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UNIVERSIDADE METODISTA DE SO PAULO FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO
Ps-Graduao em Cincias da Religio
PROFETA E LUZ:
CATEGORIAS INTERCAMBIVEIS PARA CONSOLIDAR A
IDENTIDADE DE JESUS NA LITERATURA JOANINA
Maria Aparecida de Andrade Almeida
So Bernardo do Campo
2012
UNIVERSIDADE METODISTA DE SO PAULO
FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO
Ps-Graduao em Cincias da Religio
PROFETA E LUZ:
CATEGORIAS INTERCAMBIVEIS PARA CONSOLIDAR A
IDENTIDADE DE JESUS NA LITERATURA JOANINA
Por
Maria Aparecida de Andrade Almeida
Orientador
Prof. Dr. Paulo Roberto Garcia
Tese apresentada em cumprimento s exigncias do
Programa de Ps-Graduao em Cincias da Religio
para a obteno do grau de doutora.
So Bernardo do Campo, So Paulo, Brasil
Dezembro de 2012
ALMEIDA, Maria Aparecida de Andrade. Profeta e Luz: Categorias intercambiveis para
consolidar a identidade de Jesus na literatura joanina. So Bernardo do Campo:
Universidade Metodista de So Paulo, 2012 (Tese de Doutorado). 299 p.
SINOPSE
Na Literatura Joanina, Jesus apresentado ou se apresenta por meio de algumas categorias.
Dentre elas, profeta e luz. Esta tese assume como ponto de partida o pressuposto de que o
Quarto Evangelho foi literariamente composto em etapas redacionais: Tradio Bsica (TB);
Primeiro Evangelho (E1); Segundo Evangelho, que denominada Evangelho Transformado
(E2) e Terceiro Evangelho (E3) no qual inclui as epstolas joaninas. A categoria profeta (Jo
1,41; 4,19.25-29; 6,14; 7,40.52; 9.17) encontrada somente na TB e assumida tambm pelo
E1. Nestas duas etapas traditivas esta categoria no se diferencia do ttulo de Cristo/Messias
para a Comunidade Joanina. J a categoria luz (Jo 3,19-21; 5,35; 8,12; 9,5; 12,46-50) no
encontrada na TB e nem no E1. Somente aparece na camada traditiva do E2 e E3. Neste
sentido, a narrativa da Cura do Cego de Nascena (Jo 9,1-41) um espelho da comunidade. O
debate em torno da afirmao do ex-cego de que Jesus um profeta e da declarao de Jesus
que se autorrevela como luz constroem um marco identitrio. Na literatura joanina os
conflitos so pedaggicos na construo da identidade da comunidade. O seu interesse no
codificar os acontecimentos experienciados pela comunidade numa narrativa crtica
dramtica, mas apresentar a sua prpria compreenso de Jesus, de modo a encorajar outros a
crerem e permanecerem na f. Nesta percope percebe-se que as categorias profeta e luz so
intercambiveis e assumem papis de categorias descritivas de Jesus. Esta intercambialidade,
marcando um recorte de reconstruo da identidade da comunidade joanina, o objeto de
nossa pesquisa.
ALMEIDA, Maria Aparecida de Andrade. Prophet and Light: categories interchangeable to
consolidate the identity of Jesus in johannine literature. So Bernardo do Campo: Methodist
University of So Paulo, 2012 (Masters Program). 299 p.
ABSTRACT
In the Johannine literature, Jesus is presented or presents himself using different categories,
two of these categories being prophet and light. The purpose of this thesis starts with the
assumption that the Fourth Gospel was composed in traditional steps: Basic tradition (TB);
the First Gospel (E1); the Second Gospel, called the Transformed Gospel (E2); and the Third
Gospel (E3) in which I included the Johannine letters. The category prophet (John 1,41;
4,19,25-29; 6,14; 7,40; 9,17) is found exclusively in TB and is adopted by E1. These two
steps of the tradition do not distinguish between the category prophet and Christ/Messiah
for the Johannine community. The category light (John 3,19-21; 5,35; 8,12; 9,5; 12,46-50)
however is neither found in TB, nor in E1. It only appears in E2 and E3. Thus the narrative
of the Healing of the Blind Man (John9,1-41) reflects the situation of the community. The
discussion following the statement of the former blind man that Jesus is a prophet and Jesus
self-revelation as light establish a mark of identity. In the Johannine literature conflicts
have an educational purpose for the development of identity. The interest is not to compose
community experiences into a dramatic narrative, but to present a specific comprehension of
Jesus that encourages and brings forth faith. In this pericope one can perceive that the
categories prophet and light are interchangeable and become categories to describe Jesus.
This interchangeability that indicates one segment of the reconstruction of the identity of the
Johannine community is the object of this study.
Dedico este trabalho minha filha Vernica e ao meu esposo Elias, que com muita pacincia
compreenderam minhas ausncias, cansaos e correrias. Deram-me fora e coragem nas
dificuldades e me ajudaram a atravessar a ponte e descobrir novos caminhos.
Esta pesquisa foi realizada sob os auspcios do
IEPG (Instituto Ecumnico de Ps-Graduao);
CAPES (Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior) e
FAPESP (Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo).
Minha eterna gratido FAPESP, pelo apoio financeiro
no ltimo ano da pesquisa, o que permitiu o trmino desta tese.
8
AGRADECIMENTOS
A Deus
Foi muito difcil chegar at aqui. No sei por quantas vezes pensei em desistir. Acho at que
cheguei a desistir por alguns momentos. Talvez os ensinamentos deixados pela minha av
ainda na infncia tenham me impulsionado a continuar olhando firme para o horizonte e no
me deter com as pedras do caminho, que muito machucaram os meus ps. Agradeo a Deus,
autor da vida, por chegar aqui. Obrigada por me orientar, me guiar e me sustentar nos
momentos mais difceis.
Aos Mestres
queles que dedicaram seu tempo e compartilharam experincia para que minha formao
fosse tambm um aprendizado de vida. queles que, com sua sabedoria, fizeram-me ver que
estava no caminho certo, minha homenagem, meu carinho e minha eterna gratido:
Prof. Dr. Paulo Roberto Garcia (UMESP);
Prof. Dr. Paulo Augusto de Souza Nogueira (UMESP);
Prof. Dr. Jung Mo Sung (UMESP);
Prof. Dr. Leonildo Silveira Campos (UMESP);
Prof. Dr. Dario Paulo Barrera Rivera (UMESP);
Prof. Dr. Etienne Alfred Higuet (UMESP);
Prof. Dr. Jos Ademar Kaefer (UMESP);
Prof. Dr. Lauri Emlio Wirth (UMESP);
Prof. Dr. Trcio Machado Siqueira (UMESP);
Prof Dr Sandra Duarte de Souza (UMESP);
9
Aos amigos
No possvel colocar o nome de todas as pessoas que contriburam e me ajudaram nestes
ltimos quatro anos. Amigas (os), obrigada por vocs terem passado pela minha vida e me
dado a fora necessria para seguir em frente. Obrigada, por poder partilhar com vocs as
minhas descobertas, expectativas, vitrias e, acima de tudo, meu projeto.
Homenagem especial
Elias de Almeida (por ser um companheiro e tanto);
Vernica Andra de Andrade Almeida (razo, fora e incentivo sempre);
Joaquim Pedro de Andrade Jnior e Maria Rosa de Andrade (pela vida);
Prof. Dr. Paulo Roberto Garcia (pelo carinho em me orientar no mestrado e doutorado);
Prof. Dr. Paulo A. de S. Nogueira (por tudo que vivemos no G. de Pesquisa Oracula);
Grupo de Pesquisa Oracula (pelas sugestes e companheirismo nos congressos);
P. Hermann Wille, P. Roberto N. Baptista, P. Jrn Foth e P. Wolfgang Lauer (pela
confiana e por contribuir imensamente para que eu chegasse aqui);
Presbitrio e demais membros da Igreja da Paz (pela acolhida na Igreja da Paz);
Adolfo Krause e Marli Krause (por ter feito as revises finais);
Maria Ivo Antunes e Fernando Antunes (pelo incentivo e por cuidar da minha filha);
Iracema H. S. Crusius (pelo incentivo e amizade);
Dra. Elvira Valente e Dr. Francisco Valente (pelas terapias e incentivo);
Prof. Julio Csar Dias Chaves (Un. Laval - Canad pelo material sobre a BCNH);
Prof. Dr. Raul Branco (pelo material sobre Pistis Sophia);
Virna Pedrosa (pelo material sobre EvFI);
Sirley Antoni (pelo belo trabalho realizado na Bibliografia Latino Americana);
Ana Maria Fonseca (pela amizade e trabalho no IEPG);
Regiane da Silva Dias (Secretria da Ps-Graduao em Cincias da Religio);
Camilla Costa Sanches (Secretria Acadmica de Ps-Graduao Stricto Sensu);
Eliane Taylor Quintela (Secretria do Prof. Paulo Roberto Garcia);
Jlio Csar dos Santos (por ter me reservado um lugar na boleia de seu caminho e me
levado para casa sempre com muita segurana).
10
Prof. Dr. Archibald M. Woodruff,
Pouco antes de falecer, Prof. Archibald e eu trocamos alguns e-mails. Ele sempre me pedia
para que respondesse rpido, pois, nas suas palavras, tinha uma pressa imediata. Em um dos
e-mails, disse: Que alegria receber esta notcia de voc! Eu me lembro da paixo da sua
pesquisa. Vou ficar pensando sobre possveis pistas. Voc j foi para os lugares bvios. Mas,
preste ateno na presena de filhos da luz em Lucas, ao lado de outros laos entre Lucas e
Joo (como na narrativa da uno de Jesus), que fogem s ideias simplistas com que a gente
comea a caminhada com os evangelhos. Talvez comprovemos que Joo no to isolado
dentro do cristianismo do primeiro sculo, mas somente enfatiza certos aspectos. Confira
qualquer coisa sobre a messianologia de Qumran, especialmente em James Charlesworth.
Pelo jeito (com muitas ressalvas cautelosas), a cristologia de Joo seja uma messianologia
tipo Qumran, adaptado. E no Testamento de Levi, qualquer coisa sobre a luz? Adivinho que
sim. Obrigada Prof. Dr. Archibald, pelas dicas e pelo carinho. A Deus agradeo pela
oportunidade de ter conhecido e convivido com tamanha personalidade.
Prof. Dr. Milton Schwantes,
Agradecer teu incentivo pouco. Chamar voc de mestre no traduz o que, verdadeiramente,
voc significou. Dizer que voc enxergou em mim um talento que ningum mais viu, no
equivale a todos os esforos feitos para ajudar-me. Por isso Milton, quero dizer que chorei em
alguns momentos, pois a Universidade, por ora, ficar vazia. Por outro lado, tambm sorri
lembrando algumas situaes inusitadas. Como voc sempre dizia: Foi uma balbrdia. Foi
tudo lindo demais! No comeo foi difcil. Eu no queria acreditar que voc tinha partido. Eu
perdi um amigo! Eu perdi um mestre! No sei por que a vida tinha que ser assim. Podia no
ser talvez. Por qu? Enfim, s tenho a agradecer a Deus, por t-lo conhecido e mais ainda por
ter sido razo de sua dedicao. Neste percurso, aprendi muito com voc. Coisas de mente e
de corao, de luta e de primavera, de poltica e de laranjas, de Europa e de Amrica Latina.
Voc me trouxe algo novo, ou um novo olhar sobre as mesmas coisas, no sei. Ento, digo
que voc foi soberano. Soube sempre a direo do barco. Voc foi um Profeta!
SIGLAS E ABREAVIATURAS
AB Anchor Bible
AH Irineu de Lio, Adversus Haeresis
AJ Antiguidades Judaicas
AT Antigo Testamento
Bib Bblica
BCNH Biblioteca Copta de Nag Hammadi
CD Aliana de Damasco NCCN Narrativa da Cura do Cego de Nascena
CJ Comunidade Joanina
CM Coleo de Milagres
E1 Evangelho 1 (primeira redao do QE)
E2 Evangelho 2 (segunda redao do QE)
E3 Evangelho 3 (terceira redao do QE)
EcumRev The Ecumenical Review
EstBib Estudos Bblicos
EvS Evangelhos Sinticos
ER Estudos de Religio EvT Evangelho de Tom EvFI Evangelho de Filipe GJ Guerra Judaica
1Hen Henoc
HTR Harvard Theological Review Int Interpretation (a Journal of Bible and Theology)
JBL Journal of Biblical Literature JSHJ Journal for the Study of the Historical Jesus JSNT Journal for Studies of the New Testament
JTS Journal Theological Studies
JCI Journal of Communication Inguary
JPR Journal of Peace Research
Jud Judaism
LJ Literatura Joanina
LXX Modo latino de escrever 70, nmero redondo usado
12
para a traduo grega do AT (Septuaginta)
MMM Manuscritos do Mar Morto (Qumran)
M grutas de Murabba`at
MQ Rolo do templo
1QM Milhamah (Rolo da Guerra)
1QP Pesher de Habacuc 1QS Serek HaYahad (Regras da comunidade) NCCN Narratica da Cura do Cego de Nascena
NT Novo Testamento NTS New Testament Studies
NRT NouvRevTheol NovT Novum Testamentum PT Perspectiva Teolgica PS Pistis Sophia
QE Quarto Evangelho RevBib Revista Bblica
RevCultTeol Revista de Cultura Teolgica RP Relato da Paixo
RIBLA Revista de Interpretao Bblica Latino-Americana SBL Society of Biblical Literature Sem Semeia
StTh Studia Theologica
TB Tradio Bsica do Quarto Evangelho
TEB Traduo Ecumnica da Bblia Theol Theology
OUTRAS ABREVIATURAS E SIGLAS
a.C. Antes de Cristo
cap. Captulo(s)
cf. confira, conforme
d.C. Depois de Cristo ed., eds. Edio, editor (es) f. fragmento
Id. Idem, o mesmo
n. nmero
P Manuscrito em papiro (geralmente de um escrito bblico)
p. Pgina, pp. Pginas par. (e) paralelo(s) p. ex. por exemplo s, ss e seguinte(s) v. (vv.) Versculo, versculos vol. Volume
SUMRIO
INTRODUO ......................................................................................................... 17
CAPTULO I
NARRATIVA DA CURA DO CEGO DE NASCENA (NCCN)
1.1. INTRODUO .................................................................................................. 21
1.1.1. A percope da Narrativa da Cura do Cego de Nascena .......................... 22
1.1.2. Delimitao .............................................................................................. 25
1.2. EXEGESE DA NARRATIVA DA CURA DO CEGO DE NASCENA ......... 27
1.2.1. Texto Grego de Jo 9,1-41 ........................................................................ 27
1.2.2. Traduo Literal de Jo 9,1-41 .................................................................. 29
1.2.3. Traduo Literria de Jo 9,1-41 ............................................................... 31
1.2.4. Tradio Bsica (TB): Treva constatada e Cura inusitada ...................... 33
1.2.4.1. Primeira Cena da TB: Trevas e luz (9,1-3) .................................... 36
1.2.4.2. Segunda Cena da TB: A Cura Fsica (9, 6-7) ............................... 39
1.2.5. Evangelho 1 (E1) ou Primeira Verso: Em busca de Identidade ............ 42
1.2.5.1. Estrutura de Quiasmo (a-b-c-b'-a') ................................................. 45
1.2.5.1.1. A Primeiro Interrogatrio (9,8-12) ........................................... 46
1.2.5.1.2. B Segundo Interrogatrio (9,13-16) ......................................... 48
1.2.5.1.3. B Terceiro Interrogatrio (9,18-23) ........................................ 51
1.2.5.1.4. A Quarto Interrogatrio (9,24-34) .......................................... 57
1.2.5.1.5. C Ncleo Central do E1: Profeta (9,17) .............................. 67
1.2.6. Evangelho 2 (E2) ou Segunda Verso: Do profeta Luz ....................... 70
14
1.2.6.1. Primeira Cena do E2: Trabalho versus Luz (9,4-5) ........................ 73
1.2.6.2. Segunda Cena do E2: Atuao do Filho do Homem (9,35-41) ...... 76
1.2.6.3. Terceira Cena do E2: Trevas ou luz (9,42-44) ............................... 81
1.2.7. Evangelho 3 ou Terceira Verso: Acomodando as ideias ....................... 82
1.3. CONCLUSO .................................................................................................... 90
CAPTULO II
PROFETA NA LITERATURA BBLICA
2.1. INTRODUO .................................................................................................. 92
2.2. O SURGIMENTO DO PROFETA .................................................................... 93
2.3. VOCAO PROFTICA .................................................................................. 99
2.4. PROFETA NO ANTIGO TESTAMENTO ........................................................ 102
2.5. DO SILNCIO PROFTICO LITERATURA APOCALPTICA ................ 105
2.6. PROFETA NA LITERATURA APOCALPTICA ............................................ 108
2.6.1. Melquisedec ................................................................................................. 112
2.6.2. A Literatura de 1 Enoque............................................................................. 119
2.6.2.1. O Livro dos Vigilantes (1-16) ............................................................. 120
2.6.2.2. Parbola de Enoque (37-71) ................................................................ 121
2.6.2.3. O Livro Astronmico (72-82) ............................................................. 122
2.6.2.4. O Livro dos Sonhos (83-90) ................................................................ 122
2.6.2.5. A Epstola de Enoque (91-105) ........................................................... 122
2.6.3. A figura de Enoque em 1 Enoque ................................................................. 123
2.7. PROFETA NO NOVO TESTAMENTO ........................................................... 126
2.7.1. Simeo e Ana ............................................................................................ 129
2.7.2. gabo e as Quatro filhas de Filipe ........................................................... 129
2.7.3. Judas, Bar-Jesus e Silas ............................................................................ 130
2.7.4. Paulo ......................................................................................................... 131
2.7.5. Joo Batista ............................................................................................... 133
2.7.6. Jesus .......................................................................................................... 135
2.8. CONCLUSO .................................................................................................... 139
15
CAPTULO III
A CATEGORIA LUZ NO QUARTO EVANGELHO EM DILOGO COM OUTRAS
LITERATURAS
3.1. INTRODUO .................................................................................................. 142
3.2. LUZ NO QUARTO EVANGELHO....................................................................142
3.2.1. Luz versus trevas .................................................................................... 143
3.2.2. Manifestao da luz................................................................................ 145
3.2.3. Eu sou a luz do mundo ........................................................................... 146
3.2.4. Dia versus noite ...................................................................................... 147
3.2.5. Luz soteriolgica .................................................................................... 148
3.3. LUZ NA BIBLIOTECA COPTA DE NAG HAMMADI .................................. 149
3.3.1. Introduo .............................................................................................. 149
3.3.2. Luz no Evangelho de Tom ................................................................... 154
3.3.3. Luz no Evangelho de Filipe .................................................................. 156
3.3.4. Luz na Parfrase de Sem ........................................................................ 162
3.3.5. Luz no QE em dilogo com a Biblioteca Copta de Nag Hammadi ....... 164
3.4. LUZ EM PISTIS SOPHIA: A SABEDORIA SECRETA DE CRISTO ............ 170
3.4.1. Introduo .............................................................................................. 170
3.4.2. O Manuscrito de Pistis Sophia ............................................................... 172
3.4.3. Luz no QE em dilogo com Pistis Sophia .............................................. 179
3.5. LUZ NOS MANUSCRITOS DE QUMRAN ..................................................... 180
3.5.1. Introduo .............................................................................................. 180
3.5.2. 1QSIII: Luz na Regra da Comunidade ................................................... 182
3.5.3. 1QM: Luz na Regra da Guerra ............................................................... 186
3.5.4. Luz no QE em Dilogo com os Manuscritos de Qumran ...................... 189
3.6. LUZ NO NOVO TESTAMENTO ..................................................................... 192
3.6.1. Introduo .............................................................................................. 192
3.6.2. Luz nos Evangelhos Sinticos e Atos dos Apstolos..............................192
3.6.2.1. Luz na Transfigurao.................................................................... 198
3.6.2.2. Luz que brilha no Caminho ............................................................ 202
3.6.2.3. Luz que liberta da priso ................................................................ 204
16
3.6.3. Luz nas Cartas Paulinas, Cartas Joaninas e Apocalipse...........................205
3.6.4. Luz no Quarto Evangelho em dilogo com o Novo Testamento ........... .208
3.7. CONCLUSO .................................................................................................... .209
CAPTULO IV
PROFETA E LUZ: CATEGORIAS INTERCAMBIVEIS PARA CONSOLIDAR A
IDENTIDADE DE JESUS NA LITERATURA JOANINA
4.1. INTRODUO .................................................................................................. 213
4.2. ETAPAS REDACIONAIS DO QE .................................................................... 214
4.2.1. Profeta no Evangelho 1 (E1) ......................................................................... 222
4.2.2. Luz no Evangelho 2 (E2) .............................................................................. 229
4.2.2.1. A Sabedoria Personificada em Provrbios 8, Sabedoria 6 e QE ............ 233
4.2.2.2. Eu Sou a Luz do Mundo como figura de Linguagem no E2 .................. 237
4.2.2.2.1. Comparao ............................................................................ 238
4.2.2.2.2. Imagem ................................................................................... 238
4.2.2.2.3. Metfora.................................................................................. 240
4.2.2.2.4. Alegoria ................................................................................... 241
4.2.3. Intercambialidade entre Profeta e Luz ............................................................. 249
4.2.4. Evangelho 3 (E3): Acomodao das Ideias ................................................... 252
4.3. CONCLUSO .................................................................................................... 255
4.4. CONSIDERAES FINAIS ............................................................................. 257
4.5. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................................... 261
4.5.1. Livros, dicionrios e Bblias ..................................................................... 261
4.5.2. Revistas e artigos ....................................................................................... 282
4.5.3. Fontes eletrnicas ...................................................................................... 298
INTRODUO
Dez anos. Nossa caminhada comeou h exatamente dez anos, com a sntese teolgica
Jesus Cristo: O Caminho da Luz.1 Este tema levou-nos ao Quarto Evangelho.
2 Assim, fomos
conduzidos ao mestrado com a dissertao que visava abordar Eu Sou a luz do Mundo: Um
estudo do significado do termo luz em Jo 9,1-41, como janela para uma investigao mais
ampla sobre o universo literrio, imagtico e poltico-eclesial representado pela confluncia
da literatura joanina cannica e a gama de aplicaes da linguagem figurada de luz nos
escritos vtero e neotestamentrios.3
A composio da dissertao de mestrado nasceu de um projeto, a princpio, pessoal:
entender a categoria luz no QE. Tal pesquisa, embora limitada em alguns aspectos, permitiu-
nos o contato com a vasta literatura joanina e uma breve incurso na histria da pesquisa
moderna sobre o QE, bem como a experincia de se trabalhar com um texto grego. Porm,
alm disso, deixou-nos uma frustrao, pois, embora bem estruturada, no foi capaz de dar
conta da bela engenharia narrativa que o texto apresenta. Na dissertao constatamos que o
QE foi literariamente produzido passando por algumas etapas redacionais,4 isto , foi um
longo e complexo processo redacional at chegar ao texto que hoje temos.5
1 Maria Aparecida de A. ALMEIDA. Jesus Cristo: O caminho da luz. Taubat: Faculdade Dehoniana, 2005
(Sntese Teolgica). 2 Daqui para frente usaremos a sigla QE para Quarto Evangelho.
3 Maria Aparecida de A. ALMEIDA. Eu Sou a Luz do Mundo: Um Estudo do Significado do Termo Luz em
Joo 9,1-41. So Bernardo do Campo: Universidade Metodista de So Paulo, 2008 (Dissertao de Mestrado). 4 Marie-mile BOISMARD apresenta o QE dividindo-o em quatro etapas redacionais, com a interveno de trs
autores (JoI, JoIIA, JoIIB, JoIII). Boismard aplicou quatro critrios para separar seu procedimento: 1) as adies
em forma de glosa, correo ou ratificao; 2) as duplicaes ou repetio de contedos; 3) textos aparentemente
deslocados de seus contextos de origem; 4) textos estilisticamente semelhantes, com base numa lista de mais de
400 caractersticas de estilo. Cf. LEvangile de Jean: Paris: ditions du Cerf, 1977; Raymond BROWN
apresenta sua teoria sobre a formao do Evangelho de Joo resumindo-as em cinco etapas e ligando-as com a
situao e problemticas vividas pela comunidade. A primeira etapa descrita com a existncia de materiais
independentes das tradies sinticas que traziam atos e ditos de Jesus; a segunda etapa os materiais com relatos
18
Percebemos que no QE, ora Jesus qualificado por meio de algumas categorias:
Cordeiro de Deus (1,29), Rabi/Mestre (1,38), Messias (1,41), Filho de Jos (1,45), Filho de
Deus (1,49a), Rei de Israel (1,49b), Profeta (4,19), Cristo (4,29), Salvador do Mundo (4,39),
Senhor (4,49); ora ele mesmo se qualifica: Filho do Homem (1,51), Eu Sou o Po da vida
(6,35), Eu Sou a Luz do mundo (8.12), Eu Sou a Porta das ovelhas (10.7), Eu Sou o Bom
Pastor (10.11), Eu Sou a Ressurreio (11.25), Eu Sou o Caminho, a Verdade e a Vida (14.6)
e Eu Sou a Videira (15.1). A partir dessa constatao e depois de uma longa conversa, na
Biblioteca, com o Prof. Dr. Archibald, surgiu o tema desta tese de doutorado: Profeta e Luz:
Categorias intercambiveis para consolidar a identidade de Jesus na Literatura Joanina.
Esta tese registro de um percurso que viabilizou um maior entendimento do QE.
como se o caminho percorrido estivesse, agora, marcado por nossas andanas e, assim, um
novo caminhante pudesse seguir com alguma orientao. A caminhada foi longa, rdua,
inquietante e, claro, precisou fugir da trilha com alguma frequncia, cada vez que
encontramos a possibilidade de novos rumos, atalhos ou vias paralelas. Assim, criamos novas
compreenses e novos percursos, o que nos serviu de mola propulsora e impulsionou a
continuar a caminhada.
No primeiro captulo vamos refazer, reestruturar e avanar na exegese da Narrativa da
Cura do Cego de Nascena6 (9,1-41) que iniciamos no mestrado, pois esta percope a nica
da LJ em que as categorias profeta e luz aparecem juntas. Essa narrativa dramtica mostra um
grande conflito entre os fariseus/judeus e Jesus a partir da cura do cego de nascena. O
sobre palavras de Jesus que so desenvolvidos em meio comunidade atravs da pregao e do ensino oral; a
terceira etapa trata a primeira redao do Evangelho a partir da organizao dos materiais j citados
(provavelmente tal reao j fora em grego e no em aramaico). A quarta etapa mostra que uma nova redao
feita diante de problemas surgidos na comunidade, adaptando os textos para os novos objetivos e interesses; a
quinta etapa a redao final feita por um redator que no o evangelista. Tal redao acrescentou textos da
tradio joanina. Cf. A comunidade do discpulo amado. 6 ed. So Paulo: Paulus, 2011; J. Louis MARTYN
fundamenta sua teoria em trs fases: 1) na fase inicial, a comunidade joanina (de judeus convertidos), vive e age
em um ambiente judaico (a sinagoga), e caracteriza-se pela apresentao da tradio sobre Jesus em forma de
homilias. Um dos pregadores recolheu as tradies e homilias sobre Jesus e elaborou um primeiro texto (esboo)
do evangelho; 2) na segunda fase acontece uma grave tenso entre os que acreditam em Jesus e os judeus
(fariseus) e d-se uma ruptura. Tal rompimento conduz perseguio e at a execuo de alguns membros da
comunidade crist seguidora de Jesus por parte das autoridades da sinagoga. Nesta situao, a comunidade
forada a reformular suas concepes sobre Jesus. Usam do dualismo para apresentar Jesus: Aquele que vem
do alto (3,31), desprezado pelos seus (1,11), quem o aceita odiado pelo mundo (17,14.16), os que nele crem
so chamados de verdadeiros israelitas e no mais judeus (1,47); 3) na terceira fase caracteriza-se pela tenso
entre a comunidade joanina e outros grupos afins. Pelo menos quatro grupos: a sinagoga dos judeus, judeus a que
procuram serem fiis a Jesus, a mesma comunidade joanina e outras comunidades de cristos influenciados pelo
judasmo. Cf. History and Theology in the Fourth Gospel. New York: Harper & Row, 1968, 2 Ed. 1978 e
Senen VIDAL, no qual vamos apresentar com maior detalhe nesta tese. 5 Johan KONINGS. A memria de Jesus e a manifestao do Pai no Quarto Evangelho. In: Perspectiva
Teolgica 51, 1988, p. 177. 6 Usaremos NCCN para Narrativa da Cura do Cego de Nascena.
19
conflito causado pela afirmao do ex-cego de que Jesus um profeta e a declarao de Jesus
que se autorrevela como luz constroem um marco identitrio. Nessa percope percebe-se que
h uma troca, uma permuta, enfim, uma intercambialidade entre as categorias profeta e luz7 e
estas assumem papis que descrevem Jesus em dois tempos diferentes: no tempo em que a
comunidade rel Jesus atravs de seus sinais e na experincia de conflito interna e externa
vivida pela comunidade no final do sculo I.
No segundo captulo nos deteremos no desenvolvimento da categoria profeta na
literatura bblica. A partir de pesquisa recente analisaremos a etimologia da palavra profeta,
passando pela vocao do profeta, o profeta no AT, o silncio proftico, o profeta na
Apocalptica judaica e seus expoentes at chegar ao NT, onde aparece um conflito em torno
da identidade de Jesus, que segundo alguns um profeta. Uma vez, que o profeta no NT
um mediador da mensagem oral ou escrita recebida de fontes divinas, ser necessrio
adentrarmos nesta categoria para percebemos as mudanas que esta vai passando ao longo do
NT, mais precisamente no QE.
Sabendo-se que luz uma categoria importante nos escritos vtero e
neotestamentrios, o objetivo do terceiro captulo analisar a categoria luz no QE em dilogo
com outras literaturas cannicas e extracannicas. O dito de Jesus Eu Sou a Luz do Mundo
(Jo 8,12; 9,5) em relao ao contexto literrio imediato do QE, por um lado, e sua ampla
atestao por fontes independentes e antigas,8 por outro, fez-nos ver tanto sua importncia
para a pesquisa da tradio de Jesus como para a investigao de vertentes literrias crists
que deram interpretaes peculiares. Buscamos apontar convergncias e divergncias no uso
da categoria luz, a fim de compreendermos o universo teolgico e simblico com o qual a CJ
lida.
No quarto captulo verificaremos o processo redacional pelo qual passou o QE para
mostrar a intercambialidade entre as categorias profeta e luz. Demonstraremos que o
redator/comunidade do QE utiliza de algumas artimanhas narrativas para consolidar e criar
a identidade da comunidade joanina.9 Notaremos que, de fato, transparece um contexto hostil
e conflitivo entre as autoridades judaicas e a CJ. Tanto o cristianismo primitivo, quanto o
judasmo neste perodo no eram uma realidade unitria. Ao lado do judasmo ortodoxo
7 Significa que duas categorias diferentes podem ser usadas alternadamente com o mesmo propsito sem que o
resultado seja prejudicado. 8 James M. ROBINSON (ed.). The Nag Hammadi Library in English. Nova York: Brill, 1996, pp. 1-26; Elaine
PAGELS. Alm de toda crena: o evangelho desconhecido de Tom. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004, pp. 11-245;
Marvin MEYER. O Evangelho de Tom: as sentenas ocultas de Jesus. Rio de Janeiro: Imago, pp. 2-29. 9 Usaremos CJ para comunidade joanina.
20
coexistia tambm o heterodoxo. Por isso, pode-se dizer que no QE aparece uma comunidade
marcada por forte dualismo expresso atravs da oposio mundo de cima/mundo de baixo,
dia/noite, luz/trevas. As trevas se valem de uma estrutura inculturada no mundo, com seus
escribas e fariseus, com sua Lei e governadores. Depois de 70 d.C., este grupo refaz e
reconstri o judasmo a partir exclusivamente da Lei, negando, portanto, que Jesus seja a luz
do mundo. representado no QE pelos que se opem e odeiam a luz, isto , este grupo no se
abre revelao que Deus oferece atravs de seu Filho.
partindo deste pretexto, que compreenderemos melhor a intercambialidade entre
profeta e luz no discurso joanino Eu Sou a luz do mundo, com objetivo de consolidar a
identidade de Jesus na CJ, para assim, consolidar sua prpria identidade. E, de fato, em
particular, perceberemos que a discusso com o judasmo da poca ocupa um lugar de
destaque em todo o QE, pois o conflito muito til para a sua interpretao e para se precisar
exatamente os pontos polmicos e formular a nova identidade de Jesus na literatura
joanina.10
10
Usaremos LJ para literatura joanina.
CAPTULO I
NARRATIVA DA CURA DO CEGO DE NASCENA (NCCN)
1.1. INTRODUO11
Posto que temos como objetivo continuar pesquisando a Narrativa12
da Cura do Cego
de Nascena, pois esta a nica da LJ em que as categorias profeta e luz aparecem juntas,
neste primeiro captulo somos impelidos realizao da anlise exegtica da percope Jo 9,1-
41, assumindo os pressupostos de que um texto revela a realidade social, poltica, econmica
e religiosa de uma comunidade. Adotamos os procedimentos obtidos atravs de uma pesquisa
metodolgica do mtodo histrico-crtico, embora haja grande diversidade de mtodos.13
Dentre muitas ferramentas exegticas disponveis,14
selecionamos algumas que nos permitiro
compreender a intercambialidade entre as categorias profeta e luz no QE. Vamos seguir na
exegese as etapas redacionais apresentadas por S. Vidal, por ser este um autor que conseguiu
11
Todas as citaes bblicas literais foram tiradas da BBLIA DE JERUSALM. So Paulo: Paulus, 2004, exceto
algumas, cuja citao estar na nota de rodap. 12
Narrativa a descrio de um acontecimento ou fato histrico por um narrador. Apresenta uma srie de cenas
inter-relacionadas, colocadas de forma a atingir um clmax. Cf. Klaus BERGER, As formas literrias do Novo
Testamento. So Paulo: Loyola, 1998, pp. 277-278. Assim, Joo 9,1-41 se nos apresenta como uma narrativa
devido existncia de um narrador e o encadeamento de acontecimentos em sequncia cronolgica. 13
Anderson de Oliveira LIMA. Introduo Exegese: um guia contemporneo para a interpretao de textos
bblicos. So Paulo: Fonte Editorial, 2012; Wilhelm EGGER. Metodologia do Novo Testamento: iniciao aos
mtodos lingusticos e histrico-crticos. So Paulo: Loyola, 1994; Klaus, BERGER. As formas literrias do
Novo Testamento. So Paulo: Loyola, 1998, Ren KRGER; Severino CROATTO. Mtodos exegticos. Buenos
Aires: EDUCAB/Isedet, 1993. 14
Durante muitas dcadas, dizer exegese equivalia a dizer mtodo histrico-crtico: critica textual, crtica
literria, crtica e histria das formas e dos gneros literrios, histria das tradies crtica e histria da redao e
da composio. Nos anos setenta e oitenta do sculo XX, vrios novos mtodos como tambm aproximaes
hermenuticas surgidas de novos sujeitos e novas conscincias comearam a abrir caminho na investigao
cientfica dos textos bblicos. Sobre o mtodo histrico-crtico. Cf. Ren KRGER. Uma aproximao estrutural
a Lucas 1-4. In: RIBLA 53 (2006/1): 77-102, p. 77.
22
sintetizar vrias teorias como as de R. Bultmann, K. Wengst, R. Brown, O. Culmann, M.
Boismard e harmoniz-los na sua teoria:
a) Tradio bsica (TB): so textos de origem diversa, relativos aes ou ditos de
Jesus; so os textos mais primitivos e que esto na base dos demais evangelhos
cannicos. A estes foi acrescentada certa coleo de milagres (CM), que transparece
em Marcos, bem como os relatos da paixo, fonte comum tambm aos sinticos. S.
Vidal no fala da fonte possvel pr-gnstica de dilogos de revelao como
Bultmann, todavia as utiliza na fonte dos sinais e do relato da paixo;
b) Primeiro Evangelho (E1): o texto surgido do trabalho redacional inicial, no qual
foram unidas s tradies bsicas, na forma de uma histria da paixo de Jesus, mas
com a inteno de ser uma etiologia da comunidade joanina. A trajetria do Jesus
joanino lida como reflexo da trajetria histrica da comunidade joanina (CJ). E seu
contexto scio-histrico seria, portanto, o do conflito com as autoridades farisaicas e a
expulso da sinagoga nos anos 80;
c) Segundo Evangelho (E2): teria nascido como releitura dos primeiros escritos sob nova
tica. Isto teria acontecido provavelmente na dcada de 90 100, marcada por grandes
perseguies aos seguidores de Jesus em geral;
d) Terceiro Evangelho (E3): uma nova edio feita com novas glosas ao longo do texto
e o captulo 21 uma mostra. A comunidade joanina atravessa um processo de
institucionalizao apostlica. H um grande esforo com relao tica do amor
fraterno e a expectativa pelos acontecimentos escatolgicos futuros.15
1.1.1. A percope da Narrativa da Cura do Cego de Nascena (NCCN)
Depois da narrativa da Ressurreio de Lzaro (Jo 11) e da narrativa da Paixo (Jo
18ss), este o sinal em que foi registrado o maior nmero de palavras. Encontramos na
NCCN 691 palavras e 153 vocbulos que fazem a coeso interna da percope. So 195 verbos,
sendo 81 verbos no aoristo e 21 particpios. Os perodos so bem conectados, ora por uso
repetido de vocbulos semelhantes ou at mesmo frases inteiras repetidas, ora por vocbulo
que no se repete, porm tem importncia fundamental para a coeso da percope. Os
vocbulos que mais se destacam so:
15
Cf. Senen VIDAL. Los escritos originales de la comunidad del discipulo amigo de Jesus: el Evangelio y las
Cartas de Juan. Salamanca: Sgueme, 1997, pp. 13-40.
23
VOCBULOS
TRADUO JO 9,1- 41 VOCBULOS TRADUO JO 9,1- 41
tuflo.j cego 13 vezes Kai. e 44 vezes
ovfqalmo.j olhos 10 vezes apokri,nomai separar/ rejeitar
8 vezes
Silwa,m Silo 2 vezes genna,w ser gerado/
dado a luz 5 vezes
a;nqrwpoj homem 7 vezes avkou,w ouvir 7 vezes
Mwu?sh/j Moiss 2 vezes avnoi,gw abrir 8 vezes
VIhsou/j Jesus 7 vezes le,gw dizer 35 vezes
ku,rie Senhor 2 vezes ei+mi, Eu Sou 2 vezes
gonei/j pais 6 vezes ni,ptw lavar 3 vezes
o[ti que/porque 21 vezes oi=da saber 11 vezes
ou=n pois 14 vezes evrga,zomai trabalhar 2 vezes
ti,j quem 11 vezes ble,pw ver 9 vezes
Farisai/oj Fariseus 4 vezes pisteu,w crer 4 vezes
VIoudai/oj Judeus 3 vezes evpiCri,w aplicar 2 vezes
ko,smoj mundo 3 vezes
a`martwlo.j a`marta,nw a`marti,a
pecar
pecado 9 vezes
phlo.j barro 5 vezes pw/j como/que maneira
6 vezes
ptu,smatoj saliva 1 vez evkei/noj daquele 7 vezes
kolumbh,qran piscina 1 vez pa,lin\ por sua vez/de
novo 3 vezes
fw/j luz 1 vez profh,thj profeta 1 vez
r`abbi mestre 1 vez Cristo,j Cristo 1 vez
Apestalme,noj Enviado 1 vez ui`o.n tou/ avntrw,pou
Filho do
Homem 1 vez
me,nw permanecer 1 vez ptu,w cuspir 1 vez
Alguns vocbulos usados na NCCN so fortemente recorrentes ao longo da LJ16
em
contraste com o restante do Novo Testamento.17
Um vocbulo que aparece somente uma vez
na NCCN me,nw (permanecer v.41), mas se revela importante na LJ, com 74 ocorrncias
neste conjunto literrio, sendo 118 vezes repetidas ao longo do NT; pisteu,w (crer
vv.18.35.36.38) aparece na LJ 107 vezes contra 243 usos em todo NT; evkei/noj (daquele
vv.9.11.12.25.28.36.37) aparece 45 vezes na LJ contra 58 no NT; avpokri,nomai/avpekri,qh
(separar/rejeitar vv.3.11.20.25.27.30.34.36) aparece 57 vezes na LJ contra 82 vezes no NT;
16
Ao mencionar LJ estamos falando do QE, das trs cartas joaninas e do Apocalipse. 17
Usaremos NT para Novo Testamento.
24
ko,smoj (mundo vv.5.5.39) aparece 78 vezes na LJ contra 186 no NT; fw/j (luz v.5) na NCCN
aparece somente uma vez, sendo 29 vezes na LJ contra 73 vezes no NT; ni,ptw (lavar
vv.7.11.15) aparece treze vezes na LJ e 17 vezes no restante do NT.
abundante o uso das partculas kai., o[ti( ou=n( ti,j( pw/j (e, que/porque, pois, quem,
como). Entre elas, a mais recorrente kai. (e), repetida 44 vezes na NCCN, quase sempre
ligando oraes coordenadas ou iniciando perodos. A ela coube o papel de abrir a percope,
estabelecendo uma continuidade com a percope anterior. Aparecem tambm o[ti
(que/porque) 21 vezes, como indicao de discurso direto, e ou=n (pois) 14 vezes, sinalizando
conexes entre elementos internos narrativa. Estas duas partculas so fundamentais para a
coeso interna da percope, pois estabelecem sequncia entre as diversas partes do texto. J as
partculas ti,j (quem) 11 vezes, pw/j (como) 6 vezes e o verbo evrwta,w (sair) 4 vezes
demonstram que h uma grande ocorrncia de frases interrogativas na NCCN (18 no total). A
maioria delas acompanhada de resposta e constitui quatro interrogatrios constantes na
sequncia 9,8-34. Alm da funo que ocupam nos dilogos, as interrogaes podem ter uma
inteno de levar os leitores a questionar as estruturas em que esto mergulhados.18
Quanto aos termos Farisai/oj (fariseus vv.13.15.16.40) e VIoudai/oj (judeus
vv.18.22.22) no QE: o primeiro ocorre 20 vezes, ao passo que o segundo ocorre 67 vezes e
so quase sempre empregados como termos equivalentes.
Alguns vocbulos que aparecem na NCCN so raros no NT, como por exemplo,
Silwa,m (Silo) e ptu,w (cuspir). Este ltimo ocorre somente em Mc 7,33 e Mc 8,23. Em Mc
8,23 refere-se tambm a uma narrativa de cura de cego pelo mesmo processo empregado em
9,6: uso da saliva. J os termos kolumbh,qran (piscina - 5,2.4.7; 9,7), ptu,sma (saliva - 9,6),
evpicri,o (aplicar vv. 6.11), qeosebh,j (temente a Deus v.31) e avposuna,gwgoj (expulso da
sinagoga - 9,22; 12,42; 16.2) aparecem somente no QE. No se pode deixar de destacar
avposuna,gwgoj, pois sua primeira ocorrncia na Antiguidade justamente no QE, na NCCN.
Alm da composio interna cnica (drama),19
h outros indcios que mostram que o
autor deixou-se guiar pelo nmero sete: assim como no captulo 1 (1.29.30.34.38.41.45.49) no
captulo 9 tambm aparecem sete maneiras de nomear Jesus: rabi (v.2), enviado (v.7), homem
(vv.11.16), profeta (v.17), Messias (v.22), Filho do Homem (v.35), Senhor (v.36) e sete vezes
18
Cf. Maria Paula RODRIGUES; Pedro L. VASCONCELLOS; Rafael Rodrigues da SILVA. F na vida: a boa
notcia segundo uma comunidade na periferia do mundo. So Leopoldo: CEBI, 1999, p. 19. 19
Northrop FRYE. Anatomia da Critica. Traduo de Pricles Eugnio da Silva Ramos. So Paulo: Editora
Cultrix, pp. 264-266.
25
a expresso abrir os olhos (vv.10.14.17.21.26.30.32).20
Tambm encontramos quatorze
referncias ao cego que volta vendo da piscina de Silo (vv.
9.10.13.14.15.15.17.18.19.21.25.26.30.32).
A percope da NCCN se insere na terceira parte do livro dos sinais (Jo 5-10) e ocupa
o ltimo dos quatro sinais que a se encontram. Jesus se manifestou aos seres humanos
como luz, mas como est bem expressa na discusso com os judeus, essa luz foi rejeitada. As
autoridades do mundo judaico fecham os olhos ao ensinamento do Messias/Cristo e se opem
claramente luz da verdade que ele proclama: Eu Sou a luz do Mundo.
Esta percope pe ainda mais em relevo o crescimento da cegueira espiritual das
autoridades judaicas atravs do confronto com o caminho de f percorrido pelo homem cego
de nascena. O carter unitrio da percope bem expresso, quer pelo vocabulrio tipicamente
joanino, com frmulas literrias e termos lxicos prprios, quer pelo estilo inconfundvel do
autor do QE. No estilo joanino, ao sinal-milagre segue-se um discurso-dilogo em forma de
processo (quatro interrogatrios), no qual aparecem vrios personagens: Jesus, cego de
nascena, discpulos, vizinhos e conhecidos, pais do cego, fariseus e judeus. A luz que veio
ao mundo comporta um julgamento que est para se atuar: quem cr que v permanece cego;
quem cr que cego, v a luz e se torna um vidente.
1.1.2. Delimitao
A delimitao de Joo 9,1-41, embora se constitua uma unidade independente, um
grande desafio, porque um texto com vrias marcas redacionais,21
inseridas com muita
habilidade em seu contexto. Enquanto uma srie de indcios confirma o fato de que Jo 9,1
inaugura um novo assunto em relao passagem anterior, quanto ao seu trmino h
controvrsias.22
A percope abre com uma determinante temporal e local, depois da afirmao do
narrador da narrativa anterior (8,59): E passando viu um homem cego de nascena (9,1). O
dilogo de controvrsia do captulo anterior cede lugar a uma narrativa dramtica. Jesus fora
20
Johan KONINGS. Evangelho segundo Joo: amor e fidelidade. Petrpolis/So Leopoldo: Vozes/Sinodal,
2000, p. 222. 21
Para uma crtica literria de Jo 9,1-41. Cf. Maria Paula RODRIGUES. Um pecador quer nos ensinar?
Religio e poder no episdio do cego de nascena. So Bernardo do Campo: Universidade Metodista de So
Paulo, 2003 (Dissertao de Mestrado), pp. 110-111. 22
Cf. Raymond E. BROWN, El Evangelio segun Juan I. 2 vols. Madri: Cristiandad, 1979, pp. 635-649; Rudolf
SCHNACKENBURG, El Evangelio segn San Juan. Vol. I. Barcelona: Herder, 1980, pp. 345- 379; KONINGS,
Evangelho segundo Joo, p. 218; VIDAL, Los escritos originales de la comunidad del discpulo amigo de
Jess, pp. 502-509.
26
expulso do Templo, mas, ao ver o cego de nascena, ao invs de ocultar-se, como se narra em
8,59, ele pra, dialoga com os discpulos (9,2), cura o cego (9, 6), dialoga com os fariseus
(9,13), encontra novamente com o cego (9, 35) e dialoga com os judeus (9.39). E tudo que
acontece em funo da declarao introdutria de Jesus: preciso trabalhar as obras
daquele que me enviou enquanto dia; vem a noite, quando ningum pode trabalhar.
Enquanto no mundo estiver, sou luz do mundo (9, 4-5). O maior indcio de autonomia do
texto em relao ao seu entorno, e tambm o maior fator de coeso interna da narrativa, a
constante referncia cura do cego. Esse personagem central na narrativa e h meno a ele
e sua trajetria de forma direta ou indireta em cada linha da percope. Todos os dilogos
funcionam para justificar ou desmistificar essa cura.
O motivo que nos leva a suspeitar que o trmino da NCCN seja Jo 9,41 o texto
seguinte (10,1-21), porque a sentena judicial pronunciada por Jesus conduz sem interrupo
ao discurso do bom pastor. No h incluso de novos personagens, nem mudanas de natureza
cronolgica ou topogrfica, porm percebemos uma mudana repentina de gnero literrio a
partir de 10,1, com uma introduo abrupta, indicando que houve uma quebra inegvel com a
narrativa que vinha sendo desenvolvida at 9,41.
As palavras enfticas amm, amm (10,1) e a conhecida frase de introduo, que
comporta alguma conexo com o que precede, servem como, em outras partes, para marcar a
transio do dilogo para o monlogo. A unidade que preenche o captulo 10 diferente do
captulo 9 no que diz respeito ao aspecto literrio, bem como do resto do QE, sobretudo na
primeira parte (10, 1-18), em que o autor usa um gnero literrio chamado paroimia,
traduzido como parbola ou comparao, para falar da autoridade de Jesus e de sua liderana
em relao aos discpulos.
No captulo 9 predomina o tema da luz, e no h nenhuma aluso s imagens pastoris.
Em 10,1-18 h uma mudana de vocabulrio e de metforas. As falas perspicazes e precisas
de Jesus (9,4-5.39.41) do lugar a dois discursos longos e de difcil entendimento por parte
dos interlocutores (10,1-5; 7-18). No encontramos mais a figura do ex-cego e sim, uma
autodefinio de Jesus como a porta e como o bom pastor (Eu sou a porta das ovelhas... Eu
sou o bom pastor) em oposio aos ladres e salteadores, que no entram pela porta das
ovelhas e as abandonam diante do perigo dos lobos (10,7-18). Trabalharemos esta questo na
camada redacional do E2 e E3.
27
1.2. EXEGESE DA NARRATIVA DA CURA DO CEGO DE NASCENA
A NCCN uma obra literria, to cuidadosamente elaborada que nem sequer uma
palavra foi desperdiada diz R. Brown.23
Foi elaborada por partes ou cenas muito bem
delimitadas, marcadas pela entrada e sada de personagens ou pela mudana de cenrio. A
estrutura interna do relato mostra uma consumada maestria artstica. Temos aqui mostra
memorvel da habilidade dramtica de Joo.24
Apresentamos a NCCN como produto de
redaes prvias25
ou mltiplas redaes: Tradio Bsica (TB); Evangelho 1 (E1);
Evangelho 2 (E2) e Evangelho 3 (E3).
1.2.1. Texto Grego26
de Joo 9,1-41
1Kai. para,gwn ei=den a;nqrwpon tuflo.n evk geneth/j) 2kai. hvrw,thsan auvto.n oi maqhtai
auvtou/ le,gontej\ r`abbi( ti,j h[marten( ou-toj h' oi gonei/j auvtou/( i[na tuflo.j gennhqh/; 3avpekri,qh VIhsou/j\ ou;te ou-toj h[marten ou;te oi gonei/j auvtou/( avllV i[na fanerwqh/| ta.
e;rga tou/ qeou/ evn auvtw/| 4hma/j dei/ evrga,zesqai ta. e;rga tou/ pe,myanto,j me e[wj h`me,ra evsti,n\ e;rcetai nu.x o[te
ouvdei.j du,natai evrga,zesqai 5o[tan evn tw/| ko,smw| w=( fw/j eivmi tou/ ko,smou 6tau/ta eivpw.n e;ptusen camai. kai. evpoi,hsen phlo.n evk tou/ ptu,smatoj kai. evpe,crisen
auvtou/ to.n phlo.n evpi. tou.j ovfqalmou.j 7 kai. ei=pen auvtw/|\ u[page ni,yai eivj th.n
kolumbh,qran tou/ Silwa,m o] e`rmhneu,etai avpestalme,noj avph/lqen ou=n kai. evni,yato
kai. h=lqen ble,pwn 8Oi` ou=n gei,tonej kai. oi` qewrou/ntej auvto.n to. pro,teron o[ti prosai,thj h=n e;legon\
ouvc ou-to,j evstin o kaqh,menoj kai. prosaitw/n 9 a;lloi e;legon o[ti ou-to,j evstin ( a;lloi
e;legon\ ouvci,( avlla. o[moioj auvtw/| evstin evkei/noj e;legen o[ti evgw, eivmi 10 e;legon ou=n
auvtw/|\ pw/j ou=n hvnew,|cqhsa,n sou oi` ovfqalmoi 11avpekri,qh evkei/noj\ o` a;nqrwpoj
lego,menoj VIhsou/j phlo.n evpoi,hsen kai. evpe,crise,n mou tou.j ovfqalmou.j kai. ei=pe,n moi
o[ti u[page eij to.n Silwa.m kai. ni,yai\ avpelqw.n ou=n kai. niya,menoj avne,bleya 12 kai.
ei=pan auvtw/|\ pou/ evstin evkei/noj le,gei\ ouvk oi=da
23
Raymond E. BROWN. Introduo ao Novo Testamento. So Paulo: Paulinas, 2004, p. 476. 24
BROWN, El Evangelio segn Juan, vol. I, p. 621. 25
A hiptese de S. VIDAL sobre as trs redaes prvias pelas quais passou o QE ser detalhada nesta tese de
doutorado, pois assumimos a posio das trs fases redacionais apresentadas por ele. 26
NESTLE-ALAND. Novum Testamentum Graece. 27 ed. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1993.
28
13:Agousin auvto.n pro.j tou.j Farisai,ouj to,n pote tuflo,na 14h=n de. sa,bbaton evn h-|
h`me,ra| to.n phlo.n evpoi,hsen o` VIhsou/j kai. avne,w|xen auvtou/ tou.j ovfqalmou,j) 15pa,lin ou=n
hvrw,twn auvto.n kai. oi` Farisai/oi pw/j avne,bleyen o` de. ei=pen auvtoi/j\ phlo.n evpe,qhke,n
mou evpi. tou.j ovfqalmou.j kai. evniya,mhn kai. ble,pw 16e;legon ou=n evk tw/n Farisai,wn
tine,j\ ouvk e;stin ou-toj para. qeou o` a;nqrwpoj( o[ti to. sa,bbaton ouv threi/ a;lloi de.
e;legon\ pw/j du,natai a;nqrwpoj amartwlo.j toiau/ta shmei/a poiei/n kai. sci,sma h=n evn
auvtoi/j) 17le,gousin ou=n tw/| tuflw/| pa,lin\ ti, su. le,geij peri. auvtou/( o[ti hvne,w|xe,n sou tou.j
ovfqalmou,j o de. ei=pen o[ti profh,thj evsti,n) 18Ouvk evpi,steusan ou=n oi` VIoudai/oi peri. auvtou/ o[ti h=n tuflo.j kai. avne,bleyen e[wj o[tou
evfw,nhsan tou.j gonei/j auvtou/ tou/ avnable,yantoj 19kai. hvrw,thsan auvtou.j le,gontej\ ou-
to,j evstin o ui`o.j u`mw/n( o]n u`mei/j le,gete o[ti tuflo.j evgennh,qh pw/j ou=n ble,pei a;rti 20avpekri,qhsan ou=n oi gonei/j auvtou/ kai. ei=pan\ oi;damen o[ti ou-to,j evstin o uio.j h`mw/n
kai. o[ti tuflo.j evgennh,qh\ 21pw/j de. nu/n ble,pei ouvk oi;damen( h' ti,j h;noixen auvtou/ tou.j
ovfqalmou.j hmei/j ouvk oi;damen\ auvto.n evrwth,sate( h`liki,an e;cei( auvto.j peri. e`autou/
lalh,s el22tau/ta ei=pan oi gonei/j auvtou/ o[ti evfobou/nto tou.j VIoudai,ouj\ h;dh ga.r
sunete,qeinto oi VIoudai/oi i[na eva,n tij auvto.n o`mologh,sh| cristo,n( avposuna,gwgoj
ge,nhtai 23dia. tou/to oi gonei/j auvtou/ ei=pan o[ti h`liki,an e;cei ( auvto.n evperwth,sate 24VEfw,nhsan ou=n to.n a;nqrwpon evk deute,rou o]j h=n tuflo.j kai. ei=pan auvtw/|\ do.j do,xan
tw/| qew/|\ h`mei/j oi;damen o[ti ou-toj o a;nqrwpoj amartwlo,j evstin 25avpekri,qh ou=n
evkei/noj\ eiv a`martwlo,j evstin ouvk oi=da\ e]n oi=da o[ti tuflo.j w'n a;rti ble,pw 26ei=pon
ou=n auvtw/|\ ti, evpoi,hse,n soi pw/j h;noixe,n sou tou.j ovfqalmou,j 27avpekri,qh auvtoi/j\
ei=pon umi/n h;dh kai. ouvk hvkou,sate\ ti, pa,lin qe,lete avkou,ein mh. kai. u`mei/j qe,lete
auvtou/ maqhtai. gene,sqai 28kai. evloido,rhsan auvto.n kai. ei=pon\ su. maqhth.j ei evkei,nou(
h`mei/j de. tou/ Mwu?se,wj evsme.n maqhtai,\ 29hmei/j oi;damen o[ti Mwu?sei/ lela,lhken o
qeo,j( tou/ton de. ouvk oi;damen po,qen evsti,n 30avpekri,qh o` a;nqrwpoj kai. ei=pen auvtoi/j\ evn
tou,tw| ga.r to. qaumasto,n evstin ( o[ti u`mei/j ouvk oi;date po,qen evsti,n ( kai. h;noixe,n mou
tou.j ovfqalmou,j 31oi;damen o[ti amartwlw/n o` qeo.j ouvk avkou,ei ( avllV eva,n tij qeosebh.j
h=| kai. to. qe,lhma auvtou/ poih/| tou ,tou avkou,ei 32evk tou/ aivw/noj ouvk hvkou,sqh o[ti
hvne,w|xe,n tij ovfqalmou.j tuflou/ gegennhme,nou 33eiv mh. h=n ou-toj para. qeou/( ouvk
hvdu,nato poiei/n ouvde,na 34avpekri,qhsan kai. ei=pan auvtw/|\ evn amarti,aij su. evgennh,qhj
o[loj kai. su. dida,skeij h`ma/j kai. evxe,balon auvto.n e;xw
29
35:Hkousen VIhsou/j o[ti evxe,balon auvto.n e;xw kai. eu`rw.n auvto.n ei=pen\ su. pisteu,eij eivj
to.n ui`o.n tou/ avnqrw,pou 36avpekri,qh evkei/noj kai. ei=pen\ kai. ti,j evstin( ku,rie( i[na
pisteu,sw eivj auvto,n 37ei=pen auvtw/| o` VIhsou/j\ kai. e`w,rakaj auvto.n kai. o` lalw/n meta.
sou/ evkei/no,j evstin 38o de. e;fh\ pisteu,w( ku,rie\ kai. proseku,nhsen auvtw/|
39Kai. ei=pen o VIhsou/j\ eivj kri,ma evgw. eivj to.n ko,smon tou/ton h=lqon( i[na oi mh.
ble,pontej ble,pwsin kai. oi ble,pontej tufloi. ge,nwntai 40h;kousan evk tw/n Farisai,wn
tau/ta oi` metV auvtou/ o;ntej kai. ei=pon auvtw/|\ mh. kai. h`mei/j tufloi, evsmen 41ei=pen
auvtoi/j o` VIhsou/j\ eiv tufloi. h=te( ouvk a'n ei;cete amarti,an\ nu/n de. le,gete o[ti
ble,pomen( h a`marti,a u`mw/n me,nei
1.2.2. Traduo Literal27
de Jo 9,1-41
1E passando, viu um homem, cego de nascena.
2E perguntaram-lhe os discpulos dele,
dizendo: Mestre, quem pecou: este, ou os pais dele, para que cego nascesse?
3Respondeu Jesus: Nem este pecou nem os pais dele; mas, para que fossem
manifestas as obras de Deus nele.
4Nos preciso trabalhar as obras daquele que me enviou, enquanto dia; vem a noite
quando ningum pode trabalhar. 5Enquanto no mundo estiver, luz sou do mundo.
6Isso tendo dito, cuspiu na terra e fez barro com a saliva e aplicou dele o barro sobre
os olhos. 7E disse a ele: Vai, lava-te na piscina de Silo (o que interpretado
Enviado). Saiu, pois e lavou-se, e veio vendo.
8Os vizinhos, portanto, e os que viam a ele anteriormente que mendigo era, diziam:
No este o que se sentava e que mendigava? 9Outros diziam: Este , outros
diziam: No, mas semelhante a ele . Aquele dizia: sou eu. 10
Diziam, pois a ele:
Como ento foram abertos seus olhos? 11
Respondeu aquele: O homem chamado
Jesus fez barro e aplicou em meus olhos, e disse a mim: Vai a Silo e lava-te. Tendo
ido, pois, e me lavado, tornei a ver. 12
E disseram a ele: Onde est aquele? Diz:
No sei.
13Conduzem o mesmo aos fariseus o outrora cego.
14 Era sbado em o qual dia fez o
barro Jesus e abriu dele os olhos. 15
Novamente, pois, perguntavam a ele tambm os
fariseus como tornou a ver. E disse a eles: Barro ps sobre os olhos e me lavei e
27
A traduo foi feita mantendo-se a ordem das palavras, exceto quando a inverso se fez necessria para se
obter o sentido original.
30
vejo. 16
Diziam, pois, dos fariseus alguns: No este o homem (vindo) da parte de
Deus, porque o sbado no guarda! Outros, porm, diziam: Como pode um homem
pecador tais sinais fazer? E diviso havia entre eles.
17Dizem ento ao cego novamente: que tu dizes a respeito dele, que abriu seus
olhos? Ele disse: profeta .
18No creram, pois, os judeus a respeito dele que era cego e tornou a ver at que
chamaram os pais dele, do que tornou a ver. 19
E perguntaram a eles, dizendo: este o
filho vosso, o qual vs dizeis que cego nasceu? Como, pois, v agora?
20Responderam, pois, os pais dele e disseram: Sabemos que este o filho nosso, e que
cego nasceu; 21
Mas como agora v, no sabemos; ou quem abriu os olhos dele ns no
sabemos. A ele perguntai, idade tem, em defesa de si mesmo falar. 22
Essas coisas
disseram os pais dele porque temiam os judeus; j pois tinham combinado os judeus
que, se algum a ele confessasse como Cristo, excomungado da sinagoga deveria ser.
23Por isso os pais dele disseram: idade tem, a ele interrogai.
24Chamaram, pois, o homem que era cego pela segunda vez e disseram-lhe: D glria
a Deus; ns sabemos que esse homem pecador. 25
Respondeu, pois, aquele: Se
pecador, no sei; uma coisa sei, que cego sendo, agora vejo. 26
Disseram, pois a ele:
Que fez a ti? Como abriu os seus olhos? 27
Respondeu a eles: Eu j disse a vs e no
ouvistes. Por que novamente quereis ouvir? E vs quereis dele discpulos tornar-vos?
28E insultaram a ele e disseram: Tu discpulo s daquele; porm ns de Moiss somos
discpulos. 29
Ns sabemos que a Moiss falou Deus, porm este no sabemos donde
. 30
Respondeu o homem e disse a eles: Nisto, pois, o maravilhoso est, que vs no
sabeis donde , e abriu meus olhos. 31
Sabemos que pecadores Deus no ouve; porm,
se algum temente a Deus for e a vontade dele fizer, a este ouve. 32
Desde o princpio
no foi ouvido que algum abriu os olhos de cego nascido. 33
Se no fosse este da parte
de Deus no poderia fazer nada. 34
Responderam e disseram-no: Em pecados tu s
nascido inteiro e tu ensinas a ns? E expulsaram-no para fora.
35Ouviu Jesus que o expulsaram e encontrando-o disse: Tu crs no Filho do
Homem? 36
Respondeu aquele e disse: E quem Senhor, para que eu creia nele?
37Disse-lhe Jesus: Tanto viste a este quanto o que fala contigo .
38Disse: Creio,
Senhor! E adorou-o.
39E disse Jesus: Para juzo eu vim a este mundo, para que os que no veem vejam, e
os que veem cegos se tornem. 40
Ouviram dentre os fariseus estas coisas os que com
31
ele estavam e disseram-no: Por ventura ns no somos tambm cegos? 41
Disse a eles
Jesus: Se cegos fsseis no tereis pecado; agora, porm dizeis: Vemos, o pecado
vosso permanece.
1.2.3. Traduo Literria28
de Jo 9,1-41
1E passando, viu um homem, cego de nascena.
2Seus discpulos lhe perguntaram:
Mestre, quem pecou: ele ou os seus pais para que nascesse cego? 3Jesus respondeu:
Nem ele pecou nem os seus pais; mas para que nele fossem manifestas as obras de
Deus.
4Nos preciso trabalhar as obras daquele que me enviou, enquanto dia; vem a noite
quando ningum pode trabalhar. 5Enquanto estiver no mundo, sou a luz do mundo.
6Tendo dito isto, cuspiu na terra e fez barro com a saliva e aplicou-o sobre os olhos.
7E
disse-lhe: Vai, lava-te na piscina de Silo (o que interpretado Enviado). Saiu, pois
e lavou-se, e voltou vendo.
8Os vizinhos e os que viam-no anteriormente como mendigo, diziam: Este no o
que se sentava e que mendigava? 9Diziam alguns: este, diziam outros: No, mas
ele semelhante. Dizia ele: sou eu. 10Diziam-lhe, pois: Como foram abertos seus
olhos, ento? 11
Ele respondeu: O homem chamado Jesus fez barro e aplicou em
meus olhos, e disse-me: Vai e lava-te em Silo. Tendo ido, pois, e me lavado tornei a
ver. 12
E disseram-lhe: Onde est ele? Diz: No sei.
13Conduzem o outrora cego aos fariseus.
14Era sbado, o dia em que Jesus fez barro e
abriu-lhe os olhos. 15
Novamente, os fariseus perguntaram-lhe tambm como tornou a
ver. E disse-lhes: Ps Barro sobre os olhos e me lavei e vejo. 16
Diziam, pois alguns
dos fariseus: Este homem no vem da parte de Deus, porque no guarda o sbado!
Outros, porm diziam: Como pode fazer tais sinais um homem pecador? E diviso
havia entre eles.
17Ento, dizem ao cego novamente: que tu dizes a respeito dele, que abriu seus
olhos? Disse ele: profeta.
18Os judeus no creram a respeito do que era cego e tornou a ver, at que chamaram os
pais do que tornou a ver. 19
E perguntaram-lhes, dizendo: este o vosso filho, o qual
vs dizeis que nasceu cego? Como, pois, v agora? 20
Responderam pois, os seus pais,
28
Traduo feita modificando-se a ordem das palavras para se obter um sentido mais prximo do portugus.
Usaremos esta traduo ao longo da tese.
32
e disseram: Sabemos que este o nosso filho, e que nasceu cego; 21
Mas como v
agora, no sabemos; ou quem abriu os olhos dele ns no sabemos. Perguntai a ele,
tem idade, em defesa de si mesmo falar. 22
Essas coisas disseram os pais dele porque
temiam os judeus; pois, j tinham combinado os judeus que, se algum a Cristo se
confessasse, deveria ser excomungado da sinagoga. 23
Por isso, seus pais disseram:
tem idade, interrogai-o.
24Chamaram, pois, o homem que era cego pela segunda vez e disseram-lhe: D glria
a Deus; ns sabemos que esse homem pecador. 25
Respondeu ele: Se pecador, no
sei; uma coisa sei: que sendo cego, agora vejo. 26
Disseram-lhe, ento: Que fez a ti?
Como abriu os seus olhos? 27
Respondeu-lhes: Eu j vos disse e no ouvistes. Por
que novamente quereis ouvir? E vs quereis tornar-vos discpulos dele? 28
E
insultaram-lhe e disseram: tu s discpulo daquele; porm ns somos discpulos de
Moiss; 29
Ns sabemos que a Moiss Deus falou, porm este no sabemos donde . 30
Respondeu o homem e disse-lhes: Nisto, pois, est o maravilhoso, que vs no
sabeis donde , e abriu meus olhos. 31
Sabemos que Deus no ouve pecadores; porm,
se algum for temente a Deus e a vontade dele fizer, a este ouve. 32
Desde o princpio
no foi ouvido que algum abriu os olhos de cego nascido. 33
Se este no fosse da parte
de Deus no poderia fazer nada. 34
Responderam e disseram-no: Tu s nascido
inteiro em pecados e nos ensinas? E expulsaram-no para fora.
35Jesus ouviu que o expulsaram e encontrando-o disse: Tu crs no Filho do Homem?
36Respondeu-lhe e disse: E quem Senhor, para que eu creia nele?
37Disse-lhe
Jesus: Tu o vs a este o que fala contigo. 38
Disse: Creio, Senhor! E adorou-o.
39E Jesus disse: Para juzo eu vim a este mundo, para que os que no veem vejam, e
os que veem cegos se tornem. 40
Ouviram dentre os fariseus estas coisas os que com
ele estavam e disseram-no: Por ventura no somos tambm cegos? 41
Disse-lhes
Jesus: Se fsseis cegos no tereis pecado; agora, porm dizeis: Vemos, o vosso
pecado permanece.
33
1.2.4. Tradio Bsica (TB): Treva constatada e Cura inusitada
Na Tradio Bsica (TB) encontra-se um texto mais primitivo. Chegou-se
concluso que, o texto que hoje temos deve ser fruto de um longo e complexo processo
redacional. Tudo comeou por volta do ano 30 com relatos de Jesus narrados e interpretados
como sinais. Esta etapa a chamada pr-evanglica, que se estende desde a criao da
comunidade ao redor do testemunho do Discpulo Amado at o ingresso dos judeus
antitemplo,29
dos samaritanos, dos batistas e dos gentios. Na TB da Narrativa da Cura do
Cego de Nascena esto presentes duas cenas:
TRADIO BSICA (TB) Joo 9,1-41
9, 1-3
1E passando, viu um homem, cego de nascena.
2Seus discpulos lhe perguntaram: Mestre,
quem pecou: ele ou os seus pais para que
nascesse cego? 3Jesus respondeu: Nem ele
pecou, nem os seus pais; mas para que nele
fossem manifestas as obras de Deus.
9, 6-7
6Tendo dito isto, cuspiu na terra e fez barro com
a saliva e aplicou-o sobre os olhos. 7E disse-lhe:
Vai, lava-te na piscina de Silo (o que
interpretado Enviado). Saiu, pois e lavou-se, e
voltou vendo.
1E passando, viu um homem, cego de nascena.
2Seus
discpulos lhe perguntaram: Mestre, quem pecou: ele ou
os seus pais para que nascesse cego? 3Jesus respondeu:
Nem ele pecou nem os seus pais; mas para que nele
fossem manifestas as obras de Deus. 4Nos preciso
trabalhar as obras daquele que me enviou, enquanto
dia; vem a noite quando ningum pode trabalhar.
5Enquanto estiver no mundo, sou a luz do mundo.
6Tendo dito isto, cuspiu na terra e fez barro com a saliva
e aplicou-o sobre os olhos. 7E disse-lhe: Vai, lava-te na
piscina de Silo (o que interpretado Enviado). Saiu,
pois e lavou-se, e voltou vendo.
8Os vizinhos e os que viam-no anteriormente como
mendigo, diziam: Este no o que se sentava e que
mendigava? 9Diziam alguns: este, diziam outros:
No, mas ele semelhante. Dizia ele: sou eu. 10
Diziam-lhe, pois: Como foram abertos seus olhos,
ento? 11
Ele respondeu: O homem chamado Jesus, fez
barro, e aplicou em meus olhos, e disse-me: Vai e lava-
te em Silo. Tendo ido, pois, e me lavado tornei a ver.
12E disseram-lhe: Onde est ele? Diz: No sei.
13Conduzem o outrora cego aos fariseus.
14 Era sbado, o
29
Os Atos dos Apstolos registram uma frequncia natural dos apstolos ao Templo (At 2,46; 3,1) enquanto que
todos os evangelhos apresentam uma clara oposio a esta instituio. No QE o conflito com o Templo mais
acentuado, tanto que logo no captulo dois inicia-se com a interveno de Jesus contra ele. Nota-se uma rejeio
pelo antigo modelo de templo. Este conflito mostra o quanto havia diferenas entre os cristos da comunidade
joanina e os judeus ainda apegados antiga aliana, simbolizada no Templo.
34
dia em que Jesus fez barro e abriu-lhe os olhos.
15Novamente, os fariseus perguntaram-lhe tambm como
tornou a ver. E disse-lhes: Ps Barro sobre os olhos e
me lavei e vejo. 16
Diziam, pois alguns dos fariseus:
Este homem no vem da parte de Deus, porque no
guarda o sbado! Outros, porm diziam: Como pode
fazer tais sinais um homem pecador? E diviso havia
entre eles.
17Ento, dizem ao cego novamente: que tu dizes a
respeito dele, que abriu seus olhos? Disse ele:
profeta.
18Os judeus no creram a respeito do que era cego e
tornou a ver at que chamaram os pais do que tornou a
ver. 19
E perguntaram-lhes, dizendo: este o vosso filho,
o qual vs dizeis que nasceu cego? Como, pois, v
agora? 20
Responderam pois, os seus pais, e disseram:
Sabemos que este o nosso filho, e que nasceu cego;
21Mas como v agora, no sabemos; ou quem abriu os
olhos dele ns no sabemos. Perguntai a ele, tem idade,
em defesa de si mesmo falar. 22
Essas coisas disseram
os pais dele porque temiam os judeus; pois j tinham
combinado os judeus que, se algum a Cristo se
confessasse, deveria ser excomungado da sinagoga. 23
Por
isso, seus pais disseram: tem idade, interrogai-o.
24Chamaram, pois, o homem que era cego pela segunda
vez e disseram-lhe: D glria a Deus; ns sabemos que
esse homem pecador. 25
Respondeu ele: Se pecador,
no sei; uma coisa sei: que sendo cego, agora vejo.
26Disseram-lhe, ento: Que fez a ti? Como abriu os seus
olhos? 27
Respondeu-lhes: Eu j vos disse e no
ouvistes. Por que novamente quereis ouvir? E vs
quereis tornar-vos discpulos dele? 28
E insultaram-lhe e
disseram: tu s discpulo daquele; porm ns somos
discpulos de Moiss; 29
Ns sabemos que a Moiss Deus
falou, porm este no sabemos donde . 30Respondeu o
homem e disse-lhes: Nisto, pois, est o maravilhoso,
que vs no sabeis donde , e abriu meus olhos.
31Sabemos que Deus no ouve pecadores; porm, se
algum for temente a Deus e a vontade dele fizer, a este
ouve. 32
Desde o princpio no foi ouvido que algum
35
abriu os olhos de cego nascido. 33
Se este no fosse da
parte de Deus no poderia fazer nada. 34
Responderam e
disseram-no: Tu s nascido inteiro em pecados e nos
ensinas? E expulsaram-no para fora.
35Jesus ouviu que o expulsaram e encontrando-o disse:
Tu crs no Filho do Homem? 36
Respondeu-lhe e disse:
E quem Senhor, para que eu creia nele? 37
Disse-lhe
Jesus: Tu o vs a este o que fala contigo. 38
Disse:
Creio, Senhor! E adorou-o.
39E Jesus disse: Para juzo eu vim a este mundo, para
que os que no veem vejam, e os que veem cegos se
tornem. 40
Ouviram dentre os fariseus estas coisas os que
com ele estavam e disseram-no: Por ventura no somos
tambm cegos? 41
Disse-lhes Jesus: Se fsseis cegos
no tereis pecado; agora, porm dizeis: Vemos, o vosso
pecado permanece.
36
1.2.4.1. Primeira Cena da TB: Trevas e luz (9, 1-3)
1E passando, viu um homem, cego de nascena.
2Seus discpulos lhe
perguntaram: Mestre, quem pecou: ele ou os seus pais para que nascesse
cego? 3Jesus respondeu: Nem ele pecou nem os seus pais; mas para que nele
fossem manifestas as obras de Deus.
Na primeira cena da TB aparecem trs personagens: Jesus, o cego de nascena e os
discpulos. Inicia-se com a frase Kai. para,gwn (e passando). Esta expresso tpica dos
relatos de vocao em narrativas de milagres nos EvS (Mc 1,16; Mc 2,14; Mt 9,9; Mt 9,27;
Mt 20,30). Significa que a frmula no nova, ou seja, poderia ser conhecida na tradio pr-
joanina. Em quase toda a literatura do Novo Testamento a partcula kai, marca o incio da
narrativa, ligando-a a narrativa anterior. No temos nenhuma referncia a lugar ou a tempo,
no temos prembulos, mas possivelmente o episdio se inscreve no prolongamento da Festa
das Tendas, como sugere a conjuno kai, (e) no incio do relato. Ele s ser datado no
versculo 14: Era sbado.
O sujeito est oculto, apenas passando. S descobriremos de quem se trata no
versculo 2, quando os maqhtai, (discpulos)30 que tambm estavam sumidos desde o final
do captulo 6 mais o pronome genitivo auvtou/, confirmam um sujeito masculino singular no
perodo anterior e o chamam de r`abbi,,31 comumente traduzido como mestre. Este um
ttulo honorfico que, na literatura rabnica, foi destinado aos grandes conhecedores das
tradies judaicas (rabinos ou doutores da lei). Em sua aparncia externa, Jesus apresenta
certa semelhana com os escribas: ensina tendo ao seu redor um crculo de discpulos; disputa
acerca da interpretao da lei; abordado para decises jurdicas; prega em cultos na
sinagoga; interpelado como r`abbi,.32
30
No clara a identidade dos discpulos: se so os doze, os da Judia (Jo 7,3) ou ainda, outros. 31
O vocativo r`abbi um semitismo, no sendo encontrado na LXX. Pode ser derivado da raiz hebraica rb relacionada com quantidade (grande, muito), mas tambm pode significar liderana (chefe, mestre, senhor,
maioral). Cf. Frederich W. DANKER. A Greek-English lexicon of the New Testament and other early Christian
literature. 3 ed. Chicago/Londres: The University of Chicago Press, 2000, p. 902. 32
No tempo de Jesus, o processo de formao para escriba seguia normas exatas. Quem desejasse tornar-se um
rabi comeava a viver a partir de sete a dez anos na companhia de um erudito. Na qualidade de seu discpulo,
assistia-lhe s aulas e o observava no exerccio de sua profisso e na execuo prtica dos preceitos. Quando o
discpulo dominava o conjunto da tradio e conseguia a aplic-la, era ordenado e recebia um cargo. Quanto a
Jesus, porm, no se pode afirmar que tenha passado por esse processo de formao. Quando, pois, chamado
de rabi, no se trata do ttulo de telogo, pois tanto rabi como meu senhor eram de uso recorrente no
sculo I d.C. como interpelao respeitosa (cf. Mt 23,8). Mais sobre este assunto, Joachim JEREMIAS. Teologia
do Novo Testamento. 2 ed. So Paulo: Teolgica, 2004, p. 134.
37
O verbo ei=den (viu)33 mostra que, ao sair do Templo, o olhar de Jesus recai sobre um
homem que imediatamente percebido como tuflo.n34 evk geneth/j35 (cego de nascena). A
tradio judaica relegava os cegos e os aleijados para a porta do Templo; no podiam entrar. E
para que isto fosse justificado, citava-se at a palavra irnica de Davi sobre os cegos e
aleijados: Quanto aos aleijados e aos cegos, eles desgostam Davi. por isso que se diz:
Aleijados e cegos no entraro na casa (2Sm 5,8). Dado que ao nvel do senso comum tal
percepo inverossmil, vivel supor que o autor tenha pretendido desde o primeiro
instante estabelecer uma contraposio entre o ver de Jesus e um no-ver do homem que era
cego de nascena.36
O adjetivo acusativo substantivado tuflo.n (cego) ser quase sempre empregado como
deficincia visual no seu sentindo estrito. Somente em 9,39-41 ter um sentido explicitamente
figurado. Segundo a mentalidade judaica da poca, a cegueira era castigo de Deus como
consequncia do pecado:
Por isto o julgamento reto est longe de ns; a justia no est ao nosso alcance.
Espervamos a luz, e o que veio foram trevas; a claridade, e, no entanto,
caminhamos na escurido. Como cegos que andam a apalpar um muro, sim, como os
que no tm olhos, andamos s apalpadelas. Tropeamos ao meio-dia como se fosse
ao crepsculo; somos como mortos entre pessoas sadias (Is 59,9-10).
Os discpulos perguntam a Jesus quem so os responsveis pela cegueira daquele
homem: o prprio cego ou os pais dele? Relembrando o livro de J, no tempo de Jesus,
todavia, estava em vigor a antiga ideia de que entre pecado e enfermidade havia uma relao
direta, como indica esta pergunta e outra parecida, em Lc 13,2: Acrediteis que, por terem
sofrido tal sorte, esses galileus eram mais pecadores do que todos os outros galileus? Se um
adulto caa doente, a culpa era sua. Maior dificuldade apresentava o caso de uma criana que
nascia aleijada. Em Ex 20,5 est o princpio desta ideia: Eu Iahweh teu Deus, sou um Deus
ciumento, que puno a iniquidade dos pais sobre os filhos at a terceira gerao e a quarta
gerao dos que me odeiam. Alguns rabinos afirmavam que o pecado dos pais no s podia
33
Indicativo aoristo ativo de ovra,w: ver, observar, perceber, sentir, constatar, notar a presena de algo ou algum pelo olhar, reparar em, identificar. Cf. DANKER, A Greek-English lexicon, pp. 719-720. 34
Adjetivo normal acusativo masculino singular: cego. Cf. DANKER, A Greek-English lexicon, p. 193. 35
Segundo R. E. Brown, a expresso evkgeneth/j uma expresso grega mais prxima da literatura helenstica (h, de fato, duas ocorrncias na LXX), enquanto a expresso semtica normal seria evk koili,ajmhtroj (desde o ventre da me). Veja Mt 19,12; At 3,2; BROWN, El Evangelio segn Juan, vol. I, p. 614. 36
Segundo Bruce MALINA e Robert ROUHBAUGH, no imaginrio da Antiguidade, a escurido, tanto quanto a
luz, era algo concreto e material. Olhos cegos eram considerados portadores e difusores de escurido (cf. Mt
6,22-23). Veja: Social-science commentary on the Gospel of John. Minneapolis: Fortress Press, 1998, p. 170.
38
deixar sequelas nos filhos, como as crianas podiam pecar ainda no seio materno.37
A
individualizao da culpa e da punio est refletida em Jeremias (31,29-30) e Ezequiel (18,1-
4), na chamada teologia da retribuio, que garantia descendncia, vida longa e perdo dos
pecados.38
Pode-se observar, que tanto na pergunta dos discpulos quanto na resposta de Jesus h
uma repetio de ou-toj h[marten e gonei/j auvtou, formando um paralelismo antittico
simples:39
quem pecou, este ou os pais dele nem este pecou nem os pais dele
Porm, no se deve nos esquecer das conjunes avllV i[na,,,,, (para qu)40 que
contrapem os segundos termos e acabam, assim, por garantir um efeito estilstico em ambos
os perodos. Segundo R. Brown,41
o segundo i[na final, enquanto J. Mateos e J. Barreto42
acreditam que esse i[na seja consecutivo e no final. Consequncia ou finalidade? O uso
conjunto de ou;te e avllV fazem com que haja uma inverso da pergunta para a resposta. Ao
considerar esta hiptese positiva, possvel visualizar um quiasmo (a-b-b-a) implcito na
anttese e compreender mais claramente as relaes intratextuais:
Quem pecou?
para que cego nascesse? Ele nasceu cego para que fosse manifesta as obras de Deus nele
37
Cf. BROWN, El Evangelio segn Juan, vol. I, p. 614. 38
Cf. Lilia Ladeira VERAS. Colet: contestador ou construtor de uma nova sabedoria? So Bernardo do
Campo: Universidade Metodista de So Paulo, ano 2005 (Tese de Doutorado). 39
Acontece quando uma linha exprime a mesma ideia da primeira, mas de uma maneira negativa ou em termos
de contraste. 40
Para qu. Esta expresso tipicamente joanina e aparece em 1,8.31; 3,17; 11,52; 12,9.47; 13,18; 14,31;
15,25. 41
Cf. BROWN, El Evangelio segn Juan, vol. I, p. 614. 42
Cf. Juan MATEOS e Juan BARRETO. O Evangelho segundo So Joo: anlise lingstica e comentrio
exegtico. So Paulo: Paulus, 1999, p. 422.
39
O segundo termo do segundo perodo uma orao subordinada consecutiva; indica
uma ao cuja causa est apontada na orao principal pelo verbo h[marten (pecar).43 . J o
segundo termo do quarto perodo, alm de ser uma orao coordenada adversativa (o que
coloca em oposio orao anterior), contm uma orao principal oculta (que pela lgica
do quiasmo deve ser tomada da orao subordinada do perodo anterior) e uma orao
subordinada final. Assim, percebe-se que a verdadeira oposio da estrutura quistica desta
anttese sustentada pela partcula i[na, que permite levar o mesmo fato a duas interpretaes
possveis: o que uns veem como consequncia (indesejada) do pecado (treva), Jesus v como
uma oportunidade (desejvel) para a manifestao da luz. De sinal de pecado transforma-se
em sinal e ocasio de salvao, lugar de manifestao das obras de Deus: nas trevas
resplandece a luz. Jesus se interessa pelo para qu do sinal e no pelo porqu da enfermidade.
Ao responder: Nem ele pecou nem os pais dele, tornando v a hiptese dos
discpulos, Jesus rejeita a casustica hebraica e a mentalidade daqueles que ligam a doena a
um determinado pecado, e d ao encontro com o cego de nascena um valor salvfico: entende
manifestar o agir de Deus nesse homem. No subjuntivo aoristo passivo temos as formas
verbais gennhqh/ (gerar)44 e fanerwqh/ (tornar conhecido)45 que introduzem a ideia de que a
manifestao de Deus j estava consumada no presente dos interlocutores. Dito de outro
modo, a manifestao dos trabalhos de Deus j estava contida na prpria existncia daquele
homem cego (evn auvtw46) e no se referia seno secundariamente ao ato taumatrgico que
Jesus estava por realizar.
1.2.4.2. Segunda Cena da TB: Cura fsica (9,6-7)
6Tendo dito isto, cuspiu na terra e fez barro com a saliva e aplicou-o sobre os
olhos. 7E disse-lhe: Vai, lava-te na piscina de Silo (o que interpretado
Enviado). Saiu, pois e lavou-se, e voltou vendo.
Na segunda cena acontece o sinal propriamente dito: Jesus cura o cego. Inicia-se com
tau/ta eivpw.n (tendo dito isto), uma expresso que aparece mais 9 vezes ao longo do QE (7,9;
11,28.43; 13,21; 18,1.38; 20,14.20.22). Tambm encontramos neste perodo uma sequncia
43
Verbo indicativo aoristo ativo, 3 pessoa do singular de avmarta,nw: errar, pecar, falhar. Cf. DANKER, A Greek-English lexicon, pp. 49-50. 44
Verbo subjuntivo aoristo passivo, 3 pessoa singular de genna,w: gerar, dar a luz. Cf. DANKER, A Greek-English lexicon, p. 193. 45
Verbo subjuntivo aoristo passivo, 3 pessoa singular de fanero,w: tornar conhecido, claro, visvel, real. Cf. DANKER, A Greek-English lexicon, p. 1048. 46
No texto um dativo locativo.
40
de oraes coordenadas (polissndeto47
), com verbos no tempo narrativo indicativo aoristo,
iniciados pela partcula kai.: kai. evpoi,hsen (e fez),48 kai. evpe,crisen (e aplicou),49 kai. ei=pen (e
disse),50 kai. evni,yato (e lavou-se),51 e kai. h=lqen (e veio)52.
Jesus passa ao: cospe no cho e faz barro com sua saliva53
sem nenhuma consulta ao
interessado, porque este, sendo cego de nascimento, no sabia o que era luz para poder desej-
la ou no. Encontramos nos EvS algumas curas de cego: Cura do cego Bartimeu, que estava
sentado e pedia esmola perto de Jeric quando Jesus ia a caminho de Jerusalm (Mc 10,46-52;
Lc 18,35-43; Mt 20,29-34 [2 cegos]); Cura de dois cegos na Galilia (Mt 9,27-31; Cura de um
cego e mudo na Galilia (Mt 12,22-23). No Evangelho de Marcos (8,22-26) encontramos
ainda outra cura de cego com uso do cuspe, porm ao cuspe que aparece no evangelho de
Marcos, o narrador do QE acrescenta o p da terra (camai) para fazer o barro (phlo.n54). J.
Crossan considera os dois textos como verses independentes da mesma fonte, principalmente
por causa da conjuno dos elementos cegueira e cuspe.55
Por sua vez, M. Smith cita o cuspe
como um exemplo de como o relato dos milagres nos Evangelhos conserva vrios traos de
rituais mgicos.56
Na frase kai. evpe,crisen auvtou/ to.n phlo.n evpi. tou.j ovfqalmou.j (e aplicou dele o barro
nos olhos), o possessivo auvtou/ s pode determinar to.n phlo.n) Entre o possessivo e o
substantivo a que determina poder-se-ia intercalar um verbo como, por exemplo, ocorre em
11,21: ouvk a'n avpe,qanen o` avdelfo,j mou (no teria morrido o irmo meu57). Ou seja, o
pronome possessivo auvtou/ em 9,6 se refere a Jesus e no aos olhos do cego. Parece querer
insistir que o barro de Jesus, porque o fez ele mesmo com