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MAQUINAÇÕES ESCRITAS PELA SOBREVIVÊNCIA Sheyla Smanioto Macedo 1 1 Sheyla Cristina Smanioto Macedo, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor), Av. da Reitoria, sem número, Prédio V, terceiro andar, CEP 13083-970, Campinas, SP, Brasil, [email protected] ; orientada em projeto de Iniciação Científica pela Profa. Dra. Susana Dias. Abstract The project of research, action and intervention “Biotecnologias de Rua” aims to explore the potentiality of many several languages to create artefacts of divulgation for the biotechnologies and to investigate their reception, which shape biotechnologies, if it would be understood as discursive production. Starting from the relation between the biotechnologies that intend a ideas’ survival by proliferation and the biotechnologies that intend a body’s survival by reproduction, this academic work intends to discuss the survival's concepts existent in the writing of Casares (2008) in A invenção de Morel – text in which a fugitive makes his survival by the machine of written – and in Nietzsche (2008) in Sobre a verdade e a mentira – text in which the author discuss, among other things, our necessity to dissimulate in order to survive -, configuring part of a research that intends to catch contributions, in those books, for scientific divulgation, about the survival of the facts in records and/or creations. Index Terms scientific-divulgation; literature; philosophy; art-science. FIGURA 1 FOTOGRAFIA DE ALIK WUNDER, APRESENTAÇÃO DA PEÇA “NUM DADO MOMENTONO CENTRO DE CAMPINAS. “TUDO QUE É PROFUNDO (...) AMA A MÁSCARANão se sabe ao certo como surgiram as palavras, nem que tipo exato de relação elas têm com as coisas - tampouco se existe, nelas, correlação entre significado e significante; isto, talvez, porque não tenhamos acesso àquele momento de passagem entre um mundo tão recente que algumas coisas ainda não haviam sido nomeadas e para se referir a elas era preciso apontar, e um outro já povoado de nomes. O que discutimos neste âmbito, portanto, vem e vai ao domínio das construções lingüísticas, estas articuladas em idéias, as quais podemos resgatar, pontualmente, em quatro teorias fundamentais: há quem defenda o surgimento da linguagem ao acaso; como produto de escolhas repetidas e repetíveis; partindo de algum tipo de convenção social; a partir de uma relação natural causal com o objeto (que pode ser do tipo interjetiva, onomatopéica, metafórica ou de imagem lógica). Nietzsche defende esta última hipótese - mais especificamente: a do surgimento da linguagem partindo de uma relação natural causal metafórica com o objeto. Para ele, reitero, a relação entre as palavras e as coisas é do tipo imagem/objeto articulados metaforicamente, do que decorre que só conhecemos as coisas, em verdade, a partir de seus resquícios na imagem com as quais nos referimos àquelas – não as conhecemos, portanto: é como se, ao nascermos, fôssemos jogados numa teia conceitual que nos impedisse de atingir a verdade das coisas e que atuasse nos moldes daquela rede que se prepara para receber os trapezistas na queda. Para Nietzsche, é esta teia conceitual que nos certifica de que estamos integrados ao mundo dito Real, e não fruindo em sonho, porquanto em sonho as coisas como que perdem os seus contornos, confundem-se ao se misturarem umas às outras, numa espécie de retorno à cultura mítica em que as coisas são indissociáveis porque sempre entendidas como relativas ao homem. Neste contexto, fundamentado no indissociável, conceber um conceito não é tão natural quanto parece a nós, adeptos do mundo já povoado de conceitos; apanhar uma idéia utilizando um conceito pode parecer natural, universal, mas é, na verdade, típico da linguagem filosófica – que depende, para existir, da distinção original entre o que é natural e o que é divino (a título de nota: na língua alemã, a palavra que designa o que entendemos por “conceito” denuncia esta não-naturalidade do conceituar: Begriff significa, em outros termos, apanhar). Neste jogo de “apanha-apanha” que é a língua, nem sempre os moldes com que se captura são os mesmos e, portanto, também o que é capturado, do que decorre que não necessariamente os conceitos de uma linguagem coincidem com os de outra (a título de exemplo: no português, por exemplo, há muito mais termos para designar águas de origem natural do que no francês); os conceitos de uma linguagem como que sobrevivem à medida que seus usuários os utilizam, de forma que um código lingüístico está estreitamente relacionado aos seus usuários e, nos dizeres de

MAQUINAÇÕES ESCRITAS PELA SOBREVIVÊNCIA · atingir a verdade das coisas e que atuasse nos moldes daquela rede que se prepara para receber os trapezistas na queda. Para Nietzsche,

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MAQUINAÇÕES ESCRITAS PELA SOBREVIVÊNCIA

Sheyla Smanioto Macedo1

1 Sheyla Cristina Smanioto Macedo, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor), Av. da Reitoria, sem número, Prédio V, terceiro andar, CEP 13083-970, Campinas, SP, Brasil, [email protected] ; orientada em projeto de Iniciação Científica pela Profa. Dra. Susana Dias.

Abstract The project of research, action and intervention “Biotecnologias de Rua” aims to explore the potentiality of

many several languages to create artefacts of divulgation for

the biotechnologies and to investigate their reception, which

shape biotechnologies, if it would be understood as

discursive production. Starting from the relation between the

biotechnologies that intend a ideas’ survival by proliferation

and the biotechnologies that intend a body’s survival by

reproduction, this academic work intends to discuss the

survival's concepts existent in the writing of Casares (2008)

in A invenção de Morel – text in which a fugitive makes his survival by the machine of written – and in Nietzsche (2008)

in Sobre a verdade e a mentira – text in which the author discuss, among other things, our necessity to dissimulate in

order to survive -, configuring part of a research that intends

to catch contributions, in those books, for scientific

divulgation, about the survival of the facts in records and/or

creations. Index Terms scientific-divulgation; literature;

philosophy; art-science.

FIGURA 1 FOTOGRAFIA DE ALIK WUNDER, APRESENTAÇÃO DA PEÇA “NUM DADO

MOMENTO” NO CENTRO DE CAMPINAS.

“TUDO QUE É PROFUNDO (...) AMA A MÁSCARA”

Não se sabe ao certo como surgiram as palavras, nem que tipo exato de relação elas têm com as coisas - tampouco se existe, nelas, correlação entre significado e significante; isto, talvez, porque não tenhamos acesso àquele momento de passagem entre um mundo tão recente que algumas coisas

ainda não haviam sido nomeadas e para se referir a elas era preciso apontar, e um outro já povoado de nomes. O que discutimos neste âmbito, portanto, vem e vai ao domínio das construções lingüísticas, estas articuladas em idéias, as quais podemos resgatar, pontualmente, em quatro teorias fundamentais: há quem defenda o surgimento da linguagem � ao acaso; � como produto de escolhas repetidas e repetíveis; � partindo de algum tipo de convenção social; � a partir de uma relação natural causal com o objeto (que pode ser do tipo interjetiva, onomatopéica, metafórica ou de imagem lógica).

Nietzsche defende esta última hipótese - mais especificamente: a do surgimento da linguagem partindo de uma relação natural causal metafórica com o objeto. Para ele, reitero, a relação entre as palavras e as coisas é do tipo imagem/objeto articulados metaforicamente, do que decorre que só conhecemos as coisas, em verdade, a partir de seus resquícios na imagem com as quais nos referimos àquelas – não as conhecemos, portanto: é como se, ao nascermos, fôssemos jogados numa teia conceitual que nos impedisse de atingir a verdade das coisas e que atuasse nos moldes daquela rede que se prepara para receber os trapezistas na queda. Para Nietzsche, é esta teia conceitual que nos certifica de que estamos integrados ao mundo dito Real, e não fruindo em sonho, porquanto em sonho as coisas como que perdem os seus contornos, confundem-se ao se misturarem umas às outras, numa espécie de retorno à cultura mítica em que as coisas são indissociáveis porque sempre entendidas como relativas ao homem. Neste contexto, fundamentado no indissociável, conceber um conceito não é tão natural quanto parece a nós, adeptos do mundo já povoado de conceitos; apanhar uma idéia utilizando um conceito pode parecer natural, universal, mas é, na verdade, típico da linguagem filosófica – que depende, para existir, da distinção original entre o que é natural e o que é divino (a título de nota: na língua alemã, a palavra que designa o que entendemos por “conceito” denuncia esta não-naturalidade do conceituar: Begriff significa, em outros termos, apanhar).

Neste jogo de “apanha-apanha” que é a língua, nem sempre os moldes com que se captura são os mesmos e, portanto, também o que é capturado, do que decorre que não necessariamente os conceitos de uma linguagem coincidem com os de outra (a título de exemplo: no português, por exemplo, há muito mais termos para designar águas de origem natural do que no francês); os conceitos de uma linguagem como que sobrevivem à medida que seus usuários os utilizam, de forma que um código lingüístico está estreitamente relacionado aos seus usuários e, nos dizeres de

Culler, acaba por configurar uma espécie de “teoria do mundo” que facilita e dificulta, em maior ou menor grau, a abordagem deste ou daquele tema. Nestes termos, em que um sistema finito dá conta de um número também finito de combinações, cada código lingüístico contém em si não somente o com quê dizer, mas todos os dizeres possíveis, isto é: há um certo limite, encontrado no dizível e no pensável, o qual está correlacionado a um certo sistema lingüístico, e o qual percebemos tendo em vista a corrente necessidade de fundar conceitos quando é preciso dizer coisas que ainda não foram ditas. Atuando como que marginalmente, certa literatura e certa filosofia tentam, a seu modo, a re-significação de idéias em conceitos outros que não os já dados circunstancialmente, evitando que a máquina de signos do mundo fique viciada, isto é, atrapalhando seu movimento para o mesmo.

Extrapolando a idéia de Nietzsche e fazendo-a compreender textos inteiros, teríamos, numa construção escrita cujo fim é o retomar uma certa circunstância, não um irrestrito acesso a esta, mas uma imagem em que ela sobrevive, em maior ou menor grau, conforme suas afinidades com o registro e com a criação; isto porque se, com as palavras, não conseguimos capturar as coisas, mas – potencialmente - apenas uma imagem das coisas, como poderia um texto ser entendido como via direta de acesso a um fato?

FIGURA 2 FOTOGRAFIA DE ALIK WUNDER, APRESENTAÇÃO DA PEÇA “NUM DADO

MOMENTO” NO CENTRO DE CAMPINAS.

REGISTRAR, CRIAR

O registro-ideal surgiria da proximidade entre a realidade e a escrita/fotografia, ligando-as, enquanto a criação-ideal do aprofundamento do abismo entre a realidade e a escrita. Evidentemente, nenhum desses dois movimentos é possível em si, mas podemos entendê-los como pólos para os quais se atraem, mais ou menos, os movimentos possíveis, de forma que nenhum deles é somente registro ou somente criação. Concebendo um texto que esteja a uma mesma distância destes dois pólos (é registro? É criação?) vemos

que, em termos gerais, tanto a linguagem dita “criativa” quanto o registro envolvem um movimento de tradução de uma Realitát - linguagem que entendemos como Real - para uma Wirklichkeit,2 isto é, outras linguagens, as quais, à sua maneira, tentam a captura do tempo. Na idéia de criação-ideal, o referencial está morto; no registro-ideal, ele vive explendorosamente; nos entremeios destes dois conceitos, ele sobrevive como pode.

FIGURA 3 FOTOGRAFIA DE ALIK WUNDER, APRESENTAÇÃO DA PEÇA “NUM DADO

MOMENTO” NO CENTRO DE CAMPINAS.

O INVENTOR DE MOREL

Estas questões ganham outras potencialidades quando vislumbradas tendo em conta o romance de Bioy Casares, que conta do “de repente” em que as engrenagens da máquina do mundo param de funcionar: em que a energia, subvencionada pela dança das marés, agracia com sua intermitência a curiosidade do narrador-fugitivo de A

Invenção de Morel. Pelo tecido rasgado, ele entrevê o mecanismo que projeta, em uma realidade, outra: engrenagens que geram engrenimagens: que pela captura e reprodução daquilo que, a todo instante, foge aos nossos sentidos – furtivas cores, sons e cheiros – tenta o eterno retorno do momento que seu inventor elegeu para chegar ao sempre: a estadia, com selecionados amigos, numa ilha que conhecemos como do arquipélago de Ellice: eis a máquina de Morel, motivo em que estão centrados os pensamentos acerca desta obra e a qual acaba por sobreviver nos registros do diário do narrador-fugitivo a partir do qual a conhecemos.

Relendo A invenção de Morel a partir da ambigüidade (que é rasgo por onde se pode ver as intimidades de um enigma) instaurada já no título do romance do argentino Bioy Casares, tomamos como central não a máquina como invenção de Morel, mas o texto enquanto máquina que

2 Os termos apresentados em alemão são utilizados para designar o que entendemos por Realidade, embora, em português, não se faça a referida distinção; numa definição aproximada, temos: Realitát como “o que está sendo”; e Wirklichkeit como “o que surte efeito”.

inventa Morel (neste caso, “invenção” está sendo entendido como processo, e não como fim). A partir desta mudança de foco, tentamos a potencialização do que a obra, enquanto arte, diz sobre a arte, pela figuração de um complexo discurso metapoético e pela perversão das comuns noções de registro – ao invés de um acontecimento gerar um registro, é o registro quem gera acontecimento; ao invés de se registrar o que acontece, faz-se acontecer de modo poeticamente agradável, de forma que o registro soa como se mais pendente ao criativo do que se espera dele como registro. Esta tendência de relacionar o poético à criação é problematizada na obra de Bioy Casares na medida em que esta articula, como dissemos, um registro do poético: como se a poeticidade estivesse também no mundo, e não somente na linguagem, e esta viesse afim de potencializá-lo; no contra-sentido, temos o que chamamos “ironias do destino”: certos acontecimentos que nos deixam ver a espantosa articulação das coisas no mundo numa intensa coincidência que, embora não seja verossimilhante, não podemos negar como Real.

Destes decorrem outros paradoxos: o narrador-fugitivo busca abarcar o que ele crê concreto pelo abstrato da linguagem, significando a falta original que dá origem ao discurso literário, que é a transformação do mundo em linguagem; esta transformação, ademais, predetermina a perda do real, o que caracteriza o delírio e que, no caso do narrador-inventor, não é qualquer delírio, mas o delírio poético – delírio que é lucidez, o qual se contrapõe à vigília cotidiana. Durante o delírio poético, o que o narrador-inventor (aqui feito poeta) escreve advém de sua contemplação do mundo-fotografia: para ele, a despeito de sua incisiva vontade de ação, esta pode ser tida como contemplação, e a contemplação como ação, a realidade como imaginação, e a imaginação como realidade, numa dinâmica em que a imaginação artística acaba por alterar o real. Em A invenção de Morel, essa alteração do real surge pela necessidade de ação que a contemplação do mundo figurado na fotografia de Morel engendra; das duas formas gerais de catarse, a ativa e a passiva, o mundo que é arte que o narrador contempla inspira nele a catarse ativa, em que a leitura gera ações, ao contrário da outra, em que esta gera contenção; as ações do narrador, porém, são inativadas pela impassibilidade do mundo-fotografia, do que decorre sua necessidade de, vicariamente, protelar ou anular ações para conviver com idéias autodestrutivas com as quais cada um deve conviver – para sobreviver a si mesmo, escrevendo.

Isolado, em uma ilha para a qual foge por haver sido acusado de crimes políticos, o narrador-inventor escreve; da perspectiva que adotamos, esta escrita é também uma chamada de socorro para a linguagem, que vem no sentido de proteger aquele que escreve da realidade hostil que o cerca a partir da invenção de uma outra realidade, Wirklichkeit, esta poeticamente agradável. Não há a criação de uma nova linguagem, mas a constante figuração das limitações impostas por uma trazida de além-mar, de tal forma que a fidelidade a que ele se propõe acaba por traí-lo:

a invenção da máquina de Morel faz seu mundo artisticamente mais rico, o que o afasta, até o extremo de ele se fazer fundido à obra de arte, de suas obsessivas enumerações. Esta fusão, engendrada pela filmagem dele mesmo interagindo com a projeção, é superficial e o encaminha à morte pela moléstia que acomete a ilha, a qual “mata de fora para dentro” [1]. 3

Conhecemos, em A invenção de Morel, a realidade do que o narrador chama de “fotografia” através das letras deste: são as palavras que nos permitem o acesso às imagens – lemos o narrador lendo a fotografia; e é nessa imagem e nessas palavras que ele quer sobreviver: na primeira porque da sua paixão pela mulher de lenços coloridos que nela “existe”, na segunda para tentar a inocência, mesmo que tardia. Neste sentido, e tendo em vista que o homem, em geral, necessita “ordenar, em seu interior, o mundo empírico inteiro (...) para não ser arrastado e não perder a si mesmo”i, poderíamos organizar – sempre tendo em vista que, neste como noutros quebra-cabeças, as hastes nem sempre se completam - a obra de Bioy Casares como se fluxo de três torneiras: a dos registros que surgem pela manutenção da sobrevivência fisiológica (de topografia, das marés, da flora etc.), a dos que surgem pela sobrevivência existencial (a invenção do mundo de Morel tendo como “matéria prima” a solidão etc.) e pela sobrevivência memorial (os registros que pretendem reiterar um discurso verdadeiro, o qual condiz com alguém inocente4, como ele diz ser).

A posição a partir da qual conhecemos a fotografia de Morel, isto é, em relação a uma narrativa, permite–nos vislumbrar espécie de maquinário metapoético, o qual viabiliza comparações entre a condição da “fotografia” e a condição da escrita – o que podemos reiterar pela colocação, por Morel, do paralelismo que há entre a vida dos homens e a vida das imagens. A máquina de Morel quer, como a máquina-texto do narrador, a sobrevivência pela reprodução – esta a partir da (quase nunca a mesma) leitura, aquela a partir da reprodução garantida pela energia das marés -, mas que tipo de sobrevivência? Uma de que dependa a morte do referencial, como é o caso? Essa sobrevivência dos fatos, ideal jornalístico, é mesmo ideal? Ademais, em que medida um registro ou uma criação permitem a sobrevivência da natureza-referencial?

3 Do que podemos extrair, no livro, duas justificativas, sendo uma dita científica (a doença é causada pelos raios que a máquina de Morel emite para fotografar) e outra, mítica (há uma transposição do homem para sua imagem, como acreditavam os membros de algumas tribos, do aparente para o intrínseco, seu corpo e por fim sua alma). Ele oscila entre estas duas explicações e acaba por, convenientemente, aceitar a última, pois reside nesta sua única possibilidade de integrar-se inteiro e sem reservas à realidade de Faustine. 4 Inocente dos crimes políticos e, pela máquina da escrita, da invenção – transferindo-a a Morel, de modo a não ter que sofrer as “culpas da criação”.

FIGURA 4 FOTOGRAFIA DE ALIK WUNDER, APRESENTAÇÃO DA PEÇA “NUM DADO

MOMENTO” NO CENTRO DE CAMPINAS.

O PODER DA PALAVRA, REALIDADE COMO

ARCABOUÇO RETÓRICO

Diz-se que a arte é a magia destituída de seu poder. Apesar da beleza desta afirmação, é preciso saber dosá-la, ao menos no que diz respeito à arte escrita. Na magia, há a representação do desejo através de símbolos, os quais, acredita-se, quando ritualizados atraem o objeto desejado; num sentido semelhante de simbolização há a utilização da palavra nos rituais mágicos. Tem-se, portanto, a crença de que a intimidade entre as palavras e as coisas é tamanha que elas, de alguma forma, atraem-se mutuamente.

O conhecimento da distância que há entre uma coisa e a palavra utilizada para designá-la acaba por inviabilizar a magia nestes termos. Diz-se que o poder da palavra, diretamente associado aos rituais mágicos, finda com estes; o que finda (ou diminui), porém, é a crença nesse poder – não ele, propriamente -, o que o torna perigoso.

Através da mentira, a palavra ainda pode realizar: quando nos contam do que desconhecemos, por exemplo, aceitamos como real desde que haja uma certa coerência entre os temas articulados nesta comunicação e entre esta comunicação e o que conhecemos previamente. A mentira,

materialização lingüística de um desejo, postula uma wirklichkeit desvinculada da realitát; e, ainda, multiplica o alcance deste potencial pelo inegável poder político da palavra num mundo que, a todo instante, postula-nos sua realidade, mesmo quando se afigura irreal.

A linguagem literária, dita artística, conta, quando da postulação de uma realidade, com a chamada “fé poética” de que fala Coleridge; ademais, ela, constantemente, faz referência a si mesma, o que configura um elemento anti-naturalista, tal como o coro de tragédias nos dizeres de Nietzsche. A realidade, porém, não nos é postulada apenas por uma linguagem do Real ou de assumida elaboração criativa, como a literária, mas também pode se afigurar pela linguagem dita de registro, caso em que o desconhecimento destes termos pode trair nossos juízos na diferenciação pragmática entre o que é registro e o que é criação, rendendo-nos ao que parece um ou outro.

É neste sentido que podemos dizer que o registro tem potencial de, pela palavra, fundar a lembrança de um acontecimento, modificando-o nas memórias e postulando sua sobrevivência nestes termos através desta captura traída da realidade. Tem potencial, portanto, para recriar, o que torna o querer o registro perigosa armadilha: na ânsia de capturar o real, somos capturados pela linguagem. Neste contra-sentido, isto é, para ir além de uma linguagem já convencionalmente dada, acreditamos que é preciso desatar os conceitos: entendê-los não como grafite firme na folha, mas como aquarela que se desfaz no traço feito; arriscamos dizer, também, que é preciso surpreender a linguagem: tentar armadilhas – potencializar pela re-significação, pelo jogo, pelo acaso, pela palavra discutida e não instituída.

FIGURA 5 FOTOGRAFIA DE ALIK WUNDER, APRESENTAÇÃO DA PEÇA “NUM DADO

MOMENTO” NO CENTRO DE CAMPINAS.

BIOTECNOLOGIAS DE RUA, ENTRE OUTROS

PROJETOS...

As idéias fixas são mesmo muito sedutoras, e é nelas que a divulgação científica predominante atualmente aposta: como se refeitas em laboratórios, notícias são modificadas para atenderem a essa demanda de certezas, e palavras-presas são rendidas entre as vírgulas e os pontos de pretensamente objetivos textos. A crença política na fixidez dos conceitos e das idéias, na noção de que o pensar pode até mesmo conhecer e corrigir “os abismos mais profundos do ser” [2], a despeito de desconhecer os seus próprios, constitui espécie de fé na ciência que, de certa forma, move a própria ciência e quem a divulga segundo estes termos.

Para criar artefatos de divulgação das biotecnologias, entendidas como produção discursiva, pesquisar a recepção destes artefatos – um divulgar que pesquisa a divulgação -, além de investigar e realizar ações práticas que articulem, na divulgação da ciência, diferentes linguagens, espaços, abordagens temáticas e relações com o público, os projetos Biotecnologias de rua

5, Num dado momento: biotecnologias e culturas em jogo

6 e Um lance de dados: jogar-poemar por entre bios, tecnos e logias7 vão às ruas: em performances, instalações, homepage, cartazes, folders, mostras de cinema, produção de vídeos, peças de teatro, etc. O querer criar, e não simplesmente procriar ou registrar para divulgar, pulsa porque os pesquisadores e artistas envolvidos não desejam simplesmente traduzir em linguagens, dizer (aludindo a Umberto Eco:) quase a mesma coisa; porque não pretendem malograr pontes que conectem cientistas-em-seus-laboratórios às pessoas-nas-ruas, como intérpretes ou mordomos que levem em suas bandejas o objeto aos sujeitos. A despeito da proposta – das biotecnologias de laboratório – de sobrevivência do corpo pela reprodução, os projetos relacionados ao Biotecnologias de rua pretendem, num movimento diverso, a sobrevivência das idéias pela proliferação - intentam provocar o público geral a refletir e discutir sobre as biotecnologias, arriscando o movimento de levar as biotecnologias para as ruas, e também o de trazer as ruas para as biotecnologias.

O portal de blogs Biotecnologias de rua8[8] pretende aproveitar os potenciais de interação com o público propiciados pela internet para fazer-se, simultaneamente, local de pesquisa e de divulgação científicas; pretende trazer à web imagens, sons e escritas atinentes às biotecnologias “de rua”, isto é, que se produzem nos e circulam por diversos

5 Coordenado por Carlos Vogt, o projeto Biotecnologias de rua (No. 553572/2006-7. Edital MCT/CNPq n. 12/2006 – Difusão e Popularização da C&T) é desenvolvido por pesquisadores e artistas vinculados ao Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) e Faculdade de Educação (FE) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O projeto foi aprovado em outubro de 2007 e vigorará até abril de 2009. 6 Projeto “Num dado momento: biotecnologias e culturas em jogo” (convênio 519-292/auxílio 803-08) aprovado no edital da Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários (Preac-Unicamp) 2008 em agosto de 2008 e que vigorará até agosto de 2009. 7 Projeto “Um lance de dados: jogar-poemar por entre bios, tecnos, logias” aprovado no edital Proext-Cultura do Ministério da Cultura e Ministério da Educação em novembro de 2008. O desenvolvimento do projeto acontecerá de janeiro a dezembro de 2009. [8] Visite em: http://www.labjor.unicamp.br/biotecnologias

ambientes sociais urbanos, sendo que este movimento pode ser engendrado tanto pelos pesquisadores e artistas do projeto, quanto pelos próprios internautas. Neste contexto, o blog do Calçadão está sendo criado para divulgar pesquisas e intervenções já realizadas no projeto e expandir tais divulgações/divagações no contato com os internautas e na criação de postagens que buscam captar destes ambientes uma atmosfera, um perfume capaz de inebriar as biotecnologias, dispersando-as e multiplicando-as; desta forma, ele pretende divulgar/divagar as divulgações das biotecnologias pelo projeto e as divagações atinentes a elas que são feitas nas ruas: algo como o que propôs o filósofo argentino Eduardo Pellejero em palestra ministrada em sua visita ao Labjor-Unicamp: um tentar ir “além da ciência, além da informação” – o além do Nietzsche - e, no caso do blog do Calçadão, além do mero registro, para complicar a realidade; desmantelar a idéia de funcionamento universal; aliar ciência, erudição, arte com aquilo que não tem voz; ir ao encontro dos lugares de atrito, não para confrontar, mas para colocar novas questões, criar algo que vai além do conhecimento já estabelecido.

O convite é ao entre arte e ciência, imagem e palavra, exposição e captura, resultado e matéria-prima, divulgação e questionamento, porto de parada do já pensado e rampa imaginante de novos gestos, objetos, escritos, imagens e sons: entre o divagar e o divulgar: entre o registrar e o criar, buscando um criar que venha de um pensar e que vá a outros tantos, para registrar sem ser somente registro - sendo criação -, buscando tocar nos caminhos da arte para gerar mobilizações subjetivas para além das formas imagéticas habituais da divulgação científica.

Pensando no divulgar como um ato que envolve uma criação, na qual não está em jogo um mero registro do conhecimento científico, ou das técnicas jornalísticas em textos, mas um pensar sobre a prática da escrita, um criar na escrita e com a escrita, tentamos um registrar que é criar porque quer proliferar uma ambiência, e não estabelecer meras enumerações, datas e nomes.

Os registros advindos das produções do projeto realizadas nas ruas, portanto, pretendemo-los como produções em si, sobreviventes além da sua relação com o que foi registrado – de tal forma que não diga o já dito, que não traga à tona um tempo já vivido, mas que vá em busca de novos dizeres pelo encontro de tempos e de pensares: tal como a foto de uma estátua não é a estátua em si, mas uma outra produção. O algo que leva ao referencial é antes uma certa ambiência, em cheiros ou cores característicos, flashes dispersos, do que a imposição, típica do mundo dito Real, de modelos e números.

Neste movimento, não pretendemos, pretensiosamente, alçar as coisas verdadeiras além das imagens delas mesmas, mas apenas tentar novas coisas, novas imagens, além de verdades e mentiras: fagulhas para o pensar. [1] NIETZSCHE, Friedrich, Sobre verdade e mentira, 2008, p. 46. [2] NIETZSCHE, Friedrich, O nascimento da tragédia, 2008, p. 14.