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8º Encontro da ABCP01 a 04/08/2012, Gramado, RS Área Temática: AT09 - Política, Direito e Judiciário A constitucionalização dos direitos Indígenas: uma análise comparada Marcia Baratto Doutoranda em Ciência Política Universidade Estadual de Campinas

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8º Encontro da ABCP01 a 04/08/2012, Gramado, RS

Área Temática: AT09 - Política, Direito e Judiciário

A constitucionalização dos direitos Indígenas: uma análise comparada

Marcia Baratto

Doutoranda em Ciência Política

Universidade Estadual de Campinas

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1 A constitucionalização dos direitos indígenas: uma análise comparada

Introdução

Este artigo analisará os debates sobre direitos indígenas no Brasil, na Bolívia e na

Colômbia, nas últimas assembleias constituintes destes países. O objetivo é compreender

quais direitos e de que forma jurídica foram institucionalizados, buscando explorar as

relações entre os contextos políticos com as formas jurídicas adotadas para o

reconhecimento dos direitos especiais aos povos indígenas. Dos processos constituintes

nos três países resultaram as seguintes Constituições: a Constituição da República

Federativa do Brasil, em 1988; a Constitucion Politica de Colombia, de 1991 e a

Constitución Política del Estado – Constituição da Bolívia, de 2009. Em ambos os três

países, a constitucionalização dos direitos indígenas, que é conquista recente dos

movimentos sociais indígenas ao longo da década de 1990, se mostra um processo

político-jurídico fértil para análise da incorporação das pretensões da diversidade cultural

como premissa da validade dos direitos humanos.

A principal chave de leitura que permite compreender quais direitos e de que forma

foram constitucionalizados, é o privilégio que os constituintes deram as relações entre

estado e comunidades indígenas, como tema principal do objeto dos direitos especiais

que deveriam ser assegurados nos textos das novas constituições. É, sobretudo, a

positivação da dimensão coletiva dos direitos especiais e como estas comunidades se

relacionam com o Estado, o que marca a chegada dos direitos indígenas às constituições

nacionais dos três estudos de caso. Em jogo o espaço institucional reconhecido à

diversidade cultural que será traduzido em quatro questões centrais às reivindicações dos

ativistas pró-direitos indígenas no três países: o reconhecimento da diversidade étnica

como premissa fundante dos Estados; o direito ao território como Habit, a manutenção e o

‘empoderamento’ das instituições tradicionais de autogoverno, e a participação de

representantes indígenas nas instituições estatais.

As três novas constituições buscaram mudar a relação entre estado e os povos

indígenas, que foi marcada pelo paradigma indigenista da assimilação no processo

civilizatório de construção do Estado-nação, comum às políticas republicanas da América

Latina, desde a independência até meados da década de 19701. Entretanto, existem

importantes diferenças entre os três estudos de casos analisados, e estas diferenças são

o reflexo dos contextos políticos e institucionais particulares de cada caso. Embora as

1 A mudança começa com a articulação dos movimentos sociais indígenas em redes de apoio transnacional. A convenção 169 da OIT de 1989 é um marco importante desta mudança local associada às mudanças no DIDHS dos povos indígenas. Colômbia e Bolívia assinaram a convenção em 1991, e o Brasil em 2002 (Cf. FIGUEROA, I. A Convenção169 da OIT e sua aplicação no Brasil, p.14. in GARZÓN, B. R. 2009).

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2 quatro questões acima sejam comuns, o resultado não poderia ser mais diferente. As

especificidades serão debatidas em cada tópico destinado aos países.

Antes de explicarmos a metodologia emprega, convém salientar o porquê desta

análise comparativa. Este trabalho é fruto da pesquisa de doutoramento em andamento

que analisa decisões judiciais sobre direitos indígenas nos tribunais constitucionais do

Brasil, Colômbia e Bolívia. As razões comparativas que utilizamos para justificar a

comparação no estudo do papel das cortes são as mesmas para os fins deste artigo. Em

primeiro lugar, a escolha dos três casos se baseou na qualidade de minoritária ou

majoritária das populações indígenas. No caso brasileiro, estes são uma minoria, bem

como na Colômbia. Eles se constituem como maioria na Bolívia. Este tipo de diferença

impacta a pauta dos ativistas pró-direitos indígenas e o alcance dos direito reivindicados.

Em segundo lugar, a escolha dos três estudos de caso se deu pela ausência ou presença

de representação especial indígena em instituições estatais. Esta questão está

relacionada à escolha de dois países com populações indígenas minoritárias, já que esta

é uma das questões mais conflituosas que caracterizam a relação estado/comunidade,

cuja ausência ou presença permitem avaliar como e de que forma a diversidade cultural é

incorporada como elemento de fundamentação dos direitos humanos. Esta é uma

questão cara a todo debate multicultural, que parte da premissa de que diferença e

igualdade são ambos princípios com o mesmo valor hierárquico para fundamentação dos

direitos humanos. No Brasil não há previsão desta inclusão, ela existe na Colômbia, um

dos primeiro país na América Latina a garanti-lá, e ela foi bastante ampliada na Bolívia na

última década.

Em quarto lugar e complementando as premissas citadas, nos interessava olhar

para casos que mostrassem dois momentos distintos da positivação nas constituições dos

direitos indígenas na América Latina. Brasil e Colômbia positivam em suas constituições

os direitos indígenas no final da década de 1980 e início da década de 1990, quanto

então o modelo de direitos humanos multiculturais estava em ascensão e possuía grande

prestígio no repertório das organizações internacionais de direitos humanos e nos

movimentos sociais no continente americano. A constituição da Bolívia surge num

momento de grande crítica deste modelo, associado à falência das políticas sociais e

econômicas do modelo neoliberal e já avaliado como restrito, parcial e pouco afeto ao

reconhecimento pleno da diversidade cultural2. O que muda em termos de reivindicação

dos movimentos pró-direitos indígenas? E quais as conquistas?

2 Este é um grande campo de estudos teóricos, tanto da teoria política quando da teoria antropológica, sobretudo os estudos de antropologia jurídica. Seguem as seguintes referências bibliográficas que

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Buscando responder estas perguntas, este artigo foi construído por meio da análise

bibliográfica sobre a constitucionalização dos direitos indígenas nos três países citados, e

análise documental sobre os principais debates que envolveram estes direitos nas três

constituintes. Para a revisão bibliográfica, privilegiamos o debate latino americano sobre o

assunto, e consultamos duas bases de dados online Latindex3 e o banco de teses da

Capes4. Destacamos que a análise realizada aqui não deu conta de toda a bibliografia

encontrada, e as escolhas seletivas foram guiadas por dois interesses principais:

compreender quais direitos foram reconhecidos especificamente aos povos e indivíduos

indígenas e quais as formas jurídicas utilizadas. Nossa hipótese de trabalho é que a

constitucionalização dos direitos indígenas nos três casos privilegia o eixo de relação

entre comunidade e o Estado, no reconhecimento da diversidade cultural como premissa

de fundamentação dos direitos humanos.

Direitos Indígenas e processos constituintes: aportes teóricos da

constitucionalização dos direitos indígenas

De acordo com Postero (2007, p. 6), os movimentos sociais indígenas são agentes

importantes nos processos de redemocratização recentes pelo quis passaram muitos dos

países da região. A democratização trouxe consigo a promessa de que a marginalização

política, social e econômica que caracterizavam a relação entre povos e indivíduos

indígenas com o Estado seria modificada por uma robusta e completa cidadania, que não

mais seria definida exclusivamente com base do princípio da igualdade de direitos, mas

também incorporaria as pretensões do respeito à diferença.

A questão da cidadania indígena permeou os debates nacionais durante às

décadas de 1980, 1990 e 2000, onde não faltaram opositores a ideia da incorporação da

diferença cultural como um critério válido para a definição dos direitos dos povos e

indivíduos indígenas. Algumas destas críticas serão tratadas nos tópicos específicos que

se seguem.

sustentam esta premissa: SIDER, 2006; BENHABIB, 2006; SANTOS, 2003; KYMLICKA, 2010; DOUZINAS, 2007. 3 http://www.latindex.unam.mx/ - Neste site realizamos buscas conjugadas, unindo o nome dos países com as seguintes palavras-chave(em combinação simples e dupla) em português, espanhol e inglês: indígena, constituição, constituinte, índio. As buscas retonaram bastante material (algumas com mais 400 resultados) e optou-se por realizar buscas especializadas dentro destes resultados, utilizando-se das categorias: direito, direitos humanos e direitos indígenas. Os resultados não foram muito expressivos em termos numéricos, nunca se passou de 5 ou 6 resultados, e percebemos um domínio de publicações feitas por ativistas da causa indígenas e juristas. 4 Neste banco de dados procuramos mapear a produção brasileira sobre o tema pesquisado, privilegiando as teses com acesso digital. Tivemos poucos, mas frutíferos resultados, que nos levaram à bibliografia mais especializada sobre o tema pesquisado.

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O surgimento das pautas indígenas levou as sociedades latino-americanas a

repensar o que a democracia significa e como ela deve lidar com a diferença. Cidadãos

indígenas deveriam ter os mesmos direitos e deveres que os demais cidadãos ou eles

também usufruiriam de direitos especiais como descendentes dos povos originários das

Américas? Se sim, quais direitos especiais e como aplicá-los? Estas perguntas ressoaram

pelas três assembleias constituintes e objetivamos mostrar quais foram às respostas

encontradas pelos constituintes nos três países.

Entretanto, antes de começar a análise dos casos, é preciso esclarecer três

questões importantes para a compreensão da constitucionalização dos direitos indígenas

nos casos analisados. As duas primeiras dizem respeito às características dos

movimentos indígenas que atuaram nos três processos constituintes. A terceira, por sua

vez, diz respeito aos agentes que promoveram a constitucionalização destes direitos.

Com relação à primeira, é preciso levar em conta que os movimentos sociais indígenas,

embora possuam uma pauta bastante parecida de reivindicações, não podem ser

tomados como homogêneos. Existem profundas diferenças nos movimentos e nas suas

pautas de direitos, que podem variar de acordo com a localização geográfica e a

densidade demográfica destes povos.

A maior ou menor proximidade das comunidades indígenas com zonas urbanas

impacta na forma de autorreconhecimento e mobilização dos povos indígenas. A literatura

distingue entre as mobilizações das terras baixas e das terras altas5 (Cf. POSTERO,

2007, p 13). As populações das terras baixas são mais nômades e se caracterizam como

caçadores ou fazendeiros de pequenos sítios e tendem a ser mais espaçadamente

localizados num território, e estavam relativamente isolados até recentemente. Em

contraste, os povos das terras altas são mais populosos, vivem mais concentrados, muito

mais pertos de centros urbanos e tendem a ser integrados nos mercados nacionais,

sobretudo como campesinos. Os povos das terras baixas são menos expostos a

educação formal e possuem menos experiência política, enquanto participantes de

organizações, e mesmo estas são bastante recentes. As terras baixas são regiões de

refúgio, onde os povos nativos administram seu território de uma forma mais distante do

restante da sociedade, por contrapartida possuem um senso de defesa do território mais

aguçado do que os povos das terras altas. Por consequência, possuem um forte senso

étnico de identidade. Já os povos das terras altas, possuem fronteiras menos delimitadas

5 Esta distinção é baseada no processo de colonização espanhola, que primeiro ocupou as terras altas. Convém esclarecer que em todos os países estas distinção se mantém. Por exemplo, no caso da Bolívia, onde a colonização iniciou-se pelas terras baixas. Para a bibliografia que trata da Bolívia, esta relação se inverte.

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5 entre indígenas e colonizadores, e os processos de modernização e mestiçagem resultam

na criação de novas identidades diferentes das tradicionais. Os representantes de

movimentos indígenas que participaram do processo constituinte no Brasil podem ser

considerados como povos das ‘terras baixas’, já Colômbia e Bolívia possuem

representantes de ambas as categorias, sendo mais frequente encontrar representantes

das ‘terras altas’ na Bolívia (embora parte da literatura boliviana inverta a nomenclatura).

Com relação à concentração demográfica, na América Latina (Idem, p. 18), a

questão indígena pode tomar dois caminhos: no caso das minorias, a pauta de

reivindicação de direitos é uma questão de sobrevivência, expressada primariamente nas

demandas por território, autonomia e direitos especiais, que podem manter seus estilos

de vida preservados, enquanto povos indígenas que se autorreconhecem como

portadores de uma cultura diferente da sociedade nacional representada pelo Estado. A

identidade é baseada na compreensão de etnicidade compartilhada pelos membros de

um determinado povo indígena. Não estão em busca de reformas profundas do Estado,

mas almejam implementar uma série de reformas que garanta o reconhecimento do

status especial dos povos indígenas e que defina os termos da sua relação com o estado

nacional, numa relação de profundo respeito à diversidade cultural.

Nos lugares onde às populações possuem peso demográfico substancial, a

questão indígena se traduz mais fortemente em reivindicações por igualdade e

participação, mas também por autonomia, o que invariavelmente leva a reconsiderações

sobre o conceito de nação e o modelo de Estado. Neste caso, a diferença étnica aliada

também à percepção de classe6, torna-se a base para o compartilhamento do poder. As

exigências por mudanças fundamentais nas instituições estatais são bastante fortes.

Brasil e Colômbia podem ser caracterizados com dois estudos de casos que seguem a

primeira opção, e a Bolívia já é um clássico exemplo da segunda.

Outro fator importante é meio pelo qual a discussão dos direitos dos povos

indígenas é politizada. Nem sempre são os movimentos sociais indígenas os principais

agentes de politização destes direitos, e de acordo com Postero (2007, p.8), a análise

empírica dos agentes na América Latina permite distinguir três meios importantes, que se

mesclam com frequência: 1)por meio da ação direta de movimentos indígenas; 2) como

parte de processo de negociação após o fim de um conflito armado; 3) como fator de

mobilização num processo eleitoral.

6 As relações ambivalentes entre classe e etnicidade são uma das características mais instigantes das análises sobre movimentos sociais indígenas. Dado o vasto e denso debate teórico que suscita entre a sociologia e antropologia, optamos por abordá-lo aqui, em virtude do escopo do texto. Para referências Cf.

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Neste estudo de casos, a participação dos movimentos indígenas no Brasil é

mediada por alguns representantes de partidos, conduzidas por líderes de organizações

indígenas com poderes de partido político, dentro de um processo de negociação após a

tentativa de fim do conflito armado envolvendo governo, milícias de esquerda e

paramilitares; e o processo na Bolívia é conduzido como um importante fator de

mobilização no processo eleitoral que elegeu Evo Morales presidente, e conduziu o MAS

(Movimento ao Socialismo) ao poder com amplo apoio dos movimentos sociais indígenas.

Direitos Indígenas no Brasil e a constituição de 19887

As discussões sobre a questão indígena na constituinte (1987-1988) aconteceram,

inicialmente, dentro da comissão da Ordem Social, uma das 98 (nove) comissões da

constituinte, sob a responsabilidade da subcomissão VII-C: Negros, Populações

Indígenas e Pessoas deficientes e Minorias, que realizou audiências públicas para

debater as propostas referentes à defesa dos direitos dos povos indígenas, direitos

especiais para negros, direitos especiais para pessoas com deficiência e outras minorias.

Após a realização do anteprojeto nesta subcomissão, este foi votado com os

demais projetos das outras duas subcomissões, para então ser encaminhado à comissão

de sistematização e, depois, para as rodadas de debate e aprovação nas reuniões gerais

da assembleia constituinte. A análise documental se centrou nas atas da primeira fase de

formulação das propostas, onde a participação de representantes das comunidades

indígenas e ativistas foi mais forte e está documentada. É o que nos permite compreender

quais os direitos demandados e como se forjou o novo pacto entre ‘comunidades

indígenas’ e o Estado brasileiro.

Para a constituinte de 1987 não foram eleitos nenhum constituinte indígena.

Entretanto, algumas lideranças9 (todos homens) e ativistas pró-direitos indígenas10 foram

7 A pesquisa bibliográfica sobre os direitos indígenas na Constituição da República Federativa do Brasil baseou-se na revisão bibliográfica feita a partir de teses e dissertações do Banco da Capes e a análise das transcrições das audiências públicas realizadas pela subcomissão VII-C “Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias” na assembleia constituinte de 1987. (Cf. http://www.senado.gov.br/publicacoes/anais/asp/CT_Abertura.asp) 8 Cada Comissão foi subdividida em três Subcomissões. As Comissões definidas no referido artigo foram: I – Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher; II – Comissão da Organização do Estado; III – Comissão da Organização dos Poderes e Sistemas de Governo; IV – Comissão da Organização Eleitoral, Partidária e Garantia das Instituições; V – Comissão do Sistema Tributário, Orçamento e Finanças; VI – Comissão da Ordem Econômica; VII – Comissão da Ordem Social; VIII – Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação; IX – Comissão de Sistematização. 9 Lideranças indígenas ouvidas: Estevão Tauka – Bakairi; Nelson Sarakura – Pataxó; Gilberto Macuxi; Kromare Metotire; Pedro Cornélio Seses; Valdomiro Terena; Hamilton Lopes – Caioá; Antonio Apurinã; Ailton Krenak Cf. Ata da subcomissão VII-C, 1987, pg. 155.

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7 ouvidos em 3 (três) audiências públicas durante os trabalhos da subcomissão VII-C e

alguns membros da comissão foram visitar a aldeia Kaipó, na reserva Gorotire, no sul do

Pará.

Os membros da subcomissão VII-C foram favoráveis às propostas apresentadas

pelas lideranças e ativistas indígenas, comprometendo-se a aprová-las nas demais

rodadas de discussão e aprovação de projetos. Os interesses indígenas nos trabalhos da

subcomissão são defendidos por lideranças destes povos, militantes dos movimentos

sociais indígenas e por intelectuais ligados ao movimento. Destaca-se a fraca presença

de constituintes e parlamentares a falar em prol dos direitos indígenas, o que evidencia a

pequena articulação dos movimentos indígenas com partidos políticos, uma das

características marcantes do processo de constitucionalização destes direitos no Brasil.

Destaca-se na fala das lideranças e ativistas pró-direitos indígenas, o caráter

especial destes direitos, o papel fundamental que os conhecimentos tradicionais dos

povos indígenas possuem para a nação brasileira e o caráter ambientalista dos viveres

tradicionais. Existe um esforço em cada fala para mostrar a importância da manutenção

das tradições indígenas. Outra marca essencial destas defesas, é a citação de

documentos internacionais de direitos humanos voltados aos direitos indígenas,

compreendidos como direitos coletivos, sobretudo. Mas direitos complementares à

cidadania, de caráter especial, cujo reconhecimento é essencial para a manutenção da

existência destes povos.

O modelo adotado para esta defesa destes direitos é o do multiculturalismo, então

bastante prestigiado por ativistas e organizações internacionais dos direitos humanos. A

tentativa era modificar o padrão de assimilação então presente nas instituições e nas

ideologias ligadas à defesa dos direitos indígenas, sobretudo nas instituições oficiais

destinadas a intermediar a relação entre as comunidades e o estado (RODRIGUES, 2002,

p. 488). Também bastante presente as denúncias contra as violações sofridas pelos

povos indígenas e as falhas do Estado em garantir a sobrevivência e o respeito às

tradições culturais dos povos indígenas.

Com relação aos direitos reivindicados, o reconhecimento das comunidades

indígenas como nações, foi um dos pontos mais polêmicos. Muitos ativistas presentes nas

audiências públicas (Cf. fala de Eduardo Vieiro de Castro, pg. 171; fala de Carlos Marés-

10 Representantes de entidades de assistência ao Indígena e intelectuais ouvidos: Dom Erwin Krautler – CIMI, Carlos Marés – Dom Erwin Krautler – CIMI, Carlos Marés – Krautler – CIMI, Carlos Marés – Comissão pela Criação do Parque Yanomani, Vanderlino Teixeira de Tavares – Conselho Nacional de Geologia e Membro da Comissão Pró-Índio de São Paulo, Manuela Carneiro da Cunha – ABA, Dr. Mércio Gomes – Instituto de Pesquisas Antropológica do Rio de Janeiro. Cf. Ata da subcomissão VII-C, 1987, pg. 82

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8 Comissão pela Criação do Parque Yanomani, p.85), argumentaram que a não aceitação

dos povos indígenas como nações era uma das provas mais pungentes da manutenção

do paradigma da assimilação cultural, e impedia o devido reconhecimento dos direitos

indígenas, que seriam indissociáveis desta premissa. Embora presente em muitas

propostas de organizações indígenas, o texto final de 1988 reconhece a diversidade

cultural e lega direitos às comunidades indígenas. Os críticos que viam no

reconhecimento de múltiplas nacionalidades ameaças à unidade nacional, conseguiram

vetar as reivindicações pró-direitos indígenas neste sentido. E aqui se denota o caráter

subsidiário e restritivo que a inclusão dos direitos indígenas encontrou no processo de

constitucionalização. Esta negação teve importantes consequências para as demais

propostas, sobretudo por que os efeitos foram sentidos nas questões que envolveram as

terras indígenas e a criação de órgãos especiais de representação.

A principal reivindicação, presente na fala de quase todos os ouvidos, era o

reconhecimento dos territórios tradicionalmente ocupados, como condição primeira para a

defesa dos direitos dos povos indígenas. A fala da antropóloga Manuela Carneiro da

Cunha ilustra bem a centralidade da questão da demarcação das terras indígenas como o

principal direito a ser assegurado: “Qual é a natureza dessas terras indígenas? Estou

enfatizando a questão das terras porque, hoje, é basicamente uma questão de terras,

uma questão de riquezas naturais, principalmente de mineração, e uma questão de

fronteiras’. (Cf. Atada da subcomissão VII-C, 1987, p.18).

A primeira liderança indígena ouvida, Sr. Idjarruri Karajá, também defende a

demarcação das terras indígenas como o direito primário para assegurar aos povos

indígenas no país a garantia plena da cidadania.

“Não fomos felizes durante nossa campanha, tivemos vários candidatos de diversos Estados brasileiros, mas nenhum foi eleito. Estamos aqui –não é por isso que vamos ficar nas aldeias desanimados –em busca de apoio dos Constituintes para que o Brasil venha garantir o respeito aos povos indígenas, venha garantir a nossa terra, porque ela é a nossa sobrevivência.” (Grifo nosso, Ata da subcomissão VII-C, 1987, pg.11 ).

Entretanto, o direito a terra foi pleiteado de forma diferente do tradicional regime de

propriedade. Direito a terra significa usufruir do território como Habitat, cuja definição era

aquela presentes nos documentos internacionais de direitos humanos11. Reconhecer os

territórios indígenas como Habitat implica no reconhecimento de que a terra para os

povos indígenas deve ser mais do que aquela destinada para as atividades de sustento,

11 A convenção da 165 da OIT ainda não havia sido lançada. Os documentos citados são recomendações do PNUD e UNESCO (encontro de Costa Rica, 1982).

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9 elas devem incluir também o espaço necessário para o desenvolvimento das práticas

culturais que caracterizam o bem viver dos povos indígenas. Também significa legar a

estes povos o poder de gerir este território de acordo com suas próprias expectativas e

resguardá-lo de qualquer outro uso que não o determinado por estas comunidades. O uso

da terra é sempre coletivo, sendo também inalienável, e se constituiu como propriedade

coletiva dos povos indígenas. Percebem-se aqui as preocupações em categorizar os

povos indígenas como cidadãos que não buscam a integração ou o contato ostensivo

com os demais membros da comunidade não índia. Este seria o principal motivo pelo qual

a questão da terra é nomeada como a mais importante. Uma típica reivindicação, tanto de

conteúdo como de forma, das chamadas reivindicações das ‘terras baixas’.

Esta proposta mais ampla que também incluía a não utilização dos territórios para

nenhum outro fim diferente daquele destinado pelas comunidades, ou seja, no caso da

retirada das populações indígenas de um território, este não deveria ser utilizado para

nenhum outro fim. Esta concepção encontrou uma forte oposição dentro da constituinte.

Para os críticos (cf. Evangelista, 2004, p.56; RICARDO, 199112), este reconhecimento

conflitava com os deveres do Estado em alavancar o desenvolvimento econômico e

poderia resultar em sérias limitações as necessidades da segurança nacional, sobretudo

nos territórios indígenas localizados nas fronteiras. Também incomodava o fato das

vastas extensões de terras para tão ‘poucos’ cidadãos13.

Outro ponto bastante controverso da extensão que se quis dar ao território como

habitat, foi o caráter indissociável entre solo e subsolo. Na proposta apresentada pelo

cacique Estevão Taukane, da etnia Bakairi (Cf. Ata da Subcomissão VII-C, 1987, p.156 ):

[...]”4) as terras da União, a saber, solo e subsolo, ocupadas por grupos indígenas e sua

descendência, são reconhecidas como sua propriedade coletiva.” O texto final apenas

concederia o usufruto das terras às populações indígenas, resguardando sua propriedade

à União, forma que consagra o poder de intervenção estatal em terras em determinadas

circunstâncias. E quais circunstâncias seriam estas? As principais que aparecem nos

debates da subcomissão são as possibilidades de extração de minérios e o

aproveitamento dos recursos energéticos em terras indígenas. A maioria dos membros da

subcomissão defendia que era só seria admissível esta exploração se fosse realizada

pela União e com a devida autorização da comunidade, que também teria direito exclusivo

sobre os frutos da exploração de minérios.

12 As críticas as propostas pouco transpareceram nas discussões da subcomissão VII-C. Aqui nos utilizamos da revisão bibliográfica para apontar as considerações dos críticos. 13

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10

Com relação às terras indígenas, a própria redação do primeiro subprojeto ainda na

subcomissão modificaria bastante as reivindicações das lideranças e ativistas. O primeiro

ponto considerado foi à necessidade de permitir a mineração em terras indígenas, como

uma concessão necessária para assegurar a aprovação dos demais direitos, sobretudo os

referentes à demarcação das terras e a garantia do respeito aos costumes e instituições

tradicionais. Permitida a mineração e a exploração do potencial energético, com a

manutenção da propriedade das terras com a União, ficava mais fácil de negociar com a

então crescente oposição às exigências por amplas demarcações de terras indígenas,

que via riscos ao desenvolvimento econômico das muitas regiões e a usurpação das

prerrogativas do Estado em termos de segurança com a instituição do novo modelo

multicultural de direitos indígenas. Por sua vez, ativistas e lideranças indígenas viam com

receio a manutenção desta possibilidade, dado o cenário trágico para muitas

comunidades que tiveram suas terras envolvidas em processos legais e ilegais de

mineração.

A esta preocupação, o relator da subcomissão observou que a proposta de

anteprojeto a ser encaminhada mantinha a possibilidade da exploração mineira, mas

vinculava-a a consulta e a aprovação do congresso nacional e das comunidades

envolvidas, além de estabelecer o monopólio exclusivo da União para realizar este tipo de

atividade em terras indígenas. Entretanto, na plenária de aprovação, o texto final recebeu

ainda mais cortes e as possibilidades de mineração em terras indígenas foram facilitadas.

O texto final da Constituição excluiu a autorização da comunidade, consolidando apenas a

consulta como necessária. A avaliação é que se as comunidades não compreendidas

como nações, então bastaria à autorização do congresso nacional (o representante da

nação brasileira), cabendo às comunidades serem consultadas sobre projetos de

mineração e exploração energética. Com relação ao monopólio da União para extração

de minérios em terras indígenas, este também não se manteve, permitindo-se aos

particulares e empresas nacionais, sob o regime de concessão da União, fazer lavra em

terras indígenas (Art. 176, da Constituição Federal).

Com relação à terceira categoria de direito que escolhemos para realizar esta

análise, participação de representantes indígenas nas instituições nacionais, a

subcomissão não logrou a aprovação final de nenhuma das propostas apresentadas.

Muitas lideranças indígenas (Estevão Tauka da etnia Bakairi; Nelson Sarakura, índio

Pataxó; Pedro Cornélio Seses; Valdomiro da etnia Terena;), reivindicavam a criação de

conselho de representantes indígenas, que deveria atuar junto aos órgãos da

administração federal e estadual em todas as questões que envolvessem os povos

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11 indígenas, sobretudo na questão das demarcações das terras indígenas. A proposta

constava do anteprojeto da subcomissão que foi encaminhado à comissão de

sistematização. De acordo com o anteprojeto: “Art. 11. A execução da política indigenista,

submetida aos princípios e direitos estabelecidos neste capítulo, será coordenada por

órgão próprio da administração federal, subordinada a um Conselho de representações

indígenas, a serem regulamentados em lei.”

A proposta final acabaria rejeitada em virtude da existência da Funai, e a

competência para legislar sobre questões indígenas deixada ao congresso nacional. A

questão da representação processual, em dissídios no judiciário, ficou permitida a

comunidade e indivíduos indígenas, com a assistência obrigatória do ministério público.

Certamente a análise das três questões poderia ser mais profunda, já que o material

documental é bastante rico e produtivo, e permite a análise de inúmeros outros direitos,

citaremos como exemplo: educação bilíngue, direito às instituições tradicionais, cotas nas

universidades públicas, outras conquistas asseguradas no texto constitucional de 1988.

Entretanto, para os fins deste artigo, consideramos esta caracterização exploratória do

processo de constitucionalização dos direitos indígenas no Brasil satisfatória, pois nos

possibilita compreender como as disputas políticas influenciaram diretamente a escolha

de formas jurídicas, e nos permitiu analisar as relações entre a participação das

lideranças indígenas e ativistas e os resultados obtidos no processo.

Recapitulando o esquema analítico, utilizado para caracterizar os atores no início

do texto, após avaliar o conteúdo dos debates e os resultados da assembleia constituinte

brasileira, podemos afirmar três asserções principais sobre os direitos indígenas

assegurados na constituição de 1988: 1) o direito a terra foi concebido para ser utilizado

por comunidades que buscam manter o isolamento em relação à sociedade não índia,

característica básica das reivindicações das ‘terras baixas’ realizadas por minorias

indígenas, com a participação indireta, mas ativa, de movimentos e organização

indígenas, 2) os direitos reconhecidos constituem-se como especiais e complementares

aos demais direitos de cidadania; típico modelo multicultural, 3) as mobilizações falharam

em assegurar instâncias de participação nos órgãos oficiais do Estado brasileiro.

Os Direitos dos povos indígenas na ‘Constitucion Politica de Colombia’ de 1991: 14

14 A análise dos direitos indígenas resguardados na constituição da Colômbia foi feita via revisão bibliográfica e análise documental das Gacetas, documentos com as propostas debatidas nas comissões e reuniões da assembleia constituinte. Diferente do caso Brasileiro, os documentos disponíveis sobre a constituinte colombiana de 1991, não são transcrições dos debates das reuniões da assembleia constituinte. São resumos e propostas escritas por constituintes individualmente enviadas para debate.

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12

Na Colômbia em 1991, após um longo processo de negociação para o fim dos

múltiplos conflitos armados, foi promulgada uma nova constituição. O principal objetivo

dos constituintes foi o estabelecer condições para uma paz duradoura no país. Com

relação aos direitos indígenas, foram reconhecidos importantes reivindicações dos

movimentos sociais indígenas colombianos, então bastante organizados desde a década

de 1960 e participantes ativos do processo constituinte do país. Neste país, os indígenas

são uma minoria marcada pela desigualdade social e pela violência extrema. Estima-se

que os povos indígenas não superarem 2% da população colombiana, estimando entre

8000 a 7000 indígenas (POSTERO, 2004, p.106).

Ao contrário do Brasil, mesmo as populações indígenas constituindo uma minoria,

foram eleitos representantes indígenas para a assembleia constituinte colombiana. O

processo de negociação para a nova constituição permitiu que as organizações sociais

tivessem seus próprios candidatos, sem a necessidade de se constituírem como partidos

políticos. Das várias organizações indígenas colombianas15, muitas das quais reunidas

em sindicados, federações e confederações, duas conseguiram eleger membros para a

assembleia constituinte de 1991 na Colômbia, contanto com amplo apoio das populações

urbanas: a Onic (Organizacion Nacional Indígena de Colombia), que funciona como uma

confederação de organizações e representa mais de 23 associações indígenas de toda a

Colômbia e a AICO (Autoridades Indígenas de Colombia), organização regional formada

entre os Guabianos e que hoje conta com a participação de lideranças Aiko e Emberá.

Em 1991 Francisco Rojas Birry (indígena da etnia Emberrá) foi eleito com o apoio

da ONIC, e Lorenzo Muelas Hurtado (da etnia Guambia), com o apoio da AICO. A

participação destas duas lideranças indígenas influenciou o reconhecimento dos direitos

de autogovernos das comunidades indígenas, sobretudo pela equiparação das Entidades

Territoriais indígenas (ETIS) com divisões político-administrativas equivalentes aos

municípios de governo indígenas.

Ainda é preciso destacar o papel das organizações indígenas no envio e debate de

propostas constitucionais, entre elas as organizações indígenas de mulheres. Diversas

organizações feministas articularam um grupo nacional de pressão para debates sobre os

direitos das mulheres, para o qual houve a participação da Associação nacional de

mulheres campesinas e indígenas – ANMUCIC (MORGAN & BUITRAGO, 2000, p. 205).

Neste caso, buscar os pontos controvertidos do debate exigiu recorrer com mais frequência a revisão bibliográfica. 15 Para compreender as múltiplas organizações indígenas, suas pautas e formas de interação com instituições governamentais na Colômbia: Cf. JACKSON, J.& WARREN, K, 2003. Peñaranda, 2002, p. 155.; Escobar, 2005.

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13

A presença das organizações indígenas e dos dois representantes repercutiu nas

reuniões das cinco comissões16 da assembleia constituinte colombiana de uma forma

bastante peculiar e inclusiva. Se a participação indígena no processo brasileiro foi

marcada pela reivindicação do caráter especial dos direitos indígenas e a necessidade da

demarcação das terras indígenas, a pauta de direitos apresentadas no processo

colombiano foi marcada pela defesa da paz, como uma das principais bandeiras dos

representantes (Cf. GACETAS 18 e 22, 1991).

Esta postura em parte compatível com o voto de confiança depositado pelo

eleitorado urbano que permitiu a escolha dos representantes indígenas, também assinala

a intensa articulação política dos movimentos indígenas colombianos com outras

organizações e partidos políticos, preocupados não apenas com a efetividade dos seus

direitos, mas também com a consolidação do processo de pacificação no país.

O contexto colombiano também é marcado pela existência dos cabildos,

instituições tradicionais criadas na época colonial formadas por lideranças indígenas

responsáveis pela administração e gestão dos resguardos. Estes conselhos locais se

beneficiaram das reformas políticas de descentralização iniciadas na década de 1990, e

ampliaram seus poderes de gestão com a ascensão da questão indígena na década de

199017.

Para os fins deste artigo, analisamos as intervenções e documentos preparados

pelos dois constituintes indígenas. Destaca-se o papel atuante dos dois

constitucionalistas, sobretudo de Francisco Rojas Birry, que integrou a mesa de discussão

sobre as regras da assembleia constituinte e foi vice-presidente da comissão 1:

“Princpios, derechos, deberes, garantias e libetardes fundamentales.” Nesta comissão

defendeu também o direito das comunidades afrodescendentes, um alidado da Onic nas

eleições para a constituinte, assim que posicionou-se favorável aos direitos das mulheres,

cuja aliança nacional contava com a participação da ANMUCIC. O constituinte Francisco

Birry (Cf. Gaceta 18, 1991, ps 22-32) inicia sua intervenção na primeira reunião da

comissão 1 em 8 de março de 1991, relembrando o assassinato de lideranças indígenas e

a necessidade de construção de propostas pacifistas para a Colômbia, propostas as quais

os povos indígenas podem contribuir em pé de igualdade com outras organizações 16 A constituinte colombiana de 1991 teve cinco comissões: 1.Principios, derechos, deberes, garantías y libertades fundamentales; 2. Ordenamiento territorial del Estado. Autonomía regional y local; 3. Administración de justicia y Ministerio Público; 4. Administración de justicia y Ministerio Público; 5. Asuntos económicos, sociales y ecológicos (Cf. Gaceta 4, disponível em: http://www.elabedul.net/San_Alejo/Asamblea/asamblea_nacional_constitu.php). 17 De acordo com Theodor Rathgeber (in POSTERO, 2004, p. 106), os resgurados indígenas são territórios que mesclam áreas de propriedade coletiva e individual da terra, mas que contemporaneamente também existem em grandes cidades colombiana como Cali.

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14 sociais. O caráter assimilacionista das políticas republicanas também é destacado como

um dos principais obstáculos a serem superados para a eficácia dos direitos dos povos

indígenas. A presença da associação direitos indígenas e proteção ambiental também

está presente no seu discurso. Entre os principais pontos para os quais fornece propostas

de anteprojetos, estão o reconhecimento da Colômbia como uma nação multicultural e

pluriétnica. De acordo com a proposta: “La Colombia que querernos”:

Preâmbulo

“El pueblo colombiano, fuente suprema de toda autoridad, con el fin de afianzar la unidad nacional y la democracia, dentro de la riqueza y diversidad de los grupos humanos que conforman la nación y para garantizar el ordenamiento y la seguridad sociales y la convivencia pacífica con equidad, justicia y libertad, Decreta: Artículo 1º. El pueblo colombiano es pluralista, de naturaleza multiétnica y pluricultural. En él reside exclusivamente la soberanía y de ella emanan los poderes públicos que se ejercerán en los términos que esta Constitución establece” (Grifo nosso. GACETA 18, 1991, p.27).

A reivindicação pela inclusão da ideia de povo multicultural e pluriétnico será

mitigada. A fórmula apresentada pelo constituinte Lorenzo Muelas Hurtado será a aceita

para o texto final, no artigo primeiro, com algumas modificações. Citamos a proposta

indígena de reforma constitucional do constituinte da AICO (Gaceta 24,1991, p.46):

“ Preámbulo

Colombia, en su diversidad étnica, territorial, social y cultural, es pro-ducto de su gente y de su historia. Su mira es incrementar el patrimonio espiritual, cultural y material común y constituir un Estado democrático de derechos. Para lograrlo y garantizar la vida, la unidad nacional y la convivencia en Solidaridad, Libertad y Justicia, la Nación, en ejercicio de plena soberanía adopta la siguiente Constitución Política.”

Um elemento interessante, é que ambos os preâmbulos dos constituintes não

fazem menção a Deus, e buscam citar valores seculares e tolerantes a diversidade

cultural, como fundamentos da Constituição. Ambos foram rejeitados em prol da proposta

apresentada pela Igreja Católica (Gaceta 35, 1991, p.50), que juntamente com a defesa

liberdade de religião, propunha a citação a proteção divina no preâmbulo da carta, como

uma forma de reconhecer o ‘fato católico’ na Colômbia.

Antes de continuarmos explorando as três questões que ajudam a caracterizar os

processos constituintes analisados, convém explicar a participação do segundo

constituinte indígena eleito. A participação de Lorenzo Muelas Hurtado é bastante

influenciada pelo caráter das comunidades representadas pela AICO, comunidades das

‘terras baixas’, bastante preocupada com a manutenção das suas identidades étnicas e,

sobretudo pelo reconhecimento de suas tradições, instituições e a manutenção da

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15 propriedade coletiva das suas terras. O constituinte participou da comissão 2

‘Ordenamiento territorial del Estado. Autonomía regional y local’. E embora existisse

disputadas entre a Onic e a AICO, o constituinte endossou a maior parte das propostas de

Birry, fazendo da defesa das autonomias dos territórios indígenas e das cotas para

eleições no legislativo as suas principais reivindicações.

A pauta mais ampla de reivindicações e as ações deste constituinte para defender

os interesses e direitos de outros grupos, podem ser explicada pela pluralidade de

interesses e organizações indígenas distintas reunidas na OIC. Uma típica associação

das ‘terras altas’, nos quais os principais povos e comunidades representadas não são

nômades e estão integradas ao mercado nacional, embora a identidade étnica seja uma

característica importante destas comunidades, bem como a identidade de classe

(JACKSON&WARREN, 2006).

Voltando a questão do alcance do reconhecimento da diversidade cultural para as

comunidades indígenas da Colômbia, embora não tenha sido constitucionalizado o

reconhecimento das comunidades indígenas como nações, os desdobramentos do

reconhecimento da diversidade cultural na Colômbia serão mais amplos do que no Brasil,

especialmente no que diz respeito à autonomia territorial e a representação especial dos

povos e comunidades no legislativo da república.

A principal questão das reivindicações indígenas na constituinte colombiana foi,

sem sombra de dúvida, as exigências por autonomia política e administrativa dos

territórios indígenas, cuja expectativa era que passassem a ser reconhecidos como

entidades territoriais da República, com poderes de gestão e arrecadação fiscal

semelhantes aos municípios18. Tanto Birry quanto Hurtado propuseram estes direitos e

batalharam por um amplo número de possíveis congressistas indígenas via circunscrição

especial. Quanto a esta questão, encontraram forte oposição, sobretudo entre os partidos

de centro-direita, que viam com muitas restrições à inclusão de critérios diferenciais para

eleições de representantes indígenas e as concessões por autonomia (Cf. Gacetas 32 43

e 102).

Com relação à autonomia dos territórios indígenas, a principal questão era quais

territórios reconhecer e de que forma. Ambos os constituintes queriam que a constituição

18Francisco Birry: “4. Queremos en Colombia un nuevo mapa vital que reconozca las regiones y los grupos étnicos. Una nueva división político-administrativa es necesaria. Los indígenas proponemos que los territorios de los grupos étnicos sean reconocidos como entidades territoriales con autonomía política, administrativa y presupuestal para que podamos ser actores de nuestro propio destino” (Gaceta 18, p. 27). Disponível em: http://www.elabedul.net/Documentos/Temas/Asamblea_Constituyente/Gacetas/Gacetas_1-50/gaceta_018.php

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16 estabelece um número amplo de territórios (Gacetas 18 e 24), mas o texto final consagrou

a possibilidade de reconhecimento após a promulgação de lei especial, e o

reconhecimento dependeria do governo federal. As propostas que buscavam incluir a

representação especial foram as que mais mudaram. Ambos os constituintes iniciaram

propondo mais de 20 representantes especiais indígenas, e o texto final apenas

consagrou duas vagas no senado para representantes dos povos indígenas, a

manutenção da circunscrição nacional para eleição de todos os senadores (art. 171,

CONSTITUCION POLITICA DE COLOMBIA). Ainda sim, uma conquista significativa se

comparado com outras constituições na América Latina.

Com relação ao território como habitat, os constitucionalistas colombianos

enfrentaram oposições bastante semelhantes às propostas brasileiras. Embora as terras

tenham conquistado a possibilidade de serem consideradas entidades territoriais

equivalente aos municípios (com atribuições ficais e administrativas próprias), mais o

reconhecimento da justiça tradicional indígena dentro dos territórios tradicionais, solo e

subsolo não foram considerados indissociáveis.

O primeiro ponto a salientar é que as comunidades e povos indígenas são

efetivamente donos das suas terras, a titularidade da propriedade é coletiva, entretanto, o

subsolo pertence ao Estado. Nos debates constituintes, a Gaceta número 32 traz um

panorama dos conflitos envolvendo os territórios étnicos. O constituinte Juan Gomés

Martinez (GACETA 32, 1991, p.15) que faz o relatório da comissão 2, aponta para duas

propostas antagônicas: a proposta do governo (Proyecto nº 134: Eduardo Espinosa Facio-

Lince), que propõe manter a propriedade dos territórios étnicos junto ao Estado e permitir

a posse às comunidades, e a proposta das organizações indígenas (projetos citados nas

Gacetas 18 e24), que propõe o imediato reconhecimento dos territórios como entidades

territoriais autônomas da república. O texto final consagrará a propriedade as comunidade

étnicas, e a possibilidade de regulação das entidades territoriais especiais com poderes

autônomos equivalentes aos municípios a ser regulado em lei posterior. Ainda sim, dado

que o subsolo é de propriedade do Estado, as terras indígenas não são inexpropriáveis. E

devem ser consultadas para a realização de qualquer atividade econômica exploratório

em seus territórios, mas não é necessário o seu consentimento para a realização destes.

Olhando de forma panorâmica, embora o processo constituinte colombiano avance

em muitos pontos importantes para as reivindicações dos movimentos indígenas se

comparado ao Brasil, é inegável que uma tensão parece indissolúvel em ambos os

processos: o confronto manutenção das terras indígenas versus desenvolvimento

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17 econômico tem se resolvido a favor da intervenção estatal nas comunidades, com a

possibilidade de expropriação das terras indígenas.

Ainda sim, a revisão bibliográfica não encontrou quem avaliasse o processo

constituintes colombiano como não proveitoso para as comunidades indígenas. Os

motivos para o sucesso, entretanto, são bastante diversos. Para Gross (1991), é inegável

que os avanços só foram possíveis pelo quadro de negociação do fim dos conflitos

armados, e a importância da oposição de boa parte das organizações indígenas às

milícias, possibilitou que fosse possível aos governistas conceder amplos direitos

buscando estender o poder fiscalização do Estado para territórios até então sem nenhum

tipo de controle. Já Dugas (1993), aponta a participação direta dos dois constituintes

como a maior garantia da inclusão destes direitos. Garcia e Uprimy (2005) apontam a falta

de oposição a estes direitos, por serem de minorias, como o motivo do seu sucesso, já

que concedê-los não significaria realizar nenhuma reforma estrutural para o Estado

Colombiano.

Acreditamos que embora sucinta, a análise realizada aqui permita discordar da

centralidade de um único elemento para explicar as conquistas alcançadas na constituinte

colombiana. Com relação à explicação de Gross, convém salientar que houve uma forte

oposição da chamada base governista às propostas dos dois constituintes indígenas, e

pontos importantes às reivindicações dos movimentos, como a questão da negociação e

aceitação da comunidade para a exploração econômica de minérios e potencial

energético em terras indígenas não foram aceitas. Mesmo as disposições sobre

autonomia, ficaram a depender de lei posterior, as quais ainda não foram aprovadas (Cf.

GARZÓN, 2010, p. 36). O contexto político de momento de pacto para pacificação

certamente é importante, mas a participação oficial de dois representantes indígenas

certamente tem seu papel nas conquistas asseguradas, mas não o único.

Com relação a explicação de Garcia e Uprimy, se aceita, fica difícil entender o

porquê de tamanha oposição e disputa em torno das propostas indígenas, sobretudo

aquelas que visam incluir citações aos valores da diversidade cultural. Pensamos que os

debates sobre o conteúdo simbólico do preâmbulo da constituição, cuja as propostas dos

dois constituintes foram afastadas, uma totalmente, outra parcialmente e deslocada para

outro artigo, é um exemplo pungente, pelo menos para a compreensão das disputas por

direitos indígenas, do quando os valores também constituem uma dimensão importante

não só para a análise, mas também para os atores envolvidos. A análise do processo

constituinte Boliviano irá ilustrar esta questão mais fortemente.

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18 Bolívia: Os direitos dos povos originários indígenas campesinos

O processo constituinte boliviano é marcado por inúmeras tensões e pela coalizão

entre povos indígenas e organizações campesinas, cujas pautas de reivindicação foram

incluídas na agenda política do partido Movimento ao Socialismo (MAS), que o ocupou o

papel de centro durante os trabalhos da constituinte, intermediando as reivindicações das

organizações indígenas, sobretudo das organizações das ‘terras altas’, os povos

nômades, cuja a identidade étnica é mais determinante do que a identidade de classe,

com as da oposição formada majoritariamente por setores urbanos e as elites dos setores

agrários, o PODEMOS. Com a eleição de Evo Morales para a presidência da república

em 2006, abria-se o caminho para a realização da assembleia constituinte, reivindicação

dos movimentos sociais indígenas pelo menos desde o inicio da década de 1990.

Este tópico focará nas propostas apresentadas pela coligação do MAS na

assembleia constituinte e os posteriores desdobramentos destas propostas19. A

compreensão dos principais pontos discordantes foi possível pela consulta a etnografias

do processo constituinte, a qual destacamos a tese de Salvador Schavelzon: A

Assembléia Constituinte Da Bolívia: Etnografia do Nascimento de um Estado

Plurinacional20.

As pressões populares, sobretudo, das organizações indígenas por uma

assembleia constituinte na Bolívia remontam ao início da década de 1990 (PEÑARANDA,

2002). As inúmeras marchas dos movimentos indígenas realizadas entre 1990 e 2006 já

tinham como foco a reivindicação de uma nova constituição e a garantia dos direitos

indígenas. De acordo com Albó (2008, p. 14), muitas lideranças viam como bons olhos os

efeitos dos processos constituintes dos países vizinhos e almejam o mesmo tipo de

garantia institucional para suas expectativas. Entretanto, muito das conquistas dos

movimentos dos países vizinhos eram também valoradas como insuficientes, depositárias

ainda do modelo neoliberal multicultural, capaz de reconhecer apenas um papel

subsidiário da diversidade cultural e, portanto, na avaliação de muitos ativistas e atores

políticos da esquerda, falho na garantia dos direitos dos povos indígenas. Esta percepção

era marcada também pela própria experiência boliviana. As reformas constitucionais do

início da década de 1990 haviam incluído a participação de comunidades indígenas nos 19 A análise dos principais conflitos existentes no processo constitucional da Bolívia baseou-se, sobretudo, pela revisão bibliográfica. Ainda não existem documentos organizados dos debates da assembleia constituintes disponíveis ao público, e as compilações de projetos e debates realizados por associações somam mais de milhares de documentos, cuja análise sistemática ou mesmo por tema, é um imenso desafio. Para este tópico, consultamos os documentos e artigos disponíveis no site “Apostamos por Bolivia” uma rede de ONGs diretamente envolvida nos debates e propostas do MAS para a assembleia constituinte. 20 Cf. SCHAVELZON, S. 2010. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=199561

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19 conselhos municipais, buscando propiciar a tais organizações os fundos para a realização

de seus próprios projetos sociais e de desenvolvimento, sem, contudo, assegurar a

territorialidade plena dos povos indígenas, ou estabelecer representações especiais mais

amplas. Na medida em que as reformas neoliberais nas áreas econômica e administrativa

fracassaram, estas reformas tornaram-se imensamente impopulares, e foram

consideradas a prova do fracasso do modelo multicultural para a cidadania indígena. Mais

do que a inclusão da diversidade cultural como um elemento complementar da cidadania

seria necessário refundar a própria cidadania tendo como base a diversidade cultural. O

reconhecimento do plurinacionalismo tornava-se assim a principal bandeira das

reivindicações indígenas na assembleia constituinte boliviana de 2006.

Esta proposta foi abraçada pelo MAS, que chegou ao poder com amplo apoio das

organizações indígenas, e firmou o compromisso de chamar a constituinte e permitir a

representação direta das comunidades indígenas no processo. Entretanto, a aprovação

da lei da convocatória da Assembleia constituinte foi um prelúdio dos extensos debates

sobre a autonomia e as controvérsias geradas pela inclusão do plurinacionalismo como

característica essencial do Estado Boliviano.

Juntamente com a eleição de Evo Morales, o MAS consegui a maioria na câmara

dos deputados boliviana, mas o mesmo não se repetiu no Senado. E, desta forma, o

governo precisou negociar a sua agenda política com a oposição, deixando uma parcela

das organizações indígenas aliadas bastante insatisfeitas com os resultados alcançados.

A oposição, cuja base eleitoral provinha dos departamentos mais ricos e desenvolvidos

economicamente, via com bastante receio a incorporação do plurinacionalismo nas

instituições estatais, e defendia uma forte autonomia departamental que permitiria aos

departamentos que autodefiniam como ‘mestiços’ a manutenção de suas regras

republicanas e o usufruto das receitas fiscais.

Por sua vez, embora o MAS defende-se a autonomia como medida para assegurar

os direitos de autogoverno das comunidades indígenas, não concordava com a autonomia

departamental reivindicada pela oposição, sobretudo no que diz respeito a divisão de

receitas e a arrecadação fiscal. Centralizar a arrecadação fiscal era considerada uma

medida extremamente necessária para a realização das amplas reformas econômicas e

sociais, agenda política igualmente importante para o MAS, na mesma medida que as

reformas pelo reconhecimento da diversidade cultural. E é o confronto entre duas formas

de autonomia que ditará o alcance o limite dos novos direitos indígenas

constitucionalizados na Bolívia.

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20

A proposta do MAS era convocar a assembleia constituinte por meio de eleição

direta, com a participação por circunscrição especial indígena, facultando métodos de

tradicionais de escolha dos representantes aos povos indígenas (o que implicaria na

presença de constituintes não eleitos por voto direto e secreto). Também propunha a

aprovação do texto constitucional por maioria simples. No Senado, este projeto de lei foi

recusado e o governo aceitou três alterações para conseguir a promulgação desta: em

primeiro lugar, o quórum para a aprovação do texto constitucional passou para 2/3 dos

constituintes; caso não se conseguisse, se passaria ao referendo das questões não

aprovadas, retirou-se a previsão de participação especial de representantes dos povos

indígenas e, incluiu-se a previsão da realização plebiscito sobre autonomia departamental

com efeitos vinculantes para a constituinte21.

De acordo com Albó (2008) chamados os constituintes, e aprovado o regulamento

de funcionamento da assembleia, processo que demorou mais de cinco meses, criaram-

se 21 comissões22 que realizaram encontros territoriais temáticos nos departamentos.

Logo após alguns meses de deliberações nas comissões, ampliou-se o prazo de

funcionamento da Assembleia até dezembro de 2007, mas não foi possível convocar as

sessões plenárias no Teatro Mariscal, de Sucre, sede da Assembleia, pela eclosão de

protestos na cidade, que reivindicavam a transferência para a cidade dos poderes

executivo e legislativo, instalados há mais de um século na cidade de La Paz, na busca

da “capitalia plena”. Estas dificuldades de reunião da assembleia persistiram até o final,

quando a constituição seria aprovada com não mais da metade dos constituintes.

A participação indígena na Assembleia foi ampla. O MAS garantiu que de suas

listas saíssem a maioria dos constituintes indígenas eleito. Xavier Albó (2008, p.96),

apresentada dados sobre uma pesquisa feita pela rede de ONGs Apostamos por Bolívia,

realizada com a totalidade dos constituintes. Quanto perguntados se faziam parte de

algum povo originário, 55,8% dos entrevistados responderam que sim. Dentro deste

conjunto, 31,8% se identificaram como quéchuas; 16,9% aymaras; e 7,1% de outros

povos, dentre os quais 6 chiquitanos, 4 mojeños, 4 tacanas e 1 das etnias guarani,

guarayo, itonama e joaquiniana. Entretanto, quando perguntados a qual ‘raça’ pertenciam

(respostas fechadas, com três opções: branco, indígena e mestiço), 69,8% declaram ser 21De acordo com Schavelzon (2010, p.23) na mesma data da eleição dos constituintes, 2 de julho de 2006, quatro dos nove departamentos votaram pelo “sim” à autonomia (sobretudo os departamentos da ‘meia lua’ onde se concentrava a oposição contra o governo do MAS), contra cinco votos ‘não’. O principal campo de disputa da constituinte estava declarado. Mas esta não foi à única tensão enfrentada nos trabalhos da assembleia. 22 Destacamos os trabalhos conduzidos pela comissão da terra, comissão de direitos indígenas e a comissão das autonomias e a comissão de ideias para o Estado.

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21 mestiços, 26,7% indígenas e 3,6% brancos; entre os mestiços se incluem alguns dos que

responderam também pertencer a algum povo originário (especialmente os não aymara).

A ambiguidade das respostas ilustra a polêmica sobre a maioria indígena na

Bolívia, e como ela se autoreconhece Ainda cabe destacar que entre os constituintes, 88

eram mulheres e 167 homens; e dentre eles 43,2% das mulheres e 62,3% dos homens

eram “profissionais”. A pesquisa apontou, ainda, que as mulheres eram mais jovens, em

maior proporção dirigentes de base e, também em mais casos membros de grupos

étnicos23, eleitas pelas listas do MAS.

A participação especial indígena certamente foi um dos temas mais polêmicos. A

maioria das propostas das associações e movimentos indígenas previa a circunscrição

especial indígena e a inclusão de cadeiras em ambas as casas do legislativo federal, bem

como para outras instituições, como o os órgãos de cúpula do judiciário, destinadas a

representantes escolhidos por critérios tradicionais de todos os povos indígenas (a

proposta era reconhecer 32 povos originários campesinos). Tal forma seria a mais

adequada para dar conta da situação de falência do modelo multicultural de

reconhecimento periférico e controlado da diversidade cultural, que na Bolívia nunca

previu a representação especial dos povos indígenas nas instituições estatais. Para as

organizações tratava-se de uma questão de justiça histórica, afinada com os instrumentos

internacionais dos direitos dos povos indígenas, convenção da OIT e a Declaração dos

Direitos dos Povos Indígenas, esta última ratificada pelo Estado Boliviano durante a

constituinte. Sem representação direta, nenhuma comunidade indígena poderia se

considerar verdadeiramente autônoma.

Entretanto, esta proposta encontrava fortes barreiras, mesmo dentro do MAS.

Como contornar a questão da proporcionalidade? Se um povo indígena tem 100

habitantes, e recebe 1 representante, quantos representantes deveria ter um povo com

50.000 mil? O resultado final foi à definição do número de representantes indígenas por

departamento e não por povos declarados (Idem, p. 566) para o Senado. Mas

representantes indígenas serão indicados por critérios tradicionais nas câmaras

departamentais e municipais. A jurisdição especial indígena seria incorporada à jurisdição

comum, e estas indicariam membros para compor os tribunais de cúpula, lei

complementar estabeleceria quantos e de que forma. Com relação a autonomia,

diferentemente da Colômbia, os povos originários campesinos conseguiram a aplicação

23 Para uma análise mais detalhada da pesquisa (metodologia e dados recolhidos) cf. http://www.scielo.org.bo/pdf/rbcst/v11n23-24/v11n23-24a04.pdf

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22 imediata do reconhecimento de seus territórios como uma unidade territorial da nação

Boliviana.

O significado de plurinacionalismo também foi outro capítulo intenso dos debates

da assembleia constituinte. Para alguns, representaria o reconhecimento da igualdade de

oportunidades de todos os povos indígenas, para outros, um sistema de tipo

confederativo. Muitos militantes do MAS viam o plurinacionalismo um modelo evoluído da

estrutura soviética de nações. Para a oposição, era, sobretudo, um poder central

hegemônico autoritário com ritualidade cerimonial indígena, avesso às regras

democráticas (Idem, 567), especialmente por que acoplado ao plurinacionalismo estava a

proposta do quarto poder: ‘o poder social’, que seria o órgão fiscalizador do cumprimento

da constituição e dos outros três poderes. O Mas irá abandonar esta proposta na

constituinte, em prol de firmar acordos com o PODEMOS para a aprovação da inclusão

do plurinacionalismo. O texto final da constituição o adotou, mas foi um dos artigos mais

polêmicos, que justificou o abando da constituinte por grande parte da oposição na etapa

final de aprovação. Ainda sim, as expectativas das organizações indígenas não foram

frustradas neste sentido, diferentemente do que aconteceu nos processos do Brasil e da

Colômbia. Para este ponto, o fato de que as reivindicações indígenas na Bolívia foram

incorporadas à agenda do partido político com maioria no congresso e com poder

suficiente para eleger a maior bancada da assembleia, certamente fez diferença. O meio

de politização das demandas favoreceu a aprovação de uma pauta maior. Entretanto,

este apoio também renderia a supressão de algumas demandas, como o capítulo sobre

terras e territórios indígenas demonstraria.

As discussões sobre as terras indígenas aconteceram dentro da comissão de

Recursos Naturais Renováveis, Terra, Território e Meio Ambiente, conhecida na

Assembleia como “Comissão Terra”. Quanto a este assunto, a posição do MAS foi de

centro e procurou mediar dois blocos antagônicos de propostas. A proposta do Mas era

estender o conceito de territorialidade as Terras Comunitárias de Origem (TCO),

presentes na lei de Reforma Agrária de 2006, que passariam a ser chamadas de

Territórios Indígena Originário Camponeses (TIOC). O problema é que havia, pelo menos,

dois blocos de reivindicações indígenas sobre a questão. As organizações indígenas

campesinas buscavam a manutenção das terras coletivas e individuais como a expressão

da sua forma de vida comunitária. Esta proposta contrastava com as organizações das

terras altas, sobretudo dos povos nômades da floresta, viam a necessidade de estender o

conceito de territorialidade para a exclusividade da propriedade coletiva, incluindo a

indissociação entre solo e subsolo, o que daria controle aos povos indígenas não apenas

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23 do território, mas também dos recursos naturais não renováveis (Albó,2008, p, 45). A

oposição, PODEMOS, por sua vez, via com muita desconfiança o reconhecimento das

terras indígenas, seja como propriedade exclusivamente coletiva ou a proposta mista

típica dos campesinos indígenas, sobretudo por que não concordava que os povos

indígenas tivessem o domínio dos recursos naturais não renováveis (SCHAVELZON,

2010, p.154).

O texto final reconheceu a propriedade híbrida das TIOCs, mas possibilitou a

demarcação contínua das terras, mediante o reconhecimento do Estado central. Mas este

não foi de longe a solução que mais desagradou organizações indígenas. A respeito da

titulariedade da propriedade dos recursos naturais não renováveis, a proposta do MAS foi

torná-los propriedade do povo, exploração possível apenas pelo Estado, sem consulta

vinculante aos povos indígenas. Proposta que foi aprovada no texto final24. Este

certamente foi o ponto que mais causou a revolta das organizações indígenas com a

atuação do MAS na constituinte. O balanço, entretanto, é mais positivo do que os

resultados obtidos pelas organizações indígenas nos outros dois países. Chama a

atenção o fato de que embora completamente diferentes, em número, força e

reivindicações, as comunidades e povos indígenas dos três países não lograram

conseguir o domínio sobre os recursos do subsolo e a prerrogativa de barrar projetos de

desenvolvimento energético e econômico do Estado em seus territórios. Este limite a

expansão dos poderes da autonomia indígena, o desenvolvimento econômico nacional, é

uma constante instigante que certamente guiará novos estudos sobre a aplicação dos

direitos indígenas nos três países.

Considerações Finais

Os povos indígenas, caracterizados como entidades minoritárias a serem

protegidas no Brasil, como minorias étnicas importantes para o pacto de paz nacional na

Colômbia, e considerados a principal voz do plurinacionalismo na Bolívia, alçaram

resultados distintos nos últimos processos constituintes nos três países. As reivindicações

pelo reconhecimento de seus valores e tradições alcançou diferentes níveis nos três

estudos de caso, e estas diferenças podem ser relacionadas às peculiaridades dos

contextos políticos e as formas de ativismo e mobilização política em prol dos direitos

indígenas. Entretanto, um padrão parece se sustentar das análises realizadas sobre as

24 De acordo com a Constituição Boliviana (CONSTITUICÍON POLÍTICA DEL ESTADO, 2009): “Artículo 352. La explotación de recursos naturales en determinado territorio estará sujeta a un proceso de consulta a la población afectada, convocada por el Estado, que será libre, previa e informada. Se garantiza la participación ciudadana en el proceso de gestión ambiental y se promoverá la conservación de los ecosistemas, de acuerdo con la Constitución y la ley. En las naciones y pueblos indígena originario campesinos, la consulta tendrá lugar respetando sus normas y procedimientos propios.”

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24 três questões que trabalhamos: de são as comunidades/povos indígenas o principal

sujeito de direito dos direitos indígenas nas três constituições, e que o estado possui um

papel prioritário na formulação, execução e fiscalização dos direitos destas

comunidades/povos. Entretanto, seria enganoso dizer que não existem direitos

assegurados que ilustrem os outros dois âmbitos de relação importantes para os direitos

humanos reconhecidos na chave da diversidade cultural: a relação individuo e estado e a

relação indivíduo e comunidade. Não foi o objetivo deste artigo trabalhar também com

estas outras duas dimensões, já que nosso foco era compreender mais os limites das

propostas indígenas levadas às constituintes, do que meramente enumerar o rol dos

direitos constitucionalizados. Tampouco achamos que esgotamos este assunto, e

assumimos o caráter mais exploratório do que analítico deste artigo. Entretanto,

defendemos a realização desta análise comparativa como uma instigante tentativa de

compreender como a política moldou as estruturas jurídicas constitucionais dos direitos

indígenas nos três estudos de caso, e como os direitos constitucionais indígenas são o

fruto de conflituosos processos de definição que não se esgotam com a promulgação das

constituições.

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