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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
MARCAS ÉTNICAS E DE GÊNERO NAS RODAS DE CAPOEIRA ANGOLA
Veronica Daniela Navarro1
Resumo: O seguinte artigo procura instaurar discussões sobre as relações entre as
corporeidades presentes nas rodas de Capoeira Angola acontecidas dentro do espaço do
Grupo Nzinga Salvador/BA e os princípios fundantes do grupo: o feminismo angolero, assim
definido pelo grupo, e a defesa e difusão da cultura africana Banto a partir da capoeira angola.
Através do estudo etnográfico procura-se refletir sobre a diversidade étnico-racial e de gênero
vivenciados no interior deste Grupo, tendo como foco de análise os encontros dos
participantes que são de diferentes classes sociais, nacionalidades, gêneros, identidades
étnico-raciais e os desdobramentos dialógicos, as tensões e possibilidades emancipatórias,
pensando a igualdade desde a diferença.
Palavras-chave: Capoeira Angola, Gênero, Corporeidades, Roda
A diversidade cultural e a disputa pelo reconhecimento das diferenças
O termo colonialidade do poder permite explicar de maneira quase inquestionável os
fundamentos dos processos colonizatórios do passado e do presente. Anibal Quijano (2005,
pag 4) pensa as novas identidades históricas produzidas sobre a ideia de raça, onde a
dominante (os brancos europeus) impôs o mesmo critério de classificação social a toda a
população mundial em escala global, forjando novas identidades históricas e sociais: amarelos
e azeitonados (ou oliváceos) somaram-se a brancos, índios, negros e mestiços. Às questões
étnicas raciais, acrescento o gênero, já que na análise de Quijano, como em tantos outros
autores homens, pouco se pondera sobre essa temática.
Nos idos do final do século XIX começo do século XX, o modernismo impulsado
pelas elites latino-americanas se enfrentava com o desafio da construção de estados
civilizados. Para isso foi necessário tomar a definição científica de raça acunhada pelos
europeus, apreciação pela pureza racial, e o consequente menosprezo pelo mestiço2.
1 Mestranda em dança, pela universidade Federal da Bahia, Brasil. 2 Aqui o uso do termo mestiço intenta dar conta dos processos de miscigenação da América, para o
branqueamento da “raça” que as elites latino-americanas impulsaram na América. O seja quanto mais longe de
ter rangos indígenas ou negros, mais aceitação da pessoa.
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Para poder participar da nova ordem mundial gerado pelo racismo científico, as elites
latino-americanas propuseram uma noção de raça biológica própria, e geraram versões
nacionais do que significava ser ‘branco’. Em grande medida as classes educadas na América
Latina compartiram os preconceitos dos europeus. Desejavam ser brancos e temiam não selo.
Desde a ideologia da decência, a pureza moral era mais importante que a impureza do
fenótipo mestiço que caracterizava tanto as elites como a plebe regional. Os mestiços eram
moralmente impuros, por isso, e não pelo aspecto físico, eram diferentes dos “decentes”. Os
processos de branqueamentos produzidos na cultura popular, por exemplo no tango, na
capoeira, no samba, sendo estes nascidos no interior dos batuques dos povos marginados
afrodescendentes de Buenos Aires na Argentina e da Bahia no Brasil, começam a ser
praticados pelas elites que precisavam se diferenciar moralmente desses grupos, adotando-
lhes como prática, porém, modificando-os e dotando-os de “toques” europeus.
Aparece hoje da mão dos órgãos estatais uma nova colonização, referenciada no termo
multiculturalismo, como mecanismo encobridor por excelência das novas formas de
colonização. As elites adotam uma estratégia de travestismo e articulam novos esquemas de
cooptação e neutralização. Reproduz-se uma inclusão condicionada, uma cidadania recortada
e de segunda classe, que modelam imaginários e identidades subalternizadas ao papel de
ornamentos e massas anônimas que teatralizam sua própria identidade. A diferença do multi,
aparece o conceito de interculturalidade, o qual nasce no interior da luta e reivindicações dos
povos indígenas da América Latina, não simplesmente como discurso, construído desde a
particularidade da diferença, mas como epistemologia. A autora Caterine walsch (2007, p
123) pensa o termo como ruptura epistémica que tem como base o passado e o presente,
vividos como realidades de dominação, exploração e marginalização. A interculturalidade
seria esse pensamento “outro” construído desde a enunciação política do movimento indígena,
porém também de outros grupos subalternos. Diferente com o conceito de multiculturalismo,
o qual defende os interesses hegemônicos. Porém, interculturalidade e multiculturalidade são
utilizadas pelo o Estado e pelos setores branco-mestiços como termos sinônimos, fruto das
concepções globais ocidentais dos movimentos sócios históricos e das demandas e propostas
subalternas. Os termos assim utilizados, instalam e visibilizam uma geopolítica do
conhecimento que apaga as histórias locais e autoriza um sentido “universal” das sociedades e
do mundo multicultural.
Para Silvia Ribeira Cusicasqui (2010 p 60), não pode existir um discurso da
descolonização, ou uma teoria da descolonização, sem uma prática descolonizadora. O
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discurso do multiculturalismo e o discurso da hibridez seriam leituras essencialistas e
historicistas da questão indígena, que não tocam os temas de fundo da descolonização, porém,
encobrem e renovam práticas efetivas de colonização e subalternização. Suplanta as
populações indígenas (acrescento afro americanas) como sujeitos da história, converte suas
lutas e demandas em ingredientes de uma reengenharia cultural e estatal capaz de submetê-las
à sua vontade neutralizadora e subordinadora, em funções puramente emblemáticas e
simbólicas, ao serviço do espetáculo pluri-multi do estado e dos meios de comunicação de
massas.
Hoje a igualdade e cidadania encobre privilégios políticos e culturais tácitos, que
fazem tolerável a incongruência e permitem reproduzir as estruturas coloniais de opressão.
Assim as elites latino-americanas adotaram um multiculturalismo oficial, enraizado na noção
dos indígenas e negros como minorias étnicas. Para Cusicasqui (2010, p 67) um
Multiculturalismo ornamental e simbólico, com fórmulas como o “etno-turismo” e o “eco-
turismo”.
Neste ponto, o conceito Fagocitação do autor Rodolfo Kusch (2012, p 20), seria um
caminho para entender nossa cultura popular diversa, no entanto, contraditória. O termo
estaria se referindo a absorção das “pulcras” coisas do Ocidente pelas coisas da América,
como a modo de equilíbrio e reintegração do humano. A fagocitação se dá pelo fato de ter
considerado hediondas as coisas da América e a construção de verdade universal, que
expressa, que, tudo em estado puro, é falso e deve ser contaminado pelo oposto. A través do
conceito proposto pelo autor, como a absorção do ocidental em favor do equilíbrio e a
reintegração do humano, consigo pensar a interação como crucial, ulteriormente, focalizada
na (re) construção dos processos culturais e indenitários que vão se desenvolvendo na
América. Dita interação recodifica o acontecer histórico numa “dialética” centrada nos
opostos (divergente a toda ideia de superação ou síntese), capaz de constituir uma entrada à
sabedoria americana. A fagocitação contém elementos que reposicionam a experiência (e a
convivência) com popular, construindo veículos para filosofar sobre o urbano, o mestiço, o
latino-americano. Assim também integra o indígena, (acrescento o negro, já que Kusch não
trabalha questões afro-americanas) como um horizonte aberto donde se apresenta o simples, o
arcaico e o antigo, o seminal, para Kusch aquilo que conduz a pergunta pelo que é o
americano. Esta reflexão arcaica, seminal, indígena, negra se enfrenta inexoravelmente a
aculturação, modernidade, colonialismo e capitalismo para o que utiliza a fagocitação (do
ocidental) como resposta (Kusch, 2012, pag 20). Esta resposta evidencia os modos de
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supervivência e vetorização do popular, indígena e negro. Frente a aculturação o exercício da
fagocitação devora (e subverte) a imposição indenitária e cultural. É um exercício de
resistência e conservação, de adaptação, ulteriormente, é um exercício criador, um exercício
vital. Um discurso popular que reconheça as epistemologias afro-ameríndias, sem cair nas
amarras dos discursos essencialistas e capitalistas que apropriam os termos e esvaziam das
lutas e reivindicações que o fundam. Como sentirmos filhas (os) da terra latino-americana,
com consciência mestiça3, no sentido do autor Kusch, respeitando nossas diferenças e
renunciando os nossos privilégios na escala social, racial e de gênero? Como construímos
igualdade desde a diferença?
Diálogos feministas em disputa. O pacto colonial e o patriarcado latino-americano
A maioria dos autores decoloniais homens desconhecem, que junto com as
desigualdades produzidas pela raça, existiu um pacto colonial patriarcal entre o colonizador e
o colonizado. Pacto encoberto, já que a história foi contada pelos homens brancos. O corpo
das mulheres brancas, não brancas, mestiças, indígenas, negras foi o espolio colonial, (sempre
atenta às diferenças entre as espanholas-portuguesas e as indígenas, negras e mestiças, e o
lugar ocupado no patriarcado). Se existiu horizontalidade de gênero nos povos indígenas ou
africanos não quedam rastros, o colonialismo destruiu por completo. Todo o aparato estatal do
patriarcado político, religioso, cultural, estritamente europeu foi imposto às mulheres nas
terras conquistadas, para o controle sexual e reprodutivo. (Galindo 2015 pag 15)
Existe e existiu o disciplinamento colonial do desejo erótico. O racismo não é só uma
construção de hierarquia colonial é fundamentalmente patriarcal. Porque o desejo não circula
nem circulou livremente pela sociedade, por isso não podemos falar de mestiçagem e sim, de
Bastardismo4, (Galindo 2015, P 15). Porque não foi uma mistura livre e horizontal, foi
obrigada, submetida, violenta e clandestina, e inclui todas as mulheres, inclusive as brancas
vindas da Europa ou nascidas nas terras colonizadas. (Galindo, 2015, P 16).
É aqui o ponto em que podemos começar o diálogo sobre o feminismo latino-
americano. Diálogo de conflito e diversidade, porque não podemos deixar de alertar que as
mulheres enquanto gênero fora e são subordinadas de diferentes maneiras, frente ao
3 Aqui retomo o termo do Kusch no sentido que ele deu para o mestiço na América. O seja a visibilidade que
América latina é indígena (acrescento negra) e que as elites branco-burguesas latino-americanas intentaram e
intentam ainda ocultar, branqueando as práticas próprias do pensamento popular Americano. Aqui ter
consciência mestiça seria aceitar que somos um solo colonizado, e que é nossa decisão através da nossa
consciência sair de essa situação de ocultamento e inviabilização. 4 Termo utilizado para designar a filha (o) concebida (o) e nascido fora do matrimônio legal e católico.
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patriarcado. As mulheres não negras e mestiças tem tido privilégios nos contextos de
colonização e escravidão, precisamente os privilégios permitem evidenciar que elas viveram o
patriarcado de uma forma diferente que as mulheres indígenas e afrodescendentes. Na
América Latina, em grande medida, as mulheres brancas e não negras têm tido com as
indígenas e afrodescendentes uma relação de matrona-serviente, de proprietária-escrava o de
senhora-menina. A história nos fez desiguais e seria muito desafortunado ocultar essas
assimetrias, ponderando sobre o argumento falaz da universalidade da forma de ser mulher,
levantando uma única bandeira da libertação.
Existem várias vertentes feministas que se tem dado a tarefa de trabalhar o tema da
diversidade e das diferenças. Essa corrente conhecida como feminismo da diferença, não está
exceto de críticas, porém seus aportes são valiosos para contextos etnicamente diversos, como
no caso de vários países latino-americanos.
Alguma feminista parece-lhes difícil reivindicar a diferença sem cair na
desigualdade. Mulheres indígenas e afrodescendentes reclamam os direitos a suas
particularidades demandando assim mesmo igualdade. Os conteúdos das reivindicações não
têm a mesma conotação que as diferenças impostas pelo patriarcado ou racismo. Aqui o que
se proclama não é a diferença que justifica um trato desigual, é a que procura processos
liberadores, que não se construí em hierarquia, mas sim em horizontalidade, que não se
impõe, se reivindicada desde às mulheres (no termo mulher sempre atenta as questões de
gênero e as nominações multiplex do que é definir-se mulher ou não) no marco complexo e
crítico.
Em situações de dominação a diferença se constrói como um mecanismo de práticas
excludentes e discriminatórias, já nas lutas pela justiça, a diferença se constrói como uma
afirmação desde a diversidade. Podemos falar aqui de uma diferença que hierarquiza uma
diferença horizontal, neste caso, gostaria de pensar numa construção da diferença em
equivalência humana. Para isso, acredito no poder da prática, dos encontros, dos conflitos.
Como praticante de capoeira angola, especificamente dentro do grupo Nzinga, do qual vou
referir-me, o trânsito das (os) integrantes pelos caminhos das negociações, tensões e acordos
étnicos raciais e de gênero que acontecem no interior, possibilita novos olhares, novas
perspectivas de ser e estar nosso solo latino-americano.
A mandinga de angola na roda do grupo Nzinga
A capoeira angola está presente hoje em 150 países do mundo e em inumeráveis teses
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e dissertações de universidade prestigiosas. Sua existência é produto da resistência do povo
negro, marginalizado, pobre, perseguido e humilhado do Brasil. O que era visto como coisa
de vagabundo, hoje transpassa as classes sociais, as origens étnico-raciais, o gênero, sendo
recentemente reconhecida como patrimônio da humanidade. Luta, resistência e contra
hegemonia, são palavras que escuto reiteradamente na voz de minhas mestras e meu mestre
enquanto falam sobre a importância de considerar os fundamentos da capoeira angola,
enquanto prática libertária.
A vida se resolve através do transito entre o estar e o ser. A vida sábia funcionaria
como uma via simbólica para compreender o “estar sendo”. Acredito no poder da prática, do
jogo, da experiência, porque a vida é dinâmica e transitória, constitui um vaivém, uma ginga,
na qual a noção de “fagocitação” integra um carácter lúdico, de mediação, de interpolação,
onde nos encontramos com os saberes epistêmicos afro-ameríndios, a partir do encontro dos
opostos, que se complementam: o ocidental-americano. O medo de viver, o preconceito, nos
priva da livre entrega ao outro, e por tanto da possibilidade de sermos nós mesmos. (Kusch
2012, p23)
O grupo Nzinga desenvolve-se através da liderança das Mestras Janja e Paulinha e do
Mestre Poloca. Chamo atenção para as mestras de capoeira, pois apesar da existência histórica
de mulheres capoeiristas, sua trajetória se destaca em um mundo eminentemente masculino e
machista como o da capoeira. O Nzinga também conta com a guia espiritual do sacerdote Tata
Mutá Imê do terreiro “Da casa dos olhos de tempo” nação angolão Paquetan e o mestre da
cultura popular Tião Carvalho, do Maranhão radicado em São Paulo. Assim, o Nzinga
reivindica e cultua os fundamentos da cultura banto5 como constitutivos da capoeira Angola,
como também, os atravessamentos de gênero definido como “feminismo angolero”. Nesses
cruzamentos é que as corporeidades transitam nas rodas através das identificações culturais. A
capoeira angola, como seu nome indica, tem origem Banto e, porquanto, contém os
fundamentos de como os povos bantos veem o mundo.
O autor Kimbwandende Kia Bunseki FuKiau (1996, p 2) fez aportes muitos
significativos para entender a cultura banto, sendo uma das referências mais contundentes
para muitos estudos sobre o tema. O conceito de ‘corpo sagrado’ aparece na ideia do autor
como mundo natural sagrado e os indivíduos como parte constitutiva de esse mundo. Para
essa ideia nas nossas moradias e pertences são sagrados, porque são feitos de matérias primas
5 Os bantos formam um grupo étnico africano que habitam a região da África ao sul do Deserto do Saara. A
maioria dos mais de 300 subgrupos étnicos é formada por agricultores, que vivem também da pesca e da caça.
Estes subgrupos possuem em comum a família linguística banta.
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tiradas do mundo natural e sagrado. Dentro da roda, o jogo da capoeira angola aparece
fundando no respeito e cuidado pelo corpo dos jogadores. Durante o trabalho de campo,
através das conversas e nos jogos praticados nas rodas do Nzinga, recupero a voz das
integrantes do grupo, que chamarei aqui pelo primeiro nome, Bruna, aluna com mais tempo
dentro do grupo, me diz “você tem que fechar mais o corpo, não deixe ninguém entrar, para te
derrubar”, fazendo alusão em cuidar as partes do corpo que deixo em aberto para que o
parceiro marque um golpe ou um movimento. Ou quando a mestra Janja, durante uma
conversa diz “meu corpo não é palco para outro se mostrar”, expressando uma preocupação
para um jogo cuidadoso com o corpo sagrado próprio e do parceiro/a e atenta também a
questões de gênero.
A religiosidade aparece dentro das rodas como parte do fundamento banto, ainda que
tenha pessoas no grupo que não tenham ligação direta com o candomblé6. Vários participantes
do grupo, começando pelo mestre e mestras são filhas e filhos espirituais da casa, alguns com
certo grau de responsabilidade maior, pelo tempo e função determinada. Isto é permeável nas
corporeidades no momento da atuação dos participantes na roda, através das simbolizações
dos corpos nas movimentações como também das estéticas. Por exemplo, na relação que se
estabelece entre a música aos Nkisis7, que a bateria da roda toca e canta, e as corporeidades,
fazendo reverências no momento de nomeá-las e nomeá-los (diferenciando aqui Nkisis
femininos e masculinos no mundo do candomblé).
No momento do jogo na roda, principalmente das mulheres, se apela a cantos para a
Nkisi Matamba ou Santa Barbara (santa católica associada a Matamba dentro do sincretismo
religioso) para gerar movimentações mais decisivas ou propositivas nas jogadoras. Aqui uma
das músicas: “Oya, oya oya eeeee, Oya matamba de cucurucaia zingue” (música própria do
candomblé banto), momento que não passa despercebido pelas integrantes do grupo,
acontecendo mudanças nas dinâmicas do jogo: aumenta os movimentos propositivos por parte
da jogadora, sendo mais ofensiva, determinante, como assim também simbolizações como
tocar o chão, no sentido de fazer referência, o que dentro do espaço do candomblé seria “bater
cabeça” quando os filhos reverenciam os Nkisis.
Quebradas, desequilíbrios são lógicas de movimentações que rescindem a linearidade,
a mecanicidade. Dentro da roda, o improviso é quem protagoniza o diálogo dançado, onde a
ginga é o ponto de partida para as inumeráveis movimentações possíveis no jogo da capoeira
6 Festa religiosa afro-brasileira onde se cultua os orixás, Nkisis, Caboclos e vodus. 7 Aqui se faz referência ao deuses e deusas trazidos da África pelos povos bantos e que se cultuam dentro dos
rituais de candomblé.
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angola. A ginga é o desequilíbrio do corpo, seria o balanço produzido através do peso de um
lado para outro e, dentro do grupo Nzinga toma forma de “Ginga quebrada”, recuperando
aqui, segundo minhas análises, os princípios de movimentos das danças dos nkisis e caboclos8
das festas do candombe, como também, do samba pé no chão como é chamado pelo líder
espiritual e dançarino Tata Mutá Aimê. O pê no chão é caraterístico das danças de motriz
banto, diferenciando aqui, por exemplo, as danças dos orixás de raiz keto9, as quais implicam
ponta de pê nas movimentações. Enquanto as danças de motriz banto, tema de nosso estudo,
seria necessário, recuperando os ensinamentos do Tata Mutá Aimê, fazer movimentações
pequenas, implica não perder a musicalidade, o seja, o tempo da percussão
“Eu vou dizer a você têm homem e têm mulher”: o gênero na roda do Nzinga.
O feminismo dentro da capoeira angola é pensado e difundido dentro do grupo Nzinga
e principalmente pelo trabalho acadêmico e militante das mestras Paula Barreto (mestra
Paulinha) Rosangela Costa Araujo (mestra Janja).
Sendo o território declaradamente heterenormatizado, podemos afirmar, portanto
que o sexísimo (misoginia, lesbofobia, homofobia, transfobia) impede que a
capoeira conclua sua missão libertaria, e que da mesma forma, encontramos nas
disputas entre as representações dos gêneros (e sempre atentas as implicações
interseccionais aos debates sobre etnias e raças e da diversidade sexual) novas
dimensões discursivas aos estabelecimentos de práticas segregadas, decisivas nas
reestruturações das relações de poder em meio á economia da capoeira, emergirem
cada vez mais vigorosas. (Araujo 2016, p 371)
Um dos fundamentos principais que ressoa na voz das (os) mestras, é a diversidade e
inclusão da prática da capoeira. Um grupo de pessoas diversas na luta antirracista e
antipatriarcal, onde as pessoas não negras, brancas, homens, heterossexuais, junto às mulheres
negras, trans, lesbicas, homossexuais, junta-se na luta cotidiana. Dentro do grupo, as mulheres
encontram seus lugares de trocas intensas, por exemplo, a existência de momentos de
treinamentos só das mulheres, antes do treino regular do grupo. Alguns dos relatos: “é
diferente esse momento de treino entre as mulheres, chego logo no treino com os outros
integrantes mais confiante, segura, sobretudo na hora de tocar e cantar na bateria” (Darlene).
Aqui outro relato de uma integrante que não é do grupo Nzinga, porem frequenta as rodas :
“a roda do Nzinga é especial é só aqui que acontece que posso jogar livremente sem ter medo
de receber uma agressão verdadeira” (Gabriela).
É na roda onde aconteceriam os espaços de negociações e trocas a partir do feminismo
8 Se denomina a mistura do indígena com branco. 9 Se denomina a os povos chegados a América (pelos processos de colonização) da atual Benin.
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angoleiro, com a presença das mestras Janja e Paulinha, em maior medida, e do mestre Poloca
e treneis10 do grupo, como também dos mais velhos (contando o tempo de capoeira e não a
idade). Dentro da performance, o respeito pelo corpo, mais ainda pelo da mulher, é alcançado
na negociação que permite a des/construção de lógicas machistas e misóginas, deixando lugar
a corporeidades criativas, inovadoras, e sobretudo libertárias. Para Araujo, sendo um espaço
de trocas intensas, é na roda que valores são negociados, que estratégias são refeitas/desfeitas,
atribuindo sentido e significados aos processos comunicacionais que estruturam pela
oralidade, os acervos dos tempos que aí se funde, se interpenetram. (Araujo 2016, p 372).
Há cumplicidade entre as (os) integrantes do grupo no momento da roda, que se
observa nos olhares e nas práticas, como também na ação direita das (os) mestres para dirigir
o ritual. Atribuindo sentido aos fundamentos da capoeira angola e o feminismo angolero
propiciados pelo grupo. A participação sempre das mulheres na bateria, a não violência e o
cuidado do próprio corpo e com (a) outro (a), chamando sempre ao pé do berimbau11, em caso
de estar vendo-se uma ação violenta por parte de alguns dos (as) jogadores. Situação que para
nos mulheres, vivendo numa sociedade machista patriarcal e opressora, são espaços de
cuidado e respeito fundamentais para a libertação de nossos corpos, porem de nossas vidas.
Os espaços de trocas vão tencionando as questões de gênero e étnico-raciais no
interior da roda. Aqui gostaria de chamar atenção da diversidade do grupo, com presença de
mulheres e homens negras (os) de setores populares e de classes médias e altas, mulheres e
homens não negros (as) de setores médios e altos, como assim também pessoas lesbicas e
trans, negras (os) e não, que não se definem na categoria mulher-homem. O fato da existência
de esses encontros, gera incômodos, perguntas, e questionamentos por parte dos homens, das
pessoas não negras, e de quem ainda não percebe os lugares que ocupa na escala social,
conflito que tem sido produtivo na possibilidade de desconstrução de alguns machismos e
racismos instalados no interior.
Desde a prática mesma da capoeira, vão se tecendo possibilidades dialógicas sobre as
dificuldades que enfrentamos não só na roda de capoeira, mas também na grande roda da
vida. Percebo uma abertura de consciência sobre o lugar da mulher negra de setor popular nas
questões éticas raciais e de gênero, construída desde tensões, porém, a partir de um lugar
dialógico, horizontal, e que procura fazer espaço para diferença em procura da igualdade. Em
10 Se denomina aquele que é autorizado pelo mestre ou mestra a dar aulas, dirigir uma roda, entre outras
funciones da pratica da capoeira angola. 11 Estou me referindo quando o tocador que está no berimbau maior chamado Gunga (na maioria das vezes o que
têm mais tempo na pratica de capoeira) chama ao jogador para recomeçar, parar o jogo ou simplesmente dar
indicações.
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várias oportunidades, nas conversas tem se manifestado, sobretudo por parte das mulheres, as
dificuldades de ter que entrar numa roda, a exposição do corpo nesse momento da
performance, sobretudo aquelas onde a prática corporal não há tido protagonismo na sua
história de vida. É importante e notório no grupo das mulheres a percepção dessas situações,
porque se percebe o cuidado pelo disfrute corporal no momento da roda, a cumplicidade que
se observa nos risos e olhares durante o acerto de algumas “angoleiras” nas movimentações
no jogo, a superação dos obstáculos e como isso vai traduzindo-se para a grande roda da vida,
gerando mais confiança, determinação e sobretudo consciência que se leva a prática, dos
lugares que cada um (a) ocupa na escala social.
Considerações finais
“Estar sendo” no sentido de ser e estar situado, como caminho para construir
possibilidades dialógicas horizontais desde a diferença, a prática como ferramenta para propor
outros espaços emancipadores, que nos interpelem com mais perguntas inquietações, fazeres,
dúvidas. Porque acredito que outra história pode ser contada, que permita desconstruir os
discursos que segregam, excluem e desigualam, as sombras que ocultam possibilidades de
viver outros mundos. O encontro entre diferentes histórias e memórias, a partir dos
múltiplos feminismos possíveis, onde horizontalmente nos posicionemos desde a diferença,
aquela que não desiguala e permite colocar as mais desfavorecidas na história no lugar de
protagonismo, de visibilidade e possibilidade. Repensar as formas, desconstruir as lógicas
rígidas, reinventar possibilidades novas de dizer, de viver de existir. Fazer dos espaços que
habitamos possibilidades dialogias, de confronto, de opostos, onde vários mundos sejam
possíveis, sobretudo nos espaços como os acadêmicos. Mas também, transitar outros, que
ficam à margem de nosso círculo de conforto e privilégio, contudo estão possibilitando
transformações sobre como ser e estar no mundo. Aqui o exemplo da experiência da roda do
grupo Nzinga.
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Capoeira em Multiplos olhares. Estudos e pesquisas em jogo. Uniafro.Salvador 2016.
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Ethnic and gender marks on capoeira wheels angola
Abstract: The following article seeks to initiate discussions on the relations between the
corporations present on the Angolan capoeira wheels that took place within the space of the
Nzinga salvador group and the founding principles of the group: Angolan feminism (defined
by the group) and the defense and diffusion of culture African Bantu as the founding principle
of Capoeira Angola. Through the ethnographic study, the aim is to reflect on ethnic-racial and
gender diversity within the lived spaces, focusing on the meetings of people of different social
classes, nationality, gender, ethnic-racial identities within spaces, Possible dialogues,
intentions and emancipatory possibilities, thinking equality from difference
Keywords : Capoeira Angola, Gender, Corporeidades, Wheels
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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X