MARCOCCI, Giusepe. A Inquisição Portuguesa Sob Acusação

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"A Inquisição portuguesa sob acusação", artigo do professor Giuseppe MArcocci.

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  • Cadernos de Estudos Sefarditas, n. 7, 2007, pp. 31-81.

    A Inquisio portuguesa sob acusao:o protesto internacional de Gasto Abrunhosa *

    Giuseppe MarcocciScuola Normale Superiore di Pisa

    Todo o que dizem em suas cfisses he a fora. Era peremp-trio o juzo dado em 1593 por um notrio da Inquisio portu-guesa em resposta a uma carta confidencial do inquisidor geral, queo interrogava sobre o modo de proceder no tribunal de vora. Con-trariamente ao seu colega Nicolau Agostinho, destinatrio de umaidntica missiva, Manuel do Vale no mostrou receio em denunciaro paradoxo de uma instituio que pretendia ser guardi da supremaverdade, a ortodoxia, mas tinha acabado por se tornar num poderfundamentado em mentiras e falsidades, sob a proteco do segredoem que a sua actividade estava envolta. As acusaes do notrio devora representam um documento excepcional, que oferece ao his-toriador a rara ocasio de penetrar no meio de um debate interno,aparentemente sincero, sobre a natureza da justia inquisitorial. Aexperincia de dezoito anos de servio, continuava Vale, mostravaque as pessoas saam do crcere peores. Naquela correspondnciareflectia-se o clima de suspeita que ento cada vez mais se difundiaem Portugal volta da legitimidade dos mtodos do Santo Ofcio.Os protestos dos cristos-novos pareciam encontrar equivalentesnas opinies ntimas de um funcionrio do tribunal da f 1.

    * Abreviaturas: ACDF (Archivio della Congregazione per la Dottrina della Fede, Cittdel Vaticano); AGS (Archivo General de Simancas); ANTT (Arquivo Nacional da Torredo Tombo, Lisboa); ASFi (Archivio di Stato, Firenze); ASV (Archivio Segreto Vaticano);BAV (Biblioteca Apostolica Vaticana); BdA (Biblioteca da Ajuda, Lisboa); BNL (Biblio-teca Nacional de Lisboa). A traduo do italiano e do latim das fontes originais citadas notexto da minha autoria.

    1 Carta de Manuel do Vale ao cardeal D. Alberto, arquiduque de ustria, vora, 3 deJunho de 1593 (ANTT, Conselho Geral do Santo Ofcio [CGSO], liv. 323, doc. 36 A); amesma data apresenta a missiva de Nicolau Agostinho (ibid., doc. 35 A); respondiam aduas distintas cartas do inquisidor geral, Lisboa, 29 de Maio de 1593 (ibid., docs. 35 e 36).

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    Manuel do Vale fora nomeado notrio da Inquisio de voraem 1576 2. Naquele tempo estava ainda fresca a lembrana da con-jurao que na primeira metade dos anos setenta tinha baralhado osequilbrios de Beja, o principal centro urbano do Baixo Alentejo.Tinha-se tratado de um intricado caso de denncias cruzadas,fomentadas por conflitos sociais e lutas de poder. Alm dos cris-tos-novos, a grave acusao de cripto-judasmo acabara por al-canar tambm notveis cristos-velhos. Em Beja o verdadeiro e ofalso misturaram-se. Numa altura em que as autoridades do reinoaderiam em massa retrica da limpeza de sangue, a chamada con-jurao dos falsrios pareceu provocar a exploso das contradiesimplcitas na equao entre sangue infecto e heresia. Depoimentoscombinados, testemunhos falsos e confisses retractadas causaramuma reaco em cadeia, com a abertura de mais de uma centena deprocessos nos tribunais de vora e de Lisboa. Somente tomandomedidas extraordinrias, sob a direco do Conselho Geral do SantoOfcio, se conseguira encontrar um remdio. Mas o alvoroo foragrande. Em vrios aspectos repetiam-se os factos que pouco tempoantes se tinham verificado emMrcia (1550-1569) 3. A conjurao deBeja marcou uma viragem na histria da Inquisio portuguesa. Defacto, diferentemente do que aconteceu em Castela, onde aps anosde processos e condenaes os inquisidores acabaram por chegar aum compromisso com as exigncias da paz social, o tribunal lusitanoaproveitou o episdio para reforar o seu poder 4.

    2 Foi nomeado notrio em 30 de Maro de 1576 e prestou juramento no dia seguinte(ANTT, Inquisio de vora [IE], liv. 146, fls. 142v-143).

    3 JAIME CONTRERAS, Sotos contra Riquelmes. Regidores, inquisidores y criptojudos, Madrid,Anaya & Mrio Muchnik, 1992. Entre o fim dos anos sesenta e o incio dos anos setentarebentou em Npoles um caso de represso inquisitorial contra judaizantes, que apresentaconsiderveis analogias com os acontecimentos de Mrcia e de Beja. Uma reconstruopontual, em perspectiva comparativa, do episdio em PETER MAZUR, The Roman Inquisitionand the Crypto-Jews of Spanish Naples, 1569-1582, Ph.D. dissertation, Northwestern Univer-sity, a.a. 2007-2008.

    4 A conjurao de Beja est ainda espera de um estudo aprofundado. Para uma in-troduo ver ANTNIO BORGES COELHO, Inquisio de vora. Dos primrdios a 1668, I,Lisboa, Caminho, 1987, pp. 314-320; MARIA JOS PIMENTA FERRO TAVARES, Los Judios enPortugal, Madrid, Mapfre, 1992, pp. 201-211.

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    Antes da fundao oficial (1536), o Santo Ofcio j fora objectoduma acesa polmica, levantada pelos procuradores dos cristos--novos em Roma, os quais temiam a criao de uma segunda Inqui-sio espanhola. A hiptese era considerada com receio pela cria.Um dos pontos centrais na disputa relacionava-se com a concessodo processo secreto, que teria permitido aos juzes do Santo Ofcioactuar sem obrigao de comunicar aos rus os nomes das testemu-nhas da acusao e as circunstncias dos crimes que lhes eram atri-budos. A recusa inicial de Roma provocara um confronto demora-do que tinha acabado por persuadir Pio IV a ceder s presses dacorte lusitana (1560). A questo era delicada. No por acaso,mesmo sobre a matria dos testemunhos, junto com a aplicao daconfiscao dos bens, os inquisidores portugueses seriam foradosa sustentar, no sculo XVII, uma demorada controvrsia com aCongregao romana do Santo Ofcio.

    Durante o sculo XVI o estatuto jurdico dos rus nos tribunaisinquisitoriais lusitanos sofreu uma debilitao progressiva. J no pri-meiro Regimento do Santo Ofcio (1552), mediante uma formula-o intencionalmente ambgua, deixava-se ao arbtrio dos inquisi-dores a escolha de prender os suspeitos por uma s testemunha 5.A veracidade da confisso judiciria dos rus estava vinculada aonmero de cmplices denunciados e, em particular, presena entreeles de pessoas cheguadas e conjuntas e~sangue e a que tenho par-ticular affeiam 6. Reconhecia-se que o erro se arreigava muitasvezes no mbito familiar, prevendo por isso procedimentos espec-ficos para absolver os parentes de um culpado. Chegava-se tambmat uma substancial reduo da noo compsita de heresia s ci-rimonias judaicas 7. Mas no Regimento nunca se utilizava a catego-

    5 Regimento de 1552, cap. 24 (em ANTNIO BAIO, A Inquisio em Portugal e no Brasil.Subsidios para a sua historia, Lisboa, Edio do Arquivo Historico Portuguez, 1920,doc. XXXI).

    6 Ibid., cap. 10.7 Ibid., caps. 16 e 51, pelo qual cito.

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  • ria de cristo-novo. Foi apenas com a emergncia da conjurao dosfalsrios de Beja que se comeou a elaborar uma especial legislaoinquisitorial directa contra os conversos. Entre 1571 e 1575 o inqui-sidor geral, o cardeal infante D. Henrique, emitiu provises quetinham por fim impor uma distino cada vez maior entre cristos--velhos e cristos-novos, reduzindo as possibilidades de defesa dosrus e procurando castigar com mais severidade os que declaravamfalsidades perante o tribunal 8. A ltima daquelas disposies, con-tida numa carta do cardeal infante de 1575, reafirmava que era proi-bido aos penitenciados pela Inquisio, assim como aos filhos enetos de hereges condenados morte, exercer cargos e ofciospblicos 9.

    A estratgia da represso religiosa e os percursos da exclusosocial j se cruzavam na aco do Santo Ofcio, reflectindo a hist-ria e o poder crescente de um tribunal criado sobretudo para vigiaros judeus convertidos e os seus descendentes. A observao deFrancisco Bethencourt, segundo o qual a seguir conjurao deBeja foi como que transferida num plano formal a proibio dereceber as acusaes dos cristos-novos contra os cristos-velhos,encontra uma confirmao significativa na pergunta efectuada, em1597, pelo inquisidor geral D. Antnio Matos de Noronha aosjuzes de vora, se esta feito alghum acordo nesa Jnquisica quena valha o dito de christa novo ctra christa velho 10.

    O zelo da Inquisio estava a produzir efeitos concretos e im-

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    8 Sobre as consequncias legislativas da conjurao de Beja estou a realizar uma inves-tigao de prxima publicao. Por agora permito-me remeter para o meu livroI custodi dellortodossia. Inquisizione e Chiesa nel Portogallo del Cinquecento, Roma, Edizioni diStoria e Letteratura, 2004, pp. 91-92; 95-96; 190-192. Chamo a ateno para um enganona p. 191, onde uma proviso tem data de 1566 em lugar de 1573.

    9 Carta aos inquisidores de vora, Almada, 8 de Julho de 1575 (ANTT, IE,liv, 72,fl. 218).

    10 Carta de 28 de Junho de 1597 (ANTT, IE, liv. 72, fls. 418-419); a observao deBETHENCOURT na suaHistria das Inquisies. Portugal, Espanha, Itlia, Lisboa, Crculo de Lei-tores, 1994, p. 300.

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  • punha, de facto, uma segregao de origem genealgica, qual asleis civis se iam lentamente adaptando. Exemplar foi o caso do m-dico cristo-novo Francisco Carlos. Condenado como judaizantepelo tribunal de Coimbra em 1568, treze anos depois tinha pedidopara ser admitido novamente no exerccio da profisso, apesardo impedimento confirmado pelas instrues do cardeal infanteD. Henrique sobre cargos e ofcios pblicos. Perante a recusa,Carlos no desistira. No incio de 1597 o inquisidor geral Noronhaescreveu uma carta em tom firme aos juzes de Coimbra, pela qualos informava de que tinha notcia que Carlos recomeara a praticara profisso de mdico. Portanto, mandava que fizessem as dilign-cias necessrias e, caso fosse verdade, vedassem ao cristo-novo apossibilidade de continuar. Tinham passado trinta anos, mas amarca de infmia da condenao ainda pesava 11.

    Decnios de incessante discriminao, sancionada pelo ritoperidico dos autos da f, favoreceram um definitivo encerramentoda sociedade em Portugal. O processo foi acelerado aps a passa-gem para a dominao da coroa espanhola (1580). Como no restoda pennsula ibrica, a difusa procura de prestgio e afirmao en-controu nos estatutos de limpeza um eficaz instrumento pararefrear a inflao de cargos e ttulos, incentivada pela venalidade.A gradual, mas inexorvel publicao de estatutos, entre o fim dosculo XVI e o incio do seguinte, suscitou os contrastes e as resis-tncias daqueles cristos-novos que aspiravam a uma plena e legti-ma integrao nas altas esferas da vida pblica. A via para a nobi-litao de uma famlia tornara-se cheia de obstculos. O risco maiorera constitudo pela descoberta de antepassados judeus 12. Foi na-

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    11 Processo de Francisco Carlos (ANTT, Inquisio de Coimbra [IC], proc. 9.176);petio de 5 de Setembro de 1581 (ANTT, IC, liv. 292, fl. 488-509v); carta de Noronha,Lisboa, 3 de Janeiro de 1597 (ANTT, IC, liv. 272, fl. 428rv). Menciona o processo ELVIRACUNHA DE AZEVEDO MEA, A Inquisio de Coimbra no Sculo XVI. A Instituio, os Homens ea Sociedade, Porto, Fundao Engo Antnio de Almeida, 1997, pp. 495-496.

    12 Acerca da difuso e do impacto dos estatutos de limpeza em Portugal continua a sertil, apesar da tendncia compilao, MARIA LUIZA TUCCI CARNEIRO, Preconceito Racial em

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  • quela poca de speros conflitos que o cavaleiro Gasto de Abru-nhosa lanou um aberto desafio Inquisio portuguesa.

    1. Uma nobreza conversa: a famlia Abrunhosa

    Tudo tivera incio por volta de 1530. A famlia Abrunhosa resi-dia, naquela altura, na vila da Mda, no interior do Portugal seten-trional. Eram lavradores, gente honrada, todos cristos-velhos. Ummembro da famlia cometera um delito e estava homiziado.O seu nome era Gasto de Abrunhosa. De alguma maneira, con-seguira obter de D. Joo III o ofcio de escrivo da alfndega da vilade Serpa, para onde se mudara. A desposara a filha de uma saboei-ra, Leonor Fernandes de Abreu, crist-nova. Em tempos de in-troduo do Santo Ofcio no reino foi uma escolha que tinha algode temerrio. Segundo se transmitiu na memria familiar, casaram--se por amor 13. Os dois tiveram muitos filhos. Ao que parece, a m-cula de ter uma me crist-nova no criara problemas nas carreirasdos filhos vares de Gasto de Abrunhosa, nem impedira s suasfilhas de obterem bons matrimnios em Serpa com maridos cris-tos-velhos, distinguindo-se o juiz dos rfos Pro Barreto, casadocom Valria de Abrunhosa. Uma avisada estratgia familiar facilitaraa rpida ascenso dos Abrunhosa, que souberam tirar proveito daspossibilidades oferecidas por um rei e um reino que viviam damerc, conforme a sugestiva definio de Fernanda Olival 14.

    Em meados do sculo XVI, uma poca de grande expanso da

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    Portugal e Brasil Colnia. Os Cristos-Novos e o Mito da Pureza do Sangue, So Paulo, Perspectiva,20053. Abre novas e estimulantes perspectivas FERNANDA OLIVAL, Rigor e interesses: os esta-tutos de limpeza de sangue em Portugal, Cadernos de Estudos Sefarditas, 4, 2004, pp. 151-182.

    13 Para a reconstruo das origens da famlia Abrunhosa em Serpa usei a carta escritapor um afastado parente da Mda, o sacerdote Francisco Rodrigues, aos inquisidores deLisboa, Carvoeira, 15 de Agosto de 1604 (ANTT, Inquisio de Lisboa [IL], proc. 11.619[processo de Ana da Cruz], fl. 35).

    14 FERNANDA OLIVAL, As Ordens Militares e o Estado Moderno. Honra, Merc e Venalidadeem Portugal (1641-1789), Lisboa, Estar, 2001.

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  • burocracia rgia causada pelas novas exigncias de um pequenoreino que tinha construdo um extenso imprio ultramarino, osAbrunhosa conheceram uma indiscutvel promoo social em vir-tude dos servios prestados coroa. Os sinais de uma precoce no-bilitao da famlia so evidentes. Considere-se a parbola biogr-fica de dois filhos de Gasto, Alexandre e Ferno de Abrunhosa.Em 1551, por um alvar de D. Joo III, o primeiro, ento moo dacmara da infanta D. Isabel, herdou o ofcio de escrivo da alfn-dega de Serpa, que fora de seu pai 15. Alexandre de Abrunhosa foiuma figura central na afirmao da famlia nas estruturas de poderde Serpa 16. O favor da coroa acompanhou-o durante toda a vida.A deciso de apoiar D. Filipe II de Espanha no tempo da crise di-nstica de 1580 esteve certamente na origem da tena anual de20.000 ris, que o novo soberano lhe outorgou, por intercesso doduque de Medina Sidonia em 1581 17. O segundo filho, Ferno deAbrunhosa, licenciou-se em direito e foi protagonista de uma bri-lhante carreira nas magistraturas do reino. Em 1560 foi nomeadoprocurador da Casa da Suplicao 18. Anos depois voltou de Lisboaa Serpa, onde tambm exerceu o cargo de juiz dos rfos. Consoli-dou a sua posio social tambm atravs da via do acesso s ordensmilitares 19. Com alguma dificuldade, em meados dos anos oitenta

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    15 Alvar de 27 de Outubro de 1551 (ANTT, Chancelaria de D. Joo III, liv. 54, fl.145v). Ver tambm o alvar de lembrana de 1 de Novembro de 1554 (ANTT, Chancela-ria de D. Joo III, liv. 58, fl. 198v).

    16 Ver o alvar de 24 de Janeiro de 1564 (ANTT, Chancelaria de D. Sebastio eD. Henrique, Privilgios, , liv. 4, fl. 259rv), pelo qual foi oficialmente nomeado procuradordo nmero da vila; e o alvar de 17 de Janeiro de 1576 (ANTT, Chancelaria de D. Sebas-tio e D. Henrique, Doaes, liv. 35, fls. 212-213), pelo qual lhe foi feita merc duma partedas terras de Ins Queirs, viva do meirinho de Serpa Lopo Fernandes.

    17 Alvar de 11 de Novembro de 1581 (ANTT, Chancelaria de D. Sebastio e D. Hen-rique, Doaes, liv. 46, fl. 364).

    18 Alvar de 31 de Agosto 1560 (ANTT, Chancelaria de D. Sebastio e D. Henrique,Doaes, liv. 8, fl. 99).

    19 Ver a carta de lanar o hbito de 28 de Fevereiro de 1583 (ANTT, Ordem de Cristo,liv. 5, fl. 143), pela qual lhe foi concedida uma tena anual de 20.000 ris.

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  • entrou na Ordem de Cristo, a mais prestigiosa das trs que existiamem Portugal. Naquela poca a admisso na Ordem j estava regula-mentada por uma rigorosa (mas secreta) inquirio genealgica 20.Contudo, no faltavam ento, nem faltariam em seguida, candidatosde origem conversa que conseguissem penetrar nas instituies re-servadas nobreza ou, no mnimo, aos cristos-velhos 21. O xito dacandidatura oferecia uma proteco, pelo menos temporria, contraas quedas em desgraa que no raramente comprometiam o percur-so ascendente de importantes famlias crist-novas 22. Da slida con-dio social alcanada pelos Abrunhosa durante meio sculo de ser-vios nos cargos pblicos reveladora uma carta rgia de 1585, naqual se declarava que Ferno podia ser provido do hbito de ca-valeiro da Ordem de Cristo, pois a Mesa da Conscincia e Ordensdecretara que tinha as calidades necessarias da parte de seu paj,enquanto gozava da dispensa do rei para que no fosse excludo porser da nacam da parte de sua maj 23. O facto que tambm a suamulher, Leonor Vaz, fosse uma crist-nova (em seguida, isto tor-nou-se um factor de excluso) no foi tomado em considerao.Finalmente, depois de mais de um ano de noviciado, em 1586 o

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    20 O princpio da limpeza nas ordens militares foi introduzido pela bula Ad RegiaeMaiestatis de Pio V (18 de Agosto de 1570). Para uma sntese geral sobre o sistema que re-gulamentava o acesso Ordem de Cristo no sculo XVI ver FRANCIS A. DUTRA,Members-hip in the Order of Christ in the Sixteenth Century: Problems and Perspectives, Santa Barbara Por-tuguese Studies, 1, 1994, pp. 228-239.

    21 FERNANDA OLIVAL, Para um estudo da nobilitao no Antigo Regime: os cristos-novos naOrdem de Cristo (1581-1621), em As Ordens Militares em Portugal. Actas do I Encontro sobre asOrdens Militares, Palmela, Cmara Municipal de Palmela, 1991, pp. 233-244; EAD., O acessode uma famlia de cristos-novos portugueses Ordem de Cristo, Ler Histria, 33, 1997, pp. 67-82;EAD., A famlia de Heitor Mendes de Brito: um percurso ascendente, em MARIA JOS FERRO TAVA-RES (org.), Poder e Sociedade. Actas das Jornadas Interdisciplinares, II, Lisboa, UniversidadeAberta, 1998, pp. 111-129.

    22 A histria das tentativas de consolidar a prpria ascenso social por parte de umafamlia de remotas origens crist-novas o objecto do livro de EVALDO CABRAL DEMELLO, O nome e o sangue. Uma parbola familiar no Pernambuco colonial, 2.a ed. revista, SoPaulo, Topbooks, 2000.

    23 Carta de 3 de Janeiro de 1585 (ANTT, Ordem de Cristo, liv. 6, fl. 152v).

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  • monarca mandou que o idoso letrado fizesse a solene profisso noconvento de Tomar 24.

    Portanto, nas dcadas finais do sculo XVI os Abrunhosapodiam reputar-se como sendo uma famlia nobre, distinguida porum estilo de vida modelado segundo os valores da honra e os ideaisprprios da nova categoria social a que pertenciam. O seu nomeparecia sem infmia, o seu sangue puro. Os filhos da primeira gera-o nascida em Serpa eram numerosos. Muitos deles continuaram amorar na vila alentejana, onde ocuparam posies de prestgio navida civil e eclesistica. Outros j viviam na capital do reino, Lisboa,para onde se deslocara primeiro Ferno de Abrunhosa. Nem che-gara a ser necessrio quem fizera fortuna no estrangeiro, como umdos filhos do juiz Jcome Vaz e de Maria de Abrunhosa, irm deAlexandre e Ferno. Chamava-se Valrio de Abrunhosa e afirmou--se como magistrado no gro-ducado da Toscana nos finais dosculo XVI 25.

    A primogenitura tambm tinha assumido grande importncia.Ao primeiro filho de Alexandre de Abrunhosa fora posto o nomedo seu av, Gasto. A carreira dele desenvolveu-se sob a constanteproteco rgia. Estudou cnones e casou com Branca de Gr, filhade um tabelio das notas de Lisboa, Jcome Carvalho. Em seguidaGasto de Abrunhosa herdaria o ofcio do sogro (e os 20.000 risde penso anual) 26. Em 1578, junto com o cunhado Ferno Carva-

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    24 Carta de 5 de Julho de 1586 (ibid., fl. 347v).25 Foi juiz do tribunal da Rota de Florena entre 1584 e 1592. Ver ELENA FASANO

    GUARINI, I giudici della Rota di Firenze sotto il governo mediceo (problemi e primi risultati di una ricercain corso), em Atti del Convegno di Studi in onore del giurista faentino Antonio Gabriele Calderoni(1652-1736), Faenza, Societ Torricelliana di Scienze e Lettere, 1989, pp. 87-117: 112. Asua carreira de auditor prosseguiu graas ao apoio do gro-duque Ferdinando I. Ver a cartaa Pedro Rodrigues, 10 de Agosto de 1604 (ASFi, Mediceo del Principato, 298, fl. 47) e acarta em favor do filho de Valrio de Abrunhosa, Ferdinando, 9 de Setembro de 1607(ASFi, Miscellanea Medicea, 612, fl. sem numerao). Agradeo a Lucia Frattarelli Fischerpela indicao dos dois documentos.

    26 Ver a carta de 4 de Julho de 1582 (ANTT, Chancelaria de D. Filipe I, Doaes,liv. 2, fl. 227rv).

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  • lho, seguiu o rei D. Sebastio na desastrosa expedio em Marrocos,que marcou o rpido declnio da dinastia dos Avis. Foi um dossobreviventes da batalha de Alccer-Quibir, durante a qual foiferido e preso, resgatando-se sua custa. Regressado a Portugal, ali-nhou com D. Filipe II de Espanha contra D. Antnio, o prior doCrato, durante a guerra de sucesso de 1580. Assim, trs anosdepois, o novo rei fez merc ao cavaleiro Abrunhosa, fidalgo daminha casa, dos 20.000 ris da tena anual concedida ao seu de-funto cunhado, que se somaram aos 500 cruzados de penso queGasto j recebia pelos seus merecimentos. Tratava-se de um tpicoreconhecimento outorgado por D. Filipe II aos que o sustentaramno tempo das alterais passadas 27. Havia pelo menos um anoque Abrunhosa exercia o ofcio de tabelio das notas em Lisboa 28.Mas o vnculo com a sua terra, Serpa, no se tinha debilitado. Acontinuava a residir uma parte importante da sua famlia.

    2. Serpa, 1599-1602: uma comunidade em conflito

    A partir dos anos noventa os cristos-novos de Serpa sofreramvrias dezenas de prises pelo Santo Ofcio 29. Conforme o funcio-namento clssico das chamadas entradas da Inquisio, recente-mente descrito com preciso por Jos Pedro Paiva, depois de inicia-das, numa localidade, as vagas das capturas sucediam-se duranteanos 30. Os processos abertos pelo tribunal de vora no de-moraram a ter repercusses sobre as estruturas do poder local. Dois

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    27 Carta de 23 de Dezembro de 1583 (ANTT, Chancelaria de D. Filipe I, Doaes,liv. 18, fl. 205).

    28 Carta de 22 de Setembro de 1582 (ANTT, Chancelaria de D. Sebastio e D. Hen-rique, Privilgios, liv. 13, fl. 303rv), pela qual lhe foi dada licena para ter um ajudante.

    29 Entre 1594 e 1602 foram processados pela Inquisio de vora 177 naturais deSerpa, 18 dos quais foram condenados fogueira (Coelho, Inquisio de vora cit., I, p. 330).Os habitantes da vila deviam ser por volta de 2.000.

    30 JOS PEDRO PAIVA,As entradas da Inquisio, na vila de Melo, no sculo XVII: pnico, inte-grao/segregao, crenas e desagregao social, Revista de Histria das Ideias, 25, 2004,pp. 169-208.

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  • filhos de Pedro de Melo, membros da famlia principal de Serpa,eram ministros do Santo Ofcio e foram envolvidos pessoalmentenas prises e nas averiguaes impostas aos seus conterrneos.Martim Afonso de Melo fora nomeado deputado da Inquisio devora em 1590, depois inquisidor em 1594 e, finalmente, em Feve-reiro de 1598, fora promovido a deputado do Conselho Geral (masno ano seguinte foi eleito bispo de Lamego). O seu irmo Jorge deMelo, ingressado no Santo Ofcio como deputado da Inquisio deCoimbra, fora transferido para vora passados poucos meses, emOutubro de 1598; tivera contudo de esperar at Janeiro de 1600para ser oficialmente provido com o cargo de deputado no tribunalalentejano 31. Nos mesmos dias provocava escndalo a sorte de umaoutra famlia nobre de Serpa, apesar de ela ser de um nvel inferior,a qual tambm estava a cair nas malhas da Inquisio. Assim come-ava uma odisseia judiciria, que acabaria por arrastar o poder dosAbrunhosa.

    No fim de 1599 um familiar da Inquisio de vora, JooFreire, dirigiu-se a Serpa para deter uma dzia de suspeitos judai-zantes, entre os quais Valria de Abrunhosa, irm de Alexandre ede Ferno, j defuntos. Contra ela e outros seus parentes os in-quisidores possuam testemunhos que se diferenciavam nos por-menores, mas concordavam na acusao: tratava-se de cristos--novos culpados de cripto-judasmo. As denncias referiam-se aepisdios habituais no quotidiano de uma vila rural da pennsulaibrica: mulheres que visitam as casam umas das outras para con-versar, os comentrios acerca de uma procisso do Corpus Domini

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    31 Acerca da famlia Melo em Serpa ver JOS MARIA DA GRAA AFFREIXO, MemriaHistrico-Econmica do Concelho de Serpa, Serpa, Cmara Municipal de Serpa, 19933, pp. 155--159. Sobre a carreira inquisitorial de Martim Afonso de Melo ver MARIA DO CARMO JAS-MINS DIAS FARINHA, Ministros do Conselho Geral do Santo Ofcio, Memria, 1, 1989,pp. 101-163: 110; para a de Jorge de Melo ver PEDRO MONTEIRO, Noticia Geral das SantasInquisioens, e suas Conquistas, ministros, e Officiaes, de cada huma se compem..., em Colleam dosDocumentos e Memorias da Academia Real da Historia Portugueza, III, Lisboa Occidental, na offi-cina de Paschoal da Silva, 1723, pp. 406; 413; 490.

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  • a que assistem pela janela, a suposta revelao da crena comum nalei de Moiss 32.

    A captura de Valria de Abrunhosa fizera rudo em Serpa, se-gundo relatou o marido Pro Barreto num memorial de defesa queapresentou aos juzes de vora. Na verdade, assegurava, sabia-se quese tinha tratado duma conspirao organizada pelos cristos-novos,que aproveitaram os muitos parentes e amigos presos nas cadeias doSanto Ofcio para se vingar contra os seus inimigos atravs da acusa-o de heresia. Se acreditarmos em Barreto, em virtude do exercciodo seu ofcio de magistrado, ele inimizara-se com muitos conversosde Serpa, cujas famlias at ento tinham sido o principal alvo da re-presso inquisitorial. As acusaes contra a sua mulher, insistia, eramcalnias inverosmeis. Era preciso encontrar uma soluo imediatapara uma prisa extraordinaria, de que resultaria grande infamia atoda a famlia da r, que he grande e nobre no eclesiastico e secular,e todos cristas velhos e criados delrej e de offiios nobres. Ao con-trrio, os que urdiram a conjurao eram todos cristas novos in-tejros de naa, mal inclinados e zelosos e de baixa geraa. Barretocontava que fora ameaado publicamente por aquela gente, que tinhapor cabea a famlia de Heitor Mendes (os Chinelas de alcunha), e ade Joo Ribeiro (a que chamavam os Bacalhaus) 33. Aos juzes pediaque as testemunhas que falsamente culpara a ree sua molher, poissam baixos e infames por seu crime e seus ditos conforme a direitotem pouco credito, asperamente seia reperguntados, por tempo,lugar e familiaridade e mais circumstanias com coriosidade, comoora se faz na cidade de Coimbra 34.

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    32 Ao mandato de captura de 20 de Novembro de 1599 (ANTT, IE, proc. 4.684,fl. 2rv) segue o acto da entrega Inquisio (fl. 3). A referncia procisso do CorpusDomini encontra-se no depoimento de Maria Borralho, 28 de Julho de 1600 (fls. 9-10v).

    33 O quadro descrito parece confirmar uma intuio de ROBERT ROWLAND relativa ao ci-tado livro de Contreras: Os fundos da Inquisio portuguesa permitiriam, creio, reconstruirmuitas histrias anlogas (LInquisizione portoghese e gli ebrei, in MICHELE LUZZATI (ed.), LInqui-sizione e gli ebrei in Italia, Roma-Bari, Laterza, 1994, pp. 47-66: 66, nota 42; or. em italiano).

    34 Os memoriais de Pro Barreto, pelos quais cito, so dois, um apresentado a 31 deJaneiro de 1600 (ANTT, IE, proc. 4.684, fls. 113-115), o outro entregue pelo sobrinho Ale-xandre de Abrunhosa a 14 de Fevereiro de 1600 (fls. 120-121).

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  • A meno de Coimbra era uma referncia explcita a uma nova,suposta conjurao de falsrios que rebentara em Bragana em1597. A numerosa e combativa comunidade de cristos-novos dacidade trasmontana, um dos centros principais do cripto-judasmoportugus, objecto de uma presso inquisitorial crescente duranteos anos noventa, mostrara que se podia enfrentar os juzes do SantoOfcio com as mesmas armas do tribunal. De facto, os cristos--novos responderam perseguio dos inquisidores mediante o es-tratagema de obstruir a regular actividade destes atravs de denn-cias e confisses em massa, anteriormente harmonizadas, acusandotambm cristos-velhos de judaizarem 35. Vinham de novo menteos fantasmas do passado. Em Fevereiro de 1598 o inquisidor geralNoronha chegara a pedir aos inquisidores de vora que lhe en-viassem alguns processos dos falsarios de Beja 36. Tinha passadoum quarto de sculo, mas num momento de grave crise em que aInquisio arriscava ser vtima do sistema dos falsos depoimentosque ela mesma criara, foi espontneo procurar um remdio nas p-ginas dos processos que marcaram de forma determinante a hist-ria do tribunal. Os ecos da conjurao de Bragana faziam-se ouvirat ao profundo sul do pas, mas apesar do pedido de Barreto osinquisidores de vora no seguiram o exemplo dos colegas deCoimbra. Desta vez no se tratava de salvar a honra de cristos--velhos. Por muito que reclamassem, Valria de Abrunhosa e todosos seus consanguneos traziam dentro de si uma mcula que, aosolhos dos juzes do Santo Ofcio, nenhum estilo de vida podia pur-gar. O veredicto era claro: os Abrunhosa eram cristos-novos.

    A despeito dos memoriais de Pro Barreto e dos firmes protes-tos de inocncia de Valria de Abrunhosa, desde o seu primeiro in-terrogatrio que teve lugar a 10 de Fevereiro de 1600, o processofoi para frente 37. Depois de alguns meses, a 25 de Agosto, uma

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    35 Acerca da conjurao dos falsrios de Bragana, cuja consequncias se prolonga-ram at ao perdo geral de 1604-1605, ver MEA, A Inquisio de Coimbra cit., pp. 474-487.

    36 Carta de 26 de Agosto de 1598 (ANTT, IE, liv. 72, fl. 98 da segunda numerao).37 ANTT, IE, proc. 4.684, fls. 61-62.

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  • outra irm de Valria, Violante de Abrunhosa, ingressou no crcereda Inquisio de vora 38. Contrariamente s esperanas que tinhamnos Melo, de facto os senhores de Serpa em virtude do monopliodo cargo de alcaide-mor que detinham desde a metade do s-culo XV, os Abrunhosa foram abandonados ao seu destino. Pordetrs da lgica frrea do modo de proceder da Inquisio vislum-bra-se a sombra de uma trama urdida do alto para destruir uma fa-mlia que alcanara um poder evidentemente julgado excessivo. Nosdecnios precedentes, protegida pela sua muralha medieval forti-ficada, smbolo de uma antiga grandeza, a vila de Serpa conhecerauma relativa prosperidade, que tivera por fundamento a cultura decereais dominante no campo dos arredores 39. Assim se formarauma pequena nobreza de servio, que tornara o exerccio quoti-diano do poder municipal no fulcro da sua visibilidade e afirmaosocial. Na praa central de Serpa, onde estavam situados os princi-pais edifcios pblicos, encontravam-se tambm casas dos Abru-nhosa. Portanto, no devia ter sido difcil para os Melo, graas aosdois ministros do Santo Ofcio que havia na famlia, encontrar alia-dos entre os cristos-novos, na sua maioria artesos e retalhistas,confundidos pela entrada da Inquisio em Serpa. Perante o deses-pero do crcere fora suficiente fazer apelo s rivalidades locais, fo-mentadas pelas tenses do passado, para persuadir alguns presos apronunciar o nome dos Abrunhosa. Os Melo deviam partilhar comos outros habitantes da vila a memria daquele casamento, j remo-to no tempo, entre um obscuro homiziado vindo do norte, Gastode Abrunhosa, e uma jovem crist-nova do lugar. A comunidadeestava dividida por um conflito profundo. Era a altura oportunapara trazer luz o pecado original de uma famlia qual no fal-tavam inimigos.

    Leiam-se com cuidado os preciosos memoriais de Barreto. Noera apenas uma questo de cristos-novos e (pretensos) cristos-

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    38 A cota do processo de Violante de Abrunhosa ANTT, IE, proc. 7.802.39 Para as notcias relativas a Serpa usei AFFREIXO, Memria Histrico-Econmica cit.,

    passim.

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  • -velhos. Era um choque entre cls. Tratava-se de dinheiro, interessesmateriais, episdios de desafio, provocaes, violncias. O rancorde quem ficava excludo das instituies tinha aumentado. Barretofazia remontar o dio de Heitor Mendes e dos Chinelas pela sua fa-mlia quela vez em que, na qualidade de vedor, o mandara prenderpor ter feito declaraes falsas num acto pblico, encontrando-sesob juramento. Envolveram-se numa luta e Barreto dera uma bofe-tada a Mendes enquanto percorriam o caminho para a cadeia.Como o no podiam atingir directamente, escrevia Barreto, de cujaorigem crist-velha no se podia duvidar, os Chinelas e os Baca-lhaus optaram por uma vingana transversal, culpando os Abru-nhosa de judaizarem. Assim tornaram numa arma a seu favoraquela Inquisio, que continuava a fazer vtimas entre as suas pr-prias famlias. De resto, tambm com os Bacalhaus, chefiados porJoo Ribeiro, por sua vez casado com uma Mendes, no erampoucos os motivos de inimizade que os Abrunhosa tinham. Umexemplo: quando Ribeiro fora preso pela Inquisio por culpas decripto-judasmo, Barreto tinha sido nomeado depositrio dos seusbens, apesar dos enrgicos protestos do cl dos Bacalhaus 40. Con-tudo, o magistrado de Serpa no tinha completa razo em se consi-derar a causa da perseguio sofrida pelos Abrunhosa, como mos-traria a conduta dos Melo, aos quais Barreto, prudentemente, nuncaacenava. De facto, no servia de muito reclamar que Valria, suamulher, na tem parente algum da parte de sua maj que por talconhea nem conversse, antes toda sua converassam e amisade eparentesco e de todos seus parentes he com gente principal, cristasvelhos e nobres 41. A reticncia das fontes no permite determinarquais fossem os interesses concretos na origem do conflito entre osMelo e os Abrunhosa. Mas era sem dvida o inteiro bloco de poderrelacionado com os ltimos que os primeiros queriam eliminar.

    O deputado Jorge de Melo participou activamente na represso,

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    40 Memorial apresentado a 31 de Janeiro de 1600 (ANTT, IE, proc. 4.684, fls. 113-115).41 Memorial entregue a 14 de Fevereiro de 1600 (ibid., fls. 120-121).

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  • cumprindo repetidas diligncias em Serpa. Em Fevereiro de 1601,por exemplo, recolheu testemunhos acerca de Valria de Abru-nhosa, que seguia negativa na mesa. Todos os depoimentos confir-maram a boa f catlica da r 42. Mas os inquisidores no mudaramde opinio. Nem sequer quando, a 27 de Abril do mesmo ano, ajovem crist-nova Maria Borralho, testemunha da justia contra Va-lria e Violante de Abrunhosa e contra a sobrinha delas, FranciscaFraia, se retractou. Naquele dia, da priso da Inquisio de vora,onde se encontrava, ela pediu audincia. Declarou que testemu-nhara falsamente contra as mulheres da famlia Abrunhosa, por lhediserem na villa de Serpa na cadeia quando foi presa por este SantoOfficio que ella estava misturada com as dittas pessoas e que sedellas disesse em sua confissa que logo seria solta 43.

    No entanto, outros dois sobrinhos de Valria e de Violante, Ale-xandre e Isabel de Abrunhosa, ambos filhos do cavaleiro da Ordemde Cristo Ferno de Abrunhosa e da crist nova Leonor Vaz,tinham fugido de Serpa para Lisboa, onde se tinham reunido com oprimo Gasto. Em vo. O Santo Ofcio no demorou a prend-lostambm. No fim de Maio de 1602 os dois irmos entraram no cr-cere da Inquisio de Lisboa, junto com a prima Ana da Cruz, umadas filhas de Jcome Vaz e Maria de Abrunhosa 44. As acusaes,tambm desta vez, eram um tanto vagas. Mas o novo golpe infligido famlia Abrunhosa produziu finalmente uma reaco muito maisradical do que a de Pro Barreto, que durante os meses anteriorestinha continuado a pedir contas aos inquisidores da coniuraa esobornos que ouve entre os Chinelas e Bacalhaos, e mais pesoas danao de Serpa 45. De facto, foi ento que o que por idade, expe-

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    42 Ibid., fls. 78-106.43 Ibid., fls. 23-25 (cpia). Fraia a forma feminina, habitual na poca, do apelido Fraio.44 O processo de Isabel de Abrunhosa tem por cota ANTT, IL, proc. 8.902; o de Ana

    da Cruz tem ANTT, IL, 11.610. Ao contrrio, no consegui localizar o processo de Ale-xandre de Abrunhosa.

    45 Memorial apresentado a 18 de Setembro de 1601 (ANTT, IE, proc. 4.684, fls. 124--130v: 128rv).

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  • rincia e condio social no podia deixar de ser reputado como ochefe de famlia, o tabelio das notas Gasto de Abrunhosa, perce-beu que em Portugal j no havia alguma possibilidade de deter osprocessos e o inevitvel descrdito que a infmia das condenaeslanaria sobre a famlia. Urgia entrar em aco antes que fosse tardedemais e que ele tambm acabasse por ser preso pela Inquisio,que j tinha contra ele uma denncia por cripto-judasmo 46. Erapreciso encontrar uma autoridade superior, capaz de parar o SantoOfcio.

    3. Em busca de uma autoridade universal:a fuga de Abrunhosa para Roma

    No incio de Julho de 1602 Gasto de Abrunhosa passou afronteira entre Portugal e Castela. Acompanhava-o um seu irmofranciscano observante do convento de Montemor-o-Novo, que to-mara o nome de Antnio da Apresentao. A 12 de Julho achavam--se em Valhadolid, onde residia ento a corte de D. Filipe III. Dacidade castelhana Gasto de Abrunhosa escreveu uma carta ao no-trio da Inquisio de vora, Nicolau Agostinho. Uma estreita ami-zade unia-os: Agostinho era conterrneo da me de Abrunhosa,Ins Mendes Leita; alm disso, tinha sido padrinho de Isabel deAbrunhosa, prima de Gasto, quando ela recebera o sacramento daconfirmao. Apesar da privilegiada posio de ministros do SantoOfcio, queixava-se Abrunhosa, Martim Afonso e Jorge de Melono tinham feito nada para se opor s falsidades e aleives levanta-das contra os parentes dele. A indignao com que denunciava a in-

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    46 Em Maio de 1602 o promotor de Lisboa pediu que Gasto de Abrunhosa fossepreso (assim como duas suas irms, Isabel e Leonor de Abrunhosa) pelo nico teste-munho dado aos inquisidores de vora por uma crist-nova de Serpa, Maria Gomes,durante uma sesso de tortura. Mas, quer o tribunal de Lisboa (a 29 de Maio), quer o Con-selho Geral (a 30 de Maio) emitiram parecer contrrio sua captura (ANTT, IL, proc.16.992 [processo de Gasto de Abrunhosa], fls. 16-17; cpia da denncia de Maria Gomesde 18 de Junho de 1601, ibid., fls. 8-11).

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  • diferena dos dois irmos Melo deixava transpirar a suspeita de quea responsabilidade das prises das tias e dos primos de Abrunhosarecasse sobre a principal famlia de Serpa. O tom da carta era duro.A infmia e deshonrra, que j sofrera, nem os inquisidores, nemelrei, nem o papa me pode restituir. O que acontecia em Portugalno tinha comparao em todos os mais reinos e estados, instavaAbrunhosa, terminando com palavras ameaadoras:

    pois por falsidades e aleives e falta de justisa perco patria, honrra e quie-teaso de vida e promesas delrei homrozas, que todos me deve quem sen jus-tisa e com falsidade mas roubou, para salvar a alma me vou acabar de ense-car se emtre cristaos ha justisa, verdade e temor de Deus 47.

    A formao como canonista deve ter dissuadido Abrunhosa dese dirigir a D. Filipe III, porque, em teoria, o rei no tinha faculdadede interveno directa no modo de proceder da Inquisio. Almdisso, o fidalgo portugus teria arriscado que o seu protesto fosseconfundido com a luta dos cristos-novos, que havia mais de umdecnio procuravam obter um perdo geral. As hierarquias da Igrejaportuguesa alinhavam-se em massa com o Santo Ofcio na tentativade estorvar o consentimento do soberano concesso, por parte dopapa, do acto de indulgncia. Contra a notcia que o monarca man-dara suspender os autos da f, at o novo inquisidor geral fazerentrada em Portugal, em Dezembro 1601 os deputados do Conse-lho Geral tinham reagido exortando os inquisidores a mostrar humpeito christam livre e valeroso como de soldados de Christo nossacabea e capitam contra a grande potencia dos adversarios, oscristos-novos 48. Passado pouco tempo, em 1602, uma delegao

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    47 ANTT, IL, proc. 16.992, fls. 3-4. As relaes com Abrunhosa e com a sua meforam reveladas pelo mesmo notrio quando, a 7 de Agosto de 1602, se apresentou namesa para entregar aos inquisidores a correspondncia recebida de Espanha (fls. 1-2).Acerca da sua presena como padrinho de crisma ao lado de Isabel de Abrunhosa ver odepoimento desta de 17 de Junho de 1602 (ANTT, IL, proc. 8.902, fls. 21-23v: 22rv).

    48 Carta circular s inquisies do reino, assinada por Bartolomeu da Fonseca, MarcosTeixeira e Rui Pires da Veiga, Lisboa, 21 de Dezembro de 1601. Cito pelo exemplar en-viado aos inquisidores de vora (ANTT, IE, liv. 72, fl. 120rv). A suspenso foi revogadaem Maio de 1602.

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  • encabeada pelos trs principais prelados do reino, os arcebispos deBraga, vora e Lisboa, apresentou-se na corte para fazer pressessobre D. Filipe III 49. A presena destes prelados em Valhadolid terpersuadido definitivamente Abrunhosa a prosseguir a viagem omais cedo possvel.

    Numa segunda carta, escrita de Saragoa uma semana depois,Abrunhosa descobriu as suas verdadeiras intenes ao notrioAgostinho:

    vou a Roma, onde esta o papa vigairo geral de Cristo Salvador domundo na terra, a lhe pedir justisa sem ninhu mizericordia, e na tanto porbem dos cristos, como por honrra e gloria do mesmo Deus, que acuda a ta-manha persguisa de sua Igreja e dos fieis cristos. E para isto sobretudoan-de ser sitados e chamados os inquizidores de Portugal, com os quais mequero ver em juizo [...].

    A Inquisio sob acusao: Abrunhosa tencionava desafiar oSanto Ofcio portugus no plano do direito. Exigia justia, no mi-sericrdia, reivindicando assim a distncia existente entre si e oscristos-novos que invocavam o perdo geral. Para o cavaleiro por-tugus tratava-se de defender o nome dos Abrunhosa, nobres fidal-gos e honrados cristos-velhos. A sua carta continuava com acusa-es explcitas contra os inquisidores, e contra os irmos Melo emparticular:

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    49 Sobre as negociaes em torno do perdo geral, que os cristos-novos comearama pedir pelo menos desde o fim de 1591 (para a datao veja-se o meu I custodi dellortodos-sia cit., pp. 349-350) ver JOO LCIO DE AZEVEDO, Histria dos cristos novos portugueses,Lisboa, Livraria Clssica, 19752, pp. 153-162. Para a posio do Santo Ofcio ver JOSMARQUES, Filipe III de Espanha (II de Portugal) e a Inquisio portuguesa face ao projecto do 3operdo geral para os cristos-novos portugueses, Revista da Faculdade de Letras, Universidadedo Porto, 2a ser., X, 1993, pp. 177-203. Acerca da embaixada de 1602 ver Id., O Arcebispode vora, D. Teotnio de Bragana, contra o perdo geral aos cristos-novos portugueses, em 1601-1602,em Congresso de Histria no IV Centenrio do Seminrio de vora. Actas, I, vora, InstitutoSuperior de Teologia-Seminrio Maior de vora, 1994, pp. 329-341. Apresenta novos eimportantes elementos sobre a histria do terceiro perdo geral ANA ISABEL LPEZ-SALA-ZAR CODES, La Inquisicin portuguesa bajo Felipe III, 1599-1615, Trabajo de investigacin pre-sentado en la Universidad de Castilla-La Mancha, 2006 (dir. Rafael Valladares), pp. 21-42.

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  • basta ver que se escandalizara e lhes parece mal fogirem os homeis dePortugal, e toma sua fogida por indisio de infidelidade e na vem que naha, nem pode aver crista por cristianissimo que seja, que se possa aver porseguro, se se da credito aos filhos de Joa Ribeiro, que esguinchara a eregiaao licenciado Alexandre dAbrunhosa e aos mais semelhantes, podendoconstar que hera imposivel comunicarem, nem falarem hum com outro. Eesta verdade na so os inquizidores a na querem saber, mas nen do lus aopadesente para aclarar, empedem e estranha aos de fora que o querem de-clarar, notavel sigueira de juzes e notabilssima mureria de padesentes.[...]Cristo Jezu, em queu crejo e adoro, na he so Deus de Martin Afonso eJorge de Melo e dos mais enemigos de Portogual, he Deus de todo o mundoe poderozo e degno de o ser de sen mil mundos. Sua cauza nam difende.Niso quero acabar 50.

    Quando Gasto de Abrunhosa e frei Antnio da Apresentaochegaram a Roma, no Outono de 1602, a sua iniciativa singular jtivera repercusses em Portugal. Os inquisidores de Lisboa emiti-ram um mandato de captura contra Abrunhosa, a que se seguira umparecer, datado de 21 de Agosto, onde se continha uma especifica-o indicadora da complexidade que o caso estava a assumir em vir-tude da sua dimenso internacional: se Abrunhosa se encontravaainda em Espanha, deviam ser enviadas as culpas inquisio dodistrito onde ele se achava; ao contrrio, se tinha j chegado aRoma, no serviria de nada transmitir as acusaes contra ele, masera preciso informar o papa da ordem de priso que estava penden-te contra Abrunhosa e dos parentes dele detidos pelo Santo Ofcio:o homem no era digno de crdito algum 51. Durante os meses se-guintes, tambm duas irms de Abrunhosa, Leonor e Isabel, que fi-caram em Serpa, foram presas pela Inquisio de vora 52.

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    50 Nesta segunda carta (ANTT, IL, proc. 16.992, fls. 5-6) at Abrunhosa se gabava deter vnculos de sangue com o notrio Agostinho (Eu tenho sangue de vossa merce).

    51 Mandato de captura, sem data (ibid., fl. 14rv); parecer de 21 de Agosto de 1602 (fl.28). A ordem de priso foi emitida a seguir denncia do sacerdote Manuel Perdigo,morador em Serpa, Inquisio de vora (fls. 11v-12v).

    52 A cota do processo de Leonor de Abunhosa, capturada a 6 de Setembro de 1602, ANTT, IE, proc. 7.640; a do processo de Isabel de Abrunhosa, presa a 2 de Dezembro de1602, ANTT, IE, proc. 5.476.

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  • As vtimas das inquisies ibricas puseram sempre as suas es-peranas no pontfice romano. Auspiciavam que a autoridade uni-versal que a Congregao romana do Santo Ofcio, fundada em1542, exercia sobre os tribunais espanhis e portugueses, pelomenos em princpio, pudesse garantir uma reparao das injustiassofridas na ptria. Mas as relaes entre Roma e os inquisidores ib-ricos, pouco inclinados a reconhecer instncias superiores, nuncaestiveram em total harmonia 53. No caso da Inquisio portuguesa,apesar do lento incio de uma colaborao para tentar limitar asfugas dos marranos para a Itlia, sobretudo depois de 1580, perma-neciam reservas. O papa e os cardeais inquisidores continuavam adar ouvidos aos protestos dos cristos-novos, como alis semprefizeram, com resultados alternados, desde o debate dos anos trintasobre a fundao do tribunal da f lusitano. No parecer junto aomandato de captura de Gasto de Abrunhosa mencionava-se o epi-sdio recente do mercador Jernimo Duarte e dos seus parentes,que em vo os inquisidores portugueses tinham tentado fazer pren-der depois da sua chegada a Roma. Tratava-se de um grupo de cris-tos-novos de vora, atingidos de vrios modos pela Inquisio, osquais se dirigiram a Clemente VIII para denunciar as irregularidadesdo modo de proceder do Santo Ofcio. A sua aco tinha originadoa emisso de um breve enviado ao inquisidor geral D. AntnioMatos de Noronha para receber esclarecimentos acerca do pro-blema. O documento fora publicado depois de uma discusso naCongregao sobre um libelo de acusaes que os cristos--novos de vora tinham apresentado no fim do Vero de 1596 54.

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    53 Para uma sinttica introduo ao assunto ver BRUNO FEITLER, LInquisizione universalee le Inquisizioni nazionali: tracce per uno studio sui rapporti tra il Santo Uffizio romano e i tribunali ibe-rici, em Le inquisizioni cristiane e gli Ebrei, Roma, Atti dei Convegni Lincei, 2003, pp. 115-121.

    54 Breve Multi fere cordis, Roma, 19 de Setembro de 1596 (ASV, Arm. XLIV, t. 40,n. 379, fls. 359v-360v). O libelo, escrito em italiano e intitulado Lusitanica praetensorum ex-cessuum inquisitorum et officialium in processibus contra novos christianos (ACDF, St. St., BB 5 c, fls.sem numerao), foi debatido durante a reunio da Congregao de 4 de Setembro de1596. No dia seguinte foi apresentada uma relao sobre o contedo ao papa.

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  • Noronha viu-se forado a mandar fazer diligncias nos trs tribu-nais de distrito do reino. Contudo, declarava-se certo que os quei-xumes que os christas novos der a Sua Santidade sa falsos 55. DePortugal respondeu-se com um conciso tratado em que se defen-diam as normas seguidas pelo Santo Ofcio, o qual foi entregue aopapa na Primavera de 1598 56. Duarte e os seus parentes estariamentre os protagonistas das tramas romanas para obter o perdogeral, sendo repetidamente denunciados pelo arcebispo de voraD. Teotnio de Bragana 57. No se pode excluir que o grupo decristos-novos de vora actuasse imediatamente de acordo comoutros fugitivos, como Manuel Bento Fernandes e Manuel Fernan-des, ambos de Serpa, chegados a Roma em Setembro de 1596.A Inquisio portuguesa procurou em vo a sua captura 58. Aindaem 1599, face a novos requerimentos apresentados pelos inquisi-dores portugueses, a Congregao reafirmou o princpio de que acria romana no remete 59. Pouco tempo depois actuava na criatambm um outro determinado portugus, o grande assentista deLisboa Rodrigo de Andrade, o qual na Primavera de 1601, na quali-dade de procurador dos cristos-novos na corte, conseguira a pro-mulgao de uma lei que restabeleceu para os cristos-novos a com-pleta liberdade de circulao e de venda dos seus prprios bens 60.

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    55 Carta circular s inquisies do reino, Lisboa, 14 de Novembre de 1596 (cpias emANTT, CGSO, liv. 365, fl. 3v; ANTT, IC, liv. 271, fl. 416).

    56 Responsiones ad obiecta contra Inquisitiones Regni Portugalliae (BAV, Barb. Lat. 1369, fls.185-199v). O memorial, assinado pelo inquisidor geral Noronha, fora redigido em por-tugus no fim de 1597. Em seguida fora enviado a Gonzalo Fernndez de Crdoba, duquede Sessa, embaixador espanhol em Roma, o qual o recebera em Maro de 1598. Depois detraduzido em latim pelo auditor da Rota Francisco Pea, o embaixador tinha-o apresen-tado a Clemente VIII a 28 de Maro de 1598.

    57 Nos arquivos romanos existem numerosas cpias das cartas enviadas pelo arce-bispo a partir de 1596 (por exemplo, em ACDF, BB 5 c, fls. sem numerao).

    58 Decreto de 18 de Setembro de 1597 (ACDF, Decreta S.O. 1597-1598, fl. 559v).59 Decreto de 16 de Setembro de 1599 (cpia em ACDF, St. St., LL 4 h, fl. 232rv;

    or. em latim).60 Lei de 4 de Abril de 1601. Para uma breve descrio ver CARNEIRO, Preconceito Racial

    cit., p. 81.

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  • A actividade de Andrade tinha causado a priso da sua mulher, Anade Milo, pela Inquisio de Lisboa, por culpas de cripto-judasmo.Para a socorrer Andrade mudou-se para Roma, onde dirigiu umasplica a Clemente VIII para que advogasse o processo. No Verode 1602 o papa pediu ao Conselho Geral que suspendesse o proce-dimento judicirio contra Ana de Milo e que se enviassem as actasoriginais para a cria 61. O Santo Ofcio portugus pde contar como apoio imediato da coroa de Castela 62. Somente depois de um con-flito demorado, quando j estava resolvida a negociao sobre o per-do geral, os inquisidores portugueses transmitiram o processo 63.

    Portanto, o cenrio de Roma, onde Gasto de Abrunhosa e oirmo frei Antnio da Apresentao estavam prestes a agir, estavamuito concorrido. Rapidamente devem ter percebido que pr sobacusao a Inquisio portuguesa, numa altura de forte presso di-plomtica, significava prepararem-se para uma guerra de escrituras.Estabeleceram-se inicialmente no convento franciscano de AraCoeli e tentaram construir uma eficaz rede de contactos. Conformerelataria aos inquisidores de Lisboa Domingos Fernandes de Al-meida, secretrio do bispo de Guarda, o qual residira durante algunsanos em Roma, Abrunhosa teria usado os canais dos cristos-novos

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    61 Breve Significatum nobis, Roma, 4 de Junho de 1602 (ASV, Arm. XLIV, t. 46, n. 160,fls. 151-152).

    62 No Outono de 1602 a questo foi debatida pelo Conselho de Estado. Documentosrelativos ao episdio, os quais atestam a oposio na corte ao requerimento de Rodrigo deAndrade, encontram-se em AGS, Estado, leg. 1.856, fls. sem numerao.

    63 Todo o caso foi resumido numa passagem de um memorial sobre as relaes entrea Congregao e as inquisies ibricas, que se pode datar do fim dos anos vinte do sculoXVII (ACDF, St. St., LL 4 h, fls. 51-52v: 52). Pelo decreto de 29 de Abril de 1604 pediu-senovamente ao Conselho Geral o processo sob pena da indignao de Sua Santidade(cpias ibid., fl. 233v; BAV, Borg. Lat. 558, fl. 16; or. em latim). Afinal as actas originaisforam enviadas para Roma. A 21 de Outubro de 1604 Clemente VIII mandou fazer umatraduo em italiano delas (cpia do decreto em ACDF, St. St., LL 4 h, fl. 247v). Nosfundos processuais da Inquisio portuguesa conserva-se somente um mao com poucasfolhas (ANTT, IL, proc. 16.420). Sobre o episdio ver tambm LPEZ-SALAZAR CODES,La Inquisicin portuguesa cit., pp. 45-49.

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  • presentes na cidade. Em particular, teria recorrido ao procurador daOrdem de Avis, frei Damio Vaz, para se pr em contacto como cardeal Camillo Borghese, prefeito da Congregao do SantoOfcio 64. Mas tambm recorreu ao agente Martim Afonso Mexia,que a despeito de ser assalariado da Inquisio portuguesa, na rea-lidade teria colaborado com os adversrios do tribunal. O secretrioFernandes de Almeida insistiria tambm sobre as estreitas relaesde Abrunhosa com alguns cristos-novos, entre os quais Rodrigode Andrade, Lus Gomes de Leo e o doutor Duarte Pinto, primode Jernimo Duarte, o qual entretanto se deslocara para Pisa 65. Dequalquer maneira, Abrunhosa procurou sempre manter o seu pro-testo distinto da luta dos cristos-novos para alcanarem o perdogeral, como lembraria tambm uma outra testemunha directa dasaces dos irmos Abrunhosa em Roma, um ambguo frade con-verso que tinha por nome Antnio de Jesus. Preso pela Inquisiode Lisboa em Dezembro de 1603, logo os denunciaria. Entre outrascoisas, contaria que frei Antnio de Apresentao, durante umaconversa depois de jantar, lhe dissera que os que pedia perdageral em Valhadolid era velhacos infames, pois que na pedia jus-tia, ao contrrio dele e do seu irmo que foram a Roma a pedirjustia e na misericordia. Sobre Rodrigo de Andrade o francis-cano teria acrescentado que era um co, porque na ajuntava comelles 66. Que fosse uma estratgia, ou que aquela atitude revelasse antima e orgulhosa convico de serem nobres cristos-velhos, a ver-dade que os argumentos e o tom usados por Gasto de Abrunhosano protesto sobressaem pela sua originalidade no rico panorama daspolmicas lusitanas entre cristos-novos e Inquisio.

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    64 A presena em Roma de Damio Vaz, a partir de 1594, na qualidade de procuradorda Ordem de Avis documentada pela carta de quitao de D. Filipe III de 27 de Outubrode 1607 (ANTT, Ordem de Avis, liv. 10, fls. 117v-118v).

    65 Depoimento de 26 de Junho de 1604 (ANTT, IL, proc. 16.992, fl. 30-32).66 Depoimento de 19 de Dezembro de 1603 (cpia ibid., fls. 32-36: 33v).

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  • 4. Unus testis: experincia e direito no protesto de Abrunhosa

    No dia 21 de Novembro de 1602 o cardeal Borghese transmitiuao assessor do Santo Ofcio Marcello Filonardi a ordem de Clemen-te VIII de se realizar para cada um dos cardeais da Congregaouma cpia duma escritura em italiano que nos dias anteriores Abru-nhosa tinha exibido ao pontfice 67. O cavaleiro portugus tinhatomado a iniciativa com um corajoso memorial, redigido num tomrespeitoso, mas directo. Como imediatamente esclarecia, no in-vocava misericrdia, exigia justia. O seu objectivo declarado eraencontrar um remdio contra o estilo rigoroso da Inquisio dePortugal, cujas numerosas condenaes manchavam a reputaoda nao portuguesa, tida por infame em todas as provncias daEuropa. Portanto suplicava ao papa a deputar uma pessoa conve-niente, que possa tomar informao minuciosa dos ditos excessos 68.

    Escolhendo apresentar-se como um nobre portugus, nuncausando, excepto numa ocasio, a expresso cristos-novos (admi-tindo, todavia, a existncia de hereges judaizantes no reino lusitano),Abrunhosa reclamava o direito de uma parte considervel da po-pulao do seu reino a ter uma completa integrao, a todos osnveis, numa sociedade corporativa, na qual cada promoo eraatentamente regulamentada e definida por smbolos de distino.Em primeiro lugar, o protesto de Abrunhosa surgia da resistnciacontra uma excluso causada pela progressiva imposio de umprincpio de discriminao tanto mais sentido como injusto, quantomais vinculado apenas mcula da infmia derivada de uma in-

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    67 A carta abre uma breve seco, que continua com um exemplar do memorial deGasto de Abrunhosa (ACDF, St. St., TT 2 l, fls. 810-826; a carta encontra-se nas fls. 810--811v). Por sua vez a seco parte dum mao, intitulado Portugalliae. Super praetensis grava-minibus, quae, ut asseritur, reis carceratis inferunt, onde se conservam os documentos do pro-testo romano de Abrunhosa (fls. 806-906). As cartas, peties e memoriais apresentadosem Roma pelo cavaleiro portugus eram primeiro traduzidos e transcritos por um copistaque est na Sapienza (fl. 891v; or. em italiano).

    68 Ibid., fls. 812; 823; or. em italiano.

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  • culpada descendncia de antepassados judeus. De facto, havia dec-nios um violento clima de intolerncia e represso circundava oscristos-novos, contudo, nos anos entre o fim do sculo XVI e oincio do sculo XVII, Portugal atravessava, com o substancial avalde Roma, uma crucial fase de passagem, marcada pela sistemticaintroduo dos estatutos de pureza. Mesmo os que souberam asse-gurar-se ocultando a sua origem judaica e que conheceram, porvezes, uma notvel ascenso, como acontecera famlia Abrunhosa,arriscavam cair em desgraa. Assim se tornava numa realidade o pe-sadelo de uma ordem social baseada nas provas genealgicas, neces-sria para ter acesso s carreiras mais ambicionadas, na Igreja, nasordens militares ou nas Misericrdias assim como nos ofcios p-blicos 69. Mas, para alm de um conflito de elites, as questes levan-tadas por Abrunhosa reflectiam o problema mais geral do univer-salismo da religio crist. Nas pginas do memorial soltava-se umgrito de alarme contra o escndalo provocado pelo inquo modo deproceder da Inquisio portuguesa:

    Esta verdade prova-se pela experiencia, que hoje vemos, pelas muitasfalsidades que os inquisidores de Portugal com seu santo zelo descobremcada dia; com o passar do tempo se descobre que muitos cristos inocentessofreram anos de priso e a perda da honra e dos bens, e se achou e provouque alguns disseram ser hereges sem que o fossem, como se viu nos presosde Beja no auto da f de vora e em duas mulheres de Aveiro no auto da fde Coimbra no ano de 1596 e em muitos outros que se descobrem nos doisautos da f que se fizeram em vora, um no ano de 1600 e o outro neste anode 1602, de maneira que em todos os autos que se fazem se descobrem fal-sidades pelo grande nmero delas 70.

    A posse de actas relativas Inquisio, talvez auxiliada pelas es-treitas relaes com o notrio Nicolau Agostinho, revela a grande fa-

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    69 Naqueles anos em Portugal os cristos-novos foram progressivamente excludos,por exemplo, dos cargos de reitor e vice-reitor da Universidade de Coimbra (1591) e dosbenefcios eclesisticos (1600). A proibio dos ofcios estatais data dos primeiros decniosdo sculo XVII. Para uma viso de conjunto ver CARNEIRO, Preconceito Racial cit., pp. 89-140.

    70 ACDF, St. St., TT 2 l, fl. 813.

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  • miliaridade de Abrunhosa com o tribunal lusitano 71. Confirmava-otambm a conversa tida com o douto inquisidor do Santo Ofcio devora acerca do mago das testemunhas singulares, consideradassuficientes pelos juzes para abrir processos e emitir sentenas decondenao 72. A insistncia sobre este ponto era a novidade que di-ferenciava a interveno de um homem de slida formao jurdica,como Abrunhosa, das muitas queixas que os procuradores dos cris-tos-novos dirigiram ao pontfice e aos cardeais inquisidores nosanos anteriores. Percebeu isso imediatamente Gonzalo Fernndez deCrdoba, duque de Sessa, embaixador espanhol em Roma, in-formado sobre os factos pelo cardeal Francisco de vila. Em Janeirode 1603, numa carta a D. Filipe III, seguida por um relatrio pontualacerca da matria, avisava: Su Santidad no aprueva el condenar contestigos singulares i dize que no se puede de derecho hazer sino enciertos casos. Evidenciando a anomalia do estilo observado pelo tri-bunal portugus Abrunhosa tinha acertado no alvo, se tambm Cle-mente VIII, segundo as palavras de um irritado duque de Sessa, con-cordava com que assi no se usa ni en el tribunal desta Inquisicionde Roma, ni a lo que tiene entendido tanpo en el Santo Oficio deessos reinos. Na realidade, diferentemente do que o mesmo Abru-nhosa afirmava, tambm em Castela por vezes se tinha procedidocontra suspeitos hereges por testemunhos parcialmente discordan-tes (e por isso chamados singulares), mas no havia dvida que eraem Portugal onde o uso do controverso instrumento judicirio al-canara um nvel anormal. Entre as diversas questes levantadas porAbrunhosa, conclua o embaixador espanhol, solo el punto de lostestigos singulares se reparado ac i deste se tratar 73.

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    71 Em Roma os irmos Abrunhosa sustentariam que tinham um rol de todos ospresos que se prendia nas Inquisies de Portugal e dos que soltava para apresentaremo dito rol aos cardees da congregaa do Santo Offiio (denncia de Antnio de Jesusde 19 de Dezembro de 1603, em ANTT, IL, proc. 16.992, fl. 33).

    72 ACDF, St. St. TT 2 l, fl. 820. As fontes no indicam a identidade do misteriosodouto inquisidor. A hiptese mais verosmil que se trate de um dos dois irmos Melo.

    73 Carta de 18 de Janeiro de 1603 (AGS, Estado, leg. 977, fls. sem numerao). Na se-gunda parte tratava-se tambm dos casos de Duarte Pinto e Jernimo Duarte e de Rodrigode Andrade.

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  • As palavras do duque de Sessa mostram que a estratgia deAbrunhosa estava a ter um primeiro, apesar de parcial, xito. Defacto, embora partisse da j velha denncia do problema dos falsosdepoimentos, o cavaleiro portugus levou a discusso para aspectosque haviam sido at ento descurados 74. Ao assunto das testemu-nhas singulares no faltavam vantagens: reconhecer a validade dumconjunto de depoimentos que se referiam cada um a episdios dis-tintos era contra o comum senso jurdico, resumido pela mximamedieval testis unus, testis nullus; portanto, sublinhar o problema per-mitia no cair novamente nas polmicas, que se tinham revelado im-produtivas, contra os abusos dos inquisidores, operando num planomais tcnico e primeira vista neutral como o das regras. Estava emcausa o estilo da Inquisio portuguesa. Assim, os presos e os pe-nitenciados pelo tribunal j no eram vtimas do arbtrio dos juzes,mas das deformaes de um sistema ao qual nem sequer estes sepodiam subtrair (no bastando algum dos inquisidores para o re-mediar, por ser estilo antigo) 75. Era um terreno favorvel a Abru-nhosa, que citava o doutor Navarro e os cnones da Igreja, as nor-mas do direito romano e o erudito jurista lusitano Duarte Nunes deLeo. Estava consciente de que se dirigia aos vrtices de uma inqui-sio, a romana, que seguia um modo de proceder diferente, assimcomo havia fama de acontecer em Espanha. Ele podia assimchamar fortemente a ateno para o facto de que se tratava de umacaracterstica exclusiva de Portugal, onde se usa o que nem na Cas-tela, nem em outras partes do mundo se usa 76.

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    74 Por um decreto de 25 de Maro de 1599 a Congregao assentava que em Portugal seprocedia por testemunhas singulares quando o ru tem contra si muitas testemunhas queconcordam sobre a substncia do judasmo, embora deponham acerca de factos diferentesquer pelo tempo, quer pelo lugar, e quando as testemunhas so fidedignas (cpias em ACDF,St. St., LL 4 h, fl. 232; BAV, Borg Lat. 558, fl. 14v; or. em latim). Paralelamente, em Junho de1600 os deputados do Conselho Geral decretaram que os inquisidores no prendessem sus-peitos por uma s testemunha, sem o prvio consentimento deles (ver ANA ISABEL LPEZ--SALAZAR CODES, Che si riduca al modo di procedere di Castiglia. El debate sobre el procedimiento inqui-sitorial portugus en tiempos de los Austrias, Hispnia Sacra, LIX, 2007, pp. 243-268: 260).

    75 ACDF, St. St., TT 2 l, fl. 812.76 Ibid., fl. 823v.

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  • Todo o memorial est fundamentado no argumento das teste-munhas singulares. Abrunhosa evitou, porm, uma reflexo de tipogeral acerca das vrias distines do direito em matria. Limitou-sea encarar o ponto central do recebimento das acusaes contidasnas confisses dos hereges presos, que eram levados a declarar fal-samente por causa do funcionamento do processo inquisitorial.No havia razo para assemelhar este ltimo s causas de lesa-ma-jestade, onde se recebiam as testemunhas singulares. De facto, aoshereges oferecia-se a misericrdia e o perdo em troca das delaes,enquanto as revelaes de um criminoso poltico o condenavam,junto com os cmplices denunciados, ao patbulo 77. Abrunhosapedia que se seguisse, antes, o modelo dos procedimentos de direitocivil, nos quais os hereges eram tidos por inbeis para testemunhar.De outro modo, para fugir priso, tortura e ameaas de morteeles continuariam a denunciar os que conhecem e de que sabem onome, e quantos mais nomeiam e culpam, tanto mais do por certaa sua libertao. Para contrariar uma culpa era necessrio apresen-tar aos inquisidores provas circunstanciadas que refutassem as acu-saes nos pormenores, mas as regras do processo secreto tor-navam isso muito difcil; ainda mais se as testemunhas da justiaeram singulares, porque neste caso era quase sempre impossvel de-monstrar as falsidades por testemunhas de defesa. O resultado era aruna de cristos inocentes. Tratava-se de um sistema inexorvel,que pouco tinha a ver com as ntimas convices religiosas dos rus,muitas vezes pessoas simples e frgeis, e querer que as mulheres egente comum, vil e baixa sejam to firmes que suportem tanta cruelpriso e tortura para no dizer mentira, dar o impossvel 78.

    Para sustentar a sua crtica Abrunhosa alegava muitas razes, em

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    77 Sobre a estreita relao entre heresia e lesa-majestade, no mbito da mais geral dis-tino entre lesa-majestade divina e humana (retomada por Abrunhosa, que todavia parecerejeitar a posio comum dos juristas) ver o ainda no superado estudo de MARIO SBRIC-COLI, Crimen laesae maiestatis. Il problema del reato politico alle soglie della scienza penalistica moderna,Milano, Giuffr, 1974; em part. pp. 346-348.

    78 ACDF, St. St., TT 2 l, fls. 812v; 814v; 820v-821.

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  • ampla medida tiradas da experincia quotidiana do reino. Assim, ocrculo vicioso em que j tinham cado os processos da Inquisioera confirmado pela eloquente imagem dos autos da f: quasetodos os queimados por hereges em Portugal dizem at ltimahora que morrem inocentes e que sempre foram e so cristos,mas a verdade que, se tivessem dito que foram hereges e tives-sem culpado os de que sabiam o nome, no teriam sido queima-dos 79. Um problema anlogo era originado tambm pela proibiode receber os depoimentos dos cristos-novos contra os cristos-velhos. Abrunhosa no renunciava a mencionar explicitamente asconsequncias de um clamoroso episdio da histria recente doSanto Ofcio portugus, cuja recordao se tinha gravado na mem-ria de muitos: vimos no tempo do cardeal Dom Henrique de Por-tugal que, enquanto no se impedia aos presos de culpar os cristos--velhos, com os seus ditos singulares culpavam-nos todos, comoaconteceu aos de Beja, e se no houvera o remdio que o cardeal in-quisidor maior ento encontrou, hoje no ficaria algum cristo--velho nos lugares onde se fazem prises 80. A frase final referia-sea uma possibilidade real, em virtude da familiaridade dos cristos--novos com o funcionamento de um tribunal que j era uma armade vingana nas mos das suas vtimas: para tal efeito os que estopresos se ensinam com os outros que estiveram presos, e isto empblico, e pagam-nos para ser ensinados, com grande escndalo detodo o povo 81.

    Abrunhosa reflectia tambm acerca das contradies manifes-tas de um esquema de leitura do cripto-judasmo como heresiaarreigada sobretudo no mbito familiar. Era o esquema adoptadopelos inquisidores, o qual culminava com a preferncia pelas confis-ses que atingissem cmplices consanguneos e conjuntos. Ao con-trrio, assegurava Abrunhosa, os testemunhos de padres, filhos e

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    79 Ibid, fls. 814v-815.80 Ibid., fl. 823v.81 Ibid., fl. 813v.

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  • parentes, de uns contra os outros, em caso de crenas e em acto toviolento e necessitante, no somente so indignos de f e de crdito,mas prova evidentes de que so falsos 82. Alis, a equao entre cris-tos-novos e judaizantes era contradita pelo exemplo de algumasmulheres presas, que foram casadas com cristos-velhos durantevinte, trinta e quarenta anos, e que tinham enteados, criados e vizi-nhos todos cristos-velhos e foram presas pelos testemunhos sin-gulares dos que nunca se relacionaram, nem comunicaram com asditas mulheres, antes, so to desiguais na qualidade, que pblico,e se provar, que no caso que as mulheres presas tivessem sidohereges, no o poderiam comunicar com tais testemunhas, e s ditassingulares destas d-se crdito, sem que conste familiaridade, nemcomunicao, e aos maridos, enteados, criados e vizinhos cristos-velhos no se d crdito 83. difcil no entrever nas palavras deAbrunhosa uma aluso directa ao caso dos seus parentes presos.No memorial mantinha-se ntida a distino entre os cristos-novosque tinham empreendido um percurso de integrao na sociedadecatlica atravs de uma converso sincera e aquela parte que, comnumerosas variantes, tinha voltado antiga religio judaica, nosegredo da dissimulao. O modo de proceder da Inquisio deter-minava que, a despeito da sua justa e santa inteno, o tribunalacabasse por servir de vingana, gosto e satisfao aos perversosjudeus hereges, e de destruio e persecuo de cristos inocentes, eportanto os cristos em terra de cristos so escravos dos hereges edos judeus, porque da vontade e dos ditos singulares deles depen-dem os bens, a vida e a honra dos cristos, e isto parece ina-creditvel 84. Mas se uma pessoa viver to crist e catolicamente,que der suficiente prova de cristandade s pessoas que necessaria-mente sabem dela, que baste, instava Abrunhosa, porque impos-svel durante uma vida inteira se conservar o segredo aos maridos,

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    82 Ibid., fl. 816.83 Ibid., fls. 816v-817.84 Ibid., fls. 818v-819.

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  • enteados, vizinhos e criados, e julgar e conhecer os segredos docorao pertence somente a Deus 85.

    A severa anlise de Abrunhosa culminava com a denncia dosistema das capturas em rede, tpicas das entradas da Inquisio:

    em cada lugar onde so detidas de quatro a seis pessoas prendem-se todosos que descendem desta nao, ou tm raa dela, apesar de ser quase impos-svel que vivendo entre cristos, com o leite e doutrina da santa Igreja cat-lica, e casados e conjuntos com cristos-velhos numa mesma casa durantequarenta ou cinquenta anos e mais, e sendo mais de 50.000 em Portugal,nenhum cristo-velho dos que so conjuntos com eles lhes tenha visto algumindcio de infidelidade, antes muitos verdadeiros indcios de ser catlicoscristos.

    Portanto, no possvel que sejam todos hereges, continuava,tocando simultaneamente a corda de um ardente anti-juidasmo.Como se podia pensar que deixassem a formosa e suave f deCristo para tomar s cegas a fabulosa e ridcula lei velha, que observada pela mais infame e vil gente que possa haver no mundo?Lembrado de uma retrica cada vez mais difusa na sua terra ptria,Abrunhosa cedia ideia de um judasmo odioso por natureza, se-gundo a qual por especial concurso celeste Deus infunde no so-mente nos prncipes e nobres do mundo, mas tambm nos infantesdesprovidos de razo pela idade, que o detestem duma maneira queeles todos, sem excepes, os perseguem e desprezam. E com otom prprio da classe a que se sentia pertencer acrescentava quepois entre o vulgo comum o desprezo, ou a estimao, tem tantafora que suficiente para deixar, ou tomar, nova crena e lei, deri-vava

    que todos, ou a maioria deles, so cristos, porque alm de no haver inf-mia igual ao nome de judeu em Portugal, no h memoria de quem o talnome pudesse ensinar, antes vemos todos os desta nao investir o seu capi-

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    85 Ibid., fl. 820. Sobre o problema da jurisdio sobre o pecado secreto ver agora JAC-QUES CHIFFOLEAU, Ecclesia de occultis non iudicat? LEglise, le secret, locculte du XIIe au XVesicle, Micrologus, XIV, 2006, pp. 359-481.

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  • tal para se conseguirem juntar e casar com os cristos-velhos, e para esteefeito lhes do todo o seu dinheiro que mais estimam e tornam os seus filhossacerdotes e religiosos observantes, onde h infinitos, e no fim da sua vidatodos os que o podem fazer fundam capelas com missas perptuas, e pre-ciso ter uma prova notvel para contrariar tantos sinais evidentes de cristan-dade na vida e na morte 86.

    Portanto, o estilo da Inquisio tambm devia conformar-se variedade dos tempos e ao que a experincia mostra ser neces-srio 87. Sem dvida, as palavras de Abrunhosa apresentavam comalgum exagero o contexto portugus, onde o cripto-judaismo aindaera uma realidade (apesar da sua difcil quantificao). Contudo, osseus argumentos desvendavam um problema evidente. Se tidos emconsiderao e postos em prtica, talvez estes argumentos tivessempermitido arrombar o poder de uma instituio destinada a trans-formar-se numa fbrica de judeus, segundo a expresso tornadaclebre por Antnio Jos Saraiva 88. Para o evitar, a concluso domemorial continha um segundo requerimento, partilhado em anospassados, embora com finalidades opostas, pelos mesmos inquisi-dores: a pena de morte para quem fazia declaraes falsas aos juzesdo Santo Oficio 89. De facto, se para favorecer a f bem que sereceba e se d crdito ao singular e simples dito da pessoa desapai-xonada e sem suspeita, afirmava Abrunhosa, indicando assim qualera o limite que ele julgava aceitvel no uso das testemunhas singu-lares, os falsrios morram por isso, o que conforme a lei e penado talio 90. A escritura terminava com um novo apelo para que seconsiderasse com quanta razo todos os cristos devem desejarque no haja hereges, nem judeus, e que todos sejamos catlicoscristos unidos em Cristo 91.

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    86 ACDF, St. St., TT 2 l, fl. 822rv.87 Ibid., fl. 824.88 A referncia ao clssico livro Inquisio e Cristos-Novos, Porto, Inova, 1969 (1. ed.).89 Ver o meu I custodi dellortodossia cit., p. 191.90 ACDF, St. St., TT 2 l, fl. 825v.91 Ibid., fl. 826.

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  • Os cardeais inquisidores temporizaram antes de se pronunciarsobre o protesto de Abrunhosa. O memorial representava a primei-ra ocasio de avaliar de modo orgnico o problema das testemunhassingulares, que seria objecto de um demorado conflito seiscentistaentre os cristos-novos, a Inquisio portuguesa e a Congregao,relativamente ao qual os arquivos romanos conservam uma rica do-cumentao 92. A 15 de Janeiro de 1603, a seguir a um novo tratadomanuscrito chegado de Portugal para impedir o perdo geral, aCongregao foi solicitada a manter ao corrente, atravs do cardealDomenico Pinelli, o inquisidor geral lusitano e os seus ministrosacerca das escrituras e informaes exibidas por pessoas inquiri-das e muito interessadas contra o Santo Ofcio 93. De facto, em Lis-boa seguia-se com cuidado a evoluo das manobras dos cristos--novos activos na cria. Alguns dias depois, o novo inquisidor geral,D. Alexandre de Bragana, recebeu o original de uma carta queAbrunhosa tinha escrito a D. Filipe III, procura da aprovaorgia para a sua temerria empresa. Na resposta ao soberano, a 20de Fevereiro de 1603, o inquisidor geral marcava as razes alegadaspor Abrunhosa como causadas pela paixo dos da Nao. Dequalquer maneira, relatava D. Alexandre, tinha submetido a carta aoConselho Geral. De resto, ele tambm fora destinatrio de seme-lhantes missivas de Abrunhosa, a que nem sequer tinha respondido.No fim, contava-se ainda, Abrunhosa tinha pedido seguro parapoder ir para o reino sem incorrer na represlia do Santo Ofcio.Quer ele, quer Rodrigo de Andrade, eram personagens perigosas,portanto o inquisidor geral rogava ao rei que escrevesse ao papa

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    92 de escassa utilidade o artigo de MARIAGRAZIA RUSSO, Inquisio portuguesa e cristosnovos nos Arquivos do Vaticano, em Lus Filipe Barreto-Jos Augusto Mouro-Paulo deAssuno-Ana Cristina da Costa Gomes-Jos Eduardo Franco (coord.), Inquisio Portu-guesa. Tempo, Razo e Circunstancia, Lisboa-So Paulo, Prefcio, 2007, pp. 505-512.

    93 Carta, annima, para o papa e para a Congregao, sem data (ACDF, St. St., TT 2 l,fls. 942; 945v; or. em italiano). Na parte posterior l-se uma anotao sobre o decreto de 15de Janeiro de 1603, que estabelecia um prazo de quinze dias para debater o contedo doTractatus de statu S. Inquisitionis in regno Portugalliae (BAV, Barb. Lat. 2.422).

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  • para que os intimasse a deixar a cria 94. No entanto, de Romaolhava-se para Valhadolid, ponderando-se informar oficialmenteD. Filipe III acerca do protesto de Abrunhosa, o qual, porm, seops com firmeza. Sustentava que sobre este assunto decidiria oConselho de Portugal, alinhando-se com os inquisidores 95.

    Finalmente, comeou-se a discutir as propostas do memorial deAbrunhosa. Foram interpelados os consultores, que deram os seusprimeiros votos a 5 de Maro 96. Tinham sua disposio as opi-nies recentes de juristas autorizados, entre os quais o auditor daRota Francisco Pea, que, ao lado de invocar uma declarao pon-tifcia, com numerosas cautelas tinha concludo que os indcios,mesmo que muitos e idneos, se concordavam somente nasubstncia do crime e no nas circunstncias (factos, tempos, luga-res), no constituam uma prova completa (plena probatio) da heresia.Portanto, era melhor procurar testemunhas inteiramente con-cordes e contestes. Contudo, acrescentara Pea, aquelas teste-munhas singulares permitiam submeter o ru tortura, para que,se isto for possvel, a verdade aparea pelas suas palavras. No casode continuar negativo, pois parece que neste caso pela tortura nose podem purgar os indcios, sendo muitos e muito urgentes e vee-mentes, o processo devia ser terminado com uma sentena de con-denao abjurao de vehementi suspeito na f. Por seu lado, o in-quisidor espanhol Luis de Pramo tinha-se limitado a defenderexpeditamente que, segundo o direito, para provar a heresia dumru eram suficientes apenas duas testemunhas 97.

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    94 BdA, cod. 50-V-32, fl. 32.95 Carta de Gasto de Abrunhosa a Clemente VIII, sem data (ACDF, St. St., TT 2 l,

    fls. 850-851v). Algum tempo antes Abrunhosa tinha apresentado uma outra carta ao papae Congregao, sem data, acompanhada por uma nova breve escritura (fls. 846-849v).

    96 Cpias em ACDF, St. St., LL 4 h, fl. 232v; BAV, Borg. Lat. 558, fl. 14v.97 FRANCISCO PEA, Comentrio CXXI ao Directorium Inquisitorum R.P.F. Nicolai Eyme-

    rici..., Romae, apud Georgium Ferrarium, 1587, pt. III, q. LXXII, pp. 616-622: 620. LUISDE PRAMO, De origine et progressu Officii Sanctae Inquisitiones eiusque dignitate & utilitate...,Matriti, ex Typographia Regia, 1598, lib. III, q. 3, p. 580 (or. em latim).

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  • espera de uma resposta, Abrunhosa continuava a enviarcartas e peties ao pontfice e aos cardeais inquisidores. A 7 deMaro apresentou um sinttico escrito que terminava com o pedidoque se mandasse respeitar em Portugal aquele santo estilo quenesta metrpole romana se observa, delegando num cardeal inqui-sidor a soluo da questo 98. Uma confrontao explcita entre asinquisies acerca dos respectivos estilos era uma hiptese difcil deperseguir. Apesar de reconhecer a autoridade do Santo Ofcio ro-mano, as suas pretenses de superioridade eram mal toleradas pelasinquisies ibricas. Portanto, a 9 de Abril foi decidido comunicar aAbrunhosa que sasse da cidade. A determinao relativa ao seuprotesto seria transmitida directamente ao inquisidor geral D. Ale-xandre de Bragana. Mas, no dia seguinte, foi permitido ao cavaleiroportugus proferir uma orao perante a Congregao reunida,atravs da qual os cardeais talvez se tenham deixado persuadir afazer marcha-atrs na sua resoluo. Uma semana depois os consul-tores votaram novamente sobre o assunto das testemunhas singu-lares 99. Contudo, nunca se chegou a uma declarao oficial. O con-texto poltico desaconselhava-o. A negociao do perdo geral, umassunto de grande importncia para as finanas da coroa de Castela,atravessava uma fase de calma aparente, mas estava ainda aberta.

    5. Inquisies em confronto:o processo romano de Abrunhosa

    O protesto arriscava-se a acabar em nada, mas Abrunhosa deci-diu ficar em Roma. Em relao s testemunhas singulares podiacontar com o apoio de Clemente VIII. Provavelmente, julgava que

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    98 ACDF, St. St., TT 2 l, fls. 854-855v; or. em italiano.99 Um apontamento relativo ao decreto sobre a expulso de Abrunhosa de Roma l-

    -se em ibid., fl. 857v. A datao da orao deduz-se por uma anotao no fundo de umacpia manuscrita (fls. 858-859v). Acerca da votao de 17 de Abril de 1603 ver ACDF, St.St., LL 4 h, fl. 232v; BAV, Borg. Lat. 558, fl. 14v.

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  • a evoluo da situao daria novos indcios de esperana. O seuirmo, ao contrrio, partiu. No Vero j estava de volta ptria,onde foi acusado de crticas ao Santo Ofcio por parte de quatrofranciscanos do convento de Varatojo, aos quais tinha imprudente-mente relatado a sua viagem a Itlia 100. Nos mesmos dias, emLisboa, foi queimado vivo como judaizante o capucho Diogo deAssuno 101. O episdio causou grande impresso, legitimando osimpulsos segregacionistas anti-conversos que eram fortes no inte-rior da famlia franciscana, sobretudo entre os observantes, aosquais pertencia frei Antnio da Apresentao 102. Para o irmo deGasto de Abrunhosa foi o princpio do fim 103. Para tentar evitar acaptura, que foi executada na casa da sua me, em Serpa, em No-vembro de 1603, frei Antnio chegou a ferir com uma faca Fran-cisco dos Mrtires, guardio do local convento franciscano de SantoAntnio, ao qual fora mandado prender o confrade 104. De RomaAbrunhosa seguia aqueles dramticos acontecimentos por meio dacorrespondncia regular que recebia de Portugal atravs dos tantosportugueses (alguns dos quais eram seus parentes) que residiam naToscana 105. No entanto, em Maio o seu protesto ganhou o apoio do

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    100 Denncia dos frades Jernimo Pegado, Vicente de Santo Antnio, Andr de SantoAntnio e Estvo da Luz, feita perante o provincial Loureno de Portel, no convento deVaratojo, 26 de Agosto de 1603 (cpias em ANTT, IL, proc. 17.849 [processo de Antniode Abrunhosa], fls. 17rv; 21rv; na realidade, trata-se de um mao de culpas coligidas pelosinquisidores de Lisboa. O verdadeiro processo contra frei Antnio da Apresentao tempor cota ANTT, IE, proc. 2.246).

    101 Frei Diogo morreu no auto da f de 3 de Agosto de 1603. Em seguida, foi vene-rado como um mrtir por crculos de cristos-novos judaizantes. Ver JOO MANUELANDRADE, Confraria de S. Diogo. Judeus secretos na Coimbra do sc. XVII, Lisboa, Nova Arran-cada, 1999.

    102 Pelo decreto de 11 de Julho de 1613 a Congregao do Santo Ofcio rejeitou aspretenses de impor estatutos de limpeza aos observantes lusitanos (cpias em ACDF, St.St., LL 4 h, fls. 190; 235v-236).

    103 Ao caso dedica algumas pginas Coelho, Inquisio de vora cit., I, pp. 332-335.104 Carta de frei Francisco dos Mrtires ao provincial Portel, sem data (ANTT, IL,

    proc. 17.849, fl. 31).105 Alm do citado auditor Valrio de Abrunhosa e do seu filho Ferdinando, entre Flo-

    rena e Livorno actuava tambm um outro primo de Gasto de Abrunhosa, o frade agos-

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  • j citado frei Antnio de Jesus, o qual se encontrava temporaria-mente em Roma e confirmou a substncia da polmica de Abru-nhosa acerca do modo de proceder da Inquisio 106.

    Da segunda metade de 1603 data a primeira sria reaco doSanto Ofcio portugus contra Abrunhosa, o qual durante os mesesanteriores continuara a apresentar argumentos de justificao acercados seus actos nas cartas enviadas para o tribunal da f lusitano 107.Aproveitando uma congregao particular da Companhia de Jesus,nos princpios de Maio o inquisidor geral enviara a Roma um dosseus qualificadores mais brilhantes, o padre Francisco Pereira 108.O jesuta, que em 1602 j participara, junto com Martim Gonalvesda Cmara, na delegao encabeada por trs arcebispos que se di-rigira a Valhadolid, tinha sido encarregado de apresentar a Cle-mente VIII um relatrio sobre o estilo da Inquisio lusitana.Tendo conhecimento da orao proferida em Abril por Abrunhosa,Pereira entrou na posse do seu respectivo texto (alis, sustentandoque fosse prevista uma edio impressa) e respondeu com um

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    tinho Boaventura (ver ANTT, IE, proc. 2.246, fls. 63rv; 72v-73; ANTT, IL, proc. 11.610, fl.46). Junto com Fernando Mendes, os Abrunhosa residentes na Toscana actuaram naque-les anos para favorecer o estabelecimento da potente famlia Ximenes (L. FRATTARELLIFISCHER, Diventare toscani: nuovi cristiani nelle citt di Firenze, Pisa e Livorno fra Cinque e Seicento,comunicao apresentada no colquio Ebrei e nuovi cristiani portoghesi in Toscana fra500 e 600: ricerche e nuove prospettive, Pisa, 26 de Novembro de 2007).

    106 Carta de Antnio de Jesus a Clemente VIII, sem data (ACDF, St. St., TT 2 l, fls.859bis-860v). Preso pela Inquisio por culpas de judasmo, como j se disse, frei Antnionegou a sua colaborao romana com Abrunhosa, mas deu preciosas informaes sobre aestadia italiana deste ltimo, como a notcia relativa correspondncia dele (depoimentode 19 de Dezembro de 1603, cit. na nota 66).

    107 Carta de Gasto de Abrunhosa ao inquisidor geral e aos deputados do ConselhoGeral, Roma, 4 de Maio de 1603 (ANTT, CGSO, liv. 130, doc. sem numerao entre osdocs. 70 e 71).

    108 Qualificador e revisor do Santo Ofcio desde 1594, sentava-se ocasionalmente noConselho Geral, como ele mesmo contou numa carta a Clemente VIII, sem data (ACDF,St. St., TT 2 l, fls. 867-869). Acerca das relaes entre a Inquisio e a Companhia de Jesusremeto para o meu artigo Inquisio, jesutas e cristos-novos em Portugal no sculo XVI, Revistade Histria da Ideias, 25, 2004, pp. 247-326.

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  • agressivo memorial 109. Mas ao problema espinhoso das testemunhassingulares o jesuta tributava somente poucas linhas. Com as suasrazes, objectava Pereira, Abrunhosa questionava a organizaomesma do direito e a praxis comum dos processos. Contudo, aoponto mais complicado, se por testemunhas daquele gnero eralcito proceder pena ordinria, o jesuta reservava um seco aquino disputamos 110. A Inquisio portuguesa subtraia-se confron-tao. Antes, o memorial de Pereira terminava com o pedido deprocessar