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1151 Luzes lusitanas: Mendes Corrêa (1888-1960) e a construção de uma ciência colonial Marcus Vinicius de Oliveira 1 Resumo: António Augusto Mendes Corrêa (1888-1960) teve importante papel na constituição da Antropologia portuguesa, sendo premiado em diversos países por seus trabalhos e reconhecido nacionalmente por suas pesquisas. Sua proposta de Antropologia Física constituiu uma escola em Portugal, a chamada “Escola do Porto” como o próprio designava, a qual teve patrocínio e prestígio a partir da articulação política de Mendes Corrêa, ainda mais quando identificamos a sua participação e destaque em instituições de pesquisas (como a Academia Portuguesa da História e a Junta das Missões Geográficas e Investigações Coloniais), além da Câmara Municipal do Porto. Esta posição favorecia tanto a sua captação de recursos para o desenvolvimento de trabalhos nas coloniais portuguesas, como também contribuía para a sua hegemonia dentro do campo em construção principalmente quando identificamos sua relação com o regime salazarista e sua atuação para diminuir outros trabalhos que almejavam um grau de cientificidade também. Logo, a comunicação se propõe retomar a trajetória intelectual e política deste antropólogo identificando como sua ação contribuiu para a formação de uma ciência capaz e disponível para o controle e projetos coloniais capazes de possibilitar a “revalorização das colônias”, assim como sua utilização pelo recém-instaurado Estado Novo português nos anos 1930 e 1940. Palavras-chaves: Mendes Corrêa. Ciência colonial. Estado Novo. Intelectual. Trajetória. Abstract: António Augusto Mendes Corrêa (1888-1960) played an important role in the constitution of Portuguese Anthropology, being awarded in several countries for his work and recognized nationally for his research. His proposal of Physical Anthropology constituted a school in Portugal, a so-called "Escola Antropológica do Porto" as the design itself, a qualification and a prestige from the political articulation of Mendes Corrêa, even more when he identifies his participation and prominence in research institutions (as the “Academia Portuguesa da História” and “Junta das Missões Geográficas e Investigações Coloniais”), as well as the Porto City Council. This position favors its fundraising for the development of works in the Portuguese colonies, as well as contributions to its hegemony within the field under construction mainly when we identify its relation with the Salazar regime and its 1 Mestrando em História Social pela Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected]

Marcus Vinicius de Oliveira - Jornada de Estudos ... · 1151 Luzes lusitanas: Mendes Corrêa (1888-1960) e a construção de uma ciência colonial Marcus Vinicius de Oliveira1 Resumo:

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Luzes lusitanas: Mendes Corrêa (1888-1960) e a construção de uma ciência colonial

Marcus Vinicius de Oliveira1

Resumo: António Augusto Mendes Corrêa (1888-1960) teve importante papel na constituição

da Antropologia portuguesa, sendo premiado em diversos países por seus trabalhos e

reconhecido nacionalmente por suas pesquisas. Sua proposta de Antropologia Física

constituiu uma escola em Portugal, a chamada “Escola do Porto” como o próprio designava, a

qual teve patrocínio e prestígio a partir da articulação política de Mendes Corrêa, ainda mais

quando identificamos a sua participação e destaque em instituições de pesquisas (como a

Academia Portuguesa da História e a Junta das Missões Geográficas e Investigações

Coloniais), além da Câmara Municipal do Porto. Esta posição favorecia tanto a sua captação

de recursos para o desenvolvimento de trabalhos nas coloniais portuguesas, como também

contribuía para a sua hegemonia dentro do campo em construção principalmente quando

identificamos sua relação com o regime salazarista e sua atuação para diminuir outros

trabalhos que almejavam um grau de cientificidade também. Logo, a comunicação se propõe

retomar a trajetória intelectual e política deste antropólogo identificando como sua ação

contribuiu para a formação de uma ciência capaz e disponível para o controle e projetos

coloniais capazes de possibilitar a “revalorização das colônias”, assim como sua utilização

pelo recém-instaurado Estado Novo português nos anos 1930 e 1940.

Palavras-chaves: Mendes Corrêa. Ciência colonial. Estado Novo. Intelectual. Trajetória.

Abstract: António Augusto Mendes Corrêa (1888-1960) played an important role in the

constitution of Portuguese Anthropology, being awarded in several countries for his work and

recognized nationally for his research. His proposal of Physical Anthropology constituted a

school in Portugal, a so-called "Escola Antropológica do Porto" as the design itself, a

qualification and a prestige from the political articulation of Mendes Corrêa, even more when

he identifies his participation and prominence in research institutions (as the “Academia

Portuguesa da História” and “Junta das Missões Geográficas e Investigações Coloniais”), as

well as the Porto City Council. This position favors its fundraising for the development of

works in the Portuguese colonies, as well as contributions to its hegemony within the field

under construction mainly when we identify its relation with the Salazar regime and its

1 Mestrando em História Social pela Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected]

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updating to diminish other works that aimed for a degree of scientificity as well. Therefore,

the communication is a proposal for a training and a platform for a formation capable of

obtaining a "revaluation of the colonies", as well as its use by the new established Estado

Novo Portuguese in the years 1930 and 1940.

Keywords: Mendes Corrêa. Colonial Science. Estado Novo. Intellectual. Trajectory.

“(…) a Ciência Social suscita hoje no mundo civilizado investigações numerosas e

importantes. Os ingleses (…) possuem nas suas colónias um corpo de investigadores

oficiais, que chamam ‘colonial social scientists’ (cientistas sociais coloniais), como

possuem antropologistas do governo. Numerosas organizações existem em vários

países para o estudo da matéria. Encara-se entre nós a formação de investigadores da

disciplina em questão. Ainda bem. É necessário substituir à intuição, ao palpite, à

improvisação, à fantasia, a iniciativas isoladas e sem continuidade, a tarefa

sistemática, metódica, contínua, integral, em suma verdadeiramente científica2”

(Mendes Corrêa)

1. Introdução

Em 1934, ocorria na cidade do Porto, em Portugal, um grande evento que se propôs a

reconstruir a vida nas colônias portuguesas a partir da vinda de diversas pessoas das colônias

para viverem semelhante ao ambiente colonial, inclusive usando seus “trajes típicos” e

vivendo em “habitações características” de suas localidades. Este acontecimento teve uma

grande divulgação na imprensa portuguesa e nos convites endereçados a diversas nações

anunciando que durantes os meses de junho a setembro, Portugal iria realizar um grande

evento em sua segunda maior cidade. Assim sendo, angariar público e curiosos para aquele

momento era necessário e fundamental para o recém-instaurado Estado Novo3.

Todo esse cenário público organizado pelo regime salazarista buscou demonstrar “não

só os resultados brilhantes do seu esforço e atividade modernos, como também os seus

métodos coloniais originalíssimos, reorganizados e valorizados por uma Política de

ressurgimento nacional”4. Este funcionaria como um primeiro momento de propaganda para o

novo governo e a sua demonstração pública tanto em âmbito nacional, quanto internacional de

seu “ressurgimento” e sua “grandeza” dentro do cenário europeu, como também,

2 CORRÊA, A. A. Mendes. Sociedades secretas africanas e ciência social. In: Boletim da Sociedade de

Geografia de Lisboa, 72.ª série, n.° 4-6, Sociedade de Geografia de Lisboa: Lisboa, 1954. Pág. 232. 3 Com a ascensão de António Salazar ao poder em 1933, o governo se autoproclama como Estado Novo,

buscando, desse modo, construir uma ideia de um governo novo e diferente da I República Portuguesa (1910-

1926) e a Ditadura Militar (1926-1933) anteriormente instauradas. 4 Convite da Primeira Exposição Colonial Portuguesa de 1934.

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principalmente dentro das nações colonialistas que, semelhante a Portugal, realizaram

diversos eventos coloniais como aquele.

Essa exposição não apenas tentou recriar os espaços coloniais para demonstrar à

população portuguesa o “esforço colonial”, mas também permitiu construir uma narrativa

pública do que seria a própria experiência colonial portuguesa pelas lentes do regime de

Salazar e como ela estaria inserida no cenário de recuperação das políticas coloniais que o

período liberal não teria colocado em prática5. Além disso, proporcionou uma demonstração

para a população metropolitana que nunca havia pisado nas colônias como seria

“verdadeiramente” a vida colonial, a contribuição portuguesa para o “desenvolvimento”

daquele povo e território, além de contribuir para uma defesa da presença lusitana nos

territórios coloniais.

Enquanto esse evento público ocorria e agitava a cidade do Porto, outro evento

paralelo ocorria com diversos pesquisadores: o I Congresso Nacional de Antropologia

Colonial. Tal qual a I Exposição Colonial, o Congresso teve a contribuição e atuação em prol

de sua realização do importante antropólogo português António Augusto Mendes Corrêa

(1888-1960), o objeto de análise desse trabalho.

Mendes Corrêa caracterizaria o seminário em questão como o local onde os

antropólogos físicos buscariam colocar a pesquisa científica a serviço da “revalorização das

colônias”6. Como também, apontava para a importância do investimento em uma Ciência

capaz de contribuir para os objetivos defendidos pelos organizadores da Exposição Colonial,

além de estar totalmente disponível para a coleta de informações fundamentais para a

proposição de uma nova política colonial, a qual possibilitaria a incorporação de Portugal no

cenário científico internacional no mesmo patamar de França e Inglaterra, outras nações

coloniais e inspiração destes políticos.

Deste modo, Mendes Corrêa encaminhava sugestões e direcionamentos de uma

Ciência capaz de pôr em prática os desejos daquele grupo, como também sinalizava para os

ganhos possíveis a partir do financiamento dos seus estudos e pesquisas nos territórios

coloniais. Este não trariam apenas ganhos científicos, mas também políticos e econômicos

para o novo governo. Logo, esta Ciência prestaria um serviço social para o regime que não se

restringiria ao meio científico, mas poderia contribuir para o desenvolvimento de políticas de

5 O Estado Novo se apresenta com forte crítica ao "Século negro" do Liberalismo em Portugal, o qual se reporta

ao período de vitória de D. Pedro IV e a ascensão do Regime (1833-1933). Foi neste período que a alma e

essência portuguesa foi perdida, a qual a ascensão de António Salazar buscaria recuperar. 6CORRÊA, A. A. Mendes. Discurso inaugural do Primeiro Congresso Nacional de Antropologia Colonial. In:

Trabalhos do 1.° Congresso Nacional de Antropologia Colonial. Porto. Setembro de 1934, vol. I, Tipografia

Leitão, Porto, 1935.

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interesses do governo colonial. Esta relação entre a ciência defendida e exposta no

posicionamento de Mendes Corrêa e a sua utilização por um governo colonial foi analisada

por Raewyn Connell quando a autora observa a construção do cânone nas Ciências Sociais e

as principais discussões que esta realizava no período de construção e consolidação.

Para a autora, as Ciências Sociais em sua constituição enquanto uma ciência do século

XIX, integrada aos parâmetros e referências utilizados para a definição de uma ciência (razão

e método) desse período, não estava tão preocupada com questões referentes às mudanças

ocorridas nos países industrializados daquele século, mas sim com as questões referente aos

seus domínios coloniais. Portanto, argumenta que esta ciência teria sido formada dentro de

uma cultura imperial que condicionou as primeiras produções científicas e orientou os

trabalhos daqueles responsáveis pela constituição do campo científico naquelas localidades,

incorporando-os como uma resposta intelectual para a situação colonial.7

Para permitir tal afirmativa a autora aponta para a não existência de um corpo clássico

de textos usado pela recém-formada ciência. De modo que os escritores induziam nomes

como Comte e Darwin para desenvolver a sua origem científica. Entretanto, no final do século

XIX, as ciências sociais estavam se posicionando como a principal ciência do século XX em

suas revistas, periódicos, sociedades científicas, cursos universitários que se formavam,

almejando, deste modo, substituir a importância conferida à Biologia durante o século XIX.

Para dar mais força ao seu argumento, como aponta a autora, a nascente área de conhecimento

se classificava como a ciência da nova sociedade industrial e moderna, capaz de responder as

demandas e questões específicas daquela sociedade emergente, ou seja, as Ciências Sociais se

apresentavam como o meio científico mais adequado para analisar e contestar as questões

envolventes naquelas sociedades, pois a própria também era fruto das mudanças que haviam

ocorrido naquelas localidades8.

Um ponto sinalizado pela autora fundamental para perceber essa constituição é a

noção de tempo dentro do pensamento sociológico desse período. O tempo assumia a função

de marcador da diferença global, ou seja, “a diferença entre a civilização da metrópole e

outras culturas cuja característica principal era seu primitivismo”.9 Esta diferença era

apontada a partir de um discurso das “origens” que funcionavam como formas racionais e

científicas para justificar tanto a autoridade colonial, quanto a superioridade das nações

industrializadas frente a outros povos. Aos poucos esta noção funcionaria como uma narrativa

7CONNELL, Raewyn. O Império e a criação de uma Ciência Social. In: Contemporânea – Revista de

Sociologia da UFSCar. São Carlos, v. 2, n. 2, 2012. Pág. 309-336 8 Idem.

9 Ibidem.

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científica ensinada e aprendida em diversos espaços educativos, onde contribuiriam para sua

capilaridade nas sociedades industriais e angariaria novos adeptos ao projeto colonial

defendido.

Desde modo, a autora argumenta que no período de institucionalização da Sociologia,

na última década do século XIX, a prova central dp progresso estava baseada no contraste

entre as sociedades metropolitanas e as colonizadas. Suas discussões não estavam

preocupadas na importância dessa diferença, mas sim em como interpretar essa diferença, ou

seja, no desenvolvendo de estudos científicos que buscavam através da evolução física de

tipos humanos definirem suas características de inferioridade ou superioridade, ou então

explicando a partir de uma evolução dos padrões mentais e sociais, ou ainda questionando se

a competição ou cooperação seria realmente o motor do progresso10

.

Connell atenta ainda que a preocupação com o progresso não era um “valor” separável

da ciência, ao contrário, ele era um dado constitutivo do conhecimento sociológico do período

de sua constituição. Portanto, desenvolver um método que fosse capaz de apresentar essas

diferenças (além de ser eficaz no agrupamento de exemplos de “espécies” sociais particulares

almejando examinar suas variações) era fundamental. Assim sendo, o método comparativo

apareceu como o mais apropriado para essa ação e foi largamente utilizado nos estudos desse

período, como destaca a autora. Pois, ele “apoiava-se em um modo abundante de informação,

uma capacidade de examinar uma variedade de sociedades remotas e uma habilidade de se

mover livremente de uma sociedade a outra – características todas que projetam a relação da

dominação colonial”11

.

Assim sendo, é fundamental compreender que as Ciências Sociais no período de sua

constituição se apresentaram como um veículo científico para explicar e analisar as questões

que assolavam aquelas sociedades, principalmente os assuntos relacionados aos seus

domínios coloniais. Por este fato, propõe-se analisar a trajetória do antropólogo Mendes

Corrêa para observar como a antropologia defendida por ele no congresso mencionado acima

proporcionaria uma “revalorização das colônias” a partir do investimento em uma dada

ciência, que estaria à serviço do novo governo e permitiria na coleta de dados fundamentais

para as políticas coloniais colocadas em práticas com o governo salazarista. Portanto, a partir

dessa figura almeja-se identificar como foi realizada a constituição do campo antropológico

em Portugal e quais eram os seus projetos, além de indicar suas relações com o regime

salazarista.

10

Ibidem. 11

Ibidem.

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2. Mendes Corrêa: trajetória e construção da ciência colonial

António Augusto Esteves Mendes Corrêa foi um dos mais destacados pesquisadores

portugueses de sua época. Professor, antropólogo, arqueólogo, historiador, etnólogo,

criminologista, político, sócio efetivo e correspondente de várias academias nacionais e

internacionais12

, Doutor Honoris Causa por três universidades (Montpellier, Lyon e

Witwatersrand), além de ter sido condecorado por vários países13

. Nasceu no Porto em 4 de

abril de 1888, cidade onde se formou e se consolidou profissionalmente. Foi aluno do Liceu

Nacional Central do Porto e concluiu o seu curso de Medicina, em 1911, na Escola Médica

Cirúrgica, com o trabalho de conclusão intitulado O genio e o talento na pathologia, no qual

buscou contribuir para o debate científico internacional em torno da teoria de Jacques-Joseph

Moreau e seguida por Cesare Lombroso, que estabeleciam uma analogia entre genialidade e

patologia mental14

.

Neste trabalho se encontram alguns princípios que norteiam os trabalhos de Mendes

Corrêa, como: a obediência à cientificidade e o princípio da desigualdade biológica. Pois,

como atenta Henriques, o último estaria pautado num princípio hegeliano, no qual apenas

alguns possuem a capacidade de fazer evoluir o processo histórico, logo sua origem biológica

está inserida numa hierarquia intelectual que condiciona sua capacidade intelectual. Enquanto

a primeira está justamente na defesa da sustentação científica para uma tese, assim como no

rigor para lidar com indícios que possibilitem a defesa de uma hipótese. No caso analisado em

seu trabalho o antropólogo apresenta que a falta de documentação no trabalho dos

pesquisadores que relacionam a genialidade e a patologia mental, os conduz a uma

interpretação que não possui base científica sólida15

.

Atente-se para o fato que no mesmo ano que Mendes Corrêa defendeu seu trabalho na

Escola Médica Cirúrgica, ele foi nomeado como assistente da disciplina de Ciências

Biológicas na recém-criada Faculdade de Ciências do Porto, onde, no ano seguinte, introduziu

a disciplina de Antropologia, cadeira que ministrou por cerca de 40 anos. É na área da

12

Em Portugal, ele foi acadêmico titular da Academia Portuguesa da História e sócio efetivo da Academia das

Ciências. Além disso, foi sócio correspondente de 6 academias e honorário de 14 na Europa e nas Américas. 13

Dentre suas premiações podemos apontar: I) na Espanha, Cavaleiro de Afonso, o Sábio, e Comendador de

Afonso XII; II) na Itália e Bélgica, Comenda da Coroa; III) no Brasil, Oficial do Cruzeiro do Sul; IV) na França,

Comenda da Legião de Honra; V) em Portugal, Grandes Oficialatos da Ordem de Cristo e da Ordem de Santiago

e Grã-Cruz da Ordem da Instrução Pública. 14

Cf. CORRÊA, Mendes. O genio e o talento na pathologia. Porto: Imprensa Portugueza, 1911. 15

HENRIQUES, Bruno Miguel Cunha. A ressurreição da raça portuguesa no pensamento de Mendes

Correia: História, Antropologia, Eugenia (1911-1960). Universidade do Porto: Porto, dissertação de mestrado,

2012.

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Antropologia que teve grande reconhecimento nacional e internacional, inclusive

institucionalizando a disciplina na cidade do Porto e criando discípulos, a ponto de criar a

Escola Antropológica do Porto organizada em torno da tradição do núcleo da Portugália16

, a

revista de Ricardo Severo, Rocha Peixoto, Fonseca Cardoso e José Fortes. Além disso,

Mendes Corrêa criou, em 1912, na Faculdade de Ciências do Porto, o Museu e Laboratório

Antropológico e, em 1918, em conjunto com Luís Viegas, Aarão de Lacerda e José Ferreira,

fundou a Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia. Em 1921, já catedrático da

Faculdade de Ciências do Porto, passou a ser seu diretor entre 1929 e 193517

.

Em 1936, a vida acadêmica se unira a sua participação política enquanto presidente da

Câmara Municipal do Porto, cargo que ocupou até 1942. Durante seu mandato buscou

salvaguardar e valorizar o patrimônio da cidade a partir da criação do museu de Etnografia e

História e a instalação do museu Soares dos Reis no Palácio dos Carrancas (1940), como

também a criação do Gabinete de História da Cidade (1936) e a promoção da pesquisa em

história local com a publicação do Boletim Cultural (1938)18

.

Mendes Corrêa não restringiu sua atuação política ao âmbito local, durante o período

de sua presidência na Câmara do Porto, participou da Câmara Corporativa19

nas I e II

legislatura enquanto representante da administração local, além de, entre 1945 e 1957, ser

deputado na Assembleia Nacional durante as IV, V e VI legislatura. Durante este período, o

antropólogo assumiu alguns cargos e funções importantes em órgãos portugueses

relacionados à pesquisa, e, em especial, aqueles voltados para os domínios ultramarinos

lusitanos. Dentre eles podemos destacar o cargo de diretor da Escola Superior Colonial

(1946), como também a função de presidente da Junta de Missões Geográficas e de

Investigações Coloniais (1946), do Instituto Superior de Estudos Ultramarinos (1946) e da

Sociedade de Geografia de Lisboa (1951).

16

JÚNIOR, J. R. dos Santos. O Professor Mendes Correia, fundador e 2º presidente da Sociedade

Portuguesa de Antropologia e Etnologia. Porto: Imprensa Portuguesa, 1969. 17

Note que a Exposição Colonial e o Seminário de Antropologia Colonial acontecem no período que Mendes

Corrêa era diretor da Faculdade de Ciências do Porto. 18

RAMOS, Luís (Org.). História do Porto. 3ª edição, Porto: Porto Editora, 2001. 19

A Câmara Corporativa foi um órgão consultivo existente entre 1935 a 1974. Embora possuísse um caráter

acessório dentro da estrutura dos órgãos do poder político do salazarismo, a Câmara teve um papel relevante na

definição e concepção das políticas públicas do regime autoritário português. Sofreu diversas mudanças ao longo

de sua existência, entretanto manteve alguns atributos, como: a apreciação de projetos de lei da Assembleia

Nacional e os diplomas do Governo, emitindo sobre eles pareceres não vinculativo. Deste modo, membros que

representavam interesses administrativos, acadêmicos e econômicos constituíram um decisivo elemento de

suporte técnico da ação governativa, refletindo e ampliando os principais debates que envolveram a elite política

do Estado Novo. Cf. CARDOSO, José Luís; FERREIRA, Nuno Estêvão. A Câmara Corporativa (1935-1974) e

as políticas públicas no Estado Novo. In.: Ler História, nº 64, 2013. Pág. 31-54.

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O portuense ainda aparece como deputado da VII legislatura e nomeado para integrar

a comissão de comemorações do 5º centenário do Infante D. Henrique20

, a decorrer em 13 de

novembro de 1960, o que não ocorreu, pois o antropólogo veio a falecer, em Lisboa, no dia 7

de janeiro de 1960. Esse cenário supracitado sinaliza não apenas para o auge da carreira

política e intelectual do antropólogo dentro de Portugal, mas também por seu envolvimento e

atuação em um período ditatorial no país que possibilitou o crescimento e constituição da área

antropológica em Portugal a partir desta figura.

Para compreender como ocorre isso é importante recuperar alguns escritos e falas

desse importante antropólogo português, principalmente suas obras em apologia às pesquisas

nas coloniais que buscaram ressaltar a importância política desses estudos para a manutenção

das colônias e para o desenvolvimento de um processo civilizatório dos indígenas que

estivesse em total consonância com os interesses coloniais do Estado Novo salazarista, ou

seja, a “revalorização das colônias” defendida e apontada já no I Congresso Nacional de

Antropologia Colonial que teve a organização dele.

Nesse caminho, Mendes Corrêa ressaltou que as pesquisas científicas e a educação

possuíam uma importância central dentro dos interesses colonialistas portugueses frente a

outros países europeus já no discurso inaugural do I Congresso Nacional de Antropologia

Colonial.

As nossas Universidades e escolas vivem geralmente num mundo abstrato em que parecem

ignoradas as colônias, a não ser por vezes ao comentarem-se literariamente algumas estrofes

dos Lusíadas ou quando se entra em conta com alguns pobres mapas, suspensos das paredes

e mais visitados pelas moscas indiscretas do que pelos olhares verdadeiramente interessados

da mocidade dum país dotado duma consciência imperial.21

Em sua fala, Mendes Corrêa não apenas ressalta a importância de uma intervenção real

nas colônias a partir das pesquisas científicas realizadas nas universidades, mas incorpora em

seu discurso o projeto defendido no Ato Colonial de 1930, no qual Portugal se afirma como

uma nação que tem “função histórica e essencial de possuir, civilizar e colonizar domínios

ultramarinos”.22

Ainda pontua que para isso acontecer era necessário formar quadros jovens

que mantivessem suas atenções no Ultramar para que, assim, o país não perdesse a sua

condição de Império. Portanto, desejar as colônias para não perde-las, passava por possuir um

20

Assim como a Exposição do Mundo Português, em 1940, o Brasil também participa desse evento, inclusive

com a ilustre presença do ex-presidente Juscelino Kubitschek. 21

CORRÊA, A. A. M. Discurso Inaugural no I Congresso Nacional de Antropologia Colonial. Extracto das

Actas do Congresso. Porto: Edições da 1º Exposição Colonial Portuguesa, 1934, p. 8. 22

ROSAS, Fernando. O Estado Novo (1926-1974). História de Portugal, VII Volume, Dir. José Mattoso.

Lisboa: Editorial Estampa, 1994.

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conhecimento efetivo daqueles territórios sob seu domínio, o qual viria a partir da

contribuição especial das pesquisas científicas:

Entre as disciplinas que nos últimos anos têm sido estudadas com certa intensidade entre nós,

no domínio das pesquisas respeitantes às colônias portuguesas, figuram a Antropologia

física, a Pré-história e a Etnografia, havendo já alguns trabalhos publicados em tais matérias

[...]. Enfim, o estudo científico da população das nossas colônias sob os mais variados

aspectos não é menos importante e imprescindível do que o das maiores riquezas do subsolo

ou do revestimento vegetal daqueles territórios. Pelo contrário, é mais urgente e mais

imperioso do que qualquer outro, pois, se apresenta incontestável interesse econômico e

nacional, a par do seu interesse científico, não possui menor valor nos pontos de vista

político e humanitário.23

As Ciências Humanas pontuadas por Mendes Corrêa são colocadas em equiparação de

importância com a exploração das riquezas das colônias. Segundo o antropólogo, para além

dos interesses econômicos apontados em primeiro lugar, também estariam presentes aspectos

científicos e humanitários. Enquanto o primeiro estaria relacionado com a exploração da mão-

de-obra dos indígenas das colônias, o segundo responderia a demandas do debate científico

internacional, principalmente aquele remetido às origens presente nos primeiros debates das

Ciências Sociais.

Logo, podemos indicar que Mendes Corrêa também trilha aquelas preocupações

ressaltadas por Connell no início deste trabalho, associado a essa questão, está a sua inscrição

na construção do campo antropológico português, a importância política apresentada e sua

relevância nos mais diversos espaços científicos do país. Portanto, o antropólogo se apresenta

como uma figura chave para entender como ocorreu a constituição de uma ciência colonial

em Portugal, quais pontos estavam interessados em responder e quais meios utilizaram para

ganhar espaço no regime salazarista.

Neste âmbito, vale ressaltar que tais temas desenvolvidos pela pesquisa de Mendes

Corrêa e seus discípulos proporcionaram uma notória importância no cenário internacional,

capaz de propiciar Portugal de boa representatividade em congressos acadêmicos de grande

visibilidade e participação em associações científicas consagradas. Deste modo, esta

participação funcionaria para além de interesses particulares dos cientistas envolvidos, como

também possibilitaria ao regime salazarista uma reafirmação no âmbito internacional

enquanto uma nação imperialista que ocupava e conhecia efetivamente os seus territórios,

procurando assegurar ali, assim, a sua permanência.

23

CORRÊA, A. A. M. Missões Antropológicas às Colónias. Separata do Jornal do Médico, VII (149): 11-12,

Porto: Costa Carregal, 1945ª, pp. 5-9.

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Com relação ao aspecto humanitário ressaltado por Mendes Corrêa, é importante

compreender ele dentro de um projeto civilizatório dos nativos coloniais, considerado como

um benefício cristão e uma missão espiritual que os portugueses haviam cumprido, desde o

início das conquistas marítimas, nos seus territórios dominados. Logo, o discurso oficial do

Estado Novo que ressaltava a importância histórica da presença portuguesa em seus domínios

coloniais desde as Grandes Navegações encontrava eco nos discursos e trabalhos

apresentados pelo portuense, consequentemente, o tom científico desejado para a ideologia

nacional emergente encontrou em Mendes Corrêa a figura fundamental para propagar as

ideias coloniais portuguesas.

Se por um lado ocorria esse quadro apresentado acima, por outro precisamos definir

melhor como a Ciência defendida por Mendes Corrêa se apresentaria ao serviço e ao interesse

do regime salazarista a ponto do Estado mover recursos e financiamentos para sua

viabilidade. Para isso podemos retomar a ideia defendida, em 1933, no seu texto Introdução à

Antropobiologia, no qual expõem as seguintes ideias:

(…) a Antropologia é entendida num sentido lato embora não tão amplo que ela constitui

uma verdadeira enciclopédia de todas as ciências que dizem respeito ao homem e às

sociedades humanas. É, sobretudo, tomada num sentido comparado: comparação do homem

com os antropóides, e dos tipos humanos, raças e povos entre si, mas comparação que incide

sobre caracteres não apenas somáticos ou físicos, mas também psíquicos e sociais. Isto é, a

Antropologia aparece como um estudo integral do homem e dos grupos humanos,

abrangendo, portanto a Antropologia zoológica, a Antropologia física étnica (a ‘Etnologia’,

segunda a Escola de Broca), a Antropologia psíquica e cultural (a ‘Etnologia’ de outras

escolas; Etnografia num sentido comum), a Pré-história, etc24

.

Segundo Rui Pereira, esse conceito largo empregado por Mendes Corrêa na sua

definição de Antropologia proporcionava uma aparente “contradição” nos textos da “Escola

do Porto”, já que as palavras etnografia e etnologia aparecem como o estudo das raças

humanas. Para ele, essa questão aparece porque para o antropólogo português tanto a

Antropologia Física étnica expressa na forma de Etnologia ou Raciologia (conceito defendido

pelo antropólogo físico francês Broca e inspirador para Mendes Corrêa), assim como a

Antropologia psíquica e cultural em que o conceito de Etnologia era utilizado como sinônimo

de Etnografia25

.

Logo podemos apontar que a Antropologia defendida por Mendes Corrêa era

contraditória em sua concepção, pois se o antropólogo português, de certo modo, defendia que

seus estudos antropológicos deveriam ser pautados não apenas na Antropologia Física, mas

24

CORRÊA, Mendes. Introdução à Antropobiologia. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1933. 25

PEREIRA, Rui. Sangue, Raça e Robustez: Os paradigmas da Antropologia Física colonial portuguesa. In:

Cadernos de estudos africanos. Lisboa: FCSH/Universidade Nova de Lisboa, 2005. Pág. 209-241

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também deveriam ser incorporados a Etnografia, a Pré-História e a Psicologia nas análises

antropológicas. Sua ideia de Antropologia física estava pautada em uma ideia de raças e na

teoria de hereditariedade que, por natureza, excluiria uma perspectiva social e cultural daquele

grupo estudado.

Não é à toa que essa definição de Antropologia se encontra em um livro introdutório

para a Antropobiologia, no qual o mesmo defende a importância desse método para o

desenvolvimento de estudos de grupos humanos, já que ela possibilitaria determinar a

“mentalidade das diferentes raças” partir de uma explicação biológica dentro dos grupos

sanguíneos da amostra analisada. Em suas palavras,

a Antropobiologia ocupa-se de investigações sobre a hereditariedade normal e patológica no

homem, dos estudos eugénicos, da fisiologia das raças, dos grupos sanguíneos e outros

assuntos de bioquímica humana, das constituições e temperamentos, da determinação da

base biológica da mentalidade e atividade das diferentes raças26

.

Vale ressaltar que essas ideias estão na larga produção científica produzida pela

“Escola do Porto” como destaca Pereira27

, principalmente em seus trabalhos de campo nas

colônias portuguesas e nos trabalhos realizados por Mendes Corrêa sobre os portugueses

também, como a pesquisa com os criminosos portuenses28

e a própria origem dos

portugueses29

. Assim, podemos observar como se pautou os trabalhos desse antropólogo e

como ele buscou lidar com as questões encontradas em campo, além de também responder a

questões lidadas pelos portugueses no período de seu trabalho.

Pois, havia uma crítica, neste período, aos portugueses no Ocidente. Os lusitanos não

eram considerados como raças dignas e em seus trabalhos sobre os portugueses, Mendes

Corrêa tentou sempre apontar que os portugueses são uma “raça pura” desde o período

romano e comungava dos mesmos valores que as nações mais avançadas da Europa, mas que

era necessário fazer pequenos ajustes30

. Embora, o antropólogo defendesse isso antes da

instauração do regime salazarista, esse ponto de vista que se ajustava muito ao discurso de

construção do Novo Homem dentro do “salazarismo” e a “política do espírito” posta em

prática nos anos 1930 e 1940.

Essa política assentava-se numa ideia mítica da nação e do interesse nacional, no qual

o “resgate das almas dos portugueses” ocorreria sob a orientação de organismos estatais de

propaganda política. Seu objetivo central era estabelecer uma ideia mítica da “essência

26

CORRÊA, Mendes. Op. Cit. 1933. 27

PEREIRA, Rui. Op. Cit. 28

Cf. CORRÊA, Mendes. Os Criminosos Portugueses. Coimbra: F. França Amado Editor, 1914. 29

Cf. CORRÊA, Mendes. Raízes de Portugal. Lisboa: Vista “Ocidente”, 1944. 30

Idem.

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portuguesa” (atemporal e supraclassista), no qual o Estado Novo, na figura de António

Salazar, reassumiu ao encerrar o período liberal no país e moveriam ações para “reeducar” os

portugueses no cenário de uma nação reencontrada e regenerada consigo mesma, com a sua

essência eterna e com o seu destino providencial31

.

Portanto, podemos perceber os trabalhos de Mendes Corrêa como fundamentais dentro

da própria reconfiguração posta em prática pelo Estado Novo. Pois o antropólogo apareceu

como uma figura científica e respeitada no meio acadêmico que permitiriam dar tons

científicos a uma propaganda ditatorial, como também auxiliariam em uma postura

internacional do regime, principalmente nos congressos científicos. Demonstrando que, assim

como outras nações coloniais, Portugal também contribuiu para o desenvolvimento científico

internacional e caminhava com investimentos significativos em trabalhos importantes na área

dos estudos coloniais.

É nesse cenário que Mendes Corrêa alcançou seu prestígio acadêmico e ocupou cargos

importantes tanto dentro da estrutura do Estado Novo, quanto nas instituições científicas do

país. Logo não é à toa que sua ação possibilitou a construção da hegemonia de um grupo

dentro dos estudos coloniais, os quais tinham nele um mentor intelectual e um agente capaz

de angariar recursos para o desenvolvimento de pesquisas de campo, como foi o caso da

Missão Antropológica de Moçambique (entre 1937 e 1956) e a Missão Antropológica e

Etnológica da Guiné (entre 1946 e 1947), ambas realizadas, respectivamente, por Joaquim dos

Santos Júnior e Amílcar de Magalhães Mateus, discípulos do antropólogo português e

membros da “Escola do Porto”. Por conseguinte, a marca colonial da construção do campo

antropológico em Portugal, na figura de Mendes Corrêa, se ajustou e possibilitou uma

propaganda em tons científicos para um regime que buscou se consolidar e angariar apoio

durante as décadas de 1930 e 1940.

3. Considerações Finais

A epígrafe que inicia esse trabalho faz parte de um trabalho de Mendes Corrêa durante

os anos 1950, momento que o governo salazarista alterou tanto a Constituição portuguesa,

quanto os códigos referentes às colônias, que passaram a partir de então a serem denominadas

territórios ultramarinos. Acompanhada dessa ação política ocorreu também uma mudança de

paradigma dentro da política colonial, mais precisamente o desenvolvimento da ideia do

lusotropicalismo com Gilberto Freyre e a realização de trabalhos que dessem suporte a teoria

31

ROSAS, Fernando. O salazarismo e o homem novo: ensaio sobre o Estado Novo e a questão do totalitarismo.

In: Análise Social, vol. XXXV (157), 2001, pág. 1031-1054.

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defendida pelo Estado Novo nessa altura, o qual a contribuiu para que a Antropologia Física

perdesse espaço e investimento.

Essas alterações acompanharam um período que o colonialismo entrou em crise

internacional, não apenas devido aos movimentos de independências das colônias e as tensões

coloniais acirradas que anunciavam o seu fim em pleno contexto da Guerra Fria, mas também

através da forte crítica dentro da Organização das Nações Unidas materializada na defesa de

autodeterminação dos povos no pós-II Guerra Mundial. Não é à toa que Portugal realizou

essas mudanças, já que almejava participar do organismo internacional e necessitava ajustar

sua política aos parâmetros internacionais defendidos pela instituição. Suas mudanças

permitiram a entrada na ONU nos anos 1950.

Portanto, mais uma vez o governo português tentou se ajustar ao cenário internacional

realizando mudanças aparentes em sua política colonial32

, mas também alterando a política

científica desenvolvida em suas coloniais. Logo, Mendes Corrêa e seus seguidores começam a

perder tanto financiamento, quanto espaço dentro do cenário acadêmico nacional.

Entretanto, todo esse cenário trilhado por Mendes Corrêa exposto acima aponta para a

sua capacidade e maleabilidade dentro da política colonial salazarista gestada a partir do Ato

Colonial de 1930. Ele não apenas reafirmou a missão histórica portuguesa, como também

atuou na reconfiguração da política colonial portuguesa. Este documento, que determinou

tratamentos voltados para os indígenas nas colônias, encontrou nos estudos de Mendes Corrêa

a possibilidade de demonstrar que havia um esforço do governo em desenvolver aqueles

territórios utilizando estudos científicos, semelhante ao praticado por França e Inglaterra em

suas colônias.

Logo, o desenvolvimento de pesquisas científicas em cenário colonial estaria em total

consonância ao conceito defendido pela Europa Imperialista de “ocupação científica” das

colônias, o qual vestiria uma nova forma de colonialismo. Este concebido dentro da ideia do

desenvolvimento de uma ciência capaz de auxiliar na dominação dos territórios e dos nativos.

32

As mudanças colocadas em práticas a partir da Constituição de 1951 não alteram completamente a política

colonial portuguesa, mas sim altera a denominação a fim de ajustar as exigências das instituições internacionais.

Tanto que durante os anos 1950 e 1960, o governo português foi intimado para responder na ONU sobre o

trabalho forçado e o seu colonialismo. Entretanto, o governo, junto com outro aliado fundamental (o governo

brasileiro de Juscelino Kubischet), marcam a defesa daquele território como parte integrante de Portugal, não

havendo relações coloniais. Além disso, inicia-se também o período de Guerra Colonial, no qual perdurara

durante 11 anos e impôs o fim da Ditadura Salazarista em Portugal, depois de 49 anos de existência. Cf.

RAMPINELLI, W. J. As duas faces da moeda: as contribuições de JK e Gilberto Freyre ao colonialismo

português. Florianópolis: Editora da UFSC, 2004; e Cf. VARELA, Raquel. “O povo já não tem medo”: o 25 de

Abril de 1974 em Portugal – das revoluções anticoloniais à revolução na metrópole. In: MATTOS, Marcelo;

VEGA, Rubén. Trabalhadores e Ditaduras: Brasil, Espanha e Portugal. Rio de Janeiro: Consequência, 2014,

pp. 99-124.

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Assim, o conhecimento colonial, a sua dominação e sua exploração, eram partes

constituintes de um mesmo processo na concepção dos intelectuais colonialistas e Portugal

não esteve fora desse processo. Pois, a modernização portuguesa posta em prática a partir de

sua ditadura civil também buscou seguir um programa desenvolvido por outras nações

imperialistas, as quais obtiveram algum resultado em suas possessões coloniais. Portanto, uma

nação com uma missão histórica, como Portugal, não poderia ficar de fora desse processo e

intelectuais, como Mendes Corrêa, responderam a demandas daquelas elites políticas que

assumiram o governo português a partir do Estado Novo em 1933.

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