisagemAUP0282 - Desenho Urbano e Projeto dos Espaços da Cidade

Georgia Sharp | 9318640

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Instruções para entender uma favela

É necessário observar pela janela.Sente-se em qualquer veículo de transporte sobre rodas e ande por todo o trecho carroçável que puder. Tente estar confortável, mas isso não é garantia, principalmente se você optar pela maneira mais adequada, que é o trajeto de transporte público.Se você tiver medo de entrar em um ônibus em que nunca andou em sua vida, não vá, isso não deve ter feito por pessoas covardes.Vá com a confiança que você tem em si, mesmo desconhecendo tudo.O importante é entrar pela porta e permanecer perto da janela, essa é a condição especial. Em alguns momentos, você irá sentir algum frio na barriga, mas é porque estará sozinho.Isso também, vá sozinho, porque assim a observação será mais pessoal e honesta, sem o direcionamento de terceiros, o que, por vezes, pode ser ruim.Caso decida fazer isso outra vez, é aconselhável levar

outra pessoa que também já tenha feito o percurso e tenha construído suas observações pessoais do território.Uma informação importante de que me esqueci. Aqui na cidade usamos um cartão para embarcar em ônibus. Então, se não tiver um, vá atrás de algum lugar que o distribua e o carregue com dinheiro. Se você se perder, chore, não há problema, chorar é bom às vezes. A cidade pode ser mutável e infelizmente você não estará em um transporte cuja lógica se dá em trajetos fixos nos quais não há erro.Lembre-se que o território não é desses cansados de serem frequentados e conhecidos dos pés à cabeça com toda sua lógica exposta regularmente. O tecido urbano de onde se está indo é diferente, é preciso esquecer a ordem dominante e conhecer uma outra da qual não sabe quase nada.Por fim, essa instrução não é fixa, por isso o aconselhável é que você saiba quando utilizá-la. Não nos responsabilizamos pelo mal uso da norma aqui colocada.

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Um percurso

A vista da janela, tudo isso é um recorte em movimento, um filme em tempo real que acompanhamos no decorrer da vida à medida que aquele lugar se torna um meio de articulação, vias que necessitamos para chegar em algum lugar.E não entendemos muito bem aquela dinâmica.Primeiro, podemos até pensar que aquelas casas ali de restos, todas expostas, tão próximas à via, a vida privada das estruturas inacabadas se prolonga nas vias automobilísticas.E nos é extremamente curioso observar tudo aquilo, tão dado, tão desinibido. As pessoas pegam suas cadeiras e as colocam nas calçadas, conversam umas com as outras enquanto os carros passam em alta velocidade.Um pedaço que parece uma confusão de acontecimentos, uma paisagem que hoje olhamos e pensamos que poderia ter sido alguma coisa, mas é difícil admitir que existe essa possibilidade. O corte abrupto, a descontinuidade, o destratamento, tudo isso dá um ar de extrema estranheza como se aquilo fosse um sonho sem sentido.

Viadutos, curso d’água meio encoberto por um invasor de concreto armado onipresente em toda linha reta independente do sentido que escolhermos ir.Neste caso, o sentido em que se escolheu ir - e é de extrema importância ressaltar isso - é o contrário do que seria a verdadeira correnteza. Adentremos.

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O fim provisório

Então, chegamos ao que parece ser o final do trecho. A cidade parece acabar ali e mais nada, agora só dá para ir ou na esquerda ou na direita. É preciso ser persistente e perceber que, na verdade, ali não é fim coisa nenhuma. O córrego parece morrer, é verdade. Diferentemente de tantos outros cursos d’água por aí, ele parece realmente secar e não desaparecer por galerias.Chegamos a outro lugar sem sentido que hoje já abre suas entranhas, mostrando que ali podem ser feitas conexões, desde que se tirem algumas outras coisas que já existiam antes. Depois de um tempo, até esquecemos de como era antes, parece agora que sempre foi assim; concebemos, então, o que chamo de verdade espacial.O nada-precipício da secura é vencido por uma grande estrutura de concreto que conecta dois lados que antes pareciam nunca poder se conectar.E aquele córrego atravessa o grande monstro cinza e pesado, o atravessa por baixo, silenciosamente, invisivelmente.

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Travessia

O que era oculto, que não parecia dialogar em nada com tudo aquilo, de repente, se mostra. Ali, logo atrás de tudo aquilo que parecia ser o fim, uma outra realidade que, na verdade, nunca foi desconhecida.A água ressurge, deixa todo o cinza e inicia o seu novo trecho, permeando, erodindo construções que encostam diretamente em suas margens.O divertido é que tendo feito outros percursos - nenhum deles é o protagonista desta história - sempre soubemos que aquilo esteve ali, no meio do caminho, aquelas casas que não entendíamos muito bem, porque nunca moramos nelas. Mas sabíamos de sua existência, porém, nunca pudemos sequer imaginar que aquelas águas eram as mesmas que nos acompanhavam antes. Elas não tinham morrido e vê-las daquele jeito era a prova concreta de sua continuidade.Não entendíamos nada daquilo tudo, do todo que aquilo formava. As conexões eram muito mais numerosas do que acreditávamos.

Em tantos anos, todos os percursos em automóveis e ônibus estavam ali, porém se davam de todas as formas possíveis que nos impossibilitavam ver que aquilo tudo estava uma coisa do lado da outra.A ilusão da descontinuidade do tecido urbano proporcionada pela nossa ignorância nos levar a crer numa outra verdade sobre a cidade.E por que isso acontece? Muito simples na verdade: as vias em que andamos sobre rodas tecem uma lógica espacial totalmente diferente dos cursos d’água, por mais que, na maior parte das vezes, elas pretendam acompanhá-los por motivo de topografia.Não entendemos quase nada de lógica de curso d’água, não nos ensinam isso na escola. Tampouco é óbvio, porque eles são entrecortados. Por vezes, os vemos, por vezes, não.

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A Favela

Panóptica em relação ao curso d’água. As margens estão recheadas dela a todo momento, desde o que estabelecemos de início, que na verdade seria o fim, até o fim que é o início.Quando não as encontramos é porque, provavelmente, a passagem de uma nova infraestrutura por cima as destruiu e colocou outras coisas no lugar. Mas são lapsos rápidos de espaço, logo percebemos que elas voltam a nos acompanhar no nosso percurso.Dizemos “as favelas”, mas elas não são as mesmas. Na verdade, elas são múltiplas, têm suas diferenças, seus nomes, seus perímetros. É importante salientar que existe uma espécie de vácuo no percurso. O córrego continua, mas a rua se extingue durante um intervalo. O que temos são caminhos que chegam às águas espraiadas, mas que não continuam por elas.

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Transição

Ao contrário do que se pensa, a favela não surge espontaneamente no espaço. Dizer isso é negá-la, simplificá-la.Observemos o recorte sugerido e não apenas pelo desenho, viajemos por ele, andemos pelas ruas. Percebemos aspectos que parecem se repetir em diferentes lugares desse trecho. As ruas não são ocupadas pelas mesmas casas. À medida que seguimos por elas, percebemos que em seu fim chegamos a uma favela e ela não está ali à parte, justamente pelo contrário, ela dialoga diretamente com a dinâmica urbana que ali existe, ela faz parte disso, ela é uma continuidade no espaço.No fim da rua existe uma favela.

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Corte

A Rua Alba é a primeira que cruza o córrego de fato - primeira vez que parece não haver descontinuidade.É caminho de várias linhas de ônibus que seguem em direção ao Jabaquara de um lado e do outro vão em direção a Interlagos.Voltamos à vida privada que se esparrama na calçada.Entre a Avenida Jornalista Roberto Marinho e o cruzamento do córrego com a Rua Alba, essa dinâmica foi momentaneamente extinta, ou melhor, não chegou nem a ser concebida. E como poderia se não há vias que seguem nesse trecho?

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Conflito

As guerras na cidade parecem estar congeladas como fotografias. Não se parecem muito com esses filmes de ação dinâmicos nos quais o combate é em movimento. Na cidade, de um lado vemos um grande eixo que vai tomando espaço à medida que o tempo passa. Ele vai crescendo, suas entranhas devoram o que vêem pela frente, se apropriam, se alimentam daquilo que vem defronte.A frente parece mais frágil. Sua formação militar não é montada, ela só está ali, nem chegou a declarar essa guerra. O que ela quer é estar ali, manter seu território, garantir suas fronteiras, mas não é ela que vem, que ataca, apesar de sempre parecer isso.De repente, está pronta para ser derrubada e apagada da memória urbana, como tantas outras coisas que são condenadas a cair num suposto desuso, renegadas por não se adequarem às leis, às necessidades primordiais dos interesses econômicos.Recolher.

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O segredo das escadas

Não é preciso dizer que adentramos. Chegar lá nunca foi algo a ser anunciado e sim sentido.É tudo estranho, vários aspectos diferentes, a gente olha por baixo, por cima, um detalhe ou outro e se perde no meio daquela realidade que nunca nos pertenceu, mas que agora está ali, nós, colocados na frente dela.As escadas são elementos protagonistas. De repente, no meio da rua, surge uma escada. Ela se levanta como quem não quer nada, num pedaço de lugar que a gente não entende por que ali. Ela só cresce como uma dessas plantas que corta o chão e a gente vê que aquilo não faz sentido para a nossa cabeça tão metódica.Veja bem, existe uma lógica, um motivo para tudo isso ser desse jeito.A escada tem como destino uma porta. Não sei, acho que devemos estar acostumados demais a subir escadas que devaneiam demais, levam por aqui e por ali, dão uma volta, cruzam com um vão até que chegam a um

intermédio de lugar, que é lugar, mas ainda não é de fato o lugar em que queríamos estar. Essas outras escadas que dão direto no lugar, que coisa, que solução muito mais prática parece.Elas surgem da rua e dividem uma mesma construção de dois andares. No térreo é uma pessoa que mora, no primeiro andar é outra. Precisamos separar os ambientes do jeito que podemos, uma casa é uma casa, a outra é outra. A escada é a barreira.

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Referências

CORTÁZAR, Julio. História de Cronópios e Famas. 4 edição, Best Bolso. Rio de Janeiro, 2017.

https://www.quatrocincoum.com.br/br/resenhas/a/o-quebra-cabeca-do-prata

Imagens do Instagram com localização “Favela Alba”

Imagens obtidas através do Google Street View do cruzamento da Rua Alba com o córrego Águas Espraiadas.

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