Mariana Silva Santana - Preservação Documental

Embed Size (px)

Citation preview

  • 1

    MARIANA SILVA SANTANA

    PRESERVAO DOCUMENTAL:

    um olhar contemporneo

    2007

  • DEPM ESCOLA DE MUSEOLOGIA CCH UNIRIO Graduao em Museologia Monografia 2007.

    Preservao documental: Um olhar contemporneo Orientadora: Prof. Leila Beatriz Ribeiro Aluna: Mariana Silva Santana

    UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

    CENTRO DE CINCIAS HUMANAS E SOCIAIS

    ESCOLA DE MUSEOLOGIA

    PRESERVAO DOCUMENTAL:

    UM OLHAR CONTEMPORNEO

    MARIANA SILVA SANTANA

    RIO DE JANEIRO

    2007

  • DEPM ESCOLA DE MUSEOLOGIA CCH UNIRIO Graduao em Museologia Monografia 2007.

    Preservao documental: Um olhar contemporneo Orientadora: Prof. Leila Beatriz Ribeiro Aluna: Mariana Silva Santana

    PRESERVAO DOCUMENTAL:

    um olhar contemporneo

    MARIANA SILVA SANTANA

    Monografia apresentada Escola de Museologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro como requisito parcial obteno do grau de Bacharel em Museologia.

    Orientadora:

    Prof. Dr. Leila Beatriz Ribeiro

    Rio de Janeiro

    2007

  • DEPM ESCOLA DE MUSEOLOGIA CCH UNIRIO Graduao em Museologia Monografia 2007.

    Preservao documental: Um olhar contemporneo Orientadora: Prof. Leila Beatriz Ribeiro Aluna: Mariana Silva Santana

    PRESERVAO DOCUMENTAL: um olhar contemporneo

    MARIANA SILVA SANTANA

    Monografia apresentada Escola de Museologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro como requisito parcial obteno do grau de Bacharel em Museologia.

    Aprovado por:

    BANCA EXAMINADORA

    ________________________________________

    Prof. Dr. Vera Lcia Doyle Dodebei UNIRIO

    ________________________________________

    Prof. Avelina Addor UNIRIO

    ________________________________________

    Prof. Dra. Leila Beatriz Ribeiro (orientadora) UNIRIO

    Rio de Janeiro

    2007

  • DEPM ESCOLA DE MUSEOLOGIA CCH UNIRIO Graduao em Museologia Monografia 2007.

    Preservao documental: Um olhar contemporneo Orientadora: Prof. Leila Beatriz Ribeiro Aluna: Mariana Silva Santana

    mame. Por tudo, sempre.

    Dedico, com todo amor que houver nessa vida, no apenas este trabalho, mas todos os outros que viro, com

    certeza. Estamos apenas no comeo.

    Me, voc responsvel pela pessoa que sou hoje. Voc mudou toda a sua vida para que eu pudesse mudar a

    minha; para que a histria no se repetisse.

    Pode estar certa de que ela no se repetir.

    Dedico esta monografia a voc, em agradecimento pela maior lio que poderia ensinar:

    o exemplo de vida.

  • DEPM ESCOLA DE MUSEOLOGIA CCH UNIRIO Graduao em Museologia Monografia 2007.

    Preservao documental: Um olhar contemporneo Orientadora: Prof. Leila Beatriz Ribeiro Aluna: Mariana Silva Santana

    Leila Beatriz Ribeiro

    Avelina Addor

    Vera Dodebei

    Sandra Baruki

    Mariana Estellita

    Roberta Leite

    Adriana Holls

    Lucia Peralta

    Maria Julia

    Richam Samir

    Daniela Camargo

    Maria Isabel Lenzi

    Mrcio Ferreira

    Daniel Sotero

    Minha av, Dona Olinda, pela fora de sempre e pela dedicao com a Maria Rosa.

    Milton e Maria Rosa, por me fazerem crescer um pouco mais a cada dia.

    Filha, com seus olhos eu aprendo a reler o mundo. Eu te amo.

  • DEPM ESCOLA DE MUSEOLOGIA CCH UNIRIO Graduao em Museologia Monografia 2007.

    Preservao documental: Um olhar contemporneo Orientadora: Prof. Leila Beatriz Ribeiro Aluna: Mariana Silva Santana

    RESUMO

    A concepo tradicional de documento como suporte fsico da informao est

    sendo posta em xeque pelas atuais abordagens deste conceito. A utilizao de

    tecnologias nas prticas de preservao permite conservar a informao de

    carter documental atravs da reformatao. O principal objetivo deste trabalho

    abordar as novas tecnologias implantadas na preservao da informao

    documental. So enfocados os conceitos de documento, de patrimnio e de

    preservao, e descritos procedimentos de microfilmagem e digitalizao.

    Diante da crescente massa documental em suporte digital, destacamos as

    alteraes ocorridas na noo de documento e preservao analisando os

    procedimentos tcnicos necessrios para a mudana de suportes, do analgico

    ao digital. Discutimos a diferenciao entre documentos digitalizados e objetos

    criados no universo digital, abordando suas especificidades no processo de

    preservao em relao ao documento analgico. Conclumos que as

    abordagens atuais sobre a preservao documental consideram o documento

    como suporte de informao independente de sua forma fsica.

    Palavras-chave: Documento. Patrimnio. Preservao da informao.

  • DEPM ESCOLA DE MUSEOLOGIA CCH UNIRIO Graduao em Museologia Monografia 2007.

    Preservao documental: Um olhar contemporneo Orientadora: Prof. Leila Beatriz Ribeiro Aluna: Mariana Silva Santana

    ABSTRACT

    The traditional conception of document as a physical support of information has

    been questioned by the current use of this concept. The uses of technologies in

    the preservation practice allow conserving document information through the

    refreshing. The main goal of this work is the introduction of new technologies

    implanted in documental information preservation. Focus concepts of

    document, patrimony and preservation, and describes microfilm and digitalizing

    procedures. In face of the crescent document mass in digital support, detach

    the changes in document and preservation notions analyzing the technical

    procedures necessary to change supports, from analogical to digital. Discuss

    the differentiation between digitalized documents and objects created in digital

    universe, talking about its specificities in preservations processes related to

    analogical document. Conclude that present approaches over the documental

    preservation consider the document as an information support free from its

    physical shape.

    Key-words: Document. Patrimony. Informational preservation.

  • DEPM ESCOLA DE MUSEOLOGIA CCH UNIRIO Graduao em Museologia Monografia 2007.

    Preservao documental: Um olhar contemporneo Orientadora: Prof. Leila Beatriz Ribeiro Aluna: Mariana Silva Santana

    ... Passar para microfilme a matria impressa ou

    manuscrita do passado no deve acarretar desapreo

    subseqente pelo original microfilmado.

    Ao contrrio.

    Cumpre redobrar de cuidados em seu favor.

    O objeto vale mais do que sua representao.

    Vamos zelar mais pelos arquivos, pelas escrituras e

    jornais da monarquia, vamos defend-los da mo inbil

    que rasga ou mancha o papel respeitvel;

    da mo e do cupim, da umidade e do calor que os

    deterioram e os consomem.

    Que a popularizao do microfilme e da cpia

    xerogrfica no importe em deixar ao abandono, da

    por diante, as peas cujo teor foi preservado mediante

    reproduo mecnica.

    Sem esquecer que esta sofre os mesmos riscos de

    aniquilamento pelo tempo e pela ao dos

    desavisados.

    Ganhamos espaos condensando em pequenino rolo a

    massa colossal de papel, mas isso no quer dizer que

    joguemos pela janela ou condenemos runa o que foi

    considerado digno de ser transmitido a outras

    geraes.

    Em resumo: viva o documento.

    Carlos Drummond de Andrade

  • DEPM ESCOLA DE MUSEOLOGIA CCH UNIRIO Graduao em Museologia Monografia 2007.

    Preservao documental: Um olhar contemporneo Orientadora: Prof. Leila Beatriz Ribeiro Aluna: Mariana Silva Santana

    SUMRIO

    INTRODUO p.10 Captulo I

    REGISTRO DOCUMENTAL: RASTRO DE MEMRIA p.14 1.1 DOCUMENTO TRADICIONAL p.20 1.2 DOCUMENTO DIGITAL p.26

    Captulo II PATRIMNIO: DESAPARECIMENTO E RECONSTRUO p. 32

    2.1 PATRIMNIO DE PEDRA E CAL p. 37 2.2 PATRIMNIO DIGITAL p. 42

    Captulo III PRESERVAO DOCUMENTAL: NOVOS PARADIGMAS p. 47

    3.1 DIGITALIZAO DE DOCUMENTOS p. 55 3.2 PRESERVAO DIGITAL p. 61

    CONCLUSO p. 66 REFERNCIAS p. 71

    ANEXO I DECRETO-LEI N. 25, DE 30 DE NOVEMBRO DE 1937 p. 77

    ANEXO II CARTA DE ATENAS - OUTUBRO DE 1931 p. 83

    ANEXO III - CARTA PARA A PRESERVAO DO PATRIMNIO ARQUIVSTICO DIGITAL p. 88

  • 10

    INTRODUO

    O documento testemunho de um tempo e suporte da informao. A

    preservao s existe em funo do seu uso social, que comunicar um tempo

    a outro tempo. O papel do profissional de conservao/preservao prever os

    riscos, estabelecer uma espcie de deteriorao programada do suporte, e

    utilizar mecanismos tecnolgicos para preservar a informao. Cada vez mais

    as prticas de conservao vm incorporando novas tecnologias. A

    deteriorao do documento fato e o que fazemos lutar contra o tempo, a fim

    de preservar a informao em detrimento do suporte, garantindo que a

    informao seja acessada a longo prazo.

    A poltica cultural vigente reconhece a necessidade de se resguardar o

    patrimnio cultural brasileiro a fim salv-lo do desaparecimento. A preservao

    documental sustenta a incessante busca por uma memria e uma identidade

    nacionais. As prticas de colecionar, restaurar e preservar bens culturais tem a

    finalidade de expor para as geraes atuais e futuras fragmentos que

    representam o passado e, ao mesmo tempo, do autenticidade s narrativas

    que o constroem. Narrativas estas formadas ao longo do tempo pelas

    autoridades polticas que moldaram os conceitos de patrimnio, identidade,

    cultura e nao. A noo de patrimnio cultural construda atravs da

    objetificao de idias e valores classificados como nacionais. Esse patrimnio

    objetificado est em permanente processo de desaparecimento e reconstruo.

    O processo de desaparecimento implica num processo de reconstruo.

    A utilizao freqente de termos como fragmentao e construo

    dentro dessas narrativas enfatiza o carter ambguo do conceito de bem

    cultural ou alegoria. A alegoria usada para ilustrar de maneira concreta uma

    idia ou um fazer, uma forma de representao da realidade da qual foi

    destacada. Ao mesmo tempo em que construo tambm runa. Nas

    palavras de Jos Reginaldo Gonalves ... possvel dizer que podem ser

    considerados por esse duplo aspecto: desaparecimento e reconstruo

    imaginativa, perda e apropriao, disperso e coleo, destruio e

    preservao, contingncia e redeno. (GONALVES, 1996, p. 30)

  • 11

    Gonalves argumenta que as estratgias estabelecidas para se

    apropriar e preservar o patrimnio se opem a uma situao de fragmentao

    e descontinuidade ao mesmo tempo em que do autenticidade a uma

    identidade nacional brasileira. A apropriao da cultura nacional vai ao

    encontro da idia de que se deva resguardar a integridade e a continuidade de

    bens ameaados pela destruio ou desaparecimento. Bens estes que so

    propriedade coletiva da nao, englobando todos os elementos que constituem

    sua cultura. A idia de apropriao pressupe a possibilidade de perda. Assim,

    se uma nao no se apropria de seus bens culturais ela corre o risco de

    perder sua identidade. Se os fragmentos que representam essa totalidade

    essa tentativa de representao de uma nao integrada desaparecem, a

    prpria nao corre o risco de esquecer sua memria e, consequentemente,

    sua identidade.

    Essa forma de construo terica que coloca a perda do patrimnio

    como perda da identidade, ao mesmo tempo em que cria a dimenso de perda

    como sendo posterior apropriao, inverte essa dimenso na medida em que

    para se atingir a uma totalidade conceitual do que seria a idia de nao, extrai

    fragmentos descontextualizados, aos quais so aplicadas as aes

    preservacionistas. Dessa maneira, o chamado patrimnio cultural no

    resgatado em sua totalidade e integridade, mas por intermdio dos seus

    fragmentos [...]. (GONALVES, 1996, p. 112) Um documento um desses

    fragmentos. Ele s se torna um testemunho diante de nossos questionamentos,

    quando recuperamos o contexto scioeconmico e poltico-cultural em que

    surgiu para relacionarmos ao atual. Para Le Goff,

    O documento no incuo. antes de mais o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da histria, da poca, da sociedade que o produziram, mas tambm das pocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silncio. O documento uma coisa que fica, que dura, e o testemunho, o ensinamento (para evocar a etimologia) que ele traz devem ser em primeiro lugar analisados desmistificando-lhe o seu significado aparente. O documento monumento. Resulta do esforo das sociedades histricas para impor ao futuro voluntria ou involuntariamente determinada imagem de si prprias. (LE GOFF, 2004, p. 103)

  • 12

    O que transforma um objeto em documento essa possibilidade de se

    acessar uma memria, individual, social ou coletiva. Assumindo essa

    caracterstica de registro, testemunho ou prova de determinada ao social, o

    documento capaz de atualizar um contexto histrico ou sociocultural que

    poder ser analisado de diversas perspectivas. Um documento s gera

    conhecimento quando o indivduo capaz de interpretar e compreender as

    informaes luz do seu tempo, e acessar suas memrias e experincias para

    atribuir novos significados.

    O objetivo geral deste trabalho abordar as novas tecnologias

    implantadas na preservao documental. Diante do imperativo tecnolgico que

    coloca em jogo a concepo tradicional de documento apenas como suporte

    fsico da informao, so incorporadas, nos dias de hoje, novas formas de

    documento, abrangendo assim, o patrimnio digital. A partir desta abordagem,

    pretendemos analisar os procedimentos para a efetiva mudana de suporte

    documental, do meio analgico para o digital. Nesse sentido se faz necessrio

    identificar as mudanas ocorridas na noo de documento e de preservao

    documental diante dessa nova modalidade de suporte, enfocando a discusso

    acerca do documento tradicional e a diferenciao entre documentos

    analgicos que foram transportados para o universo digital e documentos

    gerados digitalmente.

    No primeiro captulo ser abordada a idia de registro, enfocando os

    conceitos de documento tradicional e documento digital. Destacamos que o

    termo documento est relacionado com transmisso de informao. Neste

    sentido, demonstrado que o contedo documental, para ser considerado

    como tal, independe do suporte, e o que se coloca em foco sua condio

    funcional. Para a construo da histria o uso do documento fundamental,

    sendo empregado um processo seletivo na massa documental que servir de

    base para a formulao de uma representatividade social. Neste captulo

    traado ainda um panorama da evoluo do conceito de documento durante o

    sculo XX, desde a incorporao da noo de objetos no textuais at o

    imperativo tecnolgico virtual. Nesse contexto, sinalizamos a variedade de

    suportes de informao que so considerados portadores de memria.

  • 13

    O segundo captulo trata das caractersticas e histria da construo da

    noo de patrimnio no Brasil e como essa construo definiu discursivamente

    o conceito de nao, ao evidenciar o termo patrimnio cultural. Nele

    distinguimos duas categorias de patrimnio: patrimnio tradicional, dito

    patrimnio de pedra e cal, e patrimnio digital, documentos produzidos atravs

    de sistemas informatizados. Percebemos que ao ser referenciado como

    patrimnio o objeto recebe um valor simblico que o eleva categoria de

    documento e que o conceito de patrimnio atua como instrumento de

    preservao da memria coletiva.

    No terceiro captulo enfocado o conceito de preservao documental e

    informacional, desde a conservao de documentos em suporte analgico,

    passando pela digitalizao desses documentos e finalmente abordando a

    preservao da informao em ambiente digital. Descrevemos procedimentos

    tcnicos aplicados para salvaguarda de acervos documentais, onde a inteno

    manter a informao em seu suporte original. Assinala-se o recurso adotado

    para a disseminao da informao, que duplicar/digitalizar para promover a

    preservao e o acesso. Isso gera uma nova massa documental eletrnica

    invisvel que necessita igualmente ser gerenciada e preservada, seja a

    duplicao de um objeto material, ou uma criao do prprio universo digital.

    Conclui-se que os princpios de preservao diferem da conservao,

    embora sejam conceitos anlogos, e que a cada poca so dadas realidades e

    paradigmas a serem enfrentados. Quando se tratava apenas de calcular a vida

    til de um objeto tangvel, o trabalho do profissional de preservao mantinha

    uma relao prxima da materialidade do bem preservado, porm quando

    adventos tecnolgicos nos permitem ampliar a noo de durabilidade e acesso

    e surgem os microfilmes, essa relao com o original se modifica, embora o

    microfilme tambm seja informao em forma de matria. Com a era

    informacional rompida a barreira da materialidade e da espacialidade, a

    compactao do volume ocupado pela informao ainda maior e a

    tangibilidade se perde no mundo virtual. A gerao de documentos digitais

    apresenta um novo desafio: conservar informao impalpvel, num universo

    em permanente processo de supresso.

  • 14

    Capitulo I

    REGISTRO DOCUMENTAL: RASTRO DE MEMRIA

    O termo documento vem do latim documentum, derivado de docere, que

    significa ensinar. Documentos podem atuar como veculos de representao e

    preservao da memria social, pois transportam significados. geralmente

    definido como suporte fsico da informao, sendo prova ou testemunho de

    determinada ao cultural. Mas o que um documento? O conceito de

    documento, de acordo com o senso comum, nos remete a algum texto escrito

    sobre papel. Fica clara a concepo tradicional to arraigada ao suporte. Ao

    confrontarmos a etimologia da palavra com o conceito adotado pelo senso

    comum podemos destacar um ponto. Antes do papel, ou antes, da escrita no

    havia ensinamento? No havia transmisso de informao? [...] quem estuda

    a pr-histria no tem a sua disposio fontes de arquivos escritas. (BUCAILLE;

    PESEZ, 1989, p.17) Um documento no pode ser considerado documento

    apenas em funo do seu suporte, a prpria etimologia nos remete a uma

    caracterstica funcional. Na ampliao desse conceito vimos que as respostas

    para estas questes surgem a partir de construes de significados elaboradas

    pelo discurso histrico, pois para o historiador, o recurso ao documento

    fundamental.

    Assim como a elaborao da noo de patrimnio descontnua e

    composta por fragmentos, tambm o elenco de documentos representativos

    passa por uma escolha. Em meio a toda essa massa documental que nos

    cerca, so estabelecidos critrios de seleo e organizao que possam dar

    forma e sentido a esses possveis discursos. O documento que, para a escola

    histrica positivista do fim do sculo XIX e do incio do sculo XX, ser o

    fundamento do facto histrico, ainda que resulte da escolha, de uma deciso

    do historiador, parece apresentar-se por si mesmo como prova histrica. (LE

    GOFF, 2004, p. 95). A consulta ao documento indispensvel ao historiador,

    no existiria histria se no fosse deixado um rastro que se pudesse recorrer

    para construir suas narrativas. O fato histrico permanece atravs do registro

  • 15

    documental. Na argumentao de Foucault:

    [...] a histria mudou sua posio acerca do documento: ela se d por tarefa primeira, nem tanto interpret-lo, nem tanto determinar se ele diz a verdade e qual o seu valor expressivo, mas sim trabalh-lo no interior e elabor-lo: ela o organiza, recorta-o, distribui-o, ordena-o, reparte-o em nveis, estabelece sries, distingue o que pertinente do que no , delimita elementos, define unidades, descreve relaes. O documento, pois, no mais para a histria essa matria inerte atravs da qual ela tenta reconstituir o que os homens fizeram ou disseram, o que passado e do qual apenas permanece o rastro: ela procura definir, no prprio tecido documental das unidades, conjuntos, sries, relaes. [...] O documento no o feliz instrumento de uma histria que seria nela mesma, e de pleno direito, memria; a histria , para uma sociedade, uma certa maneira de dar estatuto de elaborao massa documental de que ela no se separa. (FOUCAULT, 1972, p. 13-14)

    No incio do sculo XX levantaram-se questes acerca do termo

    documento, discutindo sua definio e abrangncia. O conceito comeava a

    estender-se a objetos no textuais, ou no impressos, incluindo figuras,

    materiais audiovisuais e objetos tridimensionais; percebeu-se que o

    alargamento do conceito era necessrio para atender a demanda crescente no

    campo da documentao.

    Isso era conveniente para estender a esfera do campo para incluir figuras e outros materiais grficos e audiovisuais. O belga Paul Otlet (1868 1944) conhecido por sua observao que documentos podem ser tridimensionais, desse modo incluindo esculturas. A partir de 1928, objetos de museus tinham chance de serem includos por documentaristas dentro de definies de documento. (BUCKLAND, 2005, p. 2, traduo nossa)

    Paul Otlet ao inserir neste campo as esculturas, abriu espao para que

    os objetos de museus fossem considerados documentos, abrangendo tambm

    achados arqueolgicos, traos de atividade humana e outros objetos que no

    possuam finalidade comunicacional. Em Trait de Documentation de 1934

    Otlet afirma que se voc recebe informaes a partir da observao de objetos,

    eles podem ser considerados documentos. A bibliotecria Suzanne Briet (1894-

    1989) incorporou a noo de prova fsica como documento. Briet, em seu

    manifesto sobre a natureza da documentao, Qust-ce que la documentation

    de 1951, considera o carter representacional, reconstrutivo ou demonstrativo

  • 16

    dos documentos. Buckland, analisando Briet, percebe alguns pontos que

    determinam a transformao de objeto em documento:

    1. H materialidade: Somente objetos fsicos podem ser documentados [...]; 2. H intencionalidade: entendido que o objeto seja tratado como prova; 3. Os objetos tm que ser processados: Eles tm que ser transformados em documentos [...]; 4. H uma posio fenomolgica: O objeto entendido para ser um documento. (BUCKLAND, 2005, p. 4, traduo nossa)

    Essa ampliao na abrangncia do termo documento suscitou em

    mudanas de ordem quantitativa e qualitativa e gerou uma produo

    documental massiva a partir da dcada de 60, intitulada revoluo documental.

    Esta ocorreu concomitantemente com outra espcie de revoluo, a

    tecnolgica. Com a emergncia da sociedade da informao cresceu o

    interesse sobre aspectos econmicos e sociais da vida das populaes e

    tambm a produo de documentos como inventrios, relatrios, entrevistas

    etc. O desenvolvimento tecnolgico provocou a ampliao da necessidade e da

    capacidade de gerar ilimitadamente documentao de novos tipos, como, por

    exemplo, som e imagem em vrios suportes: papel, magntico e digital. Surge

    a uma problemtica para a documentao: estabelecer novos critrios de

    conservao, organizao, classificao e difuso das informaes.

    Era preciso atribuir lgica ao excessivo volume de documentos produzidos e acumulados pelo Estado em decorrncia desse agigantamento de suas funes e atribuies. Os compromissos do Estado deveriam estar apoiados em uma ordem documental e numa estrutura de suporte informativo as mais eficientes. (CAMARGO, 2005, p.1)

    Nesse contexto se introduz a questo de novos suportes de informao

    como portadores de memria. O documento no mais visto exclusivamente

    como monumento, se multiplica a variedade de suportes que se pode consultar

    para o acesso memria histrica, a recuperao de dados acontece numa

    perspectiva relacional. Mais ainda do que esses mltiplos modos de abordar

    um documento, para que ele possa contribuir para uma histria total, importa

    no isolar os documentos do conjunto de monumentos de que fazem parte.

    (LE GOFF, 2004, p. 104)

  • 17

    Segundo Pomain, o documento/monumento permite uma reevocao do

    passado. runa, parte do original e lembrana do passado. Suporte material

    da memria, capaz de atualizar a memria sobre algo que j passou. uma

    ponte entre presente e passado.

    [...] todos os nossos conhecimentos acerca do passado da Terra e dos seres vivos, do homem ou duma dada sociedade existente numa dada poca e num dado territrio, todos os conhecimentos, em suma, que formam o contedo da histria, s podem ser obtidas graas aos fsseis e a documentos/monumentos de todos os gneros, ambos, por assim dizer, recordaes colectivamente materializadas. (POMAIN, 2000, p. 509)

    Dodebei, em 1997, na sua tese O sentido e o significado de documento

    para a memria social, prope uma reviso do conceito tradicional de

    documento como suporte material da informao, haja vista que para

    apreender seu sentido e significado preciso considerar outros aspectos, tais

    como sua insero no mbito da memria social e sua necessidade de

    interlocuo. Nas palavras de Dodebei o conceito de documento deve reunir

    trs proposies:

    UNICIDADE Os documentos que so os objetos de estudo da memria social no so diferenciados em sua essncia ou seja, no se agrupam em categorias especficas, tal como os exemplos tradicionais: o livro para bibliotecas, o objeto tradicional para museus e o manuscrito para arquivos.

    VIRTUALIDADE A atribuio de predicveis ao objeto submetido ao observador dentro das dimenses espao-tempo seletiva, o que proporcionar, arbitrariamente, uma classificao desse objeto.

    SIGNIFICAO A transformao dos objetos do cotidiano em documentos intencional, constituindo estes uma categoria temporria e circunstancial. (DODEBEI, 1997, p. 22)

    Na museologia, a idia de objeto como documento se aproxima da

    arqueologia no que se refere noo de cultura material, pois se utiliza de

    artefatos como prova documental. O documento o objeto musealizado. As

    colees representam o acmulo, seleo e organizao sistemtica da cultura

    material armazenada ao longo do tempo pelos museus. Na museologia objetos

    desprovidos de informao escrita tambm so considerados documentos.

  • 18

    [...] a documentao clssica, escrita ou visual, pode englobar amplos sectores da cultura material, mas s d deles uma imagem reflectida, subjectiva e j interpretada, necessitando, portanto, de certa prudncia. Alm disso, quando um texto cita um objeto concreto, no se pode, na maior parte dos casos, dar dele uma imagem precisa; a arqueologia, pelo contrrio, pe-nos diretamente em contacto com o prprio material, que se pode tocar, examinar e interpretar sem o perigo de erro devido a subjectividade da documentao. (BUCAILLE; PESEZ, 1989, p.19)

    Identificamos o documento musealizado como aquilo que transporta

    significado. A nfase est na construo social de significado atravs de

    objetos que foram destacados do uso cotidiano para simbolizar determinada

    constante social em se tratando de representar a coletividade ou

    caractersticas materiais de determinado indivduo, dependendo do contexto de

    cada museu. Para Helena Ferrez, essa situao se traduz da seguinte maneira:

    Os museus, assim como a prpria Museologia, esto voltados basicamente

    para a preservao, a pesquisa e a comunicao das evidncias materiais do

    homem e seu meio ambiente, isto seu patrimnio cultural e natural. (FERREZ,

    1994, p. 65) Um documento no atua isoladamente, ele no nasce documento,

    preciso adot-lo como tal e estabelecer relaes e contextos com os quais

    ele possa dialogar para que sejam atribudos significados, que podem ser

    diversos, dependendo do olhar daquele que examina. Dessa maneira, torna-se

    importante ressaltar que o documento/objeto deve passar por um processo de

    identificao extremamente minucioso antes de ser exibido. A verificao do

    contedo informacional daquele objeto nem sempre pode ser apreendida num

    primeiro momento, bastando apenas que se lance sobre ele um olhar, mesmo

    que seja o mais atento, numa exposio museolgica. necessrio que cada

    instituio formule meticulosamente que tipo de informaes sero encontradas

    na documentao daquelas peas.

    A documentao o suporte da pesquisa cientfica e da comunicao. A

    simples descrio do objeto musealizado no bastante para que se

    reconstrua o contexto histrico o carter simblico da pea. Ainda nas

    palavras de Ferrez esse conjunto de informaes sobre um objeto que

    estabelece seu lugar e importncia dentro de uma cultura e que o torna

    testemunho, sem o qual seu valor histrico, esttico, econmico, cientfico,

  • 19

    simblico e outros fortemente diminudo; (FERREZ, 1994, p. 65) importante

    integrar os objetos s suas colees para que ela seja realmente significativa e

    para que transmita toda uma reconstruo da situao original. Evitando-se a

    disperso e otimizando-se as potencialidades representacionais de uma

    coleo torna-se mais simples a obteno de um sistema de recuperao de

    informao realmente eficaz. Tal sistema deve possibilitar o acesso aos

    documentos como fontes de conhecimento, seja para pesquisa cientfica ou

    como elemento comunicacional em exposies. Por isso necessrio se

    confirmar a eficcia de um sistema de recuperao da informao antes de

    implant-lo.

    Tanto em museus quanto em bibliotecas e arquivos os sistemas de

    recuperao da informao devem reunir o mesmo formato global, seguindo os

    mesmos objetivos, funes e forma organizacional. De maneira geral tais

    sistemas organizam o fluxo do documento resgatando toda sua trajetria de

    vida, fora e dentro da instituio, para que se estabelea uma relao entre

    informao e usurio, ocorrendo neste alguma transformao de sua estrutura

    cognitiva, de forma que esteja garantido o acesso aos documentos,

    devidamente conservados, elevando ao mximo o uso das informaes

    contidas no documento.

    O objetivo primordial da identificao de registro documental como

    gatilho da memria estabelecer parmetros em que os atores sociais possam

    interagir de modo que encontrem referncias passadas na construo do

    futuro, ou ao menos na projeo de uma auto imagem social que sirva de

    espelho para a humanidade. Atestar que o documento um rastro da memria

    serve para embasar as narrativas diversas que atuam na construo de

    identidades coletivas. Isto explica porque nossos arquivos, especialmente os

    arquivos pblicos, esto abarrotados de massas documentais acumuladas,

    mesmo quando implantados processos de gesto, que desdobram-se em

    gesto de documentos e de informao, no apenas no descartando o objeto

    original em formato tradicional, conservando-os, mas abarcando tambm

    objetos digitais, sejam digitalizados ou nascidos no ambiente digital, qui

    jamais impressos.

  • 20

    1.1 DOCUMENTO TRADICIONAL

    De acordo com o Dicionrio Brasileiro Globo, o termo documento

    significa Declarao escrita para servir de prova. Tradicional, que se refere

    tradio, do latim traditione, que o Ato de entregar ou transmitir; transmisso

    oral de fatos histricos, lendas etc., de idade em idade; usos ou hbitos

    inveterados, transmitidos de gerao em gerao; smbolo; memria;

    recordao. (FERNANDES, 1996, s/p). Vem deste tipo de referncia a definio

    de documento adotada pelo senso comum, esta a concepo mais genrica

    dada palavra. A comunidade acadmica, mais especificamente das reas das

    cincias humanas e sociais, no se limita a uma definio restrita como esta.

    Chega-se a admitir que documento seja tudo aquilo de onde se possam extrair

    informaes, sendo levadas em conta diversas formas de suporte. Ao longo de

    anos essa idia de documento igual a texto escrito est em permanente

    processo de mudana. Hoje so considerados documentos diversas

    modalidades do patrimnio cultural, incluindo bens naturais.

    Mrio Chagas elabora seu conceito de documento tomando como base

    a etimologia do termo numa perspectiva relacional pautada pela compreenso

    de que documento aquilo que ensina. Etimologicamente, a palavra deriva do

    termo latino docere, que significa ensinar. Uma vez que ensina, pode-se dizer

    que uma fonte de pesquisa, um recurso utilizado para a obteno de

    conhecimento. A partir do olhar interrogativo lanado sobre o documento que

    podem ser extradas as informaes. O objeto/documento s se transforma em

    portador de informao quando tratado de maneira diferenciada, procurando

    atribuir a ele algum valor informacional. Ele diz: O ensinamento, como se

    sabe, no emana e no est embutido no documento. Ele est, brota e surge a

    partir da relao que com o documento/testemunho se pode manter. (CHAGAS,

    1994, p. 42) Segundo Chagas a noo de documento envolve a relao entre

    homem, objeto e lugar, e pode ser observada a partir do Quadro 1 abaixo, onde

    mostra que o bem cultural no bem cultural isolado, e para a formulao

    desse conceito necessrio que o homem eleja e articule os bens que servem

    como base para a sustentao daquilo que ele chama de cultura e daquilo que

    ele quer que represente determinada cultura.

  • 21

    1 homem/sujeito Usurio, consulente, participante, pblico, comunidade. 2 documento/bem cultural

    Objetos, livros, papis, coleo, patrimnio cultural e natural.

    3 espao/campo Edifcio, sala de consulta, sala de leitura, lugar qualquer, espao de representao, territrio.

    Quadro 1: Ternrio matricial Fonte: Chagas (1994, p. 42)

    Para que exista o documento preciso que se extraia dele alguma

    informao, que vai variar de acordo com a inteno que o sujeito possui

    quando consulta quele documento e do espao que ele ocupa, ou seja, do

    lugar de onde o indivduo olha. No existe informao de carter documental

    sem que se recorra a alguma referncia para que seja identificada a

    informao. Um dado totalmente novo no alterar qualquer estrutura cognitiva

    sem o acesso memria, a fim de reconhecer nesse dado alguma similaridade

    com aquilo que j tenha apreendido antes. A est a relao que estabelece: o

    documento no em si portador de memria, um facilitador para o acesso e

    reconhecimento de dados que s podero gerar alguma transformao caso o

    usurio encontre alguma relevncia na utilizao daquele documento. A

    memria justifica o novo, a informao e a redundncia. (CHAGAS, 1994, p. 45)

    Dessa maneira, vimos que o documento atua como um desencadeador para a

    memria. O recurso ao registro documental promove uma constante

    (re)atualizao da memria.

    Dodebei, ao apresentar sua proposta de construo do conceito de

    documento a partir da crtica ao discurso da preservao da memria social,

    considerou as necessidades de informao para a formao da identidade e,

    em ampliao ao quadro apresentado por Mrio Chagas, analisa as relaes

    entre objeto, sujeito e espao inserindo a noo de atributos informacionais. Tal

    leitura foi exposta da seguinte maneira:

    OBJETO ! SUJEITO/OBJETO ! SUJEITO/ESPAO # # #

    Material Psicolgico Social Quadro 2: Atributos informacionais do objeto Fonte: Dodebei (1997, p. 27)

  • 22

    Essa anlise identifica [...] atributos isolados e essenciais, na

    identificao das relaes entre atributos informacionais prprios do objeto e,

    ainda, nas condies informacionais do sujeito e do espao/tempo. (DODEBEI,

    1997, p. 27) De acordo com essa leitura observamos que esses atributos se

    entrecruzam para a construo da memria coletiva a partir da abordagem de

    uma concepo tradicional de documento como objeto, pois o atributo

    apresentado a materialidade. A relao do homem/sujeito com o bem

    material/documento num dado espao/lugar desencadeia uma srie de

    processos de trocas de informaes. Para Dodebei so esses elementos que

    tecem essa rede de constante atribuio de significados.

    Ao dirigirmos um olhar conceitual para as aes concretas desse tecido social, nos deparamos com os traos e vestgios que de uma certa forma transitam pelas dimenses temporais, passando do passado ao presente, sempre tendo em vista o futuro. Tais vestgios so, nesta abordagem, tratados genericamente por objetos, ou, mais especificamente, por objetos potenciais de memria. [...] Essas discusses nos encaminham a observar o sentido da memria presente, ainda que potencialmente, nos objetos produzidos pela sociedade. (DODEBEI, 1997, p. 34)

    O argumento desses autores evidencia algumas caractersticas

    indicirias para a obteno de uma unidade conceitual de documento

    tradicional. Para alm do suporte fsico identificamos que existe uma srie de

    anlises transversais que podem ser feitas para explorar o conceito de

    documento de forma tradicional, como sendo aqueles que so objetos da

    documentao clssica, ou mesmo aqueles trabalhados normalmente

    tradicionalmente em museus, bibliotecas e arquivos, que so: o objeto

    tridimensional, o livro e o manuscrito. Ampliando o grau de abrangncia

    incorporado o conceito de bem cultural, que tudo aquilo que, sendo material

    ou imaterial, contribui como referncia para um passado coletivo. Da surgem

    elementos como a lngua, a dana, a msica, a culinria, os materiais

    audiovisuais, os achados arqueolgicos e os monumentos de pedra e cal.

    Buckland transcreve a definio tcnica de documento elaborada pela

    Instituio Internacional para Cooperao Intelectual, na qual:

  • 23

    Documento: qualquer fonte de informao, em forma matria fixada, capaz de ser usada para referncia ou estudo ou como uma prova. Exemplos: manuscritos, material impresso, ilustraes, diagramas, espcimes de museus, etc. (BUCKLAND, 2005, p. 3, traduo nossa)

    Ao longo de seu discurso mencionado diversas vezes aquilo que pode

    ser considerado um documento tradicional. Citando Briet Buckland traz a noo

    de prova: Um documento a prova que suporta um fato [...] um documento

    um signo fsico ou simblico, preservado ou gravado, com propsito de

    representar, reconstruir ou demonstrar um fenmeno fsico ou conceitual

    (BUCKLAND, 2005, p. 3, traduo nossa)

    Observando esses argumentos, fica evidente o julgamento tradicional

    dado ao termo documento como algo estritamente ligado s propriedades

    fsicas, informacionais e evocativas. Conforme observao de Pomain que

    segue, a acumulao de documentos textuais representa significativa

    contribuio no sentido de determinarmos um entendimento global do conceito

    de documento, visto sob uma tica tradicional. Para o autor a inveno da

    escrita e a memria coletiva esto intimamente relacionadas no que se refere

    evocao do passado, haja vista que a oralidade sofre variaes ao longo do

    tempo, para esta conferncia pode-se recorrer aos registros. J os suportes da

    escrita possuem carter durvel, e reconhecida a preocupao em preservar

    esses suportes.

    A inveno da escrita representa, pois, uma verdadeira viragem no processo de formao da memria colectiva: a partir de agora, de uma gerao a gerao seguinte j no se transmitem apenas as tradies orais, por um lado, e por outro, objectos coleccionados que no podem falar seno a linguagem das imagens. Transmitem-se tambm textos, documentos de todos os gneros, e a sua acumulao ao longo do tempo que permite mudar radicalmente de atitude face ao passado.

    [...] Os documentos escritos, esses sim, possuem uma durao, a durao das coisas. Durante um longussimo perodo de tempo escolhiam-se materiais particularmente resistentes aos desgastes para servirem de suporte aos escritos. Por isso, ao longo dos anos, estes documentos acumularam-se no significado mais literal do termo; enchem as coleces especializadas na conservao, ou seja, bibliotecas e arquivos. (POMAIN, 2000, p. 510-511)

  • 24

    A abordagem tradicional do termo documento refere-se a algo que seja

    de certa maneira mensurvel, que possa ser registrado visando perpetuao

    da informao de forma que alcance as geraes futuras. O documento

    tradicional pode ser visto sob uma perspectiva que englobe aspectos

    funcionais. Existe uma preocupao em atribuir a esses objetos, que foram

    classificados de maneira diferenciada, tornando-se documentos, funes de

    auxlio recuperao da memria, sendo necessrio, para tanto, que se

    apliquem tcnicas de documentao ou, gerenciamento de informao. Tais

    tcnicas so, em resumo, reunio, preservao, organizao, e disseminao

    dos documentos. Esse conjunto de tcnicas necessrio para gerenciar o

    crescente nmero de documentos, textuais ou no, que so gerados

    continuamente. Ou seja, o documento para se constituir como instrumento de

    pesquisa histrica precisa ser reunido e preservado com um nvel

    desejavelmente elevado de organizao para que a informao seja

    disseminada de forma eficaz. Sua funo primordial comunicar, sendo que

    numa viso tradicional, essa comunicao, para que seja prolongada, est

    relacionada durabilidade do suporte do registro. preciso preservar para que

    a informao continue atendendo s geraes que sucedero nossa.

    Ainda na fala de Pomain vemos que:

    [...] todo o !documento/monumento! necessariamente parcial. uma runa, como de resto toda recordao. E, se interessa porque permite conservar uma relao com o passado e tambm porque permite remontar no tempo e encontrar algo da completude original perdida. Permite proceder a uma reevocao. (POMAIN, 2000, p. 512)

    Percebe-se, ento que o documento, assim como a memria, capaz

    de trazer para a atualidade, de presentificar, o passado. O documento

    transforma uma lembrana em realidade, estabelecendo uma relao com o

    passado, por meio da materializao de recordaes, seja o documento um

    fssil, uma runa, uma fita de vdeo, uma pea de museu, uma fotografia, etc. O

    documento tradicional, em suporte material, uma evidncia palpvel da

    memria coletiva, prova fsica daquilo que poderia ser esquecido ou alterado

    na tradio oral, constituindo assim, uma representao do imaginrio coletivo.

    Nas palavras de Dodebei:

  • 25

    Para a imaginao histrica h a necessidade de se dar sentido ao material do passado, ao material morto ou, como diz Jeudy, s runas. Tais runas esto sempre presentes nas construes da memria, de tal sorte que no representam a degradao ou perda de uma possvel identificao cultural. Ao contrrio, elas so fundadoras do imaginrio histrico. (DODEBEI, 1997, p. 44)

    O recurso ao documento escrito recupera os pormenores que vo se

    modificando ao longo dos anos durante as narrativas da histria. Mantm-se o

    original, o contedo do documento no sofre alteraes, e mudam as

    perspectivas de anlise daquela informao. Assim se relacionam memria e

    esquecimento, monumento e runa, numa constate reconstruo e

    resignificao. Concomitantemente s alteraes de anlise da informao,

    foram se modificando tambm ao longo de anos, as formas de comunicao da

    informao. Os tipos de comunicao passaram da forma oral para a escrita e

    em seguida para o meio eletrnico. Podemos esmiuar e comparar as

    caractersticas fundamentais de cada tipo.

    A comunicao oral se caracteriza por ser uma linguagem imediata que

    se d em um espao de transferncia de auditiva cujo armazenamento se d

    na memria. A comunicao escrita acontece atravs de textos lineares fixos

    que acontecem apenas durante a interao com o texto em um espao

    geogrfico determinado e armazenado em espaos fsicos de memria. A

    passagem da cultura oral para a escrita representou uma grande

    transformao para o indivduo e para a sociedade, da mesma maneira a

    insero da cultura eletrnica que presenciamos cujas transformaes ainda

    esto se delineando.

  • 26

    1.2 DOCUMENTO DIGITAL

    Digital vem do latim digitale, que se origina da palavra digitu dgito,

    dedo e significa a Forma de codificao de objetos do mundo real por meios

    de dgitos binrios seqncia de 0s e 1s. (TOUTAIN, 2006, p. 16). No seu

    texto Biblioteca digital: definio de termos, de 2005, a autora define a

    expresso documento digital como um Registro de informao codificado por

    meio de dgitos binrios. (2006, p. 17). Percebe-se, nesta definio, que o que

    se coloca em pauta a codificao em que se encontra o registro. Esse cdigo

    binrio o que diferencia um documento em suporte digital de um documento

    tradicional, que utiliza como suporte do registro da informao outros cdigos

    lingsticos. Para a leitura de cdigos binrios necessrio o auxlio de um

    decodificador que traduza as informaes, o computador.

    O leitor de um livro ou de um artigo no papel se confronta com um objeto fsico sobre o qual uma certa verso do texto est integralmente manifesta. Certamente ele pode anotar nas margens, fotocopiar, recortar, colar, proceder a montagens, mas o texto inicial est l, preto no branco, j realizado integralmente. Na leitura em tela, essa presena extensiva e preliminar leitura desaparece. O suporte digital (disquete, disco rgido, disco tico) no contm um texto legvel por humanos, mas uma srie de cdigos informticos que sero eventualmente traduzidos por um computador em sinais alfabticos para um dispositivo de apresentao. A tela apresenta-se ento como uma pequena janela a partir da qual o leitor explora uma reserva potencial. (LVY, 1996, p. 39)

    A leitura de um texto, em qualquer suporte, uma atualizao da

    memria. O ato de ler uma constante construo de significados, interpretar

    o sentido do que est escrito. Mais que isso, direcionar nosso pensamento

    para a construo de ns mesmos. ao nos construirmos, enquanto

    estruturamos relaes internas que nos fazem compreender nosso papel no

    mundo, que descobrimos as formas de elaborao de nossos pensamentos.

    Neste sentido, ler, escutar, olhar assimilar informaes advindas de

    diferentes mdias so meios de formatarmos nossa imagem, definindo

    ininterruptamente nosso modelo de mundo.

    Ler ler o mundo e tambm a si prprio, construir-se. Ler atualiza uma

    situao que se encontra fora do tempo e do local de sua escrita, portanto

  • 27

    necessrio contextualizar, interpretar luz do seu tempo, relacionar com

    elementos que daro suporte ao entendimento daquela informao.

    Diante do imperativo tecnolgico, as noes de leitura e de escrita esto

    novamente se modificando. Da passagem da tradio oral para a escrita, com

    a influncia da imprensa, houve uma materializao da memria. Mais que um

    registro da fala, a escrita constitui uma virtualizao da memria (LVY, 1996)

    Ela materializa e despersonaliza a mensagem, medida que cria uma distncia

    entre a informao e o seu produtor. A insero do texto no contexto do

    ciberespao percorre um caminho inverso em direo a uma nova

    desmaterializao, o ambiente digital proporciona um dinamismo leitura que

    se aproxima novamente da comunicao oral, sendo que numa abrangncia

    infinitamente superior. O universo digital apresenta um variante cultural

    presente nas narrativas que havia desaparecido com a leitura tradicional, a

    interatividade.

    A noo de interatividade influncia mtua, intercmbio permite que

    entremos uma nova dimenso na relao entre leitor e texto. Tendo como base

    esta noo, vimos que o computador no apenas instrumento de produo

    de textos, imagens e sons que sero utilizados em suportes tradicionais, mas a

    conexo entre textos, imagens e sons que podem ser consultados

    simultaneamente estando em uma matriz digital. esta interatividade que faz

    com que a informao seja potencializada.

    Se consideramos um computador como uma ferramenta para produzir textos clssicos, ele ser apenas um instrumento mais prtico que a associao de uma mquina de escrever mecnica, uma fotocopiadora, uma tesoura e um tubo de cola. (LVY, 1996, p. 40)

    Uma caracterstica fundamental da interatividade a de distino entre

    um documento tradicional e um documento digital. Atualmente nos deparamos

    com uma incessante produo de cpias digitais. Novas problemticas se

    apresentam para a guarda desta massa documental, a tecnologia de impresso

    digital avana rapidamente, gerando diversos processos, cada um com suas

    especificidades. Jergens, em seu texto Preservao de cpias digitais em

    arquivos e colees fotogrficas, apresenta uma viso geral sobre a

  • 28

    identificao, preservao, exibio, aquisio e criao de processos digitais e

    especifica as diferenas entre impresses que tem como origem um arquivo

    digital.

    Um nmero crescente de documentos grficos est sendo gerado digitalmente incluindo imagens fotogrficas, impresses de obras de arte, reprodues, psteres de propaganda, cartas, impressos, revistas especializadas, livros, documentos comerciais, etiquetas de preo e embalagens de produtos. As origens da cpia digital remontam aos anos de 1960, mas os ltimos vinte anos em particular, trouxeram uma grande acelerao e proliferao de usos e tecnologia. (JERGENS, 2004, p. 7)

    A interatividade representa uma ponte para o universo digital. Com ela

    se apresenta toda uma estrutura de processos informacionais, que se baseia

    na troca simultnea e coletiva de informaes. Tais trocas informacionais na

    rede de computadores ultrapassam barreiras de tempo e espao. A todo tempo

    so incorporados imagens, sons e textos. Para alm da possibilidade de

    reproduzir cpias digitais, esse universo surge para reformular atravs da

    utilizao de uma mquina, uma outra concepo de distncia e de tempo.

    Esse universo se constitui de conexes que ocorrem a todo tempo e diversas

    vezes ao mesmo tempo, o que transforma um documento em um

    hiperdocumento. Sobre a interatividade Pierre Levy pondera:

    [...] o suporte digital permite novos tipos de leituras (e de escritas) coletivas. Um continuum variado se estende assim entre a leitura individual de um texto preciso e a navegao em vastas redes digitais no interior das quais um grande nmero de pessoas anota, aumenta, conecta os textos uns aos outros por meio de ligaes hipertextuais. (LVY, 1996, p. 43; grifo do autor).

    Nesse sentido, essa estrutura de ligaes hipertextuais assemelha-se ao

    tipo de leitura adotado em uma consulta a enciclopdia. Nela so utilizadas

    ferramentas de conexo com referncias contidas em dicionrios, atlas,

    thesaurus e demais tipos de recursos que podem servir de apoio na busca de

    informaes, com ligaes entre os elementos informacionais do texto e as

    referncias de fontes externas. Numa enciclopdia essa busca se d de

    maneira mais lenta e, neste caso, o leitor que se desloca de um local a outro

    de acordo com essas orientaes, enquanto no suporte digital o uso desses

  • 29

    instrumentos de orientao acontece com maior rapidez, na velocidade de um

    clique. Alm disso, o hipertexto capaz de acomodar diversas mdias ao

    mesmo tempo, associando som e imagem. possvel estabelecer relaes

    variadas em diferentes mdias.

    Cada palavra de um texto pode ter um vinculo com outro documento,

    que sonoro, escrito ou visual, e cada um desses vnculos remeter a

    informaes complementares sobre significados ou relaes existentes entre

    tais palavras e informaes trazidas por outros documentos, esta leitura se

    caracteriza por uma forma hipertextual. Isto o que Toutain chama de Forma

    de estruturao de informao que permite a leitura no linear de um texto, por

    meio de acionamento de hiperlinks que viabilizam a conexo direta com

    outras partes do documento ou com outros documentos disponveis na Web.

    (TOUTAIN, 2006, P.18; grifo do autor). Para Pierre Levy, utilizar o recurso

    hipertextual provoca a multiplicao dos momentos em que ocorrem produes

    de sentido, enriquecendo consideravelmente a leitura. Esta modalidade de

    leitura/escrita, ao contrrio de um texto linear, se estrutura em rede,

    estabelecendo ligaes entre os ns que constituem o texto. Nas palavras de

    Levy:

    O hipertexto, hipermdia ou multimdia interativo levam adiante, portanto, um processo j antigo de artificializao da leitura. Se ler consiste em selecionar em esquematizar, em construir uma rede de remisses internas ao texto, em associar a outros dados, em integrar as palavras e as imagens a uma memria pessoal e em reconstruo permanente, ento os dispositivos hipertextuais constituem de fato uma espcie de objetivao, de exteriorizao, de virtualizao dos processos de leitura. Aqui no consideramos mais apenas os processos tcnicos de digitalizao e de apresentao do texto, mas a atividade humana de leitura e de interpretao que integra as novas ferramentas. (LVY, 1996, p. 43-44; grifo do autor)

    A hipertextualizao aumenta consideravelmente a velocidade da leitura

    e escrita, sua estrutura em rede nos permite pesquisar diferentes assuntos em

    questo de segundos. A digitalizao nos permite conjugar som, imagem em

    movimento e texto em uma nica mdia. [...] o hipertexto digital seria portanto

    definido como uma coleo de informaes multimodais disposta em rede para

    navegao rpida e intuitiva. (LVY, 1996, p.44). Cabe salientar que, ao se

  • 30

    fornecer documentos digitais com recursos multimodais e elementos

    interativos, permite-se tanto um acesso mais fcil quanto um entendimento

    maior desses contedos. Um documento digital pode conter figuras, grficos,

    dados estruturados, representaes dependentes do tempo como filmes,

    programas computacionais, dentre outras formas de visualizao. Incorporar

    recursos adicionais de multimdia ao contedo textual promove a visualizao

    multimodal. Nesse sentido, vale ressaltar que diferentes apresentaes de um

    contedo constituem diferentes representaes do conhecimento que ele

    contm. Alm disso, diferentes pessoas tm percepo e compreenso diversa

    das coisas atravs de cada representao.

    Em relao s tcnicas anteriores de leitura em rede, a digitalizao introduz uma pequena revoluo copernicana: no mais o navegador que segue as instrues de leitura e se desloca fisicamente no hipertexto, virando as pginas, transportando pesados volumes, percorrendo com seus passos a biblioteca, mas doravante um texto mvel, caleidoscpico, que apresenta suas facetas, gira, dobra-se e desdobra-se vontade diante do leitor. Inventa-se hoje uma nova arte da edio e da documentao que tenta explorar ao mximo uma nova velocidade de navegao em meio a massas de informao que so condensadas em volumes a cada dia menores (LVY, 1996, p. 44-45)

    A exploso da informtica e sua rpida disseminao colocaram

    disposio ferramentas que melhoram e superam as performances at ento

    conhecidas e disponveis, como a microfilmagem. Podemos destacar alguns

    aspectos como a concomitncia, que permite o acesso a um documento por

    vrios usurios ao mesmo tempo, a recuperao, que permite a visualizao

    de uma imagem do documento consultado em milsimos de segundos, e a

    independncia da distncia entre o lugar fsico do arquivo e o local da consulta,

    a partir de redes de comunicao digital. Para Luis Fernando Sayo no seu

    texto Preservao digital no contexto das Bibliotecas digitais: uma breve

    introduo:

    A urgncia da sociedade contempornea em transformar tudo, tudo textos, imagens, vdeos, msica para formatos digitais justificada pela enorme economia de espao fsico de armazenamento e, sobretudo, pelos extraordinrios ganhos de produtividade e eficincia proporcionados pela otimizao dos fluxos de trabalho. (SAYO, 2005, p. 115)

  • 31

    A digitalizao abre espao para novas possibilidades de acesso aos

    estoques informacionais, assim como, facilita a produo, a edio, a

    publicao, a integrao e a distribuio de informao em formatos digitais

    atravs da rede mundial de computadores. Observamos, ainda, que a alta

    capacidade de armazenamento de dados sem ocupao de grandes volumes

    fsicos e a mudana na relao quanto deteriorao proveniente de fatores

    atmosfricos e agentes degradantes, vem incorporando novas aplicaes e

    metodologias de conservao preventiva em museus, bibliotecas e arquivos.

    Da mesma maneira a produo e transferncia de documentos eletrnicos

    representam uma modificao da delimitao de espao e tempo dos fluxos de

    informao e do conhecimento.

    A estrutura da comunicao fluida que se processa em redes

    informacionais se caracteriza fundamentalmente pela interao do homem com

    a mquina, onde o tempo de transferncia imediato. A informao eletrnica,

    armazenada em memrias magnticas, se estrutura de modo hipertextual,

    utilizando diferentes tipos de linguagens, de maneira interativa e conectividade

    multidirecionada e simultnea.

  • 32

    Captulo II

    PATRIMNIO: DESAPARECIMENTO E RECONSTRUO

    A palavra patrimnio vem do latim patrimnium, que significa bem

    hereditrio, que passado de pai para filho; um gnero de bem que vai se

    acumulando. No dicionrio encontramos a seguinte definio: Herana

    paterna; bens de famlia; dote de ordinando; quaisquer bens, materiais ou

    morais, pertencentes a um indivduo ou a uma instituio; propriedade.

    (FERNANDES, 1996, s/p). De acordo com essa definio, o termo patrimnio est

    relacionado a atribuies de valor e posse, seja financeiro ou afetivo, individual

    ou coletivo. Essa noo desenvolvida no mbito das cincias sociais no

    intuito de atribuir determinada qualificao aos bens culturais produzidos pela

    sociedade, de modo que a apropriao desses bens faa algum sentido para

    entendermos a nao como sendo constituda por um grupo uniforme, que

    compartilhe e se identifique com a mesma herana histrica. Maria Ceclia

    Londres Fonseca cita:

    Pelo valor que lhes atribudo, enquanto manifestaes culturais e enquanto smbolos da nao, esses bens passam a ser merecedores de proteo, visando sua transmisso para as geraes futuras. Nesse sentido, as polticas de preservao se propem a atuar, basicamente, no nvel simblico, tendo como objetivo reforar uma identidade coletiva, a educao e a formao de cidados. Esse , pelo menos, o discurso que costumam justificar a constituio desses patrimnios e o desenvolvimento de polticas pblicas de preservao. (FONSECA, 2005, p. 21)

    Para construo desta herana coletiva trazida para a atualidade a

    responsabilidade de preservar vestgios materiais do passado, fazeres em vias

    de desaparecimento, tradies orais, rituais, em suma tudo que possa

    representar algo que se constitua e possa ser definido como patrimnio. Essa

    responsabilidade assumida pelos rgos pblicos, formuladores e detentores

    da tarefa de constituir e legitimar o patrimnio nacional. Ao elencar quais sero

    os bens utilizados como representao dessa totalidade que se quer

    apresentar e ao adotar medidas para garantir a perpetuao desses bens

    culturais eleitos. Numa perspectiva histrica, as relaes entre a atualidade e

    esse passado, contudo, nem sempre so levadas em conta pelos rgos de

  • 33

    preservao. Esta omisso pode ser percebida em alguns princpios que

    orientam as prticas de preservao. A primeira a suposio de que os

    critrios com os quais se selecionam e classificam os bens culturais so

    universais e que so compartilhados de forma homognea por todos os

    usurios. A outra considerar estes ltimos como meros obstculos

    preservao j que muitas vezes a relao entre usurios e rgos

    preservacionistas conflitante, seja no que diz respeito aos critrios de

    escolha, seja com respeito interveno do Estado atravs dos mecanismos

    de tombamento. A esse respeito Maria Ceclia Fonseca pondera:

    Aparentemente, essas polticas alcanam um alto grau de eficcia simblica: muito raro ocorrerem contestaes quanto ao valor dos monumentos que so objeto de proteo. No Brasil, por exemplo, no ocorreria a ningum atualmente duvidar da pertinncia do tombamento das grandes obras do Barroco igrejas, palcios, chafarizes, conjuntos urbanos, etc. realizado, principalmente, nas dcadas de 1930 e 1940. Nesse sentido, o trabalho feito pelo Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional teria sido muito bem sucedido, pelo reconhecimento que alcanou no pas e no exterior.

    [...] Na verdade, porm, esse poder simblico dos patrimnios nacionais relativo e tem um alcance limitado. Pois se o objetivo dessa poltica estatal amplo, na medida em que no se dirige a setores, grupos ou atividades particulares, mas diz respeito a toda a sociedade nacional, de fato o campo de sua produo bastante restrito: trata-se de uma poltica conduzida por intelectuais, que requer um grau de especializao em determinadas reas do saber (arte, histria, arquitetura, arqueologia e, mais recentemente, etnologia e antropologia) e, por parte dos usurios, algum domnio desses cdigos. (FONSECA, 2005, p. 21 - 22)

    Um breve histrico dos rgos de preservao mostra como a prpria

    conceituao e critrios com os quais se trabalha foram sempre definidos a

    partir de interesses de grupos sociais restritos e de um conhecimento

    especializado que quer se tornar universal, na maior parte das vezes atravs

    de uma deciso autoritria de tombamento. A proteo ao patrimnio cultural

    no Brasil comeou a ter relevncia a partir da dcada de 30, quando os

    poderes pblicos assumiram a iniciativa de uma poltica de preservao. At

    ento, a defesa do patrimnio se pautava por decises de carter isolado e

    iniciativas tmidas e localizadas. Somente a partir de 1936, no entanto, quando

    Mrio de Andrade foi convidado pelo ministro Gustavo Capanema a redigir o

  • 34

    anteprojeto de criao de um servio federal de proteo do patrimnio, que

    se passou a ter uma legislao especfica para a questo e uma

    sistematizao do objeto a ser preservado. Definido o tombamento como

    instrumento legal de preservao, aquele anteprojeto visava a criao do

    Servio de Patrimnio Histrico e Artstico Nacional - SPHAN, primeiro rgo

    federal de preservao, com a finalidade de promover em todo o pas e, de

    modo permanente, o tombamento, a conservao, o enriquecimento e o

    conhecimento do patrimnio histrico e artstico nacional. Foi a partir desse

    anteprojeto, aprovado em 30/11/37, sob a forma do Decreto-Lei 25 que, em

    carter definitivo, se organizou o SPHAN. O artigo 1 deste Decreto determina:

    Constitui o patrimnio histrico e artstico nacional o conjunto dos bens mveis e imveis existentes no pas e cuja conservao seja de interesse pblico, quer por sua vinculao a fatos memorveis da histria do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueolgico ou etnogrfico, bibliogrfico ou artstico. (BRASIL, 1937)

    Este Decreto cria o SPHAN, sob direo de Rodrigo Melo Franco de

    Andrade, e regulamenta o instituto do tombamento. As alteraes que a partir

    da vieram a ocorrer estiveram ligadas, na maioria das vezes, s estruturaes

    internas e muito pouco referentes ampliao do conceito de patrimnio. Em

    1946 o SPHAN passou a denominar-se Departamento do Patrimnio Histrico

    e Artstico Nacional DPHAN, que posteriormente se transformaria em Instituto

    do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional IPHAN, j na dcada de 1970.

    Neste perodo duas aes foram significativas, a proteo aos monumentos

    arqueolgicos e pr-histricos, em 1961, e o Programa de Reconstruo das

    Cidades Histricas, em 1973.

    A produo de um universo simblico , nesse caso, o objeto mesmo da ao poltica, da a importncia do papel que exercem os intelectuais na construo dos patrimnios culturais. Nesse sentido, so dois os desafios com que se defrontam: o primeiro o de, atravs da seleo de bens mveis e imveis (conforme o preceito legal vigente na maioria dos pases), construir uma representao da nao que, levando em conta a pluralidade cultural, funcione como propiciadora de um sentimento comum de pertencimento, como reforo de uma identidade nacional; o segundo o de fazer com que seja aceito como consensual, no-arbitrrio, o que resultado de uma seleo de determinados bens e de uma conveno a atribuio, a esses bens, de determinados

  • 35

    valores. Ou seja, de, ao mesmo tempo, buscar o consenso e incorporar a diversidade. (FONSECA, 2005, p. 22)

    Os intelectuais modernistas que participaram da criao do SPHAN em

    1937, instauraram uma poltica cultural que se manteve por mais de trinta anos,

    pautada em conceitos tradicionais que se identificavam com as camadas cultas

    da sociedade. Assim, apesar de em alguns momentos estar presente uma

    definio mais abrangente do que seria o objeto de trabalho dos rgos de

    preservao, verifica-se, na prtica, uma concentrao de intervenes quase

    que absoluta em relao preservao das edificaes, dos chamados bens

    imveis e com critrios de seleo que dificilmente escapam do histrico e

    arquitetnico. A partir da dcada de 1970 essa poltica elitista passou a ser

    contestada por intelectuais com outro perfil, que definiam outros valores e

    interesses. Seu objetivo ltimo era justamente o de ampliar o alcance da

    poltica federal de patrimnio, no sentido de democratiz-la, e coloc-la a

    servio da construo da cidadania. (FONSECA, 2005, p. 23) Tais intelectuais

    eram especialistas em cincias fsico-matemticas e sociais, administradores,

    pessoas ligadas ao mundo industrial, e no mais aqueles historiadores,

    artistas, arquitetos, escritores, etc., isso desencadeou um desacordo do que

    seria o objetivo especfico da preservao.

    Esse, [...] foi um dos impasses que caracterizou a poltica federal de patrimnio desenvolvida no Brasil nos anos 70-80. Nesse perodo, coexistiram duas linhas de atuao paralelas num mesmo campo, a de pedra e cal, continuidade do antigo Sphan, e a da referncia, oriunda do Centro Nacional de Referncia Cultural (CNRC), criado em 1975 que no conseguiram convir em um mnimo de definies comuns. A hegemonia do grupo de referncia se limitou ao plano discursivo; na prtica, foi atravs dos tombamentos efetuados pela Sphan que continuou a ser construdo o patrimnio histrico e artstico nacional. (FONSECA, 2005, p. 24; grifo da autora)

    Os agentes da poltica de preservao atuam como mediadores

    simblicos, tentando definir como universais e nacionais valores que so

    relativos, atribudos a partir de suas prprias perspectivas. Porm, em uma

    sociedade como a brasileira, na qual coexistem pluralidade de contextos

    culturais e grande desigualdade econmico-social, a realidade da elite cultural

    sequer faz sentido para determinados grupos da sociedade. Diante desta

  • 36

    realidade foram formulados, nos anos 70-80, os projetos do Centro Nacional de

    Referncia Cultural, voltados para a relao da cultura indgena com a questo

    fundiria, o trabalho artesanal frente legislao trabalhista, etc. Maria Ceclia

    Fonseca destaca dois momentos decisivos o momento fundador, no final da

    dcada de 1930, e o momento renovador, na segunda metade da dcada de

    1970 e incio da de 1980. Nas dcadas de 1970 e 1980, a orientao da

    poltica cultural desenvolvida no nvel federal foi no sentido de ampliar a noo

    de patrimnio e de estimular a participao social, propondo uma relao de

    colaborao entre Estado e sociedade. (FONSECA, 2005, p. 25)

    O que ocorre, no entanto, no mbito da poltica federal de preservao

    que os bens tombados esto longe de serem considerados marcos de uma

    identidade nacional com que a maioria da populao se identifique, parecem

    funcionar mais como smbolos ainda distantes da imagem brasileira. Isso no

    significa que o patrimnio cultural tombado no tenha seu valor reconhecido, e

    que no justifique sua conservao. Para a populao em geral, os bens

    tombados costumam ser valorizados por sua antiguidade, por sua riqueza,

    por sua beleza, cobrando-se inclusive da instituio federal maior zelo na

    tarefa de proteg-los. (FONSECA, 2005, p. 26, grifo da autora) Nas polticas

    estatais de preservao do patrimnio as decises so tomadas de forma

    centralizada, de cima para baixo, no atingindo inmeras camadas da

    populao. Quando se fala de uma poltica pblica de preservao, esta se

    encontra articulada com os interesses da sociedade, envolve a

    representatividade do patrimnio, a participao social na sua produo e

    gesto e as formas de apropriao desse universo simblico.

    Entende-se, dessa maneira, que o patrimnio no deve ser considerado

    um circuito fechado que represente uma nao integrada, em pleno acordo

    com o Estado. preciso relacionar os patrimnios artsticos e histricos

    nacionais com as prticas sociais que esto em permanente processo de

    construo e objetificao de identidades coletivas diversas, garantindo

    possibilidades de participao mltiplas.

  • 37

    2.1 PATRIMNIO DE PEDRA E CAL

    Na contemporaneidade, o sentido de patrimnio se amplia. No

    apenas o bem herdado, mas o bem que constitui a identidade de um grupo,

    articulando-se com as memrias e identidades sociais. Passamos de um

    patrimnio de tipo nacional a um patrimnio de tipo simblico, de um patrimnio

    recebido por herana a um patrimnio reivindicado, de um patrimnio visvel a

    um patrimnio invisvel, de um patrimnio ligado ao Estado a um patrimnio

    social, tnico ou comunitrio. A idia de preservao de um bem cultural est

    ligada ao seu conhecimento e ao seu uso social. Para Jos Reginaldo dos

    Santos Gonalves a noo de patrimnio oferece ao mesmo tempo limitaes

    e possibilidades para o entendimento da vida social e cultural.

    Como aprendemos a usar a palavra patrimnio? Patrimnio est entre as palavras que usamos com mais freqncia no cotidiano. Falamos dos patrimnios econmicos e financeiros, dos patrimnios imobilirios; referimo-nos ao patrimnio econmico e financeiro de uma empresa, de um pas, de uma famlia, de um indivduo; usamos tambm a noo de patrimnios culturais, arquitetnicos, histricos, artsticos, etnogrficos, ecolgicos, genticos; sem falar nos chamados patrimnios intangveis, de recente e oportuna formulao no Brasil. Parece no haver limite para o processo de qualificao dessa palavra (GONALVES, 2003, p. 21-22)

    A postura tradicional dos rgos de preservao de acordo com a

    histria privilegia o patrimnio edificado, dito de pedra e cal, como objeto de

    estudo e interveno a partir de critrios histricos e/ou artsticos,

    desconsiderando, na maioria das vezes, o conjunto de relaes que se

    estabelece, no presente, entre o patrimnio e a populao. Entretanto, a noo

    de patrimnio no uma inveno moderna, ela existe desde a Antiguidade.

    Patrimnio uma categoria de pensamento extremamente importante para a

    vida social e mental de qualquer coletividade humana. Sua importncia no se

    restringe s modernas sociedades ocidentais. (GONALVES, 2003, p. 22) As

    sociedades humanas no qualificam a noo de patrimnio da mesma

    maneira, observamos que para determinadas culturas a noo de

    colecionismo, to arraigada nossa percepo ocidental de patrimnio, nada

    faz sentido em sociedades tribais, por exemplo. Nem todos os grupos sociais

    existentes constituem seus patrimnios com o intuito de reunir e acumular

  • 38

    bens. De acordo com o que demonstra a citao de Gonalves acima, as

    delimitaes dadas ao termo patrimnio parecem ser bem precisas, no entanto,

    so construes histricas, resultantes de processos que se encontram em

    permanente devir.

    Recentemente, construiu-se uma nova qualificao: o patrimnio imaterial ou intangvel. Opondo-se ao chamado patrimnio de pedra e cal, aquela concepo visa aspectos da vida social e cultural dificilmente abrangidos pelas concepes mais tradicionais. (GONALVES, 2003, p. 24, grifo do autor)

    amplamente reconhecida a importncia de promover e proteger a

    memria e as manifestaes culturais representadas, em todo o mundo, por

    monumentos, stios histricos e paisagens culturais. Mas no s de aspectos

    fsicos se constitui a cultura de um povo. H muito mais, contido nas tradies,

    no folclore, nos saberes, nas lnguas, nas festas e em diversos outros aspectos

    e manifestaes, transmitidos oral ou gestualmente, recriados coletivamente e

    modificados ao longo do tempo. Essa poro intangvel da herana cultural dos

    povos constitui o patrimnio cultural imaterial. O patrimnio imaterial uma

    fonte de identidade e carrega a sua prpria histria, especialmente para as

    minorias tnicas e os povos indgenas. Os valores e formas de pensar

    refletidos nas lnguas, tradies orais e diversas manifestaes culturais

    constituem o fundamento da vida comunitria.

    Num mundo de crescentes interaes globais, a revitalizao de culturas

    tradicionais e populares caracteriza a sobrevivncia da diversidade de culturas

    dentro de cada comunidade. Para esta modalidade de patrimnio de carter

    intangvel, se prope o registro de prticas e representaes, verificando sua

    permanncia e transformaes. Desta maneira, apresenta-se uma forma mais

    flexvel para as iniciativas de proteo ao patrimnio, que no engesse suas

    possibilidades de uso. As sociedades vivem em contnua produo cultural,

    evidenciando a mutabilidade dos aspectos de constituio, atribuies de valor

    e permanncia dos patrimnios imateriais e, a fora da ao social e natural

    empregada cotidianamente sobre os patrimnios de pedra e cal. Para a

    salvaguarda do patrimnio, tanto material quanto imaterial, necessrio

    considerar este permanente processo de mudana.

  • 39

    A temtica do patrimnio cultural assume um lugar particularmente

    importante nas preocupaes referentes s identidades nacionais e regionais

    relativos elaborao de polticas culturais, principalmente no atual contexto

    de globalizao. Tradicionalmente, a definio do patrimnio delimita um

    conjunto de bens culturais cujo tratamento orienta-se pela lgica do conservar

    e transmitir, pelo respeito herana enquanto evidncia de realizaes e

    materializao de valores. A incorporao desses elementos por parte de um

    pas ou populao se completa na idia do legado. A expresso imaterial

    suscita imediatamente um grande nmero de questes quanto ao processo de

    patrimonializao: como definir, qualificar, orientar e proceder a aes nesse

    campo? Em grande medida as respostas a essas questes no esto na

    descrio do que comporia o patrimnio imaterial, mas no questionamento do

    significado de materialidade. A cultura no pode ser pensada a partir da idia

    de um conjunto fixo de elementos que resistem intactos ao do tempo,

    sejam eles artefatos, canes ou mitos. As culturas so dinmicas, e a

    existncia dessa propriedade independe do grau de contato com outras

    culturas. Em outras palavras, usos e sentidos esto sendo constantemente

    ressignificados, no implicando esse processo em perda, mas justamente em

    vitalidade. A incorporao de qualquer bem num acervo ou inventrio

    exemplifica exatamente essa dinmica.

    O que estamos presenciando no Brasil um movimento que remonta

    Constituio de 1988, que em seu artigo 216 determina:

    Constituem patrimnio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referncia identidade, ao, memria dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (BRASIL, 1988).

    Esse processo teve como efeito a criao do Programa Nacional do

    Patrimnio Imaterial - PNPI em 2000 atravs do decreto n. 3.551, de 4 de

    agosto daquele ano, no qual se institui o registro de bens culturais de natureza

    imaterial que constituem patrimnio cultural brasileiro. No plano internacional

    destaca-se a ao da Unesco. A Recomendao para a Salvaguarda sobre a

    Cultura Tradicional e Popular, de 1989 Recomendao Paris considerada

    um marco que inspirou, na seqncia, grande nmero de medidas relativas ao

  • 40

    patrimnio imaterial. Nas anlises dos modernos discursos do patrimnio

    cultural, a nfase tem sido posta no seu carter construdo ou inventado. Cada

    nao, grupo, famlia, enfim cada instituio constri no presente o seu

    patrimnio, com o propsito de articular e expressar sua identidade e sua

    memria. Esse fato mostra que um patrimnio no depende apenas da vontade

    e deciso polticas do Estado. As instncias situadas entre a memria e a

    histria, tais como o patrimnio, as colees, os museus, os monumentos, os

    arquivos, assumem a funo de representar memrias e identidades. Nas

    palavras de Jos Reginaldo Gonalves:

    O que pretendo colocar em foco precisamente a ambigidade presente na categoria patrimnio, aspecto definidor de sua prpria natureza, uma vez que liminarmente situada entre o passado e o presente, entre o cosmos e a sociedade, entre a cultura e os indivduos, entre a histria e a memria. Nesse sentido, algumas modalidades de patrimnio podem servir como formas de comunicao criativa entre essas dimenses, comunicao realizada existencialmente no corpo e na alma dos seus proprietrios. (GONALVES, 2006, p. 20)

    A poltica atual do patrimnio estabelece a questo da identidade

    nacional numa perspectiva pluralista assentada nas diversidades regionais, que

    situa a compreenso dos bens culturais em termos das possibilidades mltiplas

    de representaes do real e dos sujeitos do processo histrico. A inteno de

    construir o passado caminha lado a lado com as prticas e representaes

    cotidianas, indicando que a formao de identidades e memrias coletivas

    acontece independentemente dos moldes impostos pela concepo

    institucionalizada do conceito de patrimnio. Essas abordagens marcam a

    reviso do recuo temporal e do carter excepcional que se tenta atribuir ao

    fundamentar um valor histrico. Sobre este assunto destaca Jos Reginaldo:

    Mais precisamente, quero chamar a ateno para o fato de que o acesso que o patrimnio possibilita, por exemplo, ao passado no depende inteiramente de um trabalho consciente de construo no presente, mas, em parte, do acaso. Se por um lado construmos intencionalmente o passado, este, por sua vez, incontrolavelmente se insinua, nossa inteira revelia, em nossas prticas e representaes. Desse modo, o trabalho de construo de identidades e memrias coletivas no est evidentemente condenado ao sucesso. Ele poder, de vrios modos, no se realizar. (GONALVES, 2006, p.20)

  • 41

    A questo do patrimnio permeia tanto o papel da memria e da tradio

    na construo das identidades coletivas, quanto o empenho do Estado em

    objetivar e legitimar a idia de nao. O valor atribudo aos bens em cada

    civilizao atesta sua forma de remeter ao passado, percebe-se uma distino

    dos usos simblicos entre os diferentes grupos sociais. Para a sociedade

    brasileira em geral esses valores atribudos ao patrimnio so regulados pelas

    noes de arte e de histria. Este dado se verifica ao analisarmos as inscries

    nos Livros do Tombo, nos quais so inscritos os bens sob a proteo da lei,

    so eles: Livro do Tombo Arqueolgico, Etnogrfico e Paisagstico, Livro do

    Tombo Histrico, Livro do Tombo das Belas-Artes e Livro do Tombo das Artes

    Aplicadas. (ARQUIVO NORONHA SANTOS, 2006) De acordo com as

    informaes do site do Arquivo Noronha Santos, arquivo central do Instituto do

    Patrimnio e Artstico Nacional (IPHAN), as inscries predominam no Livro

    das Belas-Artes, seguido pelo Livro Histrico, atualmente com 682 e 557

    inscries respectivamente, enquanto vemos 119 bens encontrados no Livro do

    Tombo Arqueolgico, Etnogrfico e Paisagstico e apenas 4 no Livro de Artes

    Aplicadas.

    As noes modernas de monumento histrico, de patrimnio e de preservao s comeam a ser elaboradas a partir do momento em que surge a idia de estudar e conservar um edifcio pela nica razo de que um testemunho da histria e/ou uma obra de arte. (FONSECA, 2005, p. 53; grifo da autora)

    A perspectiva dada noo de patrimnio tem se modificado ao longo

    dos anos. Vimos que as primeiras iniciativas do IPHAN, ento SPHAN, foram

    no sentido de proteger os bens materiais edificados, prioritariamente da

    arquitetura colonial, demonstrando preocupao em resguardar elementos de

    carter histrico e artstico, ressaltando a ligao entre patrimnio e tradio.

    Aos poucos esse ponto de vista foi se ampliando, dando lugar a manifestaes

    imateriais e incorporando noes mais abrangentes aos conceitos de

    monumento e de documento, estabelecendo relaes entre as iniciativas de

    preservao e a formao de uma identidade nacional em processo.

  • 42

    2.2 PATRIMNIO DIGITAL

    Os avanos tecnolgicos vividos ao logo do sculo XX e incio do sculo

    XXI nos permite atuar como protagonistas de uma era de acelerao na

    produo e disseminao de informaes. Tradicionalmente, a definio do

    patrimnio delimita um conjunto de bens culturais cujo tratamento orienta-se

    pela lgica do conservar e transmitir, para esta recente modalidade de

    patrimnio que se apresenta a relao que se estabelece para esta lgica

    exatamente contrria. Desta maneira, no na conservao que

    encontraremos o caminho para a transmisso, mas justamente o oposto. Na

    era dos documentos eletrnicos transmitidos via web, a acessibilidade que

    nos garante manter a transmisso de informaes. Para conservar uma

    informao preciso acess-la, quanto mais acessos houver a essa

    informao e quanto mais links forem criados para encontr-la, mais tempo

    essa informao permanecer. uma situao contrria s pilhas de

    documentos que encontramos em arquivos e a dificuldade das instituies em

    estabelecer padres e normas para o acesso aos originais, muitas vezes

    restringindo o acesso para garantir a durabilidade desses documentos.

    Os parmetros de patrimonializao desses novos modelos de

    documentos apresentam novamente questes que fazem repensar os moldes

    at agora usados para a definio de patrimnio. Se em meados do sculo XX

    j no se pensava mais em cultura e patrimnio como elementos imutveis,

    hoje quando nos referimos aos documentos digitais a mutabilidade o conceito

    que primeiro se presta para represent-los. O impacto do formato digital nos

    documentos de arquivo foi intenso no mbito das atividades tradicionais da

    gesto de documentos. De acordo com a Cmara Tcnica de Documentos

    Eletrnicos do Conselho Nacional de Arquivos CONARQ esclarecemos a

    definio e documento arquivstico e documento eletrnico.

    [...] documento arquivstico [..] a informao registrada, independente da forma ou do suporte, produzida ou recebida no decorrer das atividades de uma instituio ou pessoa, dotada de organicidade, que possui elementos constitutivos suficientes para servir de prova dessas atividades. Tais elementos so: 1) Suporte: base fsica do documento;

  • 43

    2) Forma: textual, grfico, sonoro; cor, tamanho e tipo de letra, data, local, assinatura, destinatrio, logomarca, selo, carimbo e outros; 3) Anotaes: urgente, arquive-se, ciente e outros; 4) Contexto: jurdico-administrativo: leis, normas, regimentos, regulamentos, estrutura organizacional, etc. relativos instituio criadora do documento. Documentrio: regras de workflow, cdigo de classificao, temporalidade, assunto e outros. No caso dos documentos eletrnicos, acrescentem-se outros elementos tais como: Forma: links, nome do originador (e-mail), assinatura digital, certificado da assinatura digital e outros. Anotaes: data, hora e local da transmisso; indicao de anexos e outros. Contexto: contexto tecnolgico (hardware e software). [...] documento eletrnico [...] o documento em meio eletrnico, com um formato digital, processado por computador. (CONARQ, 2006)

    A urgncia da sociedade moderna em transformar ou produzir toda a

    informao que precisa texto, imagens, vdeos, sons para formatos digitais

    produz uma nova modalidade de patrimnio. No se trata mais de diferenciar

    material de imaterial, as relaes no se bastam apenas na caracterizao

    tangvel/intangvel. Na sociedade contempornea, a comunicao mediada por

    computadores interligados em rede gera um volume informacional que se

    acumula em ambientes virtuais.

    Historicamente esse fato representa uma alterao total das relaes

    humanas com relao a tempo e espao. um salto em direo ps

    organicidade, o corpo adquire componentes eletrnicos, sem os quais a

    contemporaneidade no sobreviveria. Ocorre que nem bem o homem

    consegue administrar seus desafios sociais com relao globalizao e j se

    encontra diante de uma atribuio de incluir digitalmente uma grande parcela

    populacional que ainda no consegue sequer um espao de incluso social.

    Verificamos uma medio temporal que no humana, o corpo no capaz de

    contar milsimos de segundos, porm, utilizamos mquinas para nos fazer

    valer desse tempo, que cada vez mais fragmentado. O relgio cartesiano

    agora conta na velocidade de um cronmetro.

    O antigo projeto de patrimnio como construo de identidade coletiva

    vai de encontro a uma identidade global, ou a identidades diversas e mltiplas.

  • 44

    A incorporao no mbito da formao do patrimnio de aspectos locais na

    formao do patrimnio nacional, que recebeu nfase nas produes regionais

    nas dcadas de 1970 e 80, agora se v diante de uma espacialidade renovada,

    o universo digital no tem fronteiras. A chamada aldeia global que se forma

    atravs da rede mundial de computadores provoca a difuso de padres

    culturais os mais variados. Estamos diante de uma modalidade de patrimnio

    que no se presta mais a servir de espelho de uma nao, preciso levar em

    conta como as diversas regies e naes, culturas e civilizaes se relacionam

    atravs da rede. Presenciamos uma era onde as relaes humanas so

    mediadas por sistemas de informao e comunicao muito sofisticados.

    O apelo, cada dia mais acelerado, ao recurso tecnolgico justificado

    pela economia de espao fsico, pelo extraordinrio ganho de produtividade e

    eficincia proporcionado pela otimizao dos fluxos de trabalho, pela facilidade

    de acesso aos estoques de informao, e ainda pela facilidade de gerao e

    distribuio de dados e informaes digitais. A informao em formato digital

    extremamente suscetvel degradao fsica e obsolescncia tecnolgica,

    estas novas facilidades trazem conseqncias e desafios importantes para

    quem cuida da preservao e do acesso