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QUATRO CAMINHOS E UM MEIO PARA A PAIDEIA POÉTICA Maria Beatriz Albernaz Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro, Brasil Resumo: Trata-se de um ensaio que parte de quatro conceitos fundamentais na educação (paideia, cultura, formação e metamorfose/iniciação) e de um meio ou de uma visão pedagógica do olhar, pela leitura da poética de Clarice Lispector, em três dos seus romances (“Uma aprendizagem ou O livro dos Prazeres”, “A maçã no escuro” e “A cidade sitiada”). As referências a proposições de Heidegger sobre a necessidade de superação da metafísica se dão no sentido de consolidar a relação do pensamento poético com a noção de physis na busca por um modo de ser na polis com a possibilidade de reunir aprender e ser, sentir e pensar. Ao final, inclui-se uma série de poemas que retomam aqueles quatro conceitos e um meio na tentativa de concretizá-los por imagens e figuras colhidas nos romances de Lispector. Palavras-chave: Paideia poética, cultura, formação, metamorfose e iniciação, experiência pedagógica, olhar, Clarice Lispector Abstract: This is an essay that departs from four fundamental concepts in education (paideia, culture, formation and metamorphosis/initiation) and of a mode or of a pedagogical approach, by the poetic reading of three Clarice Lispector novels ("An Apprenticeship: or, the book of delights", "The apple in the dark" and "The situated city'). Reference to Heidegger's propositions on the need to overcome metaphysics are given to consolidate the relationship of poetical thinking and the notion of physis in the search of a way of being in the polis with the ability to join learning to being, feeling and thinking. At the end, a series of poems which take those four concepts in an attempt to achieve them through images and metaphors collected from Lispector novels referred to above. Key words: Poetic paideia, culture, formation, metamorphosis and initiation, pedagogical experience, look, Clarice Lispector QUATRO CAMINHOS E UM MEIO PARA A PAIDEIA POÉTICA Na paideia poética, destacam-se cinco modos de conhecer, em que o ser humano se coloca como destinação da qual não se pode fugir. Na realidade, são quatro modos e um meio. O último talvez seja a síntese dos anteriores que, mesmo podendo ser pensados em termos específicos com relação ao momento histórico e local em que aconteceram, não correspondem a uma cronologia, nem se circunscrevem a períodos datáveis. O último “meio modo” de conhecer é uma síntese, não a negação dos anteriores ou a criação de algo do qual os quatro modos não participem. Apreender, pensar, refletir, compreender, entender, formular, conjecturar... o rol de palavras associadas à aprendizagem é imensa. Nem sempre em escolas, a aprendizagem é parte de um projeto maior de inserção das pessoas no mundo, muitas

Maria Beatriz Albernaz Instituto Superior de Educação do ... · livro dos Prazeres”, “A maçã no escuro” e “A cidade sitiada”). As referências a proposições de

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QUATRO CAMINHOS E UM MEIO PARA A PAIDEIA POÉTICA

Maria Beatriz AlbernazInstituto Superior de Educação do Rio de Janeiro, Brasil

Resumo:Trata-se de um ensaio que parte de quatro conceitos fundamentais na educação (paideia, cultura,formação e metamorfose/iniciação) e de um meio ou de uma visão pedagógica do olhar, pelaleitura da poética de Clarice Lispector, em três dos seus romances (“Uma aprendizagem ou Olivro dos Prazeres”, “A maçã no escuro” e “A cidade sitiada”). As referências a proposições deHeidegger sobre a necessidade de superação da metafísica se dão no sentido de consolidar arelação do pensamento poético com a noção de physis na busca por um modo de ser na poliscom a possibilidade de reunir aprender e ser, sentir e pensar. Ao final, inclui-se uma série depoemas que retomam aqueles quatro conceitos e um meio na tentativa de concretizá-los porimagens e figuras colhidas nos romances de Lispector.

Palavras-chave:Paideia poética, cultura, formação, metamorfose e iniciação, experiência pedagógica, olhar,Clarice Lispector

Abstract:This is an essay that departs from four fundamental concepts in education (paideia, culture,formation and metamorphosis/initiation) and of a mode or of a pedagogical approach, by thepoetic reading of three Clarice Lispector novels ("An Apprenticeship: or, the book of delights","The apple in the dark" and "The situated city'). Reference to Heidegger's propositions on theneed to overcome metaphysics are given to consolidate the relationship of poetical thinking andthe notion of physis in the search of a way of being in the polis with the ability to join learningto being, feeling and thinking. At the end, a series of poems which take those four concepts inan attempt to achieve them through images and metaphors collected from Lispector novelsreferred to above.

Key words:Poetic paideia, culture, formation, metamorphosis and initiation, pedagogical experience, look,Clarice Lispector

QUATRO CAMINHOS E UM MEIO PARA A PAIDEIA POÉTICA

Na paideia poética, destacam-se cinco modos de conhecer, em que o ser humano

se coloca como destinação da qual não se pode fugir. Na realidade, são quatro modos e

um meio. O último talvez seja a síntese dos anteriores que, mesmo podendo ser

pensados em termos específicos com relação ao momento histórico e local em que

aconteceram, não correspondem a uma cronologia, nem se circunscrevem a períodos

datáveis. O último “meio modo” de conhecer é uma síntese, não a negação dos

anteriores ou a criação de algo do qual os quatro modos não participem.

Apreender, pensar, refletir, compreender, entender, formular, conjecturar... o rol

de palavras associadas à aprendizagem é imensa. Nem sempre em escolas, a

aprendizagem é parte de um projeto maior de inserção das pessoas no mundo, muitas

vezes confundido com a aquisição de atitudes e instrumentos conquistadores de poder.

A simples contraposição a esse equívoco reducionista incorre no erro de, polemizando,

esquadrinhar o pensamento na procura de argumentos invencíveis e, assim, perder de

vista a poesia como lugar a habitar.

Pela abertura, empenho e disposição, incorporam-se mudanças, necessidades e

alívios. Com simplicidade, reconhece-se a alegria e percebem-se sofrimentos,

independentes ambos de preceitos ordenadores. Perder, sem colocar tudo a perder: é

essa a proposta nesse ensaio de aproximação a quatro modos de aprender poeticamente

e um meio de se acercar do tudo que é possível ser.

1. Paideia

Paideia é a palavra grega para designar um percurso de formação educativa,

através do qual determinados habitantes tornavam-se cidadãos. Diferentemente do que

existe hoje, a palavra “Paideia” reúne as ideias de educação e de cultura num só projeto

em que participam todas as áreas de saber da pólis, sem hierarquia. Todas deveriam

convergir para a Paideia. Werner Jaeger1 disseminou essa concepção de Paideia pela sua

obra enciclopédica que analisa as diferentes contribuições da literatura (lírica, trágica e

épica), da política, da filosofia, da medicina e da legislação para a concretização de um

ideal de formação da civilização grega. Quando se fala em paideia, Jaegger é referência

obrigatória. Foi ele quem indicou uma trajetória da Paideia grega como acordo em torno

de normas; como projeto do homem político unido ao do homem heroico; como sentido

histórico enquanto realização de um destino vital; e como presença constante dessas

diretrizes em todas as ações formativas.

Fundamental nessa trajetória foi a capacidade dos gregos reunirem as duas

predestinações humanas em uma só: a um tempo, sendo-se distinto e destinado. Esse

princípio da Paideia pode ser traduzido pelo termo areté. Nesse atributo que o homem

esforçava-se para expressar de maneira cada vez mais inequívoca ao longo da sua vida

residiu um conjunto de qualidades morais, espirituais e físicas. O homem que possuía

areté era dotado de uma imagem difusa da virtude, e estava predestinado a ser regido

por deveres. Enquanto predestinado, esse homem não tinha de procurar adquirir

determinadas noções. Sua educação acontecia, portanto, no sentido de cultivar seu

1 JAEGER, W. Paideia - A formação do homem grego. Trad. Artur M. Parreira, São Paulo, Martins Fontes, 1995.

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sentimento de dever para com areté. Educação seria então a conquista do que já existe;

envergadura das virtudes naturais. Os jogos de guerra, olímpicos, amorosos, florais ou

fúnebres constituíram a arena por excelência na qual se conquistava areté.

Quando a figura do herói aristocrático educado pela ideia de areté2 começou a

fazer parte do passado e da mitologia recontada aos cidadãos – que as ouviam com

respeito, mas também com distanciamento –, firmou-se a noção de Paideia difundida

pela ação dos sofistas na pólis. Essa Paideia, voltada para a educação com vistas à ação

individual no Estado, refletia a separação entre natureza e ética, público e privado; e

propunha ainda o “ensino” da sabedoria, isto é, a técnica para a transmissão de saberes

científicos, matemáticos, poéticos, musicais, gramaticais, retóricos e dialéticos.

Mas o que significa a retomada da ideia de Paideia neste ensaio? A necessidade

de – na invenção de uma Paideia poética – reconhecer o caráter multidimensional da

educação e a circularidade dos saberes (ausência de hierarquia); entender educação

como cultura; e, principalmente, possibilitar a dinamização tanto de Paideia quanto de

poética, considerando que, na contagem do tempo – aspecto cultural de um povo –,

atribui-se singularidade a momentos da existência, pela determinação de lugares

específicos onde passar tais momentos e pela prática ritualística que busca a sua

repetição.

Leo Frobenius3 descreveu o sentido paideumático da existência – quando se

reúne o destino existencial da pessoa em particular (distinção) com o da pessoa em

comunidade (destinação) – como possibilidade de ser humano no mundo. Nessa

convergência, também expressa pela reunião de sensibilidade e racionalidade, a

paideuma se dá nessa convergência.

A experiência da razão permite tanto a presença na vida tumultuosa da rua

quanto o distanciamento nos ambientes, com a sua identificação com épocas

2 Tal qual a epopeia de Aquiles contada por Homero na “Ilíada”.3 Leo Frobenius (1873-1938) foi um estudioso alemão dos mitos, um etnógrafo-filósofo que em fins do século XIX e princípio dos XX, buscou contribuições da cultura africana para pôr em cheque a hegemonia da racionalidade como via exclusiva do pensamento. A obra a que fazemos referência aqui é “Paideuma”, no qual ele visualiza a cultura como um ser vivo. À parte a questão própria da época, de adesão a uma visão orgânica da realidade, tomando o corpo humano como modelo, esse livro permanece instigante no que tange à aproximação da questão cultural aos modos de ser da humanidade. Dessa forma,ele eleva mitos e rituais, de manifestações representativas de diferentes níveis evolutivos de compreensão da realidade, a modos da linguagem humana poder dizer o eterno, em sua perplexidade. Sem paideuma, sem essa incorporação da cultura, que vai muito além de meios racionais de expressão e obviamente muito além da aquisição ou da repetição mecânica para a reprodução de manifestações, o homem “envelhece” e se torna mudo diante de questões essenciais para que ele possa permanecer um ser vivo, desperto pela sua pequenez diante da grandiosidade do inexplicável. Cf. FROBENIUS, L. La cultura como ser viviente. Trad. Máximo José Kahn. Madri, Espasa-Calpe, 1934.

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longínquas. Razão é experiência do pensamento no tempo, em que se vê e diz o futuro,

no reconhecimento de um passado no presente; implica deslocamento no tempo. Pela

sensibilidade figura-se, na rua ou em lugares distanciados, a aspiração selvagem, os

sentidos abertos para o sangue nos caminhos; possibilita que a vida passe a circular

quente por os espaços que parecem inertes. Sensibilidade é a experiência de

ressurgimento do espaço como lugar pulsante. Mas, enfim, uma e outra são formas

esquecidas dos nossos usos atuais da razão e do sentir.

A identificação de Razão como uso exclusivo da inteligência lógica certamente

reduz aquela concepção poética. Razão não é uma expressão da competência retórica.

Quem já passou por uma rua tumultuosa e pôde abraçar sua história com o pensamento,

solidarizando-se com a sua destinação, sem estagná-la, nem recusando o que ela é, sabe

que razão exige mobilidade do pensamento; sua fluidez para deslocar-se no tempo.

Quem sentiu, o sangue subir à cabeça, não apenas em momentos de raiva, mas em

momentos de desobstrução do velho e de geração de novos lugares de ser, sabe que

sensibilidade é mais do que simplesmente sentimento ou vivência natural dos sentidos,

mas experiência dos lugares em sua transformação constante. A visão de razão e de

sensibilidade, com essa abrangência, sempre esteve na raiz da paideia, poeticamente,

ultrapassando lógica, retórica e contemplação subjetiva.4

Em realidade, a visão abrangente e convergente desses termos também está

presente na tradição ocidental. Remonta à experiência de pensamento dos gregos, em

período pós-homérico (cerca de 850 a.C.) e pré-socrático (cerca de 450 a.C.). Heráclito

é um proeminente pensador dessa época intermediária entre a vigência da paideia

poética e da paideia platônica. Em alguns dos seus remanescentes fragmentos, ele trata

do logos, que vem a ser a raiz do que hoje chamamos “razão”. A apreensão pelo

pensamento ou simplesmente o logos então considerado extrapolava em muito o uso da

nossa capacidade racional tal como hoje a compreendemos. O caminho do pensador

enquanto alguém que fala aquilo que aparece, aquilo que se produz e se estende diante

de nós para que esse se mostre a partir de si mesmo, acabou se reduzindo à concepção

atual do pensador como alguém que dá a medida para o fazer e o não fazer. A cuidadosa

reflexão desses fragmentos feita por Heidegger nos mostra que a origem da palavra

4 Assim como reconhecemos, na tradição ocidental, a areté, a paideia sofística e a paideia filosóficaconsolidada pela escola platônica, nela também persiste a vertente educadora de Homero e outros poetas.

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légein em grego como “pousar” indica uma percepção mais rica da linguagem e do

pensamento humano. Um pensador “todo ouvidos” não pensa-sobre mas faz parte do

que lhe é inspirado; não “faz uso” do que seus sentidos lhe anunciam. Ele “pousa” ou

estende-diante uma coisa junto da outra – coisas que se afastam ou se opõem – e as

reúne, sustentando-as em sua singularidade.

Consideremos pois o que diz Heidegger sobre o logos enquanto o que escuta e

diz “a presença do presente”.5 Postado na “tempestade do ser”, o pensador deixa que as

coisas se produzam e durem no desvelamento, mas, com seu pensamento, não pretende

fazer presente o desvelado e sim deixar que se ilumine o velado. O pensador nomeia o

esquecido. E não vê o verdadeiro na multiplicidade do sempre novo, mas na

simplicidade dessa clarificação. O pensador pensa em direção da clarificação. No fogo

da sua meditação, ele traz o espaço livre onde todas as coisas, particularmente as

opostas, chegam a manifestar-se. Pensamento vem a ser presença do presente;

nomeação do esquecido; e condução para o espaço livre.

Quanto ao pensamento da sensibilidade, procuramos também o amparo daquela

mesma reflexão heideggeriana sobre as sentenças de Heráclito. E acatamos a

advertência quanto à superficialidade de se pensar physis (ser-manifestando-se) apenas

como emergir. Physis é o nome que está na raiz do que aqui antes chamamos

“sensibilidade”. No entanto, essa emersão se dá desde o velamento. É possível que

justamente onde se nomeia algo como concreto, queira se pensar no que é considerado

abstrato. Pode ser justamente que, para não imergir no velamento, esse mesmo velar-se

esteja em constante emersão. Sensibilidade, portanto, vai bem além do que sentem os

sentidos, assim como falar é mais do que emitir sons. Tomemos também aqui o

acontecimento da clarificação (enquanto meditação e recolhimento que conduz para o

espaço livre) como o próprio “fogo do mundo”, que se nos dá à visão ao mesmo tempo

e num mesmo lugar a coisa que emerge e o seu mistério incognoscível.

A retórica seria assim uma fagulha desse fogo imenso, uma fagulha do

pensamento identificada com o uso sofístico da língua, e que se tornou a técnica de

persuasão por excelência. Até hoje, na relação de cunho educador, ela tem entrada

ambígua. Ao mesmo tempo que serve para “vestir” os ensinamentos com uma capa

5 Cf. HEIDEGGER, M. “Logos”. Introdução a Heráclito de Éfeso. In: Pré-Socráticos. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Col. Os pensadores), pp. 123 e 133.

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mais agradável, em termos linguísticos, a retórica é rejeitada como “afetação”. Nessa

ambiguidade, resulta um ensino que confronta a “secura” e a “aridez” da verdade

científica com o agradável, mas falso ou acessório, do retórico. Nesse caso, o conteúdo

científico do ensino residiria na explicação racional dos fenômenos, e o resto seria

enfeite para trazer alguma emoção ao conteúdo de fato. Trata-se novamente da

dissociação entre o sensível e o inteligível; mais uma transfiguração da separação entre

o corpóreo (expresso pela beleza) e o espiritual (expresso pela sabedoria). Grassi,6 que

fez um livro cujo próprio subtítulo advoga em defesa da retórica, como uma atividade

de reunião entre ação, enquanto areté, e fala, enquanto aletheia.7 O desaparecimento

desses fundamentos tiveram implicações pedagógicas, apenas indicadas resumidamente

como predomínio da razão; da divisão forma e conteúdo; e da não-historicidade do

saber. Tais implicações descartam o pensamento em direção à clarificação,

privilegiando no conhecimento a sua adequação à metodologia científica.

Nesse ponto, volta-se enriquecido para pensar poeticamente a paideia, a fim de

barrar concepções reducionistas que alienam a poesia do processo do pensamento e da

sua necessidade de configurar o conhecimento. A poesia originária tem relação com o

arcaico, assim como a paideia não pode dispensar o valor educativo da areté – que,

inspirada no sagrado, potencializa virtudes, cuja realização acontece no fazer humano.

Diz Jaeger que Homero-educador foi o responsável pela narração dos laços entre o

humano e o divino, e – por sua interpretação e criação da tradição – mostrou aos gregos

a importância das divindades em suas vidas como interposição à banalidade do

cotidiano.8

Depois da perda do rigor da poiesis pelo predomínio da retórica, Platão buscou a

restauração espiritual do homem grego através de um novo critério de verdade. Em sua

paideia, estabelecida sobre patamares morais da verdade, em detrimento do prazer

sensível, considerado portador de ilusão, a cidade só poderia ser bem governada com o

afastamento dos poetas, vistos como retóricos esvaziados de sentido. Pela paideia

6 Cf. GRASSI, E. Poder da imagem, impotência da palavra racional: em defesa da retórica. Trad.Henriqueta Ehlers, Rubens Siqueira Bianchi. São Paulo, Duas Cidades, 1978.7 No texto citado anteriormente, Heidegger discorre sobre a aletheia, enquanto o próprio movimento develar e desvelar das coisas a ser recolhido pelo logos. Em latim, aletheia se tornou veritas e, com amodernidade, se reduziu a uma mera adequação dos fatos à subjetividade dos homens.8 Cf. JAEGER, 1995, cf. pp.68, 73 e 79.

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platônica, concebeu-se a cidade como um lugar de objetivação da natureza e

subjetivação do ser humano; a cultura como um conjunto de atividades; e a política

como um produto realizado na medida idealizada por governantes e governados. Com

isso, assim como os poetas, a solidão por exemplo também foi proscrita da cidade. Ser

só é ser marginal na cidade.

A religião, enquanto instituição de poder, alija o saber do espírito. Pela

necessidade de enobrecer coisas belas, as pessoas continuam a frequentá-la, mas com

esse gesto não se obtém nenhum poder especial na pólis. Funda-se, porém, uma nova

tradição que constituirá a areté de construtores da metrópole. Os símbolos da virtude

permanecem como armas para os novos escudos da modernidade, mas adquiriram um

valor de troca, são retóricos, úteis.

Pensemos pólis como mundo. O caminho que leva à compreensão da

uniformidade característica da época atual e de como ela se relaciona à hegemonia do

uso abusivo das coisas possibilita a visão esclarecedora das ações humanas voltadas

exclusivamente para assegurarem o ordenamento dessas coisas. A realidade precisa

assim se encaixar a um cálculo planificador, pois de acordo com Heidegger, “um

homem sem uni-forme dá hoje a impressão de irrealidade, de um corpo estranho ao

real”.9

Recordar, mesmo sem se reconhecer na revelação. Conhecer, mesmo que

indiretamente, do mesmo modo que uma planta “sente” se a ferem na raiz. O sentido se

cria. O destino é terrestre. Voltemo-nos à ilusão ou à imitação, ambas consideradas

indignas da pedagogia política mas talvez palpitantes de uma verdade que transcende os

desígnios potentosos da pólis. Pois a verdade é insistente e sub-reptícia, tal como é

mencionada em “A maçã no escuro”, de Clarice Lispector:

Todos sabiam a verdade. E mesmo que a ignorassem, o rosto daspessoas sabia. Aliás, todo mundo sabe tudo. E uma ou outra vez,alguém redescobre a pólvora, e o coração bate. A gente se atrapalha équando quer falar, mas todo mundo sabe tudo.10

Poeticamente, a paideia poética se debruça sobre a “obra atrapalhada da gente”

que quer falar a verdade, sobre a interpretação, mesmo que só a “redescobrir a pólvora”

9 HEIDEGGER, M. “A superação da metafísica”. In: Ensaios e conferências. Trad. Márcia Sá CavalcanteSchuback, Petrópolis, Vozes, 2002, p.84.10 LISPECTOR, C. A maçã no escuro, Rio de Janeiro: José Alvaro Editor, 1970., p.234.

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mas que faz o coração bater. Pelo jogo entre o saber e a ignorância, cuja tensão não se

resolve pela força, a pedagogia poética se debruça sobre a ética que se estende à

estética. Talvez seja justamente no reconhecimento de um saber que se tem, mesmo

quando ignorado, que a poesia se desprenda da retórica.

Afinal, não é preciso convencer ninguém que se encontre em idêntica disposição

anímica. Tomemos de empréstimo o que diz Staiger sobre a indelicadeza da

fundamentação na poesia lírica: “tão indelicada quanto a atitude de um apaixonado que

declara seu amor à amada, expondo razões lógicas para isto”.11 Pela pedagogia poética

não se transmitem conteúdos, não se confrontam saberes, e ninguém fica mais

“instruído”; reúnem-se forças, experiências, temperamentos para além de nós mesmos.

Poética é pensamento convergente. Será então que na pedagogia poética estejam tanto

arte (enquanto criação) quanto técnica?

É interessante considerar o vir-a-ser na educação, relacionando-o ao vir-a-ser da

physis. Os movimentos fazem ressurgir espaços livres para o desconhecido, tudo se

desdobra em várias perspectivas, e pela poética se criam unidades, descobrem-se

vínculos. Em um chão único, encontram-se as coisas antes perdidas como os despojos

antigos, as coisas catadas e postas no lixo. Dispostos em um coral, pela arte e pela

técnica, ouvem-se as vozes da cidade. Mas essa realização é momentânea. Tão logo se

reerguem as antigas fortalezas, o trabalho recomeça.

2. Cultura-educação

“O homem pensa sob a forma de configurações poéticas e fantásticas”, diz

Grassi.12 Toda cultura expressa uma poética. Mas o que é cultura? O termo é tão

abrangente e discutido que, para não provocar uma discussão com a Antropologia,

disciplina na qual proliferam proposições esclarecedoras acerca do conceito, opta-se por

aludir a educação (ao lado da palavra “cultura”) a fim de se pontuar a especificidade de

sua menção nesse contexto. Dessa maneia, recorre-se a autores que buscam em suas

teorias uma relação imediata entre cultura e paideia, como Frobenius, ou cultura e

poética, como Grassi ou Souza que, aproximando-a da noção de “abertura para o

11 STAIGER, E. Conceitos fundamentais da poética. Trad. Celeste Aída Galeão. Rio de Janeiro, Edições Tempo Brasileiro, 1975, p.50.12 GRASSI, E. Arte e mito. Tradução de ... Edições “Livros do Brasil”, Lisboa, s/d., p.220.

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mundo”, percebe a unidade de culto, a celebração de um mito dominante, a atividade

institucionalizante rigorosa que reprime o caos e projeta mundo, mas também o vigor de

uma fascinação vital, que é descontrole caótico,13 considerando que, em rituais, um só

corpo se faz e todo ele é perpassado por “uma contração inicial longínqua”, na

expressão de Lispector.14

“Não é a vontade humana que produz as culturas, mas a cultura que vive sobre o

homem (atravessa homem)”, diz Frobenius.15 Para compreendê-la, é preciso

acompanhar caminhos traçados, perseguir movimentos, modos de ser, acontecimentos,

disposição anímica, sem aprisioná-los em sistemas ou –ismos. Na cidade, a cultura

reside em congestionamentos, na vida tumultuosa da rua, em deslocamentos pela

persistência de um gosto de passado, na ironia sobre a lentidão, nos jornais, enfim, no

movimento de cada coisa a caminho de suas próprias formas, movimentos “em direção

a”. Será essa a resposta? Cursos formadores de cursos, produtos formadores de

produtos. A cultura tenta adiantar o passo.

A pista talvez esteja naquela contração inicial longínqua, na reivindicação da

terra, mesmo sem o entendimento dessa demanda subjacente a todo movimento, e

principalmente sem instrumentalizar qualquer tímido desejo de espiritualidade. Mas será

possível resistir a transformar esse desejo em produto, em enfeite ou em distração para o

tédio? Todo processo cultural necessariamente se reduzirá a manifestações folclóricas

ou a produtos da indústria cultural?

Desprovida de aura, a cultura esforça-se para preservar o humanismo, mas, para

se retornar àquela contração inicial longínqua, é preciso atravessar o deserto que se

tornou a civilização ocidental. Heidegger indica os processos essenciais dessa

desertificação ou, de modo mais abrangente, do obscurecimento do mundo: a fuga dos

deuses, o abandono do ser, a massificação do homem, o privilégio do medíocre e a

destruição da terra.16 Na cultura do progresso, os construtores se debruçam em cálculos

13 SOUZA, R. “A epigênese do pós-moderno.” Revista Tempo Brasileiro, 84: 32/60, jan-mar, 1986, p.32.14 Cf. LISPECTOR, C. A cidade sitiada. 4.ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1975, pp.11 e 13.15 FROBENIUS, 1934, p.15.16 Cf. HEIDEGGER, M. Introdução à metafísica. Apresent. e trad. Emmanuel Carneiro Leão. 2. ed. Rio de Janeiro; Brasília: Tempo Brasileiro, Universidade de Brasília, 1978, p.71.

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planificadores, em regras constantes para o asseguramento das posições conquistadas e

em estratégias institucionalizadoras.

A educação e a própria arte vivem essa realidade: sem desejo, sem importância,

muito ocupadas para perceberem o estado de abandono e a necessidade de suas próprias

construções, saturadas pelo excesso de controle, participam ativamente daqueles

processos de autoafirmação da subjetividade.

O pensamento metafísico se espalha no elemento criativo e procura compensar a

sua perda pela preponderância da técnica. A habilidade técnica e o domínio do discurso

tecnológico passaram a ser finalidades; a escolarização e a empresa cultural realizam

educação e arte sem espírito. Técnica não é mais – como no sentido original de techné –

saber lidar com a coisa, movido e orientado por ela; um modo nem idealista, nem

realista, mas compreensivo da coisa. Trata-se agora de uma técnica orientada por um

logos cartesiano a fim de satisfazer desejos de expansão. Nessa cultura, espírito se

transforma em inteligência e linguagem restringe-se a exercer função mediadora dos

meios de troca, não mais sendo ‘a casa do ser’, mas um instrumento a mais de sua

dominação. Objetivadas em produtos, identificam-se as coisas com o real por força de

cálculos e de ações calculadas; por meio de explicações e de motivações científicas e

filosóficas.

Ao lado da cultura tecnológica, o “espírito” culturalista extrai os pensamentos,

os monumentos ou os acontecimentos do seu comprometimento político de participarem

da história e os reduz a eruditismo ou distração. No culturalismo, a cultura objetivada

acumula coisas e representações. Diante disso, como fazer aparecer os lugares de

cultura, deixando-se atingir pelo que sucede na rua, despertar a atenção e a memória de

seres brutalizados pelos processos de edificação da cultura? Em organizações sociais?

No desprezo religioso à matéria? No ideal da erudição e do cultivo às belas-artes?

Certamente não seria pelo apego a uma interpretação fixa de natureza, de história e de

mundo. Para acessar o real, a realização, como a mais radical liberdade, dando-se o

tempo de experienciar a presença em seu modo ausente e presente.

Podemos nos sentir engrandecidos com pensamentos elevados ou indignados

contra a baixeza de nossa época, mas não é no acionamento de mecanismos que reside a

glória da realização. Isso não quer dizer que tudo que declaramos como “valores”

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(cultura, ciência, arte, cidadania, etc.) deva ser afastado. No entanto, é preciso perceber

que, ao transformar algo em valor, o aproximamos de uma quantificação,

desconsiderando que as coisas não se esgotam em sua objetividade ou valoração,

enquanto medida. Pensar contra os valores não significa proclamar a ausência de

valores e a nulidade do ser, mas antes se contrapor a subjetivação que faz do ser um

puro objeto.17

A existência não se resume a uma afirmação da realidade do sujeito humano,

ainda que tampouco exista uma realidade auto-suficiente, não humana, projetada num

plano cósmico. Natureza e cultura não se excluem. Percebamos, no entanto, que

natureza é anterior à Natureza, e homem é anterior à Homem.18 O mito helênico do

homem, como medida de todas as coisas, provocou uma desastrosa divisão na

existência, ao desprender da natureza e da humanidade (ou da cultura), o seu acontecer.

E o acontecimento se dá pela ação libertadora de um trabalho que não se resume à

eficiência do fazer. A natureza trabalha, a cultura vai além da feitura de objetos, da

produção de atividades. O trabalho do homem, que costumamos identificar como

“cultura”, em uma concepção mais convergente ou poética do termo, só liberta enquanto

nele vigora a verdade do ser. A natureza seria o ser da cultura? Metafisicamente, pode-

se dizer que sim, cultura só existe unificada ao meio ambiente, mas esse elo se rompeu e

hoje a cultura alcança a autenticidade aos saltos, “em erupções de estado de ânimo

profundamente íntimos”. Nesses momentos, de rememoração do ser esquecido, quando

a história não mais interessa a ninguém, transformada pela cultura em uma sucessão de

monumentos sem vida, a ação pode irromper como libertação, fazendo jus à destinação

do homem como aquele que abriga o ser na linguagem.19

3. Formação

Quando o sino enche de emoção a festa religiosa, o movimento damultidão torna-se mais ansiado e mais livre.20

17 Cf. HEIDEGGER, M. Sobre o humanismo. Introd., trad. e notas Emmanuel Carneiro Leão, Rio deJaneiro: Tempo Brasileiro, 1967, p.78.18 Cf. SOUZA, 1986, p.34.19 Segundo Frobenius, nas primeiras experiências das crianças, principalmente com fogo e com água, mastambém com desenhos na areia ou modelagem de peças em barro, percebe-se a presença dos sentimentos primitivos (e libertadores) que fundariam cultura (cf. 1934, p.136-140).20 Cf. LISPECTOR, 1975, p.11.

quatro caminhos e um meio para a paideia poética

11

Formação, forma, tornar visível. Multidão, ensino pelo sino, movimento em

ânsia e liberdade. A diferença entre forma e formação equivale à existente entre ânsia e

ansiedade e entre livre e liberdade. Embutidas na noção de formação, encontram-se

também as de formado e formante. Ou seja: a forma acabada permanece em processo

enquanto trouxer em si as formas formantes. Toda forma é formação. Toda forma é

semente, dinâmica e núcleo de movimentos imperceptíveis. Todo núcleo – gerado na

concentração dos movimentos – é a concretização de um processo de gestação. Em

movimentos imperceptíveis da gestação, acontece a formação, a forma em ação, da

forma se fazendo forma.

Como assumir a revolução da mudança permanente? A ânsia de ver o processo

terminado e a promessa de liberdade ao final fazem parte do processo de formação.

Sempre subjacente, a estagnação manifesta-se em cada passagem, acenando com o

desejo de instituir e de se apoderar do que insiste em se mover. Procura-se dominar o

processo e assim definir a ordem para o progresso. Não seria essa uma definição de

método? A definição do “como”, do “para onde”, envolucrados no discurso do

“porque”? Na perspectiva do método, como predomínio da técnica na formação (o

processo), ainda que dentro de uma lógica de fazer surgir o belo ou o bem, importa

sobretudo o produto da nossa subjetividade. Indiferente à experiência, que

necessariamente acolhe o inesperado como incontrolável, a formação não deixa a

realidade “saltar” , aberta ao aion, ao saber imprevisível contido num instante.

Mas tampouco essa escolha – entre a formação metafísica ou a formação como

experiência – nos cabe. O enredamento entre ambas é o ponto de partida. Quem se

encontra nesse processo, encontra-se em situação delicada; só quando se abre para o que

as coisas oferecem, “resolve”, i.é, a formação sublinha a subjetividade implicada no

processo de aprendizagem.

Tanto mais se delega a formação à “alta cultura”, como diz Frobenius,21 à vida

estatal (o poder na República), ao tráfico intenso e ao desenvolvimento de ofícios, ao

canto dos bardos (a opção por formatos), às ricas vestimentas e aos palácios reais (o

cortejamento dos poderosos), isto é, à vida medida pelo acúmulo e posse de produtos

estagnados em seu processo, tanto mais a palavra se imbui de idealizações, discursos

justificadores para a tomada de decisão da aprendizagem em uma só direção pré-

21 Cf. FROBENIUS, 1934, p.261.

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II SIfpe, outubro de 2015

definida. Desse modo, o império subjetivo do Eu torna-se também o domínio de um

Outro objetivado em formatos e produtos acabados a serem adquiridos.

No entanto, poetas, andarilhos, aventureiros, mesmo cientistas e artistas, às

vezes estão tão imersos em seus processos que se esquecem de lhes imprimir uma

direção pré-definida, deixando que a força criativa e própria das coisas (objetos,

pessoas, elementos da natureza) com as quais lidam possa exercer a sua “baixa cultura”.

E assim a aprendizagem não rechaça o obscuro, mas sim parte dele, em contraposição

ao projeto iluminista cuja hegemonia tem sua defesa preparada e amparada no desejo de

independência do homem frente ao incontrolável. Em nome da modernidade e

amparado nas conquistas da ciência, o homem procura afirmar o seu domínio total dos

processos em formação. Nessa ardorosa defesa da verdade instituída como valor

humano, nesse esbanjamento de liberdade espiritual que faz da razão um bem

transcendental, a educação passou a ser medida em graus – básico, médio ou superior –,

indicativos do domínio último das coisas. A educação se tornou a condutora desse

processo de obediência às leis da razão, para o coroamento do ser humano como sujeito

universal e absoluto na condução da vida.

Formação, portanto, viria a ser o processo do ser humano se fazendo: Bildung,

diriam os alemães, desde o marcante livro de Goethe, “Os anos de aprendizado de

Wilhelm Meister”.22 Para além da aprendizagem de um ofício, esse processo denota a

necessidade de auto-aperfeiçoamento, demarcado pela superação pessoal de desafios, da

qual decorre a invenção de uma história individual. Fora das limitações prescritas pela

divisão da sociedade em classes, a burguesia proclama sua ânsia em ocupar um lugar no

mundo em que suas pequenas questões se articulassem a uma vida espiritual fora das

instituições religiosas. Surgida no contexto da Aufklärung alemã, século XVIII, a

expressão Bildung indica o encontro do Iluminismo com a vida prática, no qual a

educação passa a ser entendida, de acordo com Mass, como “otimização e cultivo por

mecanismos de estímulo do aparelho perceptivo e do raciocínio lógico”,23 em benefício

da individualização. Interessante notar que tal processo, no “romance de formação”

22 Cf. GOETHE, J.W. von. Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. Trad. Nicolino Simone Neto. São Paulo: editora 34, 2006.

23 Cf. MASS, W. P. O cânone mínimo: o Bildungsroman na história da literatura. São Paulo: UNESP, 2000, p.27.

quatro caminhos e um meio para a paideia poética

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(Bildungsroman) de Goethe, inicia-se com um movimento individual de negação do

destino ordinário, da predestinação social, em favor de uma formação universal, não

acadêmica e não livresca. Liberdade é o pressuposto básico da formação humana no

ideário romântico do sujeito em formação, Desse modo, todos aspirantes a pensadores e

poetas lançam-se em uma missão pedagógica, idealizando meios para alcançarem a

liberdade. E assim, da pouco usável vida íntima, escrevem o romance de suas vidas.

Por um instante imobilizados, tomados de um mal-estar difuso, refletem

profundamente. Em “estado estético”, os sujeitos em formação, ainda que imersos na

separação entre forma e conteúdo, entre mundanidade e espiritualidade, adquirem o

direito de serem indeterminados, livres para serem si-próprios: existiria aí um campo

propício para a experiência convergente de pedagogia poética? O romance de formação,

para além da descrição do processo de surgimento de um homem em sua humanidade,

da representação de ideais da educação estética24 e da internalização de uma perspectiva

coletiva em uma epopeia particular, abre-se à poesia na medida que enfrenta

pressupostas finalidades didáticas. Sem aprovar, nem condenar; no encadeamento

próprio de ações e sentimentos, quebra-se a expectativa da descrição canônica do

processo de desenvolvimento pedagógico do protagonista.

No romance de formação “A cidade sitiada”, de Clarice Lispector, Lucrécia é

uma mulher em formação a procura de verossimilhanças e de harmonizações com o

mundo. Totalmente dominada pela inconsciência, ela não é alguém que, no

entendimento habitual, encontra-se em busca de auto-aperfeiçoamento, mas sem dúvida

nota-se nela uma disposição anímica para compreender a cidade em fenômenos que

demonstram sua liberdade simplesmente por existirem e serem perceptíveis. Lucrécia é

ao mesmo tempo uma mulher desnecessária e insubstituível, mais uma habitante em

decadência pela absorção da fragmentação da modernidade. Transitando pela

espiritualidade e a mundanidade, absorve-se pelo desejo da perfeição e perde-se na

angústia, por não alcança-la. Sua única salvação está no fato de que ela estaca como

24 Na educação estética para a liberdade, pensada por Schiller, a experiência da beleza vem a ser o focoformativo. Como cidadã de dois mundos, ela recebe sua existência na natureza sensível e obtém seudireito de cidadania no mundo da razão. Uma coisa ou um objeto, do momento em que aparece comolivre, nos faz experimentar a liberdade ou a autonomia no fenômeno. Trata-se de uma busca em direçãoao objetivo da coisa, à sua qualidade de “não-ser-determinada-do-exterior”. Nessa acepção, a liberdade sópode ser sensivelmente apresentada com o auxílio da arte, que vem a ser a regra seguida e dada pela coisamesma (cf. SCHILLER, 2002).

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quatro caminhos e um meio para a paideia poética

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uma mula no asfalto. O pensamento a faz hesitar e também a aplicar-se, apesar de sua

intolerância moral, na busca da unidade visível. Ela é a própria tarefa sempre inacabada.

Ao realizar um retrato ideal e sem alegria de si mesma, no auge do seu empenho em

permanecer na superfície das coisas, ela parte, deixa a cidade, para assim poder

continuar a espelhar o mundo em movimento. Só assim novamente poderá estacar e

olhar em esforço delicado apenas a superfície das coisas, do mesmo modo que não

percebia o futuro das ruas duras e realizadas.

Em seu processo de formação, movido por suas atitudes ambivalentes, Lucrécia

assume a essência paradoxal do mundo. Distanciada e objetiva, não julga, vive na fenda

que o mundo lhe permite. E, como não há formas pré-definidas as quais queira chegar,

esvazia a oposição entre a forma e o formado. Há abandono ao que as coisas inspiram;

aceitação de seus convites para a percepção; aprendizagem do que não é uniforme, do que

não pode ser conceito, reconquistando-se a graça da linguagem, e não a conquista de um

discurso que antecipa a forma do acontecer.

Dessa maneira, Clarice Lispector descreve em seu romance a possibilidade da

formação realizar-se como pedagogia poética. Em termos gerais, a visão romântica do

reconhecimento do papel formativo da chamada “escola da vida” apresenta à educação

um paralelo entre a necessidade de empreender uma viagem de autodescoberta e o

reconhecimento da força pedagógica do devir. Significa dizer que o processo de auto-

realização não desemboca necessariamente na expansão do domínio da subjetividade,

mas sim na aquisição de imagens próprias a respeito do próprio das coisas. Nessa

reunião do estético ao ético, estabelecem-se ligações que superam as conexões

adversativas e retóricas com a realidade. Nesse itinerário de aprendizagem da arte de

viver, é possível abandonar a segurança material e encontrar um modo incomum de

encarar as coisas comuns.

Em devir, aberto às inúmeras possibilidades do porvir, o processo de formação

possibilita mudanças sutis na forma de ver, sentir, pensar e agir. O tempo na “escola da

vida” passa fora e dentro, modificando destinos. Desse modo, endossando a questão

feita por Bakthin: Entre dois momentos da história individual, seria o sujeito em

quatro caminhos e um meio para a paideia poética

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formação o chamado “homem novo”, que se forma frente à força organizadora do

futuro, para além da sua biografia e da sua idade?25

No caso da epopeia descrita por Clarice Lispector, a personagem sente-se

abandonada por sua cidade e ao mesmo tempo envergonhada por ter se escondido dessa

circunstância. O “homem novo” seria aquele deixado para trás pela sua cidade? São os

acontecimentos quase imperceptíveis, os que modificam de maneira visceral o olhar da

heroína. Lucrécia é apenas uma espécie de Alice, inalterável em sua insistente

curiosidade e em seu olhar espantado, mas também alterável em seu tamanho para poder

caber e viver os acontecimentos que, aliás, sempre a pegam de surpresa e exigem novas

modificações.

Talvez se possa diferenciar três planos na história das manifestações humanas: o

da razão, compreendendo ideias e intuição; o da essência, relacionada com a presença e

o vigor; e o da existência, que define “como” se está presente. Na modernidade, os

planos se fundiram, passando a essência humana a se identificar com o cogito e o

mundo a existir por um processo de positivação do homem.

No romance de formação pressupõe-se que, ao longo da narração, uma “segunda

voz” reflita o itinerário vivido pelo protagonista. A sua ação, portanto, estaria

desdobrada em dois níveis: o dos acontecimentos propriamente ditos e o da reflexão. Ao

final do percurso, o protagonista possuiria plena autocompreeensão e autopossessão do

seu processo que, no entanto, estaria irremediavelmente dualizado. Além disso, a sua

experiência do tempo teria de ser linear, progressiva; excluídas tanto a visão de tempo

cíclico da natureza, quanto o “sem tempo”, isto é, o instante a partir do qual não se sabe

para onde se vai, fora do esquema da causalidade.

No entanto, a crença atual de que é possível corrigir o real, positivá-lo seguindo

o fio da racionalidade, impossibilita o caminho da Bildung. Na era da técnica,

desconsidera-se a experiência fundamental para a formação, paralisando-se aquele

interesse primordial pela liberdade a fim de se manter a segurança material.

Então, cabe perguntar, parafraseando Larrosa em sua interpretação da educação

em Nietzsche: De que forma ficaria a existência, fora da construção moderna da

essência humana? De que forma, as relações com a natureza, com os demais e com nós

mesmos, fora da construção moderna da racionalidade? De que forma, o habitar o

25 Cf. BAKTHIN, M. “O romance de educação na história do realismo” em Estética da criação verbal.Trad. M. Ermantina Pereira. Martins Fontes, SP, 1992.

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tempo, fora da construção moderna da história como expressão de causalidades? E a

nossa vontade de viver, de que forma fica, fora da construção moderna da liberdade

como defesa da manutenção da segurança?26 O processo de formação subsiste

justamente na tensão entre o convencionalismo grupal e a singularidade individual, em

que o herói fica só, mas em atitude de combate. Para se chegar a ser o que é, para se

saber o que é compulsório em si próprio, é preciso combater o eu constituído, o presente

indigente. Desse modo, é possível voltar a viajar e aceitar o devir, aberto e indefinido.

No aberto, sem hegemonia da racionalidade, o homem se espanta, se transforma,

se transporta para além do aparente, transcende o cotidiano, e se expressa na oscilação,

na vertigem. Sem espanto, não adianta viagem, nem mestre. E é, de acordo com

Larossa, ao “reconhecermos no mover-se lento (dos entes) o nosso próprio formar-se”,

que nos espantamos, “assim como se reconhece um lugar onde pelo menos uma vez se

esteve”,27 i.é, o futuro anunciado no devir da formação liga-se ao passado, ao arcaico.

Encontra-se o porvir não necessariamente no novo mas na dinâmica instauradora

do acontecer abrupto. No entrelaçamento entre escritura, história e necessidade do

futuro, “a humanidade que vem” afirma-se, no presente, pela liberdade de renascer na

ressurgência de comunidades, assim como crianças se colocam frente ao jogo. Nas

“crianças ainda agrestes”, expressão de Lispector em “A cidade sitiada”,28 a formação

torna-se acontecimento. Da interligação entre passado-redescoberto, presente-em-

acontecimento e futuro-necessário surge o paralelo entre o arcaico coletivo e a auto-

realização humana. Aberto ao mundo, sem padrões, o ser humano volta-se tanto para a

investigação dos devires quanto pela sua decisão sobre eles. Segundo Grassi, a

formação seria “o processo pelo qual saímos da nossa própria situação histórica

concreta a fim de entrarmos numa relação com ela”.29 Nessa concepção, consciência

diferencia-se de subjetivação pois incorpora, para além da inteligibilidade do real, os

instintos, as inclinações, as experiências e as inexperiências. Consciência vem a ser gaia

ciência e formação, e passa a indicar um processo de tornar-se o que se é,

diferentemente de “chegar a ser” alguém melhor.

26 Cf. LARROSA, J. “A libertação da liberdade. Para além do sujeito.” In Nietzsche & a educação, trad. Semíramis Gorini da Veiga, Belo Horizonte: Autêntica, 2002., p.100-101.27 Idem, p.107.28 Cf.1975, p.17.29 GRASSI, 1978, p.64.

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Chegar a ser alguém na vida, velha expressão que sustenta o orgulho de ver o

tempo passar, como se este fosse desenvolvimento seu. “Alguém melhor”, tomando de

empréstimo palavras de Clarice Lispector em “A cidade sitiada”, será esse quem “ergue

a cidade mercantil pelo orgulho desmesurado”?30

O relato do processo de formação, o bildungsroman, adquire dimensão poética

na medida que descreve a autocriação de uma personagem, a afirmação de alguém igual

a si mesmo, singular, não melhor do que outros, nem mais perfeita do que era antes.

Assim, torna-se unidade na multiplicidade. No romance de formação, ser humano é ser

obra de arte, não uma ideia a se realizar; é invenção (linguagem. A formação como

desprendimento de si é um chamado à transfiguração, à alegria e à inocência de devir.

4. Iniciação, metamorfose

Insatisfações podem iniciar formações? Seria o desprendimento de si o início de

uma transfiguração? A transformação radical da forma de sentir e de pensar, a

convergência inquieta entre o mundo sensível e o mundo inteligível se reverterão em

alegria e inocência a quem se dispõe a mudanças? Por fim, a disposição significa

consciência?

Ser consciência, consciente, é estar desperto, para além do racional. Mudança

também pode ser dita de modo simples, por exemplo, na transmissão da “voz sem

palavras”, como diz Clarice Lispector, pela tosse. Parece ridículo, mas é alegre e

inocente o que é criativo e provoca movimento. Perceber na tosse a transmissão da voz

sem palavras é um exemplo quase simplório da nossa proximidade do processo de

transformação que se dá na reunião sentir-pensar.

Frios como mármore. Transfiguração é procurar ser o “mesmo” e parecer ser um

“quase”. O desprendimento de si é um desejo de se superar mesmo para uma nova

formação e, fria e serenamente, reconhecer que quase se chegou lá. Em meio a esse

movimento de negação dos limites impostos pela individualização, pelo desejo de

reunião e reconhecimento das limitações de nossa capacidade inteira e acabada de

transformação, ocorre a “aparição”.

Parece história de assombração e é só a tentativa de descrição do que seja um

processo de iniciação e metamorfose, na pedagogia poética. Passa cada coisa quando

ofusca uma aparição! Parafraseando Lispector, a cidade toma forma revelada, toca na

30 Cf. LISPECTOR, 1975, p.200.quatro caminhos e um meio para a paideia poética

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realidade, sente um estremecimento divertido / é dentes amarelos aparecendo com

inocência e não precisar da inteligência. / voltar sujo, rasgado, com alguma coisa na

mão ao galope de um cavalo imaginário.31

Iniciação é prática exercida de modo ritual, em que, ao mesmo tempo, representa

e esvazia sentidos. Iniciados comungam com a crença de que aí, aqui, em lugares e em

estados acontecem revelações. Ritualizam para fazer acontecer. Repetem-se e produzem

duplicidades, outridades. Experimentam sobretudo o quase do que possa ser uma

aparição mesmo. É pela precariedade da condição existencial que a iniciação igualmente

desconstrói padrões de percepção da realidade.

Metamoforse é – no esvaziamento de um padrão – a experimentação da

convergência inquieta entre ser, parecer e aparecer, de modo descontínuo. Despida de

exoterismo, é Poética essa experiência: ouro a se espalhar pelas nuvens e pelas pedras,

rostos dourados como armaduras e ascensão de uma espada desembainhada.

Metamorfose é materialização da metáfora, atravessamento de uma forma por

outra, processo de enfraquecimento da identidade, da posse de si. Talvez se possa dizer

que na metamorfose ocorra uma cisão entre o habitante do seu corpo. Disjunção ou

junção com um corpo estranho? Autonomia ou heteronomia? Pode o lugar da questão

ser também o do despertar da consciência?

As hipóteses pensam corpo e mente desconectadamente. Ora um, ora outro. Mas

talvez ainda na própria noção de metamorfose ressoe um elo da longa sequência

metafísica. Talvez a linguagem metafísica atravesse corpos e mentes em um movimento

de despertar um outro dentro de nós mesmos, se da liberação da normalidade depender

o alcance real do que se apresente. A forma reunida, em convergência poética, parece

estar na base do sonho e do pesadelo. A literatura é pródiga em relatos de processo de

transformação inesperada e incontrolável. Afinal, quem não se sentiria aterrorizado com

outra presença se materializando em corpo e mente reunidos?

Desprender-se de si, em permanente transformação de si, exige a convivência

com reações negativas, que redundam em isolamento e sentimento de exclusão.

Zaratustra, na obra de Nietzsche,32 convencido de ser o “mestre do super-homem”, teve

31 Parafraseando passagens distintas de “A cidade sitiada”, em saída de Lucrécia às ruas do centro de São Geraldo. 32 NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

quatro caminhos e um meio para a paideia poética

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de passar por inúmeras experiências e metamorfoses para finalmente poder chegar a ser

o “profeta do eterno retorno”, integrador e integrante do negativo e positivo. Em seu

percurso, ele vai da iniciação à metamorfose.

Seria possível afirmar que o ponto de metamorfose é uma experiência

privilegiada de “retorno”? Um mergulho no abismal do pensamento? Essa é a proposta

de uma pedagogia da iniciação: descontruir-se e assim voltar-se para a realização

corpórea e criativa de si. Decerto, existe aí um risco de cair na voluptuosidade do

profundo e em um mergulho tal na crença que a compreensão inteligível passe a ser

considerada um obstáculo à experiência. A racionalidade subsiste em nome da paixão.

Quem parte para o início, em busca de uma experiência arcaica de reunião

navega pela obscura inveja do desejo, pela vontade da vontade de imergir no caos

criativo da perda das normas de conduta. Ao encarar as gárgulas, os seres monstruosos

com “gengivas à mostra e freios a cortar a boca”, o iniciado rende-se ao disfarce para

momentaneamente gozar, criativo. É um impulso duro que não se quebra em lágrimas,

nem em lamentações do paraíso perdido. O ridículo de se fazer um retrato ideal de si

mesmo como um monstro dá início à experiência da poética de modo burlesco. Sente-se

a deformidade, a falta de forma, a língua que não acompanha a voz. O medo empurra

para a busca da segurança de um padrão, em um movimento de repetição do mesmo, no

qual não há ato instaurador, não há criação de horizontes.

Normalmente, impede-se a chegada do leão pelo congelamento do camelo (e

passamos a vida como em um deserto), assim como se quer manter o leão a todo custo,

evitando que a criança se revele. “A aparição epifânica de algo novo, [...] só se dá ao

preço do sacrifício do que já se é”, diz Larrosa.33

Lucrécia, habitante deslocada e em deslocamento no romance de Clarice

Lispector, percebe que parece um objeto doméstico em trabalho feroz e calmo. Ela até

reforça essa sensação, faz-se de boba, imita o bibelô tocando flauta, sente-se galinha

fugida de quintal. No ponto de metamorfose, o nó entre as diferentes ações, paixões,

palavras e objetos ganha tensão máxima (daí sua dramaticidade), até que o momento se

desfaz sob o surgimento de um acontecimento desconhecido, livre de padrões. A virada

relaciona-se à correspondência de um apelo de vigor. Trata-se de uma invenção

33 LAROSSA, 2002, p.115-7.

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reveladora que passa a existir não em função de um objetivo, mas como testemunho de

ser continuamente a se perfazer.

Daí se percebe que, assim como a formação parecia ser um processo de

aquisição de “alta cultura”, a metamorfose parece ser um processo de apropriação da

baixa cultura, nos termos de Frobenius. É interessante notar também que a palavra

“demoníaco” por esse autor se afasta da tradição judaico-cristã, pela qual se entende o

demoníaco como o desmedido querer-o-que-não-se-pode-ser. Num fluxo demoníaco

(em outra acepção da palavra), deixa-se-que-o-ser-seja, na experiência do encontro com

a medida misteriosa de uma coisa em sua singularidade.

Na cidade, por exemplo, como acontece essa experiência concreta de afeto em

lugar desconhecido? No dia-a-dia, o encontro acontece com compromissos, nada

criativos, até que percebemos nossa participação na realidade ou nossa exclusão da

realidade. Carros no calor, navios longínquos em suas viagens, entes distantes do

pensamento reinventam a noção do ser impessoal.

Como o riso, que surge após a transformação de uma tensa espera e que desmancha

todo o esforço desnecessário, a pessoa subitamente se transforma. Alegria é desfazer a

ansiedade por saber pela constatação inevitável do não-saber.

A transição possibilitada pela saturação e exaustão da ânsia é tanto um modo de

aprendizagem passo-a-passo quanto um súbito salto qualitativo. Mesmo atravessados

pela linguagem metafísica, há exposição, ex-posição, nos termos de Heidegger.

Concretizam-se as possibilidades cristalizadas da tecnologia quando as invenções

parecem perfeitas, e a perfeição parece cada vez mais inventada.

Só não parece mais possível acreditar na tecnologia ou na subjetividade como

medidas do real. É preciso desconstruir crenças para compreender plenamente a

incompreensão da vida. Cínico ou mítico, a desconstrução abre-se com perguntas ao

não-evidente, anunciadas por um dado interesse. Controla-se o racional, com

intencionalidade em direção a uma superlativação do pensamento que se espanta e

transporta (assim como uma metáfora) para além da relação objetiva-subjetiva com o

mundo e as coisas. A metamorfose faz oscilarem sentimentos habituais, na vertigem.

Para pensar a noção de formação, indicou-se o bildungsroman que muito se

valeu da passagem do tempo para mostrar um processo de aprendizagem nas pessoas e

através delas. Em que medida o romance de formação – atravessado de poética, i.é, indo

21

além do relato de uma subjetividade e da experiência não racional de um processo de

educação seria também iniciático? Quando se reporta ao êxtase como mestre e relata

uma travessia de transformação, num movimento que perfaz e forma existência. E que

nessa travessia, alguém meditou em uma situação de solidão extrema, figurativamente,

como no deserto com um fardo nas costas. Atravessar não é refletir, nem dialogar. É se

deixar ficar no entrelugar, um lugar arcaico, em estado de inocência e ao mesmo tempo

de angústia pela nostalgia da unidade, da chegada. Todas as metamorfoses se dão no

deserto. Na aridez. Na esterilidade. É aí que tudo pode acontecer, no atravessamento do

deserto. De acordo com Lispector em “Uma aprendizagem...”, “Muitas coisas você só

tem se for autodidata, se tiver a coragem de ser.”34

Essa viagem, de um encantamento levemente abafado, mistura alegria e

coragem. Discerne-se o iniciado pela dúvida, a oscilação, pela expectativa de que sua

metamorfose se dê entre o desejo de seguir o apelo do mundo abismal e inumano onde

vai se perder e a vontade de conservar a sua individualidade humana. A ordem délfica,

que indica a tarefa de conhecer-se a si mesmo como a primordial, tem um aspecto

formador (na perspectiva redutora de conhecer-se como sujeito), mas também pode

implicar um aspecto metamorfoseador, enquanto possibilidade de abrir-se à ordem do

sagrado na experiência da individualidade, pela sua maculação ou perpetração pelo

outro. Ou como diz Clarice Lispector em “A maça no escuro”, “iniciado no silêncio de

outros homens – quando alguém se metamorfoseia em si mesmo”.35

A metamorfose abre as portas de si para o outro, e é assim que se pode

comungar em silêncio e em forma: “tossiu transmitindo-lhes sucessivamente a voz sem

palavras. Janelas estremeceram ao relincho”.36 Aqui, a autora relata a transformação

súbita de Lucrécia em cavalo, um estado para além de si mesmo. No desprendimento de

si, surge o novo como origem intemporal, como presença e aceitação incondicional do

presente como instante, não atual.37

Martim, em “A maçã no escuro” passa disciplinadamente pelo processo de

metamorfose, pelo despojamento e pela destruição de barreiras que o separavam do

natural. Os trechos abaixo descrevem seu percurso:

34 LISPECTOR, 1973, p.122.35 LISPECTOR, 1970, p.235.36 LISPECTOR, 1975, p.13.37 Cf. LARROSA, 2002, p.118-123.

II SIfpe, outubro de 2015

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quatro caminhos e um meio para a paideia poética

Num suspiro resignado pareceu ao homem lento que ‘não olhar’também seria o seu único modo de entrar em contato com os bichos.[...] Deixou-se ficar submisso e atento. [...] Por um altruísmo deidentificação foi que ele quase tomou a forma de um dos bichos. E foiassim fazendo que, com certa surpresa inesperadamente pareceuentender como é uma vaca.

Uma pesada astúcia fez com que ele, agora bem imóvel, se deixasseser conhecido por elas. [...] Só que as vacas escolhiam nele algo queele próprio não conhecia – e que foi pouco a pouco se criando.

Foi um grande esforço do homem. Nunca, até então, ele se tornariatanto uma presença. Materializar-se para as vacas foi um grandetrabalho íntimo de concretização.38

Nessa espécie de experiência xamanística, o processo de metamorfose é

conduzido por vacas. No caso de Lucrécia, em “A cidade sitiada”, ele se dá através dos

cavalos. Essa condução implica em êxtase e observação para alcançar o

(des)conhecimento que une corpo e espírito, como diz Lóri, personagem de “Uma

aprendizagem...”, em uma “fina mistura”. Quando alguém se inicia nesse processo de

reunião, entra em alquimia39 como restabelecimento e cura. Tal processo, porém, se dá

num intervalo com relação à vida ativa ou doméstica. A passagem de Lucrécia em sua

temporada na ilha assume esse caráter de instância em um local de cura (e não por acaso

é lá, fora dos seus padrões cotidianos de vida, que ela pode experimentar o amor). Em

um lugar fora do circuito doméstico, ela experimentou a escuridão (letargia e ócio da

vida na ilha) na qual pôde se abandonar. A escuridão tranquilizadora aparece então, em

conexão com a iluminação – noção correlata a da metamorfose – que, por sua vez, se

irmana com a comunhão com o mundo, ideia presente quando se incorpora a “contração

inicial longínqua”. Na percepção acurada da negatividade, põe-se em dúvida o processo

de formação.

Por um pensamento mitológico-espontâneo, o cavalo pode ser um deus, um guia,

como se pode também ter o oceano como guia em um deserto ou um coelho na planície.

Talvez a figura dos cachorros com seus donos seja bem mais do que a representação da

38 LISPECTOR, 1970, pp. 74 e 75.39Os alquimistas previam as seguintes passagens de estado: aquecimento, dissolução,solidificação/ressurreição, transubstanciação. A medicina chinesa parte da presença concomitante dospólos nagativo e positivo em tudo o que existe; e que a cura não está em eliminar um deles, mas decolocá-los em suave tensão.

II SIfpe, outubro de 2015

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carência afetiva para os pobres cidadãos que esquecidos de si atravessam as ruas,

podendo ser um caminho para o devaneio. Quem sabe? Diz Bachelard que as imagens

materiais fundamentais, as imagens que estão na base de qualquer imaginação são

realidades fortes e estáveis.40 Os cavalos, os bibelôs, a estátua, Lucrécia os tem como

entes contemplativos, como ponte para um âmbito para além do humano e fundamental,

para o habitar poético. A cidade de Lucrécia ocupa uma fronteira.

Demorar junto às coisas é escutar da cama os cavalos, onde se reúne a dupla

encruzilhada (céu-terra; mortal-imortal). E escutar já é preservar, demorar, construir.

Quem escuta de sua cama uma realidade longínqua, assim como os cavalos, não pode

habitar sem ela. Impossível seria para Lucrécia então continuar na cidade sem os seus

guias. Mas esse sentimento nada geométrico ou geográfico da cidade que se habita não

se deixa descrever facilmente. Penosamente, Lucrécia pede que os bibelôs o façam, que

a estátua o faça. Mas desses, diferentemente dos cavalos, ela pode se desfazer. A cidade

os desfaz, tornando-os poeira, tomados de poeira, opacos, quase invisíveis. Não são

guias tão disponíveis à habitação como os cavalos. Quando desaparecem os cavalos

(pois a cidade também os transformará em poeira), esvazia-se completamente a “cidade-

de-Lucrécia”. O cavalo é a fronteira da sua cidade, lugar metamórfico essencial.

4½ Experiência pedagógica da percepção: o olhar

A cara tinha uma atenção doce, sem malícia / Os olhos espiando asmutações do fogo / Ambos seguiam uma direção desconhecida /Através do povo41

Já se mencionou neste texto a expressão “iluminação” mas também as palavras

se metamorfoseiam e nesse ponto o termo assume um nome similar: “experiência de

luz”. Nos fragmento expostos como epígrafe a esta parte, descreve-se a personagem

Lucrécia que espia as mutações do fogo, atenta, doce e sem malícia, e que segue,

acompanhada em caminho incerto, através da multidão. Pedagogicamente, sugere-se

que nessa travessia também ela seja povo. O exercício da visão, pelo olhar espião

constitui-se em uma paideia pobre, mas assim mesmo em uma poética da cidade. Nessa

40 Cf. BACHELARD, G. A poética do espaço. Trad. Antonio de Pádua Donesi, São Paulo: MartinsFontes, 1993. (Coleção Tópicos), pp.225 e 211.41 Fragmentos recolhidos em “A cidade sitiada” (LISPECTOR, 1975).

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redução, o-que-há-pra-ver são estátuas e Lucrécia as vê, magnetizada por essa cultura

lascada. Ela quer sair da rua, chegar em algum lugar, mas acompanha o movimento das

ruas, como Wilhelm Meister seguiu uma companhia de teatro em busca de uma

formação melhor que aquela que o seu destino medíocre lhe previa. Lucrécia também

aspira um outro destino, mas fica parada o bastante para se encantar e se deixar

transformar por aquelas estátuas mesmo, e pelos cavalos que remanescem apesar da

crescente urbanização do lugar onde vive (os claros cavalos nos quais se metamorfoseia

em diversas ocasiões). Esse foi o caminho que a sua percepção traçou. Um caminho em

direção desconhecida, trilhado e participado pela visão. Porque toda visão é inclusiva.

Não há excluídos na pedagogia poética do olhar, ainda que se reconheça a

invisibilização nesse processo, como um exercício de poder sobretudo da parte do

sujeito que vê.

A concepção dessa paideia poética parece estranha pois traz noções com as quais

normalmente não se aprende a lidar ao tratar de aprendizagem. A perspectiva dualista

pouco reflete sobre a experiência como um processo de inclusão e questiona

criticamente o que se vê. Ao se centrar na perspectiva de uma cidadã que exerce sua

cidadania pelo olhar inclusivo, assim participando da saga de sua cidade rumo ao

progresso, o romance “A cidade sitiada” ensina um modo de ler a cidade sitiada. O

olhar inclusivo, fácil e sem resistência de Lucrécia, despreocupadamente ordena a

desordem.

Deixando-se mimetizar, a personagem parece tão precária quanto o que vê.

Pontieri a chama de grotesca e, em sua fortuna crítica, levanta as várias interpretações

negativas que ela suscitou pela sua escassez de recursos elaborativos.42 No entanto,

através dessa precariedade, vislumbra-se algo ínfimo e fundamental na cidade a ponto

de se perder: a possibilidade de reunir. A precariedade, entendida como insuficiência de

conceitos e de discurso político, poderia ser interpretada nesse caso como uma riqueza.

Sem muito vocabulário, sem agudez, nem inteligência, Lucrécia trilha no entanto um

caminho traçado por um olha inquisidor, que procura saber se na vida ordinária algo de

significativo está em curso. Sem dominar categorias historiográficas, psicológicas ou

científicas, ela raciocina. Quem disse que ser racional é o mesmo que manejar

conceitos? Lucrécia atenta para tudo que não tem categoria e mistura, com seus gestos,

42 Cf. PONTIERI, R Clarice Lispector - uma poética do olhar. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.

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uma ancestralidade que carrega sem se dar conta e uma prontidão para descobertas de

última hora. Com essa sua percepção simples, enxerga mais do que positivistas e

empiristas, sustentados por um imenso cabedal de conhecimentos que às vezes também

mal suspeitam, mas que se traduz em uma carga tão pesada, que seus olhares acabam

por pesar em demasia, fazendo com que as coisas se imobilizem, desvitalizadas.

Apesar disso, a busca por um novo olhar seria inútil, caso os pesquisadores

empíricos não se disponham a perder suas imensas possibilidades de crítica, análise e

argumentação. A cultura ocidental, de consumo, está voltada para o ganho, o mais, o

muito, e o arcabouço teórico realiza-se graças a essa volúpia de acumulação, como se

aquela carga-pesada de conhecimento pudesse defender o pesquisador de incertezas

provenientes da falta. Mas, se a falta sempre foi identificada com um sinal negativo,

com o pouco, como um sinal de carência e de penúria, também se pode afirmar que não

se mede a presença pelo muito. “Muito” pode ser no máximo “muitos presentes”.

Presença se tornou presentes – o que se pode ganhar – mas o encontro com o real ou as

percepções da realidade possibilitadas pela presença se tornaram invisíveis, quase

inexistentes. Olhar então seria aspirar a esse parco real, ainda que seja preciso muita

paciência para que a reflexão se converta em olhar.

Eudoro de Sousa fala em “grau ínfimo de gnose”43 e na possibilidade de

aceitação de que, com o particular, concorre algo universal; com o temporário, concorre

o permanente. A percepção simples pode dar conta desse conhecimento, em geral

ausente naquele cabedal de conhecimento, feito sobretudo para a dia-gnose.

Decerto não se pode simplesmente parar de investigar por conta da cisão da

razão na história ocidental. Mas, é importante considerar, ao investigar empiricamente

uma dada realidade, que não se pode contentar com uma descrição morfológica do que é

visto, pois essa irremediavelmente toma o caminho da categorização. É preciso

investigar o que se vê na riqueza do seu acontecer por mais que se tenha dificuldade em

descrever as inúmeras relações que surgem no horizonte da experiência. Embora não

seja impossível acessar plenamente o centro desse regozijo, o pensamento pode

desenvolver-se como o de Lucrécia na festa do padroeiro que ora estala no silêncio, ora

43 Cf. SOUSA, E. “Texto introdutório” em ARISTÓTELES. Poética. Trad. e notas de Eudoro de Sousa.Guimarães Editores, Lisboa, 1964, p.39-40.

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esfuzia-se nos giros dos cavalinhos.44 Com o pensamento em festa, as pessoas param,

olham. Cabeça quente, Lucrécia se mete na frescura da sombra. É assim que ela ensina a

ver homens que parecem vir do horizonte e não do trabalho.

Para a compreensão da trajetória civilizatória, citadina e cidadã da humanidade,

gregos são fonte obrigatória, dado a sua descoberta do pensamento fruto do espanto e da

correlação da capacidade de pensar com a possibilidade de ser, considerando em ambos

o seu poder de permanente brotação. Exemplo dessa concepção reside na criação das

tragédias que, em termos amplos, apresentam a presença da physis também na polis e,

no homem, o entrelaçamento do desejo e do destino. Nessa fonte grega, sorve-se o traço

de união entre logos e physis. Na revisão dos caminhos que levam ao conhecimento

científico, na admissão da tensão entre os limites humanos e o ilimitado do

sobrehumano, o mundo se manifesta. Através da enunciação de seus nomes, coisas e

acontecimentos manifestam-se intimamente a sua vaga história. Na tragédia, encena-se

a história que então pode ser vista. E assim também podem ser vistos os pensamentos

que poucos se dão conta.

Uma questão oportuna nesse momento diz respeito às possibilidades de

desconstrução do tédio como incapacidade de perceber / ver. Em seu tédio, a cidade

revela sua pobreza, seus limites, sua condição trágica. A abertura aos limites da cidade

deixa a experiência acontecer, a questão passível de investigação. Suspende-se o

sentimento heroico da existência, vive-se o que Baudelaire chamou de choc e passa-se a

ser o lugar onde o choc acontece.45

Ver a temporalidade nos espaços quando falta a força iluminadora para perceber

acontecimentos, na intolerável falta de sinais, em um cosmos humano indiferenciado,

ainda assim, pode se dar a experiência. Baudelaire a chama de tédio (ennui).46 A casa, o

abrigo, os refúgios e os aposentos (“sótão dos meus tédios”) diz Bachelard.47 Os centros

de tédio, centros de solidão, centros de devaneio são a casa onírica. Uma visão que se

descobre ao ler Clarice Lispector relaciona o tédio e o não-querer remédio, assim

44 Cf. 1975, p.11-12.45 De acordo com BENJAMIN, W. “Sobre alguns temas em Baudelaire” In: BENJAMIN, W.,HORKHEIMER, ADORNO, T., HABERMAS, J. Textos escolhidos, trad. de José Lino Grünnnewald etalli, 2a. ed., São Paulo: Abril Cultural, 1983 (Col. Os Pensadores), p.44.46 De acordo com GRASSI, 1978, p.28.47 Cf. BACHELARD, 1993, p.73.

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como a cegueira não impede ir na escuridão total e a descoberta de se deixar ficar no

vazio que se inaugura. O pulo cego de cometer um crime e a prática controlada da culpa

sem incômodo são próprias de um herói cínico mas também de um homem

incapacitado. O óbvio é entediante? O mundo, transformado em fonte de paz, perde o

seu caráter de surpresa? O cumprimento do dever em um momento em que tudo

funciona mecanicamente traz felicidade. Corresponderia esse cumprimento do trabalho

à pequena vitória de semiviver?48 Quando convalescente o Zaratustra de Nietzsche

berrou que o “grande ‘tedio” lhe afogava. Dizia ele que trazia atravessada na garganta a

predição de um adivinho sobre o quanto tudo é igual e a asfixia provocada pelo saber.

Tudo isso diante de “um longo crepúsculo, uma mortal tristeza ébria e fatigada que

falava bocejando”. Para concluir que o homem enfastiado “torna eternamente o homem

pequeno.”49 Sim, até o perigo, quando se repete, vira costume. O homem pequeno e

enfastiado, o homem padrão, o mártir, entre restos de trabalho e de uma vontade: eles se

dão ao luxo de serem poderosos, de se divertirem e se verem livres de forças doentias,

até mesmo da necessidade de libertação? “Ter de cantar de novo: é este o consolo que

inventei para mim; eis a minha cura”, disse Ulisses em “Uma aprendizagem…”, para

quem fazer poemas era o exercício mais profundo de ser homem.50

No diálogo com o homem pequeno, subvertendo-se o tédio pelo choque,

aproxima-se a noção do não-querer, tomada a investigação sobre a questão feita por

Heidegger em texto sobre a “Serenidade”. O perigo do tédio reside na incompreensão

desse ato maior (o não-querer). O não querer conquista-se em primeiro lugar pelo querer

dominado por um não. Em alguns casos assume-se a partir daí a persona do mártir, que

voluntariamente recusa quereres. Mas, ainda que um mártir não se importe de morrer e

às vezes até pareça buscar a morte, anseia a integração sem palavras com o mundo. Um

mártir também pode não compreender o não-querer. Mas ainda assim, tal como o uso de

uma máscara necessária para ser si-próprio, o mártir pode cair em “estado de graça”,

como qualquer outro que vê a “profunda beleza, antes inatingível de outra pessoa”. De

uma “espécie de nimbo”, que não é o imaginário, recebe-se o esplendor quase

matemático das coisas e das pessoas e sente-se a respiração de fínissima energia, a

48 Cf. LISPECTOR, 1973, Pp.66 e 70.49 CF. NIETZSCHE, 2011.50 Cf. LISPECTOR, 1973, p.120.

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impalpável verdade do mundo.51

O tédio cria assim um cosmos humano indiferenciado. Mas o vidente citadino

não é um entediado pois vê o mundo repleto de tensões a serem investigadas. No

acolhimento dessa tensão fundamental entre pólis e physis, reapodera-se da visão do

mundo, tal como aparece em “A maçã no escuro”, “parece fazer uma enorme

pergunta”.52 Significa dizer que também poderia ser esse um remédio contra o tédio,

que, como sugere Staiger, “o mundo discretamente se inflame em nós”.53 Essa

“inflamação” é o pensamento, pois o mundo se pensa enquanto inflama. Sérios,

obedientes, sem desilusão, é preciso se deixar tocar pelo que pede atenção. Enfim sós,

percebe-se a presença constante de alguma coisa a trabalhar sem barulho. Percebe-se o

mundo a se fazer presente. Essa escuta atenciosa é linguagem, é realização de mundo.

Realiza-se a inflamação, o mundo, ao aparecer, ao ser linguagem. Delimitando-se, o

mundo se configura, mantém relações, torna presente, determina valores e poder.

Trata-se de linguagem figurada? Ou será uma articulação da dobra existente

entre poesia e pensamento? Essa linguagem, essa articulação, é mais familiar do que se

poderia supor. Precisa-se retornar a ela para habitar o mundo sem estar propriamente

presente. Habita-se o traço de união entre poesia e pensamento, demora-se na conexão

entre esses dois modos de ser que se atraem. A proximidade está em uma região de

sombra, revelada em assombro, espanto.

Enfim, no encontro com as coisas, na escritura e na história, no ver e no não querer,

permanece a pergunta sobre o que possibilita a experiência. Quando se aprende na rua, a

experiência surge como raiz da vida, como princípio. A tensão torna possível a atenção

pela vida em sua sensorialidade, sensualidade e na diversidade de suas perspectivas.

Dessa maneira, a visão desdobra-se: vê-se a sensualidade nos detalhes e sente-se na pele

a tomada de uma perspectiva. Trata-se da experiência que ensina, com a qual se

aprende.

Não é isso mesmo o que queria dizer Píndaro com “no céu, aprender é ver; na

terra, é lembrar-se”? Aprende-se pela visão, quando se está fora dos sistemas de

referências, no céu. Lembra-se do que foi visto, do acontecimento aprendido no céu,

51 Idem, p.147.52 Cf. LISPECTOR, 1970, p.88.53 STAIGER,1975, p.29.

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com os pés no chão. A cidade, como obra de arte, só pode ser vista na perspectiva

celestial, não pela negação da sua mundanidade ou da sua territorialidade, nem pela

refutação do seu caráter dual, dividido. Não se trata de adquirir uma nova maneira de

ver, nem de se deixar invadir por uma cobiça do olhar. Parece que automaticamente se

contrapõe o ativismo à apatia e a curiosidade à indiferença. Pela sintonia e sincronia

com a “obra citadina”, deixando que sobressaia a serenidade como resultado da tensão,

busca-se a retomada da relação ternária terra-homem-mundo, em que o homem, em sua

mundanidade, obedece e salvaguarda a lei inaparente da terra, no “círculo comedido do

possível”. A visão traz à tona uma luta. O que se vê então não é o conhecimento normal

e cotidiano, não por ser “anormal” (em termos muito simples, estar no mundo é

compartilhar as ruas), mas porque olhar é “ser-atingido”. Clarice Lispector identifica

esse envolvimento com um estado patético gerador de perguntas e de encontro com o

estranho das coisas. Na cidade sitiada, é assim que Lucrécia vê: “sobre as cabeças as

lanternas se embaciavam tremulando a visão; os bazares se entortavam a gotejar”.54

O real ganha contornos diferenciados. Sob a sua visão trêmula, sem

objetividade, surgem estranhezas e os bazares são vistos na sua vacuidade. Podendo ser

vertidos como uma jarra, os estabelecimentos passam a ser percebidos antes como

buracos do que como lugares onde se vendem utilidades. São desideologizados.

Mas será que essa “visão” acrescenta algo em termos de informação, de

aprendizagem, de noções, de conhecimento? Por que nomeá-la como experiência

pedagógica? Em “Uma aprendizagem ou o Livro dos Prazeres”, Ulisses chama atenção

para um pardal, que “não pára de ciscar o chão que aparentemente está vazio mas com

certeza seus olhos veem a comida”.55 A “visão espantada” também nutre com uma

comida invisível, mas ainda assim existente. De um modo que escapa à razão, o que

parece desértico é campo fértil. Aprender a lição do invisível possibilita fertilizar

desertos.

Assim talvez seja possível atravessar a majestade de uma vida desértica, a porta para

o vazio, percebendo uma claridade no ar que não tem nome. No mundo empírico,

quando goteja a visão espantada, desembarcam obras de arte. A visão empírica seria

então própria à ciência e a “espantada” à arte? O costume de dividir o conhecimento em

54 Cf. LISPECTOR, 1975, p.11.55 CF. LISPECTOR, 1973, p.63.

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útil, científico e artístico de cada um esvazia o que ao outro caberia. Mas se aquela

“visão espantada” desemboca em obra de arte, instaura também mundo. A visão do

bazar descrito por Clarice Lispector se aproxima da de Grassi, de um “mundo

estilhaçado em cujos fragmentos vemos espelhado o cosmos em milhares de partículas

cintilantes”.56 O acesso ao cosmos espelhado em partículas acontece pelo espanto de

ver, no deslocamento da habitual impressão e relação com os bazares da vida.

Simplificadamente talvez se possa dizer que é preciso se despir de preconceitos, mas

isso talvez só leve a uma ingênua visão das coisas. Não se trata de uma verificação

sensorial. Uma visão é uma “aparição”, um jorro que se oferece à memória,

configurando em um desafio para os apetrechos lógicos que se dispõe. A “visão” do

bazar compartilhada por Clarice Lispector com o leitor é um convite ao pensamento

como possibilidade de configuração. O bazar visto por Lucrécia pode ser associado à

jarra descrita por Heidegger em “A coisa”, na qual o vazio é compreendido como

fundamental para que o pleno se expresse.57 Dessa maneira, racionaliza-se o real,

subordinando-o à instância do observador? Como evitar o olhar de medusa-que-

petrifica ou o olhar derramado-que-nunca-vê-o-que-é, que sempre procura adivinhar um

“algo por trás”? O mundo seria assim uma enorme metáfora?

Em atitude aliviada, deixar se conduzir por formas que aparecem por si mesmas

e que SÃO, independentes da nossa razão, da nossa imaginação e mesmo da nossa

sensibilidade, isso é possível? Tricotemos e, do movimento contínuo das mãos, nasce

um espírito e uma facilidade: tudo intransponível, até mesmo pela imaginação.58

O desregramento dos sentidos ou a visão “espantada” não se faz pelo comando

de um “eu penso”, mas por um “eu sou pensado”. A visão impõe uma linguagem básica

indicativa formada pelos archai, palavras “transparentes” que invocam a relação

originária entre as palavras e as coisas. O que distancia essa “visão” do olhar-de-medusa

e do olhar-derramado é a necessidade de encontrar caminho no mundo sem o auxílio de

conexões lógico-explicativas. No exercício da capacidade “visionária”, figuras que

parecem contraditórias ou sem relação plausível ficam lado a lado, como

56 GRASSI, s/d, p.50.57 Cf. HEIDEGGER, M. “ A coisa”. In: Ensaios e conferências. Trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback, Petrópolis, Vozes, 2002.58 Parafraseando Clarice Lispector, em “A cidade sitiada”.

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temporalidades e territorialidades diferentes, e mesmo o visível e o invisível se

aproximam.

Martim, em “A maçã no escuro”, em seu processo de cidadanização, ao

despertar para o mundo, quando justamente procura isolar-se, chega ao ápice da seu

aprendizagem quando compreende que não é mais um “homem claro”, ao redor de

quem “tudo costumava ser visível”.59 Também Lucrécia experimenta um tipo de

escuridão tranquilizadora provocada à luz da dúvida. O momento da dúvida é uma

experiência “passiva”, abole a realidade cotidiana e impele à visão. Passividade aqui

quer dizer “um modo simples de estar no escuro”.60 No escuro, o pátio da igreja pode

resplandecer. Da sombra, se ri para alguém perdido na cidade sitiada.61 Trata-se da

paideia das profundezas, do período caótico da criação. Na obscuridade, ilumina-se o

fazer-se da physis, que não se pretende reproduzir, mas apenas fazer visível.

Martim já não pedia mais o nome das coisas. Bastava-lhe reconhecê-las no escuro. E rejubilar-se, desajeitado. [...] Depois quando saíssepara a claridade, veria as coisas pressentidas com a mão, e veria essascoisas com seus falsos nomes. Sim, mas já as teria conhecido noescuro como um homem que dormiu com uma mulher.62

A “visão” permite uma intimidade com as coisas que faz com que elas mostrem

seu lado “estranho”, seu lado invisível. A “visão” é o próprio dizer poético que “reúne

integrando claridade (e ressonância de muitos aparecimentos celestes) numa unidade

com a obscuridade e a silenciosidade do estranho”.63 Na sombra, se “vê” até mesmo o

som. Através dela, a música é trazida pelo ar. Na escuridão, na sombra e na estranheza

– atentos à tensão que se anuncia – vê-se o que não é treva. É verdade que também na

luz, às vezes a cegueira é completa. É preciso exercício e disposição para enxergar a

dura verdade do sol e do vento, e a de um homem andando, e a das coisas postas.

As belas palavras são também as sábias? Pela imagem de uma dobradiça,

procura-se compreender como elas estão entrelaçadas, assim como o claro e o escuro,

assim como as coisas dependem de algo que as invista de vida. Um lado da dobra não

59 Cf. LISPECTOR, 1970, p.82.60 Idem, p.201.61 Cf. LISPECTOR, 1973, p.11.62 LISPECTOR, 1970, p.228.63 HEIDEGGER, M. “Poeticamente o homem habita...“ In: Ensaios e conferências. Trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback, Petrópolis, Vozes, 2002, p.177.

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existe sem o outro e só existem na articulação em movimento, em tensão. Insiste-se na

dis-junção, na tensão de suas articulações, e ela se manterá desdobrável. Mas a tensão

desagrada, dá um certo trabalho ser-com. Talvez a gente tenha a ilusão ermitã de um

sossego cristalizado, em que a cisão se perenize. É o conforto do esquecimento. É a

aquietação na dualidade e na divisão. Mergulha-se com tanta vontade nessa situação

que ela se naturaliza, as dobras se alisam ou se enferrujam, às vezes rangem com ventos

inesperados, mas a paisagem permanece desolada. Por isso, quando bate um vento

inesperado, é bom sustentar o olhar. Ou fechar os olhos com pudor.

Não olhar pode ser olhar. Presenciar a “aparição”, nada mais é do que deixar que

as estruturas construídas balancem. Se a dobradiça entra em movimento é sinal de que a

desolação naturalizada está sendo balançada. Parece muito figurada essa história de

entrar em estado de graça, diante das questões prementes da utilidade e da determinação

da razão. Em “Uma aprendizagem...”, Clarice Lispector descreve a passagem de Lóri

(ou seria melhor dizer, “em” Lóri) de um estado como aquele, que sem esforço, permite

lucidez à existência.

O corpo se transformava num dom. E ela sentia que era um domporque estava experimentando, de uma fonte direta, a dádivaindubitável de existir materialmente. [...] Tudo ganhava uma espéciede nimbo que não era imaginário: vinha do esplendor da irradiaçãoquase matemática das coisas e das pessoas. Passava-se a sentir quetudo o que existe – pessoa ou coisa – respirava e exalava uma espéciede fíníssimo resplendor de energia. Esta energia é a maior verdade domundo e é impalpável.64

Quem disse que a lucidez é fácil? Ela é muito muito difícil pois é simples,

simples tão simples que dá enjoo desse excesso. Por isso, diante da dádiva da

existência, não há nada melhor a fazer do que respirar, ser o que se é, e atravessar a

condição existencial, respirando-a. A terra há de aproveitar o gás carbônico.

Anteriormente já se comentou sobre esse lugar – espécie de nimbo – no qual é preciso

estar para poder ver. Tal atitude parece poder se desdobrar em atenção e renúncia, um

caminho através do qual abandono significa pré-disposição, uma imensa receptividade.

Nesse movimento, não há necessidade de ações impositivas. Ver é ser tocado pelo

privilégio de testemunhar esse movimento, do qual quem vê também participa. Ver não

quer dizer dominar, melhorar ou piorar, nem mesmo abrir-se a novas manifestações

64 LISPECTOR, 1973, p.147.

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culturais. Quem vê, não promete esperanças, nem anuncia catástrofes. Quem vê, o faz

sem ruídos, sem adeptos, sem necessidade de consequências.

O senso didático, a vontade de transmitir limita-se ao que a visão permite falar.

Evita-se o falatório e a polêmica. Encaminha-se e espera-se que a pergunta se desloque

tanto do sujeito quanto do objeto para o próprio aparecer das coisas. Retomar esse

acontecimento possibilita um ponto de virada posto que ele é afeto. A partir dele, o

homem pode ser tocado. E na linguagem “tocada”, mesmo o não-entender dá sinal da

largueza e da liberdade. Pode haver falta de entendimento e ainda assim se saber da

condição humana. Martim também goza do vasto vazio de si mesmo e acrescenta que

“este modo de não entender era o primeiro mistério de que ele fazia parte

inextricável”.65

Consuma-se a dúvida, experimenta-se a fé arcaica, mítica. Perceber a aparição como

acontecimento, é rememorar a aura das coisas. Essa é a leitura do “livro dos prazeres”,

uma aprendizagem orientada pelo amor. No eros do saber, há desejo e amor. Há

“contextura de ódio, de ciúme e de tantos outros contraditórios”, mesmo quando se

aprende a estar entre laranjeiras, sol, e flores com abelhas.66 Que venha o desejo, com

todos os seus perigos, pois sua falta faz calar o coração. Só assim se abre o indizível e o

afeto para com o desconhecido. A educação que faz calar o desejo, mata a respiração

em sua inspiração. Pelo desejo, paradoxalmente, alcança-se a involuntariedade.

Aconchegar-se “ao precioso fora de nós”, traz um certo ponto de glória. A glória da

auto-pobreza revelada, da condição humana implorante.

Para fundar uma cidade é preciso a coragem de reunir-se ao retrato desejado. Na

dobradiça que move a cidade para sua constante e radical renovação, encontra-se

também o gesto de abandoná-la em seu mercantilismo. É preciso coragem para

desconstruir o que se ergueu com orgulho desmesurado.

Para adquirir o sentido do comunitário, a misericórdia se transforma em ação,

por amor ao futuro e se transforma em metafísica, por terror ao futuro (o outro que nos

ronda). Colhendo em paráfrasea de “A maçã no escuro”: Nós que nos fomos dados

como amostra do que o mundo é capaz. Chegados plenamente a nós mesmos, chegamos

aos homens. Nos guiamos até ‘transformar os homens’. Falhamos mas não totalmente

65 Idem, p.65.66 Cf. LISPECTOR, 1973, pp.48 e 51.

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porque fizemos outros. No fundo do inferno, sobe o amor: as pessoas exigentes comem

o pão mas têm nojo dos que pegam em massa crua; e devoram a carne, mas não

convidam o açougueiro; as pessoas pedem que se lhes esconda o processo.67

Mas ao mesmo tempo que se levanta o sítio de uma cidade, arruma-se a trouxa e

se escapa. Ao mesmo tempo que a graça se desvanece, vibra a dobradiça e com espanto

vê-se (presencia-se) a transformação. Na experiência pedagógica da percepção: o olhar,

a lição fundamental é: o abrir, no fechar; o fechar, no abrir.

Poemas pedagógicos

Depois de ler Lispector

A fim de ensaiar a linguagem poética mais plenamente, faz-se a seguir um

exercício de traduzir os conceitos trabalhados neste artigo na forma de poema, com

o auxílio das imagens de Clarice Lispector nos três romances estudados (“A cidade

sitiada”, “Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres” e “A maçã no escuro”).

PAIDEIA

Quando a badalada soa solene,ouve-se num momento o espaço e aspira-se com narinas selvagensa vida onde reina o gosto do passado.Ah, forma esquecida pelo uso –cavalos, terra negra e tanque seco na praça –transpira arrogância, audácia e a cólera sem ira.Não afirma, não nega. Não participa de si própria.Sê calada e dura – não precisa pensar.Enobrece coisas belas, acende o fogo ao vazio.Inicia a tradição da futura metrópole.Chama a raça de construtores.Servirão eles de armas para o seu escudo.

Forma com esforço o espírito de uma cidadefeita de trabalhos e histórias curtas.

***

67 Cf. LISPECTOR, 1970, pp.227 e 241.

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Recordo,mas não me reconheço na revelação.

Conheço indiretamentecomo uma planta ferida na raiz.

Pequeno destino,decaio na idade de ouro e escuridão.

Destino terrestre, rezo a única frase que ficou.Mostro minha cara de pedra,bondade sem súplica, relógio atrasado da igreja.

Sou do grupo dos cavaleiros anônimos.Danço em nova composição de trote.

Tão fácil achar coisas perdidas no chão,nos despojos virginais desta cidade.

O que era mortal foi atingido.Tudo que resta é eterno, sem perigo.

CULTURA

Quando o fogo de artifício espoucaa multidão é tocada do sono rápidoe rebenta em gritos no carrossel.Movimentos congestionados,vida tumultuosa da ruaonde não falta ironia sobre a lentidão popular,onde cada coisa se move a caminho das próprias formasmas sem saber pra onde iradiantando-se, apenas,em tímido desejo de espírito.

Grande inquietação dos comerciantesque gritam: “a cidade precisa de diretivas”.Em nome de uma esperança assustadora,pelo medo e por um sentido confuso e empoeiradofazem projetos de pureza, amor à almae excitam-se com o caminho do bem.Mas também eles se movem sem saber o que fazer.Iniciam a tradição da futura metrópole,raças de construtores que decaídos, “progridem”.Dizem eles que este é o momento propícioenquanto a realidade: sem desejo, sem importância,está muito ocupada.Alguma coisa se constrói e só o futuro verá.Algo que se fala e não se transmite.

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Por um instante, apenas, imobilizada, ela reflete profundamente.

Estacase espalha em nova composiçãose alicerça na inconsciênciase submerge de espaços.A cidade nunca se atinge, porém.Mantém-se animada,acontece, e não desencadeia.Assiste o incêndiode ruas que não cheiram mais a estábulomas a armas deflagradas.De um ou de outro modo,ninguém tem tempo de vê-las. É preciso ler o folheto “Câncer espiritual”,dignificar-se com pensamentos elevadosindignar-se contra a baixeza de nossa época.Fazer a história que não interessa a ninguémE, na glória dos mecanismos e monumentos,sonhar com as novas linhas de trem.

FORMAÇÃO

Quando o sino enche de emoção a festa religiosao movimento da multidão torna-se mais ansiadoe mais livre.

Ser delicada com todosNão deixar de olharVer de baixo pra cimaArder na verdade sem causao nome último das coisas.

Pouco usável vida íntima,escreve o seu romance.Mal-estar feliz,desconfia do que pode vir de um homem.

Por um instante imobilizada,reflete profundamenteprocura semelhançasestacaem harmonia evidente, insondávelde estar na luzno domínio da inconsciência.Faz anedotasabsorve a perfeiçãoperde a angústiadesnecessária, insubstituívelbusca a unidade visível

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aplica o pensamento,faz hesitar.

Retrato ideal de si mesmasem alegria: trabalha.Não penetra demais:olha em esforço delicado apenas a superfície.

O dia não era o futuro,eram ruas duras, realizadaseram cada vez mais ligações,diversos “porém” e “aí”,modos impessoais de encarar –ar de estrangeira.

A cidade a deixou pra trás.Ela se poupara – essa, a vergonha.Dias de vigilância sem explicação,pequenos começos interrompidos entre pigarros, pressas inúteis.Orgulhara-se de ver o tempo passarcomo se ele fosse desenvolvimento seu.

Era uma pessoa olímpica e vaziaentregue à liberdade e à solidão

INICIAÇÃO, METAMORFOSE

O tenente tossiu transmitindo a voz sem palavras –o mesmo frio reconhecimentonas lajes quase reveladas.

Cara negra de olhos brancos –cada coisa que se vêquando passa e nos ofuscaa aparição.

Quando o sol se põe,o ouro se espalha e acendeum rosto – armadura –de espada desembainhada.

No cheirar leite, suor, roupas do corpo,esgueira força sutil: cavalos,vidas secretas.o conhecer indiretoda cidade de outras formas revelada.

Toca a realidade,estremece e se divertedentes tintos de inocência

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sem verniz de inteligênciavolta sujo, rasgado,com alguma coisa na mão.

Cara de pedragengivas à mostra, freios a cortar a boca –o disfarce.Impulso duro que não quebra em lágrimas,retrato burlesco –um objeto: trabalha feroz e calma,faz-se de boba.

Imitao bibelô tocando flautaa galinha fugida do quintalencontra o “compromisso”não mais criarser um carro andando no quenteum navio em alto mar,viúva,pensa apenas a invençãoimpessoal e voadora.

EXPERIÊNCIA: OLHAR

Inquirir se na vida vivida alguma coisa se tem cumprido:mistura de longa experiência e descoberta de última hora.

Tanta paciência,olhar continuando a olhar –essa, a reflexão máxima.

A cara com atenção doce, sem malícia.Os olhos espiando mutações do fogo.A seguirem, ambos, direção desconhecida –o através do povo.

Mesmo sem conseguir cair plenamenteno centro do regozijoque ora estala em silêncio,ora em giros de cavalinhos,mete a cabeça na frescura,vê homens na luz virem do horizonte,não do trabalho.Vê vagas histórias,e o pensamentoque elas não podem pensar.

Séria, obediente, sem desilusãotocada pela atençãosozinha

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e com alguma coisacontinua a trabalhar sem barulhoe ver do modo mais beloa bondade de tudo o que morre.

Novamente a vida se abre em majestade.Portas batem, claridade de ar que não tem nome,casa cheia de segurança materialtricô, movimento contínuo das mãosfaz nascer um espírito e uma facilidadetudo intransponível –não adianta imaginar.

Abandona a cidade mercantil,levanta o sítio,arruma a trouxa e escapa.

Dura é a verdade do sol e do ventoe de um homem andandoe das coisas postas.Aconchega-se no precioso fora dela,no certo ponto de glória,tem coragem,e se reúna ao retrato desejado.

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