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Sheila Schvarzman Doutora em História Social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pro- fessora do Programa de Mestrado em Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi. Autora, entre outros livros, de Mauro Alice: um operário do filme. São Paulo: Imprensa Oficial, 2008. [email protected] Marc Ferro, cinema, história e cinejornais: Histoire parallèle e a emergência do discurso do outro Marc Ferro. Fotografia, 2001.

Marc Ferro, cinema, história e cinejornais: Histoire parallèle

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Sheila SchvarzmanDoutora em História Social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pro-fessora do Programa de Mestrado em Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi. Autora, entre outros livros, de Mauro Alice: um operário do filme. São Paulo: Imprensa Oficial, 2008. [email protected]

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foi ao examinar arquivos fílmicos sobre a 1. guerra Mundial, em 1964, que Marc ferro percebeu a que ponto imagens continham informações distintas das que se conheciam através de documentos escritos. a partir dessa constatação, feita ao observar a alegria das populações alemãs com o armistício de 1918, quando ainda desconheciam os termos da rendição, pôde entender a desilusão e o furor que se seguiu à ideia forjada pelo exército germânico de que não haviam perdido a guerra, mas sido traídos pelos adversários, argumento que alimentou as reações apaixonadas do conturbado entre guerras. Logo depois, Ferro analisou filmes russos do início dos anos 1920, com situações inéditas sobre a vida na rússia, que não correspondiam àquilo que se conhecia pela bibliografia, tanto comunista como anticomunista. Seguem-se então suas primeiras reflexões teóricas sobre as possibilidades do cinema como uma fonte para o historiador, no momento em que, como secretário de redação da revista comandada por fernand Braudel, passava a fazer parte dos annales.

Marc Ferro, cinema, história e cinejornais: Histoire parallèle e a emergência do discurso do outroMarc ferro, cinema, history, and newsreels: Histoire parallèle and the emergence of the discourse of the other

Sheila Schvarzman

resumoao se lançar ao trabalho com o cinema e com a temática do controle sobre as informações e a memória, Marc ferro voltou seu interesse igualmente para as formas de apropriação da história expressas no ensino primário, no livro didático, na imprensa e na televisão. Nessa linha de preocupação, este artigo analisa Histoire parallèle, programa de tV apresentado por Marc ferro entre 1989 e 2001, observando a significa-tiva relação que ele estabelece com a produção historiográfica e fílmica do historiador. Para tanto, seus pres-supostos teóricos são rediscutidos e historicizados à luz das suas obras e da análise de três dos seus programas. palavras-chave: Marc ferro; Histoire parallèle; cinema e história.

abstractBefore working with cinema and the topic of control of information and memory, Marc Ferro was equally interested on forms of appropriation of history expressed in grammar school, textbooks, press, and television. Along these lines, this article analyses histoire parallèle, TV show hosted by Marc Ferro between 1989 and 2001, observing the significant relationship he establishes with historians historiogra-phic and cinematographic production. To this end, his theoretical assumptions are rediscussed in the light of his works and of the analysis of three of his shows.

keywords: Marc Ferro; histoire parallè-le; cinema and history.

* Este artigo retoma e atuali-za o capítulo sobre cinema, história e Marc ferro da mi-nha dissertação de mestrado. SchVarZMaN, Sheila. Como o cinema escreve a história: Elia Kazan e a américa. Dissertação (Mestrado em história) – ifch-Unicamp, campinas, 1994.

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oAinda que nada impedisse o estudo de filmes pelos historiadores desde que Seignobos e langlois1, em 1898, reconheceram que obras lite-rárias ou teatrais permitem conhecer períodos de escassa documentação, foram muito poucos os estudiosos que enfrentaram os arquivos fílmicos ou mesmo os filmes de ficção até aquele momento, e nenhum deles abriu aos historiadores o campo do cinema como fonte para o estudo da história, com os seus desdobramentos como podemos observar hoje2 – e já poupados de muitos dos seus constrangimentos –, pois nos anos 1970, marcados ainda pelo marxismo nos estudos históricos, o cinema não era de forma alguma, visto como fonte de estudo confiável.

foi portanto necessário enfrentar e legitimar o estudo do cinema pelos historiadores. Entretanto, aceito ou não, ferro seguiu pesquisando história contemporânea, produzindo e analisando filmes3 – suas observações sobre as imagens sendo incorporadas ao conhecimento histórico que produziu. a partir desses estudos, aprofundou suas reflexões historiográficas marcadas pelo viés comparativo, do qual a pesquisa com imagens foi um dos pólos desencadeadores, uma vez que, ao invés de considerar que as imagens erravam quando seu conteúdo era distinto do que já se conhecia, lança dúvidas sobre as construções já estabelecidas.

Dentre os vários trabalhos de análise e realização cinematográfica que desenvolveu em sua carreira, Histoire parallèle, programa de televisão que manteve entre 1989 e 20001 no canal La Sept-ARTE tornou-se emblemático pela intervenção do historiador no espaço midiático. a emissão, fundada na exibição comparativa de cinejornais dos países em litígio na 2. guerra Mundial, permitiu – e manteve, pela boa resposta da audiência – um exer-cício historiográfico público e contínuo. No mesmo momento em que caía o Muro de Berlim e que a Europa dava início a sua profunda reconfiguração, a nova emissora franco-alemã promovia uma revisão historiográfica do último grande conflito a opor suas populações. Os cinejornais vistos ou revistos pelo público tornavam-se, nessa operação, documentos históricos acessíveis e compartilhados. É verdade que a um alto custo, o que invia-bilizou a sua reprodução posterior, mas que, justamente, possibilitou sua extensa e significativa difusão junto a um público médio em torno de um milhão e duzentos espectadores.4

Em maio de 1989 havia começado a funcionar La Sept, canal público de televisão franco-alemão de conteúdo cultural, presidido pelo historiador george Duby. o surgimento desse canal como uma Sociedade Europeia de Programas de televisão, marcava os laços de amizade que deveriam unir os dois países, inimigos de longa data. Em 1. de setembro, Histoire parallèle começa a ser apresentado por Marc ferro e pelo historiador alemão Klaus Wenger, exibindo os cinejornais veiculados nos cinemas dos dois países naquele mesmo dia, cinquenta anos antes, quando se preparavam para a guerra.

a exibição integral dos dois cinejornais provoca o diálogo, aciona a memória, emoções, surpresa. Conduz à reflexão sobre a construção das narrativas históricas consagradas: o que cada país enfatiza de fatos comuns, como os organiza, seu encadeamento temático, a retórica cinematográfica de que se nutriam: a construção fílmica, a voz off, o fundo musical. a guer-ra é vista, revista e por muitos revivida. isso suscitou reações. a emissão, projetada para durar alguns meses acaba se estendendo por doze anos, quando chegou a abarcar todos os países beligerantes que colaboraram no

1 Ver laNgloiS, charles Vic-tor e SEigNoBoS, charles. In-troduction aux études historiques. Paris: Librairie Hachette, 1898. 2 Exemplos significativo são K r a c a U E r , Sigfried. De Caligari a Hitler. rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988 (original de 1947), e MoriN, Edgard. O cinema e o homem imaginário. lisboa: relógio d´agua, 1997 (original de 1956). 3 Nos anos 1970 ferro dirigiu a série Images de l´histoire, 13 filmes de 13 minutos para a hachette-Pathé cinéma com títulos como Lenine par Lenine, entre outros.4 conforme pesquisas de 1991 da Mediamat. isso correspon-dia, então, a 7% da audiência francesa. cf. garÇoN, fran-çois. la réussite d´histoire parallèle. Cinemaction, n. 65. Paris: corlet, 1992, p. 60.

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envio de material fílmico, como itália, Japão, Estados Unidos, inglaterra, UrSS. terminada a guerra, o programa continua e aborda o pós-guerra, a descolonização, a formação da União Européia, entre outros temas, até que em 2001 chega ao fim devido à escassez de imagens de cinejornais nos arquivos, segundo ferro.5

Por outro lado, não é fortuito que um programa que revisitaria a his-tória da Europa através de cinejornais começasse a se produzir no mesmo momento em que o continente se encontrava em forte ebulição política, que culminou com o desmoronamento do comunismo nos países do leste a partir da Perestroika russa de 1985 até a queda do Muro de Berlim em 1989. Histoire parallèle é parte dessa nova inscrição histórica da Europa. Mas é também o resultado do trabalho historiográfico de Ferro, em que a história contemporânea não pode ser dissociada dos meios audiovisuais em sua compreensão e produção.

Sendo assim, procuro neste artigo refazer alguns dos caminhos que levam Marc Ferro dos seus primeiros estudos com filmes até Histoire pa-ralèlle, revendo e contextualizando o imbricamento entre o trabalho com filmes – análise e realização - e suas contribuições historiográficas, para observar como incidem no programa de tV que apresentou e, a partir disso, analisar algumas emissões.

Marc Ferro, história, historiografia e cinema

Quando examinamos documentários de temas históricos que se utilizam de imagens de arquivo, nota-se com muita frequência uma pre-ocupação com o texto da locução e a fala dos entrevistados. as imagens parecem escolhidas, em sua maioria, como ilustração da locução, de uma ideia. Poucas vezes, até pela dificuldade com os acervos, a informação é estritamente visual e se sustenta sem o texto. Em 1918 - Le dénouement (O desenlace)6, realizado em 1968 por ferro para o cinquentenário do armistício da 1. guerra Mundial, observamos imagens da volta dos soldados à frança, à inglaterra, aos Estados Unidos e à alemanha. Se na imagem dos primeiros países a recepção é calorosa, no país vencido ela não é funesta como seria de esperar pelo que se conhecia através da bibliografia, fato que surpreen-deu o historiador, como referimos antes. através da sobreposição dessas diferentes imagens obtidas em cinejornais, ferro construiu um argumento historiográfico. Escreveu por meio de imagens, encontrou uma informação distinta da conhecida pela historiografia vigente e chamou a atenção sobre as suas possibilidades de análise e apropriação pelo historiador.

Nas obras escritas produzidas durante os anos 1970, quer se tratassem da reflexão sobre a relação do cinema com a história, ou da Revolução Russa, é pela exposição e contraposição da pluralidade de visões sobre um mesmo objeto que Marc ferro monta sua argumentação. Da La révolution russe de 1917: octobre, naissance d’une societé7, de l976, passando pela biografia e a narrativa, como em Pétain8, de l987, e Nicolau II9, de 1990, a história que constrói dá a ver o seu processo de engendramento pela exposição e contraposição dos diferentes testemunhos de que o historiador tem que lançar mão para concebê-la. Já Nicolau II, czar de todas as rússias, não é apenas sua visão em determinado momento. Ela é também a retomada de como outros historiadores o fizeram e de como o personagem era visto por diferentes segmentos entre os seus contemporâneos: quantos Nicolaus ii

5 cf. VEraY, laurent. De la BDic à Histoire parallèle. re-gard d´historiens et de té-moins sur les archives . Ma-teriaux pour l´histoire de notre temps, n. 89-90, Paris, 2008/1. Disponível em <http://www.cairn.info/article.php?ID_ARTICLE=MATE_089_0025>. acesso em 13 dez. 2012.6 Disponível em <ht tp : / /www.ina.fr/histoire-et-con-flits/autres-conflits/video/cPf86606060/1918-le-denou-ement.fr.html>. amostra do filme. acesso em 13 dez. 2012.7 fErro, Marc. La révolution russe de 1917 : octobre, nais-sance d´une societé. Paris: aubier-Montaigne, 1976.8 Idem. Pétain. Paris : fayard, 1987. 9 Idem. Nicolas II. Paris: Payot, 1990.

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osão ou já foram possíveis. Da mesma forma isso ocorre em sua Histoire de France10, escrita à luz da globalização e da União Européia em 2001. Não se trata de um procedimento apenas comparativo, mas de expor os diferentes sentidos que compõem as visões de história sobre um mesmo objeto, e de como, por injunções políticas, algumas predominam ou mesmo apagam as demais, inclusive por obra dos historiadores: os monumentos que o historiador com seu poder sobre a história transforma em documentos. trabalhando o cinema, ferro contestou o poder do historiador que deter-mina o que é ou não digno de história.

Isso significa dizer que, a partir do cinema, foi possível mostrar as virtualidades de uma história crítica em seus pressupostos, que se faz con-trapondo os documentos, pela tensão que se estabelece entre eles: múltipla e multifacetada. Histoire parallèle é outro exemplo desse procedimento. Estas observações sobre a obra de ferro apontam para a necessidade de uma aná-lise mais abrangente, imposta pela necessidade de inserir o cinema dentro do quadro teórico mais amplo que compõe e determina sua obra, onde a organicidade do seu pensamento se encontra nos usos e abusos da história.

No segundo tomo de La revolution russe de 1917: octobre, naissance d’une societé, Marc ferro opõe a “revolução imaginada e a revolução ima-ginária”11, compondo um quadro de como os diferentes segmentos sociais envolvidos construíram suas ideias e ideais sobre a revolução, e de como esta foi vivenciada na prática. a partir daí foi capaz de mostrar qual das visões prevaleceu e de que forma o seu grupo porta-voz pôde dominar pela força, pela censura e pelo controle da sociedade, os outros sentidos que informavam a revolução na sua origem. Esse grupo detém a “verdade”, a visão que preponderou sobre as outras e que justificou toda opressão e controle em seu nome: “a revolução, tal como os revolucionários a haviam imaginado antes de 1917, era uma revolução imaginária. No entanto, como, de acordo com suas previsões, ela havia efetivamente estourado, eles não colocaram em causa nem suas análises, nem suas certezas”.12

Nesse momento ferro postula que a história não se organiza por uma verdade que o historiador descobre nos documentos. ao contrário, a este cabe assinalar a fatuidade desses documentos e a sua constante ressignificação a serviço de cada momento histórico e contra a imposição de verdades universais que instrumentalizam o domínio de uma visão e do respectivo grupo social que a sustenta. É a emergência do discurso do outro, não apenas daquele por quem a história sempre foi escrita.

Dessa forma, ferro se juntava a seus pares que nos anos 1970 já pro-curavam abrir a história para aqueles a quem o discurso histórico tinha antes calado: operários, mulheres, camponeses, povos colonizados. Se Michelle Perrot, Jacques Le Goff, Pierre Nora procuravam demarcar seus campos e objetos, ferro o fazia tendo por tema a construção de uma nova sociedade, e por fonte expressões próprias do tempo e das manifestações que interrogava: dentre elas, as imagens do cinema.

Uma relação datada?

a relação entre história e cinema, tal como desenvolvida por Marc fer-ro no início dos anos 1970, é determinada pela natureza dos fenômenos que analisava, tais como a Revolução Russa ou o stalinismo. Os filmes lhe dão a possibilidade de penetrar em dados então difíceis de acessar por outras fontes.

10 Idem. Histoire de France. Paris: odile Jacob, 2001. 11 Idem. La révolution russe de 1917, op. cit., p. 12.12 Idem, ibidem, p. 13.

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A imagem, o caráter artístico e ficcional do cinema, dificulta o controle das instituições sobre seu conteúdo. Dificulta, sobretudo o controle por bu-rocratas acostumados a ver no som, e não na imagem, o verdadeiro perigo. o controle político incide sobre o som, sobre o que os personagens dizem, enquanto a censura moral é que corta o que o filme mostra.13 a natureza do cinema permitia que lapsos se evidenciassem. Se havia censura, havia um conteúdo latente. E o cinema, baseado em imagens, permitia que esses frag-mentos do não-dito aflorassem, apesar dos controles. Analisá-los permitia ao historiador acesso a uma documentação inédita e diferente daquela en-contrável nos arquivos controlados pelo Estado ou pelo Partido comunista.

É visível nessa formulação historiográfica a influência da psicanálise, muitíssimo utilizada nesse período como instrumental interpretativo do cinema14, e ainda a prevalência da noção de ideologia tal como era prati-cada nos anos 1970, com seus conteúdos ocultos, cabendo ao historiador desvendá-los, restituindo-os ao conhecimento histórico.

antes disso, em 1964, como consultor histórico de um documentário sobre a 1. guerra Mundial15, o contato com os cinejornais levou-o a constatar que “as imagens não produzem as mesmas representações do passado que os arquivos escritos”. A partir do estudo de uma série de filmes soviéticos passa a utilizar o cinema como fonte de uma outra história, que permite ao historiador criticar, reformular ou, ao contrário, reafirmar o conhecimento existente a partir de documentos escritos. La révolution russe de 1917: octobre, naissance d’une societé contém amostras da abrangência desse procedimen-to, pois já utiliza as observações sobre os filmes como documentação, da mesma forma que fontes tradicionais. isso lhe permite “legitimar a imagem como fonte histórica em relação às fontes consagradas”.16

a esse respeito é interessante notar que, se o uso do cinema pelo historiador já é incluído no terceiro volume de Faire de l’histoire, de Le Goff (1974)17 – que enfoca novos objetos, com um artigo de ferro a respeito –, Peter Burke, em livro de 199118, trata de ferro como um dos únicos “histo-riadores novos” a trabalhar com a época contemporânea, sem menção ao trabalho com o cinema. a omissão de Burke não é desinformação. revela como o assunto foi evitado ou tratado com desconfiança pelos historiado-res. É como se essa questão fosse exterior ao livro que escreve, quando na realidade não o é. Bem ao contrário.

São os pressupostos dos Annales e da Nova história – com suas pro-postas de uma história das mentalidades, seu interesse pelo material, o quotidiano, uma história crítica em relação aos documentos, interdisciplinar nas abordagens e com novos objetos – que permitem a ferro introduzir o cinema como objeto e como documento para evitar o controle da infor-mação, e consequentemente o controle sobre a história que se produzia.

o trabalho com o cinema e com o controle sobre as informações conduzem ferro a incluir em seus interesses outros meios que vinham invadindo e controlando a memória dos homens desde os fins do século XiX: o ensino primário, a imprensa, o livro didático e a televisão, que se apropriavam da história.19 Sua abordagem e preocupações fazem eco a Michel de certeau, que na “operação histórica”20 aborda a influência e o controle das instituições sobre o que o historiador produz. Por outro lado, Lieux de mémoire, de Pierre Nora21, que examina a institucionalização da memória, dos seus lugares e das comemorações, dialoga com ferro, que procura no filme memórias omitidas.

13 cf. idem, ibidem, p.18-39. 14 Veja-se a influência de Cris-tian Metz, e de seu seminário na mesma École e suas publica-ções: MEtZ, cristian. Essais sur la signification au cinema. Paris: Klincksieck, 1968, e Langage et cinema. Paris: collection Ça cinema,1971. 15 Ver BESaNÇoN, alain et al. l’expérience de la grande guerre. Annales, n. 2, 1965.16 garÇoN, françois ; Sor-liN, Pierre. De Braudel à his-toire parallèle. Cinemáction, n. 65, Paris, 1992, p. 53. 17 lE goff, Jacques (org.). Faire de l’histoire. Paris: gallimard, 1974. 18 BUrKE, Peter. A revolução francesa da historiografia: a Esco-la dos annales (1929-1989). São Paulo: EDUNESP, 1991. 19 Ver fErro, Marc. Comment on racconte l’histoire aux enfants, Paris, Payot, 1981 (A manipu-lação da história no ensino e nos meios de comunicação. São Paulo: ibrasa, 1983), sobre as visões de história construídas pelos livros didáticos, O Ocidente diante da Revolução Russa. São Paulo: Brasiliense, 1984, sobre como os jornais ocidentais reportaram a revolução de 1917, e artigos como Médias et intelligence du monde, Le Monde Diplomatique, Paris, jan. 1993, sobre a televisão.20 cErtEaU, Michel de. l´operation historique. In: lE goff, Jacques (org.). Faire de l’histoire, op. cit..21 Nora, Pierre. Les lieux de memoire – i et ii. Paris: galli-mard, 1984.

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oCinema e História: uma história

hoje, há mais de 40 anos do surgimento dos estudos sobre cinema e história, já é possível historicizar, como aponta Le Goff, como e por que filmes começam a interessar os historiadores na França: “A historicidade obriga a inserir a história numa perspectiva histórica. há uma historicidade da história que implica o movimento que liga uma prática interpretativa a uma prática social”.22 Dessa forma, ao observarmos a historicidade do filme como objeto de estudo e fonte para o historiador, somos levados a repensá-lo à luz de sua própria gênese, na qual se mesclam as ideias da história Nova, as suas contribuições, a realidade cultural e social pós-maio de l968 e o próprio cinema que se fazia na época.

a) “Uma máquina burguesa” Nos anos 1970 em revistas como Cahiers du Cinema o cinema era visto

como uma “máquina burguesa”, lugar de produção da ideologia dominante e, portanto, de opressão. Em 1980, Jean claude Bernardet, em seu O que é o cinema, explicita essas ideias: “a máquina cinematográfica não caiu do céu. [...] No bojo de sua euforia dominadora, a burguesia desenvolve mil e uma máquinas e técnicas que não só facilitarão seu processo de dominação, a acumulação de capital, como criarão um universo cultural à sua imagem”. 23

Sem nos determos no mérito destas afirmações, essas eram as for-mas críticas de ver o cinema na época, e ensaios dos Cahiers du Cinéma ou Christian Metz, entre outros, buscavam, por intermédio da semiologia e da lingüística, caminhos para a constituição de um cinema crítico e não burguês. Para tanto, os Cahiers da década de 1970 retomam cineastas rus-sos, como Dziga Vertov ou Eisenstein, além de reflexões sobre a técnica cinematográfica – ela, por natureza, vista como burguesa, pois reproduzia a perspectiva renascentista e a ideia ‘natural’ e por isso ‘real’ do que se vê. “técnica e ideologia” (n. 231), “o fetichismo da técnica” (n. 233), “Política e luta ideológica de classes” (n. 234) procuravam se contrapor a essa visão hegemônica. Em 1974 o cinema engajado em lutas anti-imperialistas é tema preponderante: cinematografias do Brasil, do Chile, da Argélia são aborda-das, e na série Anti-retrô a reescritura da história no cinema é questionada – sobretudo da ocupação alemã na frança – em particular, com Lacombe Lucien (1974), de louis Malle, no qual “os fantasmas do petainismo e do colaboracionismo eram tratados”, segundo os articulistas, de uma “forma burguesa”.24

Para se situar nessas questões, a revista entrevista Michel foucault, “cujo trabalho sistemático é o de recolocar o que o texto oficial recalca, o que se agita escondido nos arquivos malditos da classe dominante”.25 foucault mostra que o que estava em jogo naquele momento era o controle sobre a memória popular, que vinha se exercendo desde o século XiX por meio da literatura popular e do ensino primário. Diante desse controle,

o saber histórico que a classe operária tem dela mesma não para de diminuir [...]. Agora, a literatura barata não é mais suficiente. Existem meios mais eficazes que são a televisão e o cinema. E creio que (o controle pelo ensino, TV e cinema) foi uma maneira de recodificar a memória popular, que existe, mas que não tem nenhum meio de se formular. Então, mostra-se para as pessoas, não o que elas foram, mas o que devem lembrar que foram.26

22 lE goff, Jacques. Enciclo-pédia Einaudi. lisboa: Eunaudi, 1984, p. 159. 23 BErNarDEt, Jean claude. o que é o cinema. São Paulo: Brasiliense, 1980, p. 15. 24 Cahiers du Cinéma, n. 25l-252, Paris, jui/aôut 1974, p. 4. 25 foUcaUlt, Michel. an-ti-retrô. Cahiers du Cinéma, n. 25l-252, op. cit., p. 5. 26 Idem, ibidem, p. 7.

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o esforço da revista era de desmontar os mecanismos da linguagem cinematográfica para tornar claro o seu funcionamento e revertê-lo em favor de um cinema “consciente, e engajado”. Deter o controle sobre o “efeito de realidade” da imagem para a causa justa.

b) O seminárioEm meio a esses questionamentos e ao desígnio do historiador como

alguém que devolve a história à sociedade, desenvolveu-se, desde o início dos anos 1970, o seminário história e cinema na École des Hautes Études en Sciences Sociales. O cinema soviético, documentários e filmes nazistas, o cinema de Vichy, Os cavaleiros da távola edonda ou o cinema de Elia Kazan foram alguns dos temas e filmes em que as construções histórica e fílmica eram objeto de estudo.

Se o cinema estava sendo repensado na técnica, nos seus temas e engajamento político, no seminário isso era retomado à luz da construção de visões de história, de informações inéditas, versões. assim, analisava-se não só como o filme era engajado – um “agente histórico” –, mas como isso ocorria historicamente dentro e fora do filme: do engajamento ideológico à crítica histórica. Não se tratava de fazer do cinema uma arma ideológica, mas de entender como isso se processava. E entendê-lo também como uma “contra-análise”, veículo de outra interpretação histórica inédita.27

o estudo das relações entre o cinema e a história como se vê, não é apenas fruto de pesquisas ou experiências de estudiosos. É uma preocupa-ção inserida no seu tempo, datada e localizada. Parte significativa dos textos de ferro sobre o tema foram escritos nesse período e, com isso, carregam muito dessa ênfase revelatória há muito ultrapassada pela bibliografia e pelos seus textos posteriores.

Em 1975 as questões do desvendamento conformam o âmbito das pesquisas do historiador, pela natureza dos fenômenos que estudava e dos filmes que observara: stalinismo, nazismo, filmes franceses de Vichy, que foram produtos da tensão entre o que se podia e o que se devia mos-trar. Diante desse universo fílmico, a partir do qual os filmes procuram transmitir mensagens políticas e uma apropriação da história, é possível entender o papel do conceito de ideologia nesse universo conceitual para a compreensão do cinema.

Já em 1985, em “a história vigiada”28, a ênfase é quanto à apropriação e controle sobre a obra de história. aborda os “focos” e as possibilidades desses focos na construção de visões pluralistas. os focos vão dos silêncios e festas à memória popular e ao cinema. a multiplicidade de focos sucede a dualidade. a noção de controle sobre a história, de seus abusos, toma o lugar da ideologia e do desvendamento.

ao tratar do cinema como “foco” de visões de história, ferro pre-ocupa-se com o tipo de construção que o cineasta é capaz de produzir. “Quando é capaz de uma análise autônoma exprime sua própria visão do mundo, independente das ideologias e das instituições no poder”.29 E a contribuição desses filmes reside em serem capazes de colocar a história em questão e não apenas valorizá-la pela encenação.

Révoltes, révolution, cinéma, de 1989, passa em revista revoltas e re-voluções encenadas pelo cinema. ferro historia como haviam sido cons-truídas as noções de revolta e de revolução e de como o cinema as aplica. No caso da Revolução Francesa, observa “que os filmes franceses nunca

27 FERRO, Marc. O filme: uma contra-análise da sociedade?. In: lE goff, Jacques e Nora, Pierre (orgs.). História: novos objetos. rio de Janeiro: fran-cisco alves, 1976.28 fErro, Marc. L’histoire sous surveillance. Paris: calmann-lévy, 1985. 29 garÇoN, françois; Sor-liN, Pierre, op. cit., p. 172.

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olhe são completamente favoráveis”. Ou a revolução no enredo dos filmes: “a revolução no cinema exerce a função da catástrofe que se abate na vida dos personagens, que interfere em sua vida pessoal [...] Por outro lado, na china, a revolução que se encena é sempre tributária do regime”.30

O interesse se desloca do significado dos filmes para como cons-troem a história: “o tema de um filme tem menos importância do que o seu tratamento. os cineastas que tratam explicitamente de um fenômeno revolucionário procuram valorizá-lo, ao invés de colocá-lo em questão. Mas a ação revolucionária dos cineastas se exerce de outra forma”.31 as-sim, a questão é de filmes que contribuam para a compreensão da história “descobrindo pelo imaginário uma via real para compreender a história e torná-la inteligível”.32

Em meio a essas reflexões, entre 1976 e 1981 Ferro realizou com Jean Paul aron a série de tV Une histoire de la médicine, com oito documentá-rios que mostravam questões postas à medicina, como as epidemias, a abertura do corpo, a história das doenças, entre outros. tratava-se de um docudrama33 com cenas ficcionais que reconstituíam questões exemplares, como o momento em que se começa a isolar os doentes e o surgimento do hospital.34 o historiador adentra um novo campo, recorta e enquadra suas questões a partir das formas de intervenção da medicina sobre o corpo.35

História paralela

a) Os historiadores na mídiaÉ conhecida a presença de novos historiadores franceses, como Jac-

ques Le Goff, Pierre Nora, Emanoel Le Roy Ladurie nas mídias a partir dos anos 1970. Desde a década de 1960, pelas circunstâncias locais de maior acesso à universidade, havia uma demanda por produções históricas. Não apenas livros ou romances de vulgarização, mas obras de especialistas. isso fez com que os historiadores da École des hautes Études e dos annales passassem a dirigir coleções sobre o tema em grandes editoras. a isso se somou a criação de revistas como Le Nouvel Observateur (1964) ou o cader-no Le monde des livres (1967), que divulgam obras e autores como fernand Braudel ou Emmanoel le roy ladurie, em detrimento das outras linhagens historiográficas. Segundo Rémy Rieffel, essas publicações funcionam como instâncias de legitimação e notoriedade, criando “uma rede de autocele-bração eficaz” 36. Em 1969 Le monde des livres abre duas páginas aos “Novos caminhos da pesquisa histórica” com artigos de Le Goff e Le Roy Ladurie, que se transforma em colaborador regular e intermediário entre o jornal e o meio universitário. Muitos historiadores passam a escrever nos jornais. Em 1968 surgem As segundas da história na rádio France Culture, que abre mais o campo da história ao grande público.

Os anos 1970 marcam o apogeu dessa influência, quando, segundo pesquisas de mercado, o público francês pegou o gosto pela leitura e pelas emissões de rádio de temas históricos. Em sondagem de 1977, 37% do público dizia preferir programas desse tema a programas de variedades (35%) e de esporte (23%).37 Entre 1973 e 1989, 17% dos franceses liam li-vros de história. Segundo o autor, “os indicadores convergem: o discurso do historiador responde a uma necessidade de um público ávido por se debruçar sobre suas raízes e o seu passado”.38 isso se devia, de acordo com Rieffel, à qualidade dos livros e à capacidade de comunicação de

30 fErro, Marc (org.). Révoltes, révolutions, cinéma. Paris: centre Pompidou, 1989, p. 32 e 33. 31 Idem, ibidem, p. 34.32 Idem, ibidem, p. 35. 33 Docudrama ou docufição é um documentário com encena-ção na reconstituição de fatos.34 cf. VEraY, laurent, op. cit. Disponível em <http://www.ina.fr/economie-et-societe/vie-sociale/video/cPc81050031/les-societes-devant-l-epide-mie-l-impuissance-et-la-peur.fr.html>. acesso em 13 dez. 2012 (excerto do filme).35 Na época do lançamento, Mi-chel foucault, que se ocupava do mesmo universo, fez críticas a essa visão.36 riEffEl, rémy. les histo-riens, l´édition et les medias. In: BEDariDa(org.). L´histoire et le métier d´historien en France. Paris : Maison de la Sciences de l´homme, 1995. 37 cf. idem, ibidem, p. 66. 38 Idem.

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seus autores com um público amplo. Em 1978 surge a revista ‘de vulgari-zação de qualidade’ Histoire, com 80 mil exemplares semanais, e criam-se coleções de livros de bolso dirigidas pelos mesmos novos historiadores, dentre eles Marc ferro.

Mas foram os programas de televisão como Alain Ducasse raconte e Apostrophes, de 1975, onde eram comentados com vários autores os lançamentos de livros da semana, o lugar privilegiado de divulgação, e consagração, desses autores, permitindo inclusive o aumento das tiragens. Embora a partir de 1985 seja perceptível o declínio do interesse pela história e a estagnação do número de leitores, seu prestígio é ainda suficiente para alçar george Duby à direção da franco-alemã La Sept. a escolha de ferro para Histoire parallèle, como especialista em história contemporânea com forte presença na edição de livros, de filmes e presença em TV e imprensa, não foi espantosa.

b) O formatoHistoire parallèle foi criado por Louisette Neil e André Harris. De início

Marc ferro fazia comentários junto com o alemão Klaus Wenger. Depois, ferro efetiva-se e o historiador alemão dá lugar a especialistas de diferentes nacionalidades que participam do programa e acompanham a abrangência de países abordados nos cinejornais. a emissão acompanha o calendário a partir 1. de setembro de 1939 no passado e no presente, pondo em relevo a cada semana os eventos significativos. O desenrolar do programa dependeu da cessão de arquivos, dos entrevistados e especialistas e da relação que se estabeleceu entre as imagens vistas e o presente vivido. Histoire parallèle era transmitida aos sábados das 19h30min às 20h30min e reapresentado na quarta feira às 18h00. foi ao ar entre setembro de 1989 a junho de 2001 totalizando 630 emissões.

originalmente, o programa deveria durar até junho de 1990, ou junho de 1940, momento do armistício entre a frança derrotada e a alemanha, que passa a ocupar parte do território francês. como o interesse do públi-co é grande, o programa é mantido. No entanto, foi preciso buscar outros cinejornais uma vez que um “exército derrotado não filma a sua derrota”.39 Passam a se utilizar dos arquivos britânicos e até dos cinejornais produzidos em Vichy e de outros que conseguiram40

os programas de 52 minutos de duração são preenchidos com 40 minutos de atualidades. as imagens predominam sobre os comentários. os cinejornais de início exibidos integralmente, devido à sua extensão, vão sendo entrecortados por comentários dos participantes e com o tempo são também editados.

c) Programas analisados41 Devido à multiplicidade dos temas, à quantidade de informações e à

diversidade de especialistas, optei por apresentar nesse artigo introdutório os três primeiros programas, que tratam do início da guerra. Neles está o formato que, com poucas alterações, será mantido, e muitas das questões que serão abordadas. farei a descrição pormenorizada de um dos progra-mas pelo interesse de seu conteúdo e das formas de tratamento que serão dadas pelos historiadores, permitindo assim observar o funcionamento da emissão, suas características e possibilidades.

39 cf. VEraY, laurent, op. cit.40 Idem.41 Em 2010, tive acesso a cópias integrais de alguns programas. Histoire parallèle não foi editada em DVD por dificuldades com os direitos autorais, mas é pos-sível encontrar 10 programas que são vendidos ou alugados no site da arte. Disponível em < http://boutique.arte.tv/carnets_d_histoire_paralle-le_collection>.

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oEmissão n. 1, 3 set. 1939 Uma vinheta com imagens sobre a guerra abre o programa: solda-

dos marchando, despedidas nas estações, crianças partindo, mulheres chorando, hitler fala, uma bomba explode. a música confere às imagens um caráter solene. Marc ferro começa a falar. Seu rosto está em primeiro plano sobre fundo branco, e anuncia: “o cinejornal que vocês verão...”. apresenta o contexto da semana a partir das negociações de ingleses e franceses que não surtem efeito junto aos alemães e descreve o clima não belicista que envolvia a frança. Wegner fala do cenário alemão. há emoção no ar, e ferro, o mais velho, fala de suas lembranças. o cinejornal da Pathé é exibido na íntegra. Ferro comenta o clima ainda pacífico entre os franceses, mesmo com o ataque surpresa à Polônia, que impôs a mobilização diante do conflito que se avizinhava. Aponta como o encadeamento de fatos cons-truídos pelo cinejornal estava referenciado às formas e acontecimentos da 1. guerra Mundial.

Exibição do cinejornal alemão. Nas imagens alemãs, ao contrário, franz Wegner aponta o preparo para a guerra e a crítica aos inimigos ingleses e franceses pela intransigência nas negociações, fato visto pelos nazistas como responsável pela eclosão do conflito. Nova vinheta fecha o programa com imagens da explosão do reichstag, entre outras.

Emissão n. 2, 7 set. 1939o formato e as vinhetas, que se mantêm até a última emissão, em

2001, estão presentes. ferro descreve o contexto da semana: em resposta à invasão da Polônia, inglaterra e frança declaram guerra à alemanha no dia 3/9. Por que a demora? Indaga. Os países dão ultimato à Alemanha para se retirar do território polonês, o que não ocorre. além disso, as for-ças francesas são menores do que as alemãs: “os alemães são quatro vezes mais fortes do que nós, e nós sabemos disso, coisa que não será dita no cinejornal” comenta ferro.

o cinejornal da Pathé abre com a palavra guerra, em letras garrafais, e afirma na locução o quanto a França tem lutado pela paz nos últimos vinte anos; veem-se imagens do parlamento e dos ministros aliados em negociações inúteis diante da intransigência alemã. imagens de multidões na rua comprando jornais. Um mapa da Polônia mostra o corredor Polo-nês. chamada dos reservistas na frança, inglaterra e holanda mostra uma multidão de homens nas estações. a música pontua gravidade e urgência. Homens fardados beijam os filhos no colo das mulheres que choram. Da janela do trem, os acenos dos soldados que partem. Nas cidades, as precau-ções contra os ataques aéreos. as crianças recebem máscaras antigás. No parlamento, votação de recursos para a entrada na guerra. o arcebispo de Paris reza pela paz em torno de uma multidão de fiéis. Cenas no gabinete de franklin roosevelt, que pediu a retirada dos alemães da Polônia. “todo o povo polonês responde ao agressor” diz a voz off do cinejornal. cenas de combate falam da agressão aos poloneses sem a declaração de guerra e do efeito surpresa da blitzkrieg. “ao invés dessa agressão cínica e bárbara, calmos, resolutos, os franceses respondem ao apelo da pátria”, diz a locução sobre a imagem de homens e mulheres lendo o chamado à mobilização. Na rua as crianças são enviadas para o interior: “tudo foi previsto para o seu bem estar e segurança”. Enfermeiras colocam crianças em trens sob o olhar triste das mães. “Quem pode deixa as cidades”. carros nas estradas,

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estações cheias, impressão de urgência enfatizada pela música. “o embai-xador da Polônia na França coloca flores no monumento ao Soldado Des-conhecido”. “os estrangeiros amigos da frança vêm oferecer o seu apoio e auxílio”. “São quatro mil que vão se alistar na legião Estrangeira”. outras notícias falam de medidas como a substituição por mulheres e velhos em diferentes atividades garantindo a normalidade da vida cotidiana.

Novo segmento abre-se com as palavras “o que ele disse” (em caixa alta) e os vários atos de hitler desmentindo suas promessas com “o que ele fez” (igualmente em caixa alta). Em resposta a isso imagens em fusão com símbolos franceses como o arco do triunfo ou a Notre Dame e homens marchando, acompanhados de som marcial. Páginas dos jornais com as manchetes mostram a mobilização e o espírito patriótico. a voz off fala da colaboração com a inglaterra e seu primeiro ministro, que declara lutar contra a injustiça e opressão. Daladier fala ao povo (só o som de sua fala), e imagens mostram homens e mulheres nos bares ouvindo o discurso no rádio. Ao final, os versos d´A marselhesa são recitados pausadamente e com forte emoção: Allons enfants de la patrie/ Le jour de gloire est arrivé, com as imagens de soldados, aviões militares no céu, canhões, navios, marinheiros, soldados marchando. Aux armes, citoyens mostra soldados das colônias, até finalizar com a imagem do exército marchando tomado em contra plongée com o hino agora cantado emocionadamente. FIN.

Wegner introduz o cinejornal alemão: “até o dia 4 de setembro o reich mantém as negociações, cujo único objetivo era fazer crer que os aliados foram os responsáveis pela declaração de guerra. Mas hitler queria acabar com a Polônia desde abril, quando ordenara a preparação da guerra contra a Polônia para o primeiro de setembro. Enquanto isso, em Danzig42, os SS simulavam provocações contra instalações alemãs, como se fossem poloneses, criando o pretexto para os combates”.

No jornal da UFA vemos as consequências desses ataques: o enter-ro de alemães e o choro das mulheres com crianças no colo. Populações alemãs ‘aterrorizadas’, conforme a locução; mostram rostos indiferentes. a câmera pega em PP (primeiro plano) uma criança triste, uma mulher circunspecta, um velho. as imagens são individualizadas, crianças com lágrimas nos olhos. Um incêndio; a voz off explica que foi um ato polonês. Música dramática. Escombros na cidade, a locução fala em provocação: “Em plena paz, os poloneses destruíram lares”. há até mesmo o relato de um homem que perdeu a casa e a família (“vocês podem ver”); a câmera percorre a casa destruída.

Diplomatas ingleses aparecem e o comentário da locução é sobre a sua falsidade, o rompimento de promessas e as mentiras velhas de 20 anos. “Por isso o ataque de primeiro de setembro restabeleceu a paz e os direitos dos cidadãos alemães em Danzig”. Vemos os tanques, conflitos provocados pelos poloneses, o som dos tiros, incêndios, gritos, vozes – como se o filme estivesse realmente reproduzindo todos esses sons dos campos de batalha, colocados a posteriori na edição em estúdio.

o som de depoimentos ou mesmo ruídos eram difíceis de ser então obtidos fora de um estúdio e demandavam muitos equipamentos. inseri-los, ainda que em estúdio, dublados na finalização, demonstra a preocupação de fazer do cinejornal um espetáculo que se constrói como realista, buscando ao mesmo tempo, pela inserção dessas situações dramáticas individualizadas, estabelecer identificação e emoção junto ao público, como ocorre na ficção.

42 Danzig é a atual gdansk polonesa.

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o “Enquanto isso em Berlim, hitler esperou em vão por um negocia-dor polonês com uma proposta de paz” diz a locução. Na imagem, hitler chega ao reichstag. Em Danzig, soldados comemoram. as tropas entram na cidade e são aplaudidas pela multidão. ouvem-se gritos de júbilo e pa-lavras de ordem. Bandeiras nazistas nas janelas mostram a preparação do cenário para o desfile e a festa da ocupação da cidade para a comemoração e sobretudo, sua filmagem.

Novo segmento mostra as medidas de segurança no país, como se viu no cinejornal francês. aqui, porém, a imagem se detém nos armamen-tos: a defesa antiaérea e os soldados que manejam o sofisticado aparelho no terraço de um edifício de onde se domina a cidade. tudo previsto e ensaiado para a filmagem. “Nossa indústria de armamentos está produ-zindo constantemente”. Num plano geral da fábrica veem-se tubos de metralhadoras, fuzis. a câmera faz um longo travelling lateral, mostrando todos os equipamentos fabricados, depois toma a fábrica do alto, mostrando várias colunas de carros militares em fabricação. técnicos e operários tra-balham sob a supervisão de oficiais, cuja imagem fecha esse segmento do filme. Tudo retilíneo, organizado, calmo e limpo, acompanhado de música triunfal. ao ruído e à fumaça do campo de batalha respondem a ordem, o planejamento e a segurança da retaguarda.

Enquanto isso, no campo de batalha polonês, tropas alemãs rompem o marco de fronteira com tanques, soldados a cavalo e motocicletas. Numa imagem tomada do interior de uma casa vemos seus moradores, de costas, saudando a passagem do exército alemão. O filme penetra no interior de uma feliz casa liberada (não vemos os seus rostos!). Esse plano subjetivo e íntimo mostra o empenho das filmagens na composição de uma narrativa da guerra como libertadora e seus efeitos benéficos sobre as populações. Mostra, ainda, a extensão da propaganda no requintado processo de filmagens do campo de batalha com equipes que fazem tomadas de dife-rentes lugares, diferentes aspectos, para a bem articulada composição dos cinejornais que seriam veiculados em todo o país. Essa cuidada e visível articulação deixa ver o papel central dos cinejornais na máquina de guerra que se articulava, o que contradiz a própria ideia da surpresa ou traição dos inimigos que teriam, eles, levado a alemanha à guerra. “o avanço é rápido” diz a locução. Música entusiástica. Do alto da montanha, a câmera mostra um soldado alemão que protege a chegada das tropas na planície. imagens de combates.

imagens da força aérea: um soldado anda contra um céu enevoado, ao fundo se vê uma sucessão de aviões, enquanto a locução fala dos aviões poloneses destruídos em terra. Em PP, pilotos preparam a partida. rostos em PP durante o voo, plano de conjunto dos aviões; abaixo deles, o rio. Um piloto atira. ouvimos os tiros. outro avião joga bombas. Dedica-se bastante tempo à composição desse filme de ação. Na terra, imagens de bombardeio; a locução fala das fortalezas polonesas desbaratadas. imagens da cidade e fumaça das bombas que caem. Mas é sutil, de longe. imagens dos com-bates no porto onde se deu a tomada de Danzig a partir de navio alemão que bombardeou a cidade. “a população polonesa bateu em retirada”; e vemos pessoas andando por uma estrada com casas incendiadas, pontes destruídas, trens – a destruição é atribuída falsamente aos poloneses. Serão prontamente reconstruídas pelo ‘gênio’ alemão e os tanques e caminhões voltam a circular e são aplaudidos pela população quando passam pelas

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cidades. “a população está agradecida. Seus dias de terror acabaram”: ve-mos um homem que arranca placa de rua em polonês. Soldados recebem comida da população, que não sorri.

comentário de franz Wegner: “Nas imagens alemãs não há guerra, é um contra ataque, a alemanha se defende dos ataques e provocações polo-nesas. Não foi a alemanha que abriu os combates. Já as imagens francesas abrem com a palavra guerra. os franceses estavam conscientes da gravida-de da situação?” “Sim, responde Ferro. Eles e os ingleses haviam declarado guerra à alemanha, mas o que chama a atenção nas imagens da Pathé é o “pacifismo escancarado”, como se dizia, a atmosfera pacífica apesar do título do jornal”. Para Wegner algo semelhante ocorria na alemanha, não havia entusiasmo. “havia uma ordem de heydrich da SS para que a polícia e gestapo prendessem qualquer um que colocasse em dúvida a vitória da alemanha. ora, se isso era necessário, é porque a população não estava convencida da necessidade da guerra e da vitória”. ferro observa que nas imagens alemãs de cerimônias organizadas com autoridades, as imagens são de alegria, enquanto nas não organizadas, como as partidas nas esta-ções, não há alegria como entre os franceses. isso chama a atenção para a preparação das filmagens desses eventos e o controle sobre as reações do público enquanto personagem. Mas, lembra ferro, “os alemães não pensam que podem ser derrotados – acabavam de tomar a Polônia – enquanto na frança o drama é que os franceses pressentem que serão derrotados, o que é um fardo muito pesado”.

Para Wegner, “isso explica o tom otimista das atualidades Pathé. temos a impressão de que o tempo dessas atualidades está atrasado em relação à opinião pública”. “Sim, diz ferro, as atualidades não falam do que é grave, como se evitassem fazer o espectador entrar no drama, como se houvesse uma espécie de cumplicidade entre o poder público que só fala de paz e as atualidades que não mostram o que está ocorrendo, o que é trágico!” “Do lado alemão, completa Wegner, as atualidades precedem a opinião pública. Elas anunciam medidas e dão o tom do tempo, o tom a ser seguido para viver, para enfrentar a guerra. há nelas um sentido pedagógico, de instrução”.

outro ponto em comum abordado nas atualidades, lembra ferro, foi o tratado de Versalhes - violado, para os franceses, e traído, para os alemães -. “falamos da mesma coisa de forma invertida”. risos. “ora, esse tratado foi inacreditável. Ele se baseava no direito de autodeterminação dos povos, o que é um belo princípio, mas abstrato, sobre o qual os franceses não refletiram. Não refletiram sobre o direito dos seus povos coloniais, por exemplo. E este seria aplicável a todos os povos, menos aos alemães, o que colocou uma grande responsabilidade para os vencedores. grande injustiça feita aos alemães e aí havia uma diferença tão grande entre as palavras e os fatos que isso deixou os alemães enfurecidos”, explica ferro. Segundo Wegner: “os alemães não achavam que haviam perdido a guerra, mas tiveram que assinar a derrota em Versalhes, pois o exército escondeu a derrota, e os nazistas usaram isso como se fosse má vontade dos aliados”.

Emissão n. 3, 14 set. 1939 comentário inicial de ferro sobre a derrota polonesa. “os poloneses,

que pareciam fortes, foram logo batidos pela guerra surpresa dos alemães, mas foram heroicos.”

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oNas imagens de Pathé, franceses, ingleses e belgas continuam a se mobilizar para a guerra. Estrangeiros, como os tchecos, se apresentam para lutar pela frança. reaparecem os fait divers ausentes nas duas edições anteriores: elegância da mulher francesa carregando a bolsinha com a más-cara antigases! Em meio às notícias sobre a Polônia, “Paris reencontra sua serenidade”, a imagem apresenta pessoas comprando frutas.

franz Wegner explica o rápido avanço alemão, pois a blitzkrieg destruiu a aviação polonesa e as vias de comunicação para inviabilizar o ataque polonês. com as forças alemãs, avança a propaganda antipolone-sa e antissemita. Ele explica as imagens sobre a Noite de Bromberg, um ataque de poloneses à população alemã que resultou em cinco mil mortes. No cinejornal se fala em “50 mil mortos assassinados pelos poloneses” o que serviu de justificativa para ataques do exército à população polonesa como veremos nas imagens. assim, nelas, os poloneses presos terão ‘o justo castigo’. atribui-se aos poloneses a destruição de pontes feita pelos alemães. Mas “nosso gênio militar reestabeleceu em tempo recorde para continuar o avanço”. Música épica.

as imagens mostram depois uma série de velhos barbudos de capote e bengala. São os judeus. Segundo a locução “os judeus poloneses são cul-pados de inúmeras provocações e incitação ao assassinato de alemães. Entre eles traficantes e criminosos que infiltraram a Alemanha desde 1918”. Na imagem, um demorado travelling lateral sobre grupo de velhos barbudos atônitos olhando para a câmera. “atualmente, os irmãos desses judeus do leste estão na frança e na inglaterra, onde clamam pela eliminação dos ale-mães”. termina o travelling. Música em tom urgente. campo de prisioneiros poloneses: os alemães servem a comida a poloneses sujos, maltrapilhos, feios, “acusados de furar os olhos de soldados alemães, fato negado pelos in-gleses”. Wegner já havia prevenido o espectador sobre as mentiras das ima-gens do cinejornal exibido. hitler no campo de batalha examina os mapas junto com oficiais. Anda por entre mulheres e crianças. O som é de uma mul-tidão bradando como nos grandes espetáculos nazistas de antes da guerra.

Soldados poloneses olham alegres para a câmera e se dizem felizes por não lutar mais por uma causa perdida que beneficia a Inglaterra. (Es-tão dizendo aquilo que a propaganda alemã quer que digam.) Estão sem sapatos, com as meias furadas, aceitam cigarros de soldados alemães. as imagens são propositadamente degradantes. recebem pão e sopa em PP. a ocupação alemã da cidade é uma festa com banda e comida. Na locução se diz que a população alemã está enfim feliz depois de 20 anos de inge-rência polonesa. o jornal se fecha com uma multidão alegre, uma coluna de soldados e o som do hino alemão.

comentário de ferro: “No jornal alemão há a guerra, derrota, vítimas. Do lado francês estamos no absurdo, no ridículo. Uma paródia da guerra de 1914 e não o drama da Polônia, que não aparece, salvo numa missa. a frança está pedindo socorro a todo mundo”. comenta o alistamento de tchecos que na imagem vemos ser empurrados por policiais franceses. “Na verdade, diz ferro, isso expressa a compreensão de que os franceses não tem motivos para entrar em guerra, mas que é por causa dos estran-geiros que entram na guerra. É uma imagem premonitória do que será o armistício e Vichy”.

aqui é possível observar um pouco do que interessa a ferro na ima-gem: o que é novo e que a imagem revela. os franceses não querem a guerra,

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e isso está demonstrado na falta de empenho e de interesse na construção do cinejornal, no seu tom pacifista, conciliador, alienado dos aconteci-mentos que se encadeiam em grande quantidade e de forma dispersiva, ou no empurrão do policial francês em voluntários tchecos que querem se alistar do lado dos franceses! Não se trata de localizar nas imagens um grande sistema de explicações, mas pequenos gestos involuntários, uma disposição psicológica, a forma de se relacionar com o outro que se tornam pistas para novas observações.

Para Wegner, nas imagens alemãs desse cinejornal já estão inscritos os quatro principais temas da propaganda alemã na guerra: “a alema-nha é forte e vai ganhar; hitler é o comandante supremo e graças a ele os soldados trazem a vitória; o exército alemão ocupa mas é libertador: na Polônia só há criminosos, judeus ou poloneses; o antissemitismo. Esses temas serão desenvolvidos nos cinejornais a partir de um roteiro previsto e estabelecido por goebbels”.

como se pode ver pela proposta do programa, a exibição comentada, e paralela, dos cinejornais de época permite uma série de possibilidades de análise. ao proceder à descrição do conteúdo, foi possível observar as formas distintas de produção que deixam ver o papel central dos cinejor-nais na educação dos sentidos para a guerra, como fazem os alemães, que dão à apresentação das atualidades um caráter de espetáculo emocional individualizado, buscando a identificação, como na ficção - algo que não ocorre no caso francês, ainda completamente referido às formas dos cine-jornais produzidos durante a 1. guerra, dispersivo e generalista. Pudemos observar ainda o encadeamento diferenciado e crescente dos temas, a cons-trução da dramaticidade, o papel da música, da locução pedagógica e, no caso alemão, da inserção de ruídos e, sobretudo, de diálogos, tornando as situações filmadas mais expressivas, o que não era uma prática habitual das atualidades, baseadas habitualmente no comentário em off.

Por outro lado, o acúmulo e a diversidade de informações do cinejor-nal francês torna o seu conteúdo dispersivo, ao contrário da concentração reiterada e, como mostra Wegner, devidamente definida por Goebbels, em temas pré-determinados, no cinejornal alemão. a cada programa, a quanti-dade de informações na imagem e nos comentários é muito grande. E essa riqueza vem da sobreposição das diferentes imagens e dos comentários que vão se compondo diante do espectador, das formas diferenciadas de enunciação, da ênfase dada aos assuntos e personagens, mas em especial das novas interpretações que as discussões e pontuações dos historiadores vão sugerindo.

optei por trazer três programas consecutivos de 1939 para que se pudesse perceber como a série trabalhou a duração dos eventos em sua su-cessão, repetição e reiteração, permitindo resgatar o tempo lento dos acon-tecimentos, sua eventual manipulação, da mesma forma que a cada semana os historiadores iam juntos, comparativamente e acompanhados do público dos dois países, tomando parte nessa história que se reescrevia, no mesmo momento em que a história europeia também se transformava radicalmente.

assim fazendo, ferro retomou sua matriz comparativa, mas aprofun-dou o procedimento no resgate do tempo e da sua conversão em discurso de propaganda em forma de cinejornal. como vimos, e como ferro pontuou, se o cinejornal francês anuncia algo é mais por omissão: a catástrofe que o armistício consagrou. Suas imagens são desordenadas, sem controle e

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opreparo prévio. Nem mesmo o discurso de Daladier, o chefe do governo, é filmado. As imagens mostram pessoas que ouvem a locução pelo rádio e se vê uma foto dele. o cinejornal não produz seus eventos, está a reboque deles. Já no alemão, a construção e manipulação dos acontecimentos é clara do início ao fim, certamente pelas diretivas de Goebbels, conforme alude franz Wegner, e pelo lugar central que o regime atribuiu ao cinema e à guerra que, como ferro explica, não interessa aos franceses. isso é visível no próprio vazio e na reiteração de clichês patrióticos do cinejornal Pathé.

os historiadores se detêm mais sobre o conteúdo histórico das ima-gens, deixando de lado os procedimentos fílmicos que aprofundam esses mesmos sentidos. Suas intervenções existem para contextualizar e preve-nir o espectador sobre o que verá e complementar e discutir o que se viu. Mesmo que chamem a atenção para as mentiras que são ditas e mostradas na imagem, não trabalham o aspecto propriamente ficcional da construção das atualidades.

o formato do programa dá chance ao espectador de tomar contato com o documento sem cortes, mas com pontuações. A discussão final é a mais densa e pode sair do âmbito exclusivo daquilo que é sugerido pelas imagens, dando ensejo a questões ainda pouco discutidas pela historio-grafia, mas que são sugeridas nessa exibição dos cinejornais. No entanto, os aspectos formais são pouco trabalhados em detrimento do conteúdo que se impõe. ferro e Wenger realmente estão empenhados em uma nova leitura sobre essa história que os cinejornais trazem, e isso é muito patente na forma de se relacionar, no entendimento e complementaridade de suas intervenções. Subjacente às imagens do conflito, à sua gravidade, ao fato de reexibi-las para o público dos dois países, está a afirmação, por meio da própria formatação do programa e antes dele, da própria emissora43, do entendimento mútuo possível, da parceria que caracteriza as relações políticas dos dois países no interior do que vinha se transformando a União Europeia. Como se o importante naquele significativo momento de 1989 fosse mesmo construir outro futuro.

há muito mais leituras de conteúdo e formais a serem feitas, e o formato da emissão resta como uma sugestão metodológica. Por fim, se o título Histoire parallèle define bem o caráter da emissão, define também o trabalho historiográfico de Marc Ferro com a história e as imagens, mas não só. Se ele foi um dos primeiros a utilizar o cinema da mesma manei-ra e com o mesmo estatuto que se dava a outras fontes tradicionais, fez da exposição e discussão da multiplicidade e contraposição de fontes e versões que se entrecruzam, encobrem e instituem sua forma privilegia-da de resgate e entendimento histórico. Expôs as tensões e embates que marcam a construção da história e o poder contemporâneo que se exerce sem trégua sobre ela nas mídias, como se pode acompanhar no programa que comandou. Permitiu, assim, que os vários discursos e as narrativas em contenda emergissem em igualdade de condições. Esses três diálogos de 1989, que se repetiriam ainda por 12 anos, demonstram a que ponto a novidade historiográfica introduzida por Marc Ferro permanece atual, malgrado toda a evolução que a relação cinema e história tem conhecido desde os anos 1970.

Artigo recebido em março de 2013. Aprovado em maio de 2013.

43 “Histoire parallèle se impôs como o carro-chefe da grade da emissora”. garÇoN, françois, op. cit., p. 60.