Upload
poetonho
View
28
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
1
MARIANA SILVA SANTANA
PRESERVAO DOCUMENTAL:
um olhar contemporneo
2007
DEPM ESCOLA DE MUSEOLOGIA CCH UNIRIO Graduao em Museologia Monografia 2007.
Preservao documental: Um olhar contemporneo Orientadora: Prof. Leila Beatriz Ribeiro Aluna: Mariana Silva Santana
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE CINCIAS HUMANAS E SOCIAIS
ESCOLA DE MUSEOLOGIA
PRESERVAO DOCUMENTAL:
UM OLHAR CONTEMPORNEO
MARIANA SILVA SANTANA
RIO DE JANEIRO
2007
DEPM ESCOLA DE MUSEOLOGIA CCH UNIRIO Graduao em Museologia Monografia 2007.
Preservao documental: Um olhar contemporneo Orientadora: Prof. Leila Beatriz Ribeiro Aluna: Mariana Silva Santana
PRESERVAO DOCUMENTAL:
um olhar contemporneo
MARIANA SILVA SANTANA
Monografia apresentada Escola de Museologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro como requisito parcial obteno do grau de Bacharel em Museologia.
Orientadora:
Prof. Dr. Leila Beatriz Ribeiro
Rio de Janeiro
2007
DEPM ESCOLA DE MUSEOLOGIA CCH UNIRIO Graduao em Museologia Monografia 2007.
Preservao documental: Um olhar contemporneo Orientadora: Prof. Leila Beatriz Ribeiro Aluna: Mariana Silva Santana
PRESERVAO DOCUMENTAL: um olhar contemporneo
MARIANA SILVA SANTANA
Monografia apresentada Escola de Museologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro como requisito parcial obteno do grau de Bacharel em Museologia.
Aprovado por:
BANCA EXAMINADORA
________________________________________
Prof. Dr. Vera Lcia Doyle Dodebei UNIRIO
________________________________________
Prof. Avelina Addor UNIRIO
________________________________________
Prof. Dra. Leila Beatriz Ribeiro (orientadora) UNIRIO
Rio de Janeiro
2007
DEPM ESCOLA DE MUSEOLOGIA CCH UNIRIO Graduao em Museologia Monografia 2007.
Preservao documental: Um olhar contemporneo Orientadora: Prof. Leila Beatriz Ribeiro Aluna: Mariana Silva Santana
mame. Por tudo, sempre.
Dedico, com todo amor que houver nessa vida, no apenas este trabalho, mas todos os outros que viro, com
certeza. Estamos apenas no comeo.
Me, voc responsvel pela pessoa que sou hoje. Voc mudou toda a sua vida para que eu pudesse mudar a
minha; para que a histria no se repetisse.
Pode estar certa de que ela no se repetir.
Dedico esta monografia a voc, em agradecimento pela maior lio que poderia ensinar:
o exemplo de vida.
DEPM ESCOLA DE MUSEOLOGIA CCH UNIRIO Graduao em Museologia Monografia 2007.
Preservao documental: Um olhar contemporneo Orientadora: Prof. Leila Beatriz Ribeiro Aluna: Mariana Silva Santana
Leila Beatriz Ribeiro
Avelina Addor
Vera Dodebei
Sandra Baruki
Mariana Estellita
Roberta Leite
Adriana Holls
Lucia Peralta
Maria Julia
Richam Samir
Daniela Camargo
Maria Isabel Lenzi
Mrcio Ferreira
Daniel Sotero
Minha av, Dona Olinda, pela fora de sempre e pela dedicao com a Maria Rosa.
Milton e Maria Rosa, por me fazerem crescer um pouco mais a cada dia.
Filha, com seus olhos eu aprendo a reler o mundo. Eu te amo.
DEPM ESCOLA DE MUSEOLOGIA CCH UNIRIO Graduao em Museologia Monografia 2007.
Preservao documental: Um olhar contemporneo Orientadora: Prof. Leila Beatriz Ribeiro Aluna: Mariana Silva Santana
RESUMO
A concepo tradicional de documento como suporte fsico da informao est
sendo posta em xeque pelas atuais abordagens deste conceito. A utilizao de
tecnologias nas prticas de preservao permite conservar a informao de
carter documental atravs da reformatao. O principal objetivo deste trabalho
abordar as novas tecnologias implantadas na preservao da informao
documental. So enfocados os conceitos de documento, de patrimnio e de
preservao, e descritos procedimentos de microfilmagem e digitalizao.
Diante da crescente massa documental em suporte digital, destacamos as
alteraes ocorridas na noo de documento e preservao analisando os
procedimentos tcnicos necessrios para a mudana de suportes, do analgico
ao digital. Discutimos a diferenciao entre documentos digitalizados e objetos
criados no universo digital, abordando suas especificidades no processo de
preservao em relao ao documento analgico. Conclumos que as
abordagens atuais sobre a preservao documental consideram o documento
como suporte de informao independente de sua forma fsica.
Palavras-chave: Documento. Patrimnio. Preservao da informao.
DEPM ESCOLA DE MUSEOLOGIA CCH UNIRIO Graduao em Museologia Monografia 2007.
Preservao documental: Um olhar contemporneo Orientadora: Prof. Leila Beatriz Ribeiro Aluna: Mariana Silva Santana
ABSTRACT
The traditional conception of document as a physical support of information has
been questioned by the current use of this concept. The uses of technologies in
the preservation practice allow conserving document information through the
refreshing. The main goal of this work is the introduction of new technologies
implanted in documental information preservation. Focus concepts of
document, patrimony and preservation, and describes microfilm and digitalizing
procedures. In face of the crescent document mass in digital support, detach
the changes in document and preservation notions analyzing the technical
procedures necessary to change supports, from analogical to digital. Discuss
the differentiation between digitalized documents and objects created in digital
universe, talking about its specificities in preservations processes related to
analogical document. Conclude that present approaches over the documental
preservation consider the document as an information support free from its
physical shape.
Key-words: Document. Patrimony. Informational preservation.
DEPM ESCOLA DE MUSEOLOGIA CCH UNIRIO Graduao em Museologia Monografia 2007.
Preservao documental: Um olhar contemporneo Orientadora: Prof. Leila Beatriz Ribeiro Aluna: Mariana Silva Santana
... Passar para microfilme a matria impressa ou
manuscrita do passado no deve acarretar desapreo
subseqente pelo original microfilmado.
Ao contrrio.
Cumpre redobrar de cuidados em seu favor.
O objeto vale mais do que sua representao.
Vamos zelar mais pelos arquivos, pelas escrituras e
jornais da monarquia, vamos defend-los da mo inbil
que rasga ou mancha o papel respeitvel;
da mo e do cupim, da umidade e do calor que os
deterioram e os consomem.
Que a popularizao do microfilme e da cpia
xerogrfica no importe em deixar ao abandono, da
por diante, as peas cujo teor foi preservado mediante
reproduo mecnica.
Sem esquecer que esta sofre os mesmos riscos de
aniquilamento pelo tempo e pela ao dos
desavisados.
Ganhamos espaos condensando em pequenino rolo a
massa colossal de papel, mas isso no quer dizer que
joguemos pela janela ou condenemos runa o que foi
considerado digno de ser transmitido a outras
geraes.
Em resumo: viva o documento.
Carlos Drummond de Andrade
DEPM ESCOLA DE MUSEOLOGIA CCH UNIRIO Graduao em Museologia Monografia 2007.
Preservao documental: Um olhar contemporneo Orientadora: Prof. Leila Beatriz Ribeiro Aluna: Mariana Silva Santana
SUMRIO
INTRODUO p.10 Captulo I
REGISTRO DOCUMENTAL: RASTRO DE MEMRIA p.14 1.1 DOCUMENTO TRADICIONAL p.20 1.2 DOCUMENTO DIGITAL p.26
Captulo II PATRIMNIO: DESAPARECIMENTO E RECONSTRUO p. 32
2.1 PATRIMNIO DE PEDRA E CAL p. 37 2.2 PATRIMNIO DIGITAL p. 42
Captulo III PRESERVAO DOCUMENTAL: NOVOS PARADIGMAS p. 47
3.1 DIGITALIZAO DE DOCUMENTOS p. 55 3.2 PRESERVAO DIGITAL p. 61
CONCLUSO p. 66 REFERNCIAS p. 71
ANEXO I DECRETO-LEI N. 25, DE 30 DE NOVEMBRO DE 1937 p. 77
ANEXO II CARTA DE ATENAS - OUTUBRO DE 1931 p. 83
ANEXO III - CARTA PARA A PRESERVAO DO PATRIMNIO ARQUIVSTICO DIGITAL p. 88
10
INTRODUO
O documento testemunho de um tempo e suporte da informao. A
preservao s existe em funo do seu uso social, que comunicar um tempo
a outro tempo. O papel do profissional de conservao/preservao prever os
riscos, estabelecer uma espcie de deteriorao programada do suporte, e
utilizar mecanismos tecnolgicos para preservar a informao. Cada vez mais
as prticas de conservao vm incorporando novas tecnologias. A
deteriorao do documento fato e o que fazemos lutar contra o tempo, a fim
de preservar a informao em detrimento do suporte, garantindo que a
informao seja acessada a longo prazo.
A poltica cultural vigente reconhece a necessidade de se resguardar o
patrimnio cultural brasileiro a fim salv-lo do desaparecimento. A preservao
documental sustenta a incessante busca por uma memria e uma identidade
nacionais. As prticas de colecionar, restaurar e preservar bens culturais tem a
finalidade de expor para as geraes atuais e futuras fragmentos que
representam o passado e, ao mesmo tempo, do autenticidade s narrativas
que o constroem. Narrativas estas formadas ao longo do tempo pelas
autoridades polticas que moldaram os conceitos de patrimnio, identidade,
cultura e nao. A noo de patrimnio cultural construda atravs da
objetificao de idias e valores classificados como nacionais. Esse patrimnio
objetificado est em permanente processo de desaparecimento e reconstruo.
O processo de desaparecimento implica num processo de reconstruo.
A utilizao freqente de termos como fragmentao e construo
dentro dessas narrativas enfatiza o carter ambguo do conceito de bem
cultural ou alegoria. A alegoria usada para ilustrar de maneira concreta uma
idia ou um fazer, uma forma de representao da realidade da qual foi
destacada. Ao mesmo tempo em que construo tambm runa. Nas
palavras de Jos Reginaldo Gonalves ... possvel dizer que podem ser
considerados por esse duplo aspecto: desaparecimento e reconstruo
imaginativa, perda e apropriao, disperso e coleo, destruio e
preservao, contingncia e redeno. (GONALVES, 1996, p. 30)
11
Gonalves argumenta que as estratgias estabelecidas para se
apropriar e preservar o patrimnio se opem a uma situao de fragmentao
e descontinuidade ao mesmo tempo em que do autenticidade a uma
identidade nacional brasileira. A apropriao da cultura nacional vai ao
encontro da idia de que se deva resguardar a integridade e a continuidade de
bens ameaados pela destruio ou desaparecimento. Bens estes que so
propriedade coletiva da nao, englobando todos os elementos que constituem
sua cultura. A idia de apropriao pressupe a possibilidade de perda. Assim,
se uma nao no se apropria de seus bens culturais ela corre o risco de
perder sua identidade. Se os fragmentos que representam essa totalidade
essa tentativa de representao de uma nao integrada desaparecem, a
prpria nao corre o risco de esquecer sua memria e, consequentemente,
sua identidade.
Essa forma de construo terica que coloca a perda do patrimnio
como perda da identidade, ao mesmo tempo em que cria a dimenso de perda
como sendo posterior apropriao, inverte essa dimenso na medida em que
para se atingir a uma totalidade conceitual do que seria a idia de nao, extrai
fragmentos descontextualizados, aos quais so aplicadas as aes
preservacionistas. Dessa maneira, o chamado patrimnio cultural no
resgatado em sua totalidade e integridade, mas por intermdio dos seus
fragmentos [...]. (GONALVES, 1996, p. 112) Um documento um desses
fragmentos. Ele s se torna um testemunho diante de nossos questionamentos,
quando recuperamos o contexto scioeconmico e poltico-cultural em que
surgiu para relacionarmos ao atual. Para Le Goff,
O documento no incuo. antes de mais o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da histria, da poca, da sociedade que o produziram, mas tambm das pocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silncio. O documento uma coisa que fica, que dura, e o testemunho, o ensinamento (para evocar a etimologia) que ele traz devem ser em primeiro lugar analisados desmistificando-lhe o seu significado aparente. O documento monumento. Resulta do esforo das sociedades histricas para impor ao futuro voluntria ou involuntariamente determinada imagem de si prprias. (LE GOFF, 2004, p. 103)
12
O que transforma um objeto em documento essa possibilidade de se
acessar uma memria, individual, social ou coletiva. Assumindo essa
caracterstica de registro, testemunho ou prova de determinada ao social, o
documento capaz de atualizar um contexto histrico ou sociocultural que
poder ser analisado de diversas perspectivas. Um documento s gera
conhecimento quando o indivduo capaz de interpretar e compreender as
informaes luz do seu tempo, e acessar suas memrias e experincias para
atribuir novos significados.
O objetivo geral deste trabalho abordar as novas tecnologias
implantadas na preservao documental. Diante do imperativo tecnolgico que
coloca em jogo a concepo tradicional de documento apenas como suporte
fsico da informao, so incorporadas, nos dias de hoje, novas formas de
documento, abrangendo assim, o patrimnio digital. A partir desta abordagem,
pretendemos analisar os procedimentos para a efetiva mudana de suporte
documental, do meio analgico para o digital. Nesse sentido se faz necessrio
identificar as mudanas ocorridas na noo de documento e de preservao
documental diante dessa nova modalidade de suporte, enfocando a discusso
acerca do documento tradicional e a diferenciao entre documentos
analgicos que foram transportados para o universo digital e documentos
gerados digitalmente.
No primeiro captulo ser abordada a idia de registro, enfocando os
conceitos de documento tradicional e documento digital. Destacamos que o
termo documento est relacionado com transmisso de informao. Neste
sentido, demonstrado que o contedo documental, para ser considerado
como tal, independe do suporte, e o que se coloca em foco sua condio
funcional. Para a construo da histria o uso do documento fundamental,
sendo empregado um processo seletivo na massa documental que servir de
base para a formulao de uma representatividade social. Neste captulo
traado ainda um panorama da evoluo do conceito de documento durante o
sculo XX, desde a incorporao da noo de objetos no textuais at o
imperativo tecnolgico virtual. Nesse contexto, sinalizamos a variedade de
suportes de informao que so considerados portadores de memria.
13
O segundo captulo trata das caractersticas e histria da construo da
noo de patrimnio no Brasil e como essa construo definiu discursivamente
o conceito de nao, ao evidenciar o termo patrimnio cultural. Nele
distinguimos duas categorias de patrimnio: patrimnio tradicional, dito
patrimnio de pedra e cal, e patrimnio digital, documentos produzidos atravs
de sistemas informatizados. Percebemos que ao ser referenciado como
patrimnio o objeto recebe um valor simblico que o eleva categoria de
documento e que o conceito de patrimnio atua como instrumento de
preservao da memria coletiva.
No terceiro captulo enfocado o conceito de preservao documental e
informacional, desde a conservao de documentos em suporte analgico,
passando pela digitalizao desses documentos e finalmente abordando a
preservao da informao em ambiente digital. Descrevemos procedimentos
tcnicos aplicados para salvaguarda de acervos documentais, onde a inteno
manter a informao em seu suporte original. Assinala-se o recurso adotado
para a disseminao da informao, que duplicar/digitalizar para promover a
preservao e o acesso. Isso gera uma nova massa documental eletrnica
invisvel que necessita igualmente ser gerenciada e preservada, seja a
duplicao de um objeto material, ou uma criao do prprio universo digital.
Conclui-se que os princpios de preservao diferem da conservao,
embora sejam conceitos anlogos, e que a cada poca so dadas realidades e
paradigmas a serem enfrentados. Quando se tratava apenas de calcular a vida
til de um objeto tangvel, o trabalho do profissional de preservao mantinha
uma relao prxima da materialidade do bem preservado, porm quando
adventos tecnolgicos nos permitem ampliar a noo de durabilidade e acesso
e surgem os microfilmes, essa relao com o original se modifica, embora o
microfilme tambm seja informao em forma de matria. Com a era
informacional rompida a barreira da materialidade e da espacialidade, a
compactao do volume ocupado pela informao ainda maior e a
tangibilidade se perde no mundo virtual. A gerao de documentos digitais
apresenta um novo desafio: conservar informao impalpvel, num universo
em permanente processo de supresso.
14
Capitulo I
REGISTRO DOCUMENTAL: RASTRO DE MEMRIA
O termo documento vem do latim documentum, derivado de docere, que
significa ensinar. Documentos podem atuar como veculos de representao e
preservao da memria social, pois transportam significados. geralmente
definido como suporte fsico da informao, sendo prova ou testemunho de
determinada ao cultural. Mas o que um documento? O conceito de
documento, de acordo com o senso comum, nos remete a algum texto escrito
sobre papel. Fica clara a concepo tradicional to arraigada ao suporte. Ao
confrontarmos a etimologia da palavra com o conceito adotado pelo senso
comum podemos destacar um ponto. Antes do papel, ou antes, da escrita no
havia ensinamento? No havia transmisso de informao? [...] quem estuda
a pr-histria no tem a sua disposio fontes de arquivos escritas. (BUCAILLE;
PESEZ, 1989, p.17) Um documento no pode ser considerado documento
apenas em funo do seu suporte, a prpria etimologia nos remete a uma
caracterstica funcional. Na ampliao desse conceito vimos que as respostas
para estas questes surgem a partir de construes de significados elaboradas
pelo discurso histrico, pois para o historiador, o recurso ao documento
fundamental.
Assim como a elaborao da noo de patrimnio descontnua e
composta por fragmentos, tambm o elenco de documentos representativos
passa por uma escolha. Em meio a toda essa massa documental que nos
cerca, so estabelecidos critrios de seleo e organizao que possam dar
forma e sentido a esses possveis discursos. O documento que, para a escola
histrica positivista do fim do sculo XIX e do incio do sculo XX, ser o
fundamento do facto histrico, ainda que resulte da escolha, de uma deciso
do historiador, parece apresentar-se por si mesmo como prova histrica. (LE
GOFF, 2004, p. 95). A consulta ao documento indispensvel ao historiador,
no existiria histria se no fosse deixado um rastro que se pudesse recorrer
para construir suas narrativas. O fato histrico permanece atravs do registro
15
documental. Na argumentao de Foucault:
[...] a histria mudou sua posio acerca do documento: ela se d por tarefa primeira, nem tanto interpret-lo, nem tanto determinar se ele diz a verdade e qual o seu valor expressivo, mas sim trabalh-lo no interior e elabor-lo: ela o organiza, recorta-o, distribui-o, ordena-o, reparte-o em nveis, estabelece sries, distingue o que pertinente do que no , delimita elementos, define unidades, descreve relaes. O documento, pois, no mais para a histria essa matria inerte atravs da qual ela tenta reconstituir o que os homens fizeram ou disseram, o que passado e do qual apenas permanece o rastro: ela procura definir, no prprio tecido documental das unidades, conjuntos, sries, relaes. [...] O documento no o feliz instrumento de uma histria que seria nela mesma, e de pleno direito, memria; a histria , para uma sociedade, uma certa maneira de dar estatuto de elaborao massa documental de que ela no se separa. (FOUCAULT, 1972, p. 13-14)
No incio do sculo XX levantaram-se questes acerca do termo
documento, discutindo sua definio e abrangncia. O conceito comeava a
estender-se a objetos no textuais, ou no impressos, incluindo figuras,
materiais audiovisuais e objetos tridimensionais; percebeu-se que o
alargamento do conceito era necessrio para atender a demanda crescente no
campo da documentao.
Isso era conveniente para estender a esfera do campo para incluir figuras e outros materiais grficos e audiovisuais. O belga Paul Otlet (1868 1944) conhecido por sua observao que documentos podem ser tridimensionais, desse modo incluindo esculturas. A partir de 1928, objetos de museus tinham chance de serem includos por documentaristas dentro de definies de documento. (BUCKLAND, 2005, p. 2, traduo nossa)
Paul Otlet ao inserir neste campo as esculturas, abriu espao para que
os objetos de museus fossem considerados documentos, abrangendo tambm
achados arqueolgicos, traos de atividade humana e outros objetos que no
possuam finalidade comunicacional. Em Trait de Documentation de 1934
Otlet afirma que se voc recebe informaes a partir da observao de objetos,
eles podem ser considerados documentos. A bibliotecria Suzanne Briet (1894-
1989) incorporou a noo de prova fsica como documento. Briet, em seu
manifesto sobre a natureza da documentao, Qust-ce que la documentation
de 1951, considera o carter representacional, reconstrutivo ou demonstrativo
16
dos documentos. Buckland, analisando Briet, percebe alguns pontos que
determinam a transformao de objeto em documento:
1. H materialidade: Somente objetos fsicos podem ser documentados [...]; 2. H intencionalidade: entendido que o objeto seja tratado como prova; 3. Os objetos tm que ser processados: Eles tm que ser transformados em documentos [...]; 4. H uma posio fenomolgica: O objeto entendido para ser um documento. (BUCKLAND, 2005, p. 4, traduo nossa)
Essa ampliao na abrangncia do termo documento suscitou em
mudanas de ordem quantitativa e qualitativa e gerou uma produo
documental massiva a partir da dcada de 60, intitulada revoluo documental.
Esta ocorreu concomitantemente com outra espcie de revoluo, a
tecnolgica. Com a emergncia da sociedade da informao cresceu o
interesse sobre aspectos econmicos e sociais da vida das populaes e
tambm a produo de documentos como inventrios, relatrios, entrevistas
etc. O desenvolvimento tecnolgico provocou a ampliao da necessidade e da
capacidade de gerar ilimitadamente documentao de novos tipos, como, por
exemplo, som e imagem em vrios suportes: papel, magntico e digital. Surge
a uma problemtica para a documentao: estabelecer novos critrios de
conservao, organizao, classificao e difuso das informaes.
Era preciso atribuir lgica ao excessivo volume de documentos produzidos e acumulados pelo Estado em decorrncia desse agigantamento de suas funes e atribuies. Os compromissos do Estado deveriam estar apoiados em uma ordem documental e numa estrutura de suporte informativo as mais eficientes. (CAMARGO, 2005, p.1)
Nesse contexto se introduz a questo de novos suportes de informao
como portadores de memria. O documento no mais visto exclusivamente
como monumento, se multiplica a variedade de suportes que se pode consultar
para o acesso memria histrica, a recuperao de dados acontece numa
perspectiva relacional. Mais ainda do que esses mltiplos modos de abordar
um documento, para que ele possa contribuir para uma histria total, importa
no isolar os documentos do conjunto de monumentos de que fazem parte.
(LE GOFF, 2004, p. 104)
17
Segundo Pomain, o documento/monumento permite uma reevocao do
passado. runa, parte do original e lembrana do passado. Suporte material
da memria, capaz de atualizar a memria sobre algo que j passou. uma
ponte entre presente e passado.
[...] todos os nossos conhecimentos acerca do passado da Terra e dos seres vivos, do homem ou duma dada sociedade existente numa dada poca e num dado territrio, todos os conhecimentos, em suma, que formam o contedo da histria, s podem ser obtidas graas aos fsseis e a documentos/monumentos de todos os gneros, ambos, por assim dizer, recordaes colectivamente materializadas. (POMAIN, 2000, p. 509)
Dodebei, em 1997, na sua tese O sentido e o significado de documento
para a memria social, prope uma reviso do conceito tradicional de
documento como suporte material da informao, haja vista que para
apreender seu sentido e significado preciso considerar outros aspectos, tais
como sua insero no mbito da memria social e sua necessidade de
interlocuo. Nas palavras de Dodebei o conceito de documento deve reunir
trs proposies:
UNICIDADE Os documentos que so os objetos de estudo da memria social no so diferenciados em sua essncia ou seja, no se agrupam em categorias especficas, tal como os exemplos tradicionais: o livro para bibliotecas, o objeto tradicional para museus e o manuscrito para arquivos.
VIRTUALIDADE A atribuio de predicveis ao objeto submetido ao observador dentro das dimenses espao-tempo seletiva, o que proporcionar, arbitrariamente, uma classificao desse objeto.
SIGNIFICAO A transformao dos objetos do cotidiano em documentos intencional, constituindo estes uma categoria temporria e circunstancial. (DODEBEI, 1997, p. 22)
Na museologia, a idia de objeto como documento se aproxima da
arqueologia no que se refere noo de cultura material, pois se utiliza de
artefatos como prova documental. O documento o objeto musealizado. As
colees representam o acmulo, seleo e organizao sistemtica da cultura
material armazenada ao longo do tempo pelos museus. Na museologia objetos
desprovidos de informao escrita tambm so considerados documentos.
18
[...] a documentao clssica, escrita ou visual, pode englobar amplos sectores da cultura material, mas s d deles uma imagem reflectida, subjectiva e j interpretada, necessitando, portanto, de certa prudncia. Alm disso, quando um texto cita um objeto concreto, no se pode, na maior parte dos casos, dar dele uma imagem precisa; a arqueologia, pelo contrrio, pe-nos diretamente em contacto com o prprio material, que se pode tocar, examinar e interpretar sem o perigo de erro devido a subjectividade da documentao. (BUCAILLE; PESEZ, 1989, p.19)
Identificamos o documento musealizado como aquilo que transporta
significado. A nfase est na construo social de significado atravs de
objetos que foram destacados do uso cotidiano para simbolizar determinada
constante social em se tratando de representar a coletividade ou
caractersticas materiais de determinado indivduo, dependendo do contexto de
cada museu. Para Helena Ferrez, essa situao se traduz da seguinte maneira:
Os museus, assim como a prpria Museologia, esto voltados basicamente
para a preservao, a pesquisa e a comunicao das evidncias materiais do
homem e seu meio ambiente, isto seu patrimnio cultural e natural. (FERREZ,
1994, p. 65) Um documento no atua isoladamente, ele no nasce documento,
preciso adot-lo como tal e estabelecer relaes e contextos com os quais
ele possa dialogar para que sejam atribudos significados, que podem ser
diversos, dependendo do olhar daquele que examina. Dessa maneira, torna-se
importante ressaltar que o documento/objeto deve passar por um processo de
identificao extremamente minucioso antes de ser exibido. A verificao do
contedo informacional daquele objeto nem sempre pode ser apreendida num
primeiro momento, bastando apenas que se lance sobre ele um olhar, mesmo
que seja o mais atento, numa exposio museolgica. necessrio que cada
instituio formule meticulosamente que tipo de informaes sero encontradas
na documentao daquelas peas.
A documentao o suporte da pesquisa cientfica e da comunicao. A
simples descrio do objeto musealizado no bastante para que se
reconstrua o contexto histrico o carter simblico da pea. Ainda nas
palavras de Ferrez esse conjunto de informaes sobre um objeto que
estabelece seu lugar e importncia dentro de uma cultura e que o torna
testemunho, sem o qual seu valor histrico, esttico, econmico, cientfico,
19
simblico e outros fortemente diminudo; (FERREZ, 1994, p. 65) importante
integrar os objetos s suas colees para que ela seja realmente significativa e
para que transmita toda uma reconstruo da situao original. Evitando-se a
disperso e otimizando-se as potencialidades representacionais de uma
coleo torna-se mais simples a obteno de um sistema de recuperao de
informao realmente eficaz. Tal sistema deve possibilitar o acesso aos
documentos como fontes de conhecimento, seja para pesquisa cientfica ou
como elemento comunicacional em exposies. Por isso necessrio se
confirmar a eficcia de um sistema de recuperao da informao antes de
implant-lo.
Tanto em museus quanto em bibliotecas e arquivos os sistemas de
recuperao da informao devem reunir o mesmo formato global, seguindo os
mesmos objetivos, funes e forma organizacional. De maneira geral tais
sistemas organizam o fluxo do documento resgatando toda sua trajetria de
vida, fora e dentro da instituio, para que se estabelea uma relao entre
informao e usurio, ocorrendo neste alguma transformao de sua estrutura
cognitiva, de forma que esteja garantido o acesso aos documentos,
devidamente conservados, elevando ao mximo o uso das informaes
contidas no documento.
O objetivo primordial da identificao de registro documental como
gatilho da memria estabelecer parmetros em que os atores sociais possam
interagir de modo que encontrem referncias passadas na construo do
futuro, ou ao menos na projeo de uma auto imagem social que sirva de
espelho para a humanidade. Atestar que o documento um rastro da memria
serve para embasar as narrativas diversas que atuam na construo de
identidades coletivas. Isto explica porque nossos arquivos, especialmente os
arquivos pblicos, esto abarrotados de massas documentais acumuladas,
mesmo quando implantados processos de gesto, que desdobram-se em
gesto de documentos e de informao, no apenas no descartando o objeto
original em formato tradicional, conservando-os, mas abarcando tambm
objetos digitais, sejam digitalizados ou nascidos no ambiente digital, qui
jamais impressos.
20
1.1 DOCUMENTO TRADICIONAL
De acordo com o Dicionrio Brasileiro Globo, o termo documento
significa Declarao escrita para servir de prova. Tradicional, que se refere
tradio, do latim traditione, que o Ato de entregar ou transmitir; transmisso
oral de fatos histricos, lendas etc., de idade em idade; usos ou hbitos
inveterados, transmitidos de gerao em gerao; smbolo; memria;
recordao. (FERNANDES, 1996, s/p). Vem deste tipo de referncia a definio
de documento adotada pelo senso comum, esta a concepo mais genrica
dada palavra. A comunidade acadmica, mais especificamente das reas das
cincias humanas e sociais, no se limita a uma definio restrita como esta.
Chega-se a admitir que documento seja tudo aquilo de onde se possam extrair
informaes, sendo levadas em conta diversas formas de suporte. Ao longo de
anos essa idia de documento igual a texto escrito est em permanente
processo de mudana. Hoje so considerados documentos diversas
modalidades do patrimnio cultural, incluindo bens naturais.
Mrio Chagas elabora seu conceito de documento tomando como base
a etimologia do termo numa perspectiva relacional pautada pela compreenso
de que documento aquilo que ensina. Etimologicamente, a palavra deriva do
termo latino docere, que significa ensinar. Uma vez que ensina, pode-se dizer
que uma fonte de pesquisa, um recurso utilizado para a obteno de
conhecimento. A partir do olhar interrogativo lanado sobre o documento que
podem ser extradas as informaes. O objeto/documento s se transforma em
portador de informao quando tratado de maneira diferenciada, procurando
atribuir a ele algum valor informacional. Ele diz: O ensinamento, como se
sabe, no emana e no est embutido no documento. Ele est, brota e surge a
partir da relao que com o documento/testemunho se pode manter. (CHAGAS,
1994, p. 42) Segundo Chagas a noo de documento envolve a relao entre
homem, objeto e lugar, e pode ser observada a partir do Quadro 1 abaixo, onde
mostra que o bem cultural no bem cultural isolado, e para a formulao
desse conceito necessrio que o homem eleja e articule os bens que servem
como base para a sustentao daquilo que ele chama de cultura e daquilo que
ele quer que represente determinada cultura.
21
1 homem/sujeito Usurio, consulente, participante, pblico, comunidade. 2 documento/bem cultural
Objetos, livros, papis, coleo, patrimnio cultural e natural.
3 espao/campo Edifcio, sala de consulta, sala de leitura, lugar qualquer, espao de representao, territrio.
Quadro 1: Ternrio matricial Fonte: Chagas (1994, p. 42)
Para que exista o documento preciso que se extraia dele alguma
informao, que vai variar de acordo com a inteno que o sujeito possui
quando consulta quele documento e do espao que ele ocupa, ou seja, do
lugar de onde o indivduo olha. No existe informao de carter documental
sem que se recorra a alguma referncia para que seja identificada a
informao. Um dado totalmente novo no alterar qualquer estrutura cognitiva
sem o acesso memria, a fim de reconhecer nesse dado alguma similaridade
com aquilo que j tenha apreendido antes. A est a relao que estabelece: o
documento no em si portador de memria, um facilitador para o acesso e
reconhecimento de dados que s podero gerar alguma transformao caso o
usurio encontre alguma relevncia na utilizao daquele documento. A
memria justifica o novo, a informao e a redundncia. (CHAGAS, 1994, p. 45)
Dessa maneira, vimos que o documento atua como um desencadeador para a
memria. O recurso ao registro documental promove uma constante
(re)atualizao da memria.
Dodebei, ao apresentar sua proposta de construo do conceito de
documento a partir da crtica ao discurso da preservao da memria social,
considerou as necessidades de informao para a formao da identidade e,
em ampliao ao quadro apresentado por Mrio Chagas, analisa as relaes
entre objeto, sujeito e espao inserindo a noo de atributos informacionais. Tal
leitura foi exposta da seguinte maneira:
OBJETO ! SUJEITO/OBJETO ! SUJEITO/ESPAO # # #
Material Psicolgico Social Quadro 2: Atributos informacionais do objeto Fonte: Dodebei (1997, p. 27)
22
Essa anlise identifica [...] atributos isolados e essenciais, na
identificao das relaes entre atributos informacionais prprios do objeto e,
ainda, nas condies informacionais do sujeito e do espao/tempo. (DODEBEI,
1997, p. 27) De acordo com essa leitura observamos que esses atributos se
entrecruzam para a construo da memria coletiva a partir da abordagem de
uma concepo tradicional de documento como objeto, pois o atributo
apresentado a materialidade. A relao do homem/sujeito com o bem
material/documento num dado espao/lugar desencadeia uma srie de
processos de trocas de informaes. Para Dodebei so esses elementos que
tecem essa rede de constante atribuio de significados.
Ao dirigirmos um olhar conceitual para as aes concretas desse tecido social, nos deparamos com os traos e vestgios que de uma certa forma transitam pelas dimenses temporais, passando do passado ao presente, sempre tendo em vista o futuro. Tais vestgios so, nesta abordagem, tratados genericamente por objetos, ou, mais especificamente, por objetos potenciais de memria. [...] Essas discusses nos encaminham a observar o sentido da memria presente, ainda que potencialmente, nos objetos produzidos pela sociedade. (DODEBEI, 1997, p. 34)
O argumento desses autores evidencia algumas caractersticas
indicirias para a obteno de uma unidade conceitual de documento
tradicional. Para alm do suporte fsico identificamos que existe uma srie de
anlises transversais que podem ser feitas para explorar o conceito de
documento de forma tradicional, como sendo aqueles que so objetos da
documentao clssica, ou mesmo aqueles trabalhados normalmente
tradicionalmente em museus, bibliotecas e arquivos, que so: o objeto
tridimensional, o livro e o manuscrito. Ampliando o grau de abrangncia
incorporado o conceito de bem cultural, que tudo aquilo que, sendo material
ou imaterial, contribui como referncia para um passado coletivo. Da surgem
elementos como a lngua, a dana, a msica, a culinria, os materiais
audiovisuais, os achados arqueolgicos e os monumentos de pedra e cal.
Buckland transcreve a definio tcnica de documento elaborada pela
Instituio Internacional para Cooperao Intelectual, na qual:
23
Documento: qualquer fonte de informao, em forma matria fixada, capaz de ser usada para referncia ou estudo ou como uma prova. Exemplos: manuscritos, material impresso, ilustraes, diagramas, espcimes de museus, etc. (BUCKLAND, 2005, p. 3, traduo nossa)
Ao longo de seu discurso mencionado diversas vezes aquilo que pode
ser considerado um documento tradicional. Citando Briet Buckland traz a noo
de prova: Um documento a prova que suporta um fato [...] um documento
um signo fsico ou simblico, preservado ou gravado, com propsito de
representar, reconstruir ou demonstrar um fenmeno fsico ou conceitual
(BUCKLAND, 2005, p. 3, traduo nossa)
Observando esses argumentos, fica evidente o julgamento tradicional
dado ao termo documento como algo estritamente ligado s propriedades
fsicas, informacionais e evocativas. Conforme observao de Pomain que
segue, a acumulao de documentos textuais representa significativa
contribuio no sentido de determinarmos um entendimento global do conceito
de documento, visto sob uma tica tradicional. Para o autor a inveno da
escrita e a memria coletiva esto intimamente relacionadas no que se refere
evocao do passado, haja vista que a oralidade sofre variaes ao longo do
tempo, para esta conferncia pode-se recorrer aos registros. J os suportes da
escrita possuem carter durvel, e reconhecida a preocupao em preservar
esses suportes.
A inveno da escrita representa, pois, uma verdadeira viragem no processo de formao da memria colectiva: a partir de agora, de uma gerao a gerao seguinte j no se transmitem apenas as tradies orais, por um lado, e por outro, objectos coleccionados que no podem falar seno a linguagem das imagens. Transmitem-se tambm textos, documentos de todos os gneros, e a sua acumulao ao longo do tempo que permite mudar radicalmente de atitude face ao passado.
[...] Os documentos escritos, esses sim, possuem uma durao, a durao das coisas. Durante um longussimo perodo de tempo escolhiam-se materiais particularmente resistentes aos desgastes para servirem de suporte aos escritos. Por isso, ao longo dos anos, estes documentos acumularam-se no significado mais literal do termo; enchem as coleces especializadas na conservao, ou seja, bibliotecas e arquivos. (POMAIN, 2000, p. 510-511)
24
A abordagem tradicional do termo documento refere-se a algo que seja
de certa maneira mensurvel, que possa ser registrado visando perpetuao
da informao de forma que alcance as geraes futuras. O documento
tradicional pode ser visto sob uma perspectiva que englobe aspectos
funcionais. Existe uma preocupao em atribuir a esses objetos, que foram
classificados de maneira diferenciada, tornando-se documentos, funes de
auxlio recuperao da memria, sendo necessrio, para tanto, que se
apliquem tcnicas de documentao ou, gerenciamento de informao. Tais
tcnicas so, em resumo, reunio, preservao, organizao, e disseminao
dos documentos. Esse conjunto de tcnicas necessrio para gerenciar o
crescente nmero de documentos, textuais ou no, que so gerados
continuamente. Ou seja, o documento para se constituir como instrumento de
pesquisa histrica precisa ser reunido e preservado com um nvel
desejavelmente elevado de organizao para que a informao seja
disseminada de forma eficaz. Sua funo primordial comunicar, sendo que
numa viso tradicional, essa comunicao, para que seja prolongada, est
relacionada durabilidade do suporte do registro. preciso preservar para que
a informao continue atendendo s geraes que sucedero nossa.
Ainda na fala de Pomain vemos que:
[...] todo o !documento/monumento! necessariamente parcial. uma runa, como de resto toda recordao. E, se interessa porque permite conservar uma relao com o passado e tambm porque permite remontar no tempo e encontrar algo da completude original perdida. Permite proceder a uma reevocao. (POMAIN, 2000, p. 512)
Percebe-se, ento que o documento, assim como a memria, capaz
de trazer para a atualidade, de presentificar, o passado. O documento
transforma uma lembrana em realidade, estabelecendo uma relao com o
passado, por meio da materializao de recordaes, seja o documento um
fssil, uma runa, uma fita de vdeo, uma pea de museu, uma fotografia, etc. O
documento tradicional, em suporte material, uma evidncia palpvel da
memria coletiva, prova fsica daquilo que poderia ser esquecido ou alterado
na tradio oral, constituindo assim, uma representao do imaginrio coletivo.
Nas palavras de Dodebei:
25
Para a imaginao histrica h a necessidade de se dar sentido ao material do passado, ao material morto ou, como diz Jeudy, s runas. Tais runas esto sempre presentes nas construes da memria, de tal sorte que no representam a degradao ou perda de uma possvel identificao cultural. Ao contrrio, elas so fundadoras do imaginrio histrico. (DODEBEI, 1997, p. 44)
O recurso ao documento escrito recupera os pormenores que vo se
modificando ao longo dos anos durante as narrativas da histria. Mantm-se o
original, o contedo do documento no sofre alteraes, e mudam as
perspectivas de anlise daquela informao. Assim se relacionam memria e
esquecimento, monumento e runa, numa constate reconstruo e
resignificao. Concomitantemente s alteraes de anlise da informao,
foram se modificando tambm ao longo de anos, as formas de comunicao da
informao. Os tipos de comunicao passaram da forma oral para a escrita e
em seguida para o meio eletrnico. Podemos esmiuar e comparar as
caractersticas fundamentais de cada tipo.
A comunicao oral se caracteriza por ser uma linguagem imediata que
se d em um espao de transferncia de auditiva cujo armazenamento se d
na memria. A comunicao escrita acontece atravs de textos lineares fixos
que acontecem apenas durante a interao com o texto em um espao
geogrfico determinado e armazenado em espaos fsicos de memria. A
passagem da cultura oral para a escrita representou uma grande
transformao para o indivduo e para a sociedade, da mesma maneira a
insero da cultura eletrnica que presenciamos cujas transformaes ainda
esto se delineando.
26
1.2 DOCUMENTO DIGITAL
Digital vem do latim digitale, que se origina da palavra digitu dgito,
dedo e significa a Forma de codificao de objetos do mundo real por meios
de dgitos binrios seqncia de 0s e 1s. (TOUTAIN, 2006, p. 16). No seu
texto Biblioteca digital: definio de termos, de 2005, a autora define a
expresso documento digital como um Registro de informao codificado por
meio de dgitos binrios. (2006, p. 17). Percebe-se, nesta definio, que o que
se coloca em pauta a codificao em que se encontra o registro. Esse cdigo
binrio o que diferencia um documento em suporte digital de um documento
tradicional, que utiliza como suporte do registro da informao outros cdigos
lingsticos. Para a leitura de cdigos binrios necessrio o auxlio de um
decodificador que traduza as informaes, o computador.
O leitor de um livro ou de um artigo no papel se confronta com um objeto fsico sobre o qual uma certa verso do texto est integralmente manifesta. Certamente ele pode anotar nas margens, fotocopiar, recortar, colar, proceder a montagens, mas o texto inicial est l, preto no branco, j realizado integralmente. Na leitura em tela, essa presena extensiva e preliminar leitura desaparece. O suporte digital (disquete, disco rgido, disco tico) no contm um texto legvel por humanos, mas uma srie de cdigos informticos que sero eventualmente traduzidos por um computador em sinais alfabticos para um dispositivo de apresentao. A tela apresenta-se ento como uma pequena janela a partir da qual o leitor explora uma reserva potencial. (LVY, 1996, p. 39)
A leitura de um texto, em qualquer suporte, uma atualizao da
memria. O ato de ler uma constante construo de significados, interpretar
o sentido do que est escrito. Mais que isso, direcionar nosso pensamento
para a construo de ns mesmos. ao nos construirmos, enquanto
estruturamos relaes internas que nos fazem compreender nosso papel no
mundo, que descobrimos as formas de elaborao de nossos pensamentos.
Neste sentido, ler, escutar, olhar assimilar informaes advindas de
diferentes mdias so meios de formatarmos nossa imagem, definindo
ininterruptamente nosso modelo de mundo.
Ler ler o mundo e tambm a si prprio, construir-se. Ler atualiza uma
situao que se encontra fora do tempo e do local de sua escrita, portanto
27
necessrio contextualizar, interpretar luz do seu tempo, relacionar com
elementos que daro suporte ao entendimento daquela informao.
Diante do imperativo tecnolgico, as noes de leitura e de escrita esto
novamente se modificando. Da passagem da tradio oral para a escrita, com
a influncia da imprensa, houve uma materializao da memria. Mais que um
registro da fala, a escrita constitui uma virtualizao da memria (LVY, 1996)
Ela materializa e despersonaliza a mensagem, medida que cria uma distncia
entre a informao e o seu produtor. A insero do texto no contexto do
ciberespao percorre um caminho inverso em direo a uma nova
desmaterializao, o ambiente digital proporciona um dinamismo leitura que
se aproxima novamente da comunicao oral, sendo que numa abrangncia
infinitamente superior. O universo digital apresenta um variante cultural
presente nas narrativas que havia desaparecido com a leitura tradicional, a
interatividade.
A noo de interatividade influncia mtua, intercmbio permite que
entremos uma nova dimenso na relao entre leitor e texto. Tendo como base
esta noo, vimos que o computador no apenas instrumento de produo
de textos, imagens e sons que sero utilizados em suportes tradicionais, mas a
conexo entre textos, imagens e sons que podem ser consultados
simultaneamente estando em uma matriz digital. esta interatividade que faz
com que a informao seja potencializada.
Se consideramos um computador como uma ferramenta para produzir textos clssicos, ele ser apenas um instrumento mais prtico que a associao de uma mquina de escrever mecnica, uma fotocopiadora, uma tesoura e um tubo de cola. (LVY, 1996, p. 40)
Uma caracterstica fundamental da interatividade a de distino entre
um documento tradicional e um documento digital. Atualmente nos deparamos
com uma incessante produo de cpias digitais. Novas problemticas se
apresentam para a guarda desta massa documental, a tecnologia de impresso
digital avana rapidamente, gerando diversos processos, cada um com suas
especificidades. Jergens, em seu texto Preservao de cpias digitais em
arquivos e colees fotogrficas, apresenta uma viso geral sobre a
28
identificao, preservao, exibio, aquisio e criao de processos digitais e
especifica as diferenas entre impresses que tem como origem um arquivo
digital.
Um nmero crescente de documentos grficos est sendo gerado digitalmente incluindo imagens fotogrficas, impresses de obras de arte, reprodues, psteres de propaganda, cartas, impressos, revistas especializadas, livros, documentos comerciais, etiquetas de preo e embalagens de produtos. As origens da cpia digital remontam aos anos de 1960, mas os ltimos vinte anos em particular, trouxeram uma grande acelerao e proliferao de usos e tecnologia. (JERGENS, 2004, p. 7)
A interatividade representa uma ponte para o universo digital. Com ela
se apresenta toda uma estrutura de processos informacionais, que se baseia
na troca simultnea e coletiva de informaes. Tais trocas informacionais na
rede de computadores ultrapassam barreiras de tempo e espao. A todo tempo
so incorporados imagens, sons e textos. Para alm da possibilidade de
reproduzir cpias digitais, esse universo surge para reformular atravs da
utilizao de uma mquina, uma outra concepo de distncia e de tempo.
Esse universo se constitui de conexes que ocorrem a todo tempo e diversas
vezes ao mesmo tempo, o que transforma um documento em um
hiperdocumento. Sobre a interatividade Pierre Levy pondera:
[...] o suporte digital permite novos tipos de leituras (e de escritas) coletivas. Um continuum variado se estende assim entre a leitura individual de um texto preciso e a navegao em vastas redes digitais no interior das quais um grande nmero de pessoas anota, aumenta, conecta os textos uns aos outros por meio de ligaes hipertextuais. (LVY, 1996, p. 43; grifo do autor).
Nesse sentido, essa estrutura de ligaes hipertextuais assemelha-se ao
tipo de leitura adotado em uma consulta a enciclopdia. Nela so utilizadas
ferramentas de conexo com referncias contidas em dicionrios, atlas,
thesaurus e demais tipos de recursos que podem servir de apoio na busca de
informaes, com ligaes entre os elementos informacionais do texto e as
referncias de fontes externas. Numa enciclopdia essa busca se d de
maneira mais lenta e, neste caso, o leitor que se desloca de um local a outro
de acordo com essas orientaes, enquanto no suporte digital o uso desses
29
instrumentos de orientao acontece com maior rapidez, na velocidade de um
clique. Alm disso, o hipertexto capaz de acomodar diversas mdias ao
mesmo tempo, associando som e imagem. possvel estabelecer relaes
variadas em diferentes mdias.
Cada palavra de um texto pode ter um vinculo com outro documento,
que sonoro, escrito ou visual, e cada um desses vnculos remeter a
informaes complementares sobre significados ou relaes existentes entre
tais palavras e informaes trazidas por outros documentos, esta leitura se
caracteriza por uma forma hipertextual. Isto o que Toutain chama de Forma
de estruturao de informao que permite a leitura no linear de um texto, por
meio de acionamento de hiperlinks que viabilizam a conexo direta com
outras partes do documento ou com outros documentos disponveis na Web.
(TOUTAIN, 2006, P.18; grifo do autor). Para Pierre Levy, utilizar o recurso
hipertextual provoca a multiplicao dos momentos em que ocorrem produes
de sentido, enriquecendo consideravelmente a leitura. Esta modalidade de
leitura/escrita, ao contrrio de um texto linear, se estrutura em rede,
estabelecendo ligaes entre os ns que constituem o texto. Nas palavras de
Levy:
O hipertexto, hipermdia ou multimdia interativo levam adiante, portanto, um processo j antigo de artificializao da leitura. Se ler consiste em selecionar em esquematizar, em construir uma rede de remisses internas ao texto, em associar a outros dados, em integrar as palavras e as imagens a uma memria pessoal e em reconstruo permanente, ento os dispositivos hipertextuais constituem de fato uma espcie de objetivao, de exteriorizao, de virtualizao dos processos de leitura. Aqui no consideramos mais apenas os processos tcnicos de digitalizao e de apresentao do texto, mas a atividade humana de leitura e de interpretao que integra as novas ferramentas. (LVY, 1996, p. 43-44; grifo do autor)
A hipertextualizao aumenta consideravelmente a velocidade da leitura
e escrita, sua estrutura em rede nos permite pesquisar diferentes assuntos em
questo de segundos. A digitalizao nos permite conjugar som, imagem em
movimento e texto em uma nica mdia. [...] o hipertexto digital seria portanto
definido como uma coleo de informaes multimodais disposta em rede para
navegao rpida e intuitiva. (LVY, 1996, p.44). Cabe salientar que, ao se
30
fornecer documentos digitais com recursos multimodais e elementos
interativos, permite-se tanto um acesso mais fcil quanto um entendimento
maior desses contedos. Um documento digital pode conter figuras, grficos,
dados estruturados, representaes dependentes do tempo como filmes,
programas computacionais, dentre outras formas de visualizao. Incorporar
recursos adicionais de multimdia ao contedo textual promove a visualizao
multimodal. Nesse sentido, vale ressaltar que diferentes apresentaes de um
contedo constituem diferentes representaes do conhecimento que ele
contm. Alm disso, diferentes pessoas tm percepo e compreenso diversa
das coisas atravs de cada representao.
Em relao s tcnicas anteriores de leitura em rede, a digitalizao introduz uma pequena revoluo copernicana: no mais o navegador que segue as instrues de leitura e se desloca fisicamente no hipertexto, virando as pginas, transportando pesados volumes, percorrendo com seus passos a biblioteca, mas doravante um texto mvel, caleidoscpico, que apresenta suas facetas, gira, dobra-se e desdobra-se vontade diante do leitor. Inventa-se hoje uma nova arte da edio e da documentao que tenta explorar ao mximo uma nova velocidade de navegao em meio a massas de informao que so condensadas em volumes a cada dia menores (LVY, 1996, p. 44-45)
A exploso da informtica e sua rpida disseminao colocaram
disposio ferramentas que melhoram e superam as performances at ento
conhecidas e disponveis, como a microfilmagem. Podemos destacar alguns
aspectos como a concomitncia, que permite o acesso a um documento por
vrios usurios ao mesmo tempo, a recuperao, que permite a visualizao
de uma imagem do documento consultado em milsimos de segundos, e a
independncia da distncia entre o lugar fsico do arquivo e o local da consulta,
a partir de redes de comunicao digital. Para Luis Fernando Sayo no seu
texto Preservao digital no contexto das Bibliotecas digitais: uma breve
introduo:
A urgncia da sociedade contempornea em transformar tudo, tudo textos, imagens, vdeos, msica para formatos digitais justificada pela enorme economia de espao fsico de armazenamento e, sobretudo, pelos extraordinrios ganhos de produtividade e eficincia proporcionados pela otimizao dos fluxos de trabalho. (SAYO, 2005, p. 115)
31
A digitalizao abre espao para novas possibilidades de acesso aos
estoques informacionais, assim como, facilita a produo, a edio, a
publicao, a integrao e a distribuio de informao em formatos digitais
atravs da rede mundial de computadores. Observamos, ainda, que a alta
capacidade de armazenamento de dados sem ocupao de grandes volumes
fsicos e a mudana na relao quanto deteriorao proveniente de fatores
atmosfricos e agentes degradantes, vem incorporando novas aplicaes e
metodologias de conservao preventiva em museus, bibliotecas e arquivos.
Da mesma maneira a produo e transferncia de documentos eletrnicos
representam uma modificao da delimitao de espao e tempo dos fluxos de
informao e do conhecimento.
A estrutura da comunicao fluida que se processa em redes
informacionais se caracteriza fundamentalmente pela interao do homem com
a mquina, onde o tempo de transferncia imediato. A informao eletrnica,
armazenada em memrias magnticas, se estrutura de modo hipertextual,
utilizando diferentes tipos de linguagens, de maneira interativa e conectividade
multidirecionada e simultnea.
32
Captulo II
PATRIMNIO: DESAPARECIMENTO E RECONSTRUO
A palavra patrimnio vem do latim patrimnium, que significa bem
hereditrio, que passado de pai para filho; um gnero de bem que vai se
acumulando. No dicionrio encontramos a seguinte definio: Herana
paterna; bens de famlia; dote de ordinando; quaisquer bens, materiais ou
morais, pertencentes a um indivduo ou a uma instituio; propriedade.
(FERNANDES, 1996, s/p). De acordo com essa definio, o termo patrimnio est
relacionado a atribuies de valor e posse, seja financeiro ou afetivo, individual
ou coletivo. Essa noo desenvolvida no mbito das cincias sociais no
intuito de atribuir determinada qualificao aos bens culturais produzidos pela
sociedade, de modo que a apropriao desses bens faa algum sentido para
entendermos a nao como sendo constituda por um grupo uniforme, que
compartilhe e se identifique com a mesma herana histrica. Maria Ceclia
Londres Fonseca cita:
Pelo valor que lhes atribudo, enquanto manifestaes culturais e enquanto smbolos da nao, esses bens passam a ser merecedores de proteo, visando sua transmisso para as geraes futuras. Nesse sentido, as polticas de preservao se propem a atuar, basicamente, no nvel simblico, tendo como objetivo reforar uma identidade coletiva, a educao e a formao de cidados. Esse , pelo menos, o discurso que costumam justificar a constituio desses patrimnios e o desenvolvimento de polticas pblicas de preservao. (FONSECA, 2005, p. 21)
Para construo desta herana coletiva trazida para a atualidade a
responsabilidade de preservar vestgios materiais do passado, fazeres em vias
de desaparecimento, tradies orais, rituais, em suma tudo que possa
representar algo que se constitua e possa ser definido como patrimnio. Essa
responsabilidade assumida pelos rgos pblicos, formuladores e detentores
da tarefa de constituir e legitimar o patrimnio nacional. Ao elencar quais sero
os bens utilizados como representao dessa totalidade que se quer
apresentar e ao adotar medidas para garantir a perpetuao desses bens
culturais eleitos. Numa perspectiva histrica, as relaes entre a atualidade e
esse passado, contudo, nem sempre so levadas em conta pelos rgos de
33
preservao. Esta omisso pode ser percebida em alguns princpios que
orientam as prticas de preservao. A primeira a suposio de que os
critrios com os quais se selecionam e classificam os bens culturais so
universais e que so compartilhados de forma homognea por todos os
usurios. A outra considerar estes ltimos como meros obstculos
preservao j que muitas vezes a relao entre usurios e rgos
preservacionistas conflitante, seja no que diz respeito aos critrios de
escolha, seja com respeito interveno do Estado atravs dos mecanismos
de tombamento. A esse respeito Maria Ceclia Fonseca pondera:
Aparentemente, essas polticas alcanam um alto grau de eficcia simblica: muito raro ocorrerem contestaes quanto ao valor dos monumentos que so objeto de proteo. No Brasil, por exemplo, no ocorreria a ningum atualmente duvidar da pertinncia do tombamento das grandes obras do Barroco igrejas, palcios, chafarizes, conjuntos urbanos, etc. realizado, principalmente, nas dcadas de 1930 e 1940. Nesse sentido, o trabalho feito pelo Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional teria sido muito bem sucedido, pelo reconhecimento que alcanou no pas e no exterior.
[...] Na verdade, porm, esse poder simblico dos patrimnios nacionais relativo e tem um alcance limitado. Pois se o objetivo dessa poltica estatal amplo, na medida em que no se dirige a setores, grupos ou atividades particulares, mas diz respeito a toda a sociedade nacional, de fato o campo de sua produo bastante restrito: trata-se de uma poltica conduzida por intelectuais, que requer um grau de especializao em determinadas reas do saber (arte, histria, arquitetura, arqueologia e, mais recentemente, etnologia e antropologia) e, por parte dos usurios, algum domnio desses cdigos. (FONSECA, 2005, p. 21 - 22)
Um breve histrico dos rgos de preservao mostra como a prpria
conceituao e critrios com os quais se trabalha foram sempre definidos a
partir de interesses de grupos sociais restritos e de um conhecimento
especializado que quer se tornar universal, na maior parte das vezes atravs
de uma deciso autoritria de tombamento. A proteo ao patrimnio cultural
no Brasil comeou a ter relevncia a partir da dcada de 30, quando os
poderes pblicos assumiram a iniciativa de uma poltica de preservao. At
ento, a defesa do patrimnio se pautava por decises de carter isolado e
iniciativas tmidas e localizadas. Somente a partir de 1936, no entanto, quando
Mrio de Andrade foi convidado pelo ministro Gustavo Capanema a redigir o
34
anteprojeto de criao de um servio federal de proteo do patrimnio, que
se passou a ter uma legislao especfica para a questo e uma
sistematizao do objeto a ser preservado. Definido o tombamento como
instrumento legal de preservao, aquele anteprojeto visava a criao do
Servio de Patrimnio Histrico e Artstico Nacional - SPHAN, primeiro rgo
federal de preservao, com a finalidade de promover em todo o pas e, de
modo permanente, o tombamento, a conservao, o enriquecimento e o
conhecimento do patrimnio histrico e artstico nacional. Foi a partir desse
anteprojeto, aprovado em 30/11/37, sob a forma do Decreto-Lei 25 que, em
carter definitivo, se organizou o SPHAN. O artigo 1 deste Decreto determina:
Constitui o patrimnio histrico e artstico nacional o conjunto dos bens mveis e imveis existentes no pas e cuja conservao seja de interesse pblico, quer por sua vinculao a fatos memorveis da histria do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueolgico ou etnogrfico, bibliogrfico ou artstico. (BRASIL, 1937)
Este Decreto cria o SPHAN, sob direo de Rodrigo Melo Franco de
Andrade, e regulamenta o instituto do tombamento. As alteraes que a partir
da vieram a ocorrer estiveram ligadas, na maioria das vezes, s estruturaes
internas e muito pouco referentes ampliao do conceito de patrimnio. Em
1946 o SPHAN passou a denominar-se Departamento do Patrimnio Histrico
e Artstico Nacional DPHAN, que posteriormente se transformaria em Instituto
do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional IPHAN, j na dcada de 1970.
Neste perodo duas aes foram significativas, a proteo aos monumentos
arqueolgicos e pr-histricos, em 1961, e o Programa de Reconstruo das
Cidades Histricas, em 1973.
A produo de um universo simblico , nesse caso, o objeto mesmo da ao poltica, da a importncia do papel que exercem os intelectuais na construo dos patrimnios culturais. Nesse sentido, so dois os desafios com que se defrontam: o primeiro o de, atravs da seleo de bens mveis e imveis (conforme o preceito legal vigente na maioria dos pases), construir uma representao da nao que, levando em conta a pluralidade cultural, funcione como propiciadora de um sentimento comum de pertencimento, como reforo de uma identidade nacional; o segundo o de fazer com que seja aceito como consensual, no-arbitrrio, o que resultado de uma seleo de determinados bens e de uma conveno a atribuio, a esses bens, de determinados
35
valores. Ou seja, de, ao mesmo tempo, buscar o consenso e incorporar a diversidade. (FONSECA, 2005, p. 22)
Os intelectuais modernistas que participaram da criao do SPHAN em
1937, instauraram uma poltica cultural que se manteve por mais de trinta anos,
pautada em conceitos tradicionais que se identificavam com as camadas cultas
da sociedade. Assim, apesar de em alguns momentos estar presente uma
definio mais abrangente do que seria o objeto de trabalho dos rgos de
preservao, verifica-se, na prtica, uma concentrao de intervenes quase
que absoluta em relao preservao das edificaes, dos chamados bens
imveis e com critrios de seleo que dificilmente escapam do histrico e
arquitetnico. A partir da dcada de 1970 essa poltica elitista passou a ser
contestada por intelectuais com outro perfil, que definiam outros valores e
interesses. Seu objetivo ltimo era justamente o de ampliar o alcance da
poltica federal de patrimnio, no sentido de democratiz-la, e coloc-la a
servio da construo da cidadania. (FONSECA, 2005, p. 23) Tais intelectuais
eram especialistas em cincias fsico-matemticas e sociais, administradores,
pessoas ligadas ao mundo industrial, e no mais aqueles historiadores,
artistas, arquitetos, escritores, etc., isso desencadeou um desacordo do que
seria o objetivo especfico da preservao.
Esse, [...] foi um dos impasses que caracterizou a poltica federal de patrimnio desenvolvida no Brasil nos anos 70-80. Nesse perodo, coexistiram duas linhas de atuao paralelas num mesmo campo, a de pedra e cal, continuidade do antigo Sphan, e a da referncia, oriunda do Centro Nacional de Referncia Cultural (CNRC), criado em 1975 que no conseguiram convir em um mnimo de definies comuns. A hegemonia do grupo de referncia se limitou ao plano discursivo; na prtica, foi atravs dos tombamentos efetuados pela Sphan que continuou a ser construdo o patrimnio histrico e artstico nacional. (FONSECA, 2005, p. 24; grifo da autora)
Os agentes da poltica de preservao atuam como mediadores
simblicos, tentando definir como universais e nacionais valores que so
relativos, atribudos a partir de suas prprias perspectivas. Porm, em uma
sociedade como a brasileira, na qual coexistem pluralidade de contextos
culturais e grande desigualdade econmico-social, a realidade da elite cultural
sequer faz sentido para determinados grupos da sociedade. Diante desta
36
realidade foram formulados, nos anos 70-80, os projetos do Centro Nacional de
Referncia Cultural, voltados para a relao da cultura indgena com a questo
fundiria, o trabalho artesanal frente legislao trabalhista, etc. Maria Ceclia
Fonseca destaca dois momentos decisivos o momento fundador, no final da
dcada de 1930, e o momento renovador, na segunda metade da dcada de
1970 e incio da de 1980. Nas dcadas de 1970 e 1980, a orientao da
poltica cultural desenvolvida no nvel federal foi no sentido de ampliar a noo
de patrimnio e de estimular a participao social, propondo uma relao de
colaborao entre Estado e sociedade. (FONSECA, 2005, p. 25)
O que ocorre, no entanto, no mbito da poltica federal de preservao
que os bens tombados esto longe de serem considerados marcos de uma
identidade nacional com que a maioria da populao se identifique, parecem
funcionar mais como smbolos ainda distantes da imagem brasileira. Isso no
significa que o patrimnio cultural tombado no tenha seu valor reconhecido, e
que no justifique sua conservao. Para a populao em geral, os bens
tombados costumam ser valorizados por sua antiguidade, por sua riqueza,
por sua beleza, cobrando-se inclusive da instituio federal maior zelo na
tarefa de proteg-los. (FONSECA, 2005, p. 26, grifo da autora) Nas polticas
estatais de preservao do patrimnio as decises so tomadas de forma
centralizada, de cima para baixo, no atingindo inmeras camadas da
populao. Quando se fala de uma poltica pblica de preservao, esta se
encontra articulada com os interesses da sociedade, envolve a
representatividade do patrimnio, a participao social na sua produo e
gesto e as formas de apropriao desse universo simblico.
Entende-se, dessa maneira, que o patrimnio no deve ser considerado
um circuito fechado que represente uma nao integrada, em pleno acordo
com o Estado. preciso relacionar os patrimnios artsticos e histricos
nacionais com as prticas sociais que esto em permanente processo de
construo e objetificao de identidades coletivas diversas, garantindo
possibilidades de participao mltiplas.
37
2.1 PATRIMNIO DE PEDRA E CAL
Na contemporaneidade, o sentido de patrimnio se amplia. No
apenas o bem herdado, mas o bem que constitui a identidade de um grupo,
articulando-se com as memrias e identidades sociais. Passamos de um
patrimnio de tipo nacional a um patrimnio de tipo simblico, de um patrimnio
recebido por herana a um patrimnio reivindicado, de um patrimnio visvel a
um patrimnio invisvel, de um patrimnio ligado ao Estado a um patrimnio
social, tnico ou comunitrio. A idia de preservao de um bem cultural est
ligada ao seu conhecimento e ao seu uso social. Para Jos Reginaldo dos
Santos Gonalves a noo de patrimnio oferece ao mesmo tempo limitaes
e possibilidades para o entendimento da vida social e cultural.
Como aprendemos a usar a palavra patrimnio? Patrimnio est entre as palavras que usamos com mais freqncia no cotidiano. Falamos dos patrimnios econmicos e financeiros, dos patrimnios imobilirios; referimo-nos ao patrimnio econmico e financeiro de uma empresa, de um pas, de uma famlia, de um indivduo; usamos tambm a noo de patrimnios culturais, arquitetnicos, histricos, artsticos, etnogrficos, ecolgicos, genticos; sem falar nos chamados patrimnios intangveis, de recente e oportuna formulao no Brasil. Parece no haver limite para o processo de qualificao dessa palavra (GONALVES, 2003, p. 21-22)
A postura tradicional dos rgos de preservao de acordo com a
histria privilegia o patrimnio edificado, dito de pedra e cal, como objeto de
estudo e interveno a partir de critrios histricos e/ou artsticos,
desconsiderando, na maioria das vezes, o conjunto de relaes que se
estabelece, no presente, entre o patrimnio e a populao. Entretanto, a noo
de patrimnio no uma inveno moderna, ela existe desde a Antiguidade.
Patrimnio uma categoria de pensamento extremamente importante para a
vida social e mental de qualquer coletividade humana. Sua importncia no se
restringe s modernas sociedades ocidentais. (GONALVES, 2003, p. 22) As
sociedades humanas no qualificam a noo de patrimnio da mesma
maneira, observamos que para determinadas culturas a noo de
colecionismo, to arraigada nossa percepo ocidental de patrimnio, nada
faz sentido em sociedades tribais, por exemplo. Nem todos os grupos sociais
existentes constituem seus patrimnios com o intuito de reunir e acumular
38
bens. De acordo com o que demonstra a citao de Gonalves acima, as
delimitaes dadas ao termo patrimnio parecem ser bem precisas, no entanto,
so construes histricas, resultantes de processos que se encontram em
permanente devir.
Recentemente, construiu-se uma nova qualificao: o patrimnio imaterial ou intangvel. Opondo-se ao chamado patrimnio de pedra e cal, aquela concepo visa aspectos da vida social e cultural dificilmente abrangidos pelas concepes mais tradicionais. (GONALVES, 2003, p. 24, grifo do autor)
amplamente reconhecida a importncia de promover e proteger a
memria e as manifestaes culturais representadas, em todo o mundo, por
monumentos, stios histricos e paisagens culturais. Mas no s de aspectos
fsicos se constitui a cultura de um povo. H muito mais, contido nas tradies,
no folclore, nos saberes, nas lnguas, nas festas e em diversos outros aspectos
e manifestaes, transmitidos oral ou gestualmente, recriados coletivamente e
modificados ao longo do tempo. Essa poro intangvel da herana cultural dos
povos constitui o patrimnio cultural imaterial. O patrimnio imaterial uma
fonte de identidade e carrega a sua prpria histria, especialmente para as
minorias tnicas e os povos indgenas. Os valores e formas de pensar
refletidos nas lnguas, tradies orais e diversas manifestaes culturais
constituem o fundamento da vida comunitria.
Num mundo de crescentes interaes globais, a revitalizao de culturas
tradicionais e populares caracteriza a sobrevivncia da diversidade de culturas
dentro de cada comunidade. Para esta modalidade de patrimnio de carter
intangvel, se prope o registro de prticas e representaes, verificando sua
permanncia e transformaes. Desta maneira, apresenta-se uma forma mais
flexvel para as iniciativas de proteo ao patrimnio, que no engesse suas
possibilidades de uso. As sociedades vivem em contnua produo cultural,
evidenciando a mutabilidade dos aspectos de constituio, atribuies de valor
e permanncia dos patrimnios imateriais e, a fora da ao social e natural
empregada cotidianamente sobre os patrimnios de pedra e cal. Para a
salvaguarda do patrimnio, tanto material quanto imaterial, necessrio
considerar este permanente processo de mudana.
39
A temtica do patrimnio cultural assume um lugar particularmente
importante nas preocupaes referentes s identidades nacionais e regionais
relativos elaborao de polticas culturais, principalmente no atual contexto
de globalizao. Tradicionalmente, a definio do patrimnio delimita um
conjunto de bens culturais cujo tratamento orienta-se pela lgica do conservar
e transmitir, pelo respeito herana enquanto evidncia de realizaes e
materializao de valores. A incorporao desses elementos por parte de um
pas ou populao se completa na idia do legado. A expresso imaterial
suscita imediatamente um grande nmero de questes quanto ao processo de
patrimonializao: como definir, qualificar, orientar e proceder a aes nesse
campo? Em grande medida as respostas a essas questes no esto na
descrio do que comporia o patrimnio imaterial, mas no questionamento do
significado de materialidade. A cultura no pode ser pensada a partir da idia
de um conjunto fixo de elementos que resistem intactos ao do tempo,
sejam eles artefatos, canes ou mitos. As culturas so dinmicas, e a
existncia dessa propriedade independe do grau de contato com outras
culturas. Em outras palavras, usos e sentidos esto sendo constantemente
ressignificados, no implicando esse processo em perda, mas justamente em
vitalidade. A incorporao de qualquer bem num acervo ou inventrio
exemplifica exatamente essa dinmica.
O que estamos presenciando no Brasil um movimento que remonta
Constituio de 1988, que em seu artigo 216 determina:
Constituem patrimnio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referncia identidade, ao, memria dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (BRASIL, 1988).
Esse processo teve como efeito a criao do Programa Nacional do
Patrimnio Imaterial - PNPI em 2000 atravs do decreto n. 3.551, de 4 de
agosto daquele ano, no qual se institui o registro de bens culturais de natureza
imaterial que constituem patrimnio cultural brasileiro. No plano internacional
destaca-se a ao da Unesco. A Recomendao para a Salvaguarda sobre a
Cultura Tradicional e Popular, de 1989 Recomendao Paris considerada
um marco que inspirou, na seqncia, grande nmero de medidas relativas ao
40
patrimnio imaterial. Nas anlises dos modernos discursos do patrimnio
cultural, a nfase tem sido posta no seu carter construdo ou inventado. Cada
nao, grupo, famlia, enfim cada instituio constri no presente o seu
patrimnio, com o propsito de articular e expressar sua identidade e sua
memria. Esse fato mostra que um patrimnio no depende apenas da vontade
e deciso polticas do Estado. As instncias situadas entre a memria e a
histria, tais como o patrimnio, as colees, os museus, os monumentos, os
arquivos, assumem a funo de representar memrias e identidades. Nas
palavras de Jos Reginaldo Gonalves:
O que pretendo colocar em foco precisamente a ambigidade presente na categoria patrimnio, aspecto definidor de sua prpria natureza, uma vez que liminarmente situada entre o passado e o presente, entre o cosmos e a sociedade, entre a cultura e os indivduos, entre a histria e a memria. Nesse sentido, algumas modalidades de patrimnio podem servir como formas de comunicao criativa entre essas dimenses, comunicao realizada existencialmente no corpo e na alma dos seus proprietrios. (GONALVES, 2006, p. 20)
A poltica atual do patrimnio estabelece a questo da identidade
nacional numa perspectiva pluralista assentada nas diversidades regionais, que
situa a compreenso dos bens culturais em termos das possibilidades mltiplas
de representaes do real e dos sujeitos do processo histrico. A inteno de
construir o passado caminha lado a lado com as prticas e representaes
cotidianas, indicando que a formao de identidades e memrias coletivas
acontece independentemente dos moldes impostos pela concepo
institucionalizada do conceito de patrimnio. Essas abordagens marcam a
reviso do recuo temporal e do carter excepcional que se tenta atribuir ao
fundamentar um valor histrico. Sobre este assunto destaca Jos Reginaldo:
Mais precisamente, quero chamar a ateno para o fato de que o acesso que o patrimnio possibilita, por exemplo, ao passado no depende inteiramente de um trabalho consciente de construo no presente, mas, em parte, do acaso. Se por um lado construmos intencionalmente o passado, este, por sua vez, incontrolavelmente se insinua, nossa inteira revelia, em nossas prticas e representaes. Desse modo, o trabalho de construo de identidades e memrias coletivas no est evidentemente condenado ao sucesso. Ele poder, de vrios modos, no se realizar. (GONALVES, 2006, p.20)
41
A questo do patrimnio permeia tanto o papel da memria e da tradio
na construo das identidades coletivas, quanto o empenho do Estado em
objetivar e legitimar a idia de nao. O valor atribudo aos bens em cada
civilizao atesta sua forma de remeter ao passado, percebe-se uma distino
dos usos simblicos entre os diferentes grupos sociais. Para a sociedade
brasileira em geral esses valores atribudos ao patrimnio so regulados pelas
noes de arte e de histria. Este dado se verifica ao analisarmos as inscries
nos Livros do Tombo, nos quais so inscritos os bens sob a proteo da lei,
so eles: Livro do Tombo Arqueolgico, Etnogrfico e Paisagstico, Livro do
Tombo Histrico, Livro do Tombo das Belas-Artes e Livro do Tombo das Artes
Aplicadas. (ARQUIVO NORONHA SANTOS, 2006) De acordo com as
informaes do site do Arquivo Noronha Santos, arquivo central do Instituto do
Patrimnio e Artstico Nacional (IPHAN), as inscries predominam no Livro
das Belas-Artes, seguido pelo Livro Histrico, atualmente com 682 e 557
inscries respectivamente, enquanto vemos 119 bens encontrados no Livro do
Tombo Arqueolgico, Etnogrfico e Paisagstico e apenas 4 no Livro de Artes
Aplicadas.
As noes modernas de monumento histrico, de patrimnio e de preservao s comeam a ser elaboradas a partir do momento em que surge a idia de estudar e conservar um edifcio pela nica razo de que um testemunho da histria e/ou uma obra de arte. (FONSECA, 2005, p. 53; grifo da autora)
A perspectiva dada noo de patrimnio tem se modificado ao longo
dos anos. Vimos que as primeiras iniciativas do IPHAN, ento SPHAN, foram
no sentido de proteger os bens materiais edificados, prioritariamente da
arquitetura colonial, demonstrando preocupao em resguardar elementos de
carter histrico e artstico, ressaltando a ligao entre patrimnio e tradio.
Aos poucos esse ponto de vista foi se ampliando, dando lugar a manifestaes
imateriais e incorporando noes mais abrangentes aos conceitos de
monumento e de documento, estabelecendo relaes entre as iniciativas de
preservao e a formao de uma identidade nacional em processo.
42
2.2 PATRIMNIO DIGITAL
Os avanos tecnolgicos vividos ao logo do sculo XX e incio do sculo
XXI nos permite atuar como protagonistas de uma era de acelerao na
produo e disseminao de informaes. Tradicionalmente, a definio do
patrimnio delimita um conjunto de bens culturais cujo tratamento orienta-se
pela lgica do conservar e transmitir, para esta recente modalidade de
patrimnio que se apresenta a relao que se estabelece para esta lgica
exatamente contrria. Desta maneira, no na conservao que
encontraremos o caminho para a transmisso, mas justamente o oposto. Na
era dos documentos eletrnicos transmitidos via web, a acessibilidade que
nos garante manter a transmisso de informaes. Para conservar uma
informao preciso acess-la, quanto mais acessos houver a essa
informao e quanto mais links forem criados para encontr-la, mais tempo
essa informao permanecer. uma situao contrria s pilhas de
documentos que encontramos em arquivos e a dificuldade das instituies em
estabelecer padres e normas para o acesso aos originais, muitas vezes
restringindo o acesso para garantir a durabilidade desses documentos.
Os parmetros de patrimonializao desses novos modelos de
documentos apresentam novamente questes que fazem repensar os moldes
at agora usados para a definio de patrimnio. Se em meados do sculo XX
j no se pensava mais em cultura e patrimnio como elementos imutveis,
hoje quando nos referimos aos documentos digitais a mutabilidade o conceito
que primeiro se presta para represent-los. O impacto do formato digital nos
documentos de arquivo foi intenso no mbito das atividades tradicionais da
gesto de documentos. De acordo com a Cmara Tcnica de Documentos
Eletrnicos do Conselho Nacional de Arquivos CONARQ esclarecemos a
definio e documento arquivstico e documento eletrnico.
[...] documento arquivstico [..] a informao registrada, independente da forma ou do suporte, produzida ou recebida no decorrer das atividades de uma instituio ou pessoa, dotada de organicidade, que possui elementos constitutivos suficientes para servir de prova dessas atividades. Tais elementos so: 1) Suporte: base fsica do documento;
43
2) Forma: textual, grfico, sonoro; cor, tamanho e tipo de letra, data, local, assinatura, destinatrio, logomarca, selo, carimbo e outros; 3) Anotaes: urgente, arquive-se, ciente e outros; 4) Contexto: jurdico-administrativo: leis, normas, regimentos, regulamentos, estrutura organizacional, etc. relativos instituio criadora do documento. Documentrio: regras de workflow, cdigo de classificao, temporalidade, assunto e outros. No caso dos documentos eletrnicos, acrescentem-se outros elementos tais como: Forma: links, nome do originador (e-mail), assinatura digital, certificado da assinatura digital e outros. Anotaes: data, hora e local da transmisso; indicao de anexos e outros. Contexto: contexto tecnolgico (hardware e software). [...] documento eletrnico [...] o documento em meio eletrnico, com um formato digital, processado por computador. (CONARQ, 2006)
A urgncia da sociedade moderna em transformar ou produzir toda a
informao que precisa texto, imagens, vdeos, sons para formatos digitais
produz uma nova modalidade de patrimnio. No se trata mais de diferenciar
material de imaterial, as relaes no se bastam apenas na caracterizao
tangvel/intangvel. Na sociedade contempornea, a comunicao mediada por
computadores interligados em rede gera um volume informacional que se
acumula em ambientes virtuais.
Historicamente esse fato representa uma alterao total das relaes
humanas com relao a tempo e espao. um salto em direo ps
organicidade, o corpo adquire componentes eletrnicos, sem os quais a
contemporaneidade no sobreviveria. Ocorre que nem bem o homem
consegue administrar seus desafios sociais com relao globalizao e j se
encontra diante de uma atribuio de incluir digitalmente uma grande parcela
populacional que ainda no consegue sequer um espao de incluso social.
Verificamos uma medio temporal que no humana, o corpo no capaz de
contar milsimos de segundos, porm, utilizamos mquinas para nos fazer
valer desse tempo, que cada vez mais fragmentado. O relgio cartesiano
agora conta na velocidade de um cronmetro.
O antigo projeto de patrimnio como construo de identidade coletiva
vai de encontro a uma identidade global, ou a identidades diversas e mltiplas.
44
A incorporao no mbito da formao do patrimnio de aspectos locais na
formao do patrimnio nacional, que recebeu nfase nas produes regionais
nas dcadas de 1970 e 80, agora se v diante de uma espacialidade renovada,
o universo digital no tem fronteiras. A chamada aldeia global que se forma
atravs da rede mundial de computadores provoca a difuso de padres
culturais os mais variados. Estamos diante de uma modalidade de patrimnio
que no se presta mais a servir de espelho de uma nao, preciso levar em
conta como as diversas regies e naes, culturas e civilizaes se relacionam
atravs da rede. Presenciamos uma era onde as relaes humanas so
mediadas por sistemas de informao e comunicao muito sofisticados.
O apelo, cada dia mais acelerado, ao recurso tecnolgico justificado
pela economia de espao fsico, pelo extraordinrio ganho de produtividade e
eficincia proporcionado pela otimizao dos fluxos de trabalho, pela facilidade
de acesso aos estoques de informao, e ainda pela facilidade de gerao e
distribuio de dados e informaes digitais. A informao em formato digital
extremamente suscetvel degradao fsica e obsolescncia tecnolgica,
estas novas facilidades trazem conseqncias e desafios importantes para
quem cuida da preservao e do acesso