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Marcel Mauss Ensaios de Sociologia or. ed. de Minuit, 1968. ed. Perspctiva, S. Paulo 1999 1. Sociologia (1901)* Paul Fauconnet e Marcel Mauss Palavra criada por Augusto Comte para designar a ciência das sociedades. Ainda que a palavra seja formada por um radical latino e uma desinência grega e por esta razão os puristas, por muito tempo, se tenham recusado reconhecê-la, encontra-se hoje na posse do direito de cidadania em todas as línguas européias. Procuraremos determinar sucessívamente o objeto da sociologia e o método que ela emprega. A seguir indicaremos as principais divisões da ciência que se constitui sob este nome. Notar-se-á, sem dificuldade, que nos inspiramos diretamente nas idéias expressas por Dttrkheim em suas diferentes obras. Se, além disso, as adotamos, não é somente porque nos parecem justificadas por razões teóricas, mas também porque nos parecem exprimir os princípios pelos quais as diversas ciências sociais, no curso de seu desenvolvimento, tendem a tornar-se sempre mais conscientes. 1. OBJETO DA SOCIOLOGIA Pelo fato de a sociologia ser de origem recente e por estar apenas saindo do período filosófico, ainda acontece contestar-se-lhe a possibilidade. Todas as tradições metafísicas que fazem do homem um ser à parte, fora da natureza, e que vêem em seus atos fatos absolutamente diferentes dos fatos naturais, resistem aos progressos do pensamento sociológico. Mas o sociólogo não precisa justificar suas pesquisas por meio de uma argumentação filosófica. A ciência * Artigo tirado da Grande Encyclopédic, vol. 30, Sociedade Anônima da Grande Enciclopédia, Paris. [Trad. bras, feita a partir das Oeuvres, Paris, Les Editions de Minuit, 1968-69, v. III, pp. 139-177.] 6 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA SOCIOLOGIA 7 acidentais e locais determinadas por causas cósmicas, mas também acontecimentos normais, regularmente repetidos, que interessam a todos os membros do grupo sem exceção, podem estar totalmente privados do caráter de fatos sociais. Por exemplo, todos os indivíduos, com exceção dos doentes, desempenham suas funções orgânicas em condições sensivelmente idênticas; o mesmo se passa com as funções psicológicas: os fenômenos de sensação, de representação, de reação ou de inibição são os mesmos em todos os membros do grupo e são submetidos todos às mesmas leis que a psicologia pesquisa. Mas ninguém sonha em dispô-los na categoria dos fatos sociais apesar de sua generalidade. E que não se referem de forma alguma à natureza do agrupamento, mas derivam da natureza orgânica e psíquica do indivíduo. Por isso são os mesmos, seja qual for o grupo ao qual o indivíduo pertence. Se o homem isolado fosse concebível, poder-se-ia dizer que seriam o que são mesmo fora de toda sociedade. Se, pois, os fatos de que são teatro as sociedades só se distinguissem entre si por seu grau de generalidade, não haveria fatos dignos de serem considerados como manifestações próprias da vida social e, por conseguinte, susceptíveis de constituírem o objeto da sociologia. No entanto, a existência de tais fenômenos é de tal evidência que pôde ser assinalada por observadores que não pensavam na constituição de uma sociologia. Observou-se com freqüência que uma multidão, uma assembléia não sentiam, não pensavam e não agiam como teriam feito indivíduos isolados; observou-se, outrossim, que os agrupamentos mais diversos, uma família, uma corporação, uma nação possuíam um “espírito”, um caráter, hábitos como os indivíduos têm os seus. Por conseguinte, em todos os casos sente-se perfeitamente que o grupo, a multidão ou a sociedade têm verdadeiramente uma natureza própria, que ele determina nos indivíduos certas maneiras de sentir, de pensar e de agir, e que estes indivíduos não teriam nem as mesmas tendências nem os mesmos hábitos nem os mesmos preconceitos se houvessem vivido no meio de outros grupos humanos. Ora, esta conclusão pode ser generalizada. Entre as idéias que teria, os atos que realizaria um indivíduo isolado, e as manifestações coletivas, há tal abismo que estas ultimas devem ser referidas a uma natureza nova, a forças sui generis: caso contrário, permaneceriam incompreensíveis.

Marcel Mauss

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    Marcel MaussEnsaios de Sociologiaor. ed. de Minuit, 1968.ed. Perspctiva, S. Paulo 19991. Sociologia (1901)*

    Paul Fauconnet e Marcel Mauss

    Palavra criada por Augusto Comte para designar a cincia das sociedades.Ainda que a palavra seja formada por um radical latino e uma desinncia grega epor esta razo os puristas, por muito tempo, se tenham recusado reconhec-la,encontra-se hoje na posse do direito de cidadania em todas as lnguas europias.Procuraremos determinar sucessvamente o objeto da sociologia e o mtodo queela emprega. A seguir indicaremos as principais divises da cincia que se constituisob este nome.

    Notar-se-, sem dificuldade, que nos inspiramos diretamente nas idiasexpressas por Dttrkheim em suas diferentes obras. Se, alm disso, as adotamos,no somente porque nos parecem justificadas por razes tericas, mas tambmporque nos parecem exprimir os princpios pelos quais as diversas cincias sociais,no curso de seu desenvolvimento, tendem a tornar-se sempre mais conscientes.1. OBJETO DA SOCIOLOGIA

    Pelo fato de a sociologia ser de origem recente e por estar apenas saindo doperodo filosfico, ainda acontece contestar-se-lhe a possibilidade. Todas astradies metafsicas que fazem do homem um ser parte, fora da natureza, eque vem em seus atos fatos absolutamente diferentes dos fatos naturais,resistem aos progressos do pensamento sociolgico. Mas o socilogo no precisajustificar suas pesquisas por meio de uma argumentao filosfica. A cincia

    * Artigo tirado da Grande Encyclopdic, vol. 30, Sociedade Annima da Grande Enciclopdia, Paris. [Trad. bras,feita a partir das Oeuvres, Paris, Les Editions de Minuit, 1968-69, v. III, pp. 139-177.] 6 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA SOCIOLOGIA 7acidentais e locais determinadas por causas csmicas, mas tambmacontecimentos normais, regularmente repetidos, que interessam a todos osmembros do grupo sem exceo, podem estar totalmente privados do carter defatos sociais. Por exemplo, todos os indivduos, com exceo dos doentes,desempenham suas funes orgnicas em condies sensivelmente idnticas omesmo se passa com as funes psicolgicas: os fenmenos de sensao, derepresentao, de reao ou de inibio so os mesmos em todos os membros dogrupo e so submetidos todos s mesmas leis que a psicologia pesquisa. Masningum sonha em disp-los na categoria dos fatos sociais apesar de suageneralidade. E que no se referem de forma alguma natureza do agrupamento,mas derivam da natureza orgnica e psquica do indivduo. Por isso so os mesmos,seja qual for o grupo ao qual o indivduo pertence. Se o homem isolado fosseconcebvel, poder-se-ia dizer que seriam o que so mesmo fora de toda sociedade.Se, pois, os fatos de que so teatro as sociedades s se distinguissem entre si porseu grau de generalidade, no haveria fatos dignos de serem considerados comomanifestaes prprias da vida social e, por conseguinte, susceptveis deconstiturem o objeto da sociologia.

    No entanto, a existncia de tais fenmenos de tal evidncia que pde serassinalada por observadores que no pensavam na constituio de uma sociologia.Observou-se com freqncia que uma multido, uma assemblia no sentiam, nopensavam e no agiam como teriam feito indivduos isolados observou-se,outrossim, que os agrupamentos mais diversos, uma famlia, uma corporao, umanao possuam um esprito, um carter, hbitos como os indivduos tm os seus.Por conseguinte, em todos os casos sente-se perfeitamente que o grupo, amultido ou a sociedade tm verdadeiramente uma natureza prpria, que eledetermina nos indivduos certas maneiras de sentir, de pensar e de agir, e queestes indivduos no teriam nem as mesmas tendncias nem os mesmos hbitosnem os mesmos preconceitos se houvessem vivido no meio de outros gruposhumanos. Ora, esta concluso pode ser generalizada. Entre as idias que teria, osatos que realizaria um indivduo isolado, e as manifestaes coletivas, h talabismo que estas ultimas devem ser referidas a uma natureza nova, a foras suigeneris: caso contrrio, permaneceriam incompreensveis.

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    Tomemos, por exemplo, as manifestaes da vida econmica das sociedadesmodernas do Ocidente: produo industrial das mercadorias, diviso extrema dotrabalho, comrcio internacional, associao de capitais, moeda, crdito, renda,lucro, salrio, etc. Pense-se no nmero considervel de noes, de instituies, dehbitos que supem os mais simples atos de um comerciante ou de um operrio queprocura ganhar sua vida manifesto que nem um nem outro cria as formas que suaatividade necessariamente assume: nem um nem outro inventa o crdito, o lucro, osalrio, o intercmbio ou a moeda. Tudo o que se pode atribuir a cada um deles uma tendncia geral a conseguir os alimentos necessrios para proteger-se contraas intempries, ou ainda, se se quiser, o gosto pelo empreendimento, pelo ganho,etc. Mesmo os sentimentos que parecem totalmente espontneos, como o amorpelo trabalho, a parcimnia, o luxo, so, na realidade, o produto da cultura social,visto que no existem entre certos povos e variam infinitamente no interior de~ma mesma sociedade, de acordo com as camadas da populao. Ora, por si ss,estas necessidades determinariam, para serem satisfeitas, um pequeno nmero deatos muito simples que constrastam, da maneira mais pronunciada, com as formasmuito complexas nas quais o homem econmico encerra hoje sua conduta. E no somente a complexidade destas formas que d testemunho de sua origem extra-individual, mas ainda e sobretudo a maneira pela qual se impem ao indivduo. Esteest mais ou menos obrigado a se lhe conformar. s vezes a prpria lei que oobriga, ou o costume to imperativo como a lei. Assim que, no h muito, oindustrial era obrigado a fabricar produtos de medida e qualidade determinadas,que ainda agora est sujeito a todos os tipos de regulamentos, que ningum poderecusar-se a receber como pagamento a moeda legal pelo seu valor legal. Outrasvezes a fora das coisas contra a qual o indivduo se faz em pedaos se procurarinsurgir-se contra elas: o caso do comerciante que quisesse renunciar ao crdito,do produtor que quisesse consumir seus prprios produtos, numa palavra, do tra-balhador que quisesse recriar por si s as regras de sua atividade econmica, ver-se-iam condenados runa inevitvel.

    A linguagem outro fato cujo carter social aparece claramente: a crianaaprende, pelo uso e pelo estudo, uma lngua cujo vocabulrio e cuja sintaxe tmuma idade multissecular, cujas origens so desconhecidas que ela recebe, porconseguinte, totalmente elaborada e que obrigada a receber e a empregar assim,sem variaes considerveis. Em vo tentaria criar para seu uso uma lnguaoriginal: alm de no passar de uma imitao canhestra de algum outro idioma jexistente, tal lngua no seria instrumento til expresso de seu pensamentoconden-la-ia ao isolamento e a uma espcie de morte intelectual. O simples fatode derrogar as regras e os usos tradicionais j se chocaria, na maioria dos casos,com resistncias de opinio muito vivas. Pois uma lngua no somente um sistemade palavras tem um gnio particular, implica uma certa maneira de perceber, deanalisar e de coordenar. Por

    SOCIOLOGIAENSAIOS DE SOCIOLOGIAconseguinte, pela lngua, so as formas principais de nosso pensamento que acoletividade nos impe.

    Poderia parecer que as relaes matrimoniais e domsticas sonecessariamente aquilo que so em virtude da natureza humana, e que basta, paraexplic-las, recordar algumas propriedades muito gerais, orgncas e psicolgicas,do indivduo humano. Mas, de~ uma parte, a observao histrica nos ensina que ostipos de casamentos e de famlias foram e ainda so extremamente numerosos evariados ela nos revela a complicao, s vezes extraordinria, das formas docasamento e das relaes domsticas. E, de outra parte, todos ns sabemos que asrelaes domsticas no so exclusivamente afetivas, sabemos que entre ns e ospais, que podemos no conhecer, existem vnculos jurdicos que se constituramsem nosso consentimento, sem nosso conhecimento sabemos que o casamento no apenas um acasalamento, que a lei e os usos impem ao homem que esposa umamulher atos determinados, um processo complicado. E evidente que nem astendncias orgnicas do homem a acasalar-se e a procriar, nem mesmo ossentimentos de cime sexual ou de ternura paterna que alis se lhe emprestariamgratuitamente, podem, em nenhum grau, explicar nem a complexidade, nemsobretudo o carter obrigatrio dos costumes matrimoniais e domsticos.

    Da mesma forma, os sentimentos religiosos muito generosos que se costumaatribuir ao homem e mesmo aos animais respeito ou temor a seres superiores,tormento do infinito s poderiam gerar atos religiosos muito simples eindeterminados: cada homem, sob o imprio de suas emoes, representaria a seumodo os seres superiores e manifestar-lhes-ia seus sentimentos como lheparecesse conveniente faz-lo. Ora, uma religio to simples, to indeterminada,to individual jamais existiu. O fiel acredita em dogmas e age segundo ritosinteiramente complicados, que alm disso lhe so inspirados pela Igreja, pelogrupo religioso a que pertence em geral, conhece muito mal estes dogmas e estesritos, e sua vida religiosa consiste essencial-mente numa participao longnquanas crenas e nos atos de homens especialmente encarregados de conhecer ascoisas sagradas e de entrar em contato com elas e estes mesmos homens noinventaram os dogmas nem os ritos a tradio lhos ensinou e eles velam sobretudopara preserv-los de toda alterao. Os sentimentos individuais de nenhum fielexplicam, pois, nem o sistema complexo das representaes e das prticas queconstitu uma religio, nem a autoridade pela qual estas maneiras de pensar e deagir se impem a todos os membros da Igreja.

    Desta forma, as prticas segundo as quais se desenvolve a vida afetiva,intelectual, ativa do indivduo, existem antes dele como existiro depois dele. Por

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    ser homem, queele come, pensa, se diverte, etc., mas se determinado a agir por tendncias queso comuns a todos os homens, as formas precisas que assume sua atividade emcada momento da histria dependem de condies totalmente diferentes quevariam de uma sociedade para outra e mudam com o tempo no seio de uma mesmasociedade: o conjunto dos hbitos coletivos. Entre estes hbitos distinguem-sediferentes espcies. Uns exigem a reflexo em conseqncia de sua prpriaimportncia. Toma-se conscincia deles e so consignados em frmulas escritas ouorais que exprimem como o grupo tem o costume de agir, e como exige que seusmembros ajam estas frmulas imperativas so as regras do direito, as mximasda moral, os preceitos do ritual, os artigos do dogma, etc. Outros continuam deforma no expressa e difusos, mais ou menos inconscientes. So as usanas, oscostumes, as supersties populares que se observam sem saber que se est obri-gado a isto, nem mesmo em que consistem exatamente. Mas, em ambos os casos, ofenmeno da mesma natureza. Trata-se sempre de maneiras de agir ou depensar, consagradas pela tradio e que a sociedade impe aos indivduos. Esteshbitos coletivos e as ~~ansformae5 pelas quais passam incessantemente: eis oobjeto prprio da sociologia.

    Alm disso, a partir de agora possvel provar diretamente que esteshbitos coletivos so as manifestaes da vida do grupo como grupo. A histriacomparada do direito, das religies, tornou comum a idia de que certas insti-tuies formam com certas outras um sistema, de que as primeiras no podemtransformar-se sem que as segundas tambm se transformem. Por exemplo,sabe-se que existem vnculos entre o totemismO e a exogamia, entre uma eoutra prtica, entre uma e outra organizao do cl sabe-se que o sistema dopoder patriarca1 tem relao com o regime da cidade, etc. De modo geral, oshistoriadores habituaram-se a mostrar as relaes que vigoram entre asdiferentes instituies de uma mesma poca, a no isolar uma instituio domeio em que apareceu. Enfim, -se cada vez mais levado a procurar naspropriedades de um meio social (volume, densidade, modo de composio, etc.) aexplicao dos fenmenos sociais que a se produzem: mostram-se, por exemplo,as ~odificae5 profundas que a aglomerao urbana acarreta para umacivilizao agrcola, como a forma do habitat condiciona a organizaodomstica. Ora, se as instituies dependem umas das outras e dependem todasda constituiO do grupo social, bvio que exprimem este ltimo. Estainterdependncia dos fenmenos seria inexplicvel se estes fossem os produtosde vontades particulares e mais ou menos caprichosas explica-se, ao contrrio,se eles so produtos de foras impessoais que dominam os prprios indivduos.

    1-,

    ENSAIOS DE SOCIOLOGIAOutra prova pode ser tirada da observao das estatsticas. E sabido que as

    cifras que exprimem o nmero dos casamentos, dos nascimentos, dos suicdios, doscrimes numa sociedade, so notavelmente constantes ou que, se variam, no pordesvios abruptos e irregulares, mas geralmente com lentido e ordem. Suaconstncia e sua regularidade so ao menos iguais quelas dos fenmenos que,como a mortalidade, dependem sobretudo de causas fsicas. Ora, claro que ascausas que levam tal ou tal indivduo ao casamento ou ao crime so totalmenteparticulares e acidentais portanto no so estas causas que podem explicar a taxado casamento ou do crime numa determinada sociedade. E mister admitir aexistncia de certos estados sociais, totalmente diferentes dos estadospuramente individuais, que condicionam a nupcialidade e a criminalidade. No secompreenderia, por exemplo, que a taxa de suicdio fosse uniformemente maiselevada nas sociedades protestantes do que nas sociedades catlicas, no mundocomercial do que no mundo agrcola, se .no se admitisse que uma tendnciacoletiva ao suicdio se manifesta nos meios protestantes, nos meios comerciais, emvirtude de sua prpria organizao.

    Existem, pois, fenmenos propriamente sociais, distintos daqueles queestudam as outras cincias que tratam do homem, como a psicologia so eles queconstituem a matria da sociologia. Mas no basta ter estabelecido sua existnciapor um certo nmero de exemplos e por consideraes gerais. Desejar-se-ia aindaconhecer o sinal pelo qual se pode distingui-los, de modo a no correr o risco nemde deix-los escapar, nem de confundi-los com os fenmenos que dependem deoutras cincias. De acordo com o que acabamos de dizer, a natureza social temcomo caracterstica precisamente o fato de ser adicionada natureza individualexprime-se por idias ou atos que, mesmo quando contribumos para produzi-los,nos so de todo impostos a partir de fora. Trata-se, pois, de descobrir este sinalde exterioridade.

    Num grande nmero de casos, o carter obrigatrio que marca as maneirassociais de agir e de pensar o melhor dos critrios que se possa desejar.Gravadas no fundo do corao ou expressas por frmulas legais, espontaneamenteobedecidas ou inspiradas por via da coero, uma multido de regras jurdicas,religiosas e morais so rigorosamente obrigatrias. A maior parte dos indivduosobedecem-lhes mesmo aqueles que as violam sabem que faltam a uma obrigao e,em todo caso, a sociedade lembra-lhes o carter obrigatrio de sua ordeminfligindo-lhes uma sano. Sejam quais forem a natureza e a intensidade dasano, excomunho ou morte, perdas e danos ou priso, desprezo pblico,censura, simples notao de excentricidade, em graus diversos e sob formasdiversas, o fenmeno sempre o mesmo: o grupo protesta contra a violao das

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    regras coletivas do pensamento e da ao. Ora, este protesto s pode ter umsentido: que as maneiras de pensar e de agir que o grupo impe so maneirasprprias de pensar e de agir. Se no tolera que sejam derrogadas, que v nelasas ~~nifestae5 de sua personalidade e que, derrogando-as, diminui-se e destri-se esta personalidade. E, alm disso, se as regras do pensamento e da ao notivessem uma origem social, de onde poderiam vir? Uma regra a qual o indivduo sejulga sujeito no pode ser obra deste indivduo: pois, toda obrigao implica umaautoridade superior ao sujeito obrigado, e que lhe inspira o respeito, elementoessencial do sentimento de obrigao. Se, portanto, se exclui a jntervenO deseres sobrenaturais, S se poderia encontrar, fora e acima do indivduo, umanica fonte de obrigao: a sociedade ou, melhor, a totalidade das sociedades deque membro.

    A est, pois, um conjunto de fenmenos sociais facilmente reconhecveis eque so de primeira importncia. Porque o direito, a moral, a religio formam umaparte notvel da vida social. Mesmo nas sociedades inferiores quase no hmanifestaes coletivas que no se enquadrem numa destas categorias. O homemno tem a, por assim dizer, nem pensamento nem atividade prprios a palavra, asoperaes econmicas, a prpria vestimenta assumem freqentemente um carterreligioso, por conseguinte obrigatrio. Mas, nas sociedades superore5~ h umgrande nmero de casos em que a presso social no se faz sentir sob a formaexpressa de obrigao: em matria econmica, jurdicas e mesmo religiosa, oindivduo parece amplamente autnomo. Isto no significa que toda coero estejaausente: mostramos atrs os aspectos sob os quais ela se manifestava na ordemeconmica e lingstica, e quo longe estava o indivduo de poder agir livrementenestas matrias. Contudo no existe a obrigao proclamada, nem sanesdefinidas a inovao, a derrogao no so, em princpio, prescritas. Portanto mister procurar outro critrio que permita distinguir estes hbitos cuja naturezaespecial no menos incontestvel, embora menos imediatamente aparente.

    Efetivamente, ela incontestvel porque cada indivduo os encontra jformados e como que instituidos, uma vez que no o seu autor, que ele osrecebe de fora so, pois, preestabelecidos. Seja ou no proibido ao indivduo afastar-se deles, j existem a partir do momento em que ele se consulta parasaber como deve agir so modelos de conduta que eles lhe propem. Por issovemo-los por assim dizer, num dado momento, penetrar nele a partir de fora. Namaior parte dos casos, por intermdio da educao, quer geral, quer especial,que se faz esta penetrao. Assim que cada gerao recebe da gerao maisvelha os preceitos da moral, as regras da polidez usual, sua lngua, seusgostos fundamentais, da mesma forma como cada trabalhador recebe de seuspredecessores as regras de sua tcnica profissional. A educao precisamentea operao pela qual o ser social acrescentado em cada um de ns ao serindividual, o ser moral ao ser animal o procedimento graas ao qual a criana rapidamente socializada. Estas observaes nos fornecem uma caracterstica dofato social muito mais geral do que a precedente: so sociais todas as maneirasde agir e de pensar que o indivduo encontra preestabelecidas e cujatransmisso geralmente se faz por meio da educao.

    Seria bom que um termo especial designasse estes fatos especiais e parece

    que a palavra instituies seria o mais apropriado. Com efeito, que umainstituio se no um conjunto de atos ou de idias que os indivduos encontramdiante de si e que mais ou menos se lhes impe? No h razo alguma parareservar exclusivamente, como de ordinrio se faz, esta expresso s disposiessociais fundamentais. Entendemos, pois, por esta palavra tanto os usos e os modos,os preconceitos e as supersties como as constituies polticas ou asorganizaes jurdicas essenciais porque todos estes fenmenos so da mesmanatureza e s diferem quanto ao grau. A instituio , em suma, na ordem socialaquilo que a funo na ordem biolgica:e assim como a cincia da vida a cincia das funes vitais, da mesma forma acincia da sociedade a cincia das instituies assim definidas.

    Mas, dir-se-, a instituio o passado , por definio, a coisa fixa, no acoisa viva. Produzem-se novidades a cada instante nas sociedades, desde asvariaes cotidianas da moda at as grandes revolues polticas e morais. Mastodas estas mudanas so sempre, em graus diversos, modificaes de instituiesexistentes. As revolues jamais consistiram na brusca substituio integral deuma ordem estabelecida por uma ordem nova nunca so e nem podem ser mais doque transformaes mais cu menos rpidas, mais ou menos completas. Nada vem donada: as instituies novas s podem ser feitas com as antigas, porquanto estasso as nicas que existem. E, por conseguinte, para que nossa definio abracetodo o definido, basta que no nos atenhamos a uma frmula estritamenteesttica, que no restrinjamos a sociologia ao estudo da instituio suposta imvel.Na realidade, a instituio assim concebida no passa de uma abstrao. Asverdadeiras instituies vivem, isto , mudam sem cessar: as regras da ao noso nem compreendidas nem aplicadas da mesma forma a momentos sucessivos,mesmo quando as frmulas que as exprimem permanecem literalmente as mesmas.So portanto as instituies vivas, tais como se formam, funcionam e setransformam em diferentes momentos que constituem os f enmenospropriamente sociais, objetos da sociologia.

    Os nicos fatos que poderamos considerar, no sem razo, como sociais eque, entretanto, dificilmente entrariam na definio das instituies, so aquelesque se produzem nas sociedades sem instituies. Mas as nicas sociedades seminstituies so agregados sociais ou bastante instveis e efmeros como as

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    multides, ou ento em curso de formao. Ora, pode-se dizer que umas e outrasainda no so sociedades propriamente ditas, mas somente sociedades em vias deformao, com a diferena que umas esto destinadas a ir at o fim de seudesenvolvimento, a realizar sua natureza social, enquanto que as outrasdesaparecem antes de se constiturem definitivamente. Portanto, encontramo-nosaqui nos lindes que separam o reino social dos remos inferiores. Os fenmenos deque se trata no so propriamente sociais mas em vias de se tornarem sociais. Nodeve, pois, surpreender que no possam entrar exatamente nos quadros de algumacincia. No h dvida de que a sociologia no pode desinteressar-se deles, masnao constituem seu objeto prprio. Alm disso, pela anlise precedente~ de formaalguma procuramos descobrir uma definio completa e definitiva de todos osfenmenos sociais. Basta ter mostrado que existem fatos que merecem serdesignados desta forma e ter indicado alguns sinais pelos quais se podemreconhecer os mais importantes dentre eles. O futuro certamente substituirestes critrios por outros menos defeituosos.Da explicao sociolgica

    Assim a sociologia tem um objeto prprio, visto que existem fatospropriamente sociais resta-nos ver se satisfaz segunda das condies queindicamos, isto , se h um modo de explicao sociolgico que no se confundacom algum outro. O primeiro modo de explicao que foi metodicamente aplicadoa estes fatos aquele que por muito tempo esteve em uso naquilo que seconvencionou chamar a filosofia da histria. Com efeito, a filosofia da histriafoi a forma de especulao sociolgica imediatamente anterior sociologiapropriamente dita. Foi da filosofia da histria que nasceu a sociologia: Comte osucessor imediato de Condorcet, e este, mais do que fazer descobertassociolgicas, construiu uma filosofia da histria. O que caracteriza a explicaofilosfica que ela supe o homem, a humanidade em geral predisposta por suanatureza a um desenvolvimento determinado cuja orientao toda se procuradescobrir por uma investigao sumria dos fatos histricos. Por princpiO e pormtodo ela negligencia, pois, o pormenor para ater-se s linhas mais gerais. No

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    procura explicar por que, em tal espcie de sociedades, em tal poca de seudesenvolvimento, depara com tal ou tal instituio: procura somente pesquisarem que direo tende a humanidade, assinala as etapas que julga terem sido ne-cessrias para aproximar-se de tal objetivo.

    E intil demonstrar a insuficincia de tal explicao. No s deixa de lado,arbitrariamente, a maior parte da realidade histrica, mas como hoje no maispossvel sustentar que a humanidade segue um caminho nico e se desenvolve numnico sentido, todos estes sistemas encontram-se, s por isso, privados defundamento. Mas as explicaes que ainda hoje se encontram em certas doutrinassociolgicas no diferem muito das precedentes, salvo talvez na aparncia. Sob opretexto de que a sociedade s formada por indivduos, procuram na natureza doindivduo as causas determinantes pelas quais tentam explicar os fatos sociais. Porexemplo, Spencer e Tarde procedem desta forma. Spencer consagrou quase todoo primeiro volume de sua Sociologia ao estudo do homem primitivo fsico, emo-cional e intelectual pelas propriedades desta natureza primitiva que explica asinstituies sociais observadas entre os povos mais antigos ou mais selvagens,instituies que em seguida se transformam no decurso da histria, de acordo comleis de evoluo muito gerais. Tarde v nas leis da imitao os princpios supremosda sociologia: os fenmenos sociais so modos de ao geralmente teis,inventados por certos indivduos e imitados por todos os outros. Encontra-se omesmo procedimento de explicao em certas cincias especiais que so oudeveriam ser sociolgicas. Assim que os economistas clssicos acham, nanatureza individual do hotno occonomicus, os princpios de uma explicao su-ficiente de todos os fatos econmicos: como o homem procura sempre a maiorvantagem a preo do menor esforo, as relaes econmicas deviam sernecessariamente tais e tais. Da mesma forma, os tericos do direito naturalbuscam os caracteres jurdicos e morais da natureza humana, e as instituiesjurdicas so, a seus olhos, tentativas mais ou menos felizes para satisfazer osrigores desta natureza aos poucos, o homem toma conscincia de si, e os direitospositivos so realizaes aproximativas do direito que ele traz em si.

    A insuficincia destas solues aparece claramente desde que se reconheceuque existem fatos sociais, realidades sociais, isto , desde que se distinguiu oobjeto prprio da sociologia. Se, de fato, os fenmenos sociais so as mani-festaes da vida dos grupos como grupos, so demasiadamente complexos paraque consideraes relativas natureza humana em geral possam explic-los.Tomemos, mais uma vez, como exemplo as instituies do casamento e da famlia.As relaes sexuais esto sujeitas a regras muitocomplicadas: a organizao familial, muito estvel numa mesma sociedade, variamuito de uma sociedade para outra alm disso, est estritamente ligada organizao poltica, organizao econmica que tambm apresentam diferenascaractersticas nas diversas sociedades. Se nisto consistem os fenmenos sociaisque se trata de explicar, problemas precisos se colocam: como se formaram osdiferentes sistemas matrimoniais e domsticos? E possvel uni-los entre si, dis-tinguir formas posteriores e formas anteriores, apresentandose as primeirascomo o produto da transformao das segundas? Se isto possvel, como explicarestas transformaes, quais so suas condies? De que modo as formaes daorganizao familial afetam as organizaes polticas e econmicas? De outro lado,

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    tal regime domsfico, uma vez constitudo, como funciona? A estas perguntas, ossocilogos que pedem unicamente psicologia individual o princpio de suasexplicaes no podem fornecer respostas. Efetivamente, no podem explicarestas instituies to mltiplas, to variadas, a no ser unindo-as a algunselementos muito gerais da constituio orgnico-psquica do indivduo: instintosexual, tendncia a posse exclusiva e ciumenta de uma s mulher, amor maternal epaternal, horror ao comrcio sexual entre consangneos, etc. Mas semelhantesexplicaes so, de sada, suspeitas do ponto de vista puramente filosfico:consistem simplesmente em atribuir ao homem os sentimentos que sua condutamanifesta, ao passo que so precisamente estes sentimentos que deveriam serexplicados o que se reduz, em suma, a explicar os fenmenos pelas virtudesocultas das substncias, a chama pelo flogisto e a queda dos corpos por suagravidade. Alm disso, no determinam entre os fenmenos nenhuma relaoprecisa de coexistncia ou de sucesso, mas os isolam arbitrariamente e osapresentam fora do tempo e do espao, separados de todo meio definido. Mesmoque se considerasse como uma exphcaao da mono-gamia a afirmao de que esteregime matrimonial satisfaz melhor que outro os instintos humanos ou conciliamelhor que outro a liberdade e a dignidade dos dois esposos, seria aindanecessrio investigar por que este regime aparece em determinadas sociedades eno em outras, em um certo momento e no em outro do desenvolvimento de umasociedade. Em terceiro lugar, as propriedades essenciais da natureza humana soas mesmas em toda parte, com matizes e graus quase idnticos. Como poderiamexplicar as formas to variadas que cada instituio assumiu sucessivamente? Oamor paternal e maternal, os sentimentos de afeio filial so sensivelmenteidnticos entre os primitivos e entre os civilizados entretanto, que diferenaentre a organizao primitiva da famlia e seu estado atual, e, entre estes ex-tremos, que mudanas se produziram! Enfim, as tendncias

    17 16 ENSAIOS DE SOCIOLOGIAindeterminadas do homem no poderiam explicar formas to precisas e tocompletas sob as quais se apresentam sempre as realidades histricas. O egosmoque pode impelir o homem a apropriar-se das coisas teis no a fonte destasregras to complicadas que, em cada poca da histria, constituem o direito depropriedade, regras relativas posse e ao usufruto, aos mveis e aos imveis, sservides, etc. E no entanto o direito de propriedade in abstracto no existe. Oque existe o direito de propriedade tal como ou foi organizado, na Franacontempornea ou em Roma antiga, com a multido dos princpios que odeterminam. A sociologia assim entendida s pode, pois, desta maneira, alcanar oslineamentos inteiramente gerais, quase inapreensveis por fora da indeterminaodas instituies. Se adotarmos tais princpios, deveremos confessar que a maiorparte da realidade social, todo o pormenor das instituies, permanece inexplicadoe inexplicvel. Unicamente os fenmenos que a natureza humana em geraldetermina, sempre idnticos em seu fundo, seriam naturais e inteligveis todos ostraos particulares que do s instituies, de acordo com os tempos e os lugares,seus caracteres prprios, tudo aquilo que distingue as individualidades sociais, considerado como artificial e acidental v-se, nisto, quer os resultados deinvenes fortuitas, quer os produtos da atividade individual dos legisladores, doshomens poderosos que dirigem voluntariamente as sociedades para objetivosentrevistos por eles. E somos assim levados a pr fora da cincia, comoininteligveis, todas as instituies muito determinadas, isto , os prprios fatossociais, os objetos prprios da cincia sociolgica. Isto significa aniquilar, com oobjeto definido de uma cincia social, a prpria cincia social, e contentar-se empedir filosofia e psicologia algumas indicaes muito gerais sobre os destinosdo homem que vive em sociedade.

    A estas explicaes que se caracterizam por sua extrema generalidadeopem-se aquelas que poderiam ser chamadas as explicaes propriamentehistricas: isto no significa que a histria no tenha conhecido outras, masaquelas de que vamos falar aparecem exclusivamente nos historiadores. Obrigadopelas prprias condies de seu trabalho a apegar-se exclusivamente a umasociedade e a uma poca determinadas, familiar ao esprito, lngua, aos traos decaracteres particulares desta sociedade e desta poca, o historiador temnaturalmente a tendncia a ver nos fatos somente aquilo que bs distingue entre si,aquilo que lhes d uma fisionomia prpria em cada caso isolado, numa palavra,aquilo que os torna incomparveis. Procurando descobrir a mentalidade dos povoscuja histria estuda, propenso a acusar de incompreenso, de incompetncia,todos aqueles que no viveram, como ele, na intimidade destes povos. Por conse-guinte, levado a desconfiar de toda comparao, de toda

    SOCIOLOGIAgeneralizao. Quando estuda uma instituio, so seus caracteres maisindividuais que lhe despertam a ateno, aqueles devidos s circunstnciasparticulares nas quais ela se constituiu ou modificou, e ela parece-lhe como queinseparvel destas circunstncias. Por exemplo, a famlia patriarcal ser uma coisaessencialmente romana, o feudalismo, uma ~stituiO prpria de nossassociedades medievais, etc. Deste ponto de vista, as instituies s podem serconsideradas combinaes acidentais e locais que dependem de condiesigualmente acidentais e locais. Ao passo que os filsofos e os psiclogos nospropunham teorias pretensamente vlidas para toda a ~humanidade, as nicasexphcaoes que os his toriadores julgam possveis s se aplicariam a umasociedade determinada, considerada em certo momento preciso de sua evoluo.No admitem que haja causas gerais atuantes em toda parte e cuja pesquisa podeser utilmente empreendida assumem a tarefa de concatenar acontecimentos

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    particulares com acontecimentos particulares. Na realidade, supem nos fatosuma infinita diversidade assim como uma infinita contingncia.A este mtodo estritamente histrico de explicao dos fatos sociais, misterprimeiramente opor os ensinamentos devidos ao mtodo comparativo: desde logoa histria comparada das religies, dos direitos e dos costumes revelou aexistncia de instituies incontestavelmente idnticas entre os mais diferentespovos inconcebvel que se possa assinalar como causa destas concordncias aimitao de uma sociedade pelas outras, e no entanto impossvel consider-lascomo fortuitas: instituies semelhantes no podem evidentemente ter emdeterminado agrupamentO selvagem causas locais e acidentais, e em determinadasociedade civilizada outras causas igualmente locais e acidentais. De outro lado,as instituies de que se trata no so apenas prticas muito gerais que teriamsido, como se poderia pretender, inventadas naturalmente por homens emcircunstncias idnficas no se trata apenas de mitos importantes como aqueledo dilvio, de ritos como aquele do sacrifcio, de organizaes domsticas como afamlia maternal, de prticas jurdicas como a vingana do sangue existemtambm lendas muito complexas, supersties, usos totalmente particulares1prticas to estranhas como as da incubao ou do levirato. Desde que seconstataram estas semelhanas, tornou-se inadmissvel explicar os fenmenoscomparveis por causas particulares de uma sociedade e de uma poca espritose recusa a considerar como fortuitas a regularidade e a semelhana.

    E verdade que a histria, se no mostra por que razoes existem instituies

    anlogas nestas civilizaes aparentes, pretende s vezes explicar os fatosconcatenando-os cronologicamente entre si, descrevendo detalhadamente aseircuns1Y

    18 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA

    tncias nas quais se produziu um acontecimento histrico. Mas estas relaes depura sucesso nada tm de necessrio nem de inteligvel. Pois de formatotalmente arbitrria, de modo algum metdica, e por conseguintecompletamente irracional, que os historiadores atribuem um acontecimento aoutro acontecimento que denominam sua causa. Com efeito, os processosindutivos s so aplicveis l onde uma comparao fcil. A partir do momentoem que pretendem explicar um fato nico por outro fato nico, a partir domomento em que no admitem que haja entre os fatos vnculos necessrios econstantes, os historiadores s podem perceber as causas por uma intuioimediata, operao que escapa a toda regulamentao assim como a todo ocontrole. Segue-se da que a explicao histrica, incapaz de fazer compreenderas semelhanas observadas, tambm incapaz de explicar um acontecimentoparticular s oferece inteligncia fenmenos ininteligveis porque soconcebidos como singulares, acidentais e arbitrariamente concatenados.

    Totalmente outra a explicao propriamente sociolgica, tal como deve ser

    concebida se aceitarmos a definio que propusemos do fenmeno social.Primeiramente no d apenas como tarefa alcanar os fenmenos mais gerais davida social. Entre os fatos sociais no h lugar para distines entre aqueles queso mais ou menos gerais. O mais geral to natural quanto o mais particular,ambos so igualmente explicveis. Por isso, todos os fatos que apresentam oscaracteres indicados como sendo os do fato social podem e devem ser objetos depesquisas. Existem fatos que o socilogo no pode atualmente integrar numsistema, mas no h fatos que ele tenha o direito de pr, a priori, fora da cincia eda explicao. A sociologia assim entendida no , pois, uma viso geral e longnquada realidade coletiva, mas uma anlise mais profunda desta realidade e quantopossvel completa. Obriga-se ao estudo do pormenor com uma preocupao deexatido to grande como aquela do historiador. No h fato, por mais insig-nificante que seja, que ela possa negligenciar como despido de interessecientfico. E desde j podem-se citar fatos que pareciam de mnima importncia eque so no entanto sintomticos de estados sociais essenciais que podem ajudar acompreender. Por exemplo, a ordem sucessorial est em ntima relao com aconstituio da famlia e, no somente no um fato acidental que a partilha sejafeita por estirpes ou por cabeas, mas ainda estas duas formas de partilhacorrespondem a tipos de famlia muito diferentes. Do mesmo modo, o regimepenitencirio de uma sociedade extremamente interessante para quem querestudar o estado da opinio referente pena nesta sociedade.

    De outro lado, enquanto os historiadores descrevem os fatos sem explic-los,a bem dizer a sociologia assume

    SOCIOLOGIAa tarefa de dar-lhes uma explicao satisfatria para a razo. Procura encontrarentre os fatos no relaes de simples sucesso, mas relaes inteligveis. Quermostrar como os fatos sociais se produziram e quais as foras de que resultam.Deve, pois, explicar fatos definidos por suas causas determinantes, prximas eimediatas, capazes de produzidos. Por conseguinte1 no se contenta, como fazemcertos soeilogos, com indicar causas muito gerais e muito remotas, em todo casoinsuficientes e sem relao direta com os fatos. Visto que os fatos sociais soespecficos, s podem ser explicados por causas da mesma natureza que eles. Por-tanto, a explicao sociolgica procede partindo de um fenmeno social para outro.

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    S estabelece relao entre fenmenos sociais. Assim mostrar-nos- como asinstituies se geram umas s outras por exemplo, como o culto dos antepassadosse desenvolveu sobie o fundo dos ritos funerrios. Outras vezes, perceberverdadeiras coalescncias de fenmenos sociais: por exemplo, a noo todifundida do sacrifcio do Deus explicada por uma espcie de fuso que seoperou entre certos ritos sacrificais e certas noes mticas. s vezes so fatosde estrutura social que se concatenam entre si por exemplo, pode-se relacionar aformao das cidades aos movimentos migratrios mais ou menos vastos de aldeiasa cidades, de distritos rurais a distritos industriais, aos movimentos decolonizao, ao estado das comunicaes, etc. Ou ento pela estrutura das so-ciedades de um tipo determinado que se explicam certas instituiesdeterminadas, por exemplo a disposio em cidades produz certas formas dapropriedade do culto, etc.

    Mas como os fatos sociais se produzem assim uns aos outros? Quandodizemos que instrtuioes produzem instituies por via de desenvolvimento, decoalescncia, etc., no significa que as concebemos como tipos de realidadesautnomas capazes de ter por si mesmas uma eficcia misteriosa de um gneroparticular. Da mesma forma, quando referimos forma dos grupos tal ou talprtica social, no significa que consideramos como possvel que a repartiogeogrfca dos indivduos afete a vida social diretamente e sem intermedirio.As instituies s existem nas representaes que a sociedade faz delas. Todasua fora viva lhes vem dos sentimentos de que so objeto se so fortes erespeitadas, porque estes sentimentos so vivazes se cedem, porqueperderam toda a autoridade junto s conscincias. Do mesmo modo, se asmudanas da estrutura social agem sobre as ~nstituioe5, e porque elasmodificam o estado das idias e das tendncias de que so objeto por exemplo,se a formao da cidade acentua fortemente o regime da famlia patriarca1, porque este complexo de idias e de sentimentos que constitui a vida da famliamuda necessariamente medida que a cidade

    20 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA21

    SOCIOLOGIAse fecha. Para empregar a linguagem corrente, poder-se-ia dizer que toda a forados fatos sociais lhes advm da opinio. E a opinio que dita as regras morais eque, direta ou indiretamente, as sanciona. E pode-se mesmo dizer que todamudana nas instituies , no fundo, uma mudana na opinio: porque ossentimentos coletivos de compaixo para com o criminoso entram em luta com ossentimentos coletivos que reclamam a pena que o regime penal se amenizaprogressivamente~ Tudo se passa na esfera da opinio pblica mas esta propriamente aquilo que chamamos o sistema das representaes coletivas. Osfatos sociais so, pois, causas porque so representaes ou atuam sobre asrepresentaes. O fundo ntimo da vida social um conjunto de representaes.

    Neste sentido, portanto, poder-se-ia dizer que a sociologia uma psicologia.Aceitaramos esta frmula, mas com a condio expressa de acrescentar que estapsicologia espeeificamente distinta da psicologia individual. Efetivamente, asrepresentaes de que trata a primeira so de natureza totalmente diversadaquelas de que trata a segunda. E o que se deduz daquilo que dissemos apropsito dos caracteres do fenmeno social, porque evidente que fatos quepossuem propriedades to diferentes no podem ser da mesma espcie. 1-J, nasconscincias, representaes coletivas que so distintas das representaesindividuais. Sem dvida, as sociedades s so constitudas de indivduos e, porconseguinte, as representaes coletivas s so devidas maneira pela qual asconscincias individuais podem agir e reagir umas sobre as outras no seio de umgrupo constituido. Mas estas aoes e estas reaes produzem fenmenos psquicosde um gnero novo que so capazes de evoluir por si mesmos, de se modificarmutuamente e cujo conjunto forma um sistema definido. No somente as re-presentaes coletivas so feitas de outros elementos que no as representaesindividuais, mas ainda tm na realidade outro objeto. Aquilo que exprimem,efetivamente, o prprio estado da sociedade. Enquanto os fatos de conscinciado indivduo exprimem sempre de maneira mais ou menos remota um estado doorganismo, as representaes coletivas exprimem sempre, em certo grau, umestado de grupo social: traduzem (ou, para empregar a lngua filosfica,simbolizam) sua estrutura atual, a maneira pela qual reage diante de tal ou talacontecimento, o sentimento que tem de si mesmo ou de seus prprios interesses.A vida psquica da sociedade , pois, feita de matria totalmente diversa daquelado indivduo.

    Isto no significa, todavia, que haja entre elas uma soluo de continuidade.Sem dvida, as conscincias de que formada a sociedade esto a combinadassob formas novas de onde resultam as realidades novas. No menosverdade que se pode passar dos fatos de conscincia individual s representaescoletivas por uma srie contnua de transies. Percebe-se facilmente alguns dosintermedirios: do individual passa-se insensivelmente sociedade, por exemploquando seriamos os fatos de imitao epidmica, de movimentos de multides, dealucinao coletiva, etc. Inversamente, o social torna-se individual. S existe nasconscincias individuais, mas cada conscincia no tem mais do que uma parceladeste social. E mesmo esta impresso das coisas sociais alterada pelo estadoparticular da conscincia que as recebe. Cada qual fala a seu modo sua lnguamaterna, cada autor acaba por constituir sua prpria sintaxe, seu lxico preferido.Da mesma forma, cada indivduo faz sua moral, tem sua moralidade individual. Deigual modo, cada um reza e adora de acordo com seus pendores. Mas estes fatosno so explicveis se apelarmos, para compreend-los, exclusivamente para os

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    fenmenos individuais ao contrrio, so explicveis se partirmos dos fatos sociais.Tomemos, para nossa demonstrao, um caso preciso de religio individual, o dototemismo individual. Em primeiro lugar, de certo ponto de vista, estes fatospermanecem ainda sociais e constituem instituies: um artigo de f em certastribos que cada indivduo tem seu prprio totem da mesma forma, em Roma, cadacidado tem seu genius, no catolicismo cada fiel tem um santo como patrono. Mash mais: estes fenmenos provm simplesmente do fato de que uma instituiosocialista * se refratou e desfigurou nas conscincias particulares. Se, alm de seutotem de cl, cada guerreiro possui seu totem individual, se um se julga parentedos lagartos, ao passo que outro se sente associado aos corvos, porque cadaindivduo constituiu seu prprio totem imagem do totem do cl.

    V-se agora o que entendemos com a expresso representaes coletivas eem que sentido podemos dizer que os fenmenos sociais podem ser fenmenosde conscincia, sem ser por isso fenmenos da conscincia individual. Vimostambm que gneros de relaes existem entre os fenmenos sociais. Estamosagora em condies de precisar mais a frmula que demos acima da explicaosocolgica, quando dissemos que ela ia de um fenmeno social a outro fenmenosocial. Pudemos entrever, pelo que precede, que existem duas grandes ordens defenmenos sociais: os fatos de estrutura social, isto , as formas do grupo, amaneira pela qual os elementos so a dispostos e as representaes coletivasnas quais so dadas as instituies. Isto posto. pode-se dizer que todaexplicao sociolgica entra num dos trs quadros seguintes: 1.0 ou ela une umarepresentao coletiva a uma representao coletiva, por exemplo a com

    * Socialiste, em francs, mas o adjetivo aqui empregado sem qualquer conotao ideolgica. (N. da E.)

    LiSOCIOLOGIA

    ENSAIOS DE SOCIOLOGIAposio penal vingana privada 2.0 ou une uma representao coletiva a um fatode estrutura social como sua causa assim, v-se na formao das cidades a causada formao de um direito urbano, origem de boa parte de nosso sistema dapropriedade 3? ou une fatos de estrutura social a representaes coletivas queas determinaram: assim, certas noes mticas dominaram os movimentosmigratrios dos hebreus, dos rabes do Isl o fascnio que exercem as grandescidades uma causa da emigrao dos campnios. Pode parecer, verdade, que tais explicaes giram num crculo, visto que asformas do grupo so a representadas, ora como efeitos, ora como causas dasrepresentaes coletivas. Mas este crculo, que real, no implica nenhumapetio de princpios: o das prprias coisas. Nada to intil como perguntar seforam as idias que suscitaram as sociedades ou se foram as sociedades que, umavez formadas, deram origem s idias coletivas. Trata-se de fenmenosinseparveis, entre os quais no cabe se estabelecer uma primazia lgica oucronolgiea.

    Portanto, a explicao sociolgica assim entendida no merece, em graualgum, a censura de materialista que s vezes lhe foi assacada. Em primeiro lugar,ela independe de toda metafsica, materialista ou no. Ademais, na realidade,atribui uma funo preponderante ao elemento psquico da vida social, crenas esentimentos coletivos. Mas, de outro lado, escapa aos defeitos da ideologia. Poisas representaes coletivas no devem ser concebidas como se se desenvolvessempor si mesmas, em virtude de uma espcie de dialtica interna que as obrigaria adepurarem-se sempre mais, a se aproximarem de um ideal de razo. Se a famlia, odireito penal mudaram, no foi em conseqncia dos processos racionais de umpensamento que, aos poucos, retificaria espontaneamente seus erros primitivos.As opinies, os sentimentos da coletividade s mudam se os estados sociais de quedependem tambm mudaram. Assim, no explicar uma transformao socialqualquer, por exemplo a passagem do politesmo ao monotesmo, fazer ver que elaconstitui um progresso, que mais verdadeira ou mais moral, porque a questo precisamente saber o que determinou a religio a tornar-se assim mais verdadeiraou mais moral, isto , na realidade, a tornar-se aquilo que se tornou. Os fenmenossociais no so mais automotores do que os outros fenmenos da natureza. Acausa de um fato social deve sempre ser procurada fora deste fato. Isto significaque o socilogo no tem como objeto encontrar no sabemos que lei de progresso,de evoluo geral que dominaria o passado e predeterminaria o futuro. No h umalei nica, universal, dos fenmenos sociais. H uma multido de leis de inegvelgeneralidade. Explicar, em sociologia, como em toda cincia, , pois, descobrir leismaisou menos fragmentria5~ isto , ligar fatos definidos segundo ~elae5 definidas.2. MIITODO DA SOCIOLOGIA

    Os ensaios sobre o mtodo da sociologia abundam na literatura sociolgica.Em geral, encontram-se mesclados com todos os tipos de consideraes filosficassobre a sociedade, o Estado, etc. As primeiras obras onde o mtodo da sociologiafoi estudado de maneira apropriada so as de Comte e de Stuart Mill. Mas,qualquer que seja sua importncia~ as observaes metodologicas destes doisfilsofos ainda conservavam, como a cincia que pretendiam fundar, uma extremageneralidade. Recentemente, Durkheim procurou definir mais exatamente amaneira pela qual a sociologia deve proceder no estudo dos fatos particulares.

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    Sem dvida, no se trata de formular completa e definitivamente as regrasdo mtodo sociolgico. Porque um mtodo s se distingue abstratamente daprpria cincia. Ele no se articula e no se organiza a nao ser a medida dosprogressos desta cincia. Propomo-n05 somente analisar um certo nmero deprocessos cientficos j sancionados pelo uso.Definio

    Como toda cincia, a sociologia deve comear o estudo de cada problema poruma definio. Antes de tudo, mister indicar e delimitar o campo da pesquisa afim de saber de que se fala. Estas definies so prvias, e, por isso, provisrias.No podem nem devem exprimir a essncia dos fenmenos a estudar, massimplesmente design-los clara e distintamente. Todavia, por mais exteriores queelas sejam, nem por isso so menos mdtspensaveis. Na falta de definies, todacincia se expe a confuses e a erros. Sem elas, no transcurso de um mesmotrabalho, um socilogo dar diferentes sentidos a um mesmo termo. Agindo destaforma cometer graves equvocos: assim, no que se refere teoria da famlia,muitos autores empregam indiferentemente os termos tribo, aldeia, cl, paradesignar uma s e mesma coisa. Alm disso, sem definioes e impossivel haverentendimento entre cientistas que discutem sem falar todos do mesmo assunto.Boa parte dos debates levantados pela teoria da famlia e do casamento provm daausncia de definies: assim, uns chamam monogamia aquilo que outros nodesignam com o mesmo nome uns confundem o regime jurdico que a monogamiaexige com a simples monogamia de fato outros, ao contrrio, distinguem estasduas ordens de fatos, na realidade muito diferentes. 24 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA

    25SOCIOLOGIA

    Naturalmente, definies deste gnero so construdas. Rene-se e designa-

    se nelas um conjunto de fatos cuja similaridade fundamental se prev. Mas noso construdas a priori so o resumo de um primeiro trabalho, de uma primeiraviso rpida dos fatos, cujas qualidades comuns se distinguem. Elas tm sobretudocomo objeto substituir as noes do senso comum por uma primeira noo cien-tfica. E que, na verdade, preciso, antes de tudo, desembaraar-se dospreconceitos correntes, mais perigosos em sociologia do que em qualquer outracincia. No se deve estabelecer sem exame, como definio cientfica, umaclassificao usual. Muitas idias ainda em uso em muitas cincias sociais noparecem baseadas nem na razo nem nos fatos e devem ser banidas de umaterminologia racional por exemplo, a noo de paganismo e mesmo aquela defeitieismo no correspondem a nada de real. Outras vezes, uma pesquisa sria levaa reunir aquilo que o vulgo separa, ou a distinguir aquilo que o vulgo confunde. Porexemplo, a cincia das religies reuniu num mesmo gnero os tabus de impureza eos de pureza, porque todos so tabus ao contrrio, distinguiu cuidadosamente osritos funerrios e o culto dos antepassados.

    Estas definies sero tanto mais exatas e mais positivas se nosesforarmos mais por distinguir as coisas por seus caracteres objetivos. Chamam-se caracteres objetivos os caracteres que tal ou tal fenmeno social tem em simesmo, isto , aqueles que no dependem de nossos sentimentos e de nossasopinies pessoais. Assim, no por nossa idia mais ou menos lgica do sacrifcioque devemos definir este rito, mas pelos caracteres exteriores que apresenta,como fato social e religioso, exterior a ns, independente de ns. Concebida destemodo, a definio torna-se um momento importante da pesquisa. Estes caracterespelos quais se define o fenmeno social a estudar, ainda que exteriores, naocorrespondem menos aos caracteres essenciais que a anlise discernir. Por isso,definies felizes podem nos pr no caminho de importantes descobertas. Quandose define o crime como um ato atentatrio aos direitos dos indivduos, os nicoscrimes so os atos atualmente tidos como tais: o homicdio, o roubo, etc. Quando ocrime definido como um ato que provoca uma reao organizada da coletividade,-se levado a compreender na definio todas as formas verdadeiramenteprimitivas do crime, em particular a violao das regras religiosas, do tabu, porexemplo.

    Enfim, estas definies prvias constituem uma garantia cientfica deprimeira ordem. Urna vez estabelecidas, obrigam e ligam o socilogo. Elas iluminamtodos os seus passos, permitem a crtica e a discusso eficaz. Porque, graas aelas, todo um conjunto de fatos bem designados se impeao estudo, e a explicao deve levar em considerao todos eles. Afastam-seassim todas estas argumentaes caprichosas em que o autor passa, a seu bel-prazer, de um assunto a outro, toma suas provas s mais heterogneas categorias.Ademais, evita-se uma falha que cometem ainda os melhores trabalhos desociologia, por exemplo o de Frazer sobre o totemismo. Esta falha a de haverreunido unicamente os fatos favorveis tese e em no ter pesquisado suficiente-mente os fatos contrrios. Em geral, no h suficiente preocupao com aintegrao de todos os fatos numa teoria s so reunidos aqueles que sesobrepem exatamente. Ora, com boas definies iniciais, todos os fatos sociaisde uma mesma ordem se apresentam e se impem ao observador, e fica-se naobrigao de explicar no apenas as concordncias, mas tambm as diferenas.Observao dos Jatos

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    Como vimos, a definio supe uma primeira viso geral dos fatos, uma

    espcie de observao provisria. E preciso falar agora da observao metdica,isto , daquela que estabelece cada um dos fatos enunciados. A observao dosfatos sociais no , como se poderia crer primeira vista, um puro processonarrativo. A sociologia deve fazer mais do que descrever os fatos, deve, narealidade, constitu-los. Em primeiro lugar, como em qualquer outra cincia, emsociologia no existem fatos brutos passveis, por assim dizer, de seremfotografados. Toda observao cientfica refere-se a fenmenos metodicamenteescolhidos e isolados dos outros, isto , abstrados. Os fenmenos sociais, mais doque todos os outros, no podem ser estudados de uma vez em todos os seusdetalhes, em todas as suas relaes. So demasiado complexos para que no seproceda por abstraes e por divises sucessivas das dificuldades. Mas aobservao sociolgica, se abstrai os fatos, no menos escrupulosa e cuidadosaem estabelec-los exatamente. Ora, os fatos sociais so muito difceis de seremcaptados e desenvedados atravs dos documentos. E ainda mais delicado analis-los, e, em alguns casos, de dar-lhes mensuraoes aproximativas. So, pois,necessrios processos especiais e rigorosos de observao so necessrios, parausar a linguagem habitual, mtodos crticos. O emprego destes mtodos varianaturalmente com os fatos variados que a soemlogia observa. Assim que existemmeios diferentes para analisar um rito religioso e para descrever a formao deuma cidade. Mas o esprito, o mtodo do trabalho permanecem idnticos, e s possvel classificar os mtodos crticos de acordo com a natureza dos documentosaos quais se aplicam: existem os documentos estatsticos, quase todos modernos,recentes, e os documentos histricos. Os nume 26 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA

    27rosos problemas levantados pela utilizao destes documentos so bastantediferentes, ao mesmo tempo que bastante anlogos.

    Em todo trabalho que se apia em documentos estatsticos importante,indispensvel, expor cuidadosamente a maneira pela qual se chegou aos dados deque se lana mo. Porque, no estado atual das diversas estatsticas judicirias,econmicas, demogrficas, etc., cada documento exige a mais severa crtica.Consideremos, com efeito, os documentos oficiais, que, em geral, oferecem maisgarantias. Estes mesmos documentos devem ser examinados em todos os seusdetalhes, e mister conhecer bem os princpios que presidiram sua confeco.Sem minuciosas precaues, corre-se o risco de chegar a dados falsos: assim, impossvel usar as informaes estatsticas sobre o suicdio da Inglaterra, porque,neste pas, para evitar os rigores da lei, a maior parte dos suicdios so declaradossob o nome de morte em conseqncia de loucura a estatstica , assim, viciadaem seu fundamento. Ademais, mister ter o cuidado de reduzir a fatoscomparveis os dados de origens diversas de que se dispe. Por no haveremprocedido desta maneira, muitos trabalhos de sociologia moral, por exemplo,contm graves erros. Compararam-se nmeros que no tm de modo algum amesma significao nas diversas estatsticas europias. Com efeito, asestatsticas so baseadas nos cdigos, e os diversos cdigos no tm nem a mesmaclassificao nem a mesma nomenclatura por exemplo, a lei inglesa no distingue ohomicdio por imprudncia do homicdio voluntrio. Alm disso, como todaobservao cientfica, a observao estatstica deve procurar ser a mais exata e amais detalhada possvel. Efetivamente, com freqncia o carter dos fatos mudaquando uma observao geral substituda por uma anlise cada vez mais precisaassim um mapa, por distritos, do suicdio em Frana, leva a observar fenmenosdiferentes daqueles que aparecem num mapa por departamentos.

    No que se refere aos documentos histricos ou etnolgicos, a sociologia deveadotar, grosso modo, os processos da crtica histrica. No pode servir-se defatos inventados e, por conseguinte, deve estabelecer a verdade das informaesde que se serve. Estes processos de crtica so de um emprego tanto maisnecessrio quanto os socilogos foram censurados com freqncia, e no semrazo, por sua negligncia em empreg-los utilizaram-se, por exemplo, sem muitodiscernimento, as informaes dos viajantes e dos etngrafos. O conhecimentodas fontes, uma crtica severa teriam permitido aos socilogos dar uma baseincontestvel s suas teorias referentes s formas elementares da vida social.Alis, pode-se esperar que os progressos da histria e da etnografia facilitarosempre mais o trabalho, fornecendo informaes incontestveis. A sociologia spode espeSOCIOLOGIArar vantagens dos processos destas duas disciplinas. Mas, ainda que o socilogotenha as mesmas exigncias crticas do historiador, deve conduzir sua crticasegundo princpios diferentes, visto que estuda os fatos num outro esprito, emvista de outro objetivo. Primeiramente, s observa, na medida do possvel, osfatos sociais, os fatos profundos e sabe-se quo recentes so preocupaesdeste gnero nas cincias histricas, onde h falta, por exemplo, de numerosas eboas histrias da organizao econmica mesmo em nossos pases. Depois, asociologia no faz aos fatos perguntas insolveis e cuja soluo s oferea, almdisso, escasso valor explicativo. Assim, na ausncia de monumentos certos, no indispensvel datar com exatido o Rg-Veda: a coisa impossvel e, no fundo,indiferente. No h necessidade de conhecer a data de um fato social, de umritual de oraes para servir-se dele em sociologia, contanto que se conheam seusantecedentes, seus concomitantes e seus conseqentes, numa palavra, todo o

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    quadro social que o cerca. Enfim, o socilogo no pesquisa exelusivamente odetalhe singular de cada fato. Depois de terem feito sobretudo a biografia degrandes homens e de tiranos, os historiadores tentam, agora, sobretudo fazerbiografia coletiva. Detm-se nos matizes particulares dos costumes, das erenasde cada grupo, pequeno ou grande. Procuram aquilo que separa, aquilo quesingulariza, e tendem a descrever aquilo que h, de certo modo, de inefvel emcada civilizao por exemplo, cr-se geralmente que o estudo da religio vdica reservado unicamente aos sanscritistas. O socilogo, ao contrrio, procuraencontrar nos fatos sociais aquilo que geral e, ao mesmo tempo, aquilo que caracterstico. Para ele, uma observao bem conduzida deve dar um resduodefinido, uma expresso suficientemente adequada do fato observado. Paraservir-se de um fato social determinado no necessrio o conhecimento integralde uma histria, de uma lngua, de uma civilizao. O conhecimento relativo, masexato, deste fato suficiente para que possa e deva entrar no sistema que asociologia quer edificar. Porque, se em numerosos casos ainda indispensvel parao socilogo remontar s ltimas fontes, a falha no devida aos fatos, mas aoshistoriadores que no souberam fazer sua verdadeira anlise. A sociologia exigeobservaes seguras, impessoais, utilizveis para quem quer que venha a estudarfatos da mesma ordem. O pormenor e o mbito de todos os fatos so infinitos, eningum nunca poder esgot-los a histria pura jamais deixar de descrever, dematizar, de circunstanciar. Ao contrrio, uma observao sociolgica feita comcuidado, um fato bem estudado, analisado em sua integridade, perde quase todadata, exatamente como uma observao de mdico, uma experinciaextraordinria de laboratrio. O fato social, 28 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA

    29cientificamente descrito, torna-se um elemento de cincia, e deixa de pertencer atal ou tal pas, a tal ou tal poca. Est por assim dizer colocado, por fora daobservao cientfica, fora do tempo e fora do espao.Sistematizao dos Jatos

    A sociologia no especula, como no o faz qualquer outra cincia, sobre purasidias e no se limita a registrar os fatos. Tende a dar-lhes um sistema racional.Procura determinar suas relaes de modo a torn-los inteligveis. Resta-nos falardos processos pelos quais estas relaes podem ser determinadas. Algumas vezes,alis mui raramente, encontramo-los por assim dizer inteiramente estabelecidos.Com efeito, existem em sociologia, como em toda cincia, fatos to tpicos quebasta analis-los devidamente para descobrir logo certas relaes insuspeitadas.Foi um fato deste gnero que Fison e Howitt encontraram, quando lanaram novaclaridade sobre as formas primitivas da famlia, explicando o sistema doparentesco e das classes exogmicas em certas tribos australianas. Mas, em geral,no atingimos diretamente, pela simples observao, fatos cruciais. IS necessrio,pois, empregar todo um conjunto de processos metdicos especiais paraestabelecer as relaes que existem entre os fatos. Aqui a sociologia se encontranum estado de inferioridade com relao a outras cincias. A experimentao no possvel no se pode suscitar, voluntariamente, fatos sociais tpicos para, emseguida, estud-los. IS mister, pois, recorrer comparao dos diversos fatossociais de uma mesma categoria em diversas sociedades, a fim de procurardepreender sua essncia. No fundo, uma comparao bem conduzida pode dar, emsociologia, resultados equivalentes aos de uma experimentao. Procede-se maisou menos como os zologos, como procedeu particularmente Darwin. Este nopde, salvo para uma nica exceo, realizar verdadeiras experincias e criarespcies variadas teve de fazer um quadro geral dos fatos que conheciareferentes origem das espcies e foi da comparao metdica destes fatos quededuziu suas hipteses. Da mesma forma, em sociologia, Morgan, tendo constatadoa identidade do sistema familial iroqus, havaiano, fidji, etc., pde formular a hi-ptese do cl por descendncia materna. Alis, em geral, quando a comparao foimanejada por verdadeiros cientistas, sempre deu bons resultados em matria defatos sociais. Mesmo quando no deixou resduo terico, como nos trabalhos daescola inglesa antropolgica, ao menos conseguiu levantar uma classificao geralde grande nmero de fatos.

    Quanto ao mais, a gente se esfora e preciso esforar-se por tornar acomparao sempre mais exata. Certosautores, entre outros Tylor e Steinmetz, chegaram mesmo

    SOCIOLOGIAa propor e a empregar, o primeiro a propsito de casamento, o segundo a propsitoda pena e do endocanibalismo, um mtodo estatstico. As concordncias e asdiferenas entre os fatos constatados so a expressas em nmeros. Mas osresultados deste mtodo esto longe de serem satisfatrios, pois se nomeiamfatos colhidos das sociedades mais diversas e mais heterogneas, e registradosem documentos de valor totalmente desigual. Atribui-se assim excessivaimportncia ao nmero das experincias, dos fatos acumulados. Demonstra-sepouco interesse pela qualidade destas experincias, por sua certeza, pelo valordemonstrativo e pela comparabilidade dos fatos. Provavelmente prefervelrenunciar a tais pretenses de exatido, e melhor ater-se a comparaeselementares, mas severas. Em primeiro lugar, importante s aproximar fatos damesma ordem, isto , fatos que entram na definio estabelecida no comeo dotrabalho. Assim, ser conveniente, na teoria da famlia, a propsito do cl, reunir

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    apenas fatos de cl e no reunir com eles informaes etnogrficas que narealidade se referem tribo e ao grupo local, com freqncia confundidos com ocl. Em segundo lugar, preciso alinhar os fatos assim reunidos em sriescuidadosamente constitudas. Em outras palavras, dispem-se as diferentesformas que apresentam segundo uma ordem determinada, seja uma ordem decomplexidade crescente ou decrescente, seja uma ordem qualquer de variao. Porexemplo, numa teoria da famlia patriarcal, colocar-se- a famlia hebraica debaixoda famlia grega, esta debaixo da famlia romana. Em terceiro lugar, diante destasrie, dispem-se outras sries, constitudas da mesma maneira, compostas deoutros fatos sociais. E das relaes que se percebem entre estas diversasespcies que se vem desprenderem-se as hipteses. Por exemplo, possvel ligara evoluo da famlia patriarcal evoluo da cidade:dos hebreus aos gregos, destes aos romanos no prprio direito romano, v-se opoder paterno crescer medida que a cidade se fecha.Carter cientfico das hipteses sociolgicas

    Chega-se assim a inventar hipteses e a verific-las, com a ajuda de fatosbem observados, para um problema bem definido. Naturalmente estas hiptesesno so forosa-mente justas bom nmero daquelas que hoje nos parecemevidentes sero abandonadas um dia. Mas se no trazem este carter de verdadeabsoluta, trazem todas os caracteres de hipteses cientficas. Em primeiro lugar,so verdadeiramente explicativas dizem o porqu e o como das coisas. A no seexplica uma regra jurdica como aquela da responsabilidade civil pela clssicavontade do legislador ou pelas virtudes gerais da natureza humana que teriam

    3(1 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA

    31SOCIOLOGIA

    racionalmente criado esta instituio. IS explicada por toda a evoluo do sistemada responsabilidade. Em segundo lugar, elas tm este carter de necessidade e,por conseguinte, de generalidade que o da induo metdica e que talvez permitaat, em alguns casos, a previso. Por exemplo, pode-se quase estabelecer como leique as prticas rituais tendem a rarefazer-se e a espiritualizar-se no decurso dodesenvolvimento das religies universais. Em terceiro lugar, e a est, em nossaopinio, o ponto mais importante, tais hipteses so eminentemente criticveis everficaveis. Pode-se, num verdadeiro trabalho de sociologia, criticar cada um dospontos tratados. Estamos longe desta poeira impalpvel dos fatos ou destasfantasmagorias de idias e de palavras que o pblico com freqncia aceita porsociologia, mas onde no h idias precisas nem sistema racional nem estudocerrado dos fatos. A hiptese torna-se um elemento de discusso precisa pode-secontestar, retificar o mtodo, a definio inicial, os fatos invocados, ascomparaes estabelecidas de tal sorte que h a, para a cincia, progressospossveis.

    Aqui, preciso prever uma objeo. Ter-se-ia a tentao de dizer que asociologia, antes de se edificar, deve fazer um inventrio total de todos os fatossociais. Assim, pedir-se-ia ao terico da famlia que tivesse feito o examecompleto de todos os documentos etnogrficos, histricos, estatsticos, relativosa esta questo. Devem-se temer tendncias deste gnero em nossa cincia. Atimidez diante dos fatos to perigosa como a excessiva audcia, as abdicaesdo empirismo to funestas como as generalizaes apressadas. Primeiramente, sea cincia requer exames dos fatos sempre mais completos, em parte alguma exigeum inventrio total, alis impossvel. O bilogo no esperou observar todos osfatos de digesto, em todas as sries de animais, para tentar as teorias dadigesto. O socilogo deve fazer o mesmo tambm ele no tem necessidade deconhecer a fundo todos os fatos sociais de uma determinada categoria paraelaborar a teoria. Deve passar imediatamente obra. A conhecimentosprovisrios, mas cuidadosamente enumerados e precisados, correspondemhipteses provisrIas. As generalizaes feitas, os sistemas propostos, valemmomentaneamente para todos os fatos conhecidos e desconhecidos da mesmaordem que os fatos explicados. Tem-se a liberdade de modificar as teorias medida em que novos fatos chegam a ser conhecidos ou medida em que a cincia,todos os dias mais exata, descobre novos aspectos nos fatos conhecidos. Foradestas aproximaes sempre mais cerradas dos fenmenos, s h lugar paradiscusses dialticas ou enciclopdias eruditas, ambas sem verdadeira utilidade,visto que no propem explicao alguma. E, alm disso, se o trabalho de induofoi feito com mtodo,no possvel que os resultados aos quais o socilogo chega sejam despidos detoda realidade. As hipteses exprimem fatos, e, por conseguinte, possuem sempreao menos uma parcela de verdade: a cincia pode complet-las, retific-las,transform-las, mas nunca deixa de utiliz-las.3. DIVISO DA SOCIOLOGIA

    A sociologia pretende ser uma cincia e ligar-se tradio cientficaestabelecida. Mas no menos livre face s classificaes existentes. Poderepartir o trabalho de maneira diversa daquela posta em prtica at aqui.

    Em primeiro lugar, a sociologia considera como seu um certo nmero deproblemas que, at aqui, dependiam de cincias que no so ciencias sociais.

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    Decompe estas cincias, abandonando-lhes aquilo que seu objeto prprio eretm todos os fatos de ordem exclusivamente social. Assim que a geografiatratava at hoje das questes de fronteira, de vias de comunicao, de densidadesocial, etc. Ora, estas no so questes de geografia, mas questes de sociologia,visto que no se trata de fenmenos csmicos, mas de fenmenos referentes natureza das sociedades. Da mesma forma, a sociologia apropria-se dos resultadosj adquiridos pela antropologia criminal referentes a um certo nmero defenmenos que so, no fenmenos somticos, mas fenmenos sociais.

    Em segundo lugar, entre as cincias s quais ordinariamel]te se d o nome decincias sociais, algumas h que, para falar com propriedade, no so cincias.No tm mais do que uma unidade fictcia, e a sociologia deve dissoci-las. IS ocaso da estatstica e da etnografia, ambas consideradas como formando cincias parte, quando no fazem mais do que estudar, de acordo com seus respectivosprocessos, os fenmenos mais diversos, na realidade dependentes de diferentespartes da sociologia. A estatstica, como vimos, no seno um mtodo paraobservar fenmenos variados da vida social moderna. Hoje, a estatstica estuda,indiferentemente, fenmenos sociais, morais e econmicos Em nossa opinio, nodeve haver a estatsticos, mas soeilogos que, para estudar os fenmenos morais,econmicos, para estudar os grupos, fazem estatstica moral, econmica,demogrfica, etc. O mesmo acontece com a etnografia. Esta tem, como nicarazo de sua existncia, a tarefa de consagrar-se ao estudo dos fenmenos que sepassam em naes ditas selvagens. Estuda indiferentemente os fenmenos morais,jurdicos, religiosos, as tcnicas, as artes, etc. A sociologia, ao contrrio, nodistingue naturalmente entre as instituies das populaes selvagens e aquelasdas naees brbaras ou civilizadas. Faz entrar em suas definies os fatosmais elementares e os fatos 32 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA SOCIOLOGIA 33mais evoludos. E, por exemplo, num estudo da famlia ou da pena, ver-se-obrigada a considerar tanto os fatos etnogrficos como os fatos histricos,que so todos da mesma maneira fatos sociais e que s diferem pelo modo comoso observados.

    Em contrapartida, a sociologia adota e faz suas as grandes divises, jpercebidas pelas diversas cincias comparadas das instituies de que pretendeser herdeira: cincias do direito, das religies, economia poltica, etc. Deste pontode vista, divide-se com muita facilidade em soeiologias especiais. Mas adotandoesta repartio, no segue servil-mente as classificaes usuais que, em suamaioria, so de origem emprica ou prtica, como por exemplo as da cincia dodireito. Sobretudo no estabelece entre os fatos estes compartimentos estanquesque ordinaramente existem entre as diversas cincias especiais. O socilogo queestuda os fatos jurdicos e morais deve, com freqncia, para compreend-los,pesquisar os fenmenos religiosos. Aquele que estuda a propriedade deveconsiderar este fenmeno sob seu duplo aspecto jurdico e econmico, ao passoque estes dois aspectos de um mesmo fato so ordinariamente estudados pordiferentes cientistas.

    Assim, mesmo ligando-se estreitamente s cincias que a precederam, mesmoapropriando-se de seus resultados, a sociologia transforma suas classificaes. ISde notar, alis, que todas as cincias sociais tenderam, nos ltimos anos, aaproximar-se progressivamente da sociologia tornam-se cada vez mais partesespeciais de uma nica cincia. A nica diferena que, quando esta chega aoestado de verdadeira cincia, com um mtodo consciente, muda profundamente oprprio esprito da pesquisa e pode conduzir a resultados novos. Por isso, ainda quenumerosos resultados possam ser conservados, cada parte da sociologia no podecoincidir exatamente com as diversas cincias sociais existentes. Por si mesmas,elas se transformam, e a introduo do mtodo sociolgico j mudou e mudar amaneira de estudar os fenmenos soclals.

    Os fenmenos sociais dividem-se em duas grandes ordens. De uma parte,existem os grupos e suas estruturas. 1-l, pois, uma parte especial da soeio!ogiaque pode estudar os grupos, o nmero dos indivduos que os compem e as diversasmaneiras pelas quais so dispostos no espao: e a morfologia social. De outraparte, existem os fatos sociais que se passam nestes grupos: as instituies ou asrepresentaes coletivas. Estas constituem, para falar com verdade, as grandesfunes da vida social. Cada urna destas fimoes, religiosa, jurdica, econmica,esttica, etc., deve ser primeiro estudada parte e constituir o objeto de urnasevie de pesquisas relativamente independentes. Deste ponto de vista, hportanto uma sociologia religiosa, unia sociologiamoral e jurdica, uma sociologia tecnolgica, etc. Depois, feitos todos estesestudos especiais, seria possvel constituir uma ltima parte da sociologia, asociologia geral, que teria como finalidade pesquisar aquilo que constitui a unidadede todos os fenmenos sociais.BIBLIOGRAFIA

    19 Sobre a histria da sociologia: Espinas, Socits animales (prefcio), 1867. Lvy-Brhl, Laphilosophie dAuguste Comte, 1900. Fouitle, La science sociale contem poraine, 1855. Durkheim,Les sciences morale.s en Allemagne, em Rente phlosophique, ano 1887 La sociologie en France auXIXe sicle, em Revue bleue, maio de 1900. Bougl, Les sciences sociales en Allemagne, 1896. Groppali, La sociologie en Amerique, em A nnales de lInst. internat. de sociologie, 1900.

    29 Sobre a sociologia em geral: Comte, Cours de philosophie positive (vol. 1V-VI). Spencer,Social Statics Descriptive Sociology, 1874 e seguintes Principles of Sociology, 1876 e seguintes,trad. franc., 1887 The Study o Sociology, 1873, trad. franc., 1880, etc. Schffle, Bau und Leben

    PedroNotaEtnografia

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    des sozialen Krpers, 1875-8 1. Espinas, op. cit., De Greef, Introduction la sociologie, 1886-89Transformisme social, 1894. Gumplowicz, Grundiss der Sociologie, 1885 Tnnies, Gemeinschaftand Gesellschaft, 1887. Tarde, Les bis de limitation, 1890-95 Logique sociale, 1895, etc. LesterWard, Dynamic Sociobogy, 1897 Outlines of Sociobogy, 1898. Small, An Jntroducaion micSociobogy, 1897 Outlines oJ Sociobogy, 1898. Small, An Intraduction to 0w Study of Society, 1894. Giddings, Principies of Sociobogy, 1896. Entre as principais obras da escola organicista esto: Novicow, La lutte entre les socits humaines, 1893 Conscience et volont soda/es, 1896, etc. Worms,Organisme et socit, 1896. Massart et Vandervelde, Parasitisme organique et parasitismc social, Demoor, Massart et Vandervelde, Evolution rgressive en bio~ bogie et en sociobogie, 1897.

    39 Os principais peridicos consagrados sociologia propriamente dita so os seguintes: Renteinternationale de sociobogie Annales de llnstitut international de sociobogie Anne sociobogiqueZeitschrijt fiir Sozialwissenschat Rivista Italiana di Sociologia American Journal of Sociobogy.

    49 Sobre o mtodo da sociologia: Comte, op. cit., Stuart Mill, Logique, I.V1. Durkheim, Rglesde la mthode sociobogique, 1898. Langlois et Seignobos, Introduction aux tudcs historiques, 1898. Tylor, On a Method of Investigating the Development of Institutions etc., em Journal of theAnthropoborical Institute, XVIII, 1889. Steinmetz, Studien zur crsten Entwicklung der Strafe,1893-95 (Introduo). Classification des types sociaux, em Anne sociobogiquc, 1900.