12
1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X MARCAS ÉTNICAS E DE GÊNERO NAS RODAS DE CAPOEIRA ANGOLA Veronica Daniela Navarro 1 Resumo: O seguinte artigo procura instaurar discussões sobre as relações entre as corporeidades presentes nas rodas de Capoeira Angola acontecidas dentro do espaço do Grupo Nzinga Salvador/BA e os princípios fundantes do grupo: o feminismo angolero, assim definido pelo grupo, e a defesa e difusão da cultura africana Banto a partir da capoeira angola. Através do estudo etnográfico procura-se refletir sobre a diversidade étnico-racial e de gênero vivenciados no interior deste Grupo, tendo como foco de análise os encontros dos participantes que são de diferentes classes sociais, nacionalidades, gêneros, identidades étnico-raciais e os desdobramentos dialógicos, as tensões e possibilidades emancipatórias, pensando a igualdade desde a diferença. Palavras-chave: Capoeira Angola, Gênero, Corporeidades, Roda A diversidade cultural e a disputa pelo reconhecimento das diferenças O termo colonialidade do poder permite explicar de maneira quase inquestionável os fundamentos dos processos colonizatórios do passado e do presente. Anibal Quijano (2005, pag 4) pensa as novas identidades históricas produzidas sobre a ideia de raça, onde a dominante (os brancos europeus) impôs o mesmo critério de classificação social a toda a população mundial em escala global, forjando novas identidades históricas e sociais: amarelos e azeitonados (ou oliváceos) somaram-se a brancos, índios, negros e mestiços. Às questões étnicas raciais, acrescento o gênero, já que na análise de Quijano, como em tantos outros autores homens, pouco se pondera sobre essa temática. Nos idos do final do século XIX começo do século XX, o modernismo impulsado pelas elites latino-americanas se enfrentava com o desafio da construção de estados civilizados. Para isso foi necessário tomar a definição científica de raça acunhada pelos europeus, apreciação pela pureza racial, e o consequente menosprezo pelo mestiço 2 . 1 Mestranda em dança, pela universidade Federal da Bahia, Brasil. 2 Aqui o uso do termo mestiço intenta dar conta dos processos de miscigenação da América, para o branqueamento da “raça” que as elites latino-americanas impulsaram na América. O seja quanto mais longe de ter rangos indígenas ou negros, mais aceitação da pessoa.

MARCAS ÉTNICAS E DE GÊNERO NAS RODAS DE CAPOEIRA … · populações indígenas (acrescento afro americanas) como sujeitos da história, converte suas lutas e demandas em ingredientes

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: MARCAS ÉTNICAS E DE GÊNERO NAS RODAS DE CAPOEIRA … · populações indígenas (acrescento afro americanas) como sujeitos da história, converte suas lutas e demandas em ingredientes

1

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

MARCAS ÉTNICAS E DE GÊNERO NAS RODAS DE CAPOEIRA ANGOLA

Veronica Daniela Navarro1

Resumo: O seguinte artigo procura instaurar discussões sobre as relações entre as

corporeidades presentes nas rodas de Capoeira Angola acontecidas dentro do espaço do

Grupo Nzinga Salvador/BA e os princípios fundantes do grupo: o feminismo angolero, assim

definido pelo grupo, e a defesa e difusão da cultura africana Banto a partir da capoeira angola.

Através do estudo etnográfico procura-se refletir sobre a diversidade étnico-racial e de gênero

vivenciados no interior deste Grupo, tendo como foco de análise os encontros dos

participantes que são de diferentes classes sociais, nacionalidades, gêneros, identidades

étnico-raciais e os desdobramentos dialógicos, as tensões e possibilidades emancipatórias,

pensando a igualdade desde a diferença.

Palavras-chave: Capoeira Angola, Gênero, Corporeidades, Roda

A diversidade cultural e a disputa pelo reconhecimento das diferenças

O termo colonialidade do poder permite explicar de maneira quase inquestionável os

fundamentos dos processos colonizatórios do passado e do presente. Anibal Quijano (2005,

pag 4) pensa as novas identidades históricas produzidas sobre a ideia de raça, onde a

dominante (os brancos europeus) impôs o mesmo critério de classificação social a toda a

população mundial em escala global, forjando novas identidades históricas e sociais: amarelos

e azeitonados (ou oliváceos) somaram-se a brancos, índios, negros e mestiços. Às questões

étnicas raciais, acrescento o gênero, já que na análise de Quijano, como em tantos outros

autores homens, pouco se pondera sobre essa temática.

Nos idos do final do século XIX começo do século XX, o modernismo impulsado

pelas elites latino-americanas se enfrentava com o desafio da construção de estados

civilizados. Para isso foi necessário tomar a definição científica de raça acunhada pelos

europeus, apreciação pela pureza racial, e o consequente menosprezo pelo mestiço2.

1 Mestranda em dança, pela universidade Federal da Bahia, Brasil. 2 Aqui o uso do termo mestiço intenta dar conta dos processos de miscigenação da América, para o

branqueamento da “raça” que as elites latino-americanas impulsaram na América. O seja quanto mais longe de

ter rangos indígenas ou negros, mais aceitação da pessoa.

Page 2: MARCAS ÉTNICAS E DE GÊNERO NAS RODAS DE CAPOEIRA … · populações indígenas (acrescento afro americanas) como sujeitos da história, converte suas lutas e demandas em ingredientes

2

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

Para poder participar da nova ordem mundial gerado pelo racismo científico, as elites

latino-americanas propuseram uma noção de raça biológica própria, e geraram versões

nacionais do que significava ser ‘branco’. Em grande medida as classes educadas na América

Latina compartiram os preconceitos dos europeus. Desejavam ser brancos e temiam não selo.

Desde a ideologia da decência, a pureza moral era mais importante que a impureza do

fenótipo mestiço que caracterizava tanto as elites como a plebe regional. Os mestiços eram

moralmente impuros, por isso, e não pelo aspecto físico, eram diferentes dos “decentes”. Os

processos de branqueamentos produzidos na cultura popular, por exemplo no tango, na

capoeira, no samba, sendo estes nascidos no interior dos batuques dos povos marginados

afrodescendentes de Buenos Aires na Argentina e da Bahia no Brasil, começam a ser

praticados pelas elites que precisavam se diferenciar moralmente desses grupos, adotando-

lhes como prática, porém, modificando-os e dotando-os de “toques” europeus.

Aparece hoje da mão dos órgãos estatais uma nova colonização, referenciada no termo

multiculturalismo, como mecanismo encobridor por excelência das novas formas de

colonização. As elites adotam uma estratégia de travestismo e articulam novos esquemas de

cooptação e neutralização. Reproduz-se uma inclusão condicionada, uma cidadania recortada

e de segunda classe, que modelam imaginários e identidades subalternizadas ao papel de

ornamentos e massas anônimas que teatralizam sua própria identidade. A diferença do multi,

aparece o conceito de interculturalidade, o qual nasce no interior da luta e reivindicações dos

povos indígenas da América Latina, não simplesmente como discurso, construído desde a

particularidade da diferença, mas como epistemologia. A autora Caterine walsch (2007, p

123) pensa o termo como ruptura epistémica que tem como base o passado e o presente,

vividos como realidades de dominação, exploração e marginalização. A interculturalidade

seria esse pensamento “outro” construído desde a enunciação política do movimento indígena,

porém também de outros grupos subalternos. Diferente com o conceito de multiculturalismo,

o qual defende os interesses hegemônicos. Porém, interculturalidade e multiculturalidade são

utilizadas pelo o Estado e pelos setores branco-mestiços como termos sinônimos, fruto das

concepções globais ocidentais dos movimentos sócios históricos e das demandas e propostas

subalternas. Os termos assim utilizados, instalam e visibilizam uma geopolítica do

conhecimento que apaga as histórias locais e autoriza um sentido “universal” das sociedades e

do mundo multicultural.

Para Silvia Ribeira Cusicasqui (2010 p 60), não pode existir um discurso da

descolonização, ou uma teoria da descolonização, sem uma prática descolonizadora. O

Page 3: MARCAS ÉTNICAS E DE GÊNERO NAS RODAS DE CAPOEIRA … · populações indígenas (acrescento afro americanas) como sujeitos da história, converte suas lutas e demandas em ingredientes

3

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

discurso do multiculturalismo e o discurso da hibridez seriam leituras essencialistas e

historicistas da questão indígena, que não tocam os temas de fundo da descolonização, porém,

encobrem e renovam práticas efetivas de colonização e subalternização. Suplanta as

populações indígenas (acrescento afro americanas) como sujeitos da história, converte suas

lutas e demandas em ingredientes de uma reengenharia cultural e estatal capaz de submetê-las

à sua vontade neutralizadora e subordinadora, em funções puramente emblemáticas e

simbólicas, ao serviço do espetáculo pluri-multi do estado e dos meios de comunicação de

massas.

Hoje a igualdade e cidadania encobre privilégios políticos e culturais tácitos, que

fazem tolerável a incongruência e permitem reproduzir as estruturas coloniais de opressão.

Assim as elites latino-americanas adotaram um multiculturalismo oficial, enraizado na noção

dos indígenas e negros como minorias étnicas. Para Cusicasqui (2010, p 67) um

Multiculturalismo ornamental e simbólico, com fórmulas como o “etno-turismo” e o “eco-

turismo”.

Neste ponto, o conceito Fagocitação do autor Rodolfo Kusch (2012, p 20), seria um

caminho para entender nossa cultura popular diversa, no entanto, contraditória. O termo

estaria se referindo a absorção das “pulcras” coisas do Ocidente pelas coisas da América,

como a modo de equilíbrio e reintegração do humano. A fagocitação se dá pelo fato de ter

considerado hediondas as coisas da América e a construção de verdade universal, que

expressa, que, tudo em estado puro, é falso e deve ser contaminado pelo oposto. A través do

conceito proposto pelo autor, como a absorção do ocidental em favor do equilíbrio e a

reintegração do humano, consigo pensar a interação como crucial, ulteriormente, focalizada

na (re) construção dos processos culturais e indenitários que vão se desenvolvendo na

América. Dita interação recodifica o acontecer histórico numa “dialética” centrada nos

opostos (divergente a toda ideia de superação ou síntese), capaz de constituir uma entrada à

sabedoria americana. A fagocitação contém elementos que reposicionam a experiência (e a

convivência) com popular, construindo veículos para filosofar sobre o urbano, o mestiço, o

latino-americano. Assim também integra o indígena, (acrescento o negro, já que Kusch não

trabalha questões afro-americanas) como um horizonte aberto donde se apresenta o simples, o

arcaico e o antigo, o seminal, para Kusch aquilo que conduz a pergunta pelo que é o

americano. Esta reflexão arcaica, seminal, indígena, negra se enfrenta inexoravelmente a

aculturação, modernidade, colonialismo e capitalismo para o que utiliza a fagocitação (do

ocidental) como resposta (Kusch, 2012, pag 20). Esta resposta evidencia os modos de

Page 4: MARCAS ÉTNICAS E DE GÊNERO NAS RODAS DE CAPOEIRA … · populações indígenas (acrescento afro americanas) como sujeitos da história, converte suas lutas e demandas em ingredientes

4

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

supervivência e vetorização do popular, indígena e negro. Frente a aculturação o exercício da

fagocitação devora (e subverte) a imposição indenitária e cultural. É um exercício de

resistência e conservação, de adaptação, ulteriormente, é um exercício criador, um exercício

vital. Um discurso popular que reconheça as epistemologias afro-ameríndias, sem cair nas

amarras dos discursos essencialistas e capitalistas que apropriam os termos e esvaziam das

lutas e reivindicações que o fundam. Como sentirmos filhas (os) da terra latino-americana,

com consciência mestiça3, no sentido do autor Kusch, respeitando nossas diferenças e

renunciando os nossos privilégios na escala social, racial e de gênero? Como construímos

igualdade desde a diferença?

Diálogos feministas em disputa. O pacto colonial e o patriarcado latino-americano

A maioria dos autores decoloniais homens desconhecem, que junto com as

desigualdades produzidas pela raça, existiu um pacto colonial patriarcal entre o colonizador e

o colonizado. Pacto encoberto, já que a história foi contada pelos homens brancos. O corpo

das mulheres brancas, não brancas, mestiças, indígenas, negras foi o espolio colonial, (sempre

atenta às diferenças entre as espanholas-portuguesas e as indígenas, negras e mestiças, e o

lugar ocupado no patriarcado). Se existiu horizontalidade de gênero nos povos indígenas ou

africanos não quedam rastros, o colonialismo destruiu por completo. Todo o aparato estatal do

patriarcado político, religioso, cultural, estritamente europeu foi imposto às mulheres nas

terras conquistadas, para o controle sexual e reprodutivo. (Galindo 2015 pag 15)

Existe e existiu o disciplinamento colonial do desejo erótico. O racismo não é só uma

construção de hierarquia colonial é fundamentalmente patriarcal. Porque o desejo não circula

nem circulou livremente pela sociedade, por isso não podemos falar de mestiçagem e sim, de

Bastardismo4, (Galindo 2015, P 15). Porque não foi uma mistura livre e horizontal, foi

obrigada, submetida, violenta e clandestina, e inclui todas as mulheres, inclusive as brancas

vindas da Europa ou nascidas nas terras colonizadas. (Galindo, 2015, P 16).

É aqui o ponto em que podemos começar o diálogo sobre o feminismo latino-

americano. Diálogo de conflito e diversidade, porque não podemos deixar de alertar que as

mulheres enquanto gênero fora e são subordinadas de diferentes maneiras, frente ao

3 Aqui retomo o termo do Kusch no sentido que ele deu para o mestiço na América. O seja a visibilidade que

América latina é indígena (acrescento negra) e que as elites branco-burguesas latino-americanas intentaram e

intentam ainda ocultar, branqueando as práticas próprias do pensamento popular Americano. Aqui ter

consciência mestiça seria aceitar que somos um solo colonizado, e que é nossa decisão através da nossa

consciência sair de essa situação de ocultamento e inviabilização. 4 Termo utilizado para designar a filha (o) concebida (o) e nascido fora do matrimônio legal e católico.

Page 5: MARCAS ÉTNICAS E DE GÊNERO NAS RODAS DE CAPOEIRA … · populações indígenas (acrescento afro americanas) como sujeitos da história, converte suas lutas e demandas em ingredientes

5

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

patriarcado. As mulheres não negras e mestiças tem tido privilégios nos contextos de

colonização e escravidão, precisamente os privilégios permitem evidenciar que elas viveram o

patriarcado de uma forma diferente que as mulheres indígenas e afrodescendentes. Na

América Latina, em grande medida, as mulheres brancas e não negras têm tido com as

indígenas e afrodescendentes uma relação de matrona-serviente, de proprietária-escrava o de

senhora-menina. A história nos fez desiguais e seria muito desafortunado ocultar essas

assimetrias, ponderando sobre o argumento falaz da universalidade da forma de ser mulher,

levantando uma única bandeira da libertação.

Existem várias vertentes feministas que se tem dado a tarefa de trabalhar o tema da

diversidade e das diferenças. Essa corrente conhecida como feminismo da diferença, não está

exceto de críticas, porém seus aportes são valiosos para contextos etnicamente diversos, como

no caso de vários países latino-americanos.

Alguma feminista parece-lhes difícil reivindicar a diferença sem cair na

desigualdade. Mulheres indígenas e afrodescendentes reclamam os direitos a suas

particularidades demandando assim mesmo igualdade. Os conteúdos das reivindicações não

têm a mesma conotação que as diferenças impostas pelo patriarcado ou racismo. Aqui o que

se proclama não é a diferença que justifica um trato desigual, é a que procura processos

liberadores, que não se construí em hierarquia, mas sim em horizontalidade, que não se

impõe, se reivindicada desde às mulheres (no termo mulher sempre atenta as questões de

gênero e as nominações multiplex do que é definir-se mulher ou não) no marco complexo e

crítico.

Em situações de dominação a diferença se constrói como um mecanismo de práticas

excludentes e discriminatórias, já nas lutas pela justiça, a diferença se constrói como uma

afirmação desde a diversidade. Podemos falar aqui de uma diferença que hierarquiza uma

diferença horizontal, neste caso, gostaria de pensar numa construção da diferença em

equivalência humana. Para isso, acredito no poder da prática, dos encontros, dos conflitos.

Como praticante de capoeira angola, especificamente dentro do grupo Nzinga, do qual vou

referir-me, o trânsito das (os) integrantes pelos caminhos das negociações, tensões e acordos

étnicos raciais e de gênero que acontecem no interior, possibilita novos olhares, novas

perspectivas de ser e estar nosso solo latino-americano.

A mandinga de angola na roda do grupo Nzinga

A capoeira angola está presente hoje em 150 países do mundo e em inumeráveis teses

Page 6: MARCAS ÉTNICAS E DE GÊNERO NAS RODAS DE CAPOEIRA … · populações indígenas (acrescento afro americanas) como sujeitos da história, converte suas lutas e demandas em ingredientes

6

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

e dissertações de universidade prestigiosas. Sua existência é produto da resistência do povo

negro, marginalizado, pobre, perseguido e humilhado do Brasil. O que era visto como coisa

de vagabundo, hoje transpassa as classes sociais, as origens étnico-raciais, o gênero, sendo

recentemente reconhecida como patrimônio da humanidade. Luta, resistência e contra

hegemonia, são palavras que escuto reiteradamente na voz de minhas mestras e meu mestre

enquanto falam sobre a importância de considerar os fundamentos da capoeira angola,

enquanto prática libertária.

A vida se resolve através do transito entre o estar e o ser. A vida sábia funcionaria

como uma via simbólica para compreender o “estar sendo”. Acredito no poder da prática, do

jogo, da experiência, porque a vida é dinâmica e transitória, constitui um vaivém, uma ginga,

na qual a noção de “fagocitação” integra um carácter lúdico, de mediação, de interpolação,

onde nos encontramos com os saberes epistêmicos afro-ameríndios, a partir do encontro dos

opostos, que se complementam: o ocidental-americano. O medo de viver, o preconceito, nos

priva da livre entrega ao outro, e por tanto da possibilidade de sermos nós mesmos. (Kusch

2012, p23)

O grupo Nzinga desenvolve-se através da liderança das Mestras Janja e Paulinha e do

Mestre Poloca. Chamo atenção para as mestras de capoeira, pois apesar da existência histórica

de mulheres capoeiristas, sua trajetória se destaca em um mundo eminentemente masculino e

machista como o da capoeira. O Nzinga também conta com a guia espiritual do sacerdote Tata

Mutá Imê do terreiro “Da casa dos olhos de tempo” nação angolão Paquetan e o mestre da

cultura popular Tião Carvalho, do Maranhão radicado em São Paulo. Assim, o Nzinga

reivindica e cultua os fundamentos da cultura banto5 como constitutivos da capoeira Angola,

como também, os atravessamentos de gênero definido como “feminismo angolero”. Nesses

cruzamentos é que as corporeidades transitam nas rodas através das identificações culturais. A

capoeira angola, como seu nome indica, tem origem Banto e, porquanto, contém os

fundamentos de como os povos bantos veem o mundo.

O autor Kimbwandende Kia Bunseki FuKiau (1996, p 2) fez aportes muitos

significativos para entender a cultura banto, sendo uma das referências mais contundentes

para muitos estudos sobre o tema. O conceito de ‘corpo sagrado’ aparece na ideia do autor

como mundo natural sagrado e os indivíduos como parte constitutiva de esse mundo. Para

essa ideia nas nossas moradias e pertences são sagrados, porque são feitos de matérias primas

5 Os bantos formam um grupo étnico africano que habitam a região da África ao sul do Deserto do Saara. A

maioria dos mais de 300 subgrupos étnicos é formada por agricultores, que vivem também da pesca e da caça.

Estes subgrupos possuem em comum a família linguística banta.

Page 7: MARCAS ÉTNICAS E DE GÊNERO NAS RODAS DE CAPOEIRA … · populações indígenas (acrescento afro americanas) como sujeitos da história, converte suas lutas e demandas em ingredientes

7

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

tiradas do mundo natural e sagrado. Dentro da roda, o jogo da capoeira angola aparece

fundando no respeito e cuidado pelo corpo dos jogadores. Durante o trabalho de campo,

através das conversas e nos jogos praticados nas rodas do Nzinga, recupero a voz das

integrantes do grupo, que chamarei aqui pelo primeiro nome, Bruna, aluna com mais tempo

dentro do grupo, me diz “você tem que fechar mais o corpo, não deixe ninguém entrar, para te

derrubar”, fazendo alusão em cuidar as partes do corpo que deixo em aberto para que o

parceiro marque um golpe ou um movimento. Ou quando a mestra Janja, durante uma

conversa diz “meu corpo não é palco para outro se mostrar”, expressando uma preocupação

para um jogo cuidadoso com o corpo sagrado próprio e do parceiro/a e atenta também a

questões de gênero.

A religiosidade aparece dentro das rodas como parte do fundamento banto, ainda que

tenha pessoas no grupo que não tenham ligação direta com o candomblé6. Vários participantes

do grupo, começando pelo mestre e mestras são filhas e filhos espirituais da casa, alguns com

certo grau de responsabilidade maior, pelo tempo e função determinada. Isto é permeável nas

corporeidades no momento da atuação dos participantes na roda, através das simbolizações

dos corpos nas movimentações como também das estéticas. Por exemplo, na relação que se

estabelece entre a música aos Nkisis7, que a bateria da roda toca e canta, e as corporeidades,

fazendo reverências no momento de nomeá-las e nomeá-los (diferenciando aqui Nkisis

femininos e masculinos no mundo do candomblé).

No momento do jogo na roda, principalmente das mulheres, se apela a cantos para a

Nkisi Matamba ou Santa Barbara (santa católica associada a Matamba dentro do sincretismo

religioso) para gerar movimentações mais decisivas ou propositivas nas jogadoras. Aqui uma

das músicas: “Oya, oya oya eeeee, Oya matamba de cucurucaia zingue” (música própria do

candomblé banto), momento que não passa despercebido pelas integrantes do grupo,

acontecendo mudanças nas dinâmicas do jogo: aumenta os movimentos propositivos por parte

da jogadora, sendo mais ofensiva, determinante, como assim também simbolizações como

tocar o chão, no sentido de fazer referência, o que dentro do espaço do candomblé seria “bater

cabeça” quando os filhos reverenciam os Nkisis.

Quebradas, desequilíbrios são lógicas de movimentações que rescindem a linearidade,

a mecanicidade. Dentro da roda, o improviso é quem protagoniza o diálogo dançado, onde a

ginga é o ponto de partida para as inumeráveis movimentações possíveis no jogo da capoeira

6 Festa religiosa afro-brasileira onde se cultua os orixás, Nkisis, Caboclos e vodus. 7 Aqui se faz referência ao deuses e deusas trazidos da África pelos povos bantos e que se cultuam dentro dos

rituais de candomblé.

Page 8: MARCAS ÉTNICAS E DE GÊNERO NAS RODAS DE CAPOEIRA … · populações indígenas (acrescento afro americanas) como sujeitos da história, converte suas lutas e demandas em ingredientes

8

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

angola. A ginga é o desequilíbrio do corpo, seria o balanço produzido através do peso de um

lado para outro e, dentro do grupo Nzinga toma forma de “Ginga quebrada”, recuperando

aqui, segundo minhas análises, os princípios de movimentos das danças dos nkisis e caboclos8

das festas do candombe, como também, do samba pé no chão como é chamado pelo líder

espiritual e dançarino Tata Mutá Aimê. O pê no chão é caraterístico das danças de motriz

banto, diferenciando aqui, por exemplo, as danças dos orixás de raiz keto9, as quais implicam

ponta de pê nas movimentações. Enquanto as danças de motriz banto, tema de nosso estudo,

seria necessário, recuperando os ensinamentos do Tata Mutá Aimê, fazer movimentações

pequenas, implica não perder a musicalidade, o seja, o tempo da percussão

“Eu vou dizer a você têm homem e têm mulher”: o gênero na roda do Nzinga.

O feminismo dentro da capoeira angola é pensado e difundido dentro do grupo Nzinga

e principalmente pelo trabalho acadêmico e militante das mestras Paula Barreto (mestra

Paulinha) Rosangela Costa Araujo (mestra Janja).

Sendo o território declaradamente heterenormatizado, podemos afirmar, portanto

que o sexísimo (misoginia, lesbofobia, homofobia, transfobia) impede que a

capoeira conclua sua missão libertaria, e que da mesma forma, encontramos nas

disputas entre as representações dos gêneros (e sempre atentas as implicações

interseccionais aos debates sobre etnias e raças e da diversidade sexual) novas

dimensões discursivas aos estabelecimentos de práticas segregadas, decisivas nas

reestruturações das relações de poder em meio á economia da capoeira, emergirem

cada vez mais vigorosas. (Araujo 2016, p 371)

Um dos fundamentos principais que ressoa na voz das (os) mestras, é a diversidade e

inclusão da prática da capoeira. Um grupo de pessoas diversas na luta antirracista e

antipatriarcal, onde as pessoas não negras, brancas, homens, heterossexuais, junto às mulheres

negras, trans, lesbicas, homossexuais, junta-se na luta cotidiana. Dentro do grupo, as mulheres

encontram seus lugares de trocas intensas, por exemplo, a existência de momentos de

treinamentos só das mulheres, antes do treino regular do grupo. Alguns dos relatos: “é

diferente esse momento de treino entre as mulheres, chego logo no treino com os outros

integrantes mais confiante, segura, sobretudo na hora de tocar e cantar na bateria” (Darlene).

Aqui outro relato de uma integrante que não é do grupo Nzinga, porem frequenta as rodas :

“a roda do Nzinga é especial é só aqui que acontece que posso jogar livremente sem ter medo

de receber uma agressão verdadeira” (Gabriela).

É na roda onde aconteceriam os espaços de negociações e trocas a partir do feminismo

8 Se denomina a mistura do indígena com branco. 9 Se denomina a os povos chegados a América (pelos processos de colonização) da atual Benin.

Page 9: MARCAS ÉTNICAS E DE GÊNERO NAS RODAS DE CAPOEIRA … · populações indígenas (acrescento afro americanas) como sujeitos da história, converte suas lutas e demandas em ingredientes

9

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

angoleiro, com a presença das mestras Janja e Paulinha, em maior medida, e do mestre Poloca

e treneis10 do grupo, como também dos mais velhos (contando o tempo de capoeira e não a

idade). Dentro da performance, o respeito pelo corpo, mais ainda pelo da mulher, é alcançado

na negociação que permite a des/construção de lógicas machistas e misóginas, deixando lugar

a corporeidades criativas, inovadoras, e sobretudo libertárias. Para Araujo, sendo um espaço

de trocas intensas, é na roda que valores são negociados, que estratégias são refeitas/desfeitas,

atribuindo sentido e significados aos processos comunicacionais que estruturam pela

oralidade, os acervos dos tempos que aí se funde, se interpenetram. (Araujo 2016, p 372).

Há cumplicidade entre as (os) integrantes do grupo no momento da roda, que se

observa nos olhares e nas práticas, como também na ação direita das (os) mestres para dirigir

o ritual. Atribuindo sentido aos fundamentos da capoeira angola e o feminismo angolero

propiciados pelo grupo. A participação sempre das mulheres na bateria, a não violência e o

cuidado do próprio corpo e com (a) outro (a), chamando sempre ao pé do berimbau11, em caso

de estar vendo-se uma ação violenta por parte de alguns dos (as) jogadores. Situação que para

nos mulheres, vivendo numa sociedade machista patriarcal e opressora, são espaços de

cuidado e respeito fundamentais para a libertação de nossos corpos, porem de nossas vidas.

Os espaços de trocas vão tencionando as questões de gênero e étnico-raciais no

interior da roda. Aqui gostaria de chamar atenção da diversidade do grupo, com presença de

mulheres e homens negras (os) de setores populares e de classes médias e altas, mulheres e

homens não negros (as) de setores médios e altos, como assim também pessoas lesbicas e

trans, negras (os) e não, que não se definem na categoria mulher-homem. O fato da existência

de esses encontros, gera incômodos, perguntas, e questionamentos por parte dos homens, das

pessoas não negras, e de quem ainda não percebe os lugares que ocupa na escala social,

conflito que tem sido produtivo na possibilidade de desconstrução de alguns machismos e

racismos instalados no interior.

Desde a prática mesma da capoeira, vão se tecendo possibilidades dialógicas sobre as

dificuldades que enfrentamos não só na roda de capoeira, mas também na grande roda da

vida. Percebo uma abertura de consciência sobre o lugar da mulher negra de setor popular nas

questões éticas raciais e de gênero, construída desde tensões, porém, a partir de um lugar

dialógico, horizontal, e que procura fazer espaço para diferença em procura da igualdade. Em

10 Se denomina aquele que é autorizado pelo mestre ou mestra a dar aulas, dirigir uma roda, entre outras

funciones da pratica da capoeira angola. 11 Estou me referindo quando o tocador que está no berimbau maior chamado Gunga (na maioria das vezes o que

têm mais tempo na pratica de capoeira) chama ao jogador para recomeçar, parar o jogo ou simplesmente dar

indicações.

Page 10: MARCAS ÉTNICAS E DE GÊNERO NAS RODAS DE CAPOEIRA … · populações indígenas (acrescento afro americanas) como sujeitos da história, converte suas lutas e demandas em ingredientes

10

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

várias oportunidades, nas conversas tem se manifestado, sobretudo por parte das mulheres, as

dificuldades de ter que entrar numa roda, a exposição do corpo nesse momento da

performance, sobretudo aquelas onde a prática corporal não há tido protagonismo na sua

história de vida. É importante e notório no grupo das mulheres a percepção dessas situações,

porque se percebe o cuidado pelo disfrute corporal no momento da roda, a cumplicidade que

se observa nos risos e olhares durante o acerto de algumas “angoleiras” nas movimentações

no jogo, a superação dos obstáculos e como isso vai traduzindo-se para a grande roda da vida,

gerando mais confiança, determinação e sobretudo consciência que se leva a prática, dos

lugares que cada um (a) ocupa na escala social.

Considerações finais

“Estar sendo” no sentido de ser e estar situado, como caminho para construir

possibilidades dialógicas horizontais desde a diferença, a prática como ferramenta para propor

outros espaços emancipadores, que nos interpelem com mais perguntas inquietações, fazeres,

dúvidas. Porque acredito que outra história pode ser contada, que permita desconstruir os

discursos que segregam, excluem e desigualam, as sombras que ocultam possibilidades de

viver outros mundos. O encontro entre diferentes histórias e memórias, a partir dos

múltiplos feminismos possíveis, onde horizontalmente nos posicionemos desde a diferença,

aquela que não desiguala e permite colocar as mais desfavorecidas na história no lugar de

protagonismo, de visibilidade e possibilidade. Repensar as formas, desconstruir as lógicas

rígidas, reinventar possibilidades novas de dizer, de viver de existir. Fazer dos espaços que

habitamos possibilidades dialogias, de confronto, de opostos, onde vários mundos sejam

possíveis, sobretudo nos espaços como os acadêmicos. Mas também, transitar outros, que

ficam à margem de nosso círculo de conforto e privilégio, contudo estão possibilitando

transformações sobre como ser e estar no mundo. Aqui o exemplo da experiência da roda do

grupo Nzinga.

Referências

ARAÚJO, Rosangela Costa Elas “Gingam” In: Antoni Liberac Cardoso Simões Pires

Capoeira em Multiplos olhares. Estudos e pesquisas em jogo. Uniafro.Salvador 2016.

ARAÚJO, Rosangela Costa “É preta Kalunga” Edufba.: Salvador, 2015.

Page 11: MARCAS ÉTNICAS E DE GÊNERO NAS RODAS DE CAPOEIRA … · populações indígenas (acrescento afro americanas) como sujeitos da história, converte suas lutas e demandas em ingredientes

11

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

CURIEL, Ochy, La descolonización desde una propuesta feminista crítica em

Descolonización y despatriarcalización de y desde los feminismos de Abya Yala. Feministas

siempre, 2015.

FU KIAU, Bunseki K Kia. A Powerfuk Trio: Drumming, Singing Dancing. To Have One´s

Ees opened in Bulwa Meso, Master´s voice of Africa, V1, Inedito. 1996.

FU KIAU, Bunseki K Kia. , A visão bântu kôngo da sacralidade do mundo natural. Tradução

portuguesa por Valdina O. Pint. 1996.

GALINDO, Maria, e Mujeres Creando La revolución feminista se llama Despatriarcalización

em Descolonización y despatriarcalización de y desde los feminismos de Abya Yala.

Feministas siempre, 2015.

KUSCH, Rodolfo G. “Indios, portenos y dioses” Biblos, Buenos Aires, 1994.

KUSCH, Rodolfo G, America Profunda, edição Biblos, 2012.

QUIJANO, ANIBAL, “Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina.” In:

LANDER, Edgardo (org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciÍncias sociais.

Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005, p. 107-127.

RIVERA CUSICANQUI, S; DOMINGOS, J; ESCOBAR, A Y LEFF, E. Debate sobre el

colonialismo intelectual y los dilemas de la teoría social latino-americana. Cuestiones de

Sociología, 2016.

RIVERA CUSICANQUI, Silvia, Ch’ixinakax utxiwa Una reflexión sobre prácticas y

discursos descolonizadores, 2010.

WALSH, Catherine, em: CASTRO GÓMEZ, Santiago & GROSFOGUEL, Ramón. (org.) El

giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global.

Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales

Contemporáneos & Pontifícia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007

Ethnic and gender marks on capoeira wheels angola

Abstract: The following article seeks to initiate discussions on the relations between the

corporations present on the Angolan capoeira wheels that took place within the space of the

Nzinga salvador group and the founding principles of the group: Angolan feminism (defined

by the group) and the defense and diffusion of culture African Bantu as the founding principle

of Capoeira Angola. Through the ethnographic study, the aim is to reflect on ethnic-racial and

gender diversity within the lived spaces, focusing on the meetings of people of different social

classes, nationality, gender, ethnic-racial identities within spaces, Possible dialogues,

intentions and emancipatory possibilities, thinking equality from difference

Keywords : Capoeira Angola, Gender, Corporeidades, Wheels

Page 12: MARCAS ÉTNICAS E DE GÊNERO NAS RODAS DE CAPOEIRA … · populações indígenas (acrescento afro americanas) como sujeitos da história, converte suas lutas e demandas em ingredientes

12

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X