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Maria do Rosário Pestana A minha experiência em torno do Património Cultural Imaterial

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Maria do Rosário Pestana

A minha experiência em torno do

Património Cultural Imaterial

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O meu interesse por formas de produção cultural que hoje reivindicam o estatuto de Património Cultural Imaterial começou no terreno, no início dos anos 1990. Surgiu através do contacto com detentoras de repertório do cantar em terceiras e quintas paralelas e no lento e sempre incompleto processo de incorporação (aprendizagem) dessas polifonias. Nesses anos, estudava coleções de registos sonoros históricos de música de matriz rural e processos de institucionalização do folclore em localidades como a aldeia de Manhouce, concelho de São Pedro do Sul, e via nos atos de cantar a vozes um meio de aproximação e entendimento com as comunidades em observação.

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Regressei a essas localidades repetidas vezes, tendo acompanhado as novas dinâmicas espoletadas des-de meados da primeira década do século xxi, em tor-no do cantar a vozes. Há dois anos, grupos e pessoas com quem trabalhei ao longo de décadas solicitaram o meu envolvimento na preparação de uma candidatura à lista do pci da unesco dos Cantos, Cantedos e Cantaro-las, designações émicas de repertório cantado por mu-lheres em terceiras, ou em terceiras e quintas paralelas, no centro-norte do país. No âmbito da proposta, constituí uma equipa de inves-tigadores para identificar as pessoas que mantêm essas práticas vivas, cartografar os espaços da sua emergên-cia, promover debates em torno do conhecimento que se quer salvaguardar (e como), fundamentar historicamen-te a inscrição na plataforma Matriz pci. Iniciámos a in-vestigação nos concelhos de Arouca, Castro Daire, Fama-licão e São Pedro do Sul e junto de grupos urbanos como o “Cramol”, “Segue-me à capela” e “Sopa de Pedra”. Os debates têm contribuído para desconstruir e, por consequência, para densificar as “nossas” objetivações do conhecimento necessário à performance. Conhe-cer as modas e as técnicas de sobreposição das vozes polifónicas não é, para as cantadeiras, suficiente para uma “boa” prática. As cantadeiras defendem que im-porta, também, conhecer a multiplicidade de saberes específicos diferenciadores dos vários grupos de mu-lheres, em diversos contextos geográficos: o número de cantadeiras para cada uma das vozes, a disposição dos corpos e das vozes no espaço performativo, as vo-calidades associadas ao teor dos atos, as designações émicas de cada corda vocal, etc. Consideram, ainda, que é importante dar visibilidade às senhoras que já não cantam, mas detêm a memória do cantar. Em al-gumas localidades, deparámos com grandes constri-ções na transferência do conhecimento necessário à salvaguarda do repertório – “As crianças não apanham o tom! Os miúdos da escola não conseguem apanhar o tom das cantigas. Só tínhamos um ou dois que conse-guiam. Já não têm queda para cantar, como nós tínha-mos quando éramos crianças. Acho que sim, acho que vamos desistir!”, sustenta Balsamina do Vale Augusto, uma cantadeira do Grupo de Cantares de Pindelo dos Milagres. Por sua vez, outros grupos e agentes locais encontraram formas bem-sucedidas de transferir esse

conhecimento e de comprometer “no gosto pelas nos-sas tradições” crianças, jovens e adultos (Sandra Costa do grupo As Vozes de Manhouce). A investigação ainda está em curso, mas já tem refle-xos no contexto em estudo. Observamos uma inicia-tiva e compromisso por parte das cantadeiras que no início da pesquisa, há dois anos atrás, era limitado a alguns grupos e agentes locais. As detentoras da tradi-ção assumem nas conversas as transformações e dinâ-micas em que participam e aceitam que haja cantadei-ras autoras de novas letras. Agora, têm mais confiança na equipa de investigadores? Tomaram consciência do poder que este conhecimento lhes dá? Parece-nos que o património cultural imaterial está a funcionar como fator de aproximação, intercâmbio e entendimento en-tre cantadeiras de diferentes localidades, investigado-res e agentes culturais.

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A minha experiência em torno do Património Cultural Imaterial estende-se a outras práticas musicais e geogra-fias. Em 2014, coordenei a edição crítica de uma parte da coleção de registos sonoros de música de matriz rural do folclorista e compositor Armando Leça. Essa edição teve como finalidade devolver os registos sonoros às co-munidades onde foram gravados nos anos 1939-40 e con-tou com a colaboração de autores que refletiram, entre outros assuntos, sobre o impacte da inscrição do Cante Alentejano na Lista Representativa do Património Cul-tural Imaterial da unesco. Em localidades como Ode-mira, a devolução das gravações à comunidade tornou possível a reapropriação de repertórios caídos no esque-cimento, agora ensinados às crianças. Em 2016, coordenei com Luísa Tiago de Oliveira em Re-guengos de Monsaraz um colóquio intitulado Práticas musicais no Alentejo: a terra, as memórias e o património, que além de reunir estudiosos sobre o cante alente-jano e o processo de patrimonialização, colocou fren-te-a-frente numa mesa redonda, moderada por Jorge Freitas Branco, cantadores, criadores, responsáveis pela cultura regional e pelo processo de candidatura do Cante, entre outros protagonistas. Estas participa-ções e debates foram transcritos e publicados em 2017 (Pestana e Oliveira 2017).No ano seguinte, organizei em colaboração com Maria José Barriga três conversas públicas em Beja, Odemira e Serpa sob o título “O Património somos nós!”, respe-tivamente no Centro unesco de Beja, na Casa do Povo de S. Martinho das Amoreiras, concelho de Odemira e na Casa do Cante de Serpa. O assunto dessas conversas foi o Cante Alentejano no contexto de pós-patrimonia-lização. Cantadores, ensaiadores, letristas, composito-res, agentes culturais locais e estudiosos do Cante fo-ram convidados a reunir-se face-a-face para discutir

a condução do processo de candidatura, as políticas culturais e económicas que estão em curso, as dinâ-micas dos grupos formalmente instituídos, o papel de cada um na salvaguarda do Cante e as expectativas para o futuro. Cruzámos a análise destas conversas com o trabalho de campo que realizámos individual-mente e redigimos um texto intitulado “Le patri-moine c’est nous! Des voix plurielles autour du can-te alentejano” que foi submetido ao dossier “Musique: Patrimoine Immatériel?” da revista Transposition (Pes-tana e Barriga 2019, em preparação). O estudo eviden-cia, por um lado, a transformação operada nos últimos anos no seio das famílias – onde os mais novos são, por vezes, fator de transmissão e de motivação para a performance do Cante – e a resignificação social do cante. Por outro lado, analisa as tensões entre jovens e os cantadores mais velhos, entre cantadores amadores e profissionais, entre grupos de cante e decisores polí-ticos, entre transferência de conhecimento nas escolas e nos ensaios, etc. Em agosto de 2018, demos início ao projeto de investiga-ção “‘Práticas sustentáveis’: um estudo sobre o pós-fol-clorismo em Portugal no século xxi”, poci-01-0145-fe-der-031782, co-financiado pela União Europeia, através do Programa Operacional Competitividade e Interna-cionalização (feder) e pela Fundação para a Ciência e Tecnologia. Uma das tarefas que está a ser desenvolvi-da pelos investigadores tem como título “Heritage and Tourism: meanings and resources in the 21st century”. Além destes projectos, integro com outros investigado-res a comissão científica do grupo de trabalho coorde-nado por Jorge Castro Ribeiro, intitulado “bom porto

– Inscrição da Matriz do Património Cultural Imaterial da ‘Construção e Práticas Tradicionais Colectivas do Bombo em Portugal’”.

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