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Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro UNIRIO Centro de Ciências Humanas e Sociais CCH Museu de Astronomia e Ciências Afins MAST/MCT Programa de Pós Graduação em Museologia e Patrimônio PPG-PMUS Mestrado em Museologia e Patrimônio Marcelo Sá de Sousa UNIRIO / MAST - RJ, Março de 2012

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Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO Centro de Ciências Humanas e Sociais – CCH

Museu de Astronomia e Ciências Afins – MAST/MCT

Programa de Pós Graduação em Museologia e Patrimônio – PPG-PMUS

Mestrado em Museologia e Patrimônio

Marcelo Sá de Sousa

UNIRIO / MAST - RJ, Março de 2012

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SOBRE OS MUSEUS PELA PAZ

por

Marcelo Sá de Sousa

Aluno do Curso de Mestrado em Museologia e Patrimônio Linha 01 – Museu e Museologia

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio. Orientador: Professora Doutora Heloísa Helena F. G. da Costa

UNIRIO/MAST - RJ, Março de 2012

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FOLHA DE APROVAÇÃO

Dissertação de Mestrado submetida ao corpo docente do Programa de Pós-graduação em Museologia e Patrimônio, do Centro de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO e Museu de Astronomia e Ciências Afins – MAST/MCT, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Museologia e Patrimônio.

Aprovada por

Prof. Dr. ______________________________________________ Heloísa Helena F. G. da Costa

Prof. Dr. ______________________________________________

Marília Xavier Cury

Prof. Dr. ______________________________________________ Tereza Cristina Scheiner

Rio de Janeiro, 2012

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Dados internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

Sousa, Marcelo Sá de. S725 Sobre os museus pela paz / Marcelo Sá de Sousa, 2012. xii, 103f. ; 30 cm Orientador: Heloísa Helena F. G. da Costa.

Dissertação (Mestrado em Museologia e Patrimônio) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro ; MAST, Rio de Janeiro, 2012. 1. Museologia. 2. Museus. 3. Paz. 4. Museus pela paz – Aspectos políticos. 5. Tanatomuseologia. I. Costa, Heloísa Helena F. G. da. II. Universidade Federal do Estado do Rio Janeiro. Centro de Ciência Humanas e Sociais. Mestrado em Museologia e Patrimônio. III. Museu de Astronomia e Ciências Afins. IV. Título.

CDD – 069

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Aos pacifistas

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AGRADECIMENTOS Agradeço a Profa. Dra. Ana Lúcia Siaines de Castro, por chamar a atenção para o

tema durante suas aulas e introduzir-lo em suas reflexões e produção teórica.

A minha orientadora Profa. Dra. Heloísa Costa, pela orientação e doçura.

Aos meus companheiros dessa turma sem dissidências, que soube cultivar a

amizade abraçando nossa diversidade e pluralidade: Anna Thereza de Menezes, Antonio

Carlos, Claudia Machado, Daniela Matera, Denise Batista, Eliane Fraenkel, Emerson

Castilho, Geisa de Souza, Helena Vieira, Karla Damasceno, Marcela Arriagada (nossa

chilena predileta), Maria Josiane, Roberto Sabino, Rodrigo Cantarelli, e, com destaque

especial por toda a ajuda prestada no envio de artigos fundamentais à confecção deste

trabalho: Elisama Beliani Marcelino, uma das pessoas mais apaixonadas pela Museologia

que conheço.

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“Porque há doçura e beleza

na amargura atravessada,

e eu quero memória acesa

depois da angústia apagada.”

Cecília Meireles, “Desejo de Regresso”

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RESUMO

SOUSA, Marcelo Sá de. Sobre os Museus pela Paz. Orientador: Heloísa Helena F. G. da

Costa. UNIRIO/MAST. 2012. Dissertação.

O trabalho traça um panorama sobre a concepção de paz e de pacifismo ao longo da história,

abordando também sua vertente pedagógica (Educação para a Paz) e científica (Polemologia).

Promove uma análise dos conceitos e práticas dos “museus da paz” e “museus pela paz”. Advoga a

possibilidade de uma “Tanatomuseologia”, apresentando os conceitos de Museu Memorial,

Patrimônio Traumático e Turismo Sombrio. Examina o papel político dos museus pela paz,

focalizando sua inserção na esfera pública, sua relação com o poder e sua definição como proposta

ética.

Palavras-chave: Museu. Museologia. Museus pela Paz. Paz. Tanatomuseologia. Política.

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ABSTRACT

SOUSA, Marcelo Sá de. On Museums for Peace. Advisor: Heloísa Helena F. G. da Costa.

UNIRIO/MAST. 2012. Dissertation.

The work presents the concepts of peace and pacifism throughout history, exposing their

influence on education (Peace Education) and on academic research (Peace Research). It

promotes an analysis of the ideas and practice of “peace museums” and “museums for peace”. It

defends the possibility of a “thanatomuseology”, presenting the concepts of Memorial Museum,

Difficult Heritage and Dark Tourism. It examines the political aspects of museums for peace,

emphasizing their relationship with the public sphere, power and their definition as an ethical

proposal.

Keywords: Museum. Museology. Peace. Museums for Peace. Thanatomuseology. Politics.

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SIGLAS E ABREVIATURAS UTILIZADAS:

IC MEMO – International Committee of Memorial Museums in Remembrance of the Victims of Public Crimes ( Comitê Internacional de Museus Memoriais em Lembrança de Vítimas de Crimes Públicos) ICOM - International Council of Museums (Conselho Internacional de Museus) - órgão filiado à UNESCO

ICOFOM - International Committee for Museology, ICOM (Comitê Internacional de Museologia do Conselho Internacional de Museus) ICOFOM LAM - Organização Regional do Comitê Internacional de Museologia (ICOFOM) para a América Latina e o Caribe INMP - International Network of Museums for Peace (Rede Internacional de Museus pela Paz) INPM - International Network of Peace Museums (Rede Internacional de Museus da Paz) UNESCO - United Nations Organization for Education, Science and Culture (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura) ONU – United Nations Organization (Organização das Nações Unidas)

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LISTA DE FIGURAS

Ilustração 1 Exemplos de whipala.................................................................................. 25 Ilustração 2 Interior do Museu Anti-Guerra.................................................................... 33 Ilustração 3 Fachada do Museu Anti-Guerra antes e após a ocupação pela SA .......... 34 Ilustração 4 Fachada da ESMA...................................................................................... 45

Ilustração 5 “O público no salão do Louvre” (Louis-Léopold Boilly) .............................. 65

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO................................................................................................................ 01

1. SOBRE A PAZ.................................................................................................................... 06

1.1. A paz como campo de conhecimento .................................................................. 06

1.1.1. Pesquisa...................................................................................................... 07

1.1.2. Educação..................................................................................................... 10

1.2. Uma breve história de movimentos e ideias...................................................... 11

1.2.1. A paz entre mitologias e religiões................................................................ 12

1.2.2. A paz segundo o pensamento filosófico..................................................... 14

1.2.3. O pacifismo....................................................................................................... 20

1.2.3.1. “Tolerância?”..................................................................................... 24

1.2.4. A paz hoje........................................................................................................ 26

2. MUSEUS DA PAZ, MUSEUS PELA PAZ: CONCEITOS........................................ 29

2.1. Os primeiros museus da paz............................................................................... 30

2.2. O caso japonês..................................................................................................... 35

2.2.1. Os horrores seletivos da guerra................................................................... 37

2.3. Em busca de definições....................................................................................... 41

2.4. Um museu pela paz: a Memória Abierta e o museu da ESMA .......................... 44

3. “TANATOMUSEOLOGIA”........................................................................................ 49

3.1. Os Museus Memoriais.......................................................................................... 51

3.2. Patrimônio Traumático: patrimônio, trauma e dissonância................................ 56

3.3. Turismo Sombrio.................................................................................................. 59

4. QUANDO O MUSEU SE ASSUME POLÍTICO: APONTAMENTOS SOBRE

POLÍTICA E MUSEUS PELA PAZ....................................................................................... 63

4.1. O museu e a esfera pública................................................................................. 63

4.1.1. Museu e comunicação.................................................................................... 66

4.2. Museus da paz: (geração de) poder e ação política.......................................... 73

4.3. Ética, Museologia e Museus Pela Paz............................................................... 75

CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................. 78

REFERÊNCIAS................................................................................................................ 82

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INTRODUÇÃO

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1

Introdução

“The executioner always kills twice, the second time with silence” (Elie Wiesel)

“Quem se lembra dos armênios?”

(Adolf Hitler)

No mito grego, Orfeu1 vai ao mundo dos mortos tentando resgatar sua amada

Eurídice; comovendo até mesmo Plutão, consegue permissão para levá-la consigo, com a

condição de que não voltaria o olhar para vê-la, enquanto não tivessem retornado ao mundo

dos vivos. Num momento de esquecimento, para se certificar de que sua amada o seguia,

Orfeu olha para trás e Eurídice é, então, arrebatada.

No Gênesis, a esposa de Lot é transformada em uma estátua de sal por ousar olhar

para trás, para a destruição de Sodoma e Gomorra.

Parece haver uma interdição – por vezes divina – a que se olhe para o passado de

destruição e dor. Mas parecemos - os mortais - aos poucos nos libertarmos disso.

Decerto que ainda há deuses – desta vez terrenos e, por vezes, fardados – que

interditam o passado como recomendação clínica (não se produziria uma sociedade

saudável preocupando-se com isso), mas esses, também, estão morrendo.

“Estátuas de sal” vão, aos poucos e por toda parte, dando lugar a parques,

monumentos, arquivos, memoriais, cidades, museus. Não sem resistência, o sal divino vai

virando concreto, tijolo, aço... Materiais terrenos que permitam vislumbrar, por alguma fresta

que seja, o passado proibido.

Não o passado como fetiche ou nostalgia, mas como elemento que se crê

fundamental para a construção de um futuro mais justo e que incite as devidas reparações

no presente. Um projeto político. E o museu – instituição tão atrelada ao passado, no senso

comum - também possui um papel a desempenhar na construção desse futuro.

Sempre tive um inusitado interesse por temas considerados incômodos, sombrios,

interditos. O suicídio, os mecanismos de ascensão de regimes totalitários, os usos políticos

de massacres e genocídios. A racionalidade delirante de aniquilamento dos laços sociais2

em nome de uma suposta “purificação”. Purificar e destruir. O destruir o “eles” para salvar o

“nós”. Mas interesse também pela recuperação pós-terror. A reconciliação após o trauma.

Temas esses que, num primeiro olhar desatento, pouco teriam a ver com a Museologia.

Durante o curso de graduação em Museologia, me candidatei a uma vaga de

Iniciação Científica aberta pela professora Dra. Tereza Scheiner. Coincidentemente, acabei

1 BULFINCH, 2005.

2 SÉMELIN, 2009.

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tendo meu primeiro contato com os ritos da pesquisa acadêmica a partir do projeto

“Patrimônio, Museologia e Sociedades em Transformação: a experiência latino-americana”

(coordenado pela professora), braço latino do projeto criado por Vinos Sofka (From

Oppression to Democracy), que originalmente buscava averiguar o papel dos museus e do

patrimônio no contexto de forte transformação social ocorrida entre o fim dos anos 1980 e

início da década de 90, com o esfacelamento da União Soviética e seu profundo impacto na

geopolítica do Leste Europeu. A relação entre os museus e o patrimônio e o processo de

reconciliação pós-totalitarismo.

Meu foco no estudo da Museologia sempre foi, portanto, na sua dimensão política. E,

dessa forma, foi com certo grau de estranhamento e fascínio que entrei em contato com a

existência dos “museus da paz”3, a partir das aulas da profa. Dra. Ana Lúcia Siaines de

Castro (a quem sempre serei grato por essa descoberta). “O que seriam esses museus da

paz? O que o museu – instituição social – teria a ver com uma ideia tão pessoal como a de

paz?”

É a partir desse contexto que surge este trabalho. Com o intuito de compreender

melhor4 a proposta dos museus da paz, proponho lançar um olhar específico sobre essa

relação entre Museologia e Política, focalizando neste estudo o universo teórico e prático

dos museus da paz, que julgamos não constituir um novo “tipo de museu”, mas sim uma

proposta ética.

Tomamos como objetivos, a partir do mapeamento das definições e interseções

conceituais que o envolvem o tema:

- Aprofundar o estudo sobre os conceitos e definições constitutivos da ideia de um

museu da paz;

- Problematizar as interfaces e implicações envolvidas na atuação de um museu da

paz, incorporando conceituações oriundas da Filosofia Política, como as de poder e esfera

pública;

- Relacionar o conceito e a prática do Museu da Paz com outros conexos, como os

de Turismo Sombrio, de Patrimônio Traumático e dos Museus Memoriais;

Para tal empreitada, tomaremos como ponto de partida a explanação sobre a

percepção de paz e de pacifismo ao longo dos séculos, evidenciando seu caráter

eminentemente social, bem como sua aplicação pedagógica e científica.

3 Explicaremos, no decorrer do estudo, o porquê das formas “museu da paz” e “museu pela paz”. Em um

momento inicial, utilizo o termo “museu da paz” (peace museum). 4 O tema fora anteriormente objeto de estudo da minha monografia de conclusão de curso (SOUSA, 2009)

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3

Entendo que a conquista da paz se faz não só através do desarmamento material, porém certamente com muito maior eficácia através da formação de uma consciência pacífica, da educação para a cidadania e do provimento de condições adequadas para uma vida digna

5

É apenas destituindo a ideia que temos de paz da imagem que normalmente

fazemos dela no senso comum que conseguimos compreender o papel que o museu pode

desempenhar na pacificação. A esse propósito reservaremos a primeira seção deste estudo.

Para traçarmos tal panorama envolvendo o tema da paz, utilizaremos uma fundamentação

teórica variada, constituída por autores da Filosofia, Educação Para a Paz, Investigação

Para a Paz e da História em geral.

Nossa segunda seção será dedicada à apresentação dos “museus da paz”.

Abordaremos o surgimento desses museus, as características que os definem, seus

elementos constitutivos e organizações institucionais. Nossas referências serão os autores

dedicados especificamente ao tema dos museus da paz.

Dando prosseguimento, apresentaremos assuntos que tangenciam o tema dos

museus da paz, como os conceitos de Turismo Sombrio, Patrimônio Traumático e Museus

Memoriais. Essa ultima categoria está intrinsecamente relacionada com o nosso tema de

pesquisa, pois alguns museus da paz são também museus memoriais, como veremos. Ou

seja, também tem como função a de atuar como memoriais de fatos que se relacionam

especificamente com aqueles locais nos quais estão presentes, como é o exemplo do

Hiroshima Peace Memorial Museum. Agruparemos tais elementos sob a proposição de uma

Tanatomuseologia, com base na constatação da crescente articulação entre museus e

temas ligados de maneira geral à morte e ao sofrimento. Nesse tópico, nossas referências

serão mais uma vez diversas, apresentando conceitos trabalhados por autores estrangeiros

do campo da Museologia, do Patrimônio, da Memória Social e do Turismo.

Na quarta e última seção, apresentaremos reflexões sobre atuação que a proposta

dos museus da paz implica, enfatizando sua dimensão política. Abordaremos o museu como

parte integrante da esfera pública e seus aspectos comunicacionais, salientando o museu

da paz como proposta ética e sua relação com o poder. Utilizaremos como fundamentação

teórica a proposição de Jennifer Barret6 de uma esfera pública pós-habermasiana e o

pensamento filosófico, representado pela tríade Deleuze-Foucault-Arendt7, analisando o

5 COSTA, 2001, p. 122

6 BARRET, 2011.

7 Apesar de pensadores com características bem distintas sob certos aspectos, acreditamos, como Francisco

Ortega, nos pontos de convergência entre o pensamento dos três autores: “Existem importantes pontos de confluência e interferências entre o pensamento de Hannah Arendt e os de Foucault, Derrida ou Deleuze. Minha tese a respeito é que, no fundo, todos esses autores visam a um pensamento do aberto e do não determinado, uma alternativa política que vai além de uma política partidária e que propõe a recuperação do espaço público: a política compreendida como atividade de criação e de experimentação. A teoria política de Hannah Arendt

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4

museu em suas relações de poder e como meio de comunicação, além de autores da

Museologia em geral.

Consideramos que tratar de um tema como o nosso é bastante importante, pois

acreditamos que o Museu da Paz oferece um potencial privilegiado para servir como objeto

de estudo; seja pelas características próprias desses museus e por sua atuação

eminentemente política, mas também por permitir que a Museologia incorpore em sua

reflexão aquilo que Norberto Bobbio qualificou como a questão mais importante do nosso

tempo: a paz e o pacifismo8; já que muitas vezes aquele que trata sobre a paz é tido como

“moralmente inepto, intelectualmente obtuso, psiquicamente perturbado, que não devia ser

levado muito a sério”9.

Nossa abordagem teórica buscará nas fontes referenciais mencionadas os conceitos

que se articularão – a partir da questão proposta – aos objetivos estabelecidos.

representa uma tentativa de pensar o acontecimento, de afrontar a contingência, de romper e inaugurar, de recusar as imagens e metáforas tradicionais oferecidas para imaginar o político, e uma vontade de agir, de transgredir e superar os limites. A fenomenologia arendtiana e a genealogia foucaultiana convergem na desconstrução da subjetividade e da tradição política ocidental, na procura de novas formas de subjetividade e de ação” (ORTEGA, 2001, p. 228). 8 BOBBIO, 2003.

9 Ibid., p. 27.

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1. Sobre a paz

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1. Sobre a paz

Definir o conceito de paz é um desafio que se impõe quando tratamos de um tema

desta natureza, no qual tentamos compreender a ideia que encadeia uma miríade de

instituições identificadas como “museus da paz”. Pretendemos enfrentá-lo a partir de dois

eixos: da explanação breve sobre os campos de estudos relativos ao tema da paz e da

pacificação e da apresentação sintética da trajetória de compreensão do conceito de paz

através dos tempos.

1.1. A paz como campo de conhecimento

O fenômeno da guerra – e, por oposição direta, a paz – mobilizou as melhores

mentes, em todos os séculos, em busca de sua compreensão. Podemos até mesmo afirmar,

como sugere Bobbio, que grande parte da filosofia política e da interrogação dos filósofos

sobre o sentido da história seja “uma contínua meditação sobre o problema da guerra”10.

Seja desde o pensamento clássico e os livros sagrados das principais religiões

monoteístas até a história recente, a guerra (“por que a fazemos? Devemos? Podemos

evitá-la?”) tem sido objeto de elucubração por parte de estudiosos e indivíduos em geral.

Consequentemente, no bojo de tais reflexões, como seu oposto/negativo, a paz também.

Assim, cada estudo sobre a guerra e seu universo tende a oferecer também uma

perspectiva sobre a paz.

Sobretudo a partir do século XX, uma nova tendência se consolida: a de pensar a

paz não como uma “conclusão periférica”, derivada de alguma reflexão sobre a guerra, e

sim como elemento principal (“do que é composta? Há uma estratégia para alcançá-la?”).

O conjunto de estudos que tomam como referencial/objetivo a paz/pacificação

refletem o pressuposto de que “a paz pode e deve incluir não apenas a ausência de guerra

(‘paz negativa’), mas o estabelecimento de valores e estruturas afirmativas e que tornam a

vida melhor (‘paz positiva’)”11. Sendo assim, são confeccionados utilizando aportes de

diferentes disciplinas e áreas do conhecimento (como Psicologia, História, Ciências Sociais,

Economia, entre outras), mantendo em comum o foco no tema da paz e seu universo

relacionado (o conflito, a violência, entre outros).

Neste tópico, apresentaremos brevemente os elementos constitutivos de duas

disciplinas voltadas ao tema: A Investigação para a Paz e a Educação para a Paz.

10

BOBBIO, 2003, p. 140. 11

BARASH, 2010, p.2. Tradução nossa.

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7

1.1.1. Pesquisa

A temática da paz tem sido objeto de estudo e reflexão filosófica já há alguns

séculos, tendo se adensado no século XIX, e emergido com status científico no século XX12,

no período posterior à segunda guerra, recebendo contribuições de diferentes áreas, como a

Psicologia e a Ciência Política. Esse campo constituído de estudos sobre a paz se manifesta

por meio de diversas publicações, conferências e centros de pesquisa em nível universitário,

voltados para o estudo do tema, inseridos dentro do domínio disciplinar denominado de

Polemologia, ou Irenologia, ou ainda por “Investigação/estudos para Paz”13, e pelo anglófono

peace research14.

Os primeiros institutos de estudos sobre a paz apareceram, sobretudo, na região do

Atlântico Norte15, estando até hoje fortemente concentrados nesses países, apesar de sua

disseminação por alguns outros países e continentes do globo.

Como campo de estudos, possui como uma de suas características marcantes a

multiplicidade de abordagens e objetos de análise, e a orientação – declaradamente

expressa em sua intitulação – para valores de pacificação.

Apesar da divergência terminológica presente no próprio “nome de batismo” do

campo de estudos, a análise possui base em comum, onde

[...] a própria problemática da paz está sendo circunscrita de forma abrangente, incluindo questões do psiquismo humano, da organização socioeconômica e política e também do plano cultural. Proliferam estudos sobre cultura de violência/cultura de paz, estimulados, especialmente, pela UNESCO. As análises partem do desvelamento dos mecanismos de formação de uma cultura de violência e pelo conhecimento do papel de certas [...] na expressão e produção da cultura de violência [...]

16

Sendo uma área francamente multidisciplinar e de forte associação política com o

mundo “ao seu redor”, a Investigação para a Paz passou por transformações em seu

desenvolvimento teórico, que caracterizaram “crises de identidade”, as quais a obrigaram a

se repensar enquanto agenda e enquanto parte integrante das Ciências Sociais Aplicadas17.

Com a falência do sistema imperial e as convulsões sociais ocorridas a partir do

período do Pós-Guerra, uma nova agenda sócio-econômica se torna presente, afetando,

12

GUIMARÃES, 2005. 13

Referência no tratamento da temática em Língua Portuguesa, a Universidade de Coimbra, em Portugal, possui um núcleo devotado ao estudo da paz. Para mais informações sobre o NEP- Núcleo de Estudos para a Paz, acessar: http://www.ces.uc.pt/nucleos/nep/pages/pt/apresentacao.php. 14

Wiberg (2005, p.21) nos lembra que: “[...] muitas línguas traduzem directamente[sic] a expressão, limitando–se a juntar as palavras “investigação” e “paz”; outras línguas utilizam uma ou outra versão do francês “polemologie”, e algumas recorrem ainda a outras expressões. Há muitos institutos que ostentam, no respectivo nome, diferentes combinações dos termos “paz”, “conflito”, e outros mais”. 15

Ibid. 16

GUIMARÃES, 2005, pp. 20-21. 17

WIBERG, 2005.

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8

como não poderia deixar de ser, o pacifismo e o campo dos estudos para a Paz. Dessa

maneira,

[...] tivera já início o alargamento da Investigação para a Paz mediante a incorporação de novas tradições, incluindo de outras partes do mundo. A crise opôs os protagonistas da “velha agenda” (que estudava as causas da guerra, as dinâmicas armamentistas, os sistemas de paz, etc.) à “nova agenda”, que propunha debruçar-se sobre a exploração, a dominação e a dependência, o imperialismo, etc.

18

Tal dicotomia entre as duas tendências antagonistas foi aos poucos se

neutralizando, contribuindo para a ampliação de enfoques e convivência entre diferentes

abordagens no interior do mesmo domínio científico. Como esclarece Guimarães19,

duas áreas de pesquisa são, especialmente, desenvolvidas. A primeira, relacionada com a busca de métodos de pôr fim às guerras – chamada por essa tradição de paz negativa -, procura entender as teorias gerais de conflito e sua resolução, seja entre indivíduos grupos ou nações. Assim, desenvolvem-se estudos sobre alguns conflitos de relevância histórica, bem como o recurso a técnicas de experimentação com pequenos grupos, simulação, construção de modelos de acordo com a teoria dos jogos. Ligada à questão do conflito, a problemática do armamentismo, desarmamento e dissuasão nuclear recebeu atenção especial. A guerra é vista não apenas como imoral e inumana, mas também inefetiva. A segunda área concentra-se na busca das condições de estabelecimento da paz – a assim chamada paz positiva -, de forma que as temáticas de estudo relacionam-se com as possibilidades de cooperação e integração internacional. Aqui, ocupam lugar de destaque, os problemas relativos ao desenvolvimento econômico.

A possibilidade de convivência entre duas abordagens diferentes foi, ao longo do

tempo, traduzindo-se em um movimento consensual em direção a uma importante

modificação epistemológica: a passagem de uma concepção negativa de paz para uma

positiva. Ou seja, a transição de uma definição conceitual pautada pela negação e ausência

de algo para uma que funciona a partir da constatação da presença de determinada coisa

(justiça social, por exemplo), corrigindo o equívoco diagnosticado por Martinez Guzmán20 ao

declarar que: “”[...] parecia que aprendíamos sobre a paz a partir do que não é a paz, a partir

da análise da violência e das guerras [...]”.

A crítica de Guzmán pode ser percebida, em grande parte, como dirigida aos efeitos

gerados pelo importante estudo de Johan Galtung, que define a Investigação para a paz

como

o estudo das condições que permitem passar de uma situação caracterizada pela instituição social da guerra a uma situação de paz, forjando um conceito de paz estritamente ligado ao conceito de mudança

18

WIBERG, 2005, p.24. 19

GUIMARÃES, 2005, p.63. 20

MARTINEZ GUZMAN, 2005, p.56.

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social e unindo intimamente a teoria da paz com a teoria do desenvolvimento

21

E, apesar de realizar uma importante distinção entre violência22 estrutural e direta e

definir a paz como ausência de violências em geral e não apenas de conflito armado

(modificando, portanto, o foco do problema, indo em direção a uma concepção positiva de

paz), o pensamento galtungiano parte do princípio de que “qualquer análise da paz deveria

vincular-se a uma análise da violência[...]”23.

Em síntese, diversos debates permearam – e ainda permeiam – a Investigação para

a Paz: sua estrutura epistemológica; sua filiação ao campo circunscrito das Ciências

Políticas, das Relações Internacionais, ou sua independência cognitiva enquanto disciplina;

sua aplicabilidade efetiva, no sentido de ser orientada para a criação e implantação de

políticas concretas; sua questionável “imparcialidade” e objetividade científicas, já que as

estruturas – desiguais – sócio-político-econômicas entre as partes de um conflito também se

refletem no desenvolver de uma resolução para o mesmo; a legitimidade ou não do

emprego político da violência, etc. Evidentemente, tais problemáticas – específicas – não

serão tratadas no presente trabalho, por não constituírem parte integrante do foco de nossa

análise, ou mesmo do nosso objeto de estudo (o Museu da Paz); todavia, torna-se

importante notar - como diagnosticou Simon Schwartzman em 1965 -:

a pouca repercussão do peace research nos meios brasileiros, seja pelas características institucionais que esses estudos requerem em confronto com o pouco desenvolvimento científico, seja por preconceitos em relação a esses mesmos estudos. (1965, p. 109). O fato é que a tradição da ciência social , tal como foi desenvolvida no Brasil, não absorveu a investigação para a paz, quase classificando-a como um gênero de segunda necessidade. Assim, nos próprios grupos que desenvolvem trabalhos de educação para a paz no Brasil, essa tradição é praticamente desconhecida, ou reservada a raros iniciados, o que nos deixa longe dos avanços conceituais por ela determinados

24

Esse excerto nos chama também a atenção para a aplicação pedagógica de um

conjunto de ideias voltadas para os valores da paz, instrumentalizando assim o processo de

pacificação.

Sendo assim, é sobre Educação para a Paz que trataremos a seguir.

21

GUIMARÃES, 2005, p. 64. 22

“Analisando o conceito no contexto da sociedade contemporânea, percebe-se que VIOLÊNCIA não é um fenômeno natural, que se possa explicar através de ideias como ‘a maldade inerente ao ser humano’ ou a simples oposição entre bem e mal, como se houvesse uma pré-determinação natural para a prática de atos violentos em alguns indivíduos ou grupos em maior proporção do que em outros. A compreensão do que é violência deve se dar de forma mais ampla, através da análise global da sociedade, pois a violência pode estar vinculada aos aspectos culturais, às questões sociais e de saúde pública, ao planejamento urbano e ambiental, enfim às questões financeira e administrativa das cidades” (COSTA, 2001, p. 121). 23

GALTUNG, 1985 apud GUIMARÃES, 2005, p.64. 24

SCHWARTZMAN, 1965 apud GUIMARÃES, 2005, p. 66.

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1.1.2. Educação

“Um museu da paz desempenha um importante papel como um centro de educação

para a paz [tradução nossa]”, enfatizam Kazuyo Yamane25 e outros autores26, em alguns dos

seus textos. Contudo, ao leitor pouco familiarizado com o tema, dificilmente fica claro a que

conjunto de práticas pedagógicas os autores se referem, tornando-se necessária uma breve

explanação sobre o assunto.

A Educação para a Paz pode ser descrita, em linhas gerais, como um sistema de

objetivos, um arcabouço teórico e metodológico, orientado por e em direção a um conjunto

de valores usualmente classificados como uma “cultura de paz”. Possuindo diversas

“tradições” interpretativas (como a dos movimentos de renovação pedagógica, a tradição

piagetiana sócio-afetiva, a da não-violência ghandiana e sua satyagraha, etc.), a educação

voltada para a constituição de uma cultura de paz alicerça-se, sobretudo, na concepção de

mundo defendida por organismos internacionais tais como a Unesco e a ONU,

responsáveis, essencialmente, pela manutenção e instituição da paz global; e que

professam ideais como o de que a paz é uma construção humanamente possível - assim

como a guerra -, e que, em sua busca processual, devem ser priorizados os valores

universais que fundamentam uma cultura (da paz), tais como a promoção dos direitos

humanos e das liberdades individuais, a igualdade de direitos e a não-violência.

Em síntese, podemos inferir que a educação para a paz, na tradição citada, é um

processo dinâmico e participativo, voltado à resolução de conflitos de maneira não-violenta,

em consonância com os ideais professados na Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Trata-se de uma vertente educacional que possui grande apoio por parte de órgãos

internacionais como a UNESCO, e que é considerada de fundamental importância como um

instrumento para a pacificação e a implantação de uma cultura de paz - além de possuir

entre o seu rol de pensadores educadores mundialmente reconhecidos, como Maria

Montessori27, Piaget e Paulo Freire.

Não se trata de uma educação composta apenas pela transmissão de conteúdos

ligados aos conflitos internacionais e movimentos pela paz e sim pela conjugação entre

conteúdo e forma, combinando o processo de ensino (cooperação, pensamento crítico,

conhecimentos) com as atitudes e valores englobados numa cultura de paz (tolerância,

igualdade, entre outros). “Educação é ao mesmo tempo conteúdo e método”28. Isso implica,

25

YAMANE, 1993, p.4. 26

Como o já citado Terrence Duffy e Äke Bjerstedt, sobre o qual se pode conferir: BJERSTEDT, 1993. 27

Sendo esta autora do que é considerada a primeira teorização sobre o assunto (GUIMARÃES, 2005), e mente responsável por articular algumas reflexões particularmente brilhantes, como as de que: “evitar os conflitos é obra da política: construir a paz é obra da educação” (MONTESSORI, 1951 apud GUIMARÃES, 2005, p. 44) 28

WADLOW, 2000 apud GUIMARÃES, 2005, p. 213.

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por exemplo: adoção de dinâmicas que propiciem a cooperação e a resolução de conflitos;

inserção de temas do cotidiano na rotina dos alunos; reflexão sobre a Diferença e como lidar

com ela; desconstrução das relações de autoridade e obediência... Enfim, a adoção

transversal de posturas e práticas de paz

Embora possa parecer à primeira vista como algo exótico, devemos ter em mente

que regimes autoritários controlam rigidamente seus respectivos sistemas pedagógicos

(ditando uma pedagogia restritiva e que incite nacionalismos belicosos), o que denota a

relevância sumária da Educação para a construção da sociedade que desejamos. Em suma,

a base argumentativa que sustenta o ideário da Educação Para a Paz é a de que não pode

haver paz sem uma educação para tal29.

Como preconiza a UNESCO em sua Constituição:

Já que as guerras nascem nas mentes dos homens, é nas mentes dos homens que as defesas da paz devem ser construídas. [...] a grande e terrível guerra que agora terminou foi uma guerra que se tornou possível pela negação dos princípios democráticos da dignidade, igualdade e respeito mútuo dos homens, e pela propagação, em seu lugar, através da ignorância e do preconceito, da doutrina da desigualdade dos homens e da raça; [...] a ampla difusão da cultura, e da educação da humanidade para a justiça, a liberdade e a paz são indispensáveis para a dignidade do homem e constituem um dever sagrado que todas nações devem realizar num espírito de assistência e interesse mútuo

30

É preciso que reconheçamos que a paz também se aprende.

1.2. Uma breve história de movimentos e ideias

Para compreendermos a legitimidade da atuação do museu enquanto elemento de

militância em prol da paz é fundamental que tenhamos em mente a dimensão

essencialmente social31 de tal conceito e seu itinerário de significação. Neste momento,

portanto, apresentaremos uma trajetória sintética do percurso do conceito de paz no

Ocidente através dos séculos mesclando-o com informações a respeito dos movimentos

pacifistas.

Historicamente, a idéia que se faz de “paz” foi interpretada de múltiplas maneiras, por

civilizações e sociedades diversas, em momentos cronológicos distintos, caracterizando,

dessa forma, conjuntos de compreensão e de vivência que podemos denominar como

tradições de interpretação. Mencionaremos algumas brevemente.

29

WEINER, [----]. 30

UNESCO, 2002, não paginado. 31

Pois se considerarmos o conceito de paz como algo que deriva apenas de uma propensão individual (a ideia de “paz interior”), não pode haver espaço para a atuação do Museu.

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1.2.1. A paz entre mitologias e religiões

Na matriz clássica grega, no plano mitológico, às importantes divindades da natureza

conhecidas como “As Horas”32 (Talo, Carpo e Auxo33), filhas de Zeus e Têmis, cabia o papel

de acompanhar os grandes deuses e certos heróis, além de guardar as portas do céu.

Ligadas à vegetação – personificando alguns períodos do tempo - são divindades cujos

poderes estão atrelados à ideia de semear, medrar e frutificar34. Eirene, uma das Horas,

também era considerada e venerada pelos gregos como a personificação da paz.

Representada como uma bela jovem, sua existência no imaginário grego nos indica a idéia

fugaz que os gregos alimentavam da paz – afinal, ela representava um período do tempo –

e sua relação fraterna com a justiça e a ordem; nomeadamente, Eunomia e Diqué [Diké]35.

Para os romanos, o conceito de paz era originalmente terreno, destituído de aura

mítico-sobrenatural, e, sobretudo, armado. Dimensão dominadora da paz, a Pax Romana

emana da autoridade, e é algo passível de estabelecimento pelo poder central e instituído,

proveniente da segurança das armas36. É uma paz instituída verticalmente. É também um

conceito de paz que nos é bastante familiar, pois,

por seus significados práticos, é uma tradição que obteve imensa repercussão no Ocidente, ainda hoje muito presente no senso comum e nas diversas instituições e organizações da sociedade, como o exército, muitas vezes definido como força e escola de paz

37.

Durante muito tempo a paz foi predominantemente uma questão de base religiosa.

Sacerdotes interpretando textos sagrados “abraçaram os ensinamentos de amor e

compaixão em doutrinas religiosas”38. Ao mesmo tempo em que a religião foi catalisadora de

inúmeros conflitos, serviu também, ainda que paradoxalmente, como inspiração para paz.

Sendo assim, contornaremos neste momento problematizações a respeito de possíveis

deturpações de natureza política de ensinamentos teológicos e focalizaremos apenas a

base religiosa da compreensão da ideia de paz, já que a religião exerceu um papel sumário

nos processos civilizatórios.

Todas as grandes religiões possuem imperativos de amor ao próximo39 e de recusa

do mal. Elas não preconizam, contudo, apenas uma ideia de paz estóica, individualizante,

sem relação mais profunda com plano social. Há, mesmo nos ensinamentos religiosos, um

32

VICTORIA, 2000, p. 72. 33

São os nomes que os atenienses davam às divindades: Eunomia (ordem), Diqué (justiça) e Eirene 34

No caso, a divindade Eirene. 35

UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE, 2009. 36

Vale lembrar o ensinamento: “se queres a paz, prepara-te para a guerra”. 37

GUIMARÃES, 2005, p.98 38

CORTRIGHT, 2009, p. 2. Tradução nossa. 39

Ibid.

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entendimento de paz como atuação e transformação na vida coletiva. Uma proposta ética a

ser seguida; ou, no termo sugerido por Paul Lederach: uma imaginação moral.

O Budismo e o Hinduísmo têm como princípio a não-aflição de dor ao outro (ahimsa),

que significa não apenas uma noção passiva, mas sim o reconhecimento impositivo de um

compromisso para a proteção desse princípio (o de agir para prevenir a imputação de mal

ao outro), o que influenciará Ghandi na formulação da Satyagraha como método de não-

violência como ação política revolucionária.

O islã emerge “a partir do chamado do profeta para restaurar a ética tribal de

igualitarismo e pôr fim à injustiça para com o fraco e vulnerável”40. Embora seja usualmente

encarado como um credo “violento” (em virtude dos conflitos geopolíticos da atualidade) e

não tenha inspirado grandes movimento pautados pela não-violência, “conceitos de paz são

a base do ensinamento muçulmano”41. Além disso, por enfatizar a busca por “justiça social”

como um dever pessoal, o Islã conjuga uma ideia de paz irmanada com justiça. Não há,

contudo, uma recusa absoluta do uso de violência, como sugere o termo jihad, ao propor o

enfrentamento do pecado e da opressão42.

Na tradição judaica, em sua filiação aos textos religiosos, a paz aparece com

conotações pactuais43, intercedida pela figura divina, além de positivamente definida. A

ênfase se dá num comportamento ético através da benevolência divina e universal. Tal

oposição ao militarismo romano será aprofundada pelo cristianismo primitivo, no qual “a paz

é um dom messiânico e não apenas uma simples disposição da alma”44.

Portanto, a tradição judaico-cristã rechaça o que poderíamos chamar de “concepção

belicosa de paz” (romana) e recupera o elemento divino, de uma maneira que se

assemelha, apenas em determinados aspectos, aos gregos antigos. Para os judeus e

cristãos primitivos, não obtemos a paz assegurando-a através da construção de muralhas

altas e imensos exércitos, assim como também não a vivemos (ainda que provisoriamente)

prestando adoração a uma divindade ou conjunto delas. Alcançamos a paz a partir de uma

propensão interior, de uma vontade de espírito, e através de um pacto com o próprio Deus

40

CORTRIGHT, 2009, p. 184. Tradução nossa. 41

Ibid., p. 190. Tradução nossa. 42

Há um debate teológico sobre o significado preciso do ensinamento do Profeta. A literatura de peace studies sugere que a jihad possa ser o equivalente islâmico da doutrina de guerra justa, que o mundo Ocidental

desenvolveu com base no Cristianismo, que deixou de repudiar absolutamente o uso da violência, como preconizava aquando de sua vertente primitiva. 43

“a simbólica da paz funde-se com a simbólica esponsal da aliança. Essa mesma conotação de aliança dá origem aos mais conhecidos símbolos da paz: a pomba e o ramo de oliveira. O relato se encontra em Gn 8, dentro do ciclo de Noé e da narrativa sobre o dilúvio. Após os 40 dias de dilúvio, Noé soltou uma pomba para a ver se as águas haviam baixado na superfície do solo. A pomba, não encontrando onde pousar, voltou a ele na arca. Sete dias depois, soltou novamente a pomba que voltou a ele, tendo no bico um ramo novo de oliveira, sinal da vida que renasce após a catástrofe (Gn 8, 6-11). Após esse relato, firma-se uma aliança entre a humanidade e Deus (Gn 9)” (GUIMARÃES, 2005, p. 102). 44

Ibid., p. 104.

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único, agindo de acordo com seus desígnios, de maneira obediente. Presumivelmente, por

sua filiação a um modelo de civilização disseminado por grande parte do globo, essa

tradição nos deixou um legado referencial que dificilmente pode ser contornado, além de,

historicamente, ter se mesclado e se deixado influenciar por outras visões de mundo, sendo

uma delas a própria concepção romana de paz.

Com a consolidação da paz romana imperial, ou seja, a vivência de um período

singular de estabilidade social e política, a simbólica romana de paz sofre um

entrelaçamento com o estoicismo. A visão de paz passa por um movimento de

interiorização, deixando de estar atrelada às condições externas, em oposição às ameaças

dos inimigos da República. Para os romanos, a paz, que até então possuía um significado

objetivo, a ser alcançado pelo poder instituído em prol de todos os cidadãos, toma ares de

subjetividade, transformando-se em uma empreitada individual, embebida de estoicismo.

Os ensinamentos do Judaísmo e Cristianismo, somados aos legados da Grécia e

Roma antigas são certamente as grandes contribuições que ajudaram o Ocidente a formular

uma ideia de paz. Contudo, a interpretação dessa idéia não permaneceu imutável desde

então, sofrendo, ao longo da história, novas influências e re-avaliações que ampararam a

moldagem do pensamento que nós, sociedade contemporânea, fazemos de paz, de maneira

consciente ou não.

1.2.2. A paz segundo o pensamento filosófico

Presumivelmente, um dos fundamentos teóricos da reflexão ocidental sobre essa

questão é o pensamento platônico. Nele, as virtudes desejáveis emergem costumeiramente

da subordinação da paixão à razão45; o mesmo se dá com a paz, tida mais como o contrário

da discórdia e da sedição do que da guerra em si. Para Platão, “a guerra deve unificar os

contrários, afrontar as oposições e resolvê-las na sábia subordinação do inferior ao

superior”46.

Em um processo histórico, o Cristianismo se apropriou aos poucos de influências

platônicas e de certo estoicismo, como o contido na idéia que aos poucos se torna

hegemônica de “paz da alma”. Essa cristianização do pensamento de Platão passa, sem

dúvida, pela contribuição filosófico-teológica que vai representar Santo Agostinho com seu

edifício conceitual, erigido em defesa da ordem. Fiel representante de uma religião que se

consolidava ao mesmo tempo em que modificava antigos pressupostos, a reflexão de Santo

Agostinho é expoente de um novo Cristianismo, que, diferentemente de sua matriz primitiva,

45

PLATÃO, 2004. 46

Ibid., p. 107.

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não era mais avesso ao conflito armado, abandonando assim seu antimilitarismo antes

patente. Tal modificação do pensamento cristão é de fundamental importância para

compreendermos como um cristianismo que em sua fase primitiva e perseguida pregava o

antimilitarismo - em uma afronta aos romanos -, após o adensamento de seu processo de

consolidação, rompe com algumas de suas mais importantes características originais.

Essa transformação possibilita o surgimento de uma doutrina que se tornaria

extremamente influente no mundo político: a da guerra justa. Antes condenada em absoluto,

o uso da violência passa a ter sua pertinência debatida e aceita. Assim, uma religião que

antes era perseguida e que em sua matriz condenava o conflito armado, passa a admitir o

uso da força em nome de Deus, abrindo caminho para as Cruzadas e o assassínio em nome

da fé.

O surgimento do Renascimento e o esfacelamento de velhos paradigmas político-

econômicos do mundo medieval e de seu Cristianismo engendram novas e importantes

problematizações da paz, em termos renovados e dessacralizados. A paz que, como vimos,

desde os gregos antigos, apresentava uma feição que se relacionava em algum sentido com

um plano mítico-religioso, se insere no universo desse homem renascentista, do

Humanismo, de uma humanidade que se encontra repensando seus estreitos (e sufocantes)

laços com a instituição religiosa. É o caso de nomes como Erasmo de Roterdã, que se opõe

à ideia da fundamentação da guerra como parte integrante da natureza humana, e ao

cristianismo belicoso.

No contratualismo de Hobbes, a busca pela paz, instigada pelo instinto de

conservação, leva o Homem, guiado pela razão, a instituir o pacto social, afastando-se de

seu estado natural, belicoso, de “todos contra todos”. Não sendo somente ele capaz de

garantir sua manutenção, Hobbes defende no Leviatã47 um poder absoluto e soberano,

responsável por garantir paz, segurança e prosperidade. Hobbes não deposita na religião,

entretanto, nenhuma confiança entusiástica; pelo contrário, para ele o poder de decisão

sobre matéria religiosa deve também estar nas mãos do soberano, para que a religião não

ameace a paz civil. Para ele, portanto, a paz é algo que emana do estado soberano e com

ele se identifica de maneira quase total, já que ele, e apenas ele, é capaz de mantê-la de

maneira eficaz.

Para Locke – opondo-se a Hobbes – o estado natural no qual se encontram os

homens não é marcado pela guerra de todos contra todos, mas sim pela divisão da

responsabilidade sobre o tema. Em outras palavras, “no estado natural todos os homens

47

HOBBES, 2004.

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teriam o destino de preservar a paz e a humanidade e evitar ferir os direitos dos outros”48.

Os homens se uniriam no pacto social apenas para garantir essa assertiva do direito natural

e, assim, manter a paz, “pois onde há uma autoridade, um poder sobre a terra, onde se

pode obter reparação através de recurso, está excluída a continuidade do estado de

guerra”49; o Estado em Locke é, portanto, o interlocutor que garante a pacificação.

Espinosa afirma50, em seu tratado político, que “conhece-se, facilmente, qual é a

condição de qualquer Estado considerando o fim em vista do qual um estado civil se funda;

este fim não é senão a paz e a segurança da vida”, e, por conseguinte, “o melhor governo é

aquele sob o qual os homens passam a sua vida em concórdia e aquele cujas leis são

observadas sem violação”. Isso nos revela que, para Espinosa, assim como para os

contratualistas citados, o Estado existe para manter e assegurar a paz.

Mas Espinosa certamente não legitimaria a tese de Hobbes em defesa do poder

soberano absoluto como condição sine qua non da paz. Apesar de reconhecer que “a

experiência parece, todavia, ensinar que, no interesse da paz e da concórdia, é conveniente

que todo poder pertença a um só”51, o filósofo mostra-se friamente contrário à tentação

pacificadora autoritária, quando complementa seu raciocínio argumentando que

se a paz tem de possuir o nome de servidão, barbárie e solidão, nada há mais lamentável para o homem do que a paz. É, pois, a servidão, e não a paz, que requer que todo o poder esteja nas mãos de um só; tal como já dissemos, a paz não consiste na ausência de guerra, mas na união das almas, isto é, na concórdia

52

Os Contratualistas e Espinosa, portanto, buscam racionalizar a ideia de paz,

teorizando sobre o papel do Estado na sua efetivação e manutenção. Immanuel Kant é

também representante desse mesmo movimento de reflexão política sobre a paz, embora

produzindo tempos depois, no século XVIII. Dedicando um tratado inteiramente ao tema (“À

Paz Perpétua”), Kant elabora uma análise sobre as possibilidades da paz duradoura

(perpétua), oferecendo um projeto filosófico e uma agenda de ação que continha os artigos

que precisavam ser seguidos para sua concretização53. A paz de Kant é, sobretudo, uma

paz jurídica, que se impõe pela via do direito, com grande atenção ao direito internacional;

uma paz legalista, alcançada através do sistema jurídico e da existência de pré-requisitos de

ordem do sistema de governo e do regime político, e não uma paz militarista.

48

MARTINS; MONTEIRO, 2004, p. 15. 49

LOCKE, 1994 apud GUIMARÃES, 2005, p. 113. 50

ESPINOSA, 2004, pp. 458-459 51

Ibid., p. 461. 52

Ibid., pp. 161-162. 53

Seu tratado contém também a defesa do republicanismo e da organização federativa dos Estados nacionais em nome da construção da paz, sem que isso implicasse em perda de autonomia de nenhuma das partes, prenunciando assim, em 1792, em grande parte, a criação da Organização das Nações Unidas, que somente ocorreria séculos depois. Cf. Kant, 2008.

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A paz passa a fazer parte de um projeto moderno contra a realidade de guerras

sucessivas, adquirindo assim uma dimensão processual, de algo a ser construído,

diferentemente de um dos pólos entre dois absolutos (guerra e não-guerra).

É importante, porém, não deixar de mencionar idéias que fogem dos domínios da

razão pura, como as de Nietzsche. O vitalismo nietzschiano enxerga na guerra uma força

essencial do seres humanos. Apesar da conotação nem sempre precisa que o autor

emprega ao se valer do termo “guerra” (que às vezes parece significar apenas “conflito”), o

pensamento nietzschiano dificilmente pode ser utilizado como afirmação das possibilidades

e da necessidade de paz. Nietzsche enxerga, na verdade, “a guerra como uma etapa no

desenvolvimento da humanidade, uma espécie de sono ou inverno da cultura, de onde o

homem sai mais forte”54. Contudo, a visão que ele estabelece sobre a relação entre a guerra

e a paz ao longo de sua obra oferece nuances55, além de exigir uma interpretação que leve

em consideração algumas características fundamentais do pensamento do autor, como a

maneira com que ele tematiza a força vital dos indivíduos e a ação, e o caráter

essencialmente trágico da existência. De maneira sintética, podemos observar que a

rejeição de Nietzsche pela ideia de paz é fruto da associação que o autor elabora entre a

paz e a ausência de vontade de potência; de acúmulo de força e afirmação da vida. Ele

identifica nela a presença de uma “moral dos escravos”56, favorecendo a obediência e a

convivência, sublimando o conflito, algo tão caro ao pensador alemão. A lição que o debate

sobre a paz deve colher no pensamento de Nietzsche é de que o conflito é uma realidade

incontornável, imanente à nossa organização social – e, portanto, parte integrante da nossa

existência.

A filosofia de Friedrich Nietzsche, com sua constante referência aos instintos, ao

corpo e à vida, representa também uma crítica à desenfreada racionalização ocidental; uma

denúncia da “socratização” por que passou o ocidente. Trazendo o corpo e os instintos para

o primeiro plano, ela nos impõe a revisão de uma visão asséptica e pusilânime de paz, como

algo estéril, livre de conflito, de poder, e, portanto de vida. Recuperando o valor dos nossos

instintos naturais, o pensamento nietzschiano nos provoca a admitir nossa organicidade e

tragédia.

No período do pós-guerra, por volta de 1919, a Europa se encontra atordoada com

os efeitos geopolíticos e a carnificina gerada pelo conflito, até então em uma magnitude

54

Nietzsche, 2005, p. 145. 55

GUIMARÃES, 2005. 56

“Para analisar o valor da nossa moral, Nietzsche vai opor dois universos espirituais: o dos senhores e o dos escravos. [...] Nossa moral é de escravos, e seus valores vão se tecendo em torno de um certo ideal de convivência. Nosso imaginário social desenha como ponto ótimo uma convivência isenta de conflitos, em que se pensa que vivemos nossa ‘felicidade’. Se esses indivíduos não entram em conflito, é porque não aspiram a mais nada, suas vontades estão paralisadas[...]” (ABRÃO, 2004, p. 414).

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jamais vista e empregando inovações bélicas aterradoras, como a aviação e o uso de armas

químicas. Numa onda de pacifismo e buscando criar mecanismos que impedissem um novo

conflito, as potências europeias debatem a criação de uma comunidade internacional (o que

viria a ser a Liga – ou Sociedade - das Nações), que pudesse mediar os conflitos entre os

países.

Nesse contexto, em 1926, foi criado o Instituto Internacional da Cooperação

Intelectual, que tinha como objetivo

fortalecer a colaboração entre intelectuais de cultura e nacionalidade distintas, a fim de criar condições propícias ao surgimento de um novo humanismo, com o escopo de respaldar os esforços da SDN [Sociedade das Nações] em prol da paz

57

Como membro atuante nos trabalhos da Sociedade das Nações, Albert Einstein é

convidado a se corresponder com alguma outra grande mente sobre o tema que lhe

apetecesse. Einstein, pacifista, escolhe se corresponder com Sigmund Freud em busca que

esse lhe expusesse suas ideias sobre a causa das guerras e sobre a possibilidade de sua

extinção58.

A resposta de Freud não é exatamente animadora. Politicamente cético com relação

ao sucesso que a Sociedade das Nações poderia obter (ceticismo esse compartilhado por

Einstein, em menor dose), Freud soma à sua argumentação as teorias psicanalíticas que

vinha desenvolvendo até então.

O ideário freudiano, apesar de não constituir, a rigor, uma “filosofia” (e significar,

portanto, um caso singular em nossa abordagem), foi responsável por uma verdadeira

revolução no pensamento, ao desvelar o inconsciente através da invenção da Psicanálise e

promover o descentramento do sujeito, implicando, dessa forma, na revisão e re-

interpretação de grande parte da “filosofia do sujeito” até então existente59. É, nesse

aspecto, o representante paradigmático da contribuição da Psicanálise para o pensamento

sobre a guerra neste estudo.

Indicando a presença de potências divergentes no fundamento da subjetividade,

como o amor (Eros) e a discórdia (Tanatos ), em uma oposição insuperável60, o pensamento

freudiano pode ser visto, sob esse aspecto, como um complemento à crítica nietzschiana da

racionalidade, da socratização de nossa civilização. O descentramento do sujeito

representa, para a reflexão sobre a paz, um golpe em qualquer concepção que advogasse

57

SEINTENFUS, 2005, p. 9. 58

Ver UM DIÁLOGO, 2005. 59

BIRMAN, 2003. 60

Ibid.

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uma paz asséptica, livre de conflito e construída sob o dogma absoluto da razão suprema, já

que demonstra as limitações do ser consciente e racional.

O conceito de pulsão com que Freud trabalha, situado na fronteira entre o mental e o

somático, como o representante psíquico dos estímulos que se originam no corpo - dentro

do organismo - e alcançam a mente, mescla-se com a ideia de discórdia (Tanatos),

passando a adquirir também o epíteto de pulsão de morte (em oposição à de vida), o que se

aproxima não apenas da vontade de destruição schopenhaueriana, mas da “filosofia trágica”

de que Nietzsche é sumo representante61.

Além disso, Freud, assim como Nietzsche, enfatiza certa animosidade (lembremos

da constante referência nietzschiana aos instintos) inerente ao ser humano, chegando

mesmo a declarar nominalmente62 seu caráter de “besta selvagem, que nem sequer”

respeita “os membros de sua própria espécie”.

Para Freud, o instinto de morte leva ao suicídio quando internalizado, ao homicídio

quando externado, e à guerra quando coletivizado63. Há, dessa maneira, uma conexão

direta entre o comportamento individual (agressão) e o fenômeno social da guerra.

Isso não coloca de maneira fatal, contudo, a impossibilidade de paz para o

pensamento contemporâneo, seja como ausência de guerra ou de violência.

O pensamento freudiano não se traduz na subscrição da guerra como elemento fatal

e incontornável, sobre o qual nada poderia ser pensado ou feito além de hastear bandeiras

brancas quando do esgotamento de recursos. Para ele,

Não há maneira de eliminar totalmente os impulsos agressivos do homem; pode-se tentar desviá-los num grau tal que não necessitem encontrar expressão na guerra. [...] Se o desejo de aderir à guerra é um efeito do instinto destrutivo, a recomendação mais evidente será contrapor-lhe seu antagonista, Eros. Tudo o que favorece os homens deve atuar contra a guerra

64.

O conflito existe, ele apenas não necessita de manifestação unicamente através da

violência, como aponta Muller65 ao lembrar que é a agressividade que está inscrita na

natureza humana, e não a violência. “a guerra se constitui na mais óbvia oposição à atitude

psíquica que nos foi incutida no processo de civilização, e por esse motivo não podemos

evitar nos rebelar contra ela; simplesmente não podemos mais nos conformar com ela”66.

61

Como aponta Joel Birman (2003, p.73): “a pulsão de morte, como potência da discórdia, em oposição à pulsão de vida, seria o signo mais eloquente da inscrição do discurso freudiano no registro do trágico”. 62

FREUD, 1930 apud GUTIÉRREZ-TERRAZAS, 2002, p.98. 63

GREGOR, 1996. 64

FREUD, 2005, p. 45. 65

1995 apud GUIMARÃES, 2005, p. 197. 66

FREUD, 2005, p.46.

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1.2.3. O pacifismo

Nas palavras de David Cortright, “através da história, a causa da paz tem estado em

julgamento como um réu esquecido na corte da opinião estabelecida, incompreendida e

malquista por todos os lados”67. Faz-se importante, portanto, apreciá-la.

É a partir do século XIX que a causa do pacifismo toma fôlego, na forma e

organizações pioneiras conhecidas como sociedades em prol da paz (peace societies),

sobretudo na Inglaterra e nos EUA. Embora manifestações a favor da paz possam ter

ocorrido em período anterior da história, é nesse momento que as organizações da

sociedade civil começam a emergir no plano político, processo esse que se adensa

fortemente no século XX. As primeiras Sociedades professavam uma visão conservadora68

de paz, ao largo de temas mais controversos: “The London Peace Society descrevia paz

como algo unicamente humanitário e religioso, declarando em 1819, que ‘com política

partidária os amigos da paz não têm nada a ver. A causa é religiosa, não política’”69

Durante o século XIX, as Sociedades em Prol da Paz vão divergir basicamente a

respeito da recusa à guerra de maneira condicional ou absoluta, com as inglesas e norte-

americanas tendendo a uma visão que rejeitava a guerra em absoluto (a não-resistência

cristã70, que cria ser contrário aos ensinamentos de Jesus guerrear) enquanto as da Europa

continental tendiam a uma visão mais pragmática, condicional de paz.

Aos poucos, as Sociedades passaram a debater a relevância e causas ligadas à

justiça social para a luta pela paz (como o fim da escravidão, que provocou cisão entre os

membros de Sociedades norte-americanas) e a se articular em nível internacional,

realizando Congressos pela paz. Na segunda metade do século XIX, o cenário da luta pela

paz se tornou dicotomizado por duas frentes: a Ligue internationale et permanente de La

paix (de viés burguês e liberal, que cria que o importante era evitar guerras) e a Ligue

internationale de la paix et liberté (que cria que os direitos humanos e a justiça social

deveriam fazer parte de uma agenda unificada e igualmente importante para a paz), sendo a

última capitaneada pelas figuras de Victor Hugo e Giuseppe Garibaldi.

O termo pacifismo (e a designação “pacifistas”), que tanto usamos nos dias atuais,

foi cunhado apenas em 1901. Antes disso, os ativistas da causa da paz eram caracterizados

por diferentes nomenclaturas, como “advogados da paz”, “trabalhadores da paz”, ou, mais

67

CORTRIGHT, 2009, P. 1. Tradução nossa. 68

Era uma visão de paz reativa às turbulências sociais que acometiam a Europa. Não por acaso, granes industriais como Andrew Carnegie e Henry Ford defendiam a causa: a guerra é ruim para os negócios (desde que eles não envolvam armas), a paz conservadora favorece o acúmulo de riquezas. 69

COOPER, 1991 apud CORTRIGHT, 2009, p. 30. 70

Ibid.

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comumente, “amigos da paz”71. É Émile Arnaud de França quem introduz o termo

“pacifismo”, com o intuito de designar de maneira genérica os que militavam para prevenir a

guerra e garantir a paz.

É importante enfatizar que, nesse momento da História, a intenção era enfatizar que

“pacifismo significava também ação social. Não era apenas uma filosofia, mas um programa

político e um compromisso com mudança social”72. Arnaud cria o termo justamente para dar

conta de um momento em que ser “amigo da paz” não deveria apenas se limitar a uma

propensão religiosa ao bem ou a uma crença em um poder soberano (seja ele estatal ou

divino). A paz não era mais caso de reza ou de desejo, era caso de ação política: “nós não

somos do tipo passivo... nós somos pacifistas”73. Se a necessidade de atuação em prol da

paz era unânime, o mesmo não pode ser dito do que englobava exatamente a agenda do

pacifismo.

Mesmo antes de o termo surgir, já existia dissonância entre os diversos grupos

(religiosos ou não) em prol da paz. Podemos sintetizar essa discordância em três vertentes

gerais: a do pacifismo absoluto, que recusava a guerra sob qualquer hipótese; o pacifismo

condicional (também chamado de “restritivo ou “realista”), que advogava a necessidade de

conflito armado desde que resguardadas as possibilidades de resolução pacífica e apenas

em prol da defesa soberana (da vida da população ou do território); e a dos

internacionalistas74, que defendiam a mediação dos conflitos de maneira transnacional.

Com a Primeira Guerra Mundial, esse cenário é transformado. Não só o

internacionalismo se dissolve em um frenesi nacionalista - que arrasta as grandes potências

para a guerra -, como o conflito provoca um trauma generalizado no continente. Após o fim

da Guerra, o pacifismo passa a gozar de notoriedade inédita numa Europa recém-devastada

por um banho de sangue que fracionou impérios e populações. O pacifismo absoluto passa

a tomar força, e é esse o significado que o termo passa a ter como estabelecido; “pacifismo”

passa a ter como sentido o conjunto de ideias e ações que recusam a guerra de maneira

absoluta75.

Se a onda em prol da paz perpétua que varreu a Europa após a Primeira Guerra

fortaleceu o pacifismo e seus militantes, por outro foi responsável por abrir caminho para

sua desmoralização, que, hoje, podemos reconhecer como histórica. A dogmatização da

71

CORTRIGHT, 2009, p.8. Tradução nossa. 72

Ibid., p. 9. Tradução nossa. 73

COOPER,1991 apud CORTRIGHT, 2009, p. 9. Tradução nossa. 74

“o internacionalismo pode ser tanto conservador ou liberal. Pode enfatizar a preservação de estruturas existentes de poder ou buscar criar estruturas mais equânimes. Alguns veem os organismos internacionais como mantenedores da ordem estabelecida enquanto outro os veem como instrumentos de mudança social. [...] Pacifismo (entendido de maneira ampla) inclui internacionalismo, usualmente de natureza liberal, mas sua agenda é mais ampla e inclui um leque de outros temas [tradução nossa]” (CORTRIGHT, 2OO9, pp. 45-46) 75

Ibid.

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paz absoluta, a recusa sob qualquer hipótese em tomar ação militar e enérgica contra

qualquer povo passou a se traduzir em isolacionismo quando do surgimento e ascensão

nazifascistas em solo europeu, particularmente nos EUA76.

E, em contraste com a guerra de 1914-1918, que, como logo ficou claro para muitos dos vencedores, fora um erro colossal, a Segunda “Guerra Mundial” foi considerada de forma unânime, pelo lado vencedor, como uma guerra necessária, uma guerra que tinha de ser travada. [...] Esta que foi a menos controvertida das guerras modernas, cuja justiça foi ratificada pela revelação cabal do mal nazista quando a guerra terminou [...]

77

O silêncio e falta e ação europeus frente os acontecimentos que marcaram a

ascensão de Mussolini e Hitler foi condenado até mesmo por Gandhi78 e manchou a imagem

da agenda pacifista. Mesmo em consonância com os auspícios das grandes potências

européias, que buscavam evitar a qualquer custo uma intervenção na Alemanha e uma

provável nova guerra mundial, foi o pacifismo que, ao fim e ao cabo, teve sua imagem

degradada. “Apesar de seus intensos esforços para prevenir a guerra, os advogados da paz

foram culpabilizados por ela. Isso foi uma interpretação incorreta da História que ignora as

demandas da maioria dos advogados da paz para que se resistisse ao fascismo”79.

Ao pacifismo passou a se opor falaciosamente o patriotismo. Cortright nos chama a

atenção para um comentário de Hemann Goering quando de seu julgamento em

Nuremberg: “tudo que você tem que fazer é dizer que eles estão sendo atacados e

denunciar os pacifistas por falta de patriotismo”80. Importante notar, contudo, que a maioria

daqueles que se julgavam pacifistas nos anos 1930 era pragmática, não absolutista81, e

defendiam o princípio de segurança coletiva (que implicava na decretação de sanções e

mesmo de tomada de ação militar nos casos de transgressão da lei internacional).

Após o trauma do fim da Segunda Guerra e a nova configuração geopolítica do fim

dos impérios e início de uma ordem global bipolar marcada pela Guerra Fria, o movimento

pacifista aos poucos se reestrutura e, continuando sua trajetória de aliar prevenção de

guerras com transformação social, inclui o enfrentamento dos novos desafios que emergem,

como a questão nuclear, os direitos civis das minorias, entre outros. Se o Século XX foi

marcado por conflitos e violências perpetrados numa escala inédita, foi também o que

assistiu ao surgimento das maiores iniciativas em prol da paz e da justiça, como a não-

violência de Gandhi, cujo brilhantismo recai sobre a tomada de uma postura ativa contra a

76

Cortright (2009) aponta como grupos pacifistas americanos terminaram se unindo à parcela ultraconservadora do espectro político americano, com o único intuito de manter os EUA fora da Segunda Guerra a qualquer custo, independentemente do que estivesse ocorrendo na Europa e suas possíveis repercussões. 77

SONTAG, 2008, p. 32. 78

Ver CORTRIGHT, 2009. 79

CORTRIGHT, 2009, p. 91. Tradução nossa. 80

GILBERT, 1947 apud CORTRIGHT, 2009, p. 1. Tradução nossa. 81

CORTRIGHT, 2009.

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opressão ao mesmo tempo em que se recusa em utilizar-se da violência contra uma

situação violenta. O oprimido, aqui, recusa-se a lutar com as mesmas armas do opressor.

Essa é a mesma matriz ideológica usada por Martin Luther King durante as décadas de

1950 e 1960 em seu ativismo político pacifista, que resultou na modificação das leis raciais

norte-americanas e no reconhecimento dos direitos civis da população negra.

Não podemos deixar de nos referirmos também àquela tradição que, sem dúvida,

contribui em grande parte com a ideia de paz encravada no senso comum: a contracultura.

Com inspirações de cunho místico-religioso, a paz, a partir dos anos 1960, por parte de

alguns grupos, volta a tomar um sentido de interiorização, re-configurando sua relação com

a estrutura social; o “alcançar a paz” deixa de ser uma obrigação de cunho sócio-político e

passa a ser algo que emana de cada indivíduo, cabendo a cada um encontrar a sua via de

atuação. A paz como um sistema de vida.

É importante refletir, ainda, que mesmo o debate sobre se a paz deve ser entendida

apenas como ausência de conflito armado ou mais que isso é, na realidade, eurocêntrico;

não faz jus à riqueza de interpretações presentes em diversos povos “nao-ocidentais”. E

conceitos ocidentais de pacifismo absoluto ou não resistência fazem pouco sentido em sociedades que priorizam a manutenção da harmonia social. Paz é uma função da justiça social. Depende da preservação da integridade de comunidades

82

É comum a grande parte da África, por exemplo, o conceito de humanidade e

dignidade compartilhadas, expresso no termo ubuntu, traduzido livremente como “sou

porque somos”, indicando a importância relacional com a comunidade, cuja harmonia e

integridades definem o que sou (uma clara discrepância com grande parte do pensamento

filosófico ocidental).

A própria simbólica da paz varia de povo a povo. Enquanto o Ocidente

tradicionalmente tem o branco (uniforme) como símbolo essencial da paz (numa civilização

dominada pela raça branca), os povos andinos representam sua harmonia social através da

whipala, de influência inca, com seu formato xadrez e o uso de sete cores83 (cada uma

representando um elemento), cuja disposição varia de povo a povo.

Atualmente, o conceito de paz tem sido usualmente associado com a promoção da

tolerância, dos direitos humanos e da resolução não-violenta dos conflitos (que são,

inegavelmente, parte integrante da vida humana). Sobre tolerância, um aparte.

82

CORTRIGHT, 2009, p. 13. Tradução nossa. 83

Ver GUIMARÃES, 2005.

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Ilustração 1 - exemplos de whipala84

1.2.3.1. “Tolerância”?

Seja em discussões acadêmicas ou em programas internacionais (como os

desenvolvidos pela ONU/UNESCO), a “promoção da tolerância” é algo que deve permear

nossas ações políticas e culturais, para o desenvolvimento de uma sociedade mais plural e

igualitária. Isso não seria, contudo, uma contradição em termos? Quando falamos em

“tolerar”, expressamos uma ideia que dispõe uma relação entre – no mínimo- dois

elementos: aquele que tolera e a entidade a ser tolerada. Isso significa, contudo, uma

relação desigual. Parece haver algo de régio, de majestático nessa relação. Um, elemento

em uma posição de Poder superior, permite tacitamente o Outro; consente, suporta,

aguenta, mesmo tendo o “poder” de vetar. Apesar de – aparentemente – ter como objetivo a

convivência e o respeito entre diferentes sociedades e grupos os que se valem da

expressão “tolerância”, não podem estar incorrendo com isso no perverso risco de

cristalização de uma relação de poder entre desiguais?

Tolerância é um conceito chave da civilização moderna e ao mesmo tempo é um de seus dramas conceituais. [...] O termo tolerância nunca alcançou (talvez não pudesse) o sentido de pleno reconhecimento da alteridade e da diversidade. Limitou-se a expressar uma genérica “coexistência pacífica”

84

Fonte: http://compartiendoculturas.blogspot.com/2011/04/whipala.html

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que não contempla a titularidade dos direitos, a originariedade dos poderes, a reciprocidade das obrigações, ficando, antes, muito aquém disso

85

A ideia de tolerância é tributária do pensamento de Erasmo e dos Contratualistas,

que, numa Europa convulsionada pela Reforma, repensava a relação entre sociedade e a

liberdade de culto. A defesa de que o homem é passível de liberdade (abrindo espaço para

a defesa de diferentes modos de vida) feita por Erasmo, ecoando Humanismo, para Lutero

era uma contradição com o livre arbítrio. A proposta de Locke de que ao Estado não cabe a

salvação das almas (devendo, portanto, permitir a liberdade) e sim salvaguarda dos bens

civis, não impediu que o Iluminismo – que propagava tolerância – exibisse relações de força

desigual. Maldonato86 nos lembra do antissemitismo de Voltaire, que, apesar de desmerecer

o povo judeu, advertia que “não se deve queimá-los” (afinal, era um tolerante). Em carta-

resposta, comunidades judaicas responderam: “não basta não queimar os homens: é

possível queimá-los com a caneta e esse fogo é ainda mais cruel na medida em que seu

efeito permanece até as gerações futuras”87. Essa imagem, da falsa tolerância, da tolerância

que queima com a caneta, é simbólica dos limites de um conceito cujo próprio termo não

preconiza a igualdade de direitos e de respeito, e sim o mero suportar por parte de quem é

superior e apenas o faz por compaixão ou algum tipo de esclarecimento erudito.

Numa ironia histórica, coube a um defensor dos ideais (seletivos) de tolerância dos

iluministas (Joseph-Ignace Guillotin) a invenção da guilhotina (que mitigava, tolerantemente,

a dor dos condenados à morte).

Aqui, cabe que nos perguntemos: a tolerância pode ser uma perspectiva de liberdade e justiça? Se a resposta for sim, então só pode ser para além de si própria. Quem sabe, talvez seu destino atormentado e seu acidentado caminho tenham sido abrir rachaduras no muro da perseguição e do ódio, abrir novos caminhos, mas talvez também (e nesse ponto nosso discurso se torna conscientemente paradoxal) fechar as portas à demanda de direitos, à sede de justiça

88

Não desejamos aqui afirmar que a ideia de tolerância seja algo terrível e que deva

ser descartada, e sim chamar atenção para a complexidade semântica do termo. Julgamos

positiva a atenção que essa questão (da suposta tolerância) tem recebido atualmente, pois,

mesmo com suas limitações,

falava-se primeiro na intolerância religiosa, falou-se na intolerância política e aí vai começar-se a falar numa intolerância cultural. As pessoas relacionam-se mais, já não na relação de senhor e escravo, mas são povos livres, com culturas diferentes. Começa a se tornar mais agudo o problema da intolerância cultural. Talvez até se possa dizer que este surgimento

85

MALDONATO, 2003, p.1. 86

MALDONATO, 2003. 87

Ibid., p. 6. 88

Ibid., p. 8.

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representou um progresso, porque antes disso, ele não se manifestava porque o dominador tinha o mais absoluto desprezo pelo dominado

89

A “Declaração de Princípios sobre a Tolerância”, aprovada pela UNESCO, em 1995,

conceitua tolerância como “o respeito, a aceitação e o apreço da riqueza e da diversidade

das culturas do nosso mundo, de nossos modos de expressão e de nossa maneira de

exprimir nossa qualidade de seres humanos”90. Além disso, deixa claro que entende

Tolerância não como uma “concessão, condescendência ou indulgência. A tolerância é,

antes de tudo, uma atitude ativa fundada no reconhecimento dos direitos universais da

pessoa humana e das liberdades fundamentais do outro”91 e, ainda, que “praticar a

tolerância não significa tolerar a injustiça social”92. Frente a isso, nos resta a persistente

indagação se não seria uma contradição em termos defender um conceito de igualdade e

justiça social através de um termo etimologicamente tão restritivo e injusto como

“tolerância”.

1.2.4. A paz hoje

“Vamos ver que se pode obter dessa lenda de paz, se de fato ela faz mais sentido pra nós

Por menor que seja o gesto, por mais modesto que seja, que esteja por trás nossa convicção

Que essa aldeia comungue da ideia da comunhão” (excerto de “Pronto pra preto”, música de Gilberto Gil)

O panorama apresentado nos auxilia a tornar evidentes os mecanismos que atuaram

sobre a construção da ideia que fazemos da paz. Ele nos permite desconstruir o

pensamento usual sobre o tema, ao apontar suas mutações ao longo dos tempos; fazendo

isso, podemos melhor compreender a interpretação do campo da paz enquanto arena de

atuação social e inserir em seu universo a prática museológica.

A paz não deve ser tomada apenas pela ausência de conflito armado, e sim como

um universo de elementos cuja presença é considerada igualmente importante para o bem-

estar de uma sociedade. Não por acaso, a International Network of Museums for Peace

(INMP) congrega instituições de diferentes temáticas e organismos internacionais como a

ONU e a UNESCO e desenvolvem programas e agendas no sentido de promoção de uma

cultura de paz. Nessa luta não há questões periféricas. Um regime de apartheid, por

exemplo, é tão nocivo e contrário à paz quanto qualquer guerra entre nações. Como

89

DALLARI, 2003, p. 6. 90

UNESCO, 1995, p. 11. 91

Ibid. 92

Ibid., p. 12.

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discorre essa importante instituição, o Apartheid Museum, na África do Sul, que trata como

pilares de sua atuação a defesa da Democracia, Igualdade, Reconciliação e Diversidade:

Apontando um espelho para o mundo, o Apartheid Museum levanta o questionamento se as lições foram aprendidas na luta por democracia e liberdade durante a turbulenta porém triunfante história da África do Sul são reconhecidas por toda a sociedade. Racismo e discriminação devem ser reconhecidos onde existirem e não devem ser tolerados sob nenhuma hipótese, nem permitidos a tomarem posse e se institucionalizarem como ocorreu na África do Sul.O Museu do Apartheid narra a ascensão e queda do Apartheid e a habilidade de uma nação de encarar a realidade da força destrutiva em seu seio e de superá-la através da oposição, da luta armada, e, por fim, do diálogo e da reconciliação. É uma mensagem para todas as nações em um mundo sobrecarregado pelo conflito, ódio e intolerância [tradução nossa]

93

Não se trata de negar o conflito e a agressividade dos e entre os seres humanos, e

sim da defesa de um conjunto de valores e comportamentos orientados por um princípio de

não-violência94 e de justiça social95. A paz (e os direitos humanos) é um laboratório, não um

produto acabado. Sua compreensão está sujeita às transformações na nossa compreensão

do viver, embora possua uma firme base essencial: o rechaço à guerra. Como lamentou

John Adams96, ao ver a sucessão de pedidos de direitos políticos por parte de grupos

“excluídos” após a publicação das declarações de direitos do homem e do cidadão (as

quais, pouco a pouco, foram deixando de se restringir ao homem branco, cristão e de

posses, para efetivamente incluir o homem enquanto judeu, pobre, negro, sodomita e

mesmo mulher): “isso não terminará nunca”. Ainda bem.

93

TILL, [20--]. Não paginado. 94

“Violência é uma palavra de origem latina (violentia), criada em 1215, significando abuso da força. No século XVI, o conceito inicial foi ampliado passando a significar agir sobre qualquer um submetendo-o, ou fazendo-o agir contra sua vontade, empregando a força ou a intimidação. No século XXI, a violência pode ser definida como qualquer ação intencional realizada por um indivíduo ou grupo, dirigida a outro, que resulte em óbito, danos físicos, psicológicos e/ou sociais” (COSTA, 2001, p. 121. 95

Na busca por um termo que gerasse menos discórdia, o estudioso Azril Bacal propôs a ideia de “justipaz”, enfatizando a relação indissociável entre paz e justiça e direitos humanos. Ver GUIMARÃES, 2005. 96

Ver Hunt, 2009.

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2. Museus da paz, Museus pela paz:

Conceitos

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2. Museus da paz, museus pela paz: conceitos

“[...] se a guerra é uma coisa que se faz, também a paz é uma coisa que se faz, também a paz é uma coisa que importa fazer, que há

que fabricar, pondo na faina todas as potências humanas” (Ortega y Gasset)

Martin Segger nos relembra da incômoda relação entre museu e guerra, sob a figura

dos espólios, ao declarar que “museus tem sido tudo menos espectadores inocentes em

tempos de guerra. Na verdade, eles possuem um longo e ilustre histórico como

beneficiários”97. O Museu da Paz trata de uma relação oposta: a relação entre a instituição

museu e o tema da paz e da reconciliação.

A discrepância em alocação de recursos e formação institucional é óbvia também quando alguém compara os numerosos e bem equipados museus militares com os poucos e usualmente impecuniosos museus da paz. Esses são um novo tipo de instituição que, diferentemente dos estudos universitários sobre a paz, buscam informar ao público geral esperando que os visitantes sejam persuadidos não simplesmente de que a paz é desejável e necessária, mas também possível e assim encorajar visitantes a se envolverem em trabalhar para um mundo mais pacífico

98

Mas o que são museus da paz? É possível defini-los sucintamente? Como atuam?

Para responder tais questões, precisamos compreender o surgimento e o desenvolvimento

da ideia de conjugar a prática dos museus e o pacifismo.

As faces e aplicações do que poderíamos chamar de “museus da paz” são,

certamente, múltiplas. Como aponta Terence Duffy, importante teórico do tema,

o que exatamente é um museu da paz? É difícil responder de maneira igualmente sucinta. As origens dessa tendência no mundo dos museus são complexas e o escopo de instituições as quais poderiam ser incorporadas a tal rótulo é diverso. [...] Museus da paz têm emergido como uma tendência global em desenvolvimento de museus. [...] Eles têm se esforçado para agir como veículos de educação para paz através da preservação do patrimônio da pacificação [peacemaking] e da cultura de paz e para promover um melhor entendimento das origens do conflito. Tais desenvolvimentos consagram o conceito defendido pela UNESCO de construção de uma “cultura de paz”

99

97

SEGGER, 1998, não paginado. Tradução nossa. 98

VAN DEN DUNGEN, 2009, pp. 63-64. Tradução nossa. 99

DUFFY, 1993, p. 4. Tradução nossa.

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30

2.1. Os primeiros museus da paz

O primeiro museu da paz criado no mundo100 foi o Museu Internacional de Guerra e

Paz, criado pelo industrial (e posterior pacifista) polonês Jan Bloch (1836-1902), na Lucerna,

Suíça, em 1902. No fim do século XIX, Jan Bloch, após empreender uma extensiva e inédita

pesquisa a respeito das inovações bélicas e da geopolítica europeia, estava convencido (o

que, nos dias de hoje, podemos reconhecer como presciência) de que um conflito entre as

potências europeias (algo, historicamente, comum) resultaria numa carnificina sem

precedentes:

Ele previu que essa guerra duraria anos e que qualquer vitória obtida não passaria de uma vitória pírrica, cuja pauperização das massas resultante levaria a revoluções que equivaleriam ao fim da civilização européia. Isso o levou à conclusão de que tal guerra deveria ser evitada a qualquer custo

101

Bloch divulgou sua teoria no (profético) tratado monumental The War of the Future in

its Technical, Economic and Political Relations, publicado em 1898102, em seis volumes,

tornando-se uma personalidade bastante conhecida entre os pacifistas da época, como

denota sua participação (como indivíduo, já que não fazia parte da delegação de nenhum

governo) na Primeira Conferência de Paz (1899), em Haia, onde proferiu palestras a

respeito de suas ideias.

Jan Bloch viu na Exposição Mundial (realizada em Paris, em 1900) uma

oportunidade de divulgação de sua teoria para um público muito maior e de distintas

nacionalidades. Valendo-se dos próprios recursos, Bloch planejava construir um grande

espaço expositivo, composto por 3 andares, onde o visitante entraria em contato com a

evolução histórica dos armamentos e das guerras, potencializando assim a conscientização,

por parte do visitante, da escala inimaginável que uma guerra teria nas populações e nas

nações se ocorrida no século XX. “Bloch desejava assegurar que o visitante percebesse a

diferença entre as guerras do passado e a guerra que assombrava o horizonte”103 de então.

Por conflitos políticos com as autoridades militares russas, o projeto não pôde ser levado a

100

A literatura sobre museus da paz consultada para a confecção deste estudo considera, de maneira quase unânime, que o museu criado por Jan Bloch constitui o marco inicial da junção entre ativismo pacifista e o mundo dos museus (ver YAMANE, 2009 ou VAN DEN DUNGEN, [2006]). Terrence Duffy (1993) opta por considerar o Palácio da Paz, criado em Haia, em 1913, como o primeiro museu dedicado exclusivamente ao tema da paz. Para ele, o museu criado por Jan Bloch e outras iniciativas de mesma ordem (como o Museu Anti-guerra, criado por Ernst Friedrich, em 1925, em Berlim) são essencialmente museus que promovem a paz através da exibição dos horrores da guerra, se assemelhando mais aos tradicionais museus sobre guerras do que ao que viria a ser conhecido como museus da paz. 101

VAN DEN DUNGEN, [2006], p. 27. Tradução nossa. 102

Van den Dungen (2006]) aponta que o autor de inúmeros romances de ficção científica H. G. Wells comentou, em visita a um front de batalha da Primeira Guerra Mundial, na França, que aquilo era “Bloch se tornando

verdade”. 103

VAN DEN DUNGEN, 2006, p. 29. Tradução nossa.

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cabo em seu desenho grandiloqüente original, transformando-se numa pequena exposição

viabilizada pela Suíça, que a acolheu em seu espaço dedicado na Exposição Mundial.

Bloch tinha em mente que o estudo de sua teoria era de potencial muito restrito

(através de uma obra volumosa, de atrativo militar) e desejava popularizá-la104, por isso se

interessou pela linguagem museológica:

Ele percebeu que sua teoria tinha que ser visualizada, e isso explica sua profunda imersão nos preparativos para exposição (e, posteriormente, museu). [...] Ele estipulou que as explicações e legendas deveriam ser em 3 línguas (Inglês, Francês e Alemão – todas as quais ele falava fluentemente, além de seus idiomas nativos, polonês e russo), e que brochuras e catálogos deveriam ser preparados para auxiliar a mensagem da exposição, e assim facilitar para o visitante a compreensão da mensagem central de que uma guerra futura seria suicida e deveria ser evitada a todo custo. Ele também antecipou que após a Exposição Mundial sua exposição seria itinerante, visitando primeiro Londres e depois outras grandes cidades européias. Seu destino final seria um museu permanente em Haia ou Berna [...]

105

Jan Bloch acabou abandonando os planos de uma exposição grandiosa e itinerante

e optou pela criação de um museu exclusivamente dedicado ao tema. O projeto acabou

sendo levado a cabo em Lucerna, na Suíça, devido à receptividade das autoridades por

suas ideias, além de fatores geopolíticos (como a neutralidade do país em questão) e

turísticos.

Dessa maneira, surge o primeiro museu da paz da história, o Museu Internacional de

Guerra e Paz, criado em 1902 (mesmo ano em que Jan Bloch falece, sem poder ver sua

inauguração) e fechado em 1919. Nele, uma grande quantidade de armamento era exposta,

ilustrando a tese de Bloch da crescente letalidade e potencial destrutivo dos armamentos.

Para ele, “a guerra em si testemunhava contra si mesma”106.

Tal característica desse museu da paz enseja debate na literatura dedicada ao tema

sobre sua “legitimidade”. Para alguns autores, como Terence Duffy107, o Museu Internacional

de Guerra e Paz se assemelharia mais a um tradicional museu de guerra do que a um

espaço propositivo de um ideário de paz e de pacificação108. Duffy sustenta, dessa maneira,

que o primeiro museu dedicado à paz da história foi na verdade o criado no interior do

Palácio da Paz, fundado em Haia, em 1913. Diferentemente do museu de Bloch, sua

104

VAN DEN DUNGEN, 2006. 105

Ibid., p. 29. Tradução nossa. 106

Ibid., p. 30. Tradução nossa. 107

Ver DUFFY, 1993. 108

Duffy (1993, p.5) assim descreve o museu de Bloch: “apenas duas de suas exposições lidavam especialmente com a paz: a primeira demonstrava os custos econômicos da guerra; a segunda, textos dos principais tratados internacionais. Ironicamente, devido ao escasso tratamento das questões da paz per se, o

museu foi inicialmente aplaudido pelos oficiais militares e deplorado pelo movimento pela paz. Em comparação, o museu de Friedrich, em Berlim, tinha um enviesamento anti-guerra mais explícito [tradução nossa]”.

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abordagem não se dava através da retórica anti-guerra, e sim da valorização das leis

internacionais como instrumento de manutenção da paz.

Concordamos, neste estudo, com a opinião defendida, entre outros, por Kazuyo

Yamane109 e Peter Van den Dungen, para quem devemos ter em mente que após o

falecimento de Jan Bloch, e ao longo do tempo, as autoridades do Museu Internacional de

Guerra e Paz implementaram mudanças de modo a tornar a mensagem pacifista da

instituição mais explícita110. E que

com seu museu e sua previsão de um grande massacre e devastação, Bloch esperava educar seus contemporâneos sobre a necessidade de abolir a guerra e desenvolver em seu lugar instrumentos para resolução pacífica dos conflitos internacionais. O museu intencionava alertar o mundo dos perigos de outra grande guerra e, portanto, contribuir para sua prevenção, mas ironicamente se tornou uma vítima dele

111

É importante notar que os registros de guerra são expostos de uma maneira distinta

em um museu voltado para a paz (ainda que através de uma retórica negativa, anti-guerra)

do que em um museu cujo propósito é apenas retratar ou celebrar determinado conflito

(como é o caso dos museus de guerra).

Outra célebre experiência se assemelha a iniciativa de Jan Bloch, desta vez tentando

conscientizar sobre a necessidade de se evitar o que viria a ser a Segunda Guerra Mundial.

Por trás dela, outro grande homem também natural do que viria a ser hoje a Polônia: Ernst

Friedrich (1894 -1967).

Ainda muito jovem, em 1916, Friedrich se juntou a um grupo da juventude anti-

militarista e acabou sendo preso após um ato de sabotagem em uma instalação militar.

Pacifista e anarquista, Friedrich se tornou uma figura proeminente no cenário político

alemão em virtude de seu livro War Against War, lançado um 1924 - um libelo com o

objetivo de denunciar os horrores produzidos pela Primeira Guerra Mundial112. Com o

dinheiro de doações, ele compra um pequeno edifício em Berlim e o transforma no Primeiro

Museu Internacional Anti-Guerra. Um registro fotográfico da museografia do local nos

permite compreender a que se refere Duffy:

109

YAMANE, 2009. 110

VAN DE DUNGEN, 2006. 111

Ibidem, 2006, p. 30. Tradução nossa. 112

Sobre as informações biográficas de Ernst Friedrich, cf. ANTI-KRIEGS-MUSEUM, [20--].

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33

Ilustração 2. Interior do Museu Anti-Guerra. Fonte: ANTI-KRIEGS-MUSEUM,[20--]

Constituindo um verdadeiro “gabinete de sofrimentos”113 (em oposição aos gabinetes

de curiosidades renascentistas), o Museu busca, através da exposição dos efeitos da guerra

sobre os povos, conscientizar sobre a importância da paz.

O museu se torna um importante centro de atividades culturais e pacifistas, até a

guarda nazista (SA) destruí-lo, prender seu fundador e transformar o local num importante

centro de tortura do regime. Após ser libertado, Friedrich vai para Bruxelas e recria seu

museu, nomeando-o como Segundo Museu Internacional Anti-Guerra. Ironicamente, esse

segundo museu também é destruído pelo nazismo, com a ocupação alemã114. Ernst

Friedrich então foge para a França, onde se junta à Resistência Francesa. Após a liberação

da França, ele se naturaliza francês, e, com uma indenização reparatória que o governo

alemão lhe concede, funda, na França, um centro internacional para a paz. O museu Anti-

Guerra de Berlin foi reaberto em 1982, por Tommy Spree, neto de Friedrich.

113

Tomo emprestado o termo de que se vale Tiffany Jenkins (“cabinets of misery”) ao argumentar contra os

museus memoriais, tema que abordaremos posteriormente. Ver JENKINS, 2005. 114

Cf. DUFFY, 1993.

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Ilustração 3. Fachada do Museu Anti-Guerra antes e após a ocupação pela SA. Fonte: ANTI-KRIEGS-MUSEUM,[20--]

Não seria exagero afirmar, portanto, que, em um momento inicial, os museus da paz

estavam mesmo imersos numa atmosfera beligerante. E isso pode ser dito não apenas

tendo em mente o destino que essas experiências embrionárias tiveram, mas até mesmo

pelo próprio caráter constitutivo de algumas delas. Como salienta Terrence M. Duffy115:

chama a atenção, entretanto, que o que distingue “museus da guerra” de “museus da paz” diz menos respeito ao patrimônio [heritage] físico – o conteúdo do museu – do que à abordagem dos curadores [tradução nossa]

Como dissemos anteriormente, com exceção do Palácio da Paz, com sua

empreitada de promoção de uma “paz legalista”, os primeiros museus da paz eram, na

verdade, museus anti-guerra; o que denota uma identificação redutora da ideia de paz a um

caráter negativo, que somente toma sentido a partir (e exclusivamente) da negação da

guerra. Na opinião de Duffy,

sozinhas, lembranças de guerra são inadequadas como veículos educacionais. Portanto, enquanto há potência nas memórias evocadas pela parafernália de guerra, a esperança de que tais memórias irão unir as pessoas para impedir o retorno da guerra é em vão

116

115

DUFFY, 1998, p. 332. Tradução nossa. 116

Idem, 1993, p.4. Tradução nossa.

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Apesar da importância (pouco reconhecida pelos profissionais da Museologia) que

essas experiências precursoras tiveram para o campo dos museus - e até mesmo da

resistência política e cultural à ascensão de regimes políticos e sistemas de pensamento

pautados pelo belicismo -, não podemos ignorar sua semelhança com os inúmeros museus

e monumentos voltados para a guerra, desta vez com o sinal trocado. Ou, em outras

palavras: “[...] os primeiros ‘museus da paz’ podem ser entendidos como tendo sido ‘museus

de guerra frustrados’ – museus nos quais seus fundadores refletiram como ‘expositores de

guerra’”117. Entretanto, “apesar dos fracassos dessas iniciativas, o período entre - guerra

testemunhou o estabelecimento da ideia de museu da paz”118, daí sua importância.

É importante distinguir que há uma discrepância entre a maneira como a guerra é

retratada num museu de guerra e num museu da paz. O mesmo fenômeno (a guerra) pode

ser retratado/glorificado numa instituição e, na outra, servir como instrumento de uma

narrativa que intenciona uma conclusão diametralmente oposta. É possível reconhecer,

dessa maneira, que a guerra desempenha um papel nos museus da paz. Como reflete

Yamane sobre a realidade japonesa:

já que o propósito de muitos museus de guerra é glorificar a guerra no Japão, a memória de guerra é utilizada para glorificar a guerra e admirar agressores como heróis. Por outro lado, como o propósito de um museu da paz é criticar a guerra, a memória de guerra é utilizada para tal fim

119

2.2. O caso japonês

“A paz fez um mar da revolução Invadir meu destino; A paz

Como aquela grande explosão Uma bomba sobre o Japão

Fez nascer o Japão da paz”

(Gilberto Gil e João Donato, trecho de “A Paz”)

No decorrer do século XX, novos desdobramentos bélicos influenciam de maneira

radical a prática da Museologia voltada para a pacificação, fazendo surgir novos

paradigmas. O Holocausto, a posterior Guerra Fria e, sobretudo, o lançamento das bombas

atômicas sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki, representaram marcos aterradores na

luta pela paz, que irão afetar diretamente o campo dos museus.

No dia 6 de agosto de 1945, no que se transformou em um dos últimos dias da

Segunda Guerra Mundial, a cidade de Hiroshima foi desintegrada por uma única bomba

117

DUFFY, 1993, p. 306. Tradução nossa. 118

Ibid., p. 5. Tradução nossa. 119

YAMANE, 2009, p. 6. Tradução nossa.

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atômica, lançada pelos EUA, em um questionável ato de guerra. A rendição japonesa e a

subseqüente submissão às exigências norte-americanas que se seguiu representaram uma

mudança de paradigma na até então belicosa cultura e educação japonesas do período do

conflito; com o fim da guerra, as cidades de Hiroshima e Nagasaki tornam-se símbolos

globais da ameaça atômica – que viria a tornar-se apocalíptica pouco tempo depois, sob a

forma do constante temor de um iminente holocausto nuclear, com a consolidação da

Guerra Fria.

Com a reconstrução japonesa do país até então devastado, a questão da promoção

da paz torna-se proeminente. Hiroshima torna-se uma cidade-monumento antinuclear, e

uma nova feição do conceito de museu da paz surge, não focalizando e antagonizando

genericamente o fenômeno da guerra, e sim sustentando, a partir de problemáticas

específicas, um discurso pacificador120. Como define Kawamoto, diretor do Museu Memorial

da Paz, de Hiroshima:

como a primeira cidade a sofrer um bombardeio atômico na história da humanidade, Hiroshima possui a responsabilidade de insistir na total eliminação de todas as armas nucleares para prevenir nossa tragédia de se repetir. Como parte de nosso esforço, o Museu Memorial da Paz de Hiroshima continuará a enfatizar que aqueles que morreram em resultado da bomba devem nos lembrar do precioso valor da vida e da paz no mundo [tradução nossa]

121

Não por acaso, nos dias de hoje, o maior número de construções (memoriais e

museus) relacionadas ao tema da paz, em resposta a um fato em particular, encontra-se em

Hiroshima122, Japão; país que, após uma guerra, torna-se referência no tratamento da

temática da paz:

[o] Japão nos oferece uma grande inspiração no nascimento do movimento moderno de museus da paz. E também não é surpresa alguma que essa contribuição para o amadurecimento do conceito de museus da paz, deva tanto ao trabalho criativo dos museus da paz japoneses e aos pensadores da paz. É inteiramente possível, e os japoneses nos forneceram um seleto exemplo desse fenômeno, que a partir dos piores exemplos de guerra – nós podemos forjar uma cultura de paz [tradução nossa]

123

Devido aos desdobramentos da rendição japonesa (o país foi desmilitarizado como

imposição Aliada), o Japão tornou-se um país que rejeita a guerra não apenas através do

discurso de algumas instituições de memória posteriormente criadas, mas na sua própria

Constituição. Consta do artigo 9:

120

Duffy (1993) identifica esse subtipo de museu da paz, fruto de problemática específica, como “issue-based museums”. 121

KAWAMOTO, 1993, p. 16. 122

Ibid., p.7. 123

DUFFY, 1998, pp. 305-306.

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Aspirando sinceramente a uma paz internacional baseada na justiça e ordem, o povo japonês renuncia para sempre da guerra como um direito soberano da nação e a ameaça ou uso de força como meios necessários de resolução de disputas internacionais.

Para alcançar a meta do parágrafo precedente, forças terrestres, marítimas e aéreas, assim como outro potencial de guerra jamais será mantido. O direito de beligerância do estado não será reconhecido [tradução nossa]

124

O Japão possui hoje mais de 50 museus da paz, a maior parte deles tendo sido

criada a partir da década de 1990. Os primeiros museus criados foram o Museu Memorial da

Paz, em Hiroshima, e o Museu da Bomba Atômica de Nagasaki, na cidade homônima;

ambos os museus foram criados no ano de 1955. Esses e outros museus – criados

posteriormente – assumem como função a conscientização sobre os horrores causados pelo

bombardeio nuclear em solo japonês (e dos atos de guerra em geral; o horror da guerra) e

advogam o banimento do armamento nuclear global125.

2.2.1. Os horrores seletivos da guerra

O exemplo japonês não é, entretanto, tão “harmonioso” quanto aparenta. Sendo o

país com maior concentração de museus da paz no mundo126 - o que demonstra a

existência de um ambiente político favorável a esse tipo de iniciativa -, o Japão demonstra

lidar com as atrocidades cometidas no contexto de guerra de maneira desigual. Não só

crimes de guerra cometidos pelo exército japonês são raramente mencionados em seus

livros didáticos e lugares de memória, como isso tende a ocorrer - no caso dos museus –

apenas em instituições privadas127; devido a um tensionamento entre as forças partidárias

da política nacional, há um impedimento para que órgãos diretamente ligados ao Estado

possam narrar fatos que desagradem a alguns setores do país.

No período que antecede a Segunda Guerra Mundial, o Japão se afasta das

potências e costumes ocidentais de que tanto se aproximara a partir de sua abertura

política, e desenvolve uma atitude imperialista e isolacionista, chegando a romper com a

Liga das Nações. Crendo-se racialmente superior (não à toa o país alia-se posteriormente à

Alemanha nazista), o Japão inicia uma expansão militar, invadindo a China e outros

territórios, intencionando criar um grande império asiático, sob sua liderança. Mencionamos

tais fatos, pois são crucias para que entendamos a situação dos museus da paz no Japão

após o fim da Segunda Guerra e contemporaneamente.

124

YAMANE, 2009, p. 22. 125

Para uma listagem e descrição pormenorizada dos museus da paz japoneses, ver YAMANE, 2009. 126

YAMANE, 2009. 127

Ibid.

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Até antes da derrota japonesa na Guerra, as crianças japonesas aprendiam nos

livros didáticos que o imperador do país era um deus vivo, além do culto a valores como a

militarização, a superioridade japonesa e a obediência128. Quando o país passa ser ocupado

pelas forças americanas, a partir da derrota japonesa no conflito, a disseminação desses

valores é bruscamente interrompida e o panorama político e cultural sofre uma profunda

transformação, num processo parecido ao vivido pela Alemanha129. Mesmo com a derrota

na guerra, o nacionalismo japonês não desaparece por completo e é uma importante força

política na democracia japonesa construída a partir do pós-guerra (tomando força,

sobretudo, nos anos 1990, período em que são criados vários museus da paz130).

Após a Bomba, o país se engaja num grande esforço memorialístico que trata a

nação como vítima de um ato inédito e atroz (um ataque nuclear) - o qual ceifara a vida de

centenas de milhares de pessoas -, ao mesmo tempo em que demonstra dificuldade em

condenar com mesmo vigor sua política imperial e o comportamento do exército japonês

durante o conflito, acusado de atos de extrema desumanidade (como trabalho escravo,

promoção de estupros coletivos, testes biológicos em prisioneiros, entre outros). Desse

modo, a exposição dos horrores da guerra e do bombardeio nuclear não se vincula a uma

cadeia de acontecimentos relacionados à agressão japonesa, e sim a uma realidade

imputada por inimigos externos:

Esquecendo as causas e condições da guerra total, um novo tipo de excepcionalismo japonês – vitimização atômica – é isolado de sua inerente conexão com a agressão japonesa dos tempos de guerra. Em conjunto, as vívidas lembranças e flagrantes omissões demonstram uma perturbadora forma de dissociação que define o mito do vencido. Esse mito, ou visão unificante, constrói uma narrativa japonesa do pós-guerra de nacionalismo que enxerga um povo pacifista emergindo do próprio ato de vitimização atômica

131

Um dado informado por Kazuyo Yamane132 é bastante revelador: a autora revela

que, até 2004, foram contabilizados 23 museus da paz públicos contra 33 privados. Tal dado

nos permite perceber a importância da iniciativa de organismos da própria sociedade na

criação e manutenção desses museus, já que vários desses museus privados “foram

128

YAMANE, 2009. 129

“Ironicamente, uma razão pela qual os japoneses estão num impasse sobre como relembrar o passado recente é porque as políticas de ocupação do pós-guerra permitiram bem mais continuidade de pessoal e regras no Japão do que na Alemanha. Os Aliados vitoriosos exigiram que governo alemão do pós-guerra eliminasse a liderança nazista, no entanto mantiveram o imperador japonês e vários de seus assessores no poder para garantir estabilidade. As prioridades da Guerra Fria foram outras, razão pela qual os Estados Unidos protegeram o Japão de exigências asiáticas por reparação e punição durante e após a ocupação. De algumas maneiras, o Japão evitou pressão estrangeira até a era do pós-Guerra Fria para repensar suas ações de guerra; a Alemanha enfrentou e respondeu a tais pressões mais cedo [tradução nossa]” (YAMANE, 2009, p. 75) . 130

Ibid. 131

GIAMO, 2003, p. 705. Tradução nossa. 132

Ibid.

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criados em locais onde as pessoas tentaram primeiro criar museus públicos, mas não

puderam”133.

Parece haver dois motivos para isso: o primeiro é a relativa falta de interesse em museus da paz de parte das autoridades municipais e o outro é a relativa falta de liberdade de expressão nos museus da paz públicos

134

O Japão é relevante para ser mencionado por nosso estudo não apenas por sua

profusão singular de museus da paz, mas porque eles estão inseridos num ambiente político

que os reveste de uma importância política extremamente destacada: seja na afirmação da

narrativa “vitimizante” autorizada (por parte dos órgãos oficiais) do passado, seja na sua

subversão, através do rompimento e oposição a essa narrativa autorizada. Os museus da

paz passam a suprir uma lacuna de informação, já que os cidadãos japoneses são

educados sem saber formalmente das agressões cometidas por seu país, na medida em

que seus livros didáticos (que são, até hoje, objeto de polêmica diplomática com os países

vizinhos) não mencionam esses episódios:

Parece haver uma relação entre a exposição da agressão japonesa e a atitude dos cidadãos pela paz e seu envolvimento com museus da paz no Japão. Em outras palavras, em locais onde há uma exposição da agressão do Japão, cidadãos tendem a ter uma atitude negativa em relação a essa agressão e estão desejosos a trabalhar pela paz e reconciliação. Por outro lado, na ausência de tas exposições e em locais onde há museus de guerra, os cidadãos tendem a não saber das agressões cometidas pelo Japão

135

Há, de parte do Estado, através de inúmeras instituições públicas (incluindo museus

da paz136), um esforço de construir a memória das agressões sofridas pelo país durante a

guerra, mas não o de lembrar as que cometeu. Um exemplo disso é que o Japão não só

jamais pediu perdão oficialmente pelos atos cometidos como nega diplomaticamente a

ocorrência de episódios como o Massacre de Nanquim, em que se estima que o exército

japonês tenha sido responsável por estupros em massa, tortura e assassinato de mais de

300 mil chineses (número maior do que o de vítimas dos bombardeios nucleares

americanos sobre solo japonês)137. Trata-se, assim, de uma reconstituição bastante seletiva

e enviesada dos fatos do passado. Foram os museus da paz (sobretudo os privados) que,

no Japão, a partir dos anos 1990, ajudaram a romper o silêncio sobre o passado imperialista

133

YAMANE, 2009, p. 28. Tradução nossa. 134

Ibid., p.27. tradução nossa 135

Ibid., p. 37. Tradução nossa. 136

Em seu levantamento, Kazuyo Yamane (2009) nos informa que um questionário aplicado em 2001 revelou que as agressões japonesas cometidas durante a guerra só eram retratadas em dois, de dezessete museus da paz públicos consultados. 137

Cf. YAMANE, 2009. A autora aponta o Kyoto Museum for World Peace como um louvável exemplo de instituição que não silencia sobre esses fatos.

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da nação e corajosamente começaram a abordar tais fatos, desconstruindo “uma vitimologia

nacional e um espectro de inocência”138

Uma das razões que pode explicar o aumento do número de museus da paz, a partir

dos anos 1990, é – segundo Yamane139 - o ambiente político tenso do momento, com o

recrudescimento das pressões estrangeiras (inclusive de representantes da ONU) para que

o Japão reconheça as vítimas de guerra (sobretudo as mulheres violentadas em Nanquim) e

repare seus danos e o fortalecimento de grupos nacionalistas na política interna. Nesse

período, não só foram criados novos museus da paz como os já existentes (mesmo

públicos) passaram a incluir a agressão japonesa em suas exposições, mesmo que de

maneira incipiente.

Tal mudança encontrou grande resistência, como a pressão feita junto ao tradicional

Museu da Bomba Atômica de Nagasaki (criado na década de 1950 e que passou a retratar

também a agressão japonesa nos anos 1990), sob a acusação de que expor a agressão

japonesa seria legitimar o ataque norte-americano, além do argumento de que o Japão, ao

invadir seus vizinhos, estava na verdade libertando-os do colonialismo ocidental140. A

pressão de grupos nacionalistas sobre os museus da paz públicos que passaram a abordar

o tema da agressão japonesa foi tamanha que faz, nos dias de hoje, com que essas

instituições evitem – com raras exceções – expor o tema.

Um exemplo paradigmático que nos ajuda a entender a diferença entre os museus

públicos e privados (e o porquê da iniciativa de criá-los) foi a reação provocada pela

exposição “A Ocupação Japonesa das Índias Orientais Relembrada”. A região (antiga

colônia holandesa e hoje a Indonésia) não tem sua história ensinada nas escolas

japonesas141. Embora, ao longo de séculos, Japão e Holanda mantivessem relações

amistosas e trocas comerciais privilegiadas, no século XX, em março de 1942, o Japão

resolve invadir a colônia holandesa, em busca de seus recursos naturais. Lá, o império

japonês implanta um regime de encarceramento e trabalhos forçados tanto dos

colonizadores holandeses quanto da população nativa, que cria inicialmente que o Japão os

estava libertando do subjugo colonial.

No ano 2000, para comemorar os quatro séculos de relações comerciais, Japão e

Holanda prepararam uma série de eventos. Uma instituição holandesa elaborou uma

exposição itinerante com a intenção de retratar as diferentes visões e experiências vividas

por cidadãos (japoneses, holandeses e indonésios) na guerra, intencionando assim

138

YONEYAMA, [----] apud GIAMO, 2003, p. 714. Tradução nossa. 139

YAMANE, 2009. 140

Ver YAMANE, 2009. 141

Ibid.

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promover uma mútua compreensão. A exposição foi oferecida a museus da paz públicos142 -

como o Museu Memorial da Paz de Hiroshima, O Museu da Bomba Atômica de Nagasaki, O

Centro Internacional da Paz de Osaka, entre outros – e rejeitada por todos eles, por medo

de represálias e pressões de grupos nacionalistas. A exposição, por fim, só foi realizada

majoritariamente nos museus da paz privados.

Tal cenário explica porque, nos museus da paz japoneses, a educação sobre a

própria história é o elemento central de suas atividades, em comparação com museus

europeus143.

2.3 Em busca de definições

Como observamos, o conceito de paz não encontra consenso absoluto em torno de

uma definição para além da ausência de conflito armado, abrindo espaço para diferentes

percepções de seu significado. Consequentemente, a reflexão em busca de “categorizações

museológicas” da paz também acompanha tal tendência.

Há diversas propostas de categorização dos museus dedicados a temática da paz.

Inspirados por Johan Galtung, ao definir que

um museu da paz nos informa sobre a paz e como atingi-la... Os museus que se intitulam museus da paz hoje são, contudo, basicamente museus anti-guerra; há muito pouco sobre a paz e muito pouco como sobre como alcançá-la; exceto por uma abordagem: abolição da guerra, negação da guerra

144

Alguns autores buscam estabelecer uma cisão, dentro do universo dos museus da paz,

entre o que seriam “museus anti-guerra” e “museus pró-paz”, onde o primeiro seria “um

museu da paz objetivando forjar uma atitude anti-guerra” enquanto o segundo seria “um

museu da paz objetivando forjar atitude e habilidade para a criação de uma sociedade

pacífica e relações internacionais pacíficas”145.

Nas proposições apresentadas por Terrence Duffy146 - autor escolhido como

referência central para nosso estudo, por ter sido o principal responsável pela articulação

entre os museus da paz e organismos profissionais do campo dos museus, como o

Conselho Internacional de Museus (ICOM) -, há quatro tendências identificáveis na criação

de espaços devotados à tematização da paz:

142

YAMANE, 2009. 143

Ibid. 144

GALTUNG, 1998 apud YAMANE, 2009, p. 7. Tradução nossa. 145

YAMANE, 2009, p. 7. Tradução nossa. 146

Cf. DUFFY, 1998.

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Museus da paz per se - os museus que, de fato, possuem o termo “paz” em seu nome,

normalmente dedicados à sensibilização da educação para a paz através das artes visuais e

da “memorabilia da pacificação”147;

“Issue-based museums” - ou seja, aqueles espaços museológicos criados em resposta a

eventos/problemáticas específicos, de caráter universalizante ou localizado (tal definição

engloba uma ampla relação de instituições, que vão desde o citado Museu Memorial da Paz

(Hiroshima), passando pelos diferentes museus do holocausto);

Museus sobre trabalho humanitário – museus da paz que focalizam assuntos

humanitários de natureza geral de grupos/indivíduos, como o Museu da Cruz Vermelha

(Genebra);

Museus de não-violência - grupo de museus que poderiam ser definidos “de maneira

bastante flexível” (como adverte o autor) como os “museus de não-violência”, como os

devotados a tal temática na Índia e nos EUA, dedicados a Ghandi ou a Martin Luther King.

Tais categorias elaboradas pelo autor - embora mais sofisticadas que outras que

apenas classificam os museus de acordo com a sua abordagem da temática (se aborda ou

não a promoção da paz ou apenas o horror da guerra) – parecem-nos problemáticas sob

alguns ângulos, por isolar certos aspectos, como a luta dos direitos civis, dentro de um

universo periférico da luta pela paz, constituindo como que um satélite do campo de atuação

principal, apenas aceito pela necessidade expressa de “flexibilização” conceitual148. Além

disso, dada a natureza “pouco rígida” da percepção de paz, tais categorias tornam-se pouco

esclarecedoras, pois, como adverte o próprio Terence Duffy:

certos museus atravessam definições e se aplicam a várias dessas categorias. Analisadas em conjunto, essas diversas entidades compartilham um comprometimento em comum de preservação da história da pacificação [peacemaking] e, por conseguinte, da cultura de paz

149

147

Da mesma maneira que podemos falar em “memorabilia de guerra”, acreditamos ser possível usar a mesma lógica para nos referirmos ao universo da paz. Se o universo bélico possui armamentos e histórias grandiloquentes de combates, a busca pela paz também produziu e produz suas histórias de devoção, seus tratados humanitários e armistícios, e suas produções artísticas como instrumento de denúncia dos horrores da guerra. 148

Em um de seus estudos, Duffy nos adverte para o perigo que representa para a reflexão sobre o Museu da Paz a tentativa de se aplicar categorizações rígidas, devido à “liquidez” conceitual inerente ao próprio objeto de estudo. Assim adverte o autor (DUFFY, 1998, pp. 307-308): “[...] Opiniões diferem entre escritores, e de fato o próprio. conceito é propenso a definições tão elásticas que pode ser errôneo aplicar um rótulo rígido ao fenômeno que requer alguma flexibilidade em sua classificação [tradução nossa]”. 149

DUFFY, 2000, não paginado. Tradução nossa.

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Acreditamos ser difícil a definição e categorização de “tipos” de museus da paz dada

à abrangência do conceito de paz e de direitos humanos e da própria multiplicidade de

expressões (ou seja, modalidades de museus) oferecida pela Museologia. Além disso, como

mencionamos, a teorização e a criação dos primeiros museus da paz são engendradas no

âmbito do pacifismo e dos estudos científicos sobre o tema (Peace Research), sendo só

posteriormente difundidas junto à comunidade dos profissionais de museus do mundo todo.

Isso faz com que, na prática, possam existir museus ao redor do mundo cuja atuação pode

ser interpretada como condizendo a do conceito de Museu da Paz, mas cujas autoridades e

equipe profissional sejam alheias a tal discussão/ conceituação.

Nesse sentido, julgamos apropriadas as definições da International Network of

Museums for Peace150 (INMP). Fundada em 1992, numa conferência em Bradford

(Inglaterra), que pela primeira vez reunia profissionais de museus da paz, museus anti-

guerra e instituições relacionadas no mundo todo, essa rede internacional inicialmente foi

intitulada como International Network of Peace Museums (INPM). Em 2005, durante a

conferência internacional em Guernica, optou-se pela modificação do nome da Rede,

acompanhando assim a percepção de uma compreensão ampla da paz., em que a

concepção de “museus pela paz” inclui uma ampla gama de instituições relacionadas ao

tema, além da tradicional ideia de “museu da paz”.

Dessa maneira, podemos inferir que a prática museológica pela pacificação

apresenta a seguinte constituição, em linhas gerais, com base no esquema sugerido pelo

site Peace Monuments151:

“Museus da Paz” tradicionais “Museus pela Paz” em geral

Missão Promove a paz como ausência de guerra, ou de maneira geral. Vale-se, para tal, de memorabilia referente aos conflitos (museus anti-guerra) ou ao legado do pacifismo. Vincula-se a uma concepção negativa de paz.

Promove os direitos humanos ou a trajetória de algum célebre pacifista, focalizando elementos como a segregação, a escravidão, a intolerância, entre outros. Vincula-se a uma concepção positiva de paz.

Nome Usualmente se intitula como museu da paz, ou mesmo como museu anti-guerra.

Normalmente não utiliza “paz” no nome, sendo esse referente ao seu tema (como “museu da escravidão”, “museu da tolerância”, entre outros)

Sendo assim, após nossa explanação sobe a trajetória dos conceitos de paz e de

museu da paz, utilizaremos doravante a expressão “museu pela paz” para caracterizar

150

Ver INTERNATIONAL NETWORK OF MUSEUMS FOR PEACE. 151

Ver PEACE MONUMENTS.

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nosso objeto de estudo, pois essa inclui os museus da paz tradicionais (que se nomeiam

dessa maneira) e também outros museus relacionados.

2.4. Um museu pela paz: a Memoria Abierta e o museu da ESMA

Entre as décadas de 1960 e 1970, uma sucessão de golpes militares derrubou

regimes democraticamente eleitos em todo o Cone Sul. Os regimes de exceção

estabelecidos foram marcados pela transgressão oficial e oficiosa dos direitos humanos,

como através da utilização da tortura e do terrorismo de Estado como instrumentos de

manutenção do poder.

Tais práticas incluíam, em alguns países, como a Argentina, a adoção ilegal por

parte de pessoas ligadas ao regime militar dos filhos dos cidadãos perseguidos, torturados e

assassinados. Além, é claro, do desaparecimento impetrado de diversos cidadãos, que

converteu suas mães em Antígonas, as quais, por todo o continente, exigiam das

autoridades instituídas o direito de sepultar seus filhos.

Apesar de os manterem em segredo, os regimes militares costumam ser

particularmente prodigiosos no que se refere à manutenção de registros minuciosos de suas

práticas, como nos revela a história de órgãos como a Stasi, a Gestapo, o DOI-CODI, entre

outros.

Nas décadas de 1980 e 1990, com o ocaso desses regimes, diversas organizações

sociais surgem e passam a exigir do Estado a abertura de seus arquivos do período, na

intenção de “passar a limpo” os fatos sucedidos e crimes ocorridos por parte dos que

romperam com a legalidade e a ordem democrática. Um exemplo representativo desse tipo

de organização social é a argentina Memoria Abierta.

Trata-se de uma congregação, surgida em 1999, de algumas organizações

argentinas da área de promoção dos direitos humanos, que define seu objetivo como o de

trabalhar “para aumentar o nível de informação e consciência social sobre o terrorismo de

estado e para enriquecer a cultura democrática” e conseguir que “todo registro do ocorrido

durante a última ditadura militar e suas conseqüências seja acessível e sirva aos propósitos

de pesquisa e educação das gerações futuras [tradução nossa]”152. A organização é

composta pela Asamblea Permanente por los Derechos Humanos – APDH, pelo Centro de

Estudios Legales y Sociales – CELS, pela Fundación Memoria Histórica y Social Argentina,

pela célebre Madres de Plaza de Mayo - Línea Fundadora e pelo Servicio Paz y Justicia.

152

MEMORIA ABIERTA. Quiénes somos?. Disponível em:

<http://www.memoriaabierta.org.ar/quienes_somos.php>. Acesso em : 1 jan. 2011.

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A maneira de atuação proposta pela organização à época de seu surgimento era:

reunião do material disperso sobre o tema; recuperação da documentação deteriorada pelo

tempo ou pelas más condições de conservação com vista à sua organização e difusão;

registro dos testemunhos orais dos sobreviventes e parentes de desaparecidos; e pesquisa

aprofundada sobre a repressão ilegal ocorrida, incluindo seu modus operandi e seus centros

de decisão, tortura e extermínio. Outra iniciativa importante da Organização é o projeto

“Topografia da Memória”, que visa, a partir da identificação na urbe dos espaços projetados

utilizados pelos órgãos de repressão,

construir uma base de dados pública sobre centros clandestinos de detenção e outros espaços urbanos relacionados com o terrorismo de Estado, para transmitir a memória a gerações futuras e promover valores como o respeito, o pluralismo e a democracia [tradução nossa]

153

Ilustração 4 – fachada da ESMA. Fonte: Memoria Abierta

O grande esforço da instituição para dar visibilidade a sua coleção é, contudo,

a criação de um museu, que irá re-significar o temido edifício da Escuela de Mecánica de

la Armada, o maior centro de tortura do continente, transformando-o no Espacio para la

Memoria y para la Promoción y Defensa de los Derechos Humanos:

153

MEMORIA ABIERTA. Cómo trabajamos: topografía de la memoria. Disponível em: <

http://www.memoriaabierta.org.ar/como_trabajamos5.php>. Acesso em : 1 jan. 2011.

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Entendemos um museu como um lugar de aprendizagem democrático a partir da reflexão sobre o ocorrido no passado. [...] As organizações de Direitos Humanos desejamos que a valiosa documentação reunida durante os anos de luta pela vida e pela defesa dos direitos humanos em tempos de ditadura e o trabalho posterior para obter a verdade e justiça formem parte de uma instituição que possa apresentar um relato documental do ocorrido. O museu que queremos, deverá ser um lugar onde os cidadãos do presente e das futuras gerações conheçam a história recente através de testemunhos, documentos e objetos. Esperamos que o museu contribua na compreensão dos acontecimentos das décadas passadas e estimule em quem o visite um compromisso ativo com a solução dos problemas do país [tradução nossa]

154

Mencionamos o exemplo da Memoria Abierta e da Escuela Mecánica de la Armada

para demonstrar como é possível perceber a existência de instituições cuja proposta

podemos caracterizar como condizente com o conceito de “Museu pela Paz”155. Ademais,

nesse exemplo, podemos notar uma simbiose entre museu e organizações sociais.

Também podemos mencionar um exemplo do potencial de atuação dos museus da

paz vindo do continente africano, mais precisamente do Quênia. Lá, o Trust for African Rock

Art e o Abasuba Community Peace Museum156 (localizado na Ilha Mfangano, Lago Victória)

realizam um trabalho de grande destaque internacional (há apoio de figuras como Nelson

Mandela e Kofi Annan e de organizações como a Unesco), que visa conservar a arte

rupestre africana ao mesmo tempo em que ameniza a tensão entre diferentes tribos da

população local (são 14 clãs ao todo). Conscientizando a comunidade sobre uma herança

em comum, o museu busca dirimir conflitos étnicos, manter viva a Língua Abasuba (que

corre risco de extinção), empoderar a população e melhorar as condições de vida da

localidade.

Podendo tomar a forma de um museu comunitário no Quênia ou de um museu

memorial em Hiroshima, pode haver tantos museus da paz (ou “pela paz”) diferentes quanto

pode haver museus. São instituições que atuam como uma proposta ética e não raro

desenvolvem um trabalho em consonância com organizações sociais.

Tais fatos evidenciam que o conceito de Museu pela Paz, muito mais do que tratar

de um tema considerado etéreo por muitas pessoas, consegue pôr em prática antigos e

recorrentes anseios dos profissionais de museus – sobretudo na América Latina –, como a

inserção efetiva da instituição museu no tecido social157. Esses exemplos revelam, também,

154

MEMORIA ABIERTA. Camino al Museo: El museo que queremos. Disponível em: <

http://www.memoriaabierta.org.ar/camino_al_museo.php>. Acesso em : 1 jan. 2011. 155

Da mesma maneira, o museu implantado na Esma também pode ser enquadrado no conceito de museu

memorial (o qual abordaremos posteriormente). 156

Ver MANAGING..., [20--]. Faço o registro de que o material que referencio é fruto de uma gentil doação feita pelo Dr. George Abungu ao Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio (PPG-PMUS UNIRIO/MAST), aquando da sua visita e aula inaugural, no segundo semestre de 2010. 157

Como aponta Castro (2007, p.114): “o desenvolvimento de uma vertente museológica voltada à discussão sobre a paz possibilita que a instituição museal insira-se no debate social mais consistente, com uma visão

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que esses museus tendem a estar intimamente relacionados com organizações sociais não

apenas em sua atuação cotidiana, mas até mesmo em sua fundação. Os Museus pela Paz

são, essencialmente, museus militantes ou, em outras palavras, engajados158.

renovada da preservação das memórias, voltada para a discussão sobre a luta pela paz, e não para a história bélica dos países”. 158

COSTA, 2000.

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3. Tanatomuseologia

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3. Tanatomuseologia

O museu - em seu processo moderno de institucionalização (entre os séculos XVIII e

XIX159) - desempenhou, em linhas gerais, o papel de guardião dos tesouros da nação

(muitas vezes frutos do colonialismo) e de instrumento civilizador, sobretudo a partir do

século XIX. Dessa maneira, coube a essas instituições servir de vitrine dos feitos da nação

(numa demonstração de poder) e de “edificação científica e cultural” dos seus visitantes,

condizente com a nova ordem burguesa que se estabelecia,

ao instaurar como modelo paradigmático de museu o Louvre, instituído na França pré-revolucionária como espaço de poder real e redefinido precisamente a partir de 1789, como produto cultural da Revolução que legitimou, no mundo ocidental, o estatuto burguês

160

Esse contexto - de associação do espaço do museu com celebração e

engrandecimento do espírito e intelecto -, embora desafiado pela série de desdobramentos

vivenciados pelo campo dos museus e da Museologia durante os séculos seguintes até os

dias de hoje161, é responsável pela configuração de parte significativa dos acervos das

instituições e da interpretação do museu no imaginário das pessoas. Ou seja, o museu

como um espaço reservado ao belo e ao prazeroso, com coleções condizentes com tal

prerrogativa e onde se expõe o melhor que o gênero humano foi capaz de produzir: sua

arte, sua ciência, seus triunfos históricos.

No âmbito social, da realidade na qual os museus coletam seus objetos e direcionam

a representação de suas exposições, a morte, as “cicatrizes”, a tragédia, são elementos

presentes e incontornáveis; partes constitutivas do fluxo natural da vida. No entanto, em

sua vida “musealizada”162, os objetos são submetidos a um paradigma em que a morte e as

“cicatrizes” inerentes à passagem do tempo são manipuladas, desviadas. Conservamos com

o intuito de imortalizar e restauramos para que os objetos não apenas durem para sempre

(negando, dessa maneira, a ideia de “morte”, de destruição, de perda), mas que tenham seu

processo de degradação revertido, numa ação direta contra a passagem do tempo163.

Talvez por isso, temas que envolvam a morte e a violência recebam ainda tratamento

minoritário no mundo dos museus e do patrimônio em geral, como elementos cujas

existências reconhecemos como parte integrante do fluxo social da vida, mas para os quais

reservamos um tratamento diferenciado no contexto museológico (a interdição).

159

SCHEINER, 1998. 160

Idem, 2008, p. 59. 161

Entre eles podemos citar a criação de novas modalidades de museus, o fortalecimento da Museologia como campo disciplinar e o movimento ideológico conhecido como Nova Museologia. 162

Entendo por musealização um processo complexo de valorização (CURY, 1999) e submissão à procedimentos técnicos (como documentação, conservação, pesquisa, comunicação) de um dado objeto, inserindo-o em um novo contexto (museológico). 163

Por mais que a restauração hipotética em questão respeite e busque preservar certa “pátina do tempo”.

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Não nos referimos aqui à morte no contexto de antigas civilizações (ou de diferentes

tribos e etnias) e à violência de tempos remotos. O deslocamento no tempo histórico, a

alteridade antropológica e a transformação no cenário político aplacam nossa dificuldade em

lidar com tais temas, em maior ou menor grau. Isso faz com que sejamos capazes de

transgredir ritos fúnebres de outras culturas (lembremos das múmias egípcias, por exemplo,

expostas em museus do mundo todo), enquanto que exposições como as promovidas pelo

médico Roy Glover (que exibem corpos humanos dissecados), sejam recebidas com

controvérsia. Podemos elaborar com relativa facilidade exposições sobre guerras passadas

há séculos, mas o mesmo não ocorre com conflitos recentes, devido às circunstâncias

políticas ainda afetadas por eles ou à viva lembrança dos sobreviventes. Não nos

referimos aqui, dessa maneira, à morte no contexto arqueológico, e sim do passado

coletivo recente, de uma memória traumática.

Embora ainda com pouca freqüência, mas de maneira crescente, os museus

começam a oferecer mais espaço também para esse lado “sombrio”, para os episódios

históricos que queremos inicialmente esquecer, lado este que foi gerado por essas mesmas

sociedades que erigiram museus como espaços privilegiados de contato com o melhor que

produziram.

Apresentaremos a seguir práticas e conceitos que estão relacionados ao universo

dos museus pela paz, como são os casos das discussões a respeito: dos Museus

Memoriais; do Difficult Heritage164 e do Turismo Sombrio (Dark Tourism). Tais elementos

indicam o surgimento de uma relação diferenciada entre práticas antes relacionadas ao

contato prazeroso com o sublime (os museus, o patrimônio, o turismo) e o tema da morte e

do sofrimento. A inscrição do discurso museológico no registro do trágico, do Tanatos

freudiano de que falamos anteriormente. É quando o Museu165, imbuído de mítica, desce ao

Hades, em direção ao Tártaro.

164

Opto por traduzir e adaptar para “patrimônio traumático”, por considerar que se um patrimônio gera incômodo e dissonância por não ser considerado parte integrante do itinerário simbólico de determinada sociedade e da sua tradição incontornável (ou seja, a herança de seus antepassados), é pela ocorrência histórico-social de um processo de ruptura, de trauma. 165

SCHEINER, 2008.

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3.1. Os Museus Memoriais

“We should forget the sort of remembering that replaces tradition,

Kings and Queens with a theatre of trauma” (Tiffany Jenkins166

)

O termo memorial museum tem sido utilizado para identificar um fenômeno recente

do campo dos museus: a criação de instituições museológicas dedicadas à lembrança de

eventos de violência extrema ocorridos no passado. O conceito tem origem na reflexão de

que tal “função”, antes relegada a edificações específicas (marcos geográficos e esculturas,

por exemplo), tem sido desempenhada por museus dedicados especificamente a tal

proposta167. “Museus memoriais operam contra a premissa convencional de que nós

preservamos marcos daquilo que é glorioso e e destruímos evidências do que é injurioso”168

Diferentemente do que se esperaria de um museu de história tradicional, tais locais

estão menos engajados na interpretação e contextualização de períodos históricos amplos

do que no objetivo de fazer rememorar um ato específico ocorrido usualmente naquele

local. Os exemplos são inúmeros, dentre os quais podemos citar: o Memorial da

Resistência (implantado na antiga sede do DOI-CODI, em São Paulo); o Museu Tuol Sleng

de Crimes de Genocídio (surgido a partir da musealização do maior centro de tortura do

Kmer Vermelho, no Camboja); o Museu do Distrito Seis, na Cidade do Cabo, que busca

recuperar a memória do bairro de mesmo nome (tal distrito, de população majoritariamente

negra, teve seus moradores despejados pelo regime do Apartheid, que intencionava

transformar o local em um bairro segregado); e o PERM-36, na Rússia (um antigo gulag

soviético, musealizado).

O museu, o monumento e o memorial de fato se revigoraram depois de terem sido tantas vezes dados por extintos, ao longo da história do modernismo. [...] As fronteiras entre o museu, o memorial e o monumento de fato se confundiram na última década, de modo a tornar obsoleta a antiga crítica do museu como fortaleza para poucos e do monumento como meio de reificação e esquecimento

169

Tal modalidade de museu oferece um rico potencial de análise, suscitando questões

diferenciadas à Museologia em relação aos museus de história tradicionais. .Além disso,

alguns museus da paz são também museus memoriais (como é o caso do Hiroshima Peace

Memorial Museum), o que justifica a importância de abordarmos tal manifestação.

Criado junto ao Conselho Internacional de Museus (ICOM), em 2001, o Comitê

Internacional de Museus Memoriais para Recordação de Vítimas de Crimes Públicos (IC

166

JENKINS, 2005, não paginado. Tradução nossa. 167

Museologia do trauma, baseada em memórias traumáticas. 168

WILLIAMS, 2007, p. 102. Tradução nossa. 169

HUYSSEN, 2004, p. 76.

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52

MEMO) esclarece que170 diferentemente dos museus históricos tradicionais (que se dedicam

à apresentação de grandes períodos ou fatos históricos, sine ira et studio) e dos

monumentos tradicionais (usualmente dedicados a momentos ou personagens históricos

heróicos), os museus memoriais são dedicados às vítimas desses “eventos históricos”. Isso

implica a adoção de uma postura crítica por parte do museu, afastando-se do ponto de vista

de um “contador de histórias” neutro. O museu assume-se político e filia-se ao compromisso

de - rememorando as vítimas - denunciar as ideologias e circunstâncias políticas que

permitiram e incitaram a perseguição e o aniquilamento de determinado grupo de pessoas.

Por tais características, são museus de vocação explicitamente política. São

intrinsecamente contenciosos: causam desagravo social por lidarem com temas traumáticos

ou são até mesmo instrumentalizados pelos regimes políticos no qual estão inseridos.

Ilustram isso casos como o Museu Memorial do Massacre de Nanquim ou alguns campos de

concentração do regime nazista no Leste Europeu, que foram musealizados. No primeiro

caso, o governo chinês busca enfatizar um fato do passado negado pelo governo japonês

ainda nos dias de hoje. No segundo, o discurso institucional sofre modificação de acordo

com o regime vigente: quando da ocupação soviética, o holocausto e o nazismo eram

apresentados como um ataque ao proletariado; após o fim da ocupação, o holocausto passa

a ter como significado central o extermínio de judeus, a “se tornar” um aniquilamento

étnico171. “No espírito da noção de Benedict Anderson de comunidades imaginadas, o

memorial provêm aos regimes vitoriosos um mecanismo de imaginação de uma nova nação

através das narrativas sobre o passado que eles disseminam”172.

Eles atuam em consonância ou em dissonância com o poder instituído, pois, em

alguns casos,

o tipo de lembrança crítica que os museus memoriais oferecem pode ser incompatível com a realpolitik associada com o desejo de um governo de que os cidadãos esqueçam determinado episódio

173

Isso faz com que os museus memoriais usualmente só possam tomar forma quando

os regimes políticos responsáveis por perpetrar os crimes que se pretende rememorar não

mais existam174. Além disso, a existência desses museus tende a depender também da

170

BREBECK, 2001, não paginado. Tradução nossa. 171

KIMMELMAN, 2011. 172

MOORE, 2009, p. 57. Tradução nossa. 173

WILLIAMS, 2007, p.113. Tradução nossa. 174

Ou seja, a denúncia do Apartheid somente sendo possível após seu fim (valendo o mesmo para os crimes cometidos pelo nazi-fascismo e outras ideologias ditatoriais).

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autoria dos crimes cometidos: a dificuldade política de criar instituições desse tipo é menor

nos casos em que os agressores são invasores externos, ao invés de concidadãos175.

Os museus memoriais podem ter tanto o efeito de auxiliar na reconciliação pós-

traumática de uma sociedade ou de gerar tensão social.

Numa boa hipótese, memoriais ajudam a curar as feridas de antagonismo e induzem indivíduos a refletir sobre o que eles podem fazer para prevenir violência futura. Numa hipótese ruim, memoriais minam a construção da paz e reconciliação176

E como cada definição do que lembrar traz em si uma do que esquecer, esses

museus memoriais (e memoriais em geral) podem servir a usos políticos que buscam

estabelecer uma espécie de amnésia programada, através da recordação deliberada de

alguns aspectos, ao passo em que se eclipsam outros. Dessa maneira, esforços podem ser

feitos para lembrar-se da Resistência Francesa (esquecendo o colaboracionismo) ou das

agressões cometidas contra os Tutsis em Ruanda177 (mas não as cometidas por eles).

Como afirma Paul Williams: “é útil considerar todos os museus memoriais existentes não

como predestinados e estáveis, mas como resultado de lutas de poder”178.

Atos de violência extrema levados a cabo por regimes autoritários são perpetrados,

usualmente, de forma clandestina. Sendo assim, as evidências documentais e os

implementos de violência utilizados são, não raro, objeto de destruição por esses regimes.

Isso gera, destarte, uma situação inusitada, em comparação com museus de história

tradicionais: as coleções tendem a ser diminutas e, em conseqüência de tal contexto,

imbuídas de uma significação ainda maior. Como aponta Paul Williams, “onde um grande

museu genérico de história pode lançar mão de uma ampla gama de temas, a relação entre

o museu memorial e seu evento é de foco singular”179. Um sapato, uma faca, um

instrumento de tortura... cada objeto remanescente (seja da vítima ou do algoz) é absorvido

numa carga de significado poderosa e sinistra.

Esses locais destinados a rememorar episódios traumáticos reposicionam o museu

numa perspectiva com algumas semelhanças à experiência religiosa. Paul Williams180

indica, por exemplo, que se trata de uma experiência sensorial bastante semelhante a ir a

um templo religioso: ambos (o templo e o museu memorial) funcionam com base numa

noção de local sagrado e de congregação de pessoas em comunhão e ambos atuam num

“tom moral”, demonstrando a propensão a se cometer atos abomináveis (pecado), que

175

BREBECK, 2001. 176

MOORE, 2009, p. 48. Tradução nossa. 177

Sobre o processo de memorialização do conflito entre Tutsis e Hutus em Ruanda, ver MOORE, 2009. 178

WILLIAMS, 2007, p. 107. Tradução nossa. 179

Ibid., p. 25. Tradução nossa. 180

Ibid.

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podem e devem ser evitados. E há também outros elementos familiares ao discurso

religioso, como o sentimento de culpa (“meus antepassados eram nazistas?”), e a proibição,

que se transfigura do pecado para o imperativo do “não podemos esquecer”.

Os visitantes são motivados pela necessidade de serem iluminados, seja através de uma busca para entendimento pessoal ou um desejo mais amplo de informação histórica sob a forma de uma experiência rústica ou – tristemente – pela necessidade de suprir uma curiosidade mórbida (uma forma de turismo sombrio ou voyeurismo) por ver objetos sinistros e aterradores associados ao sofrimento alheio

181

Esses museus oferecem, também, questionamentos éticos de toda ordem. Suas

coleções são formadas, não raro, a partir dos “produtos” de atos de tortura e violência. Até

que ponto, por exemplo, eles não contribuem para a continuidade desses atos retratados?

Até que ponto uma foto tirada de um ato de tortura não é, por si, a continuação do mesmo

ato por outros meios? Deve o museu expo-las?

Não é surpreendente, portanto, que tais museus não sejam aceitos unanimemente.

A premissa do mandamento de “não esquecer” eventos terríveis do passado

desperta críticas por parte de alguns autores de que ela não só revelaria uma crença

insustentável no potencial pedagógico da história (“uma fé inabalável de que a acumulação

de mais conhecimento e experiência levaria a resultados previsíveis e favoráveis”182), mas

também uma “obsessão” que tende a marcar profundamente nossa cultura, de maneira

danosa, ao nos aniquilar com o peso do passado no que ele possui de pior. Se o

esquecimento dos piores atos do passado nos condenaria a repeti-los, seria sua lembrança

garantia de não os cometermos?

Em um texto provocador, Tiffany Jenkins questiona não apenas o foco dos museus

memoriais, como sua freqüente tentativa de relacionar eventos do passado a outras

violências ocorridas no tempo presente, além de buscar inspirar no visitante um senso de

empatia interpretado, explorando suas emoções com o uso de cenários e situações que

buscam integrar o visitante como uma das possíveis vítimas do acontecimento retratado:

Esses museus indicam um desejo de elevar os piores aspectos da história da humanidade como uma maneira de compreendê-la hoje. [...] a experiência do conflito e a presença permanente da morte não podem ser recriadas através do design, luz e som. [...] A suposição parece ser de que visitantes só conseguem apreciar o que aconteceu pensando como nós reagiríamos em uma situação semelhante – como se nós fossemos tão narcisistas a ponto de sermos incapazes de contemplar o passado sem interpretação de papéis [grifo nosso]. Somos encorajados a pensar sobre ‘mim’, não ‘eles’; ‘agora’, ao invés de naquela época. [...] É um

181

MUNIAK, [20--], não paginado. 182

DIO PAOLANTONIO, 2010, p.1. Tradução nossa.

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panorama desolador que enxerga a humanidade como constantemente à mercê de violência arbitrária

183

Apesar de algumas críticas a esses museus, indicadores revelam um fortalecimento

crescente da tendência de se utilizar memoriais (entre eles, museus) como condutores para

reconciliação, democracia e direitos humanos184.

Exemplo disso é o trabalho desenvolvido pela International Coalition of Sites of

Conscience, uma rede global de monumentos, sítios, museus e iniciativas em geral voltados

para recordar lutas do passado, relacionando-as com o engajamento em questões

contemporâneas185. A memorialização186 é a segunda principal reivindicação de grupos

vítimas de violência, atrás apenas de reparação financeira, como indica relatório da

instituição. O museu pode prover aos debates políticos um importante aspecto de

materialização de um determinado tema, servindo como referência e território para um dado

ativismo político, pois “a memória de uma sociedade é negociada no corpo social de crenças

e valores, rituais e instituições. No caso específico das sociedades modernas, ela se forma

para espaços públicos de memória tais como o museu, o memorial e o monumento”187

Acreditamos ser necessário reconhecer que a lembrança de um ato trágico do

passado não nos livra da possibilidade de sua repetição no futuro e que essa mesma

lembrança está sujeita a manipulações e constrangimentos típicos do jogo político.

Entretanto, os desafios e obstáculos inerentes a qualquer iniciativa de memorialização não

devem servir de justificativa para o silêncio, pois, como nas palavras Jean Baudrillard,

“esquecer o extermínio é parte do próprio extermínio”.

Na tentativa de reconciliar um passado recente e doloroso com um presente esperançoso e agregador, as nações que vivenciaram atrocidades marcantes [...] vêm pautando suas ações em devolver e transformar tais locais em museus de recordação e reconciliação, na tentativa de estimular a população visitante perceber que, entre a memória e o esquecimento, há um espaço para a reflexão e o apaziguamento

188

183

JENKINS, 2005, não paginado. Tradução nossa. 184

Sobe isso, ver “Memorialization and Democracy: state policy and Civic Action” (BRETT, et al, 2007) relatório disponível em: http://www.sitesofconscience.org/wp-content/documents/publications/memorialization-en.pdf 185

Ver SEVCENKO, 2010. 186

Definida no relatório citado como “processo de criação de memoriais públicos”( BRETT; et al, 2007, p.1) 187

HUYSSEN, 2004, p. 68. 188

CASTRO, 2007, p.114- 115.

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3.2. Patrimônio Traumático: patrimônio, trauma e dissonância

“A paisagem da devastação ainda é uma paisagem. Existe beleza nas ruínas” (Susan Sontag)

Reconhecer algo como patrimônio (ou herança) é lançar sobre um ente – seja ele

material ou imaterial – um valor diferenciado, que se demonstra na sua proteção e em sua

vinculação a experiência coletiva. Dessa maneira, é previsível que sociedades e entidades

representantes do Estado optem pela afirmação e construção narrativa de um passado

glorioso, que se traduz na seleção e atribuição de valor de elementos que representem

manifestações concretas, significativas desse passado, ainda que inventado.

“Todas as sociedades têm necessidade de suas raízes culturais, que se situam no

campo da memória coletiva, onde a afetividade, a emoção e a razão jogam um jogo

complexo, denso e nem sempre equilibrado”189

Relacionando-se com a construção de narrativas mnemônicas e forjadoras de

identidades (étnicas, nacionais ou qualquer outra categoria coletiva),

o patrimônio é uma vasta coleção de fragmentos, na medida em que seus componentes são descontextualizados, retirados dos seus contextos originais, no passado ou no presente, e reclassificados nas categoria[sic] das ideologias culturais que informam as políticas oficiais de patrimônio. Sua integridade não é presente e positiva, mas uma integridade necessariamente perdida, situada numa dimensão distante no tempo ou no espaço

190

Os elementos que permeiam a invenção de tradições e a construção de discursos

que elegem o que é nacional, de valor “excepcional” (critério esse em desuso) ou que,

grosso modo, merece ser preservado, não constituem, contudo, nosso foco, e sim o

fundamento emocional e afetivo do patrimônio. Fundamento esse que é continuum, não

constituindo apenas uma base nebulosa a partir da qual emerge em materialidade (seja

como registro do imaterial ou como reconhecimento do próprio bem material), através da

objetificação cultural191. O patrimônio instituído não é o produto racional, frio, de um

procedimento técnico que tomou como matéria-prima elementos subjetivos. Esses

elementos continuam presentes, em continuidade.

O ato de valorar algo como patrimônio está intrinsecamente vinculado com a

experiência coletiva, ainda que através da memória e da narrativa histórica. Em alguns

casos, itinerários políticos e simbólicos percorridos por algumas sociedades (revoluções e

189

COSTA, 2011, p. 2. 190

GONÇALVES, 1996, p.102. 191

“A objetificação refere-se à tendência da lógica cultural ocidental a imaginar fenômenos não materiais (como o tempo) como se fossem algo concreto, objetos físicos existentes” (WHORF, 1978 apud GONÇALVES, 1996, p.13) ou “materialização imaginativa de realidades humanas em termos de discurso teórico baseado no conceito de cultura” (HANDLER, 1984 apud GONÇALVES, 1996, p.13).

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implantação de regimes totalitários, por exemplo) deixam, também, marcas indeléveis, tão

profundas que se tornam incontornáveis na construção de narrativas nacionais e locais,

mesmo após a dissolução desses regimes instaurados.

Seja por uma possível descontinuidade causada pela pós-modernidade ou pela mera

magnitude das experiências extremas192 levadas a cabo no século XX, o fato é que é

possível observar uma ruptura com uma

visão patrimonial que prevalecera na geração passada quando estávamos quase inteiramente preocupados em proteger as grandes e belas criações do passado: reflexões do gênio criativo da humanidade mais do que o inverso – o lado destruidor e cruel da história. Por que tal mudança ocorreu e que implicações isso tem para profissionais que atuam no campo do patrimônio?

193

Configura-se, nesses casos, não um contexto que propicia a celebração

“harmoniosa” de um bem comum, mas sim um interdito, um “constrangimento coletivo”

diante de algo que representa a lembrança de um passado que se quer esquecer, ou sobre

o qual se deseja calar. O que um dia fora visto como motivo de orgulho para uma nação,

com as mudanças históricas e de mentalidades, pode ser interpretado como motivo de

vergonha (o colonialismo, a escravidão, a opressão de minorias, por exemplo).

Tomando Nuremberg como objeto de análise, Sharon Macdonald (2009) introduz o

conceito de “difficult heritage”194:

ou seja, um passado que é reconhecido como significativo no presente mas que também é contestado e constrangedor para reconciliação pública com uma identidade contemporânea positiva e autoafirmativa

195

Se usualmente tem-se utilizado o conceito de ressonância196 na literatura do campo

do Patrimônio no Brasil, a ideia de dissonância talvez nos sirva como categoria de análise

192

Como o “Mal Absoluto”, de que fala Hannah Arendt. Cf. CORREIA, 2007. 193

LOGAN; REEVES, 2009, p. 1. Tradução nossa. 194

Considero que uma tradução apropriada de tal conceito em Língua Portuguesa seja “patrimônio traumático”, a qual emprego neste trabalho, por considerar mais apropriada que a conotação transmitida pelo termo “difícil”, em Português. Infiro que se não se reconhece algo como vinculado à experiência coletiva no sentido de sua afirmação - e, pelo contrário, há um constrangimento e um desejo forçado de “esquecimento” -, configura-se um contexto que pode ser descrito como traumático. Julgo oportuno expressar que opto por tal tradução a despeito da escolha da autora pela não utilização de tal vocabulário psicanalítico: “[...] vários comentadores têm falado em ‘fantasmas’ – em serem ‘assombrados pelo’ passado nazista e por outros; e muitos têm utilizado termos psicanalíticos como ‘repressão’ e ‘trauma’. [...] Como estou interessada em explorar tais usos etnograficamente e historicamente – ou seja, observando seu desenvolvimento e implicações – eu evito usá-los como ferramenta em minha própria análise do que está envolvido nas negociações a respeito da herança de Nuremberg [tradução nossa]” (MacDonald, 2009, p.20). Avalio que, em um escopo mais amplo e levando em conta a discrepância idiomática, a escolha pelo termo “traumático” se sustenta. Importante notar que tal conceito foi bem recebido academicamente, como podemos notar a partir do surgimento de coletâneas (ver LOGAN; REEVES, 2009) e de eventos acadêmicos da área de patrimônio que se valem de tal conceituação. 195

MACDONALD, 2009, p. 1. Tradução nossa. 196

Ver GONÇALVES,2005.

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mais apropriada ao tema. Ou seja, na observação da “dissonância patrimonial”197, da

tempestuosa relação que se estabelece entre comunidade (ou visitante, já que o turismo é

uma importante indústria no mundo globalizado) e o bem traumático, esse “patrimônio que

dói”198. Por exemplo: ao passo que alguns tendem a considerar que a preservação de um

marco ligado a um passado de destruição seja algo didático, que serve como advertência de

um ato que jamais deve ser replicado, outros podem indagar se a mera preservação desse

mesmo marco não se constituiria como uma continuação de um ato atroz, ao conferir

“legitimidade” e cristalização a esses “locais de dor e vergonha”199.

Em célebre artigo, Stephen Greenblatt define ressonância como

o poder de um objeto exposto atingir um universo mais amplo, para além de suas fronteiras formais, o poder de evocar no expectador as forças culturais complexas e dinâmicas das quais ele emergiu

200

Essa relação que se estabelece entre um dado objeto e um expectador (seja coletivo

ou individual) pode engendrar uma interpretação “harmônica” (ressonância é uma metáfora

sonora) ou não de um bem. “Um patrimônio não depende apenas da vontade e decisão

políticas de uma agência de Estado. Nem depende exclusivamente de uma atividade

consciente e deliberada de indivíduos ou grupos”201. Embora esteja presente, em algum

nível, em toda relação com o patrimônio (há sempre quem defenda e se oponha aos efeitos

do registro patrimonial, por exemplo), quando a discrepância de interpretação e valoração

de um bem por um dado grupo é tão controversa, se estabelece uma relação de dissonância

patrimonial.

Tal dissonância pode ser observada não apenas em temas circunscritos às fronteiras

de uma mesma nação, mas também no âmbito internacional (ou transnacional), ao envolver

o impacto de um determinado evento em diferentes sociedades ou comunidades. Um

exemplo paradigmático que podemos mencionar é com relação à memorialização e

patrimonialização202 do Holocausto:

Desde o princípio, os mesmos fatos geraram relatos e memórias sintomaticamente distintos. Na Alemanha, o Holocausto significa a ausência de uma presença judaica forte na sociedade, além de um fardo traumático para a identidade nacional. Tentativas genuínas de lamentação, que existiram por um certo tempo, enredam-se inexoravelmente com uma ferida narcísica, a autoflagelação e o recalque. [...] Em Israel, o Holocausto se tornou central para a fundação do estado, tanto como o desfecho de uma

197

MACDONALD, 2009. 198

UZZELL; BALLANTYNE, [199-]. 199

LOGAN; REEVES, 2009. 200

GREENBLATT, 1998, p. 42. 201

GONÇALVES, 2005, p. 19. 202

Por patrimonialização entendemos a submissão de um determinado bem (material ou imaterial) a um

processo de valoração e registro que o consagra como digno de preservação e reconhecimento.

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rejeitada história dos judeus como vítimas quanto como ponto de partida de uma nova história nacional, uma auto-afirmação e uma resistência. Na imaginação israelense, a rebelião do gueto de Varsóvia se reveste da força de uma memória mítica de resistência e heroísmo insondáveis na Alemanha. A imaginação americana sobre o Holocausto se concentra no papel dos Estados Unidos como libertadores dos campos de concentração e porto seguro para refugiados e imigrantes, e os memoriais americanos ao Holocausto se configuram em conformidade com isso. Na versão soviética, o genocídio dos judeus perdeu a sua especificidade étnica e simplesmente degenerou na forma da perseguição nazista ao comunismo internacional. E isso e tal maneira que hoje se faz necessário reconstruir as narrativas dos espaços memoriais europeus do Leste e soviéticos

203

O patrimônio traumático se distingue por nos perturbar e estranhar, ao invés de nos

incitar a uma celebração confortável de nossa imagem (no sentido social) grandiloquente no

espelho. Ao nos confrontar com vestígios de uma realidade pretérita soturna, traumática,

esse patrimônio “pode ser incômodo porque ameaça invadir o presente em um rompante,

expondo divisões sociais”204. Por insistir, em sua persistente materialidade, em nos conectar

a um passado vergonhoso, o patrimônio traumático nos desafia a rever nossa relação

afetiva com nossa herança cultural205, reconhecendo-a também na sua face desagradável

(vestígios do mal perpetrado), e não somente do que nos encanta e agrada.

3.3. Turismo Sombrio

“This form of tourism services an important historical necessity: the necessity that exists today” (Justin M.A. Taillon

206)

Se as práticas de musealização e patrimonialização que temos abordado são

intrinsecamente relacionadas a episódios traumáticos vividos pelas sociedades nas quais

estão inseridas, não estão circunscritas a elas.

Vários autores apontam como a memorialização de alguns episódios da história

recebe mais atenção que outros, além de possuírem um potencial maior de gerar empatia,

devido a fatores históricos e políticos. Dessa maneira, a iniciativa de rememorar um episódio

ocorrido no mundo ocidental (particularmente na Europa) tende a receber maior apoio e

atenção do que um fato de mesma natureza ocorrido no Sudeste Asiático. Mesmo no atual

estágio da globalização, a caracterização do mundo europeu como “global” e do restante

como local (legado do colonialismo) ainda persiste. Além disso, afirmam que o Holocausto

judaico ocorrido durante a Segunda Guerra tornou-se um paradigma de memorialização207.

Iniciativas de criação de museus e monumentos voltados a episódios diferentes acabam se

203

HUYSSEN, 2004, pp. 80-81. 204

MACDONALD, 2009, p. 1. Tradução nossa. 205

Sobre a relação afetiva com o patrimônio e seu uso como instrumento pedagógico, ver COSTA, 2000. 206

TAILLON, [20--], p. 18. Tradução nossa. 207

Cf. HUYSSEN, 2004; WILLIAMS, 2007; YOUNG, 1993.

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valendo até do mesmo repertório de ordem estética208. Até um mesmo episódio pode ser

apresentado, relembrado, de maneira incompleta ou enviesada. As narrativas sobre o

Holocausto negligenciam, não raro, as diversas vítimas não-judaicas do mesmo evento: os

comunistas, os ciganos, os deficientes, os homossexuais...

Mesmo inseridos em contextos desiguais (já que uns tendem a ser percebidos como

“mais globais” que outros), museus memoriais, museus da paz e o patrimônio traumático em

geral recebem atenção de um público que vai além das comunidades nas quais tais

iniciativas estão inseridas ou para as quais são voltadas.

Visitantes de toda parte do mundo são atraídos aos campos de concentração

nazistas, aos gulags, a Maison des Esclaves... Como também são atraídos ao Père

Lachaise, a locais de desastres naturais, etc. Tal fenômeno tem sido percebido e analisado

pelo campo do Turismo nos últimos anos. Com nomenclatura ainda essencialmente

contestada209, tem sido observado que tal prática - embora não sendo exatamente nova210 -

crescera exponencialmente, assim como as iniciativas de memorializar locais relacionados a

atrocidades.

O Turismo Sombrio211, de maneira geral, pode ser definido como “o ato de viajar a

lugares associados com morte, sofrimento ou o aparentemente macabro”212, não havendo

ainda consenso na literatura213 sobre os motivos que motivam o desejo por parte dos turistas

a tal tipo de experiência, embora

uma ampla variedade de consumo de turismo sombrio pareça ser definida por ou em relação com o mundo social do turista; ou seja, as experiências de turismo sombrio devem ser consumidas para que certo sentido

208

WILLIAMS (2007) descreve as similaridades entre monumentos no mundo todo e sua referência a um “modelo” inaugurado pelas primeiras iniciativas de se erigir marcos em homenagem aos mortos da Primeira Guerra Mundial e consolidado pela difusão planetária de iniciativas que buscam cristalizar a memória do Holocausto. 209

Em um levantamento, facilmente podemos encontrar o uso dos termos “Thanatourism” ou “Dark Tourism” como nomenclatura global de práticas nomeadas por uma miríade de termos distintos, tais como: “Grief Tourism”, “Fright Tourism”, “Morbid Tourism”, “Atrocity Tourism”. Cf. TAILLON, [20--]. 210

Há um debate na literatura sobre o tema sobre a origem desse tipo de turismo. Alguns autores sustentam que se trata de uma prática extremamente antiga (já existia o hábito de visitar as ruínas de Pompéia, por exemplo, séculos atrás), que apenas adquire maior intensidade com a globalização (que nos conectou sincronicamente a diferentes partes do mundo e também as suas tragédias) e fora categorizada nos estudos a partir do fim do século XX; já outros alegam que se trata de um fenômeno eminentemente do século XX, apesar da existência de práticas semelhantes no passado, de forma pontual. Para uma apresentação dessas diferentes abordagens, ver SHARPLEY, 2009 e STONE;SHARPLEY, 2008. 211

Emprego tal nomenclatura por julgar, com base na literatura referenciada, que os termos que dão conta dessa modalidade de turismo de maneira geral seriam “thanatourism” ou “dark tourism”, sendo os outros mencionados em nota anterior, categorias específicas. Entre os dois, opto pelo uso de “turismo sombrio” (tradução de “dark tourism”) por ter encontrado casos de sua utilização em Língua Portuguesa. Registro também que, entre as tentativas de categorização de diferentes modalidades de Turismo Sombrio (SHARPLEY, 2009), há indicação de tanaturismo como a tendência de visitação a museus, coleções e memoriais relacionados a temas ligados a morte e guerras. 212

SHARPLEY, 2009, p. 10. Tradução nossa. 213

Importante registrar que, apesar do debate sobre a origem da prática dessa modalidade de turismo sombrio, o estudo sistemático de tal tema (e nomenclatura) tem início apenas a partir dos anos 1990. Ver SHARPLEY, 2009.

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fenomenológico seja alcançado no próprio mundo social dos turistas. [...] Nesses casos, é uma fascinação com a maneira, mas sim com o sentido ou implicação da morte individual ou em massa que é fundamental para a experiência

214

Como indústria, o impacto do Turismo em iniciativas museológicas e patrimoniais das

quais tratamos deve ser levado em conta. Mais ainda, o aparente crescimento do interesse

social por confrontar temas tidos como “mórbidos”, desagradáveis ou macabros, nos ajuda a

analisar, em consonância, o recente interesse da Museologia por esses mesmos temas,

numa perspectiva integrada e mais ampla. Como afirma Taillon, em uma abordagem

nietzschiana do turismo sombrio:

compreender a história de uma atividade na sociedade é importante. Morte e o macabro nem sempre foram temas tabus (Sharpley & Stone, 2009). Se o turismo sombrio é uma forma historicamente pertinente de turismo então nós podemos compreender melhor uma pequena fração do que conhecemos como “homem”

215

A existência de fenômenos como o do turismo sombrio nos permite perceber que os

museus condizentes a uma “tanatomuseologia” possuem semelhanças com outras

modalidades de museu também no que se refere ao interesse crescente de um público

global, ainda que diferenciado e em menor escala. Eles não são, como se poderia dizer, um

“corpo estranho” na Museologia; são, talvez, a possibilidade tardia de adoção por nossas

práticas museológicas de uma perspectiva nietzschiana216:

a cada vez mais socialmente aceitável contemplação da morte e de sua recontextualização para entretenimento, educação ou com propósito memorial oferece ao ser coletivo e individual um mecanismo de confronto pragmático para iniciar o processo de neutralização do impacto da mortalidade. Consequentemente, isso pode ajudar a minimizar a ameaça intrínseca que a inevitabilidade da morte traz

217

214

SHARPLEY, 2009, p. 17. Tradução nossa. 215

TAILLON, [20--], p. 21. Tradução nossa. 216

A filosofia de Friedrich Nietzsche, com sua constante referência aos instintos, ao corpo e à vida nos impõe a revisão de uma visão asséptica e pusilânime de paz, de cultura (e, consequentemente, de museu) como algo estéril, livre de conflito, de poder, e, portanto de vida. Recuperando o valor dos nossos instintos naturais, o pensamento nietzschiano nos provoca a admitir nossa organicidade e tragédia. “Nós filósofos não temos a liberdade de separar entre alma e corpo, como o povo separa, e menos ainda temos a liberdade de separar entre alma e espírito. Nós não somos rãs pensantes, nem aparelhos de objetivação e máquinas registradoras com vísceras congeladas – temos constantemente de parir nossos pensamentos de nossa dor e maternalmente transmitir-lhes tudo o que temos em nós de sangue, coração, fogo, prazer, paixão, tormento, consciência, destino, fatalidade” (NIETZSCHE, 2005, p.175). 217

STONE; SHARPLEY;, 2008, p. 587. Tradução nossa.

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4. Quando o museu se assume político:

Apontamentos sobre política e Museus pela paz

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4. Quando o museu se assume político: apontamentos sobre Política e Museus pela

Paz

“A reflexão museológica se localiza dentro de uma perspectiva filosófica, antropológica e política – no sentido da polis, cidade – repitamos uma vez

mais, porque nem todos estão ainda convencidos disso” (Mathilde Bellaigue, Memória, Espaço, Tempo, Pode”)

O museu é atravessado por relações políticas, como toda instituição social. Porém,

como temos apresentado ao longo de nossa abordagem, um fator que chama a atenção no

caso dos museus pela paz é sua vocação deliberadamente política, ao atuar como

articulador em prol de determinadas causas consideradas vitais ao exercício pleno da

democracia e do respeito aos direitos humanos.

Em virtude disso, elaboraremos a seguir alguns apontamentos sobre a relação entre

política e museus, tomando os museus pela paz como destaque.

4.1. O museu e a esfera pública

“the primacy or vision and space in modernity reveals the museum as a crucial space of the public sphere”

(Jennifer Barret, “Museums and the public sphere”)

Fator fundamental para o funcionamento do regime democrático e as discussões do

rumo político da nação, o espaço público (e, de maneira mais ampla, a esfera pública) tem

sido objeto de teorização por parte da Ciência e da Filosofia políticas.

Uma das mais célebres e influentes teses a respeito de tal tema é expressa no

pensamento habermasiano, que parece excluir o papel do museu na esfera pública,

subestimando a importância do surgimento de tal instituição em sua vertente moderna

(aberta ao público em geral) e de uma nova espacialidade surgida no bojo da

modernidade218. Habermas sustenta sua teoria com base numa esfera pública imaterial,

propiciada por uma racionalidade comunicativa e surgida a partir da discussão de questões

de ordem pública, focalizando um debate burguês de base literária (jornais, revistas,

romances), a ser desempenhado nos cafés (local que Habermas considera privilegiado para

o surgimento da esfera pública):

A esfera pública de Habermas não é um corpo real de pessoas; no entanto possui o potencial de ter poder “real”. O mecanismo através do qual se torna real é o discurso ou debate sobre temas de importância pública. Nesse modelo, esses debates afetam a opinião pública e têm influência sobre a

218

BARRET, 2011.

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política governamental e sua implementação. O contexto espacial em si, Habermas deixa implícito, não é relevante ou constitutivo de tal discussão

219

Jennifer Barret (2011), em sua recente obra “Museus e a Esfera Pública”, propõe

repensar as bases da teoria de Habermas sobre o tema, abrindo espaço para a inclusão do

museu, ao enfatizar a importância da visualidade e da materialidade da modernidade,

advogando uma “esfera pública cultural”, a partir da inclusão da “experiência estética como

uma parte legítima da esfera pública”220. Deslocando o enfoque do discurso literário para o

duo (mutuamente constituído) espaço-visualidade e partindo do estudo da Arte, Barret

propõe a qualificação do museu como um espaço crucial da esfera pública.

a esfera pública burguesa historicamente situada emerge como parte da experiência da experiência de modernidade, na qual discursos espaciais e visuais também fazem parte, embora principalmente como discursos

estéticos221

A esfera pública habermasiana, literária e discursiva, reconhece o espaço público

como aquele local em que o discurso público toma forma. Com a emergência da ordem

burguesa, os assuntos públicos seriam discutidos nas sociedades literárias, clubes e cafés,

onde cidadãos se reuniriam e discutiriam – pautados pela razão - os rumos da nação, com

base em mídia escrita (romances, jornais, panfletos políticos).

Habermas ainda argumenta para a centralidade do consenso e o uso da razão e racionalidade na esfera pública. Ao privilegiar essa forma de engajamento público, Habermas negligencia (assim como seus críticos) o significado do espaço como uma alternativa – de um modo não-excludente – na qual a esfera pública opera e o próprio público é constituído

222

Barret chama a atenção para o fato de que, surgindo entre governo (Estado) e

sociedade civil, a teorização sobre a esfera pública em Habermas toma a Revolução

Francesa como contexto para o surgimento de uma esfera pública que, enfrentando o

Absolutismo e a Igreja (cujos poderes limitavam a ascensão da burguesia e seu novo projeto

de poder), fora fundamental para o desenvolvimento de uma visão democrática moderna.

Não por acaso, advoga Barret223, devemos notar que esse é o mesmo marco para o

surgimento da feição pública moderna de museu (a abertura do Louvre, pelos

revolucionários). “Ao museu público moderno foi dada uma nova racionalidade, distinta do

219

BARRET, 2011, p. 19. Tradução nossa. 220

Ibid., p. 31. Tradução nossa. 221

Ibid., p. 97. Tradução nossa. 222

Ibid., p. 27. Tradução nossa. 223

Ibid.

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uso privado do edifício pelo e rei e pela igreja. Um novo relacionamento foi forjado entre o

estado e o museu público”224.

Com o nosso olhar de hoje, dificilmente poderemos imaginar o que deve ter sido a força expressiva do museu numa sociedade onde apenas dão os primeiros passos o telégrafo, o telefone, o cinema, e a fotografia e onde a força da comunicação reside basicamente na literatura, na imprensa e no teatro

225

Ilustração 5

“O público no salão do Louvre” (Louis-Léopold Boilly)226

.

O argumento de Jennifer Barret é para que levemos em conta que, com a nova

ordem social, essa nova esfera pública se desenvolveu também em novos espaços

públicos. Entre eles, o museu. E que a Arte e os museus – julgados herméticos e subjetivos

para serem incluídos como de importante relevância para o debate público, por parte do

pensamento habermasiano, segundo Barret – possuem um papel de destaque no contexto

social, como instrumentos de comunicação e debate público. Se os museus e galerias eram

frequentados por membros de certa elite, o mesmo valeria para os freqüentadores de cafés

e leitores de jornais. A autora advoga pela inclusão “da experiência estética como uma

parte legítima da esfera pública”, que seria de ordem fundamental para o entendimento do

museu como esfera pública (“a dimensão estética [...] tem a capacidade de refletir sobre e

224

BARRET, 2011, p. 101. Tradução nossa. 225

SCHEINER, 1999, p. 146. 226

Fonte: http://andrewhopkinsart.blogspot.com/2010/12/public-in-salon-of-louvre-viewing.html

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afetar a opinião pública”227). A importância da experiência espacial e da visualidade como

também um modo de discurso.

A vida pública era decifrável em lugares onde as pessoas se reuniam, e se esses cidadãos também se engajassem na discussão de assuntos considerados “públicos”, os lugares se tornavam parte da esfera pública. A noção de Habermas de uma esfera pública é menos sobre local, porém, do que sobre a presença de discurso entre pessoas sobre assuntos públicos, mas, como vimos, sua elaboração histórica e teórica da emergência da esfera pública também identifica lugares materiais onde o discurso público ocorria. Lugares materiais são uma condição implícita para o modelo de Habermas de esfera pública existir, mesmo se a existência do espaço público não necessariamente garantir discurso público

228

Tal reflexão nos auxilia a compreender a inserção do museu no debate público,

objetivo esse em consonância com a proposta dos museus pela paz, que instrumentalizam o

museu como espaço público para o engajamento e discussão políticos, inserindo-o na

esfera pública. Isso demonstra, por conseguinte, a importância do museu enquanto meio de

comunicação (feição essa que abordaremos a seguir), já que falamos da disseminação de

uma mensagem política.

4.1.1. Museu e comunicação

Não há Logos, só há hieróglifos (Gilles Deleuze, “Proust e os Signos”,)

O museu tem servido como objeto de estudos elaborados a partir de referenciais

teóricos diversos da Museologia, como das Ciências Sociais, da Ciência da Informação, da

Comunicação, da Filosofia, entre outros. Isso se deve pelo reconhecimento do museu como

um local ou uma instância privilegiada, a partir da qual é possível perceber e analisar a

presença de elementos relacionados a temas sempre caros ao debate contemporâneo,

como: Memória; Identidade; relação entre classes, entre outros.

Não há museu que não leve em conta – mesmo que de maneira incipiente – o

“público”, a outra ponta da relação. O museu, portanto, é em si mesmo um ato

comunicacional229; comunicar é articular algo em comum com o Outro, e é a partir da

comunicação que o museu se realiza. O museu pode ser considerado também como um

meio.

O museu parece estar localizado e ser, ao mesmo tempo, um excepcional “emissor

de linhas” e sentidos, o que incita as mais diversas tentativas de compreender tal

227

BARRET, 2011, p. 92-93. Tradução nossa. 228

Ibid., p. 42. Tradução nossa. 229

SCHEINER, 1999.

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emaranhado. Sua feição mais conhecida e analisada - o modelo de Museu Tradicional

Ortodoxo230, centrado no objeto e na contemplação – parece nos iludir com sua aparência

hierática, fechada, rigidamente delineada. Mas para desenredar o museu, é preciso, como

sugere Gilles Deleuze231 sobre os dispositivos, “pensar em termos de linhas que se

movimentam”. É preciso reconhecer seus meridianos, seus contornos sutis – tracejados –

que ligam ao poder estabelecido, as ilhas de isolamento que desenha, os pólos a que se

limita... é preciso, em suma, dar conta de uma cartografia.

Linhas cujos contornos delineiam e atravessam o funcionamento daquilo que

Deleuze, retomando Foucault, chama de dispositivos. O que é, sendo assim, um

dispositivo? Estamos falando de algo de natureza heterogênea, referente tanto a discursos

quanto a práticas. Na “matriz”232, um conjunto que

engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma: o dito e o não dito [...]. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos [grifo nosso]

233

Essa rede heterogênea de elementos não é livre de conflitos. Pelo contrário,

comporta seus elementos em disputa constante. E não é feita de linhas sempre retilíneas,

mas também de curvas. Curvas de visibilidade, curvas de enunciação. Dispositivos são

igualmente “máquinas de fazer ver e de fazer falar”234, mediam o visível e o invisível, sob um

regime de luz própria. Eles não são imutáveis, estão em constante renovação, re-

atualização. “O novo é o atual. O atual não é aquilo que somos, mas aquilo em que nos

vamos tornando, aquilo que somos em devir”235.

Um dispositivo pode ser descrito em linhas gerais, dessa forma, como uma rede de

elementos heterogêneos (apesar de conflituosos) agrupados, em relação a um momento

(pois ele se modifica). O museu não pode, assim, ser analisado como um dispositivo? O que

é a história dos museus se não uma jornada em que, à sua maneira (“sob sua luz própria”,

como diria Deleuze) esses “locais” atuam como uma resposta aos desígnios das sociedades

e culturas, sincronicamente?

A Grécia clássica e o museu enquanto espaço delimitado(mouseion)236, em que os

objetos tomam força de documento; a Idade Média e o museu como o claustro, o tesouro, a

230

SCHEINER, 1999. 231

DELEUZE, 1996, p.1. 232

Tomamos por “matriz” a feição mais delimitada que Foucault dá a tal conceito, já influenciado pelos trabalhos de Deleuze e Guattari. Cf. REVEL, 2005. 233

FOUCAULT, 1977 apud REVEL, 2005, p. 40. 234

DELEUZE, 1996, p. 1. 235

Ibid., p. 4. 236

Sobre isso e para uma discussão sobre a gênese do Museu, cf. Scheiner, 1999.

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igreja237; o Renascimento, suas navegações e o interesse pelo diferente, representados

pela abertura de gabinetes de curiosidades; o período de formação dos Estados nacionais e

o surgimento dos grandes museus de história…. Não são esses indícios dessa relação, em

que um dispositivo intrinsecamente relacionado com a sociedade é posto em

funcionamento, produzindo os enunciados que se deseja, dando visibilidade e penumbra ao

que convém, “fazendo ver” e “fazendo falar” o que é autorizado?

Buscamos tal conceito, pois

o dispositivo foucaultiano, às vezes tomado como um simples sinônimo para aparato tecnológico, é um conceito bastante complexo, vigoroso metodologicamente para desenhar perspectivas teóricas produtivas no debate acerca das tecnologias comunicacionais em seu contexto histórico-cultural, o que nos interessa pela associação do conceito de museu como meio

238

A exposição é a principal ferramenta de comunicação do meio museu. É a partir dela

que o museu revela sua linguagem. É um sistema organizado através do qual o museu

apresenta ao público seus discursos e enunciados. Nela, como documentos da realidade, os

objetos de museu são expostos em suas interrelações, com o auxílio de ferramentas

museográficas, com intenção de geração e transmissão de conhecimento239.

Marília Xavier Cury define que

a comunicação museológica é a denominação genérica que são dadas às diversas formas de extroversão do conhecimento em museus, (...). As formas são variadas, como artigos científicos de estudo de coleções, catálogos, material didático em geral, videos, palestras, oficinas (...). Todas essas manifestações são, no museu, comunicação no lato sensu. No stricto sensu, a principal forma de comunicação em museus é a exposição

240

A relação temporal atravessa e esquadrinha a exposição: sua duração, o recorte

cronológico do tema tratado, a recriação de um tempo em seu discurso. Apesar disso, a

relação se dá sempre no presente. Como sistema de informação e documentação, a

exposição traz à tona um descompasso entre o tempo social e o histórico do objeto. Como

sintetiza Maroevic (1991), a exposição conjuga passado e presente.

A justaposição de tempos distintos é, dessa maneira, um elemento central. Uma

exposição estabelece uma relação entre o tempo social e cronológico, onde o presente

237

Pois “se na antiguidade as Musas estão no objeto, agora quem está no objeto é Deus” (SCHEINER, 1999, p.141). 238

TUCHERMAN; CAVALCANTI, 2009, p.2. 239

MAROEVIC, 1991. 240

CURY, 2005. p.34.

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corresponde ao tempo cronológico, enquanto o passado e a antecipação do futuro,

combinados, correspondem ao tempo social241.

O museu tradicional reúne em um mesmo espaço projetado objetos oriundos de

diferentes tempos e lugares.

Na sua peculiar relação com o Real, o museu tradicional cria e recria realidades a partir desses elementos arbitrariamente selecionados do mundo, desenhando metáforas com a intenção específica de provocar no observador determinadas emoções

242

O dispositivo museu também deslumbra, educa. Uma sala de exposição se

transforma em sala de aula, uma interpretação coletiva dos signos da Arte (mas não apenas

dela), pois “ser sensível aos signos, considerar o mundo como coisa a ser decifrada é, sem

dúvida, um dom. Mas esse dom correria o risco de permanecer oculto em nós mesmos se

não tivéssemos os encontros necessários”243.

Gilles Deleuze afirma que “aprender é, de início, considerar uma matéria, um objeto,

um ser, como se emitissem signos a serem decifrados, interpretados. Não existe aprendiz

que não seja "egiptólogo" de alguma coisa”244. Aprender requer, dessa maneira, que se

esteja aberto aos signos. É que “Não há Logos, só há hieróglifos. Pensar é, portanto, interpretar,

traduzir. As essências são, ao mesmo tempo, a coisa a traduzir e a própria tradução; o signo

e o sentido. Elas se enrolam no signo para nos forçar a pensar”245. O museu, como tudo que

nos ensina algo, emite signos. Visitá-los é procurar interpretar esses signos, traduzi-los.

A mera suposição de que o ser humano é capaz de perceber, e sua organicidade e

funcionalidades como receptor de mensagens é o pressuposto da “apresentação” dos

museus246. O ser humano participa fisicamente do processo. Sua mera presença “toca” a

exposição. É limitada, dessa maneira, a crítica aos museus tradicionais como

necessariamente herméticos e “frios”. Se acreditarmos que o museu tradicional

necessariamente transforma o visitante em um náufrago, tomamos indícios por fatos. A

crença na existência de uma ilha deserta (o museu tradicional) e de seus náufragos (o

visitante) emerge sempre da negação de um ponto de vista. Mais do que ser deserta, uma

ilha é desertada247. Museus são insulares quando assim planejamos e condenamos que

sejam; da mesma forma que “a essência da ilha deserta é imaginária e não real, mitológica

241

MAROEVIC, 1991. 242

SCHEINER, 1999, p. 144. 243

DELEUZE, 2006, p. 28. 244

Ibid., p. 4. 245

Ibid., p. 95. 246

MAROEVIC, 1991. 247

DELEUZE, [19--], p. 5.

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e não geográfica. Simultaneamente, seu destino está submetido às condições humanas que

tornam possível uma mitologia”248

O aspecto do museu de acumulação, organização e recriação do tempo-espaço

revelado pela exposição pode ser mais bem compreendido se atentarmos para outra noção

presente no pensamento de Foucault, que é a de heterotopia.

Opondo-se e ao mesmo tempo relacionando-se em união com as utopias (sítios sem

lugar real, espaços fundamentalmente irreais), as heterotopias seriam sítios que existem na

realidade, espécie de utopia realizada. Uma compreensão mais apurada poderia surgir a

partir do exemplo de relação especular, utilizado por Foucault: o espelho é uma utopia, uma

vez que é lugar sem lugar algum. Nele, podemos nos ver onde não estamos, num espaço

virtual; estamos além, somos uma sombra que nos concede visibilidade sobre nós mesmos,

enxergando-nos onde estamos ausentes. Esse é seu lado utópico. Porém, existindo também

na realidade, o espelho traduz-se numa espécie de contra-ação à posição que ocupamos,

permitindo-nos, a partir dessa imagem, reconstituir-nos a nós mesmos249.

Podendo ter sua função modificada; sobrepor num só espaço real vários outros;

ligar-se à parcelas do tempo (heterocronia)250; serem de acessibilidade ambivalente

(herméticas e penetráveis) e recriarem o espaço, as heterotopias possuiriam também

diversos tipos possíveis. Foucault enquadra instituições como os museus e as bibliotecas

como heterotopias acumulativas do tempo. Seriam sítios em que “o tempo não para de

se acumular e empilhar-se sobre si próprio”:

A ideia de conseguir acumular tudo, de criar uma espécie de arquivo geral, o fechar num só lugar todos os tempos, épocas, formas e gostos, a ideia de construir num só lugar todos os tempos, todas as épocas, formas e gostos, a ideia de construir um lugar de todos os tempos fora do tempo e inacessível ao desgaste que acarreta, o projecto[sic] de organizar desta forma uma espécie de acumulação perpétua e indefinida de tempo num lugar imóvel, enfim, todo este conceito pertence à modernidade. O museu a biblioteca são heterotopias típicas da cultura ocidental do século

dezenove251

Se nos detemos na apresentação original do conceito, é para indicar que o museu

tradicional tem esse papel de heterotopia, de (re)criação de um espaço ilusório - espelho de

outros espaços reais. Tal conceito nos ajuda a entender o funcionamento da exposição

248

DELEUZE, [19--], p.6. 249

“o espelho funciona como uma heterotopia neste momentum: transforma este lugar, o que ocupo no momento em que me vejo no espelho, num espaço a um só tempo absolutamente real, associado a todo o espaço que o circunda, e absolutamente irreal, uma vez que para nos apercebermos desse espaço real, tem de se atravessar esse ponto virtual que está do lado de lá” (FOUCAULT, [----], p.4). 250

Foucault declara que o auge funcional de uma heterotopia é atingido por ocasião de certa ruptura do homem com sua tradição temporal (heterocronia). Ele se utiliza do exemplo do cemitério: é uma heterotopia que para o indivíduo tem início na peculiar heterocronia que é a perda da vida, e na entrada desse novo tempo, que é o da lenta dissolução. 251

FOUCAULT, [----], p. 7.

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como uma construção artificial da realidade, a partir da coleta de objetos do “mundo real” e

sua inserção num mundo planejado. E, ainda, a relação conflituosa inerente a essa

justaposição temporal, pois mesmo quando a ambiência procura emular o mundo real, o

visitante percebe sua artificialidade e a constata ao deixar o ambiente e voltar ao “mundo

real”252.

A noção de heterotopia trabalhada por Foucault, contudo, merece ressalva.

Concedamo-nos, portanto, um pequeno aparte: se atentarmos para o destaque que o

filósofo concede aos museus como instrumentos de acumulação infinita de objetos, fica

claro que o museu ao qual ele se refere é uma instituição com clara delimitação no tempo

histórico, numa conceituação que não percebe o paradigma da acumulação irrestrita como

superado. A essência da noção de heterotopia - apreensível a partir do texto de

Foucault253 - reside no aspecto espacial, na justaposição de elementos de tempos distintos,

e não na acumulação de objetos. Como bem ressalva Beth Lord,

definir o museu como heterotopia porque ele é um espaço de diferentes objetos é ou banal (um supermercado também é um espaço de diferentes objetos) ou confiante em demasia na noção associada ao museu do século XIX, de um depósito atemporal de objetos temporalmente descontínuos. Talvez inevitavelmente tal definição termine comparando o museu ao cemitério ou a um espaço abstrato de acumulação (Lefebvre 1991: 263) [tradução nossa]

254

Foucault nos concede uma valiosa contribuição teórica conceituando o museu não

de acordo com modalidades de ação, tipos de coleção ou formas de exposição, e sim

abordando o museu como, essencialmente, um problema filosófico. Apesar disso, é

fundamental levarmos em conta que não só Michel Foucault jamais desenvolveu uma

reflexão sistemática sobre os museus, como sua caracterização dessas instituições as

condiciona a um paradigma já sob forte crítica e revisão pela Museologia à época (década

de 1960). Seu museu colecionista e que busca construir um discurso histórico totalizante

está longe de ser uma realidade única, como sua análise parece inferir. Se a citamos, é no

intuito de expor uma crítica que relativiza a atuação da instituição museu como um espaço

benéfico, de produção de um discurso plural.

252

MAROEVIC, 1991. 253

Convém destacar que Beth Lord (2006) propõe deslocar a noção central de heterotopia, entendendo-a como, literalmente, espaço de diferença. Ela propõe que o museu não apenas representa objetos que são diferentes uns dos outros, mas que ele apresenta objetos em sua diferença das ordens conceituais a partir das quais esses objetos seriam normalmente entendidos. “O museu é uma heterotopia não porque ele contém diferentes objetos ou porque ele contém ou justapõe tempos diferentes, mas sim porque ele apresenta um tipo mais profundo de diferença: a diferença entre objetos e conceitos. O que cada museu exibe, de uma forma ou de outra, é a diferença inerente na interpretação. Interpretação é a relação entre coisas e palavras utilizadas para descrevê-las, e esta relação sempre envolve uma lacuna [tradução nossa]” (p.5). A autora vai mais além, defendendo que a essência do museu é a representação, e que é isso que os define. 254

LORD, 2006, pp.4-5.

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Não só o Museu é múltiplo, podendo existir sob as mais diversas formas e com os

mais variados propósitos255, como, mesmo o museu tradicional, sobre o qual Foucault trata,

não possui uma atuação monolítica e imutável. E não afirmamos isso a detrimento do

pensamento foucaultiano, e sim a partir dele:

Foucault quer, na verdade, desempenhar uma arqueologia de instituições que vão do ‘documento’ ao ‘monumento’, examinando instituições em particular e suas práticas[...]. Usar Foucault para sugerir que o museu é produto de mau pensamento iluminista é ver o museu como um exemplo de um período histórico presumido e seus valores

256

Em consonância com a genealogia, que Foucault desenvolveria em seu percurso

intelectual a partir da arqueologia, podemos trabalhar as possibilidades do presente como

um descontínuo do panorama historicamente apresentado. Abandonando as tentações de

uma visão teleológica257,

a genealogia não busca somente no passado a marca de acontecimentos singulares, mas que ela se coloca hoje a questão da possibilidade dos acontecimentos: “ela deduzirá da contingência que nos fez ser o que somos. A possibilidade de não mais ser, fazer ou pensar o que somos, a possibilidade de não mais ser , fazer ou pensar o que somos [sic], fazemos ou pensamos”

258

Isso se traduz numa via de possibilidade para que os museus ajam, de maneira

consciente, em direção a uma atuação verdadeiramente em prol de uma atuação social que

não subjugue, e que não seja pautada pelo falseamento da diversidade em prol de uma

interpretação única e verticalizada das culturas.

Em suma, como brilhantemente sintetiza Beth Lord:

Todos os museus possuem a capacidade de desempenhar a genealogia de Foucault – apresentar eventos históricos não como “uma decisão, um tratado, um reino, ou uma batalha, mas como o reverso de uma relação de forças” (Foucault, 1984a:88). O museu tem a capacidade de revelar sistemas conceituais e ordenações políticas como contingentes e reversíveis. [...] É um local para a genealogia de Foucault, através da qual nós podemos nos libertar do poder de estruturas do passado [grifo nosso]. [...] Museus têm uma enorme importância em culturas que lutam por libertação e são reconhecidas ferramentas que auxiliam

sociedades no processo de cura259

255

SCHEINER, 1999. 256

LORD, 2006, p. 2. Tradução nossa. 257

“A genealogia não pretende recuar no tempo para restabelecer uma grande continuidade para além da dispersão do esquecimento; sua tarefa não é a de mostrar que o passado ainda está lá, bem vivo no presente, animando−o ainda em segredo, depois de ter imposto a todos os obstáculos do percurso uma forma de lineada desde o início” (FOUCAULT, 1981, p. 21). 258

REVEL, 2005, p. 11. 259

LORD, 2006, p11. Tradução nossa.

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É apenas assim, na possibilidade expressa de transgressão de sua própria “condição

histórico-conceitual” – e do conhecimento e exposição dessa sua trajetória – que podemos

avançar em direção a uma ética renovada, que forneça ao museu as condições efetivas

para o desenvolvimento de uma prática que trate a ideia de uma atuação social politizada

como algo mais que um discurso politicamente oportuno.

4.2. Museus pela Paz: (geração de) Poder e ação política

O poder é sempre, como diríamos hoje, um potencial de poder (Hannah Arendt, “A condição humana”)

Sabemos que a instituição museu esteve - ao longo dos séculos, sobretudo a partir

do Setecentos - associada aos itinerários percorridos pelos Estados nos quais ela estava

inserida, reproduzindo como repertório seu sistema de pensamento e até mesmo formas de

dominação, como o espólio e o colonialismo; e que, até por seu financiamento público e

ascendência governamental (inúmeros são os países que possuem um equivalente da ideia

de “Ministério da Cultura”), os museus possuem uma nítida e perene vinculação com o

poder constituído.

A natureza social e política do Museu não é desconhecida de nenhum profissional, estudioso ou apaixonado pelo campo, esta natureza é uma das bases e forças de influência da sua existência. As relações entre Museu e poder são instáveis, imprevisíveis e descontínuas, estão sujeitas a elementos conjunturais, alianças, orientações gerais e particulares das políticas, instituições e ações culturais, expectativas, discursos, projetos sociais e imaginários que orientam as condutas sociais

260

A relação com o Poder é um ponto incontornável quando pretendemos abordar o

aspecto político da Museologia, pois “[...] todas as instituições políticas são manifestações e

materializações do poder”261.

Como instituição social, o museu está intimamente relacionado com o poder. Por um lado, um poder estruturado externamente que provém de propriedades políticas, econômicas, sociais e culturais e por outro, um poder interno que emana de sua própria natureza e ação

262

A definição e discussão sobre a natureza e constituição do Poder é um tema caro à

Filosofia e Ciências Sociais, traduzindo-se em uma longa tradição de pensamento263. Falar

de Poder nos impõe, dessa maneira, um grande desafio, dada a magnitude das análises

sobre o tema. Entretanto, nosso objetivo não é uma apresentação das relações que

260

MORAES, 2010, p. 9. 261

ARENDT, 2009, p. 57. 262

RUSCONI, 2002, p. 11. Tradução nossa. 263

Para uma apresentação de diferentes abordagens sobre o tema ver LEBRUN, 2004.

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permeiam Museu e Poder e geral, e sim a proposição de uma relação específica que se

daria entre os museus pela paz e a concepção arendtiana de poder.

De maneira geral, podemos identificar os estudos de Weber sobre o Poder como

uma das mais influentes noções sobre o tema, entre os cientistas sociais264. Trata-se de

uma concepção verticalizada do poder, em que esse é entendido como a capacidade

política de fazer com que alguém imponha sua vontade sobre outrem. Nos estudos sobre

museus, uma abordagem bastante influente é a que Foucault realiza sobre o panóptico de

Bentham265, salientando o aspecto arquitetural da instituição museu como mecanismo

disciplinar.

Dada as características apresentadas anteriormente do nosso objeto de estudo,

consideramos profícua a possibilidade de perceber os museus pela paz como espaços

privilegiados para a geração de poder (e não apenas “fruto” dele).

Quando levamos em conta ideias como as de Hannah Arendt – pensadora política

cuja reflexão toma a polis como referência central -, para quem a política se dá em âmbito

comunitário e o poder é fruto da ação conjunta dos seres humanos266, e as relacionamos

com um museu pacifista, que atua nos termos que caracterizamos anteriormente, torna-se

possível observar essa outra relação política, no que se refere ao poder.

Diferentemente das concepções modernas e filosóficas de poder que veem o poder como uma propriedade interior de um agente, o poder não é mantido dentro do agente, mas reside entre agentes quando eles atuam juntos. [...] A visão arendtiana de poder é relacional, de modo que o poder surge entre agentes [...]

267

Quando enfatizamos a militância político-social inerente aos museus pela paz - que

objetivam a arregimentação dos indivíduos em prol de um tema facilmente conversível em

causa de luta e reivindicação (como a ideia social de paz em si requer) -, estamos, por

conseguinte, tratando de um espaço privilegiado para geração de poder, no sentido de

constituir um implemento da atuação política.

Para Arendt,

o poder corresponde à habilidade humana não apenas para agir, mas também para agir em concerto. O poder nunca é propriedade de um

264

MORAES, 2010. 265

Sobre o panoptismo, ver FOUCAULT, 2009. Do ponto de vista museológico, ver CHAGAS, 2002. 266

E para quem, ainda, “o que faz do homem um ser político é sua faculdade para a ação; ela o capacita a reunir-se com seus pares, a agir em concerto e a almejar objetivos e empreendimentos que jamais passariam por sua mente” (ARENDT, 2009, p. 102). 267

FRY, 2009, p. 99.

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indivíduo; pertence a um grupo e permanece em existência apenas enquanto o grupo se conserva unido. [...]

268

Isso não significa dizer, é claro, que apenas os museus pela paz lidam com

“conjuntos de pessoas” ou “conscientização” sobre algo, mas sim que isso se dá de uma

maneira objetiva, o que os diferencia nesse aspecto. Não se trata, por exemplo, de alertar

visitantes para os rumos da arte contemporânea ou das implicações das descobertas da

ciência sobre o cotidiano das pessoas, mas sim de uma atuação eminentemente política,

que, ao mesmo tempo em que alerta para algo, propõe uma ação e a necessidade de

posicionamento sobre o assunto tratado. São museus intrinsecamente vinculados com o

futuro. Isso ocorre, pois, mesmo quando lançam mão de referências sobre um

acontecimento passado (como uma guerra), a mensagem ali presentificada tem como intuito

um engajamento numa construção de mundo futuro (como o propiciar de uma convivência

pacífica entre irlandeses de religiões diversas, ou a não-repetição de acontecimentos

trágicos, como o Holocausto e genocídios de uma forma em geral).

Ficam atrelados, dessa maneira, dois aspectos: o poder e a ação política269. “E o que

é a definição de política de Arendt? Espalhada por sua obra está a ideia de que política é

ação e que ação é discurso em público sobre assuntos públicos”270.

Fugaz e podendo prescindir de aporte institucional, julgamos que a gestação desse

poder de que trata Hannah Arendt pode ser medrada pela atuação dos museus pela paz.

4.3. Ética, Museologia e Museus pela Paz

A preocupação crescente com a relação entre museu e o plano social, buscando

integrá-lo, é também uma preocupação de ordem ética, mais do que burocrática (como

administrar uma instituição). Se os museus existem, a quem devem servir? Orientados por

quais valores? Influenciando a vida das comunidades nas quais estariam inseridos (e o

desejo de inseri-los é uma preocupação ética) de que maneira? Mencionamos tais

exemplos, mas a relação entre museus e ética também é proeminente e pode ser observada

sob um ponto de vista mais “conservador” com relação ao papel dos museus na sociedade

(como zelosos guardiões legais de coleções, por exemplo).

O museu é atravessado por indagações éticas, tanto do ponto de vista de seu

funcionamento interno enquanto instituição (as suas obrigações e orientações profissionais)

268

FRY, 2009, pp.60-61. 269

“O que mantém unidas as pessoas depois que passa o momento fugaz da ação (aquilo que hoje chamamos de organização) e o que elas, por sua vez, mantêm vivo ao permanecerem unidas é o poder. Todo aquele que, por algum motivo, se isola e não participa dessa convivência, renuncia ao poder e se torna impotente, por maior que seja a sua força e por mais válidas que sejam suas razões” (ARENDT, 2008, p. 203). 270

KATER, 2006, p. 132. Tradução nossa.

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ou de seu posicionamento num determinado plano social. Tal ética profissional,

deontológica, como conjunto moral de comportamento a ser seguido por profissionais de um

determinado grupo não é, contudo, a vertente para a qual buscamos chamar a atenção em

nosso caso271.

Quando se identifica um conjunto de adversidades que precisamos superar enquanto

sociedade - sejam elas locais ou globais (humanidade) -, quando tratamos esse conjunto de

valores como impeditivos da instauração de uma convivência pacífica, e a partir do

momento que dedicamos a atuação do museu à militância sobre essas questões, estamos

inserindo o museu no campo da vivência social, cultural, política e, sobretudo, ética. O que

une os diversos expoentes de museus pela paz é seu engajamento na transformação do

sistema de vida de seus visitantes, na adoção daquele conjunto de valores propostos por

essas instituições e o engajamento político em sua defesa.

Museus, em geral, se caracterizam pela exposição de determinada coleção (de

maneira interativa ou não) e a construção de uma narrativa que explane a temática da

instituição ou do contexto histórico-cultural no qual se insere a coleção trabalhada. Os

museus pela paz propõem ao visitante mais que uma experiência de ordem intelectual e dos

sentidos. Não se trata de “meramente” educar os visitantes com conhecimentos ou atuar

como instrumento de afirmação identitária. No caso dos museus pela paz, a questão é

diferente: a narrativa apresentada objetiva não apenas que o público tome conhecimento de

determinado assunto, viva uma experiência delimitada. Não falamos aqui de “um novo

museu” ou de uma base conceitual instaurada sobre o objeto ou o território, e sim de uma

proposta ética272. A ideia por trás dos museus pela paz é que também essas instituições -

ditas “culturais”, porém que não estão à parte nem acima do plano político – se engajem de

maneira direta nessa luta pela paz e no debate social orientado por esses valores. Esses

museus elaboram uma reflexão sobre as razões de desejá-la (a paz e a justiça) e os meios

de alcançá-la, através da mobilização das pessoas, sua conscientização e transformação

ética.

Em suma, podemos inferir que tratamos de museus cuja vocação é essencialmente

política e intrinsecamente vinculada a um projeto ético de construção do futuro, através da

transformação do presente.

271

Para reflexões sobre a relação entre museus e ética do ponto de vista deontológico, ver VAN MENSCH, 1992 e HEIN, 2000. 272

Devo a ideia de definir esses museus como proposta ética à profa. Dra. Tereza Scheiner.

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Considerações Finais

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Considerações finais

A compaixão é uma emoção instável. Ela precisa ser traduzida em ação, do contrário definha (Susan Sontag, “Diante da dor dos outros”)

Tentar arrematar qualquer reflexão teórica sobre um tema é um desafio acadêmico

que envolve, em mesma dose, algo de luto e de alívio. Angústia pelo o que deixou de ser

analisado e alívio pela sensação de completar uma longa etapa.

O convite à conclusão pode significar também uma armadilha que nos leva a repetir

longamente o que já fora dito. Sejamos, portanto, sintéticos, na crença de termos emitido

nossa mensagem nas páginas anteriores da melhor maneira que a ocasião permitira.

Ao longo de nossa análise, apresentamos o campo de estudos da paz, sua

percepção histórica e aplicação científica e pedagógica, buscando auxiliar a compreensão

sobre as potencialidades e possibilidades da interface entre museu e paz, entre instituição e

pacificação. Oferecemos uma proposta de sistematização da trajetória e elementos

constitutivos da ideia de museu da paz (ou museu pela paz), assim como traçamos um

panorama de conceitos conexos como os de museu memorial, patrimônio traumático e

turismo sombrio, expondo uma aproximação crescente entre o campo dos museus e do

patrimônio com um lado obscuro do legado civilizatório. Por último, sugerimos relações entre

o campo político e a proposta dos museus pela paz, focalizando, entre outras coisas, sua

possível interface diferenciada com o poder e com a ética.

Subjacente àquilo em que fracassamos e em que logramos êxito esteve o objetivo de

desvelar um tema pouco conhecido, o qual – acreditamos – oferece à Museologia e seus

profissionais e pensadores um prisma privilegiado através do qual observar as relações

entre o museu e o campo político.

Mesmo que pareça utópico cogitar-se de instituições museais voltadas à temática da paz, como formadoras de identidades sociais, é instigante observar o movimento de metamorfose de determinados espaços memoriais, até então impensáveis, e da forma como estão sendo assimilados

273

Em um mundo tão marcado por guerras e transgressões sistemáticas aos direitos

humanos, é compreensível que qualquer proposta que propague a paz seja tomada com

ceticismo, como uma espécie de ingenuidade política. Mas se o ódio e o conflito são

passíveis de aprendizado e construção, o mesmo deve ser dito da paz. E o museu, como

instituição social, tem um papel de destaque nesse processo.

273

CASTRO, 2007, p. 114.

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Buscamos apresentar ao longo de nosso trabalho uma visão desmistificadora da

ideia de paz, explanando suas transformações sofridas ao longo da história, demonstrando

sua essência fundamentalmente social, e os desafios, derrotas e vitórias do pacifismo. Ao

expor os desdobramentos por que passou a noção de criação de um espaço museológico

para pacificação, esperamos termos contribuído um pouco para a compreensão dessa

instigante proposta representada pelos museus pela paz, além de estimular a divulgação de

tal tema, para que sirva de inspiração para novos estudos e práticas museológicas em

nosso país274.

Consideramos que os conceitos introduzidos de museu memorial, patrimônio

traumático e turismo sombrio podem também ser úteis à produção do campo,

particularmente no aprofundamento da discussão sobre a dissonância patrimonial e da

relação entre Museu e Tanatos. Há espaço para a morte e para o sombrio nos museus,

assim como para o que de melhor e mais edificante o “legado civilizatório” nos concede de

herança. Esperamos que a sugestão de uma Tanatomuseologia sirva de provocação para

outras reflexões, discordantes ou concordantes.

Sugestionamos, por último, um pequeno conjunto de observações sobre o papel

político dos museus (dentre as quais sua inserção na esfera pública e sua relação ética não-

deontológica são exemplos), entre as quais destaco a possibilidade de se interpretar a

relação entre poder e museus pela paz através de um aporte pouco utilizado na literatura

sobre o tema, a atenção a uma outra direção: não a partir da investigação de relações

verticais de dominação e produção de hegemonia e de disciplinarização, mas de um ponto

de vista relacional e que permita vislumbrar a geração de poder. Não um poder de “cima pra

baixo”, mas de “baixo pra cima”.

Por fim, gostaríamos de afirmar a crença no potencial e na sintonia da Museologia

com o que Hannah Arendt denominou de “promessa da política” 275:

a política, tal como Arendt a entende, como criação do novo, do inesperado, como ação plural, resultado do amor ao mundo e não como violência, não somente se apresenta como uma alternativa, como algo realizável, sendo inerente à condição humana, mas também representa uma necessidade, pois é condição para a construção do indivíduo e da comunidade político-jurídica na qual nos movemos, haja vista que o reconhecimento do outro em sua diversidade não somente repercute na confirmação do sentido da minha vida, mas antes é essencial para a existência daquilo que me transcende, que me precedeu e que provavelmente não desaparecerá após o meu “fim”

276

274

Registro a existência de um museu da paz na comunidade japonesa de Frei Rogério, município do interior de Santa Catarina e do também recém inaugurado museu do holocausto de Curitiba. Não pudemos visitar esses locais a tempo de incluí-los em nosso estudo satisfatoriamente. 275

Sobre isso, ver TORRES, 2007. 276

Ibid., p. 244.

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(...)

Com que afeição me remiro!

Marinheiro de regresso

com seu barco posto a fundo,

às vezes quase me esqueço

que foi verdade este mundo.

(Ou talvez fosse mentira...)

(Cecília Meireles, “Desejo de Regresso”)

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Referências

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