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Universidade Federal do Rio de Janeiro PALAVRAS SOBREVIVENTES: O PROTAGONISMO INDÍGENA NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL Marianna Guimarães Alves 2016

Marianna Guimarães Alves · somente o aspecto sobrevivente dos remanescentes dos primeiros povos, como também de suas diversidades e de suas atuações enquanto sujeitos de seu

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

PALAVRAS SOBREVIVENTES: O PROTAGONISMO INDÍGENA NA

LITERATURA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL

Marianna Guimarães Alves

2016

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PALAVRAS SOBREVIVENTES: O PROTAGONISMO INDÍGENA NA

LITERATURA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL

Marianna Guimarães Alves

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós-graduação em Ciência da

Literatura da Universidade Federal do Rio de

Janeiro como quesito para a obtenção do

Título de Mestre em Ciência da Literatura

(Literatura Comparada)

Orientador: Prof. Doutor Eduardo de Faria

Coutinho.

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2016

3

Alves, Marianna Guimarães

A474p Palavras sobreviventes: o protagonismo indígena na literatura

contemporânea no Brasil / Marianna Guimarães Alves. – Rio de

Janeiro: UFRJ, 2016.

112f. : il.; 30 cm.

Orientador: Eduardo de Faria Coutinho

Banca: Beatriz Vieira de Resende

Banca: Cláudia Heloisa Impellizieri Luna Ferreira da Silva

Dissertação (Mestrado), Universidade Federal do Rio de

Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em

Ciência da Literatura, 2016.

Bibliografia: f. [109]-112.

1. Literatura indígena – Brasil – História e crítica. 2.

Literatura brasileira – Sec. XXI – História e crítica. 3. Literatura

brasileira – Escritores indígenas. 4. Literatura infantojuvenil

brasileira – Escritores indígenas. 5. Índios na literatura - Brasil.

6. Tradição oral – Brasil. I. Coutinho, Eduardo de Faria. II.

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras.

III. Título.

CDD 898.009

4

Aos ancestrais que me convocaram para a escrita deste trabalho,

antes mesmo de eu tomar ciência de minha ascendência

indígena.

À memória de minha avó, que me despertava carinhosamente

em suas fases de insônia para dizer o quanto eu parecia com sua

avó, minha tataravó indígena, capturada nas matas da Bahia por

um europeu.

Aos meus amigos físicos e espirituais que me fortalecem a cada

dia, principalmente aos que dividem comigo os pesos e os

sorrisos cotidianos.

5

AGRADECIMENTOS

À Força Divina que se manifesta em cada ser e em todos os momentos, fazendo sentir-

me acolhida nesta imensidão chamada universo.

À Universidade Federal do Rio de Janeiro e principalmente ao seu Programa de Pós-

Graduação em Ciência da Literatura, pela oportunidade de realização do curso de Mestrado

em Literatura Comparada.

Ao Professor Doutor Eduardo de Faria Coutinho, pela orientação, atenção e,

principalmente, pela inspiração.

Aos muitos docentes que contribuíram para a minha formação profissional e meu

crescimento pessoal. Em especial ao professor Raylson Nicácio, que me apresentou a

Literatura de uma forma diferente, pelo coração, contribuindo para a minha escolha

acadêmica.

Ao meu avô, Osvaldo, responsável por boa parte do que me tornei. A ele serei

eternamente grata por tudo que fez e continua a fazer por mim. Se alcancei a Graduação e o

Mestrado, foi por seu frequente estímulo e amor.

Ao meu sempre companheiro, Alex, por ter lutado ao meu lado durante boa parte de

minha trajetória acadêmica. Por ter me entendido em todas as vezes em que o desespero batia

e me acolhido em seus braços e em seu coração como forma de amenizar as agruras da vida.

À minha mãe Marina, que me deu a vida, e à minha mãe Lucília, que me gerou pelo

coração. Obrigada pelas diferentes formas de expressarem seu amor e carinho. À minha sogra,

Genilza, pela ótima amiga que é e por todo amor que a mim transmite.

Aos meus irmãos maternos, Monique, Cíntia, Júnior e Vitor (in memorian), e às

minhas sobrinhas, Carolina e Beatriz. Desculpem-me pela ausência e obrigada pela

compreensão.

À Maria Sanches e aos meus tios Moacyr e Osvaldina (in memorian), pelo carinho,

pela confiança e pela torcida.

Às minhas amigas do peito, pelos sorrisos, conselhos e parceria: Vera Fulgêncio,

Rosângela Marques, Mariana Tamis, Márcia Freitas e Débora Salles. Com vocês por perto a

vida fica mais leve e prazerosa.

À CAPES, pelo auxílio financeiro e apoio à pesquisa, e aos funcionários da UFRJ por

toda a ajuda prestada.

6

Ao escrever,

dou conta da ancestralidade;

do caminho de volta,

do meu lugar no mundo.

Graça Graúna

Bonito é florir no meio dos ensinamentos impostos pelo poder. [...] Bonito é construir e abrir

as portas a partir do nada. Bonito é renascer todos os dias.

Eliane Potiguara

Histórias moram dentro da gente, lá no fundo do coração. Elas ficam quietinhas num canto.

Parecem um pouco com areia no fundo do rio: estão lá, bem tranquilas, e só deixam sua

tranquilidade quando alguém as revolve. Aí elas se mostram.

Daniel Munduruku

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RESUMO

PALAVRAS SOBREVIVENTES: O PROTAGONISMO INDÍGENA NA LITERATURA

CONTEMPORÂNEA NO BRASIL

Marianna Guimarães Alves

Orientador: Professor Doutor Eduardo de Faria Coutinho

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em

Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos

requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura (Literatura

Comparada).

Este trabalho tem como principal objetivo analisar e propagar algumas das palavras

indígenas registradas de forma escrita na contemporaneidade brasileira. Tendo em vista não

somente o aspecto sobrevivente dos remanescentes dos primeiros povos, como também de

suas diversidades e de suas atuações enquanto sujeitos de seu próprio discurso, esta pesquisa

pretende, associada aos textos selecionados, desconstruir a ideia de integração e assimilação

dos povos indígenas ao padrão social nacional e mostrar que a tradição e a cultura indígenas

permanecem fortalecidas mesmo quando manifestadas através dos códigos de comunicação

dominantes. Além disso, nossa pretensão é mostrar que os textos escritos atualmente por

indígenas de diversas etnias do atual território brasileiro simbolizam uma luta identitária,

visando o respeito pela diversidade e a melhoria da sociedade não indígena. Para tanto,

utilizaremos como principais bases argumentativas os livros de Olívio Jekupé, Daniel

Munduruku, Eliane Potiguara e Graça Graúna, defendendo que "as palavras indígenas sempre

existiram" e que a escrita é apenas uma forma de difundi-las.

Palavras-chave: Literatura Indígena, protagonismo indígena, oralidade, Movimento Indígena

brasileiro.

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2016

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ABSTRACT

SURVIVING VOICES: INDIGENOUS PROTAGONISM IN CONTEMPORANY

BRAZILIAN LITERATURE

Marianna Guimarães Alves

Orientador: Professor Doutor Eduardo de Faria Coutinho

Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em

Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos

requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura (Literatura

Comparada).

This study aims primarily at analyzing and bringing to knowledge the written

production of Indian descendants in contemporary Brazil. As such, it is based on a corpus

composed by books written by Olívio Jekupé, Daniel Munduruku, Eliane Potiguara and Graça

Graúna, some of the most well-known representative of these groups. By taking into account

both their strife for survival and the diversity of expression they have been revealing as

subjects of their own history, we intend to deconstruct the idea that the former inhabitants of

Brazil were merely assimilated into the national homogeneous paradigm based on European

models. We also want to show that their culture and tradition were preserved rather than

abandoned, even when manifested by means of the dominant codes of communication. The

texts written nowadays by members of the different ethnic groups living in Brazil are an

expression of their search for identity, and they all reveal a yearning to conquer a space where

their differences may be observed and respected by the non-indigenous society.

Kew-words: Indigenous Literary Production, indigenous protagonism, orality, Movimento

Indígena Brasileiro (Brazilian Indigenous Movement).

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2016

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ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Ilustração de Vanderson Lourenço impressa no livro O saci verdadeiro, de Olívio

Jekupé....................................................................................................................................... 30

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 11

2. TRADIÇÕES INDÍGENAS: INTERPRETAÇÕES A PARTIR DO SACI-PERERÊ DE

OLÍVIO JEKUPÉ ..................................................................................................................... 19

2.1. Abrindo espaços ............................................................................................................. 19

2.2. Ser indígena e/ou ser brasileiro? .................................................................................... 21

2.3. A tradição oral e a importância mítica do Saci verdadeiro ............................................ 25

2.4. Múltiplas culturas e outros Saci's ................................................................................... 32

2.5. Tecendo a própria história ............................................................................................. 38

3. PELAS JANELAS DA TRADIÇÃO EM NARRATIVAS DE DANIEL

MUNDURUKU ........................................................................................................................ 40

3.1. A sabedoria e as formas de narrar .................................................................................. 40

3.2. Explicações pertinentes ou uma pequena introdução .................................................... 46

3.3. Repensando a tradição em O sinal do pajé .................................................................... 47

3.4. Conhecendo um pouco mais sobre a tradição em Todas as coisas são pequenas ......... 59

3.5. Literatura com fins educativos e revolucionários .......................................................... 70

4. RELAÇÕES ENTRE O MOVIMENTO INDÍGENA BRASILEIRO E A LITERATURA

INDÍGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL .................................................................... 75

4.1. O domínio cultural alheio e os sistemas de notação ...................................................... 75

4.2. O protagonismo indígena e seu aspecto formativo ........................................................ 80

4.3. O caráter educativo do Movimento e a Literatura Indígena Contemporânea no Brasil 86

4.4. A Literatura de sobrevivência em Metade cara, metade máscara ................................ 90

4.5. A Literatura Indígena Contemporânea sob a ótica de Graça Graúna ............................ 98

5. CONCLUSÃO .................................................................................................................... 107

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 109

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1. INTRODUÇÃO

Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas

vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas. Vinham todos

rijos sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem

os arcos. E eles os pousaram. [...] E portanto, se os degredados,

que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem,

não duvido que eles, segundo a santa intenção de Vossa Alteza, se

hão de fazer cristãos e crer em nossa santa fé, à qual praza a

Nosso Senhor que os traga, porque, certo, esta gente é boa e de

boa simplicidade. E imprimir-se-á ligeiramente neles qualquer

cunho, que lhes quiserem dar. E pois Nosso Senhor, que lhes deu

bons corpos e bons rostos, como a bons homens, por aqui nos

trouxe, creio que não foi sem causa. [...] E nesta maneira, Senhor,

dou aqui a Vossa Alteza do que nesta vossa terra vi. E, se algum

pouco me alonguei, Ela me perdoe, que o desejo que tinha, de Vos

tudo dizer, mo fez assim pôr pelo miúdo.

Pero Vaz de Caminha

Não há como negar, por esta epígrafe, que os indígenas estiveram presentes na

literatura brasileira desde os primórdios de sua existência oficial. De modo semelhante, não

podemos desconsiderar as diversas formas de linguagens e comunicação já existentes entre os

autóctones, antes mesmo do encontro entre as culturas, e que foram rejeitadas por não estarem

vinculados à escrita e, consequentemente, ao poder que passou a vigorar como único e

aceitável. O fato é que sobre a imagem que se construiu do indígena, a partir deste texto,

considerado como certidão de batismo do Brasil e que, sob a perspectiva eurocêntrica,

permanece entranhada no imaginário social, mesmo depois de mais de cinco séculos

decorridos, ainda há muito para desconstruir e reformular do que se firmou como símbolo

nacional.

A começar por estes excertos da carta de Pero Vaz de Caminha, destinada ao Rei de

Portugal, D. Manuel, e datada de primeiro de maio de 1500, percebemos as visões distorcidas

voltadas aos autóctones no episódio conhecido como Descoberta do Brasil. A verdade que se

sabe, mas se ignora por não ser a fixada na historiografia nacional é que as terras, agora

brasileiras, já eram habitadas e já tinham donos. Aliás, também tinham um nome, dado pelos

Tupis, de Pindorama ou Terra das Palmeiras. A título de associação, o continente americano

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já havia sido "conquistado" pouco menos de oito anos antes por Cristóvão Colombo, mas a

frota de Pedro Álvares Cabral só desembarcou nas terras "brasileiras" em abril de 1500.

Tanto a Conquista da América, quanto a Descoberta do Brasil – sendo esta a possível

consequência da primeira – representaram o óbito ou extinção de diversas etnias indígenas,

visto que, ao desembarcarem nas terras invadidas, os europeus buscaram se firmar como

civilizados ao passo de submeter os autóctones a selvagens e ignorarem suas culturas. No caso

"brasileiro", comprovamos que os primeiros contatos resultaram em estranhamento,

generalizações e indícios de submissão. Nos recortes selecionados para nortear esta discussão,

notamos de forma bastante explícita e moralista a fé cristã; através desta perspectiva religiosa

se pretende fazer dos autóctones devotos de "Nosso Senhor" e, assim, propagar a religião

cristã. Além disso, a atenção dada às características físicas como dádivas divinas seria uma

das formas de garantir bons religiosos ("Nosso Senhor, que lhes deu bons corpos e bons

rostos, como a bons homens, por aqui nos trouxe, creio que não foi sem causa") e a descoberta

de tantos indivíduos aparentemente sem cultura seria um sinal de Cristo para a disseminação

da fé. Para o escrivão da frota de Pedro Álvares Cabral, os indígenas aparentavam tanta

inocência que o fazia acreditar que "[imprimiriam] ligeiramente neles qualquer cunho, que

lhes [quisessem] dar", como se estes estivessem à mercê de suas ideologias e cultura e

representassem uma lacuna a ser preenchida.

Mormente, a seleção desses fragmentos da carta de Caminha representa ainda mais do

que o que estamos discutindo. No eixo que pretendemos seguir neste trabalho acadêmico, essa

carta traz consigo a voz colonizadora que ecoa por todos os cantos da nação e se firma como

superior, contendo os gritos (de dor) dos oprimidos e sufocando as vozes sobreviventes. Ela

representa o início de uma tradição de verdades que se oficializaram através da escrita e que

se mantiveram como únicas por longos anos na História. Em última análise, ela é o atestado

de furto das terras indígenas que os colonizadores denominaram, posteriormente, Brasil.

Ao mesmo tempo em que Pero Vaz de Caminha relata ao rei sobre a existência de

"homens pardos e nus" na terra "descoberta" e sente-se incomodado com a falta de vestimenta

destes indivíduos por pertencerem a uma cultura diferente da sua, reconhece a posse das terras

já habitadas ao seu rei; ou seja, ignora os autóctones como donos da terra e a confirma como

propriedade real ("dou aqui a Vossa Alteza do que nesta vossa terra vi"). Portanto, o domínio

territorial, bem como a intenção de aculturação e a intolerância à diversidade cultural, são os

fatores contidos na carta de Caminha que mais nos interessam para a compreensão deste

trabalho.

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Por mais que concordemos que a presença do indígena na literatura brasileira ocorra

desde o primeiro texto oficialmente escrito em terras nacionais, não podemos deixar de

esclarecer que esta presença se dá de forma passiva e informativa, ou seja, os autóctones são

mencionados como parte de um território "descoberto", configurando, tristemente, um dos

"elementos" encontrados. Em outras palavras, eles não são considerados sujeitos ao ponto de

intimidarem a invasão das terras, mas sim parte da imagem paradisíaca descrita por Caminha

e vários outros informantes e cronistas que se atreveram a descrever as belezas deste país.

É certo que a comunicação indígena era predominantemente oral e que não há registro

(divulgação) de textos (seguindo os padrões gráficos europeus) escritos por autóctones no

Brasil antes da década de 1970. Entretanto, não podemos desconsiderar as diversas formas

sofisticadas de registro de diversas etnias brasileiras1 empregadas, por exemplo, na confecção

de artesanatos e nas representações corporais – como os ritos, as pinturas e as danças. Tudo

tem história e cada traço e gesto tem um significado. Mesmo que os cestos Kaingang2, por

exemplo, não tragam expressos através da escrita seus significados, pelas formas retas ou

arredondadas, abertas ou fechadas, podemos compreender a mensagem (história) que buscam

transmitir3. As cores, as formas e o material são pensados cuidadosamente como maneira de

preencher o sentimento do artesão e a história de seu povo. Portanto, não podemos negar a

maestria na confecção e comunicação dessas peças, capazes de transmitir por traços e cores a

história e a herança tradicional de um povo que sobrevive a duras penas.

O trauma iniciado na Conquista, de sermos vistos frequentemente como o outro, é a

marca que se busca aniquilar com o apagamento ou maquiagem dos vestígios de origem dos

primeiros habitantes ou daqueles indivíduos que foram trazidos para escravidão. Dessa forma,

o que se constrói por cima dessas histórias primeiras é tido como único e melhor e o que foge

1 A partir deste momento tentaremos reduzir as aspas utilizadas para problematizar o termo "brasileiro (a)(s)",

simplesmente por questões textuais, a fim de não cansar nosso leitor e consciente de que sua mente já estará

criticamente voltada para a violência em massa que este vocábulo omite. Tentando esclarecer um pouco mais,

buscamos mostrar que o Brasil, enquanto nação, se construiu nas ruínas e túmulos de diversas etnias que já

habitavam estas terras antes do chamado Descobrimento e que, mesmo depois de anos, o termo acredita abarcar

a diversidade nacional sem considerar, de fato, as diferenças contidas nas diversas comunidades de forma

política, cultural e social. 2 Um dos mais numerosos povos indígenas no Brasil, os Kaingang pertencem ao tronco linguístico Jê e ocupam a

região sul e sudeste do atual território brasileiro. 3 A sabedoria Kaingang é dividida em duas metades criadoras, Kamé e Kairu, e através desta concepção cultural

tudo se constrói de acordo com as simbologias das metades, desde os artesanatos aos casamentos. De acordo

com a tradição, uma metade representa o dia e a outra representa a noite; uma é forte, grande e resistente, ligada

a forças físicas, e a outra inteligente, mentora e conselheira, sensível à espiritualidade. Para que haja a harmonia

dos elementos, as metades têm que se juntar, ou seja, um kamé só pode constituir família com um kairú. No

artesanato, por exemplo, esta dualidade se configura nas marcas Téi (Kamé) e Ror (Kairu), sendo a primeira

simbolizada por grafismos longos e abertos e a segunda por baixos e fechados. (Cf. NEGRO, Maurício;

KAINGÁNG, Vãngri. Jóty, o tamanduá: reconto Kaingáng. São Paulo: Global, 2010. (Coleção Muiraquitãs)).

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disto é reconfigurado ou marginalizado como forma de neutralizar os abismos criados pela

diferença. Sobretudo, a construção de um novo modelo se baseia em importações (já que o

que se reconhece como interno não tem valor) e submissões (por haver justamente essa

desvalorização).

A capacidade e sabedoria comunicativa dos autóctones não foram consideradas

satisfatórias aos padrões europeus. A escrita se configurou como a maneira mais eficiente e

segura de linguagem e, portanto, deveria prevalecer sobre toda e qualquer estratégia

comunicativa. No caso das grandes civilizações maias e incas, que ocupavam as áreas pré-

hispânicas da Mesoamérica e dos Andes, os sistemas gráficos de notação se aproximavam

mais da escrita colonizadora, embora buscassem registrar em seus códigos as ações e não a

língua (foneticamente falando). Vera Kauss, em sua dissertação de Mestrado defendida no

ano de 1996, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, afirma que "enquanto na escrita

alfabética do europeu a ênfase está na fonética das palavras, na escrita indígena esta ênfase

recai no conteúdo semântico, na significação delas", sendo apenas uma forma "auxiliar no

processo de comunicação" (KAUSS, 1996: 35 e 36). Mesmo com esta semelhança, as antigas

formas de comunicação autóctones não foram poupadas e logo foram destruídas para a

propagação geral da escrita europeia e para a unificação cultural do continente. Entretanto,

veremos um pouco mais detalhado no desenvolvimento deste trabalho, que não tardou para

que as tradições autóctones das áreas pré-hispânicas fossem resgatadas e transcritas como

forma de conhecer melhor as culturas que os (neste caso) espanhóis buscavam submeter.

Após ignorarem a cultura e presença, enquanto sujeitos, dos primeiros habitantes das

terras brasileiras e determinarem que a cultura trazida das terras colonizadoras seriam as

determinantes para o progresso e desenvolvimento do país, chegaria a hora de pôr em prática

as novas ideias. Ao notarem que os indígenas não se submeteriam facilmente à servidão, e os

que eram obrigados a servir de mão-de-obra não trabalhavam de acordo com o esperado – por

justamente pertencerem a outra cultura (de subsistência) –, os europeus atribuíram a eles

adjetivos depreciativos, como "selvagens" e "preguiçosos", que passaram a generalizar todos

aqueles que descendiam dos primeiros povos.

Como forma de sobrevivência e até mesmo como maneira de esconderem-se dos

preconceitos disseminados entre os descendentes destes colonizadores, muitos indígenas se

isolaram em matas ainda desconhecidas pelos europeus e outros buscaram sufocar a

identidade autóctone que pulsava em suas veias. Por conta disso, houve uma época no Brasil

em que se acreditava no total extermínio ou integração desses povos, desconhecendo a

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diversidade que se omitia por medo e falta de espaço. No imaginário social, o indígena havia

se tornado uma figura mítica que se inscreveu nas primeiras páginas do Descobrimento como

parte do território invadido, mas que depois se retirou, ou melhor, foi retirado, de circulação

pelos invasores, ficando apenas na história – como imagem congelada de uma população que

não mais existe.

Um exemplo desta imagem congelada que fizeram dos autóctones na história, onde o

modelo claro se consagrou na carta de Pero Vaz de Caminha e se estendeu aos diversos textos

posteriores sobre a condição indígena, é o do Indianismo. O Indianismo foi uma das vertentes

do Romantismo no Brasil que teve como marco a idealização do indígena e a consagração

desta figura como herói nacional. Embora já estejamos tratando de uma corrente literária do

século XIX, a ideia de que "Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas

vergonhas. [E de que] Nas mãos traziam arcos com suas setas" (CAMINHA, 1500: 02)

permanecia como se os indígenas fossem criaturas recém conhecidas pelos colonizadores.

Além disso, a obediência e docilidade que podemos encontrar na sequência "Vinham todos

rijos sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os

pousaram" (Ibidem: 02) seguem pelas páginas de José de Alencar e Gonçalves Dias,

principais nomes desta literatura indianista.

Embora a sociedade se recusasse a aceitar como raiz étnica a identidade indígena, a

partir da independência do Brasil, em 1822, procurou-se buscar no próprio território algo que

distinguisse o Brasil de sua metrópole portuguesa. Diversos intelectuais encontraram na

figuração histórica do indígena o respaldo que buscavam de uma "cor local", sem saber, de

fato, que ele era um ser histórico e que sobrevivia nas margens urbanas (forçados pela

migração) ou nas matas virgens do país. Utilizaram como símbolo nacional a memória de um

apagamento e a vaga lembrança imobilizada de uma diversidade que procuravam omitir e que

consideravam morta. Até mesmo Machado de Assis, em "Notícia da atual literatura brasileira.

Instinto de nacionalidade", ao propor uma literatura mais independente e criticar o excesso de

nacionalidade que disfarçava nos símbolos nacionais a inevitável sujeição aos padrões

exteriores, desconhece a resistência indígena e dirige aos autóctones expressões como "tribos

vencidas", "costumes semibárbaros" e "raça extinta".

José Carlos Mariátegui, importante escritor e ativista peruano, em seu famoso livro

intitulado Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, afirma que "o florescimento

das literaturas nacionais coincide, na história do Ocidente, com a afirmação política da ideia

nacional" (MARIÁTEGUI, 2010: 225), corroborando, por esta assertiva, o teor nacionalista

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apresentado pela corrente indianista do Brasil. Ao desenvolver um pouco mais sobre esta

literatura nacional, focando nos aspectos percebidos em seu país – o Peru –, o autor afirma

que "a literatura nacional é, no Peru, como a própria nacionalidade, de inegável filiação

espanhola" (Ibidem: 226). De modo semelhante, segue a literatura indianista no Brasil que

mascarava na representação do indígena, utilizado como símbolo nacional, os atributos e as

influências portuguesas.

Sete ensaios de interpretação da realidade peruana foi escrito no auge do movimento

indigenista, que foi uma corrente social e literária que denunciava as condições indígenas de

exploração e buscava melhorias para as diversas etnias sobreviventes. Mariátegui pertencia a

esta primeira geração indigenista, articulada nas primeiras décadas do século XX, e

problematizava em seus discursos diversas questões referentes à terra, à educação, entre

outras reivindicações políticas emergentes. Para o autor, os autênticos indigenistas "não

devem ser confundidos com os que exploram temas indígenas por mero 'exotismo'" e, de

forma crítica, os indigenistas "colaboram, conscientemente ou não, em uma obra política e

econômica de reivindicação – não de restauração nem ressurreição" (MARIÁTEGUI, 2010:

315).

Houve uma segunda geração indigenista, que além de aperfeiçoar as estratégias de

ação frente às causas indígenas, se destacou pela visão interna que seus ativistas tinham de

algumas comunidades indígenas com as quais conviveram. Dentre os autores mais influentes,

podemos destacar José María Arguedas, no Peru, e Darcy Ribeiro, no Brasil. Ao mencionar

esta segunda geração indigenista, Vera Kauss garante que seus representantes, "ao [falarem]

do índio, não estavam falando sobre alguém que apenas imaginavam como era; eles falavam

com conhecimento de causa, principalmente Arguedas" (KAUSS, 1996: 56-57).

Depois destas breves menções das figurações dos indígenas na literatura e na

sociedade brasileiras, com contribuições teóricas do texto de Mariátegui e das rápidas

menções do caso peruano associado ao brasileiro, não podemos deixar de notar a falta de

protagonismo indígena (no âmbito autoral e discursivo) que ocorre em toda as correntes

mencionadas. Tomando como referência o discurso de Alcmeno Bastos, fica-nos visível "a

condição permanente do índio como objeto de um discurso alheio, já que não há exemplos de

textos nos quais, de fato, sua voz se faça ouvir, textos nos quais o índio seja, realmente o

sujeito da enunciação" (BASTOS, 2011: 18-19). A partir destas certezas, surge a lembrança

de uma ilustre frase de Mariátegui, publicada em 1928, que, partindo dos mesmo pressupostos

de objetivação da fala indígena e da falta de enunciação própria de seus discursos, condiciona:

17

"Uma literatura indígena, se deve vir, virá a seu tempo. Quando os próprios índios estiverem

em condições de produzi-la" (MARIÁTEGUI, 2010: 317). A literatura à qual o autor se

refere contempla uma voz interna, não mais a de autores que estiveram simplesmente imersos

na cultura indígena sem vínculo algum com a comunidade e a ancestralidade, mas daqueles

que nasceram nas comunidades ou que descendem das diversas etnias indígenas e não só

carregam em si o sangue autóctone, mas fazem dele identidade, bem como um atributo de

resistência e luta.

Ao perguntarmo-nos, depois de tantos anos desde a alusão de Mariátegui, se já existe,

de fato, uma literatura indígena que contemple e expresse diretamente as vozes sobreviventes,

buscamos responder com esta dissertação de Mestrado que, entre outras poucas, discute e

propaga as sabedorias ancestrais escritas pelos descendentes e mensageiros dos primeiros

povos.

Sendo assim, este trabalho de pesquisa pretende discutir a tomada de voz das diversas

etnias indígenas através dos textos literários contemporâneos surgidos no Brasil, a partir da

década de 1970. Estes textos trazem em si as marcas não só da violência vivida pelos

autóctones, como a herança tradicional firmada espiritualmente pelos ancestrais indígenas e

manifestada através da escrita por seus remanescentes.

Tendo em vista o sofrimento coletivo dos primeiros habitantes e as questões comuns e

gerais de território, tradição, cultura, saúde e educação, não especificaremos, em toda as

passagens da pesquisa, as etnias às quais nos referiremos, visto que muitas vezes elas são

tratadas em termos gerais pelos próprios escritores remanescentes.

A noção de que a oralidade, como forma tradicional de comunicação autóctone, "ao

invés de desaparecer, irá adaptar-se à nova situação [discursiva] e continuará a expressar a

maneira particular destas sociedades indígenas verem o mundo" (KAUSS, 1996: 36), é um

dos eixos argumentativos que buscaremos frisar ao longo de todo este trabalho.

No primeiro capítulo, por exemplo, intitulado "Tradições indígenas: interpretações a

partir do Saci-Pererê de Olívio Jekupé", analisaremos um pequeno livro de Olívio Jekupé,

escritor indígena pertencente à família Guarani e habitante da aldeia Krukutu, localizada na

Grande São Paulo. A partir de seu livro, O saci verdadeiro (2002), buscaremos enfatizar

criticamente a importância da oralidade na duração dos mitos que configuram as diversas

etnias. Além disso, destacaremos como uma outra perspectiva de conhecimento a abordagem

de uma figura mítica, o Saci-Pererê indígena, construída de forma totalmente díspar no

imaginário nacional. Contaremos, nesta discussão, com o respaldo teórico de Martin

18

Lienhard, em La voz y su huella (1990), e Paul Zumthor, em A letra e a voz: a "literatura"

medieval (1993) e Introdução à poesia oral (2010), além das críticas de Graça Graúna e de

Betty Mindlin.

Já no segundo capítulo, "Pelas janelas da tradição em narrativas de Daniel

Munduruku", procuraremos reforçar a importância do narrador e do ouvinte na permanência

temporal das narrativas, por considerarmos que ambos são de extrema importância para a

duração discursiva dos mitos e histórias tradicionais indígenas. Buscaremos firmar esta

hipótese nos livros O sinal do pajé e Todas as coisas são pequenas, de Daniel Munduruku,

sob à luz de Walter Benjamin, em "O narrador" (1994), de Michel de Montaigne, em "Os

canibais" (1987), e novamente de Paul Zumthor, nas obras supracitadas. Vale ressaltar que

Daniel Munduruku, remanescente do povo Munduruku, é considerado o mais importante

autor de temática indígena no Brasil, e possui mais de cinquenta títulos publicados.

Destoante destes dois primeiros capítulos, fortemente voltados à análise literária dos

textos, está o terceiro, que estruturaremos de forma um pouco mais abrangente e política.

Nossa intenção, ao pensarmos em sua construção e diferença, está longe de um estranhamento

do leitor, mas, para alcançar o objetivo pretendido, teremos que configurá-lo de forma bem

genérica, a fim de contemplar os escritores que acreditamos ser indispensáveis para o tema.

Em "Relações entre o Movimento Indígena brasileiro e a Literatura Indígena

Contemporânea no Brasil", procuraremos apontar a origem não só do Movimento Indígena

brasileiro, que se baseou na reunião nacional de diversas lideranças para a luta pelos direitos

dos povos indígenas, na década de 1970, como também a origem da Literatura Indígena

Contemporânea, que se desenvolveu como maneira de manter o Movimento (político)

atuando. A pretensão inicial deste capítulo era, somente, buscar nos textos e nos diversos

movimentos políticos discutidos por eles o momento considerado como abertura ao

protagonismo indígena, mas, para nosso espanto, diversas outras portas foram abertas e isso

permitirá a conexão de todas as partes deste trabalho, visto que todos os textos de autoria

indígena abordados nele só chegaram até nós por ter havido um momento histórico que

permitiu esta abertura.

Dessa forma, neste terceiro e último capítulo, utilizaremos o livro O caráter educativo

do movimento indígena brasileiro (1970-1990) (2012), de Daniel Munduruku, Metade cara,

metade máscara (2004), de Eliane Potiguara, e Contrapontos da literatura indígena

contemporânea no Brasil (2013), de Graça Graúna.

19

2. TRADIÇÕES INDÍGENAS: INTERPRETAÇÕES A PARTIR DO SACI-PERERÊ

DE OLÍVIO JEKUPÉ

2.1. Abrindo espaços

Uma das mais sugestivas frases que nos conduz a iniciar nossas discussões a respeito

desta configuração literária indígena contemporânea é a da escritora remanescente de tribos

potiguara, Graça Graúna. Em seu livro, Contrapontos da literatura indígena contemporânea

no Brasil, resultado de sua tese de Doutorado defendida na Universidade Federal de

Pernambuco, no ano de 2012, a autora afirma que "apesar da falta do seu reconhecimento na

sociedade letrada, as vozes indígenas não se calam" (GRAÚNA, 2013: 55). Esta afirmação

nos traz a certeza de que estas vozes sempre existiram, mas que nem sempre puderam ressoar

fora de seu campo habitual, de sua comunidade. A conjugação verbal nos permite inferir uma

duração temporal que começa no passado e se arrasta ao presente, mostrando uma persistência

sem que a ação tenha cessado.

O fato histórico que conhecemos como descobrimento mas que, na realidade, foi uma

triste e violenta invasão, ocasionou o extermínio de vários povos e, consequentemente,

culturas já existentes, além de excluir e ignorar a riqueza tradicional dessas comunidades na

formação social e cultural do que hoje configura nossa diversidade. Não nos resta dúvida de

que em nossa mestiçagem corra o sangue autóctone derramado de muitas violações e de que

em muitos de nós as marcas biológicas remetam à ancestralidade perdida nos apagamentos

sociais oriundos de uma política perversa de domínio. É lamentável a falta de conhecimento e

valorização deste importante e determinante constituinte do que somos e fomos nos muito

mais de cinco séculos; até porque nossa história, se considerarmos nossa raiz indígena, não

começa neste "descobrimento".

Como forma de reescrever a historiografia nacional, preencher as lacunas pertencentes

à nossa formação multiétnica e resgatar o espaço negado no panorama literário, a literatura

indígena contemporânea vem tendo cada vez mais força para conscientizar-nos, através de

palavras ditas ao papel, de sua importância e resistência. Sobretudo, a esperança por melhora,

mudança e justiça alimenta esta escrita, fazendo com que seus representantes acreditem em

uma interação entre o mundo indígena e o não indígena. De acordo com as ideias de Graúna,

"o seu lugar [das vozes indígenas] está reservado na história de um outro mundo possível. [E]

20

visando à construção desse mundo, os textos literários de autoria indígena tratam de uma série

de problemas e perspectivas que tocam na questão identitária" (GRAÚNA, 2013: 55).

Dito isto, adentramos em uma das temáticas e direções mais comuns de autoria

indígena no contexto contemporâneo, pois, em um levantamento bibliográfico dos autores

mais conhecidos na atualidade, destacam-se as histórias voltadas ao público infanto-juvenil,

que narram origens, mitos e costumes tradicionais dos povos indígenas. Percebemos nos

muitos títulos existentes uma direção a um público não indígena, que desconhece os costumes

e talvez "nem acredite"4 na existência de remanescentes e autores de tribos autóctones.

Ao divulgar para além das aldeias os conhecimentos ancestrais, acreditando estarem

neles a razão para muitas coisas e, sem dúvida, enfatizando sua potência cultural, percebemos

uma pretensão de mudanças. Ao tocar na questão identitária e visando um outro mundo

possível, como dito por Graça Graúna, o autor, de certa forma, esquematiza a transformação

que começa na leitura e, dependendo do grau de envolvimento do leitor, se estende na

conscientização de outras possibilidades de compreensão do mundo. Algo que estimule o

respeito não só com a natureza, provedora da vida, mas com o próximo e com nós mesmos

que a conservamos ou a destruímos. A sabedoria ancestral seria a chave para estas

conscientizações e os autores indígenas contemporâneos os porta-vozes, quiçá, desse

conhecimento primitivo.

Neste capítulo pretendemos mostrar um pouco desta sabedoria ancestral, calcada nos

ensinamentos transmitidos de geração em geração através da oralidade. Para tanto,

utilizaremos o livro O saci verdadeiro, de Olívio Jekupé, a fim de participarmos como leitores

e testemunhas de uma outra história ou possibilidade que se reconhece como origem e

verdade em contraponto ao que conhecíamos até o momento. Através das duas narrativas

impressas no livro, o autor nos apresenta um Saci-Pererê diferente do que grande parte dos

não indígenas ouve falar: bondoso, protetor e que se aparenta a um pequeno indígena. Além

disso, por este pequeno e valioso trabalho de Jekupé, podemos conhecer um pouco da cultura

indígena não em críticas ou teorias, mas em uma narrativa repleta de ensinamentos que nos

conduz a conflitos cotidianos e conhecimentos antepassados.

4 Fragmento extraído das páginas introdutórias do livro Verá: o contador de histórias, de Olívio Jekupé,

referentes às três aldeias indígenas situadas na maior cidade do Brasil, São Paulo.

21

2.2. Ser indígena e/ou ser brasileiro?

Antes de percorrermos, de fato, as histórias sobre o Saci-Pererê indígena, vale destacar

algumas importantes observações. Elas dizem respeito à oralidade tão presente nos textos

contemporâneos de autoria indígena, possivelmente como forma de os autores se manterem

ligados à tradição sem deixarem, entretanto, de utilizar os novos mecanismos de divulgação e

expansão da voz e pensamento indígenas. Estes autores expressam, através da escrita, os

conhecimentos que adquirem de sua comunidade por viver ou ouvir falar. Em alguns casos, a

marca de transmissão oral fica bastante clara para o leitor devido à seleção vocabular; é o que

acontece, por exemplo, com essa apresentação de Olívio Jekupé em Verá: o contador de

histórias: "É comum as pessoas pensarem que apenas os velhos e as velhas, como nossos

grandes sábios, têm histórias para nos contar, mas a que vamos contar é de uma criança muito

inteligente, que tinha grande talento para ouvir e criar as suas..." (2003: 08) (itálicos nossos).

Neste fragmento notamos que a herança da oralidade se faz presente na escrita, pois o

autor utiliza o mesmo verbo (contar) tanto ao referir-se à transmissão oral dos sábios da tribo

como ao registro por meio da escrita que utilizará para sua narrativa. Com isso, podemos

deduzir certa liberdade que o autor manifesta de mostrar-se como é e a característica de não

adequar-se completamente às normas de expressão que requer a escrita. Em conformidade

com a norma escrita culta, é comum a rejeição de expressões associadas à informalidade da

língua, principalmente as que utilizamos no vocabulário cotidiano, mas atualmente a ruptura

desses padrões tem sido bem vasta. No fragmento citado, este não é o caso, pois o que está em

evidência é uma especificidade da escrita que corresponde à tradição oral indígena.

Sabemos que a escrita, como um procedimento, é um ato solitário, pois, mesmo que

tenha a participação de mais autores, nem todos se farão presentes em todas as fases do

processo. Entretanto, por mais que saibamos que por detrás de todo nosso conhecimento

existam muitos e diversos outros conhecimentos, o que resulta de nosso esforço

reconhecemos como nosso, pessoal e intransferível, pois, afinal, somos nós que juntamos as

peças necessárias para formar aquele todo. Na literatura indígena contemporânea não é bem

assim que acontece. Os autores reconhecem seu texto como obra de uma sabedoria ancestral

que, por sua letra, deixou percorrer a voz de toda uma tradição. Sobre isso, Graça Graúna

explica:

A questão da especificidade da literatura indígena no Brasil implica um conjunto de

vozes entre as quais o(a) autor(a) procura testemunhar a sua vivência e transmitir

22

"de memória" as histórias contadas pelos mais velhos, embora muitas vezes se veja

diferente aos olhos do outro. (GRAÚNA, 2013: 23)

Não é difícil inferir que este outro a quem Graúna se refere é aquele não indígena que

"olha diferente" para as manifestações literárias indígenas, aquele que enxerga com

preconceito as vivências agora impressas em papel ou até mesmo aquele que ignora a

existência das mesmas. Porém, utilizamos esta ideia da autora não para mostrar o preconceito

pela literatura indígena no Brasil – embora esteja explícita sua existência –, mas como forma

de corroborar a ideia de coletividade representada na escritura indígena com a qual estamos

trabalhando.

Em se tratando de O saci verdadeiro, a oralidade se faz bastante presente. Já na

introdução do livro, Betty Mindlin diz que "o livrinho encantador de Olívio Jekupé, uma

ficção sobre o Saci, inspira-se nas histórias contadas por muitos tios e tias seus que vivem nas

terras Guarani", e logo em seguida ela explica que

Olívio escreve como o representante de uma sociedade de tradição oral, sem escrita.

Vai bebendo, como iniciante despretensioso, nas fontes escondidas e caudalosas de

narrativas transmitidas há séculos, de geração em geração, águas desconhecidas que

podem nos inundar de arte e prazer. (MINDLIN: 2002: xi)

A autora destaca que a cultura Guarani, da qual descende Olívio Jekupé, é uma das

mais “impressionantes e bem documentadas do Brasil, do Paraguai e da Argentina” e que

“caracteriza-se pelo misticismo, pela espiritualidade, pelo desprendimento dos bens materiais,

por um senso poético da vida e uma extrema habilidade com as palavras e com a alma, que

sobreviveram aos quinhentos anos de tragédia e colonialismo” (Ibidem: xi).

Dito isto, percebemos logo uma grande dissonância entre a realidade indígena e a não

indígena, a primeira sobrevivendo aos massacres e invasões enquanto a segunda fortemente

ligada ao poder e à ganância. Nas palavras de Jekupé, "não é fácil aguentar tanta pressão da

sociedade que nos envolve. Ainda assim, nosso povo continua firme, resistindo" (JEKUPÉ,

2003: 07).

Um dos temas centrais que é problematizado em O saci verdadeiro e que tomaremos

como importante discussão nesta parte da pesquisa é a crise identitária. O fato de pertencer ou

conhecer a mais de uma cultura, por exemplo, é o que move a segunda parte da narrativa de

Jekupé, na qual o curumim (menino) se dispõe a aprender uma cultura diferente da sua e

começa a duvidar de seu conhecimento tradicional, herança cultural de seu povo. A história

ficcionalizada pelo autor, na qual um jovem indígena questiona as raízes mnemônicas de sua

23

comunidade em contraponto a uma outra cultura dita civilizada, corresponde a um problema

étnico real, que faz com que muitos indígenas ou abandonem ou fortaleçam sua tradição

milenar.

Segundo Betty Mindlin, ainda no prefácio de O saci verdadeiro, o desejo do autor na

escrita dessa narrativa é “de fazer [dela] a ponte de uma sociedade a outra, não bem como um

registro ou documentação, mas como uma recriação, simples, utilizando os dois universos,

sendo índio e brasileiro” (MINDLIN, 2002: xi). A pretensão de um olhar educativo,

reconhecendo uma crise entre os dois lados da ponte mas tentando uma ligação entre eles é

uma das estratégias visadas pela escrita dessa história. De acordo com a antropóloga, o livro

“torna-se um exemplo para as crianças índias, ou para as outras brasileiras de proveniências

diversas, indicando que podem pertencer simultaneamente a vários mundos, sem perder o que

lhes foi dado pelos antepassados” (Ibidem: xi).

Por estas primeiras palavras introdutórias de Betty Mindlin já podemos verificar, em

uma análise linguística preliminar, uma confusão proveniente do pertencimento étnico-

nacional. Ao sugerir a construção de uma ponte para conectar dois universos, o "ser índio" e o

"ser brasileiro", compreendemos que se trata de dois polos distintos que necessitam de um

artifício como a recriação através da escrita para ligá-los. Sendo assim, podemos afirmar,

mediante interpretação, que não são estas conexões naturais ou características semelhantes

que possam ser agrupadas. Em contrapartida, na frase seguinte, a autora contradiz esta ideia

associando o pertencimento indígena ao brasileiro: “exemplo para as crianças índias, ou para

as outras brasileiras de proveniências diversas” (itálico nosso). Ora, o que está sendo

problematizado neste caso não é o pertencimento étnico e/ou nacional dos indígenas, mas a

confusão que esta questão traz inclusive aos grandes estudiosos do assunto.

Quando a antropóloga utiliza o pronome indefinido “outras” para modificar o

substantivo “crianças” em elipse, subentendemos que há um acréscimo que marca a diferença

e inclui ao mesmo tempo a ideia anterior, ou seja, podemos entender pela construção frasal

que “crianças índias” é uma parte específica que se associa a “crianças brasileiras” mas que é

modificada pelo pronome devido a sua proveniência. Portanto, podemos concluir inicialmente

que as crianças indígenas podem ser consideradas brasileiras, mas sem deixar de marcar um

pertencimento étnico que as diferencia dos demais brasileiros.

São muitas e diversas as discussões sobre o que reconhecemos como nação, sobre o

sentimento que une e mascara as mais diferentes culturas de um mesmo país. Não nos cabe

aqui discuti-las por fugir do foco que prestigia a voz indígena. Entretanto, imaginando a

24

questão autóctone, podemos concluir que há uma sobreposição de vidas e costumes nas terras

já existentes e habitadas por outras vidas e costumes. Em outras palavras, o Brasil seria uma

(re)construção de valores externos em terras invadidas onde os habitantes primeiros foram

excluídos e ignorados, sem participação ou autoridade no dito progresso e civilização. Sendo

assim, sua existência neste espaço reformulado à moda estrangeira se caracteriza por

particularidades que permaneceram mesmo com as sobreposições, mas também por outras

que se adaptaram para não se extinguirem. Ao mesmo tempo que existem no lugar

(geograficamente falando) chamado Brasil, muitos não se reconhecem como integrantes desta

nação (pensada politicamente).

Dessa forma, explicando o posicionamento do autor perante seu pertencimento étnico-

nacional, Betty Mindlin afirma que “há muitas formas de ser índio no Brasil”. A autora nos

esclarece que “Olívio Jekupé é um desses lutadores incansáveis, na busca tenaz de ser fiel às

raízes indígenas, descobrindo e afirmando a memória de seus avós, sem desistir, ao mesmo

tempo, de se tornar um cidadão brasileiro com plenitude de direitos” (MINDLIN, 2002: xi-

xii).

O fato de rotular, qualificar ou generalizar é bastante complexo, principalmente

quando consideramos as longas e problemáticas histórias que se desvelam e reconfiguram o

conceito uno de História com o qual tentaram nos conformar. A questão que se coloca em

evidência quando pensamos na discriminação étnica e/ou nacional vai além do fator de

pertencimento; ela carrega consigo todo um teor político, histórico e social que fica bem

marcado para nós no último fragmento exposto do prefácio de O saci verdadeiro. A

confluência que se evidencia na caracterização de Jekupé por Mindlin, em ser “fiel às raízes

indígenas” e, ao mesmo tempo, “se tornar um cidadão brasileiro com plenitude de direitos” é

o resultado contemporâneo de uma identidade plural e provisória, onde o indivíduo se

reconhece em diferentes culturas sem fixar-se exclusivamente em uma única.

Em Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da Modernidade, Néstor García

Canclini propõe o termo hibridação para os “processos socioculturais nos quais estruturas ou

práticas discretas, que existam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas,

objetos e práticas” (GARCÍA CANCLINI, 2013: xix). Por esta definição podemos retomar o

fragmento de Betty Mindlin e interpretar este pertencimento de Olívio Jekupé aos “dois

universos” como hibridação, pois a ideia de o autor indígena se fazer de ponte entre uma

sociedade e outra para a recriação de uma nova realidade colabora com os processos de

interseção e transações característicos da hibridação, o “que torna possível que a

25

multiculturalidade evite o que tem de segregação e se converta em interculturalidade”

(GARCÍA CANCLINI, 2013: xxvii).

Essa reestruturação que permeia a memória de um passado comum e o presente

compartilhado que faz com que o autor não rejeite “seu povo de origem” nem deseje “diluir-

se unicamente no mundo do pai, que não era índio” (MINDLIN, 2002: xii) (itálico nosso)

reforça a ideia de hibridação da qual nos fala García Canclini. Estudos vinculados aos

processos de hibridação "mostram que não é possível falar das identidades como se se tratasse

apenas de um conjunto de traços fixos, nem afirmá-las como a essência de uma etnia ou de

uma nação" (GARCÍA CANCLINI, 2013: xxiii). Além disso, "as diversas formas em que os

membros de cada grupo se apropriam dos repertórios heterogêneos de bens e mensagens

disponíveis nos circuitos transnacionais geram novos modos de segmentação" (Ibidem: xxiii),

o que identificamos no caso de Olívio Jekupé.

No encerramento do prefácio, Betty Mindlin contribui mais uma vez com a nossa

discussão quando afirma que “assim como Olívio, muitos povos do Nordeste, Leste e Sul do

Brasil são teimosos, procurando marcar uma cidadania brasileira diferenciada, tratando a

duras penas de reconstruir sua identidade, [...] de manter os laços comunitários” (MINDLIN,

2002: xiii). O trecho selecionado auxilia na dúvida de pertencimento entre “ser indígena” e

“ser brasileiro” e sugere uma reconstrução identitária marcada por uma cidadania brasileira

diferenciada que resiste pela teimosia.

Sendo assim, podemos considerar a literatura de Jekupé como uma das formas de se

rebelar, já que "os aspectos intensificadores da literatura indígena contemporânea no Brasil

remetem à auto-história de resistência, à luta pelo reconhecimento dos direitos e dos valores

indígenas, [e] à esperança de um outro mundo possível, com respeito às diferenças"

(GRAÚNA, 2013: 64).

2.3. A tradição oral e a importância mítica do Saci verdadeiro

Partindo de um personagem tipicamente brasileiro – o Saci-Pererê – oriundo de

diversos imaginários étnicos e consequentemente possuidor de muitas e distintas

representações, Olívio Jekupé constrói uma narrativa particular para este ser mítico através de

uma perspectiva indígena. Em seu livro, O saci verdadeiro, voltado ao público infanto-

26

juvenil, o autor nos apresenta duas pequenas histórias onde o saci, descrito como um espírito

bondoso com traços indígenas, é um dos protagonistas.

A começar pela epígrafe da primeira parte do livro, a citação de Egon Schaden,

importante estudioso da cultura Guarani, nos chama a atenção para o fato de que “a figura do

saci, outrora encontrada também entre os Tupinambá litorâneos e de há muito integrada no

folclore rural brasileiro de todos os quadrantes” é diversificada e que, no Araribá, este ser

encantado “tem aparência humana e é provido de duas pernas, mas pequeno, pretinho [e que]

gosta muito de fumo e de pinga.” (JEKUPÉ, 2002: 01). Por estes fragmentos já podemos

inferir a existência do saci como um elemento cultural presente em muitas regiões do Brasil,

cada qual com suas particularidades, incluindo o imaginário étnico que Jekupé tem a

delicadeza de nos apresentar, visto que, diferentemente da descrição do saci de Araribá, o saci

indígena é um índio pequeno que "é bom e só aparece para pessoas muito boas e que precisam

de ajuda" (JEKUPÉ, 2002: 31).

Os estudos referentes à tradição oral nos permitem compreender as diversas versões

para a mesma história e/ou personagem. A soma de conhecimentos de um indivíduo e seus

interesses permitem estabelecer o grau de captura, reflexão e transmissão de determinado

gesto verbal, possibilitando, em uma ocasional exteriorização, a criação ou recriação de

elementos semelhantes ou completamente distintos dos que foram apreendidos inicialmente. É

o que pensa o importante pesquisador sobre a oralidade na literatura, Paul Zumthor, quando

afirma que "o ouvinte torna-se por seu turno intérprete, e, em sua boca, em seu gesto, o poema

se modifica de forma, quem sabe, radical. É assim, em parte, que se enriquecem e se

transformam as tradições" (ZUMTHOR, 2010: 258).

Assim, considerando as diversas caracterizações para o mesmo personagem, o Saci, e

associando às habilidades de um ouvinte que adquire o caráter de intérprete no decorrer da

significação e recriação da história de acordo com os novos textos e contextos, podemos

levantar este argumento como uma hipótese para a pluralidade de definições e personificações

do ser mítico em questão, pois, mesmo com as diferenças narrativas e características físicas

observadas, há uma base comum que nos permite associar as histórias.

Cabe-nos ressaltar que o conhecimento da figura do Saci-Pererê se origina de

narrativas de tradição oral de importância simbólica, passadas de geração em geração dentro

de determinados grupos e que integram o imaginário coletivo e as tradições literárias orais

destes mesmos grupos. Nas comunidades não indígenas do Brasil, a mais comum descrição

para ele se aproxima do conhecimento do povo de Araribá: um menino negro, com somente

27

uma perna, que fuma cachimbo, usa um gorro vermelho e gosta de aprontar com as pessoas.

Entretanto, o que se coloca em evidência neste momento e o que se procura elucidar nesta

dissertação é a importância e o reconhecimento de uma história diferente daquela com as

quais sempre fomos acostumados. Aqui, o Saci que adotaremos é o "verdadeiro" de que nos

fala Olívio Jekupé: com aparência indígena, de duas pernas e que ajuda as pessoas que

merecem. Pelas páginas de seu livro, o autor, descendente do povo guarani e morador da

aldeia krukutu, nos apresenta esta figura mítica com raízes na oralidade e ancestralidade

indígena.

Pelo capítulo primeiro de O saci verdadeiro, adentramos por um imaginário poético

que narra a história de um indígena de só um braço. Trata-se de Tupã Mirim, um menino que

nascera com um braço e que, por mais que vivesse bem dessa forma, acreditava poder viver

melhor caso tivesse o segundo braço: "O que será da minha vida sem este braço? – Pensava

com tristeza, pois ele vivia muito bem, mas sabia que com mais um braço viveria melhor"

(JEKUPÉ, 2002: 04). Em seus lamentos diários não imaginava que era assistido por um

espírito bondoso e, por isso, um dia resolveu ir para o mato procurar por alguém que o

ajudasse. E foi a partir desta decisão que surgiu seu primeiro encontro com o Saci-Pererê:

O Saci-Pererê sabia do seu plano e estava bem ao seu lado, seguindo-o desde o

início.

Depois de andar bastante, começou a falar, só que nem alto nem baixo. Ficou com

medo de gritar e também torcia para que não aparecesse nenhum animal feroz.

– Se tem um espírito bom... para me ajudar, pois preciso de ajuda.

O Saci-Pererê que é um índio pequeno, estava ao seu lado, só escutando, só que

Tupã Mirim não o via porque estava invisível. Mas aparecia visível, quando queria e

para pessoas boas de quem gostasse. E o Saci achava Tupã-Mirim muito bom, por

isso é que muitas noites ficava ao seu lado.

– Oi? - disse o Saci.

– Quem falou? Pois não estou vendo ninguém.

– Sim, eu sei, é que estou invisível.

– E você pode se tornar visível?

– Sim, é claro, tenho poder para isso. (JEKUPÉ, 2002: 06-07)

No desenrolar deste diálogo e na concretização deste encontro que até então era um

sonho para Tupã Mirim e uma presença não manifestada do Saci, temos a origem do

conhecimento indígena sobre este personagem mítico: a transmissão ancestral ou, mais

especificamente, as palavras do avô de Tupã Mirim que possibilitaram a memória imagética

do menino, capaz de identificar de imediato o Saci-Pererê.

Por mais que este ser mítico já fizesse parte do cotidiano de Tupã-Mirim de modo

invisível – pois o Saci estava sempre ao seu lado –, o menino não o conhecia fisicamente, mas

sim pela configuração imagética que a voz nos permite criar. Através de seu núcleo familiar

28

que lhe apresentou a história de espíritos como o Saci e de sua memória que associou aquela

figura ao que ouvira falar, pode haver o (re)conhecimento:

... de repente o Saci ficou visível, frente a frente com o Tupã-Mirim. O garoto ficou

espantado ao vê-lo.

– O seu avô já falou muitas vezes de mim e vendo já sabe quem sou?

– Você deve ser o Saci-Pererê.

– Sim, sou eu mesmo.

– Meu avô já falou mesmo sobre você. (JEKUPÉ, 2002: 07)

O espanto, consequência possível de seu desejo de encontrar um espírito que o

ajudasse, precede a recordação, não de um outro encontro, mas das palavras que permitiram a

concretização de uma imagem bastante fiel da que encontrara. Na passagem "pois já tinha

ouvido muitas estórias de espíritos, só que nunca tinha visto um. Mas não sabia que muitas

noites, o Saci-Pererê ficava ao seu lado e o escutava falar sozinho" (JEKUPÉ, 2002: 04),

comprovamos a ideia de Tupã-Mirim não conhecer o Saci e percebemos a importância de ter

"ouvido as histórias" na identificação de seu futuro grande amigo.

O fato de na narrativa de Olívio Jekupé ser mencionado o conhecimento dos

ascendentes de Tupã-Mirim sobre o Saci-Pererê transmite, de certa forma, a credibilidade que

irradia a voz indígena. Em uma comunidade com raízes orais que resiste e sobrevive pela

tradição que lhe foi confiada, a autenticação está na palavra dita e na história perpetuada por

gerações. Se o que se sabe sobre o Saci foi dito pelos avós – que também ouviram de seus

avós e assim por diante – e estes são certamente os primeiros habitantes do continente, para os

indígenas é mais do que certo que o verdadeiro Saci é o conhecido na aldeia, com a confiança

de seu povo originário, e não o que se conhece fora desse universo indígena.

Tomaremos mais uma vez como ponto de associação à tradição oral indígena os

estudos de Paul Zumthor sobre a oralidade dos poetas medievais, reconhecendo-os como

importantes contribuições para os pesquisadores da literatura de base oral. Assim, em A letra

e a voz, levantando algumas observações sobre o efeito vocal nos diversos condicionamentos

poéticos a respeito da literatura medieval, o autor argumenta que "quando um poeta ou seu

intérprete canta ou recita (seja o texto improvisado, seja memorizado), sua voz, por si só, lhe

confere autoridade. O prestígio da tradição, certamente, contribui para valorizá-lo; mas o que

o integra nessa tradição é a ação da voz" (ZUMTHOR, 1993: 19).

Como vimos, além de ter "ouvido muitas estórias de espíritos", no fragmento/diálogo

entre os personagens centrais de O saci verdadeiro, Tupã-Mirim afirma (e confirma) que era

seu avô que falava sobre o Saci. Certo das narrativas a seu respeito, o Saci-Pererê indaga o

29

menino, induzindo-o ao resgate mnemônico: "O seu avô já falou muitas vezes de mim e

vendo já sabe quem sou?". Ora, como a estratégia deste espírito era recuperar todo o

conhecimento que o menino já possuía sobre sua figura na certeza de ser imediatamente

reconhecido e aceito, no decorrer do diálogo, Tupã-Mirim já envolvido, confessa: "Estou

gostando de você e parece ser bom, assim como falava meu avô" (JEKUPÉ, 2002: 07).

O desejo de Tupã Mirim era possuir o outro braço e sabia que o Saci tinha poderes

para realizar seu sonho. E como este ser encantado só ajudava aqueles que eram bons e, por já

acompanhar o menino há muito tempo, tinha consciência da bondade de Tupã Mirim, logo, no

primeiro encontro, o Saci tratou de providenciar o outro braço que o indiozinho tanto

almejava. Porém, após a concretização deste acontecimento que o menino tanto aspirava, o

Saci impôs a condição de que os outros não veriam o braço; somente Tupã Mirim teria ciência

de seu membro invisível.

O motivo para o pedido inusitado do Saci – de que Tupã Mirim guardasse segredo

sobre a conquista do braço – era a preocupação de exposição de sua imagem e de seus

poderes. Temia a fama por sua benfeitoria e a possível exploração que surgiria de muitos

lugares: "– Que bom, se você falar, muitos índios poderão vir para a mata, querendo minha

ajuda. – É por isto que você não quer que ninguém saiba? – Sim! Já pensou se os brancos da

cidade também ficam sabendo? Vão ficar vindo direto para a mata, tentar encontrar comigo"

(JEKUPÉ, 2002: 10). Além disso, podemos notar a preocupação deste bondoso espírito com a

mata, seu habitat e sua responsabilidade, pois lá vivia cuidando dos animais e sabia que sem

ela não haveria vida para seus protegidos. Portanto, uma possível migração para a mata

atrapalharia a ordem da floresta.

Aproveitando-nos do último excerto para inferir a origem do Saci, observamos,

através de uma interpretação etnolinguística, que seu lugar de fala se assemelha ao dos

indígenas por dirigir-se aos não indígenas como "brancos da cidade". Por mais que neste

capítulo primeiro o narrador comente rapidamente sobre a identidade do Saci-Pererê,

podemos lê-la também através dos elementos não-verbais expostos nas imagens ao longo do

livro. Nas figuras, por exemplo, encontramo-lo com aparência de um jovem indígena5.

5 Tomamos como parâmetro de definição a memória imagética generalizada da caracterização indígena segundo

uma perspectiva externa e superficial.

30

Com a conquista do braço que lhe fazia falta, Tupã Mirim passou a realizar várias

tarefas que até então não conseguia: passou a usar o arco-flecha, sair para caçar e, inclusive,

aprendeu a nadar. Suas caças e sua estranha felicidade começaram a despertar a curiosidade

dos outros habitantes da aldeia, mas o menino seguiu calado em suas novas atividades sem

confessar a ninguém o motivo das recentes habilidades. Na cabeça do pequeno indiozinho, o

conhecimento dos outros sobre seu braço seria motivo de orgulho e por isso desejava muito

que os outros pudessem enxergar o que era uma realidade só dele: "– Ah, se eu pudesse falar

sobre o braço, eles iam me ver caçando e nadando, meus amigos e parentes iriam ter orgulho

de mim" (JEKUPÉ, 2002: 12).

A intenção do narrador nas primeiras linhas desta história é convencer-nos do respeito

de sua comunidade pela deficiência de Tupã-Mirim, mas o que nos fica claro ao longo da

narrativa não é de fato isto. O discurso inicial era que "Os outros curumins, seus amigos e

parentes não zombavam dele, por não ter um braço, mas sentiam muita pena, porque

percebiam a vontade que ele tinha de caçar", mas, em meados da narrativa, observamos um

outro lado na fala de Tupã Mirim: "ela é como as outras, deve rir por eu não ter o outro braço"

(JEKUPÉ, 2002: 01, 17). O menino se sentia menosprezado pela falta de seu braço, tanto que

acreditava na possibilidade de ser motivo de orgulho pelo fato de agora poder caçar e nadar.

Nesta ilustração do miolo do livro, assinada por Vanderson Lourenço,

temos o saci e os animais de que cuida. (In: Jekupé, 2002: 25)

31

Não nos cabe, contudo, nesta altura, discutir a contradição entre os elementos da narrativa,

mas apenas evidenciar duas diferentes percepções, uma de dentro – o sentimento de Tupã

Mirim – e a outra de fora – a do narrador.

A ansiedade do pequeno indiozinho de contar a todos sobre seu braço era tanta que

acabou convencendo o Saci-Pererê a permitir a visualização pública do membro. Mas, se a

certeza de Tupã Mirim foi, assim como a de nós leitores, de que todos passariam a enxergar –

no sentido próprio da palavra (de concretude, percepção imagética) – seu braço, enganou-se,

pois, não foi o que ocorreu.

A capacidade do Saci de fazer o Tupã Mirim ter o segundo braço ia além do que o

menino esperava e sabia. O Saci-Pererê permitiu tamanha realização para transformar o

menino em um grande guerreiro, e, em poucos dias, Tupã Mirim já estava fazendo muito bem

tudo que sempre desejou e não pôde:

Às vezes até Tupã-Mirim ficava assustado com a própria rapidez. Não sabia que

tudo isto vinha da ajuda do Saci, que lhe havia dado poderes para ser bom em tudo

de que gostava e para ser um grande guerreiro. Por isto é que nadava muito bem,

corria veloz, trepava nos pés de coqueiro como nunca ninguém trepava... (JEKUPÉ,

2002: 22).

As caças que Tupã-Mirim levava para casa aguçavam a curiosidade da tribo e fazia

com que as pessoas suspeitassem de algo incomum. Sabiam da deficiência do menino e

"sentiam muita pena, porque percebiam a vontade que ele tinha de caçar", mas as pequenas

provas de caça não foram suficientes para que seu povo o considerasse um corajoso e

preparado guerreiro.

Como já dissemos, o Saci-Pererê deu o tão sonhado braço a Tupã-Mirim para

transformá-lo em um guerreiro, o que o menino não imaginava que seria. O preparo para a

nova fase de sua vida ocorria em segredo – dele e do Saci. Caçava escondido, nadava longe

dos outros e cada vez mais sentia-se confiante sobre a superação de suas habilidades. A prova

final que avaliaria o total preparo de Tupã-Mirim não demorou muito: deparou-se com uma

onça (xivi) no cair da noite e teve que escolher entre matar ou morrer. Como ocorria na

maioria dos casos, o Saci observava a cena sem que ninguém pudesse notá-lo. E, com

somente uma flechada, o menino matou a onça e salvou sua própria vida. Vejamos a

passagem: "Achando que ela ainda poderia estar viva, deu outra flechada, mesmo estando

morta. Nisto o Saci apareceu visível. – É, você já é um verdadeiro guerreiro, teve medo, mas

pouco." (JEKUPÉ, 2002: 20).

32

A aprovação do Saci ao afirmar que Tupã-Mirim se tornara o guerreiro que tanto

queria permitiu a realização do segundo desejo do pequeno indiozinho: visualizarem seu outro

braço. O consentimento do Saci para que todos visualizassem a nova condição de Tupã Mirim

ia além da parte palpável, sensorial, que imaginava o menino. O bondoso espírito que

habitava as matas fez com que todos acreditassem no potencial de Tupã Mirim e o vissem

como um guerreiro, mesmo sem a percepção do braço. Ou seja, o Saci-Pererê fez com que as

pessoas não focassem mais na necessidade ou ausência do braço de Tupã-Mirim, mas nos atos

surpreendentes que o menino vinha praticando, dignos de admiração e respeito.

– Pai, ajude aqui, vamos levar para a casa da Kerexú.

Verá catou a onça com a ajuda do pai da Kerexú. Ao levá-la, muitos ficaram

olhando e pararam de rir, viram que o pequeno guerreiro não estava brincando. O

Tupã-Mirim e a Kerexú foram atrás, os dois riam pelo espanto de todos. (JEKUPÉ,

2002: 21)

Após este acontecimento, o menino não temia mais ser notado em suas atividades.

Não se escondia nem se diminuía. Passaram a não mais rir dele. Com tudo isso, não foi

necessário o conhecimento físico do segundo braço de Tupã-Mirim para que respeitassem o

pequeno guerreiro. Não era isso que motivaria o orgulho de seus parentes e amigos, mas sim a

força e a superação que demonstrou durante todo o processo de readaptação e

amadurecimento.

Neste pequeno capítulo entendemos que a lição se encontra no valor que damos à

materialidade, à concretude. Talvez, mais do que ter dado um braço a Tupã-Mirim, o Saci-

Pererê possa somente tê-lo persuadido, fazendo-o acreditar na existência de um segundo braço

sem necessariamente possuí-lo ("Começou a falar o que queria, isto é, sem perceber que o que

queria, o Saci já tinha feito. De repente o Saci começou a rir e falou: – Você não está

vendo?" (JEKUPÉ, 2002: 07)). E, sobretudo, conscientizou-o, com efeitos psicológicos, de

que ele não precisava de um segundo braço visível para tornar-se um guerreiro perante as

outras pessoas de sua aldeia e que sua força estaria na perseverança, na alegria e na confiança

de si mesmo.

2.4. Múltiplas culturas e outros Saci's

No capítulo segundo que carrega o título do livro de Olívio Jekupé, "O saci

verdadeiro", temos o contato de duas culturas distintas que apresentam diferentes

33

interpretações e definições para a figura encantada do Saci-Pererê: de um lado a consciência

tradicional de um menino indígena que crescera ouvindo as histórias do Saci e de outro sua

imersão num universo não indígena e a descoberta de um Saci muito diferente daquele que

conhecia.

O texto narra as aventuras de Karaí, que vivia em uma aldeia onde nenhum de seus

parentes e amigos sabia ler e escrever. Em sua tribo, assim como na maioria, a voz era a

forma mais eficaz de garantir a comunicação e sobrevivência da cultura autóctone por muitas

gerações. Entretanto, Karaí receava não lembrar das histórias que sua mãe lhe contava e de

que tanto gostava; temia não se lembrar de tudo no momento futuro de transmissão e

possivelmente não manter o elo cultural com sua ascendência. Por isso, acreditando na

conservação e fidelidade narrativa de parte de sua tradição, aos oito anos de idade o pequeno

indígena decide querer estudar para aprender a escrever e ler: "Para estudar teria que andar

8km a pé todos os dias, até chegar na cidade. Não se preocupava com a distância, o que o

preocupava era aprender a ler e escrever" (JEKUPÉ, 2002: 28).

O desejo de estudar era tão grande que não importavam as dificuldades. Para a

aquisição dos materiais necessários para a nova atividade do menino, sua mãe teve que

colocar em prática outra sabedoria de seu povo: fazer artesanatos. Com a venda destas

confecções tradicionais, a mãe de Karaí conseguiu os instrumentos necessários para a nova

fase de seu filho. Em uma classe de "alunos brancos", o pequeno indígena se destacava por

seu pertencimento étnico, ao ponto de acharem "estranho a presença do índio" (JEKUPÉ,

2002: 28). Com tamanho interesse e empenho Karaí se tornou um ótimo aluno, "aliás, a

própria professora notava o seu grande interesse em aprender. Tinha alunos brancos que não

sentiam vontade de aprender e só estavam na escola, porque sua mãe os pusera" (Ibidem: 28).

Dentre as histórias que sua mãe contava, era a do Saci-Pererê que Karaí mais gostava e

ansiava um dia poder encontrar este ser mítico que admirava cada vez mais. Por mais que sua

mãe nunca tenha encontrado o Saci, sabia através de seu pai que esta figura encantada o

protegia. Sendo assim, Karaí acreditava na existência do Saci-Pererê através das narrativas

partidas de sua mãe e pela palavra de que seu avô já estivera com ele. De acordo com Martin

Lienhard em seu importante trabalho sobre o conflito étnico-social na América Latina, "en

una cultura oral o predominantemente oral, la memoria colectiva da fe de los

comportamientos pasados de los individuos"6 (LIENHARD, 1990: 31). O conhecimento oral

não se restringe a um indivíduo; para sua duração é necessária a constante movimentação

6 "Em uma cultura oral ou predominantemente oral, a memória coletiva dá fé dos comportamentos passados dos

indivíduos".

34

narrativa a fim de que não apague tão valiosa tradição. Portanto, a veracidade que se percebe

no contexto de "O saci verdadeiro" é a realização vocal da memória ancestral da mãe de

Karaí.

A preocupação do menino em manter viva a tradição que compartilhava era tão grande

que temia não ter boa memória para armazenar tantas informações. Acreditava que a escrita

daria conta da segurança visto sua característica de registro. Vejamos em suas próprias

palavras:

Mãe, quando eu estiver no quarto ano, começarei a escrever as histórias que a

senhora me contou e conta. E quem sabe um dia até editarei um livro, assim como os

brancos fazem. Sabe, a história escrita fica mais segura. Assim, como as do Saci,

tem muitos índios da minha idade que não sabem muita coisa sobre ele... (JEKUPÉ,

2002: 28)

Neste fragmento podemos observar que a intenção do pequeno indiozinho é também

difundir entre seus parentes indígenas as histórias que ouve e pretende escrever. Para isto,

entretanto, imaginava "ensinar os índios da aldeia" (Ibidem: 28), pois nenhum deles sabia ler.

A respeito desta conservação escrita da memória indígena, em La voz y su huella, Martin

Lienhard diz que “No se debe olvidar nunca, sin embargo, que en todo los casos, aún en los

más favorables, el discurso oral indígena se 'petrifica' por su transcripción y se desvía de su

público natural (la colectividad indígena) hacia el público elitista de los letrados”7

(LIENHARD, 1990: 69).

Embora o contexto histórico-temporal esteja distanciado entre os fragmentos e

cenários acima, cabe-nos discorrer brevemente sobre o que motivou esta afirmação de

Lienhard. Em finais do século XV, com iniciativa do Almirante Colombo e encargo do

catalão Ramón Pané, são feitas redações sobre as "crenças e idolatrias" dos indígenas taínos

na ilha espanhola. Ademais, a fim de resgatar por meio da escritura alfabética as antigas

tradições orais ameaçadas de extinção, dezenas de missioneiros, clérigos, funcionários

coloniais, historiadores e membros letrados das aristocracias indígenas são mobilizados para

recompilar alguns dados culturais em toda a Mesoamérica e na ex Tawantinsuyu8.

O que percebemos nesse episódio é uma herança e forte presença cultural calcada na

escritura como instrumento de poder e estabilidade, que, assim como permite a movimentação

da palavra indígena por outras vias de acesso, limita seu público e estabiliza a riqueza

7 "Não se deve esquecer nunca, no entanto, que em todos os casos, ainda que nos mais favoráveis, o discurso oral

indígena se 'petrifica' por sua transcrição e se desvia de seu público natural (a coletividade indígena) até o

público elitista dos letrados". 8 Cf. LIENHARD, Martin. La voz y su huella: Escritura y conflicto étnico-social en América Latina (1492-1988).

Ciudad de la Habana: Casa de las Américas, 1990. pp. 65-70.

35

tradicional que se dinamiza na oralidade. Corroborando estas ideias, Néstor García Canclini

acredita que "documentar e organizar a cultura privilegiando os meios escritos é uma maneira

de reservar para minorias a memória e o uso dos bens simbólicos" (2013: 143).

Por um lado, o fato de Karaí querer escrever as histórias que conhece e até mesmo

editar um livro "assim como os brancos fazem" não o torna menos indígena, mas o distancia

das origens históricas e culturais que caracterizam seu pertencimento. Sabemos que a

oralidade é uma das mais simbólicas referências da ancestralidade indígena e que a escritura

representa uma das maiores armas utilizadas pelos dominadores na invasão de nosso

continente. Sendo assim, transcrever em códigos adversários acreditando que esta é a forma

mais segura de manter a história seria uma possível forma de afastamento da tradição

autóctone.

Entretanto, segundo uma outra perspectiva, utilizar a escrita como forma de

instrumento voltado para a sobrevivência da aldeia, dentro e, possivelmente, fora dela, seria

uma forma de propagar esse conhecimento ancestral indígena, confiando na participação do

leitor/ouvinte para a expansão das ideias representadas. Além disso, ao considerarmos esta

hipótese como a mais relevante, acreditaremos que também no texto estará a oralidade, pois,

como encontramos na sinopse do livro A letra e a voz, de Paul Zumthor, "na origem de tudo

que se escreve está a voz" (1993).

Portanto, mesmo que a intenção de Karaí seja difundir as histórias que conhece em sua

tribo entre os meninos que ainda não sabem, não podemos ignorar que há uma

supervalorização da escrita em detrimento da memória que caracteriza sua raiz cultural e se

desenvolve através da voz. Fica-nos bastante evidente a preocupação do menino de a memória

não dar conta de toda a riqueza oral que lhe transmite a mãe no ato enunciativo, mas também

percebemos a preocupação do menino em manter viva as histórias de seus ancestrais.

Neste misto de abstração e concretude, oralidade e voz, escritura e letra, aproveitamos

para retornar à figura do Saci; uma imaginação que se torna presença e uma consciência que

se torna experiência.

No segundo semestre de estudos de Karaí, a professora começou a selecionar histórias

de Monteiro Lobato para apresentar aos seus alunos e o pequeno indígena, sempre

interessado, buscava sempre saber mais na biblioteca, no término das aulas.

Certo dia, a professora sorrindo disse:

– Hoje contarei a... do Saci-Pererê.

Ele se assustou, pois não sabia que os brancos também sabiam sobre ele... e

principalmente que havia um livro sobre o Saci.

36

De repente a professora pegou o livro e mostrou a capa, que tinha o desenho do

Saci-Pererê. Karaí sentava na frente e pôde ver muito bem. Assustou-se e ficou

espantado. É que o Saci-Pererê que viu na capa era um negrinho. (JEKUPÉ, 2002:

29-30)

A partir desse episódio surge em Karaí a dúvida sobre o que aprendeu em seu seio

familiar indígena e o que acabara de aprender na comunidade escolar não indígena. Eis que

surge uma confusão mental e uma necessidade de realização visual e não mais oral e escrita.

Para Karaí o Saci era o espírito de um pequeno indígena que auxiliava e protegia as pessoas

(como fazia, por exemplo, com seu avô), mas o que descobriu pelas palavras de sua

professora foi algo bem diferente do que imaginava. Segundo ela, em consonância com a

história de Monteiro Lobato, "o Saci é um negrinho pequeno e que anda com um cachimbo

fumando e assustando as pessoas. Ele gosta de aparecer à noite para fazer suas artes" e "tem

contato com o demônio" (JEKUPÉ, 2002: 30).

Seguindo estas exposições e muito espantado diante de tamanha descoberta, o menino

decide pegar o livro para ler na biblioteca como forma de averiguação. A tristeza e meditação

que sentiu após essa constatação durou um dia inteiro e ele somente conseguiu contar para sua

mãe no dia seguinte ao ocorrido. Já sabendo do Saci "criado pelos brancos" antes mesmo do

conhecimento do filho, a mãe de Karaí prontamente busca alertá-lo sobre a "verdadeira

história", ou seja, aquela cuja origem se encontra nos antepassados indígenas: "– Eu já ouvi

alguns índios dizendo que os brancos falam muito do Saci, este que eles criaram. Na verdade,

não entendo por que eles criaram esta história, usando o nosso Saci e transformando tudo ao

contrário." (JEKUPÉ, 2002: 31). Para ela, o Saci negro é uma invenção dos não indígenas

(homem branco, juruá) e sua intenção era desconstruir a imagem negativa de malvado,

assustador e compactuado com o demônio que lhe transmitiram a professora e o livro de

Monteiro Lobato.

Daí, portanto, vem a ideia do Saci verdadeiro, com aspectos indígenas e bondoso, "que

só aparece para pessoas muito boas e que precisam de ajuda". Ao considerarmos o

qualificador "verdadeiro", subentendemos que existe um "falso" que, segundo a perspectiva

indígena, é aquele transformado com aspectos negativos e que é negro.

Ainda inconformado com duas versões sobre o mesmo personagem, tão distintas ao

ponto de entristecê-lo, Karaí procura sua professora para saber a dimensão da história do

outro Saci: "– Professora, até a onde é comentada a história deste tal de Saci de quem a

senhora falou?" (JEKUPÉ, 2002: 31) (itálico nosso). Pelas palavras utilizadas na pergunta ao

referir-se ao outro Saci, podemos notar um certo teor pejorativo, uma espécie de despeito

37

motivado pela decepção do conhecimento desse Saci de Lobato. Além disso, não percebemos

o envolvimento do menino com este Saci como observávamos com o Saci das narrativas de

sua mãe; a forma como dirigiu-se à professora mostra desconhecimento e até mesmo

curiosidade sobre esta outra caracterização do Saci.

Ao saber que a versão contada pela professora e escrita por Monteiro Lobato era a

mais difundida no Brasil, a preocupação de Karaí aumentou. Isso porque a história que

conhecia e que sua mãe afirmara ser a verdadeira era limitada aos descendentes indígenas e a

criação feita a partir daquele personagem distorcia todas as qualidades desse ser mítico

bondoso, fazendo-o parecer vil. Eis que a dúvida do menino só fez crescer, dividindo-o entre

a tradição e a novidade, o conhecimento ancestral limitado ao seu povo e a informação

difundida em todo o país através da literatura.

Por muitos dias Karaí se enveredava nas matas buscando chegar a uma conclusão.

Indagava-se sobre a veracidade do assunto, sobre quem de fato estaria certo quanto às

características do Saci. Questionava "quem estará certo? E o Saci é um índio ou um negro?".

Duas vozes se chocavam, a de sua mãe e a de sua professora, mas esta estava amparada pela

escrita e difusão de uma história escrita, o que Karaí pretendia fazer com o que sabia antes

sobre o Saci. A pretensão do menino era registrar e assegurar a conservação da história dita

por seu povo, e temia não lembrar dos detalhes, da totalidade narrativa que fazia das histórias

únicas, por isso quis estudar. Porém, não imaginava que fora de sua tribo já propagavam algo

bem destoante do eixo narrativo pertencente à sua ancestralidade. De certa forma,

considerando o Saci indígena verdadeiro e a distorção de valores que faziam do outro Saci,

além de desrespeitarem a história autóctone transformando-a de modo depreciativo,

associavam os atributos pejorativos a um menino negro, o que, segundo as ideias da escritora

indígena Graça Graúna é uma forma de reforçar a "visão estereotipada que se tem, em geral, a

respeito do negro e do índio" (GRAÚNA, 2013: 158) no Brasil.

Se a oralidade e a escrita se tornavam embaraçadas para Karaí, somente um outro

artifício poderia resolver seu problema: a certeza através da visualidade. Em alguns momentos

duvidava, inclusive, das histórias de um modo geral, anulando a veracidade e existência de

algum Saci, negro ou indígena: "– Se o Saci aparecesse para mim, eu saberia de que jeito ele

é. Mas se ele não existir e for só história contada pelos índios, ou até a que os brancos também

contam" (JEKUPÉ, 2002: 32). Mas, sabendo do impasse e incredulidade do menino, o Saci-

Pererê se torna visível diante dele e comprova sua existência. Karaí, então, depois de muita

observação, percebe que "ele era igual ao que sua mãe descrevera" (Ibidem: 32) e fica muito

38

feliz por enxergar com "seus próprios olhos que ele existe mesmo e que é um índio" conforme

contado por ela.

Agora que Karaí sabe sobre o Saci verdadeiro terá que carregar consigo um segredo,

pois não poderá dizer a ninguém sobre o encontro. Caso queira, mais tarde, poderá contar aos

seus filhos e parentes conforme o autorizou o ser encantado, mas os brancos não precisarão

saber da verdade.

Sendo assim, voltamos ao ponto inicial de contador e ouvinte. Por mais que Karaí

quisesse expandir seu universo cultural adentrando espaços desconhecidos fora de sua tribo,

querendo aprender a escrever para guardar as histórias que lhe eram contadas e querendo

apresentar para outros essa riqueza tradicional, termina por concluir que o tesouro maior está

na vivência dessas histórias, no sentir e participar delas. O pequeno indígena descobre que a

segurança que buscava fora de sua tribo estava, na verdade, dentro de si, na confiança da

palavra viva e nas memórias de suas próprias experiências. Para o antropólogo espanhol

Bartomeu Meliá, baseado na sabedoria indígena do povo guarani,

a pessoa é uma 'palavra' única e irredutível, cuja história será uma espécie de hino de

palavras boas e belas, uma história de palavras inspiradas, que não podem ser

aprendidas nem memorizadas [e nem] podem ser, a dizer a verdade, ensinadas.

(MELIÁ, B. apud GRAÚNA, 2013: 155)

Talvez Karaí desista de escrever exatamente o que ouve e aprenda que nenhuma

história é contada da mesma forma seguidas vezes, pois, assim como o rio se renova a cada

passagem de água, as narrativas se reconstroem em novos sujeitos, tempos e espaços.

2.5. Tecendo a própria história

Pode-se perceber que, até o presente momento, neste capítulo, a prioridade esteve na

análise literária – mesmo a partir de uma perspectiva não indígena –, focando, sobretudo, nos

elementos linguísticos e não-linguísticos que fazem do pequeno livro de Olívio Jekupé, O saci

verdadeiro, uma porta de entrada ao universo mítico da ancestralidade indígena como forma

de reavaliação das histórias fixadas no inconsciente brasileiro como sendo únicas e originais.

Tanto em "O índio só de um braço" como em "O saci verdadeiro", temos a imagem de

um pequeno indígena que, através do encontro com o Saci-Pererê e das aventuras daí

decorrentes, descobre em si, como parte integrante de um todo maior – sua comunidade –, as

39

respostas para as aflições oriundas do cotidiano dentro e até mesmo fora da aldeia. Referindo-

se especificamente ao segundo capítulo do livro de Jekupé, que narra as experiências de Karaí

e sua imersão no universo não indígena na busca de novos conhecimentos, Graça Graúna,

argumenta que

a representação do Saci em outro – um indiozinho – configura um dos aspectos-

chaves no conto, à medida que o personagem Karaí trava uma luta identitária

problematizando a relação entre ficção e história, tradição oral e escrita, leitura e

escrita, autor e leitor para reconstruir seu lugar de índio. (GRAÚNA, 2013: 156)

Entre outras importantes observações a respeito do texto, um dos traços mais

relevantes destacado pela autora é o "desejo de tecer a própria história" que inclusive

pudemos observar na narrativa do indiozinho de um braço só. Também a manifestação

literária indígena contemporânea, no ímpeto de reconfigurar a História com suas histórias,

provando que também a palavra indígena pertence ao que hoje denominamos nação brasileira

– ainda com exclusões e apagamentos – segue com a garra de construir sua própria trajetória.

Como bem escreveu Betty Mindlin sobre Olívio Jekupé no prefácio de O saci

verdadeiro: "o anseio de ser índio, num país preconceituoso, que exterminou os primeiros

habitantes e tomou suas terras, que marginaliza, desconhece e não valoriza a multiplicidade de

seu tesouro social e cultural [...] só pode ser digno de admiração" (MINDLIN, 2002: xii). E é

com esta admiração, que também nós nos dirigimos ao autor, que encerramos este capítulo,

torcendo, assim como Mindlin para "que muitos índios façam, como Olívio, o esforço de

mergulhar, traduzir e escrever para nós, mesmo que aos poucos, aquilo que é seu" (Ibidem:

xiii).

40

3. PELAS JANELAS DA TRADIÇÃO EM NARRATIVAS DE DANIEL

MUNDURUKU

3.1. A sabedoria e as formas de narrar

Diante de tantas adaptações e resistências, muitos acreditam que a tradição e cultura

indígenas se tornaram raridade e até mesmo ilusão, pois a adaptação aos costumes não

indígenas e os desenvolvimentos seguindo a modernidade são perfis considerados

descaracterizantes e indissociáveis aos hábitos indígenas. Entretanto, Olívio Jekupé, em seu

livro Verá: o contador de histórias, sobre mitos guaranis, esclarece, dirigindo-se a um público

fora de sua aldeia e provavelmente desconhecedor dos costumes indígenas, que:

É importante que todos saibam que na aldeia Krucutu, onde moro, todos falam a

língua nativa, desde as crianças até os velhos. Toda a cultura e tradição continuam

sendo ensinadas pelos mais velhos porque eles têm muita experiência. São

professores, mesmo não sabendo ler ou escrever, pois são mestres na prática e

guardam uma sabedoria que vem de muito antigamente. (JEKUPÉ, 2003: 06)

Essa sabedoria, digna de prestígio e admiração, se dissolve no ato narrativo, o que para

Walter Benjamin é algo que se perdeu com o advento da informação. Em seu ensaio intitulado

"O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov", o autor reconhece dois

diferentes tipos de narradores: o camponês sedentário e o marinheiro comerciante. O primeiro

se destacaria por seu vínculo ao lugar de origem e bom conhecimento das histórias e tradições

locais e o segundo por viajar bastante e ter sempre algo novo para contar. Ambos, sobretudo,

têm o que contar e sabem dar conselhos pelo fato de as experiências serem comunicáveis.

Para Benjamin, "entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se

distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos" (BENJAMIN,

1994: 198) e o romance, com seu caráter solitário, se contrapõe a essa esfera narrativa, que

busca compartilhar suas experiências em um tempo curto, suficientemente necessário para a

reflexão do ouvinte, já que "o senso prático é uma das características de muitos narradores

natos" (Ibidem: 200).

Colocados brevemente desta forma alguns dos aspectos deste famoso ensaio de

Benjamin, podemos considerar os pontos textuais e extratextuais que colaborarão com o

desenvolvimento deste capítulo. O primeiro, extratextual, diz respeito ao fragmento de Olívio

Jekupé exposto acima, no qual os "mais velhos" são considerados professores, mesmo sem

dominarem a leitura e a escrita, visto que "são mestres na prática e guardam uma sabedoria

41

que vem de muito antigamente". Ou seja, sua sabedoria não se enquadra na visão hegemônica

e, por assim ser, excludente da escrita, sendo sua força maior calcada na oralidade. Além

disso, ao contar para nós, leitores, através de palavras escritas, sobre esta experiência dos mais

velhos e os ensinamentos da cultura e tradição de seus ancestrais, Jekupé nos comprova que

se apropriou dos códigos historicamente dominantes da escrita para com ela nos "falar" sobre

seu povo e sua sabedoria, sem deixar, dessa forma, de pertencer ao universo oral que emana

da cultura indígena.

Nesta perspectiva, podemos considerar que, se Olívio Jekupé trabalha em seus textos

as narrativas orais contadas por seus parentes mais velhos, logo esses serão considerados, nos

argumentos de Walter Benjamin, uma das melhores manifestações narrativas por

aproximarem-se da oralidade, já que para o filósofo alemão "a experiência que passa de

pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores" (BENJAMIN, 1994: 198).

Paul Zumthor, em seu importante trabalho sobre a oralidade na poesia medieval,

afirma que "a palavra proferida pela Voz cria o que ela diz" (ZUMTHOR, 1993: 75). Essa

afirmação nos remete à ideia de concretização imagética, resultado da associação da

imaginação com as palavras ouvidas ou lidas. Ademais, este fragmento corrobora a

argumentação de Benjamin quando o autor declara que "quanto maior a naturalidade com que

o narrador renuncia às sutilezas psicológicas, mais facilmente a história se gravará na

memória do ouvinte, mais completamente ela se assimilará à sua própria experiência e mais

irresistivelmente ele cederá à inclinação de recontá-la um dia" (BENJAMIN, 1994: 204)

(itálico nosso). Destacamos a palavra ouvinte para evidenciar que é sobre a narrativa oral que

o autor se refere e é nela que está a ênfase de sua tese, mesmo quando relacionada à escrita.

Referente a esta materialidade criada pela voz, a contracapa da edição de Verá: o

contador de histórias nos traz uma importante observação a respeito, preenchendo ainda mais

com significados não somente suas palavras, mas toda a discussão que estamos travando

sobre a palavra e a memória indígenas. Vejamos:

As sociedades indígenas são movidas pela poesia dos mitos – palavras que encantam

e dão direção, provocam e evocam os acontecimentos dos primeiros tempos, quando

somente ela, a palavra, existia.

E foi por causa dela, de sua ação sobre o que não existia, que tudo passou a existir.

Foi como um encantamento, um vento que passa ou o sopro sonoro de uma flauta,

e... pronto... tudo se fez.

Assim é a palavra, que flui em todas as direções e sentidos e que influenciou e

influencia todas as sociedades ao longo de sua história. Ela cria, enfeitiça, embriaga,

gera monstros, faz heróis, remete-os para a nossa própria memória ancestral e dá

sentido ao nosso estar no mundo. Mesmo vivendo numa época em que a tecnologia

impera e coloca a Palavra – aqui como sinônimo de Verdade – em segundo plano,

42

percebemos que ainda há esperança, pois ela vivifica a poesia dos mistérios que nos

emocionam e nos fazem buscar, dentro de nós mesmos, a certeza de que vale a pena

colorir o mundo. (JEKUPÉ, 2003: s/p)

Este fragmento que soa como uma poesia e que, por si só, já aproxima o leitor do

universo indígena que introduz na contracapa, mostra o quão importante é a palavra para as

comunidades autóctones. Como podemos observar no primeiro parágrafo, é através da palavra

que essas comunidades se permitem mover pela poesia dos mitos baseados nos

acontecimentos dos primeiros tempos e a valorizam por seu poder de evocar e provocar,

mesmo em um período atual de avanço tecnológico. Para os indígenas, é a palavra que "dá

sentido ao nosso estar no mundo", por criar, enfeitiçar e, entre tantas outras coisas, permitir o

encontro com as memórias ancestrais e fluir em todas as direções e sentidos. Dessa forma,

este excerto de Verá não só fortalece a afirmativa de Paul Zumthor, de que a palavra cria o

que ela diz, mas vai além e permite-nos imaginar o quanto elas encantam e direcionam a

cultura e tradição dos povos indígenas.

Podemos dizer, em uma perspectiva contextual, que a naturalidade do narrador,

expressa por Walter Benjamin, que facilita a gravação da história na memória do ouvinte por

possíveis assimilações à sua própria experiência está intimamente ligada à sabedoria, que para

o autor é o lado épico da verdade tecido na substância viva da existência. Se associarmos,

dessa forma, a sabedoria à verdade (em Benjamin) e a Verdade à Palavra (em Verá),

notaremos que a sabedoria se relaciona com a Palavra, que se torna ainda mais reverente por

sua iniciação em letra maiúscula, transmitindo certa sacralidade ao apresentar-se como tal.

Dito de outra forma, a naturalidade narrativa, oriunda de muitas experiências não só suas, mas

também daqueles com os quais convive, faz do narrador um sábio e faz de suas palavras

verdade, por estarem ligadas às substâncias vivas da existência humana. Segundo a conclusão

de Benjamin,

o narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe dar conselhos: não para

alguns casos, como o provérbio, mas para muitos casos, como o sábio. Pois pode

recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a própria

experiência, mas em grande parte a experiência alheia. O narrador assimila à sua

substância mais íntima aquilo que sabe por ouvir dizer). (BENJAMIN, 1994: 221)

Portanto, palavra, sabedoria e verdade são características que constituem este narrador

e a memória seria a "mais épica de todas as faculdades" (Ibidem: 210), por permitir, em sua

abrangência, as apropriações e resignações possíveis para a manifestação desses três

elementos.

43

Assim como no texto da contracapa de Verá, também Zumthor emprega inicial

maiúscula para se dirigir à palavra em um dado contexto. Ele adverte que no ato criativo da

palavra, "toda palavra não é só Palavra" (ZUMTHOR, 1993: 75) e esclarece existir palavra

ordinária e palavra-força, sendo a primeira "superficialmente demonstradora" e a segunda

"mais fixada, enriquecida por seu próprio fundo" (Ibidem: 75). Esta palavra-força teria seus

portadores privilegiados, como os velhos, os pregadores, os chefes, os santos e os poetas, por

elas ignorarem a escrita e ainda serem "mentalmente inaptas a participar de outros modos de

comunicação que não o verbal" (ZUMTHOR, 1993: 75). Nesses fragmentos notamos o poder

que o autor destaca possuir a palavra sendo ela não somente uma manifestação vocal, mas

uma transmissora de sentido e a riqueza das tradições orais. Mostra ser a palavra viva uma

manifestação natural que "origina o poder do chefe e da política, do camponês e da semente"

(Ibidem: 75), transformando-se num bem comum transmissor de sabedoria e contemplação.

Aqui, a voz enquanto materialização da palavra e a oralidade enquanto abstração da voz é o

que importa para continuarmos nossa discussão.

Apresentando-nos sucintamente um pouco de sua tradição em uma parte introdutória

de Verá, denominada "Proseando com o leitor", Olívio Jekupé afirma que "Para nós da aldeia,

um contador de histórias é como se fosse um livro que não temos e por meio dele ficamos

sabendo muitas coisas" (JEKUPÉ, 2003: 08). Nesse fragmento o autor associa o contador de

histórias aos livros como forma de aproximar-se do leitor, provavelmente não indígena,

agregando semelhança entre estes dois elementos provedores de sabedoria, mostrando a

inexistência do livro como recurso auxiliar na cultura indígena e comprovando ser a memória

e a oralidade os fatores essenciais para "saber das muitas coisas" ensinadas pelo contador de

histórias. Confirmando esta ideia, Daniel Munduruku escreve que "para muitos dos povos

originários, estes velhos são 'as bibliotecas' em que estão guardadas a memória ancestral"

(2012: 71). Enquanto este autor considera que, por já terem sentido a passagem do tempo, são

os velhos os responsáveis pela educação da mente e por isso "são os guardiões da memória",

Olívio Jekupé argumenta que "é comum as pessoas pensarem que apenas os velhos e as

velhas, como nossos grandes sábios, têm histórias para nos contar" (JEKUPÉ, 2003: 08)

(itálico nosso). Pensando nisso, em suas narrativas, Jekupé dá voz a crianças inteligentes com

"grande talento para ouvir e criar" suas próprias histórias (como vimos em O saci verdadeiro),

mostrando que não somente os velhos possuem a sabedoria de narrar – embora eles realmente

carreguem consigo a "passagem do tempo" –, pois desde muito cedo as crianças são

44

envolvidas em todas as decisões e conhecimentos da aldeia, adquirindo, dessa forma, a

sabedoria das tradições ancestrais.

De qualquer forma, vale destacar a semelhança entre os argumentos dos autores

abordados nesta subseção referentes a um ponto específico: o portador da palavra – e/ou a

sabedoria. Para Olívio Jekupé, "toda a cultura e tradição continuam sendo ensinadas pelos

mais velhos porque eles têm muita experiência" e, além disso, eles "são mestres na prática e

guardam uma sabedoria que vem de muito antigamente". Para Walter Benjamin, o narrador,

como já dissemos, "figura entre os mestres e os sábios", "pois pode recorrer ao acervo de toda

uma vida"; já segundo Paul Zumthor, existem palavras-forças, isto é, que carregam em si uma

riqueza, que possuem portadores privilegiados, como, por exemplo, velhos e chefes; e, por

fim, para Daniel Munduruku, cabe aos velhos "o privilégio de manter a memória viva através

das histórias que carregam consigo, contadas, elas também, por outros antepassados, numa

teia sem fim que se une ao princípio de tudo. Morrer velho é a garantia de que nosso povo não

morrerá" (2012: 71).

Estes recortes, além de estarem bastante conectados, nos possibilitam algumas

inferências. A primeira delas é a relação entre a longevidade e a sabedoria que parecem estar

proporcionalmente ligadas entre si, como se a duração da vida garantisse a sapiência. É certo

que quem viveu mais gozou de mais tempo, mas isso não garante sua atividade e, muito

menos, sua produtividade em experimentar e saber das coisas, absorver e transmitir

conhecimentos.

As atitudes mais comuns percebidas no cotidiano não indígena, por exemplo, é a

exclusão das crianças de decisões importantes para a sociedade, partindo desde instituições

familiares a instituições políticas. Isso acarreta uma série de desconhecimentos, pois os

conhecimentos só são adquiridos, quiçá, depois de determinada idade ou maturidade, visto

que antes as crianças eram consideradas novas demais para saber. Ademais, a disposição dos

elementos necessários para sua sobrevivência e lazer, oriundos de um processo severo de

industrialização e consumo massivos, fazem com que muitas crianças não conheçam a origem

e as mediações essenciais para que os produtos cheguem até elas, contribuindo para sua

dependência ao sistema vigente e até mesmo desvalorização dos processos e matérias-primas

contribuintes. É importante destacar que não estamos aqui querendo discutir a ignorância

humana oriunda de sua falta de experiência e conhecimento, mas sim destacá-la como forma

de exemplificar uma possível falta de sabedoria que fará com que esse futuro velho não seja

mestre em narrativas por possuir somente informações – úteis em determinado tempo e

45

surgidas com prazo de validade – e ser pobre de experiências. Muitas dessas crianças não são

formadas na substância viva do conhecimento. São poupadas e crescem como em uma

redoma. Sabem das coisas mas não se envolvem nelas e muito menos sentem-se envolvidas

por elas. São frutos de uma sociedade dependente que não sabe outra coisa senão formar mais

e mais dependentes. Não seriam esses cidadãos os portadores de palavras ordinárias a que se

refere Zumthor?

Diferentemente, encontramos no universo indígena, onde todas as crianças são

envolvidas nas decisões da aldeia, seu grande núcleo familiar. Desde muito novas são imersas

na cultura e tradição de seu povo, aprendendo desde cedo a valorizar a história e as

experiências de sua comunidade. É certo que para cada etapa de sua vida um novo

conhecimento é disposto, como, por exemplo, os ritos que fazem do menino um homem, mas

o direcionamento para tal etapa acontece bem antes, no decorrer da mocidade, pois o ritual é

só uma forma de consagrar o que já estava sendo preparado. Assim, o aprofundamento

cotidiano na sabedoria de seu povo, em cada etapa de cada elemento, faz com que estes

indivíduos estejam aptos a transmitir os conhecimentos adquiridos em sua vivência, pois é a

vivência, calcada na experiência, que faz dele um importante mediador entre a palavra –

transmissora do conhecimento – e o ouvinte.

Sendo assim, outra inferência sobre os recortes, baseados nos argumentos dos autores

expostos acima, condiz com a relação entre a palavra e a memória, como elementos

intimamente conectados ao grande acervo de conhecimento de seus possuidores e que

garantem mais facilmente a relação não só de narrador e ouvinte, mas de transmissores

presentes e transmissores futuros, como uma possibilidade de formação de novos

representantes das bases narrativas, que, associadas a novos intérpretes, tomam novos rumos.

Como bem escreveu Paul Zumthor em um capítulo referente ao intérprete e à memória, "cada

intérprete (a menos que ele não exerça funções rituais) possui seu próprio repertório, retirado

do acervo memorial da comunidade e, frequentemente, um pouco flutuante no curso dos

anos" (ZUMTHOR, 2010: 252), ou seja, seu conjunto de conhecimentos é retirado do acervo

memorial de sua comunidade, mas sua interpretação e transmissão dos fatos é algo particular,

que faz de sua história única e cambiável. Como narrador, "Ele é livre para interpretar a

história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na

informação" (BENJAMIN, 1994: 203).

46

3.2. Explicações pertinentes ou uma pequena introdução

As discussões travadas a respeito da palavra e do narrador foram intencionadas para o

prosseguimento deste capítulo. Utilizamo-las como forma de criar um elo entre as teorias de

Walter Benjamin sobre o narrador e de Paul Zumthor sobre a palavra (ou mais

especificamente sobre a voz), a fim de desenvolvermos nossa argumentação sobre os textos

literários de Daniel Munduruku, visto que o papel desses elementos – o narrador e a palavra –

é essencial para compreendermos a tradição indígena refletida nas páginas que seguem.

Os livros de Munduruku que privilegiaremos a partir deste momento são O sinal do

pajé (2003) e Todas as coisas são pequenas (2008), ambos tratando da cultura e sabedoria

indígenas, mas cada um com suas especificidades. O primeiro, voltado ao público infanto-

juvenil, narra os impasses de um menino (Curumim) prestes a participar do ritual da

maioridade que o tornará um homem guerreiro e o segundo nos traz a história de um homem

muito rico, adaptado confortavelmente à vida urbana, que, após um grave acidente na Floresta

Amazônica, encontra a sabedoria indígena no convívio com um pajé que o salva da morte.

Optamos por estes dois livros por reconhecermos neles um final semelhante entre si.

Se no primeiro jovens indígenas são instruídos para migrarem para a cidade a fim de

(in)formar os não indígenas sobre a importância da tradição, no segundo temos um homem

urbano que se torna habilitado depois de muitos desafios impostos por pajés em nome da

Tradição, e que posteriormente terá a missão de levar para fora da aldeia os ensinamentos

adquiridos sobre a cultura indígena. Decidimos analisar estes dois livros para mostrar a

pluralidade de estilos literários com temáticas indígenas escritas por remanescentes ou

aldeados, comprovando que não há somente textos voltados ao público infanto-juvenil, pois o

segundo é escrito como romance e voltado ao público adulto.

Além disso, este capítulo contemplará duas diferentes histórias que se conectam não

somente pela temática indígena e pela mesma autoria, de Daniel Munduruku, mas também

pela constante menção e forte valorização dos costumes tradicionais dos povos indígenas.

Nesta perspectiva, a importância da conexão dos seres com o universo, conscientes de sua

fragilidade enquanto indivíduos e reconhecendo suas necessidades enquanto parte integrante

de um todo muito maior do que o que se pode imaginar, também integra os pontos desta

análise.

47

3.3. Repensando a tradição em O sinal do pajé

… mas há, ainda, um grande sustentáculo que mantém viva,

dentro de nosso espírito, a esperança: a Tradição. É ela que nos

dá a certeza de que não estamos perdidos e sozinhos no mundo.

Daniel Munduruku

Em um universo particular envolvido por ameaças externas que a qualquer momento

podem atingir de diversas formas os povos indígenas, a tradição é um dos mais importantes

elementos que mantém viva a sensação de pertencimento, agindo como um sustentáculo

social que fortalece cada indivíduo de um povo. No contexto indígena, ela atua como certeza

de abrigo, como a protetora de uma história que resiste há séculos de massacre e destruição e

que cabe de herança e honra aos futuros indígenas. É o tesouro preservado, mas não intacto,

que reside em cada memória como fonte de vida e experiências.

O fragmento acima, retirado do posfácio de O sinal do pajé (2003: 66), de Daniel

Munduruku, retrata o sentimento de pertencimento refletido pela tradição, mostrando que

através dela há uma “certeza de que não estamos sozinhos no mundo”. Além disso, por esta

crença podemos ir mais além do que foi dito e imaginar toda uma ascendência que abastece o

que por eles é entendido como tradição. A seleção dos predicativos "perdidos" e "sozinhos"

nos permite entender que não é somente uma questão de origem comum, mas de direção e

companhia, de imaginar que a coletividade da qual se faz parte é muito maior do que a que se

pode enxergar e interagir. Que boa parte do que se entende como sustentáculo está nas

lembranças (memória coletiva) e mitos, e não somente nas vivências.

Como bem escreveu Walter Benjamin, "a reminiscência funda a cadeia da tradição,

que transmite os acontecimentos de geração em geração" (BENJAMIN, 1994: 211) e é essa

conservação da memória, em uma imagem lembrada do passado (não só por se viver, mas por

se saber), que se tem como estratégia para a preservação da cultura indígena. Portanto, com o

intuito de mostrar-nos um pouco desta tradição que fortalece a alma indígena e, não obstante,

nos mostrar que também na aldeia a incerteza ronda através da juventude aflita e audaz,

Daniel Munduruku narra a fase transitória de Curumim, prestes a participar do ritual de

maioridade que o consagrará homem.

A história é iniciada com as observações de Curumim sobre sua avó que naquele

instante banhava-se no igarapé. Sentado em uma pedra a admirar não somente as límpidas

águas do rio, mas também a sabedoria que aquela senhora guardava por sua longevidade,

48

"Pensou no quanto aquela velha mulher sabia sobre seu povo. Ela já tinha vivido muitas

coisas em sua longa vida. Viu gente nascer e gente morrer" (MUNDURUKU, 2003: 11).

Na sequência de seus pensamentos, o menino percebe o voo de um mutum, mas com

ele presume o sinal da aproximação do pajé, sempre anunciado por este pássaro topetudo. Sua

avó confirma: "É o sinal do pajé, Curumim. Ele deve estar por perto", e o menino se alegra

por já saber decodificar as mensagens de seu universo ancestral. De fato era o pajé que se

aproximava e logo se juntou ao rio com sua esposa; Curumim, já a postos, continua a mirar

em direção ao igarapé, agora observando o comportamento de seus avós que conversavam

sobre os sinais de chuva (mesmo com o céu muito azul). Eles reconheciam as manifestações

naturais como sinais da terra e cada sinal era prenúncio de algo. E naquela atração pela cena,

o menino continua em suas divagações sobre a infância daquele velho casal.

Curumim começa a se questionar mentalmente sobre as muitas coisas que seus avós

poderiam ter feito quando crianças, mas não imagina que por detrás de tamanha calmaria

emanada da cena existe um passado de sofrimentos e combates. Assim, com muita melancolia

e lendo os pensamentos do neto, os velhos começam a narrar sua perspectiva da invasão (ou,

para a História, da Conquista). Contam que naquela época não havia tempo para brincadeiras

por viverem em constantes tensões por guerrearem com outras tribos e estarem muito

amedrontados e perplexos com a chegada dos "homens de roupa comprida". Disseram:

Naquela ocasião, não sabíamos direito do que tínhamos medo, mas o fato é que

aquelas pessoas que estavam vindo para cá encontrar-se conosco eram muito

estranhas, muito feias, selvagens. Seus olhos eram diferentes, seus rostos sujos de

pêlos nos causavam medo. Seus rostos não nos permitiam ver sua pele; não sobrava

nada onde se pudesse fazer uma pintura de boas-vindas. Então, não ficávamos

seguros sobre o que eles realmente queriam. (MUNDURUKU, 2003: 14)

Por este fragmento, percebemos uma visão pouco conhecida da "Conquista": a visão

indígena baseada em suas percepções e sentimentos frente ao outro invasor. Um dos pontos

que nos chama atenção neste discurso é o verbo utilizado na voz reflexiva para se referir ao

contato intencional dos europeus com os já habitantes da terra invadida; trata-se do verbo

"encontrar" que no trecho está sendo utilizado para indicar, de certo modo, reciprocidade de

descoberta. Nele não percebemos a passividade indígena mencionada em muitas páginas de

História sobre o episódio da chegada dos europeus, mas sim uma receptividade no sentido de

reação a um estímulo, que neste caso é a chegada "daquelas pessoas". É um encontro que

acarreta o conhecimento mútuo de outra cultura que não fora, de fato, interpretado e

concebido desta maneira.

49

De uma forma bastante branda – sem mencionarmos diretamente os genocídios – esse

conhecimento mútuo de outra cultura, como o próprio fragmento nos mostra, significou para

os indígenas a insegurança e o medo. Já para os europeus, foi uma descoberta enriquecedora

de produtos naturais e uma ótima oportunidade de submissão desses povos aos seus costumes

e crenças como forma de expansão política e religiosa. Em outras palavras, a descoberta do

outro exterior no continente americano revelou a existência de culturas desconhecidas e foi

marcada por muitas problemáticas. Uma delas é a ambiguidade que Tzvetan Todorov resumiu

em um objetivo sintagma em seu livro, A conquista da América: "a alteridade humana é

simultaneamente revelada e recusada" (TODOROV, 2003: 69). O fato de encontrar no outro

alguém diferente do eu, foi para os espanhóis9 a maneira de submetê-lo às suas práticas, pois

“fisicamente nus, os índios também [seriam], na opinião de Colombo, desprovidos de

qualquer propriedade cultural: caracterizam-se, de certo modo, pela ausência de costumes,

ritos e religião...” (Ibidem: 48).

A desvalorização da tradição e cultura indígenas percebida nesta observação de

Tzvetan Todorov foi bastante prejudicial para a permanência política dos primeiros povos.

Brutalmente, os europeus tomaram o poder sobre as terras e muitos outros patrimônios

materiais e imateriais indígenas. A disseminação de sua cultura como única, melhor e

inquestionável faz com que se estabeleça um sistema dominante onde tudo que não esteja de

acordo com o europeu não pode ser considerado bom e aceitável, perseguindo as práticas e os

praticantes desalinhados. Para Todorov,

Desde aquela época [...] a Europa Ocidental tem-se esforçado em assimilar o outro,

em fazer desaparecer a alteridade exterior, e em grande parte conseguiu fazê-lo.

Seus modos de vida e seus valores se espalharam por todo o mundo; como queria

Colombo, os colonizados adotaram nossos costumes e se vestiram. (TODOROV,

2003: 361)

Sobretudo, como estratégia de prevenção, muitos sincretismos são feitos para desviar a

atenção dos colonizadores, fazendo, de certa forma, com que a tradição seja preservada com

máscaras sem acarretar uma fusão interna, ou seja, muitos dissimulam uma transformação

cultural e religiosa mantendo seus costumes e crenças em sigilo para resguardá-los. Há casos,

porém, de grupos que se rebelaram de fato contra a política dominante e, por conta disso,

9 Ao longo do trabalho, temos generalizado como europeus os colonizadores da América por entendermos que

muitos povos daquele continente contribuíram em diferentes fases para a invasão. Entretanto, neste caso,

mantivemos a especificação de espanhóis por estarmos tratando de uma ideia de Tzvetan Todorov sobre a

problemática do outro exterior e por ele trabalhar mais com a conquista americana pelo viés espanhol.

50

muitos não sobreviveram para nos contar suas histórias e outros vêm resistindo até o

momento para reconquistar um espaço de voz e audição.

A oportunidade de estarmos analisando neste trabalho não só os textos produzidos por

remanescentes indígenas, mas também as histórias de seus antepassados enriquecidas pelas

memórias e palavras de ambas as partes nos mostra que o projeto assimilacionista não vingou

na prática, pois, por estes textos, podemos buscar as referências de um passado que os

conquistadores tentaram apagar e recontar somente por uma perspectiva.

Assim como sabemos que os indígenas eram considerados selvagens pelos invasores,

podemos notar no fragmento de O sinal do pajé que os invasores também eram considerados

selvagens pelos indígenas. Michel de Montaigne, em seu ensaio intitulado "Dos canibais", ao

referir-se aos habitantes do Novo Mundo no século XVI, diz: "não vejo nada de bárbaro ou

selvagem no que dizem daqueles povos; e, na verdade, cada qual considera bárbaro o que não

se pratica em sua terra" (MONTAIGNE, 1987: 101). Este fragmento talvez nos ajude a

entender um pouco do sentimento recíproco de estranheza no contato com o outro, da

sensação de desconhecimento da imagem e dos costumes com os quais não estão habituados

em seu espaço; de características de um grupo social ao qual não pertence.

Pensando no significado de utilização da palavra selvagem, talvez não percebamos

uma mesma correspondência nas duas perspectivas. Na visão indígena, apontada no texto de

Daniel Munduruku, temos a inserção da palavra em uma sequência de estranhamento físico,

pois os avós de Curumim descrevem as pessoas que chegavam em suas terras como "muito

estranhas, muito feias, selvagens", sucedido de observações referentes às barbas e aos olhos,

dizendo que a sujeira dos pelos lhes causava medo e não permitia fazer "uma pintura de boas

vindas". Assim, entre estas colocações, podemos interpretar o adjetivo como referente ao que

nasce, cresce e vive sem cuidados especiais, que não foi cultivado, cuidado – ao ponto de

estar com os "rostos sujos de pelo". Já na visão não indígena, aproveitando-nos das palavras

de Montaigne em defesa dos costumes autóctones, temos um importante excerto que nos

conduz à reflexão. Colocando-se na mesma esfera que seus "vizinhos conterrâneos", o

filósofo francês escreve: "Por certo, em relação a nós são realmente selvagens, pois entre suas

maneiras e as nossas há tão grande diferença que ou o são ou o somos nós" (Ibidem: 105)

(itálico nosso). Por aqui, percebemos que a referência do autor está nos costumes e não nas

características corpóreas como na visão indígena. O termo selvagem, nesse caso, está mais

ligado à manifestação de crueldade que se reconhece no outro – visto que, ao fazer esta

suposição, as observações anteriores de Montaigne giram em torno do ritual canibalesco

51

indígena e de suas considerações em desafiar o inimigo – do que ao trato não cultivado do

físico, como sugere a perspectiva indígena. Além disso, em uma outra passagem de seu

ensaio, Montaigne afirma que

A essa gente chamamos selvagens como denominamos selvagens os frutos que a

natureza produz sem intervenção do homem. No entanto aos outros, àqueles que

alteramos por processos de cultura e cujo desenvolvimento natural modificamos, é

que deveríamos aplicar o epíteto. As qualidades e propriedades dos primeiro são

vivas, vigorosas, autênticas, úteis e naturais; não fazemos senão abastardá-las nos

outros a fim de melhor as adaptar a nosso gosto corrompido. (Ibidem: 101)

Analisando este outro fragmento extraído de "Dos canibais", podemos agora inferir

quem realmente Michel de Montaigne considera selvagem. Se no trecho anteriormente

destacado a diferença entre as culturas era tamanha ao ponto de incitar a dúvida de qual dos

povos era selvagem, agora o autor admite que selvagens são aqueles alterados pelo processo

cultural de seus conterrâneos (incluindo-se na ação em primeira pessoa do plural) por serem

corrompidos com seus gostos e deixarem-se degenerar as qualidades e propriedades autênticas

que os caracterizam. Ou seja, por este fragmento podemos subentender que selvagens são

aqueles autóctones que se assemelham aos reais selvagens dominadores.

Retomando o diálogo de Curumim com seus avós, temos uma boa reflexão referente

às reações do medo e à certeza de destruição que os "homens peludos" causariam levados por

seu temor. Se de um lado os indígenas temiam pela incerteza da chegada dos europeus em

suas terras, de outro verificamos pelos discursos autóctones os sentimentos emitidos pelos

invasores e descobertos em sonhos pelos pajés: "aqueles estrangeiros eram muito perigosos

porque tinham medo da floresta, dos animais, dos peixes, dos rios". O medo pairava nas duas

esferas de ação, mas também ele não se manifestava pela mesma causa em ambos os lados.

Por mais que o desconhecimento tenha sido o condutor chefe deste sentimento, para os

indígenas ele vinha acompanhado de incerteza e preocupação e para os europeus, de combate

(associado à destruição) e domínio. Assim, explicando ao Curumim o motivo de sua

afirmação, o velho pajé conclui sua breve narrativa: "E por que isso [o medo] os tornava

perigosos? [...] Porque com medo, as pessoas fazem coisas sem pensar direito. E se temos

medo de algo, nosso primeiro pensamento é destruir o que nos assusta. Eles iriam destruir

nossa terra, disso tínhamos certeza" (MUNDURUKU, 2003: 15).

Após a conversa, os velhos se retiraram deixando o menino "perdido em um passado

remoto", imaginando a infância que seus avós teriam tido "como uma época cheia de

aventura, tensões e medos" (Ibidem: 15). Curumim vivia num impasse entre a tradição de seu

52

povo e as outras possibilidades culturais que se encontravam fora de sua aldeia; isto era

devido ao ritual de maioridade que o aguardava em poucos dias para sua mudança de casa e

transição de menino para homem. Suas dúvidas giravam em torno da compreensão e

aprendizado dos costumes antigos como algo ultrapassado e não mais útil para a nova

realidade da aldeia e das curiosidades e novas oportunidades que a cidade grande ofertaria aos

jovens de sua comunidade. Conforme o texto, "Curumim só não entendia por que tinha que

aprender a arte da guerra se não tinha com quem guerrear. Já há algum tempo todos viviam

em paz, desde que chegaram os homens barbudos de quem seu avô falara. Isso tinha mudado

a vida de seu povo" (MUNDURUKU, 2003: 17). Ademais, em outra passagem verificamos a

recusa de alguns de seus amigos em participar do ritual com o argumento de "que isso era

coisa do passado e que os velhos da aldeia tinham ficado para trás" (Ibidem: 17-18), o que

deixava o pequeno indígena preocupado e temeroso, sem que com isso deixasse de imaginar a

vida fora de sua aldeia.

Em uma de suas caminhadas pela mata, Curumim se depara com uma discussão de

casal e mal sabia o menino o quanto aquilo contribuiria ainda mais para suas dúvidas

referentes à tradição. Em suma, o desentendimento ocorria pela mesma polêmica que

angustiava o menino: os velhos costumes da aldeia contrapostos às novidades da cidade

grande. Vendo um rapaz comunicar a decisão de partida da aldeia a sua namorada, deixando-a

abandonada aos prantos pelo comunicado, Curumim se aproxima para entender melhor o

ocorrido. Ao indagá-la sobre o porquê de considerar loucura a decisão de seu namorado, a

moça lhe responde com bastante sensatez:

– Porque lá não é nosso mundo. Temos ouvido isso de nossos velhos sábios. Por que

duvidar deles? Nossos homens querem ir embora para longe, atrás de riqueza, de

coisas que não cabem dentro da gente. A memória de nosso povo está sendo

esquecida porque a luz da cidade é mais forte. (MUNDURUKU, 2003: 20)

Este fragmento, repleto de sabedoria e que transmite um pouco da percepção indígena

sobre os reais valores da vida, mostra um dos principais motivos de evasão dos jovens da

aldeia, que é a valorização material. A crença de que o acúmulo de bens é uma forma de

poder e a conquista de riquezas é algo facilmente alcançável através do domínio alheio – já

que os modelos que se tem são do ludíbrio na invasão – são exemplos de corrupção causados

pelo contato com não indígenas. Uma passagem do próprio texto nos comprova a recente

comunicação dos jovens indígenas com missionários aparentemente não pertencentes à aldeia.

Quanto a Curumim, o narrador nos conta que ele "Ouvia os missionários dizer que na cidade

53

grande havia jeito de as pessoas se falarem usando um aparelho. Achava engraçado e confuso

viver num lugar em que as pessoas não se olham nos olhos quando querem falar umas com as

outras" (Ibidem: 18). O que se valoriza no pensamento indígena são as coisas que podemos

carregar conosco (os valores, os saberes) e o que foge disso é totalmente dispensável ao

homem.

Provavelmente, o fato de não precisarem mais guerrear e por agora viverem em paz,

como vimos anteriormente, faz com que os jovens da aldeia de Curumim não tenham a

precisa noção do sofrimento vivido por seus parentes em tempos remotos e por isso não

imaginem o sistema perverso existente fora de sua comunidade indígena. Aproveitando-nos

da analogia feita pela moça abandonada pelo namorado, em se tratando da diferença entre as

culturas (de fora e de dentro da aldeia), poderíamos nos perguntar: "como filhotes de capivara

viveriam bem entre onças?" (MUNDURUKU, 2003: 20-21) A resposta para esta questão é

óbvia e podemos prontamente sugerir a devoração dos primeiros pelas segundas, baseando-

nos nos instintos das espécies. Mas, certamente, para fazer esta comparação, a jovem indígena

se ampara no que ouve dos "velhos sábios" de sua comunidade, fundamentados pelas histórias

que viveram e pelas quais continuam se prevenindo ao formar guerreiros.

A dúvida de Curumim só fazia aumentar, ao ponto de seus avós acreditarem que sua

mudança de comportamento fazia parte "do medo de crescer, de dar o salto para a vida"

(MUNDURUKU, 2003: 23). A fim de solucionar esta "angústia de crescimento" (Ibidem: 23),

o pajé convoca o menino para uma tarefa que o conduzirá ao encontro de uma resposta para

os conflitos de sua mente, "pois sentia que precisava dar uma resposta a si mesmo antes de

qualquer coisa" (Ibidem: 24). Sua missão era procurar uma erva no tronco de uma velha

árvore, mas o que se escondia neste encargo era a lição que Curumim estava prestes a tomar e

compartilhar com sua comunidade.

Através de um sonho que teve ao adormecer na mata, Curumim recebeu o recado de

que era necessário "ouvir de fora, botar pra dentro. Ouvir de dentro, botar pra fora" e ao voltar

para casa o pajé lhe pediu para que contasse a todos sobre o que tinha sonhado. Estranhando a

consciência do avô sobre seu sonho, mesmo sem ter lhe contado, o menino se encorajou e

começou a narrar sua experiência. Ao ser indagado sobre o que pensava a respeito de seu

sonho, Curumim reconhece a semelhança com sua situação atual e explica: "– Dentro de mim

tem escuridão. Estou confuso com o que estou vivendo agora. [...] Fico me perguntando para

que tornar-me um guerreiro se já não fazemos mais guerra..." (MUNDURUKU, 2003: 27).

Dentre muitas questões levantadas que confundiam sua mente sobre permanecer com a

54

tradição ou mudar e viver imerso em outra cultura, Curumim é novamente indagado pelo pajé

sobre o que verdadeiramente pensava diante de tudo aquilo e surpreende ao dizer que

– Eu não conheço o mundo lá de fora e muito pouco posso falar sobre ele. Conheço

nosso mundo e a ele pertenço com muito orgulho. Este nosso jeito de ser é muito

bonito, rico. Nossos cantos e danças nos mostram que os Espíritos estão contentes

conosco e temos vivido por muito tempo da mesma maneira há milhares de anos.

Sempre vivemos assim porque nada nos motivou a mudar. Tenho pensado um pouco

se não está na hora de mudar. (Ibidem: 28-29)

Por estas palavras do menino, podemos perceber que o consenso proposto para dar fim

a sua aflição seria permanecer em seu mundo indígena com sua tradição, mas acreditando na

mudança deste mundo. Ou seja, sua opinião mostra, de certa forma, uma discordância em

relação aos costumes permanentes que se tem vivido "da mesma maneira há milhares de

anos" sem se adaptar às mudanças sociais das próprias comunidades, causando, assim, uma

evasão daqueles que buscam novos horizontes e duvidam da sabedoria ancestral de seu povo.

Ademais, ao ser indagado pela plateia de para onde mudar, o menino alega que a questão não

está no para onde mudar, mas sim no como mudar, e argumenta que "não podemos fugir de

uma realidade que está sufocando nossa gente, sufocando nossos sonhos, sufocando nossa

terra, nossos parentes. Precisamos reagir. Foi isso que o meu sonho me revelou"

(MUNDURUKU, 2003: 29). A constância do verbo "sufocar", além de enfatizar os

pensamentos do pequeno indígena, sugere uma dificuldade de expressão do meio natural e

social abrangidos pela aldeia e oriunda da realidade repressiva, consciente e voluntária dos

jovens de sua comunidade frente à tradição. Sobretudo, sugere a ação coercitiva daqueles que

ainda buscam transformar as tradições e cultura indígenas, como os missionários citados no

texto, plantando entre os jovens – que não vivenciaram os sofrimentos do combate ao invasor

e por isso desacreditam nas palavras dos velhos e na eficácia dos rituais de preparação – a

curiosidade e o interesse pelas novidades da "cidade grande".

Neste caso, pensando nas palavras e reflexões de Curumim, percebemos que a guerra

não é mais física, de guerreiros indígenas contra invasores estrangeiros, mas sim ideológica,

da tradição contra a modernidade. Dito de outra forma e utilizando-nos da lógica do menino,

não seria mais tão necessário um ritual de preparo físico se o que está em jogo ultrapassa as

fronteiras dos conhecimentos indígenas e por isso, para que se saiba lidar com a nova

problemática, seria necessário mudar e encarar as adversidades, e não mais fugir dos

encontros com os não indígenas com intenções preventivas de contágio.

55

A partir daquela assembleia para a discussão do sonho e dos sentimentos de Curumim,

o foco na conscientização dos valores tradicionais e na importância da transmissão cultural

ficaram mais evidentes. A preocupação de manter viva a chama ancestral nos jovens corações

da aldeia e, principalmente, no de Curumim, era trabalho não só do pajé, mas de todo o meio

social através das relações de convivência e interesses afins. Além disso, todos os elementos e

ações contribuíam para a formação humana e intelectual dos indígenas, visto que eles não só

interagem com a natureza, mas sentem-se uma extensão dela.

Podemos prontamente ilustrar estas afirmações com fragmentos da narrativa de O

sinal do pajé, utilizando-nos principalmente das observações feitas pela avó de Curumim. Em

dado momento do texto, por exemplo, ela convoca seu neto para observar a confecção de uma

panela e, não satisfeita com a simples observação superficial do menino sobre o objeto, ela o

coloca para pensar sobre "o que esta panela de barro pode nos fazer ver" (MUNDURUKU,

2003: 31). Através desta indução mnemônica, a anciã pretende incutir no menino não só a

sabedoria por trás do processo de feitura da panela, com o argumento de que esta atitude de

resgate produtivo remete ao início de tudo, mas também a certeza de pertencimento étnico e a

importância dos indivíduos no e para o sustento da tradição. Curumim, compreendendo a

intenção de sua avó, diz que "a panela pode nos levar ao barro, aos alimentos ainda na

natureza. Pode nos levar à preparação dos caçadores, aos cantos e danças da Tradição. Pode

nos levar ao começo do mundo, à criação" (Ibidem: 32). Em outras palavras, a panela de barro

carrega histórias não só de sua elaboração e matéria, mas também daqueles que direta ou

indiretamente participam de sua produção e usufruem de sua utilidade e, sobretudo, carrega

em si um significado de existência naquele meio contribuindo como patrimônio material e,

quiçá, imaterial deste povo.

Dessa forma, sabendo de seu papel para a manutenção da cultura, a avó de Curumim

se reconhece como "uma pontinha, mas uma pontinha muito importante para manter a nossa

história viva" (Ibidem: 35), pois com a confecção das panelas de barro ela alimenta a

Tradição. Explicando melhor em suas palavras, "Nossa Tradição não é apenas uma lembrança

fugaz da vida; ela é memória viva. Um simples ato de fazer uma panela de barro nos remete à

criação do mundo" (MUNDURUKU, 2003: 31).

Supostamente esta atividade cotidiana da velha sábia não teria tamanha importância

em um contexto distinto, mas inserida nos momentos de aflição e dúvidas de Curumim,

colabora para a afirmação de identidade e cultura contribuindo para o fortalecimento

tradicional. Assim, fica bastante claro para nós que o desejo da senhora não era ensinar ao

56

neto a fazer a panela, até mesmo por esta ser uma atividade atribuída às mulheres da aldeia, e

sim ensinar-lhe que cada elemento tem seu valor e função dentro da comunidade e por isso

torna-se essencial e simbólico para a memória viva de seu povo. Além disso, através do

discurso e da lição da sábia mulher, Curumim pôde ter a prova de que nem todos os costumes

estão ultrapassados e de que o que se vive faz parte da grande teia de conhecimentos vivida

"por muito tempo da mesma maneira há milhares de anos".

Não bastasse esta importante contribuição intelectual de sua avó, o pequeno indígena

também aprendeu com seu pai outros importantes pontos de valor de sua identidade étnica.

Ao sair para pescar com o seu progenitor, notara que aquela não seria uma simples pescaria,

que algo diferente os aguardava. Sentia uma estranha sensação de alegria e seu pai justificava

dizendo ser "a Tradição, percorrendo seu corpo e seu espírito". O próprio Curumim já não era

mais o mesmo, pois, induzido por suas dúvidas e incertezas, passara a observar com mais

cuidado as atividades que o circundavam. Referente ao evento mencionado, por exemplo, o

narrador menciona que o menino "notou um ritual nos gestos do pai, no ato de deixar o arco e

flecha numa posição privilegiada. Notou os cipós que serviriam para colocar os peixes

amarrados, o paneiro com as frutas, os remos e, é claro, ele mesmo sendo o convidado de

honra" (Ibidem: 39). Tudo era um ensinamento naquela ocasião e o pequeno indígena estava

atento para qualquer sinal.

Em determinado momento da pescaria, o pai de Curumim resolveu ancorar a canoa e,

sem entender muito o motivo, o menino começa a indagar-se mentalmente sobre a atitude de

seu tutor. Em resposta, como se estivesse lendo os pensamentos do filho, o homem diz que

"tem coisas que a gente pesca com os olhos" e assim desperta no menino uma comparação

imediata com as palavras comumente pronunciadas pelo pajé, devido ao tom enigmático e

possível sabedoria. Com isso, mais uma vez, a tradição é trazida à baila, agora com menção

aos ancestrais, e o pai de Curumim justifica suas palavras como advindas de pensamentos

colocados em sua cabeça pela Tradição, argumentando que ela "mora em nós e o pajé apenas

nos lembra que é preciso manter nossa mente aberta para aquilo que nossos ancestrais querem

nos dizer" (MUNDURUKU, 2003: 41). Por estas palavras, podemos considerar o pajé não só

um mentor, mas também um mediador que contribui com o fortalecimento do contato dos

indivíduos com a tradição.

A pescaria gerou algumas revelações e uma delas era a de que seu pai já havia estado

na "cidade grande". Para a surpresa de Curumim, a confidência produziu reflexões bastante

57

esclarecedoras a respeito de sua dúvida sobre as novidades daquele diferente mundo.

Cuidadosamente seu pai explicou o motivo de desvio daqueles povos dizendo que

o Criador de tudo colocou os homens da cidade no lugar onde eles moram com a

intenção de serem guardiões da sabedoria divina. Um dia esses homens perderam o

gosto pela própria Tradição e passaram a construir outras maneiras de viver, nas

quais as pessoas se matavam para juntar coisas, erguer grandes templos e inventar

objetos para substituir a lembrança do Criador. Foi aí que nosso Primeiro Pai

retirou-se para a floresta e criou nossa gente, com a firme obrigação de manter acesa

a chama da criação. (Ibidem: 31) (itálico nosso).

Percebemos que a explicação dada sobre a distância entre as culturas envolve uma

percepção mítica sobre o acontecimento, visto que emana de uma narrativa que supera a

existência cotidiana para explicar o motivo de algo que, neste caso, é a diferença cultural.

Como uma forma de compreender a realidade ou até mesmo entender o passado que germinou

as relações presentes, o pai de Curumim tenta explicar-lhe que suas origens partem do

afastamento induzido pelo "Primeiro Pai" de um mundo corrompido que perdeu o gosto pela

própria tradição e inventou objetos para substituir o criador. Com o intuito de recomeçar

abandonando aquele cenário deformado, o dito "Primeiro Pai" cria outros seres que mais uma

vez seriam responsáveis pela guarda da "sabedoria divina". Estes seres seriam, pela análise do

discurso do pai de Curumim, os indígenas que vivem na floresta e se diferenciam

culturalmente dos habitantes da cidade. Por isso eles possuem a "firme obrigação de manter

acesa a chama da criação", tendo em mente a responsabilidade de valorizar sua existência e

reconhecendo-se como esperança de manutenção da tradição creditada por seu criador. Em

suma, ele acredita e transmite ao seu filho que eles possuem a missão de honrar sua vida

enquanto resultado de uma recriação e que são originalmente distintos por manterem-se

ligados à ancestralidade. Em suas palavras, a missão deles seria "manter o céu no lugar onde

ele foi criado [...] como uma promessa ao Criador" pois "Ele nos deu tudo que temos [...] e

nada é nosso" (MUNDURUKU, 2003: 42).

A aventura de pai e filho não terminou assim. Ao descobrir que o lugar para onde seu

progenitor o conduzira era sagrado e que agora possuía a responsabilidade de ensinar o

caminho ao seu futuro filho, Curumim é conduzido a mascar uma raiz que prontamente o

alucina. Sentia seu corpo mais leve e sentidos aguçados ao ponto de notar palavras

sussurradas "por um vento ancestral" que diziam:

Curumim, esta terra nunca nos pertenceu. Não é de ninguém. Aprecie-a, viva-a,

cuide dela como herança dos antigos para os homens de hoje. Aconteça o que

58

acontecer, saiba ouvir as vozes da antiga Tradição de nosso povo e não permita que

isso tudo seja destruído" (Ibidem: 44-45).

Este conselho é dado como que confirmando o mito que seu pai contara e reafirmando

a obrigação que eles tinham perante a conservação da memória tradicional. Além disso, este

mito e todo o contexto enunciativo da avó e do pai de Curumim servem para amenizar as

dúvidas do menino e agem como uma estratégia de convencimento e transmissão de valores.

Antes da decisão final do pajé e do grande dia do ritual de maioridade, o pequeno

indígena lembrou-se de uma avó e do encontro e conversa que ela tivera com todos os jovens

da aldeia. Era uma senhora prestes a morrer e aquele encontro não marcaria somente sua

despedida, mas a importância do preparo que tornará um menino em um velho sábio, ciente

de seu papel social e tradicional. A lembrança o auxiliava nos rumos de sua dúvida entre

permanecer nos costumes ou mudar para um outro mundo, e o direcionava mais uma vez para

as memórias de seu povo. Em pequenos fragmentos de reminiscência, Curumim pôde se

lembrar de muitas passagens da narrativa daquela avó e todas elas relacionadas a sua

"angústia de crescimento". Ela lhes disse que "crescer é sempre dolorido" e que "ninguém

gosta de mudar" (MUNDURUKU, 2003: 50). Para expressar ainda mais o que dizia e associar

a elementos com os quais estavam habituados – pois, possivelmente, naquela ocasião, muitos

ainda não estavam perplexos com a chegada de sua maioridade – a velha compara os jovens

com a semente do milho, esclarecendo que "talvez ninguém nunca tenha perguntado à

semente se ela quer virar uma espiga de milho. Está dentro dela ser uma espiga. Só que se ela

não for plantada devidamente, jamais conseguirá transformar-se..." (Ibidem: 51). Sendo

assim, a anciã tentava explicar que faz parte da natureza o desenvolvimento do ser. A

transformação é natural, mas o fruto que se colhe dessa metamorfose varia de acordo com a

forma como foi cultivado, por isso a importância do preparo e dos rituais nas culturas

indígenas; a educação que se dá ao jovem de agora influencia na sabedoria que o futuro velho

carregará. Como o próprio texto nos aponta, com as lembranças dessa avó, Curumim "sentiu,

mais uma vez, que a Tradição marcava-lhe um sinal na testa como a dizer que tudo aquilo

devia ter continuidade num futuro" (MUNDURUKU, 2003: 50).

A preparação para a vida madura durava meses de isolamento e este era um ritual

milenar de seu povo. Entre os dezenove outros que entrariam para a casa dos homens,

Curumim ainda questionava se não "haveria outras formas de tornar-se um homem" (Ibidem:

55). O discurso do pajé, acompanhado pelo representante maior, o cacique, retomava toda a

importância daqueles meninos-quase-homens no resgate ancestral e por isso os chamava de

59

"memória presente de uma realidade passada" (MUNDURUKU, 2003: 57). Os anciãos

estavam cientes de todas as dúvidas e incertezas que pairavam na mente daqueles "jovens e

corajosos guerreiros" (Ibidem: 56) e por isso arquitetaram o discurso em torno deste

problema. Reconheciam que a guerra já não tinha o mesmo sentido que em suas épocas e que

"hoje em dia temos outras guerras de que precisamos participar e uma delas é a tentação de

abandonar tudo o que nossos antepassados nos deixaram para aceitar uma vida que não nos

pertence, que não conhecemos, que não amamos" (MUNDURUKU, 2003: 58).

Portanto, depois de toda a desconfiança que percorreu a narrativa de O sinal do pajé,

voltamos ao sentimento decorrente do primeiro encontro entre as culturas na ocasião da

"Conquista": o medo. Como forma de enfrentar este medo, o pajé pronuncia, valendo-se de

uma antiga profecia, a providência tomada pelo conselho dos anciãos que é de mandar estes

jovens indígenas já formados para a cidade a fim de "pacificar os brancos". Entendemos que

esta é a forma encontrada pelos anciãos de manter a tradição revigorada entre os jovens e que,

paradoxalmente, previne uma possível evasão sem conhecimentos e estimula a partida de

homens preparados. Dirigindo-se à plateia, o pajé comunica a missão dizendo: "decidimos,

então, preparar esses jovens e enviá-los para o lugar das luzes. Vocês aprenderão os segredos

da Tradição e ensinarão estes segredos para os homens e mulheres da cidade"

(MUNDURUKU, 2003: 62). Podemos compreender que o medo, neste caso, é oriundo da

incerteza de manutenção da cultura ancestral. Retomando o mito da criação dos indígenas

pronunciado pelo pai de Curumim, seria como um afastamento da imagem do criador e um

descumprimento da promessa de manter viva a tradição, ou melhor, de "manter acesa a chama

da criação", pois ao distanciarem-se da comunidade sem o devido preparo cultural e encargo

de partilha, os rapazes estariam contribuindo para a substituição de valores e declínio da

memória ancestral. Com a missão conferida pela sua comunidade, no entanto, estariam aptos

a ensinar os segredos indígenas aos homens e mulheres da cidade e seriam para sempre os

"autênticos e verdadeiros guardiões da Tradição" (Ibidem: 61).

3.4. Conhecendo um pouco mais sobre a tradição em Todas as coisas são pequenas

Todas as coisas são pequenas é um romance de autoria indígena, escrito por um

remanescente Munduruku, que traz em suas páginas muitos dos conhecimentos, rituais e

mitos indígenas. Com o teor diferente dos livros anteriormente analisados neste trabalho

60

acadêmico, ele traz como protagonista um não indígena capitalista, cujo nome é Carlos, que

transformará todo o seu comportamento e visão de mundo depois de alguns dias perdido na

Floresta.

Escrito em primeira pessoa, o texto é iniciado com algumas reflexões filosóficas a

respeito do vazio existencial e do quanto o mundo e as pessoas vêm sendo corrompidos pelo

sistema vigente de consumo e exploração. O narrador-personagem, até então inominado, se

reconhece como contribuinte deste sistema por possuir um alto poder aquisitivo e promover

injustiças e farsas em nome de um status alcançado com muito trabalho e corrupção. Em suas

próprias palavras encontramos a justificativa para tal afirmação: "Por conta de meu trabalho e

de minha nova posição pessoal diante do mundo, tornei-me rico, muito rico [...]. Não preciso

dizer que nem sempre fui honesto. Descobri que riqueza e honestidade não são sinônimos"

(MUNDURUKU, 2008: 21).

Vindo de família rural, pobre e migrante, o protagonista se mostra muito irado com o

fato de seus pais o deixarem em um seminário com promessa de um futuro melhor. Ao

comunicar ao padre local sobre a partida para a cidade grande visando a melhores condições

para os rebentos, o casal é covencido pelo sacerdote de deixar um dos muitos filhos para

formar-se padre, sendo nosso narrador-personagem o escolhido. Segundo ele, foi nesse tempo

que nasceu sua raiva contra Deus e contra seus pais. Por mais que reconheça ter sido uma

grande experiência sua reclusão de oito anos, o seminarista não se adaptou ao regime

eclesiástico (inconformado com as mazelas – ou pecados, perante a condição religiosa – que

presenciava no mosteiro) e partiu assim que completou sua maioridade. Ao atravessar o

"portal" que separava a vida do mosteiro e o "mundo secular", decidiu alimentar o projeto de

exercer a única função que aprendera no seminário: ser gráfico. Entretanto, por falta de

experiência, começou trabalhando como office boy e foi subindo até ao cargo de gerente de

gráfica e, mais tarde, montou seu próprio negócio, tornando-se um rico empresário. Formou-

se em administração de empresas e, por identificação, em filosofia para conhecer melhor os

filósofos gregos que alimentaram sua mente nos tempos do seminário. Não tinha vínculos

familiares e nem amorosos e isso contribuía ainda mais com seu vazio existencial. Em seus

pensamentos afirmava que "há um vazio dentro da gente que está sempre nos inquietando.

Alguns dizem que é saudade do paraíso perdido por nossos primeiros pais. É claro que,

quando penso nisso, imagino a traição de meus pais em nome de um conforto futuro" (Ibidem:

12-13), lembrando mais uma vez do abandono que sofrera quando criança.

61

Ao começar a narrativa de sua "nova história", mostrando "como é possível viver

diferente" depois de tanta raiva e deslealdade, o narrador-personagem traz a aflição de um

jovem indígena que se deparava com as mudanças causadas pela aproximação cultural com

possuidores de objetos tecnológicos e por isso pretendia ir embora de sua aldeia atrás de

respostas. Na beira de um igarapé, a prometida esposa dele lança uma pedra na água e a partir

do desenho formado divaga sobre o saber universal. A imagem correspondia a três círculos

decrescentes desenhados pela jovem na areia como exemplo para sua reflexão; calmamente

ela se pôs a explicar que "o círculo maior é o que está contido na natureza, no mundo. O

círculo médio é o que é conhecido por nosso povo, por nossos sábios" (MUNDURUKU,

2008: 18) e o círculo menor é o que seu jovem esposo sabe.

Estas sábias palavras servem de base para a compreensão da perspectiva indígena de

conhecimento universal e da hierarquia elementar desta cultura, onde o indivíduo é

compreendido pelos sábios e a natureza compreende o todo. Semelhante associação é feita

em O sinal do pajé quando uma avó convoca os jovens da aldeia para falar sobre as

preocupações do crescimento e explica que

o que os velhos sabem é um pequeno círculo; o que a natureza sabe é um médio

círculo; o que a Tradição sabe, engole os dois. Assim, mesmo buscando respostas,

sei que tudo o que preciso saber já está aqui, escrito em nossa memória. Do que

preciso mais para ser feliz? (MUNDURUKU, 2003: 52)

A velha indígena tenta convencê-los de que a felicidade está dentro de cada um e que

basta encontrá-la dentro de si para harmonizar-se com o todo. A mesma estratégia é utilizada

pela jovem indígena ao tentar convencer seu esposo de que ele é parte integrante de uma

lógica interdependente onde todos os elementos estão ligados entre si e o todo só faz sentido

se tiver suas partes integradas.

Dito isto, voltemos ao narrador-personagem de Todas as coisas são pequenas. Ao

contar-nos sobre esta nova percepção do universo, mudando seu vazio existencial por

conjuntos onde a sabedoria dos velhos e a natureza compõem as esferas maiores, o homem

bem-sucedido retoma a origem de sua mudança e explica em detalhes como tudo ocorreu. Ele

estava se preparando para uma tão sonhada viagem à Grécia, "terra dos deuses do Olimpo",

quando recebera a notícia de que sua mãe não estava bem de saúde. Havia alguns anos que

seu pai falecera e, por mais que estivesse afastado por tanto tempo de sua família, agora sua

mãe moribunda solicitava sua presença para despedir-se. Contrariado, o homem modificou

seus planos para encontrar a mãe, mas ao chegar no lugarejo que deixara há anos descobriu

62

que sua progenitora não o havia esperado e morreu minutos antes de sua chegada, deixando

para ele o recado de que iria "encontrá-lo em algum momento" (MUNDURUKU, 2008: 25).

Sua arrogância no trato com os irmãos e seu interesse em acumular ainda mais dinheiro com a

mísera herança de seus pais não se comparavam à insensibilidade mostrada com a morte de

sua mãe. Como ele mesmo salientou, na ocasião do velório "não consegui derramar uma única

lágrima. [...] Nada sentia. Mesmo vendo minha mãe ser enterrada, meus olhos nada podiam

vislumbrar a não ser o imenso vazio que já me assombrava havia muito e muito tempo"

(Ibidem: 30).

Ansiava pelo retorno a sua luxuosa vida. Tanto que sua partida do pequeno lugarejo

ocorreu no dia seguinte ao enterro e a melancolia foi sua companheira nos primeiros

momentos do percurso. Lembrou-se da despedida de seus pais no dia em que migraram para a

cidade e de seu choro enquanto era conduzido pelo padre ao seminário. Recordou-se da dor ao

receber a notícia de falecimento de seu pai e também do sofrimento a cada carta que

anunciava a dificuldade pela qual passava sua família. No entanto, não se permitia perdoar

aqueles que contribuíram com sua solidão e a mágoa permanecia como sentimento constante

em suas retomadas mnemônicas.

Foi no caminho de volta para seu mundo de riquezas que o personagem central de

Todas as coisas são pequenas encontrou sentido para o vazio que o atormentava. Ele estava

sobrevoando a Floresta Amazônica em seu próprio avião quando o piloto da aeronave

anunciou uma pane inexplicável, visto que o equipamento funcionava normalmente. Sua

impressão sobre o estranho ocorrido foi de que o avião estava sendo "puxado para baixo por

um imã gigante" (MUNDURUKU, 2008: 36), tanto que em pouco tempo a aeronave caiu,

matando o condutor e deixando o pesado homem bastante ferido.

Na solidão da mata, onde nunca havia estado antes, e na necessidade de ter que agir

por si mesmo, sem pagar a outras pessoas para isto, pôde iniciar um encontro com seu próprio

interior e uma maior integração com o ambiente que o cercava, ou, melhor especificado, com

a natureza. Estava muito debilitado pela forte queda que sofrera e buscou alívio para seus

ferimentos no pouco que conhecia sobre primeiros socorros. Mal sabia ele que a aventura pela

mata só estava começando e que o tempo naquele lugar não correspondia ao tempo com o

qual estava habituado.

Depois de uma longa, sofrida e tempestuosa noite, o homem se afastou das

proximidades do avião destroçado à procura de água potável e, sem se dar conta, rolou por um

barranco e bateu a cabeça em uma árvore. Não sabia muito bem por quanto tempo ficou

63

desacordado, mas foi depois disso que acordou em uma casa de palha e conheceu seu futuro

grande amigo e atual "salvador". Em sua narrativa nos diz:

Acordei sem saber por quanto tempo tinha dormido. [...] Procurei tatear com os

dedos e tentar me erguer. Quando consegui, deparei-me com uma figura que olhava

fixamente para mim. Era um homem todo pintado de vermelho e preto. Estava

sentado sobre um banco de madeira em formato de animal. Era um homem maduro

na aparência, mas com um corpo atlético. Tinha um rosto muito honesto e

transparecia uma bondade sem igual. Tentei puxar conversa, mas ele nem sequer

moveu uma sobrancelha para o que eu falava. 'Acho que ele não é tão bom assim',

pensei. E se for um canibal? Mas o padre tinha falado que não havia canibais, e que

antropofagia é uma forma simbólica de os selvagens comungarem com o cosmo.

Isso não me animou muito. E se ele quisesse comungar com o cosmo alimentando-se

com a minha carne? (Ibidem: 45) (itálicos nossos).

Esta primeira impressão do homem, corrompido e que corrompe pelo sistema, é

bastante comum entre os herdeiros ideológicos dos conquistadores, que reconhecem uma

benevolência indígena, mas a transformam com aspecto bárbaro pelo costume antropofágico

de algumas etnias. Ou seja, mesmo identificando uma bondade transparecida no rosto do

"homem pintado de vermelho e preto", um simples recuar de simpatia o fez imaginar as

características históricas que deturpavam a figura aparentemente indígena que surgira em seu

caminho, sem que este indicasse qualquer sinal para tanto. Além disso, podemos considerar

que o choque cultural contribuiu em significativa parte para esta imaginação, visto que antes

deste episódio o homem citadino havia oferecido dinheiro aos movimentos que ouvia na casa,

sem saber, ao menos, quem estava ali. Não sabia para quem estava oferecendo e muito menos

que este alguém recusaria qualquer tipo de oferta material por sua solidariedade. Seguindo

esta lógica, se o rico empresário não estava acostumado com recusas e, muito menos, com

alguém que ignorasse seu dinheiro, o comportamento presenciado já se tornava bastante

suspeito. Perceber que o outro não possui os mesmos costumes que reconhece como sendo os

seus promove um julgamento automático calcado a partir de suas próprias visões de mundo.

Talvez por isso o rechaço ao perceber o distanciamento do "homem de corpo atlético",

reconhecendo nele alguém que não compartilhava seus mesmos interesses. Retomando as

considerações de Michel de Montaigne a respeito das observações dos europeus sobre os

habitantes do "Novo Mundo", temos a seguinte afirmativa: "Podemos portanto qualificar

esses povos como bárbaros em dando apenas ouvidos à inteligência, mas nunca se os

compararmos a nós mesmos, que os excedemos em toda sorte de barbaridades"

(MONTAIGNE, 1987: 103). Sendo assim, o método analítico que propomos para as primeiras

impressões do empresário a respeito de seu "salvador" conduz à possibilidade de comparação

64

entre os comportamentos e, diga-se de passagem, entre as culturas de ambos os envolvidos,

pois, ao notar as rejeições do nativo às ações que comumente praticava – de manter a simpatia

e atribuir dinheiro a todas as relações humanas –, o homem urbanizado deforma as aparentes

características daquele, generalizando suas ações ao estereótipo de selvagem.

Mantendo o raciocínio de Montaigne, podemos aludir que, neste contexto, o homem

da cidade "excede em toda a sorte de barbaridades" àquele que ele supõe selvagem, pois em

suas próprias reflexões ele reconhece: "[...] imagino quem é mais selvagem. Nossa dita

civilização, parece-me agora, regrediu, em vez de evoluir. Nossa comunicação é feita aos

berros, aos gritos. Somos todos animais violentos querendo fazer valer nossa marca"

(MUNDURUKU, 2008: 94). Este fragmento já aponta a transformação do modo de pensar

deste homem citadino que ocorre no final da narrativa, mas, de qualquer forma, contribui para

as reflexões desenvolvidas anteriormente a respeito do choque cultural entre os povos e as

precipitadas observações sobre o desconhecido.

Como já destacamos, a diferença entre as duas culturas logo se fez perceber, pois

enquanto o empresário só pensava em sua riqueza e prestígio perante a sociedade da qual

fazia parte, o homem de "pele vermelha" se mostrava livre e desligado das coisas materiais.

Além disso, aos poucos a relação entre os distintos homens foi se tornando mais comum, sem

que isso fizesse desaparecer as diferentes percepções de mundo que cada um levava consigo.

O já revelado pajé muito ensinava sobre sua cultura ao, agora nomeado, Carlos. Este, pouco

tinha a ensinar sobre o seu mundo àquele que já o conhecia e que, por isso, sabia falar a língua

do empresário. Em uma de suas revelações, o pajé conta que já estivera na "aldeia cheia de

luz que pariwat10

criou" e que a experiência foi muito dolorosa. Sua volta à aldeia custou um

importante aprendizado, manifestado no decorrer da narrativa, que era o de reencontrar-se na

convivência com o outro – neste caso, Carlos. Ou seja, o encontro entre eles já havia sido

anunciado pelas lideranças indígenas como forma de aprenderem um do outro e, instruídos

pelos ancestrais, purificarem-se.

Embora o narrador-personagem se chamasse Carlos, o pajé o renomeou atribuindo-lhe

uma palavra que designava teimoso: "o nome de homem branco vai ser Irihi. [...] Significa

teimoso. Homem branco é teimoso e tem que ser chamado assim até mudar seu jeito. Depois

recebe outro nome do sopro dos antepassados" (MUNDURUKU, 2008: 55). Um dado curioso

que nos chama a atenção nesta situação é o fato de o indígena renomear o homem oriundo da

cultura que outrora invadiu suas terras, o oprimiu e reformulou seu espaço e até mesmo os

10

Pariwat em Munduruku se refere aos não indígenas.

65

nomes dos seus companheiros. Como nos aponta Tzvetan Todorov a respeito do "furor

nominativo" de Cristóvão Colombo, num intuito de tomar posse das terras (americanas)

através do rebatismo, "nem os índios escapam da torrente de nomes" (TODOROV, 2003: 39).

O caráter emblemático e arbitrário que os nomes assumem na atitude designativa de

Colombo, onde "os nomes próprios [...] servem somente para denotar, mas não servem,

diretamente, para a comunicação humana" (Ibidem: 40) é bastante distinto, no entanto, da

valorização que os nomes próprios têm na cultura indígena. O pajé de Todas as coisas são

pequenas, por exemplo, assume o discurso e diz que "Nome não pode ser dito. Nome tem que

ser contado. Nome tem história antiga. Nome é coisa sagrada, pois é um sopro de nosso Pai

Primeiro que vem no sonho" (MUNDURUKU, 2008: 55), mostrando a importância dada ao

antropônimo. Nesta perspectiva, o nome não é considerado somente como uma palavra

designativa de pessoa, mas um atributo repleto de histórias que não deve ser simplesmente

pronunciado, como uma palavra, mas sim contado, como uma narração, pois sua associação

ao ser equivale à representação de um elemento, uma ação ou um prenúncio. Além disso, o

pajé diz que "não manipulamos as palavras para não sermos manipulados por elas"

(MUNDURUKU, 2008: 78), o que nos permite uma contraposição à manipulação dos

vocábulos por Cristóvão Colombo.

Como nos comprova o texto, Carlos passaria a ser Irihi por seu comportamento

obstinado, mas depois de suas futuras experiências teria um outro nome dado pelo "sopro dos

antepassados" (Ibidem: 78). Agora já envolvido em uma relação mais amistosa com o pajé,

este anuncia as mudanças espaciais e psicológicas que aguardavam Irihi:

Irihi vai ter que fazer viagem para floresta de meus pais, de meus avós antigos. Vai

ter que passar por rituais para aprender coisas muito seculares. Irihi vai ter que

limpar o corpo e a mente para enxergar a verdade que mora dentro das pedras,

dentro das folhas, dentro de cada ser vivo, nas cavidades das montanhas e nas

profundezas dos rios. Depois, Irihi ganha nome e volta para a cidade.

(MUNDURUKU, 2008: 59)

A partir dessa mudança espacial, o pajé acredita que "Irihi começa a deixar de ser

pariwat" (Ibidem: 61) para iniciar sua transformação pessoal, ao ponto de ser considerado um

parente seu, ou seja, um indígena. Em sua cultura, a floresta é "como uma grande mãe" e

"cada um de [seus] parentes, amigos e conhecidos a tratam assim"; portanto, seguindo esta

lógica, se todos tratam a floresta como mãe, devem considerar-se irmãos entre si. Logo, ao

viajar para a floresta, e, dessa forma, estar em contato com a "grande mãe", Irihi estará imerso

nesse universo coletivo e pertencerá à irmandade de filhos da floresta, sendo, pois, parente do

66

pajé. Como melhor nos esclarece outro fragmento, "todos os seres da floresta são parentes

entre si, inclusive do ser humano" (MUNDURUKU, 2008: 76).

Depois de alguns sonhos fortes e reveladores que instigavam Irihi e das muitas

histórias contadas por seu "salvador" em seu tempo particular, o narrador-personagem, já

inserido em uma realidade completamente distinta daquela com a qual estava acostumado, se

encontra pensando em sua família. Dessa vez não contava com a raiva que se manifestava a

cada pensamento referente a um de seus parentes, mas sim com uma grande saudade repleta

de boas lembranças que guardava da época de infância. Indagava-se internamente sobre o

motivo de ter se tornado tão mesquinho e inclusive permitiu que duas lágrimas percorressem

sua face estimuladas pelas recordações de outrora. Realmente algo em Irihi parecia estar

mudando e chegou a concluir que a tragédia "se revelava um verdadeiro mergulho ao [seu]

próprio centro". Em suas reflexões, ele nos revela: "Fazia tempo que eu não pensava em mim

como um ser espiritual. Parece que eu tinha me tornado uma cédula de dinheiro e tudo em que

pensava estava ligado a isso. [...] O pajé me fez compreender que eu era hipócrita e minha

vida, medíocre" (MUNDURUKU, 2008: 72, 74).

Suas descobertas do outro e de si mesmo estavam apenas começando, pois, na cabeça

do pajé, o regresso de Irihi para sua casa na cidade representaria a morte do ser que era e o

nascimento de um novo homem. Seus pensamentos oscilavam entre seus costumes passados e

suas experiências presentes; ora mostrava-se mudado, com reflexões profundas e críticas

perversas quanto ao sistema em que vivia, ora a intolerância reinava sobre as novidades que

se revelavam em seu caminho sobre as tradições indígenas. O caminho da floresta os levou à

aldeia do pajé – que a essa altura relegou o título considerando-se somente um guia – e lá Irihi

pôde aprender ainda mais sobre a cultura autóctone. Uma das coisas que o impressionou era o

"estado permanente de felicidade" que eles demonstravam no "jeito próprio de viver" (Ibidem:

92), o que logo tratou de contrapor ao estilo de vida da cidade onde a "felicidade era um

artigo de luxo no mundo do capital" (MUNDURUKU, 2008: 93). Nesse momento, o rico

empresário reconhece que os selvagens, na verdade, são aqueles com os quais está habituado

na cidade grande, pois o que percebe entre os autóctones é a simplicidade da vida e a

felicidade em estar junto ao outro e não a busca desenfreada por dinheiro no mundo capitalista

onde as amizades são compradas. Corroborando estas ideias, o pajé nos transmite sua

sabedoria esclarecendo a Irihi:

Somos incompreendidos pelos homens brancos porque eles consideram ter o

conhecimento de tudo e não permitem que nossa sabedoria invada a casa deles, a

67

vida deles. Todos têm os olhos e o coração voltados para a busca das riquezas que o

corpo não pode carregar. Pensam que assim viverão felizes. Mas isso não passa de

um grande erro, pois colocam sua atenção nas coisas fora de si e se esquecem de

alimentar o espírito que os mantêm vivos. Quem vive desse jeito não consegue

compreender a riqueza que há nos outros. Gente assim não vive feliz. (Ibidem: 103)

(Itálico nosso)

O fragmento nos faz entender as diferentes percepções sobre a vida e o modo de

conduzi-la de cada uma das culturas envolvidas no texto, mas, claro, sob o olhar do pajé, que

nos deixa bastante induzidos à reflexão. É certo que a essa altura também Irihi estava

começando a se envolver no universo autóctone e questionando os verdadeiros valores da

existência, mas as palavras do pajé se tornam mais influentes pelo fato de expressarem um

olhar de dentro, daqueles que são "incompreendidos" e não dos que não compreendem ou

começam a compreender.

A reclamação sobre a falta de espaço para a sabedoria indígena mencionada neste

excerto de Todas as coisas são pequenas atua como uma espécie de lamento sobre a

impossibilidade de ensino da real maneira de se encontrar a felicidade, que é, segundo o texto,

"alimentando o espírito" e não a matéria com artigos materiais. O fato de investir em si

mesmo como o principal estimulante para a felicidade, encontrando uma harmonia interna

para, a partir de então, harmonizar-se com o ambiente que o cerca é a receita da sabedoria

ancestral transmitida pelo pajé. A crítica à busca incessante pelas "riquezas que o corpo não

pode carregar" como forma de satisfazer os prazeres terrenos e a crença de estar nestas

atitudes a felicidade é a forma utilizada pelo sábio indígena para atingir a cultura materialista

que se esvai nas atitudes de Irihi. Ele acredita que o que se investe em conquistas externas e

materiais se perde em compreensão do outro e de si mesmo, já que o objetivo de felicidade é

distorcido para os objetos que não nos constituem enquanto ser. Como Tzvetan Todorov

apontou em A conquista da América, "o conhecimento de si passa pelo conhecimento do

outro" (TODOROV, 2003: 371) e isso Irihi já estava aprendendo, pois agora reconhece que

"precisamos existir para todos" e que "nossa felicidade depende da felicidade das pessoas ao

nosso redor" (MUNDURUKU, 2008: 126).

Cada dia que passava era um conhecimento que se somava na história de Irihi. Aos

poucos ele se preparava para a prova final sobre a qual ainda não tinha ciência, mas que o

tornaria um verdadeiro multiplicador da sabedoria que começava a compartilhar. Uma

mudança emergencial modificou, entretanto, os rumos da aldeia, já que alguns homens da

cidade estavam à procura de Carlos (Irihi). O contato com os "homens brancos", por menor

que fosse, poderia pôr em risco o muito que ainda se preservava da tradição autóctone e por

68

isso precisavam procurar um local mais seguro para reabitarem. De acordo com o narrador-

personagem, "aquele era um povo com quase nenhum contato com a dita civilização.

Qualquer forma de contato seria também de contágio. Permitir que entrassem na aldeia era

como dar certidões de óbito para um grupo inteiro" (Ibidem: 114) e por isso precisavam

mudar. Além de presenciar a constante fuga a que alguns povos estão sujeitos para se

preservarem culturalmente, mais uma vez Irihi recebeu a lição de desapego material, pois

nada era levado por eles além do que pudessem carregar. As casas eram derrubadas e os

rastros apagados evitando riscos. A gratidão daquele povo ao local que os acolheu durante

aquele período também foi algo que instigou Irihi, além da admiração pela pronta mobilização

dos rapazes em construir casas novas no local escolhido como adequado.

Após sua colaboração na construção da nova aldeia e sentir-se parte de uma equipe,

um estranho sentimento assomou Irihi: desejou ter uma família. Por estar tão envolvido com a

nova construção social que conhecera e por presenciar o companheirismo e o sentimento de

coletividade que até então não acreditava existir, o novo homem imaginou uma construção

afetiva de família e ansiou por uma casa para a qual pudesse voltar com alguém a lhe esperar.

Na sequência de seus pensamentos, adormeceu e sonhou com seus pais. E, diferentemente do

que ocorrera nas outras vezes, nesse sonho seus pais se mostravam satisfeitos, como se

aprovando as novas ideias que povoavam a cabeça de seu filho. Agora Irihi se sentia

integrado ao universo e sua sensação era como se "compactuasse com todas as formas de vida

que existiam no planeta" (Ibidem: 124).

Agora preparado, o anúncio dos últimos rituais é feito pelo conselho e só depois de

mostrar-se vencedor é que Irihi poderá ser considerado um verdadeiro parente indígena. O

mais velho do conselho tomou a palavra e informou que o homem precisaria de um encontro

consigo mesmo e para tanto seria necessário "ir ao coração de nossa mãe-terra e nela

descobrir do que precisa para poder entrar em nossa casa e em nosso coração"

(MUNDURUKU, 2008: 125). Além disso, seu amigo pajé teria que acompanhá-lo para

concluir sua iniciação, pois, nesse momento, mais do que nos outros, um dependia do outro

para firmar seu compromisso com a comunidade, que ansiava pelo retorno de ambos.

Antes de seguir para sua prova final, o rico empresário passou de casa em casa na

aldeia para se despedir das pessoas e aproveitar conselhos úteis para sua saída do seio da mãe-

terra. A última casa foi a do sábio avô do povoado que muito contribuiu para sua experiência

final. Uma das coisas que o velho homem transmitiu a Irihi foi o segredo da felicidade,

dizendo que "para ser feliz: a gente nunca tem que se preocupar com as coisas pequenas; e

69

não esquecer que todas as coisas são pequenas" (Ibidem: 130). Ao ouvir estas palavras, o

quase novo homem sentiu uma imensa gratidão e não se conteve em demonstrá-la em um

forte abraço. Ali, na pequena choupana do velho sábio, pôde ver "como a vida é maravilhosa"

(MUNDURUKU, 2008: 130).

Ironia ou não, o rico empresário, detentor de títulos e fortunas, estava aprendendo na

simplicidade da vida que para ser feliz não se precisa de dinheiro nem qualificações; basta

estar em equilíbrio consigo mesmo e em harmonia com o todo do qual se faz parte.

Ao entrar na gruta, tinha o objetivo de encontrar o centro da mãe-terra imerso na

escuridão. Sabia que os caminhos fáceis eram os mais perigosos e também sabia que todos os

que ali estiveram não mais retornaram. Temia por decepcionar seu mentor (o pajé) que

aguardava do lado de fora e não conseguir encontrar o caminho de volta. Mas foi com estes

temores e seguindo seu instinto que Carlos (Irihi) descobriu que a terra estava realmente viva

e pronta para recebê-lo em sua completude e beleza. No centro dela, onde suas pulsações se

mostravam mais intensas, Irihi encontrou-se consigo mesmo. Fantasmas antigos o revisitaram

e pôde perdoar seus pais e suas falhas; reconheceu seus erros e aceitou recomeçar fazendo-se

diferente. Uma voz esclarece que Irihi "está nascendo de novo sem precisar entrar na barriga

de sua mãe biológica" (MUNDURUKU, 2008: 140), ou seja, está se renovando como homem

para ser melhor para si e para os outros, pois, de acordo com o próprio texto, "a vida é sempre

mais valiosa quando a dividimos com as pessoas" (Ibidem: 141).

Agora parente, já que conseguiu vencer seus próprios medos e sair do centro da mãe-

terra, Irihi tem "um sentido para viver e lutar" pelas causas indígenas e, principalmente, para

proteger a natureza. Pelas palavras do velho pajé, sua missão seria ensinar os "jovens a

conhecerem pensamento da aldeia-cidade" aproveitando a "riqueza que tem para dar uma

chance para [os] jovens [indígenas] e para o povo de lá [da cidade]" (MUNDURUKU, 2008:

146). Além disso, Irihi também já havia decidido que ao retornar, todo o seu capital seria

voltado à educação.

Por todas as experiências que viveu, não imaginava que o tempo que ficou "perdido"

na mata contava somente sete dias. Depois de uma grande festa na aldeia para sua despedida e

depois de receber um novo nome de presente dos ancestrais – Idibi, que está relacionado à

"água, rio que corre em direção ao mar e que não teme obstáculos ou barreiras" (Ibidem: 153)

– Irihi acorda na mata, com seu corpo todo dolorido e ao lado dos destroços do avião, no

mesmo cenário que deixara após o acidente. Foi capturado por bombeiros e quase dado como

morto depois de muitos dias de buscas. Agora percebe-se um novo homem e trabalha em prol

70

da transformação da sociedade com a formação de jovens conscientes e integrados com a

natureza. Fez as pazes com seu passado e sente-se membro de sua família por permitir a

aproximação dos irmãos. Além disso, carrega uma grande saudade de seu amigo pajé, Aximã,

e não se permite preocupar-se com as coisas pequenas por ter aprendido que "todas as coisas

são pequenas" (MUNDURUKU, 2008: 159).

3.5. Literatura com fins educativos e revolucionários

Após a análise destes dois títulos de Daniel Munduruku, O sinal do pajé e Todas as

coisas são pequenas, cabe-nos esclarecer algumas questões referentes à seleção dos textos. A

primeira diz respeito à importante e profunda valorização da tradição indígena, que, mesmo

colocada à prova em O sinal do pajé, manteve-se firme como sempre se mostrou na realidade,

tanto que vem resistindo há séculos de violência pela parte invasora. A essência contida nestas

narrativas nos conduz a refletir sobre as defesas dos povos indígenas que não se baseiam em

questões somente físicas, geográficas e políticas, mas também, em significativa parte,

ideológicas e culturais. Os constantes estratagemas de preservação da tradição autóctone, que

podemos observar nos dois livros, é a forma como se buscam resguardar os valores outrora

desprezados pelos europeus.

Observamos uma sabedoria muito valiosa para a manutenção da cultura frente ao risco

de evasão dos jovens da aldeia, que foi prepará-los para conscientizar os habitantes da cidade,

e acompanhamos o aprendizado do poderoso empresário sobre a importância do sentimento

de pertencimento não só a uma comunidade, mas ao universo. A necessidade de cativar

aliados que não somente defendam, mas expandam a palavra e a sabedoria ancestrais visando

a um mundo melhor e mais consciente é bastante explícita na formação dos personagens

Curumim e Carlos (Irihi) e, indiretamente, dos possíveis leitores destas narrativas – já que boa

parte do público alvo corresponde a não indígenas.

Em nossa concepção, também a escrita tem sido uma forma de preservação dos

valores ancestrais e da cultura indígena, visto que, ao buscar expandir seus conhecimentos

através da literatura, buscam-se novos caminhos e cúmplices que contribuam para com a

sobrevivência da tradição de povos cada vez mais contidos espacialmente pelas sociedades

não indígenas. Entretanto, vale ressaltar que alguns estudiosos são contrários a este registro,

principalmente dos mitos, por acreditarem não ser esta uma forma de valorização ou

71

preservação. Ao considerar que a tentativa de confinamento dos mitos em materiais didáticos

pode levar a um "perigoso descompasso cultural", Paulo Humberto Porto Borges cita

Bartomeu Melià, que fortalece este argumento: "Um povo que um dia opta por escrever seus

mitos, as belas palavras de suas origens [...], não estará provavelmente em melhores

condições de tê-los sempre presentes na memória" (MELIÀ apud BORGES, 2000: 95). Para

este, o registro dos mitos é uma maneira de acreditar que a morte desse povo e de sua história

está próxima e, portanto, a escrita seria uma maneira de mantê-los vivos. Além disso, Melià

acredita que "o mito, quando não é falado, deixa na realidade de ser mito; volta a sê-lo quando

entra de novo na palavra viva de uma comunidade" (Ibidem: 95).

Por outro lado, a apropriação da escrita, ou seja, dos códigos impostos, é uma nova

realidade para o protagonismo indígena a fim de, através da assimilação gráfica, eles

afirmarem sua diferença, pois não deixam de expressar sua riqueza tradicional e fazem dessa

escrita um instrumento de divulgação com fins educativos e revolucionários no contexto atual

de destruição humana. Em outras palavras, percebemos que a literatura que resulta dessa

longa tradição oral pelas palavras de autores indígenas contemporâneos tem uma pretensão

educativa no sentido de demonstrar a riqueza cultural autóctone, firmar uma identidade social

que, mesmo diante das muitas pressões externas, permanece diferenciada, além de buscar a

valorização dos elementos naturais como forma de preservar as poucas fontes que ainda

sobrevivem na descontrolada devastação humana, mostrando vida e sentido nas manifestações

intrínsecas do meio ambiente e os diversos impasses que resultam da existência e consciência

de um universo não indígena fora e bastante próximo das aldeias.

Essa pretensão educativa que busca assegurar não só a informação, mas a formação do

leitor com as novas e diferentes perspectivas do que normalmente se conhece sobre a História,

pode se apresentar claramente nos títulos indígenas ou não. Nos livros O sinal do pajé e

Todas as coisas são pequenas, de Daniel Munduruku, não temos explicitada esta aspiração,

mas no primeiro identificamos um direcionamento a leitores não indígenas por seu caráter

explicativo e seleção vocabular. Vejamos: "Nas aldeias indígenas brasileiras, é costume que

os curumins, garotos prestes a entrar na fase adulta, sejam introduzidos à "casa dos homens"

por um rito de passagem que inaugura essa nova etapa" (MUNDURUKU, 2003: s/p) (itálico

nosso). Ora, para algumas comunidades indígenas esta observação em itálico seria

inteiramente dispensável, já que a palavra que se explica é comum no tratamento social de

alguns povos.

72

Todavia, em Verá: o contador de histórias, de Olívio Jekupé, a comunicação com o

leitor e o evidente desejo de compreensão do universo indígena por parte de suas histórias é

bem mais direta, pois no convite ao livro, o narrador diz:

Acreditamos que trazer à luz algumas histórias que moram dentro dos povos

tradicionais e que lhes revelam a verdadeira dimensão do existir pode oferecer aos

leitores das cidades um outro olhar sobre a existência e, quem sabe, fazê-los

compreender mais e melhor esses povos que permanecem vivos e atuantes nessa

sociedade complexa, que, às vezes, sufoca o sonho da gente.

A consciente menção aos "leitores das cidades" é uma forma clara de elucidar as

proporções que o texto pode tomar. Ao escrever as histórias inspiradas nas narrativas dos

velhos sábios de sua aldeia, podemos entender que o autor não busca ensiná-las aos

moradores de sua comunidade que já as conhecem, mas sim àqueles que não tiveram a chance

de ouvi-las, mas que poderão lê-las. Como bem escreveu Benjamin, "Quem escuta uma

história está em companhia do narrador; mesmo quem a lê partilha dessa companhia" (1994:

213). Além disso, esse fragmento de Jekupé não somente dialoga com o texto de Munduruku,

Todas as coisas são pequenas, pelo fato de mencionar a "verdadeira dimensão do existir" e

"um novo olhar sobre a existência" a partir dos conhecimentos indígenas, como também

argumenta a favor da escrita como forma de transformação dos "leitores das cidades".

Outra questão que nos motivou na escolha dos textos de Daniel Munduruku e sobre o

qual realizamos a discussão no início deste capítulo foi o forte aspecto narrativo proveniente

da oralidade dos povos indígenas. A presença de narradores e de narrativas de base oral é

percebida em muitas passagens de ambos os livros analisados, trazendo à baila uma tradição

que faz da palavra, enquanto realização vocal, o principal meio de comunicação.

Em uma das seções introdutórias deste capítulo mencionamos os pontos textuais e

extratextuais que auxiliariam nossa compreensão deste universo narrativo nos textos de

literatura indígena contemporânea e desenvolvemos a parte referente aos aspectos

extratextuais – argumentando que a influência das narrativas dos velhos sábios na escrita e

consciência dos autores indígenas é uma forma de confirmar a importância da oralidade nesta

manifestação literária. Agora que já conhecemos uma parte do enredo de O sinal do pajé e de

Todas as coisas são pequenas podemos abordar algumas passagens textuais que nos revelam

a importante influência da oralidade na escrita de textos literários indígenas.

Pensemos inicialmente nessa assertiva de Walter Benjamin: "o narrador retira da

experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as

coisas narradas à experiência dos seus ouvintes" (1994: 201). Nela, o verbo "contar" está se

73

referindo ao ato de relatar detalhes de uma história, mas, se formos mais longe e utilizarmos

outra significação para este verbo, considerando sua importância no aspecto narrativo,

podemos usá-lo no sentido de somar, já que seus ouvintes são agraciados com as experiências

relatadas, incorporando-as às suas. Nesta ação, portanto, há uma soma por entendermos que a

narrativa é uma forma enriquecedora de transmitir sabedorias e que, se bem entendida,

acresce conhecimentos na vida de seus ouvintes. Sendo assim, ampliamos a afirmação de

Benjamin acreditando na magnitude do ato de narrar.

Em O sinal do pajé, por exemplo, encontramos vários diálogos que não se resumem

simplesmente em ilustrar a fala dos personagens, mas também em transmitir sabedorias que

advêm das ascendências milenares de seus emissores. Quando a avó de Curumim o questiona

sobre o que ele consegue ver através da panela de barro e o conduz à origem dos elementos

utilizados na confecção do objeto pela indução mnemônica, ela busca fazê-lo compreender a

importância da tradição para as comunidades indígenas e para cada membro do grupo

responsável por sua conservação. Ela poderia ter sido direta ao tratar sobre este assunto com o

neto, mas preferiu que ele articulasse seus pensamentos a partir de elementos que ela

introduzia calmamente na conversa, como modo de persuadi-lo. Depois de Curumim elaborar

sua própria explicação sobre a peça, a sábia anciã tratou de desenvolver suas percepções a

respeito do que queria, complementando com justificativas e exemplos sua narrativa.

Ao desenvolver um pouco mais seus pensamentos a respeito da Tradição, a avó de

Curumim o faz mergulhar nas ainda inconscientes respostas que buscava. Segundo o narrador

de O sinal do pajé, o menino "prestou atenção em todas as palavras que saíam da boca da

anciã. Curumim sabia que elas lhe seriam úteis algum dia" (MUNDURUKU, 2003: 33). Esta

cena é bastante característica de narradores e ouvintes no ato enunciativo e, além disso, nos

mostra a preocupação do ouvinte de conservar na memória as histórias ouvidas como forma

de vencer o tempo e mantê-las vivas. Para Walter Benjamin, esta é uma outra importante

característica da narrativa, pois ela "conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é

capaz de se desenvolver" (BENJAMIN, 1994: 204). Do mesmo modo, a avó de Curumim

afirma que a "Tradição não é uma lembrança fugaz da vida; ela é memória viva"

(MUNDURUKU, 2003: 32), ressaltando o caráter duradouro das histórias que alimentam a

cultura e são mantidas através das narrativas que se estendem ao presente.

Em Todas as coisas são pequenas, percebemos a sabedoria narrativa nas

manifestações orais do pajé, ou seja, quando o narrador transmite diretamente a fala deste, a

fim de manter a natureza das palavras. Uma das associações que fazemos ao pensar em "O

74

narrador", de Walter Benjamin, é com o fragmento que se segue: "Ele parou de falar por um

tempo. Era um hábito que tinha quando narrava as histórias. Eu sempre queria apressá-lo, mas

ele comumente dizia que não adiantava. 'Quem fala tudo muito rápido acaba não dizendo

nada'" (MUNDURUKU, 2008: 65). Como podemos observar, o tempo era uma espécie de

divisor de mundos, pois o pajé tinha seu tempo de fala e dosava suas histórias, sabendo o

momento certo de começar e parar seus pensamentos, permitindo uma ruminação de suas

palavras. Já o inconstante homem da cidade era ansioso e estava habituado às rápidas

informações, que são cambiáveis a cada troca de minuto. Este "queria ouvir tudo de uma vez,

mas [aquele] insistia em pausar sua fala" (Ibidem: 53). Como afirmou o filósofo alemão,

"metade da arte narrativa está em evitar explicações", contrapondo essa ideia ao fato de as

informações serem carregadas de esclarecimentos. Para ele, o fato de a cada dia recebermos

novas e detalhadas notícias não nos faz conhecedores de histórias surpreendentes, mas sim,

informados. Em suas palavras, "o extraordinário e o miraculoso são narrados com a maior

exatidão, mas o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor" (BENJAMIN, 1994:

203). Eis aí o provável segredo do sábio narrador: cativar o ouvinte/leitor com as informações

essenciais da história, oferecendo asas para seu próprio voo, sem que ele se esqueça de onde

partiu. Dito de outra maneira, a melhor narrativa é aquela que permite a seu ouvinte/leitor

tomar rumos imagéticos e mnemônicos inimagináveis a partir de sua realização como tal.

Talvez aí esteja a explicação para a relação que buscávamos fazer entre a Tradição e o

narrador.

75

4. RELAÇÕES ENTRE O MOVIMENTO INDÍGENA BRASILEIRO E A

LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL

4.1. O domínio cultural alheio e os sistemas de notação

Antes de entrarmos de fato nos assuntos que pretendemos desenvolver nesta parte do

trabalho, é importante que façamos uma ponte entre este e os capítulos anteriores. Como

percebemos, o foco no primeiro e segundo capítulos foi bastante literário, pois pretendíamos

mostrar, através dos textos escritos por autores indígenas, a presença e importância da

oralidade, da voz, da tradição autóctone e do narrador na configuração destas (ainda pouco

abrangentes) manifestações escritas.

Nossa pretensão em percorrer os textos escritos pelos descendentes dos primeiros

povos foi mostrar a riqueza literária e a sabedoria cultural presentes na voz que se faz escrita

pelos escritores remanescentes, pois, como já mencionamos em outros momentos deste

trabalho, a escrita de seus textos é baseada nas muitas histórias (ou melhor, mitos) ouvidas

pelos sábios e que perpassam gerações. Justamente por estes mitos fundarem não somente a

tradição dos povos que deles se alimentam, mas também a identidade e, sobretudo, por eles

serem vinculados estritamente à oralidade, muitos acreditam que há um enorme risco de

extinção das manifestações indígenas naturais, por seus escritores se apropriarem da escrita

como forma de registro das histórias de sua comunidade.

Entretanto, a apropriação dos códigos dominantes – como a escritura – como

estratégia não só de registro, mas de expansão e divulgação dos pensamentos autóctones, é

uma das lutas que muitos descendentes, desaldeados ou não, vêm travando como forma de

manter viva a chama ancestral. Daniel Munduruku escreve em seu livro O caráter educativo

do movimento indígena brasileiro (1970-1990), resultado de sua tese de Doutorado a respeito

do protagonismo indígena que eclodiu na década de 1970, que "a apropriação de códigos

impostos era de fundamental importância para afirmar a diferença e lutar pelos interesses, não

mais de um único povo, mas de todos os povos indígenas brasileiros" (MUNDURUKU, 2012:

45). Neste importante livro, o autor cita o trabalho de Silvia Caiuby Novaes, assumindo como

simulacro este domínio cultural alheio como forma de libertação e mudança: "o simulacro é a

representação de si a partir do modelo cultural do dominador, é paradoxalmente a

possibilidade destes sujeitos políticos atuarem no sentido de romperem a sujeição a que foram

historicamente submetidos" (NOVAES apud MUNDURUKU, 2012: 44).

76

No que concerne ao âmbito indígena, este rompimento à sujeição historicamente

conhecida através do modelo cultural que contribuiu para sua submissão é ainda mais

desafiante, justamente por se tratar da utilização das estratégias de poder que outrora os

prejudicaram. Embora Daniel Munduruku e Silvia Caiuby Novaes não estejam se referindo

especificamente à escritura, mas sim a diversos fatores ideológicos que contribuem para a

(in)subordinação de indivíduos, trataremos aqui, principalmente, da escritura, acreditando ser

ela uma importante arma de resistência e transformação.

Percebemos isso de forma bastante clara e explicativa no livro La voz y su huella, de

Martin Lienhard. Nesta obra, o autor nos apresenta os conflitos entre a escritura e a oralidade

surgidos no choque étnico-social da Conquista do continente americano e explica a

coexistência dessas distintas (e complementares) formas de comunicação antes e depois da

chegada dos europeus. Expressamo-nos dessa forma por compreendermos que antes da

Conquista já existiam sistemas gráficos de notação entre as comunidades autóctones que

habitavam o continente, mas era a oralidade que predominava na comunicação. Esses

sistemas de notação funcionavam como auxiliares mnemotécnicos para a conservação e

reprodução dos discursos verbais, não significando, pois, que o sistema global de

comunicação verbal deixasse de ser predominantemente oral11

. Seu surgimento no seio das

sociedades andinas e mesoamericanas, segundo o trabalho de Lienhard, tem raiz na

necessidade de racionalizar a administração complexa e fixar os méritos histórico-

genealógicos das castas hegemônicas.

Entretanto, o autor nos elucida que "la irrupción de la cultura gráfica europea fue

acompañada por la violenta destrucción de los sistemas antiguos”12

(LIENHARD, 1990: 53),

marcando como invenções do demônio os sistemas de notação autóctones e desvalorizando a

comunicação oral que prevalecia entre estas comunidades. Dessa forma, a literatura de

tradição europeia buscava se manter como única prática literária no continente e "las

literaturas orales – si es que se incorpora este concepto – no [serían] sino supervivencias

arcaicas destinadas a desaparecer a breve o mediano plazo"13

(Ibidem: 57). Ainda segundo

Martin Lienhard, a literatura latino-americana é o resultado desse enfrentamento entre a

oralidade (especialmente indígena) e a tradição letrada de procedência europeia e, em suas

palavras,

11

Cf. LIENHARD, M. La voz y su huella: Escritura y conflicto étnico-social en América Latina (1492-1988).

Ciudad de la Habana: Casa de las Américas, 1990. p. 46. 12

"a irrupção da cultura gráfica europeia foi acompanhada pela violenta destruição dos sistemas antigos". 13

"as literaturas orais - se é que se incorpora este conceito - não [seriam] senão supervivências arcaicas

destinadas a desaparecer em curto ou médio prazo".

77

La destrucción del sistema antiguo, basado en una articulación equilibrada entre

palabra archivadora y palabra viva, y la imposición arbitraria de un nuevo sistema en

el cual el predominio absoluto de la 'divina' escritura europea relega a la ilegalidad

las diabólicas 'escrituras' antiguas, marginando al mismo tiempo la comunicación

oral, constituirá el trasfondo sobre el cual surge la literatura 'latinoamericana'.14

(LIENHARD, 1990: 54-55)

Mesmo que a prática escritural europeia tenha sido imposta de imediato, os sistemas

de notação autóctones demoraram bastante para perder sua vigência e extinguir-se. No

entanto, os espanhóis precisavam das informações contidas nesses registros como maneira de

conhecer melhor os indígenas e, por isso, surgiu a necessidade de resgatar a memória contida

nos códigos já extintos e destruídos. Segundo os novos princípios, eram feitas transcrições

alfabéticas dos muitos códigos autóctones, o que, de certa forma, contribuiu para resgatar a

história dos antepassados indígenas e "preservar, al amparo de la nueva 'legalidad' escriptural,

la memoria de sus valores"15

(Ibidem: 61).

Com esta mobilização, muitos colaboradores coloniais e membros das aristocracias

indígenas trabalhavam no resgate alfabético das antigas tradições orais autóctones e, além

disso, as compilações variavam de idioma de acordo com o compilador e o destinatário. Não

demorou muito para que, em algumas regiões, as necessidades indígenas, agora não mais pré-

hispânicas, mas sim coloniais, passassem a ser expressas através da escritura alfabética,

adequadas às expectativas dos interlocutores europeus e dentro de uma política diplomática

externa e reivindicativa. É neste contexto que surgem as literaturas epistolares indígenas, com

as cartas, os memoriais e as cartas-crônicas16

.

Este breve panorama baseado no que encontramos em La voz y su huella nos mostra a

relação entre os novos e antigos habitantes do continente americano17

, provando ter sido a

escritura, paradoxalmente, uma das estratégias de apagamento e resgate da história e

existência autóctones pela perspectiva europeia. Mormente, é importante ressaltar que os

conflitos não se limitam à escritura e nem mesmo terminam nas epístolas reivindicatórias

indígenas que mencionamos. A luta e a resistência dos primeiros povos (via memória) e de

14

"A destruição do sistema antigo, baseado em uma articulação equilibrada entre palavra arquivadora e palavra

viva, e a imposição arbitrária de um novo sistema no qual o predomínio absoluto da 'divina' escritura europeia

relega à ilegalidade as diabólicas 'escrituras' antigas, marginalizando ao mesmo tempo a comunicação oral,

constituirá o contexto sobre o qual surge a literatura 'latino-americana'". 15

"preservar, ao amparo da nova 'legalidade' escritural, a memória de seus valores". 16

Cf. LIENHARD, M. La voz y su huella: Escritura y conflicto étnico-social en América Latina (1492-1988).

Ciudad de la Habana: Casa de las Américas, 1990. pp. 56-79. 17

Tomamos como base o episódio da "Conquista", no qual os novos habitantes são os europeus e os antigos são

os indígenas.

78

seus descendentes se estendem aos dias atuais e ainda são poucos os espaços nos quais

circulam e em que se permitem ouvir as vozes indígenas.

Por mais que a violação dos códigos autóctones que observamos em La voz y su huella

esteja aplicada aos sistemas gráficos de notação pré-hispânicos da Mesoamérica e da área

andina (sobre os quais Martin Lienhard desenvolve um pouco mais em seu livro, por estarem

funcionalmente mais próximas da escritura europeia), todas as sociedades autóctones

desenvolveram formas particulares de comunicação, ou, de acordo com Lienhard, "algún

sistema gráfico o de notación que correspondiera a sus necesidades concretas"18

(1990: 37).

Os grafismos, as pinturas corporais, a linguagem dos tambores ou até mesmo as decorações

de instrumentos eram formas de representação da linguagem e manifestavam a cultura e a

tradição dos povos.

Portanto, mesmo que alguns indígenas tenham se adaptado a determinados hábitos

europeus (ideologicamente dominantes) e se apropriado de algumas estruturas simbólicas

(como a escritura) para reivindicarem seus direitos e expressarem suas insatisfações, a

manutenção e incorporação de seus costumes tradicionais é inevitável nessa nova

configuração literária. Isso porque suas manifestações escritas – baseadas nos preceitos

modernos trazidos pelos colonizadores – ainda trazem uma forte influência da oralidade,

calcada em suas crenças e valores.

Daniel Munduruku, na introdução do livro Metade cara, metade máscara, de Eliane

Potiguara, discorre de forma tocante sobre o que podemos considerar essa transformação dos

objetivos ou métodos indígenas para o reconhecimento de sua cultura e luta. O autor diz:

Daqueles primeiros líderes muito se viu e ouviu, mas pouco se leu. O povo brasileiro

viu seu trabalho e ouviu suas palavras; viu o seu sangue escorrer pela covardia das

emboscadas armadas pelos que eram atingidos pelas balas de suas palavras; viu suas

danças embaladas pelas denúncias de desrespeito; ouviu suas músicas, lamentos de

resistências; viu gestos, atitudes, dignidades, verdades; ouviu murmúrios, queixas,

lamentos, choros e rituais de quem briga para sobreviver.

Agora é hora de ler as palavras que foram ditas ao papel. Palavras que chocarão,

trarão vertigens, denúncias, tristeza, verdades, realidades. Realidades sombrias,

frágeis, únicas. Realidades marcadas pela dor, pela alegria, pela esperança, pelo

sucesso. Realidades ditas pela poesia, pela prosa, por números, por nomes.

Realidades mostradas com as singularidades das “visões indígenas”.

(MUNDURUKU, 2004: 15-16) (itálicos nosso)

Uma das coisas que podemos observar de imediato neste excerto é, sem dúvida, a

importância da palavra e a preocupação em mantê-la viva mesmo que no papel. Ela é a arma

que defende e ameaça aqueles que se dispõem a falar e a escrever, pois, como o próprio

18

"algum sistema gráfico ou de notação que correspondesse as suas necessidades concretas".

79

fragmento denuncia, sangues escorriam por "emboscadas armadas pelos que eram atingidos

pelas balas de suas palavras". Além disso, fica-nos bastante clara, por esse fragmento, a

mudança de perspectiva no que diz respeito ao veículo da mensagem, assim como

percebemos que o teor do discurso no conteúdo a ser transmitido também se modifica. Se

antes se podia ver e ouvir o trabalho e as palavras dos primeiros líderes, agora se pode ler

através de "palavras ditas ao papel" a dor que persiste e outras várias realidades. Ademais, o

que se expressa pelas distintas formas de comunicação – fala e escrita – não é o mesmo nos

dois momentos. Além das temporalidades intuídas – passado, presente e futuro – temos a

resistência, os murmúrios e os lamentos como forma de sobrevivência contrapostas às "visões

indígenas", às denúncias e às vertigens causadas pelas palavras inspiradas pelos ascendentes.

Ou seja, percebemos que, enquanto escrita, a palavra indígena se mostra muito mais

desafiadora, tanto por transitar em diferentes espaços – outrora impossíveis –, quanto por

comprometer-se a chocar, causar vertigem e denunciar. Os murmúrios e queixas que insinuam

uma manifestação amedrontada (e aparentemente oprimida), pronunciada em lamentos

baixos, dão espaço a palavras de ordem que revelam liberdade de expressão e "sucesso", além

de esperança em dias melhores.

Mencionamos parte deste processo conectivo – unindo palavras ditas e palavras

escritas – no decorrer deste trabalho acadêmico quando analisamos os textos literários de

Olívio Jekupé e Daniel Munduruku. Neles encontramos marcas de oralidade que ultrapassam

as barreiras do tempo e se reconstituem enquanto verdade e outras possibilidades de se

conhecer nossas origens e percursos. São vozes que materializam a palavra no papel e

permitem outras leituras do universo e narrativas que se revitalizam a cada materialização oral

ou escrita e a cada experiência que se obtém. Mas como vimos neste último fragmento de

Daniel Munduruku, isso não foi sempre assim. Antes de encontrar os caminhos do papel, as

palavras (ou murmúrios) indígenas foram bastante ignoradas e, para que hoje possam ser

escritas e até mesmo existir, foi necessário muito sangue escorrido pelos incansáveis e

diversos inimigos.

Neste capítulo, portanto, procuraremos mostrar como se deu esta conquista da palavra

escrita e, principalmente, a partir de que momento pode-se acreditar na conquista de espaço

para a audição das vozes e dos direitos indígenas. Para tanto, utilizaremos os livros O caráter

educativo do movimento indígena brasileiro (1970-1990), de Daniel Munduruku, Metade

cara, metade máscara, de Eliane Potiguara, e Contrapontos da Literatura Indígena

Contemporânea no Brasil, de Graça Graúna.

80

4.2. O protagonismo indígena e seu aspecto formativo

Em seu livro intitulado O caráter educativo do movimento indígena brasileiro (1970 -

1990), oriundo de seu projeto de Doutorado em Educação, pela Universidade de São Paulo

(USP), Daniel Munduruku problematiza diversas questões que motivaram a organização e

luta de jovens indígenas pelos direitos e respeito aos descendentes dos primeiros povos que

viviam em condições "pouco dignificantes" e que resultou na organização pan-indígena mais

conhecida como Movimento Indígena brasileiro.

A começar pelo distinto gênero textual utilizado pelo autor para desenvolver sua tese,

mostrando desde já um comprometimento com sua cultura e com seu povo, a incorporação da

tradição oral é indiscutivelmente percebida no direcionamento de seu discurso aos seus

parentes indígenas. Como o próprio autor esclarece na introdução de seu livro, ele narra

"como se estivesse redigindo uma carta aos [seus] parentes indígenas" e justifica dizendo que

"essa foi uma opção que [fez] para tentar chegar mais próximo de [seus] parentes sem perder

a organização e a profundidade acadêmicas" (MUNDURUKU, 2012: 19). Por estas

colocações iniciais já podemos observar algumas rupturas não só do estilo acadêmico de

escrita textual, mas também do próprio fato de um indígena, ideologicamente condicionado a

viver na floresta (pois ainda há muitos que acreditam ser este o único espaço em que transitam

– e se não mais transitam é porque foram assimilados e, portanto, não são mais indígenas),

estar escrevendo uma tese como requisito ao título de doutor por uma das maiores

universidades brasileiras e, posteriormente, publicá-la em livro. Esta é, sem dúvida alguma,

uma das maiores barreiras derrubadas: a do preconceito étnico-social. Quanto aos padrões de

escrita que são quebrados em sua tese, observamos, inicialmente, o fato, que já mencionamos,

de ela estar sendo direcionada aos seus parentes indígenas e não, necessariamente, ao corpo

docente que o avaliará e muito menos aos futuros pesquisadores que utilizarão sua pesquisa

como referência. O segundo ponto se refere à utilização da primeira pessoa no singular para

pronunciar seu discurso – algo que não é tão comum em trabalhos acadêmicos – e, por final, o

terceiro diz respeito ao gênero textual escolhido para se aproximar ao máximo do "estilo

indígena baseado na oralidade".

Neste trabalho, o autor aponta alguns contextos sociais que marcaram e provocaram a

organização de jovens indígenas na década de 1970 com o diferencial de ter em sua pesquisa

o testemunho de alguns dos líderes deste movimento. Antes de mencionar, de fato, o que

ocasionou esta organização de vários indígenas de diversas etnias, o autor explica que, desde

81

a invasão dos europeus, a cultura autóctone tem sido posta em um "patamar pouco

dignificante" e que a história em seus muitos desdobramentos só tem sido contada a partir da

perspectiva invasora. Além disso, a forte destruição da natureza, o genocídio e as tentativas de

domínio cultural, político e religioso eram fatores que cada vez mais contrariavam os

descendentes dos primeiros povos e por estes diversos motivos acreditavam que era

importante atuar de outras maneiras e em outros setores.

Com base em alguns autores, Munduruku explica o paradigma integracionista que

menosprezava a cultura e sabedoria indígenas, acreditando ser a cultura europeia superior e,

futuramente, única. Sendo assim, em um dado período de tempo, as culturas "inferiores"

estariam "fadadas ao desaparecimento". Dessa forma, por considerarem os indígenas

incapazes e, por isso, necessitados de tutela e direção para se integrarem à sociedade não

indígena, houve um estímulo de criação por parte do Estado para a atuação do Serviço de

Proteção ao Índio (SPI), em 1910. Este órgão governamental, sob a crítica de muitos

intelectuais, não passava de uma estratégia de aceleramento do processo integracionista e, de

certa forma, o atestado de incapacidade da própria gestão interna das comunidades

remanescentes. Segundo Daniel Munduruku, estimulados por esta política governamental,

muitos acreditavam que com o passar do tempo a identidade e a diversidade cultural dos

indígenas poderiam "ser mudadas para inseri-los na comunhão nacional" (MUNDURUKU,

2012: 33).

Com o golpe militar, em 1964, o SPI foi extinto e posteriormente substituído pela

Funai (Fundação Nacional do Índio, em 1967). Sob direção militar, "o surgimento da Funai

deu-se no auge da política integracionista" (MUNDURUKU, 2012: 35) e manteve

inicialmente uma "política paternalista e assistencialista", além de evidenciar através de sua

atuação "a certeza de que as populações indígenas seriam assimiladas ou integradas à vida

nacional" (Ibidem: 35). Portanto, mais uma vez, delegava-se a administração e controle das

relações indígenas a um órgão estatal que trazia nas entrelinhas de sua existência e

formulação a ideia de tutela, controle e integração nacional dos povos indígenas. A respeito

desta tutela política, Clarice Cohn escreveu, em seu artigo intitulado "Tutela nunca mais", que

"o Estado tutor é aquele que decide pelos índios e, sob pretexto de cuidar deles, os mantém

sob controle" (COHN, 2013: 18). A propósito deste texto, a autora discorre justamente sobre a

representação jurídica que se firmava na idealização de garantias legais para os remanescentes

indígenas, mas que mascarava a integração gradativa destes povos à sociedade não indígena, a

fim de que as diversidades fossem minimizadas. Como ela nos explica,

82

Na década de 1950, o Estado brasileiro via o índio como alvo de uma inevitável e

gradativa integração à sociedade nacional. Desde o Marechal Rondon e a criação do

SPI, em 1910, estabeleceu-se que o papel do governo seria tornar essa marcha para a

civilização a mais indolor possível. Criaram-se Frentes de Atração e Pacificação,

postos indígenas nas aldeias e todo um aparato institucional para que o Estado

pudesse tutelar o índio. Os indigenistas funcionários do SPI (depois Funai) deveriam

garantir que essa transição se desse de modo mediado e sem violência. Ao fim, ele

se tornaria um índio integrado, indistinto no meio dos demais brasileiros. (Ibidem:

18)

Por sua vez, Daniel Munduruku defende que a nova Constituição Federal do Brasil,

em 1988, "inaugurou uma nova concepção de política indigenista", garantindo certa proteção

à diversidade cultural e reconhecendo que é nesta diversidade que reside "a necessidade de

proteção jurídica especial destinada aos povos indígenas" e não na "incapacidade civil"

(MUNDURUKU, 2012: 37). O capítulo constitucional dedicado aos povos indígenas aponta o

fracasso da política nacional no sentido de esta não ter alcançado a tão almejada assimilação e

muito menos o completo extermínio desses povos. Ou seja, como não conseguiu igualá-los ou

sequer aproximá-los cultural e identitariamente do modelo considerado nacional, o Estado

teve que abrir espaço na Constituição para abarcar a tão temida e desprezada diversidade

brasileira. Pelo artigo 231 desta, a União oficializa que são reconhecidos aos índios sua

organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as

terras que tradicionalmente ocupam, competindo a ela (União) demarcá-las, proteger e fazer

respeitar todos os seus bens19

. A respeito desta conquista oficial, o historiador da Unicamp,

John Monteiro, afirma que "pela primeira vez, uma Constituição pressupõe que os índios

farão parte do futuro do país" (CAMARA, 2013: 39).

Considerando estas informações elencadas e discutidas no primeiro capítulo de seu

livro – basicamente a respeito do paradigma integracionista, do Serviço de Proteção ao Índio e

da Funai –, Daniel Munduruku acredita que "foi a ingerência da sociedade civil que

efetivamente passou a mobilizar as forças indígenas no sentido de sua organização"

(MUNDURUKU, 2012: 41), ou seja, antes da promulgação da Constituição de 1988 e no

calor das políticas integracionistas é que se adquiriu uma consciência mais ampla sobre os

direitos indígenas e se efetivou a organização de lideranças de diversas etnias. A respeito

deste acontecimento, Graça Graúna discorre: "Em meio ao estado de opressão o movimento

indígena realizou o seu primeiro encontro em 1974, quando reuniu 16 lideranças indígenas,

19

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal,

1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm. Acesso

em: 25 nov. 2015.

83

representantes de 9 tribos" (GRAÚNA, 2013: 26) em Diamantina, Mato Grosso. Embora estes

encontros (totalizando 12 até 1979) tenham sido estimulados forte e diretamente pelo

Conselho Indigenista Missionário (CIMI), foi através deles que se tornou possível a criação

da União das Nações Indígenas (UNI, em 1980) e, principalmente, a ideia de protagonismo

indígena, pois foi por meio das reuniões promovidas por este Conselho que os indígenas

tomaram ciência de que os problemas não se limitavam a suas aldeias e aos seus grupos

étnicos, mas que existia um problema bem maior que envolvia a todos os remanescentes dos

primeiros povos e por isso deveriam se unir para, juntos e maiores, resistirem.

Além disso, foi neste contexto que o termo "índio" adquiriu um novo sentido para a

militância indígena, que se reapropriou do epíteto de forma política para que este

representasse a organização que se fortalecia naquele momento (de consolidação do

Movimento Indígena, na década de 1970). Dessa forma, um termo que outrora consideravam

depreciativo – e por isso rechaçavam – foi reapropriado, de modo a representar justamente a

força e não mais o "ponto fraco" (pela perspectiva de atraso ao progresso) dos povos

indígenas. Se antes ser "índio", era algo estigmatizado e que carecia ser consertado

(assimilado ao padrão nacional), a partir da retomada do termo pelo Movimento passou-se a

acreditar que ele representava o poder pan-indígena, que vinha alcançando cada vez mais

espaços. Segundo Daniel Munduruku, o uso político do conceito índio, além de representar

uma "nova categoria de relações políticas", "faz com que o grupo reivindique para si o status

de representante legítimo das diversas sociedades indígenas" (MUNDURUKU, 2012: 51, 44)

e é deste dado que parte a noção de simulacro, apresentada por Caiuby Novaes, e

caracterizada pela apropriação de códigos impostos que mencionamos anteriormente.

Mormente, o fato que realmente diferencia o Movimento Indígena de qualquer

organização anterior é que "era a primeira vez que os povos indígenas podiam propor uma

verdadeira política que tinha uma identidade própria" (Ibidem: 46), algo que representava a

totalidade e o consenso entre as diversas etnias e que formava uma identidade pan-indígena.

Todavia, foi necessário um reconhecimento das semelhanças entre as culturas – visto que

cada etnia tem suas particularidades – para que, a partir disso, se formulassem estratégias de

ação. Eis que a própria comunhão do grupo já insinuava uma das principais semelhanças entre

eles, que era a de dar "mais importância ao social e menos ao individual" (MUNDURUKU,

2012: 47).

A pesquisa de Daniel Munduruku que resultou na publicação deste livro (O caráter

educativo do movimento indígena brasileiro) se concentra nas três primeiras décadas do

84

Movimento Indígena brasileiro, nos anos de 1970, 1980 e 1990. Correspondente à primeira

década, já mencionamos as primeiras reuniões estimuladas pela Igreja Católica, representada

pelo CIMI, nas quais as próprias lideranças começaram a tomar a frente dos encontros ao

ponto de criar, em 1980, a União das Nações Indígenas. Uma das maiores e iniciais

preocupações deste grupo, na opinião de Munduruku, "foi a de manter diálogo com as

lideranças regionais, locais e com o Estado, para tornar visível sua existência e para mostrar

que era possível construir uma aliança permanente entre os povos para a luta por seus

direitos" (MUNDURUKU, 2012: 54). Ou seja, depois destas organizações foi possível obter

uma maior consciência dos direitos que os indígenas mereciam, mas que ainda não possuíam

como cidadãos pertencentes a uma nação – embora este pertencimento e reconhecimento seja

problematizado pelo fato de o Brasil ser uma construção ideológica sobre os escombros dos

primeiros habitantes, seus ascendentes.

Novas entidades de apoio foram criadas e muitos outros militantes se associaram à

causa, aumentando ainda mais a mobilização e visibilidade indígena. Sobretudo, notou-se um

aumento considerável na população remanescente dos autóctones, que, na década de 1950,

correspondia a aproximadamente 100 mil indígenas e, no censo dos anos 2000, já

contabilizava 701.46220

. Podemos considerar, como um dos fatores responsáveis por este

aumento, que o protagonismo indígena e a mobilização dos grupos tenham respaldado a

autoidentificação e fortalecido a autoafirmação e o reconhecimento cultural desses indivíduos.

Referente a este crescimento populacional, Graça Graúna cita o trabalho de Egon Heck, que

associa este fenômeno a "uma vitória da esperança indígena sobre a sentença de seus algozes

de 500 anos" e a um "reconhecimento dos povos ressurgidos que, (re)negados ao longo da

história oficiosa, agora se reconhecem 'em suas origens e identidades indígenas'" (HECK apud

GRAÚNA, 2013: 39).

Esta "macro" representação do Movimento Indígena no cenário brasileiro fez com que

muitos outros grupos se mobilizassem politicamente ao ponto de se organizarem

paralelamente em "micro" movimentos. Não podemos negar a notoriedade que o Movimento

Indígena ganhou e deu aos interesses políticos dos diversos povos, assim como era esperado

que outras mobilizações ocorressem seguindo os modelos de atuação do Movimento, mas

com ideias específicas que coubessem a cada território. Em outras palavras, é como se o

Movimento Indígena tivesse aberto as portas com as questões mais emergentes para que

outras menores, mas não menos importantes, pudessem passar. Tanto que, após a aprovação

20

Cf. GRAÚNA, Graça. Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil. Belo Horizonte: Mazza

Edições, 2013. p. 41.

85

da Constituição de 1988, houve uma "retirada estratégica" do Movimento Indígena para dar

espaço "às organizações regionais que passaram a questionar a representatividade dos líderes

nacionais" (MUNDURUKU, 2012: 56). Isto significa, entre outras coisas, que a voz coletiva

que provou à nação brasileira sua diversidade étnica e o fracasso da política integracionista –

além de lutar pela oficialização de seus direitos políticos, culturais e territoriais – mantém

viva em sua macro-estrutura as diversidades que a constituem, reconhecendo o seu aspecto

limitado de representação das várias etnias.

Se a aprovação da Constituição representou uma vitória ao Movimento Indígena e

agora sua atuação se fragmenta ideologicamente entre as micro-organizações, cabe a todas as

lideranças a manutenção dos poderes e direitos adquiridos por lei. Em uma conferência da

Organização das Nações Unidas (ONU), Sônia Guajajara (filha do povo Guajajara –

Maranhão – e atual porta-voz do Movimento Indígena no Brasil) faz comentários sobre as

ameaças aos direitos indígenas adquiridos pela Constituição. Ela diz que "se antes lutávamos

para ter nossos direitos, hoje lutamos para não perdê-los" (CAMARA, 2013: 40), defendendo

a capacitação de jovens como uma das estratégias de segurança adotadas pelos líderes

indígenas. A respeito deste posicionamento de Guajajara, John Monteiro corrobora, afirmando

que "as lideranças perceberam que precisam se capacitar, e cada vez mais elas frequentam

cursos universitários" (Ibidem: 40).

Com a necessidade de integração aos conhecimentos sociais, políticos e tecnológicos

da comunidade moderna – agora não mais obrigados pelo Estado, em sua política

integracionista, mas sim impulsionados pela inevitável forma de sobrevivência nos territórios

cada vez mais reduzidos – muitas lideranças indígenas autorizam e até mesmo ordenam a

capacitação de jovens de suas aldeias nas áreas mais carentes da comunidade e naquelas que

se apresentam mais escassas de atuação indígena e/ou comprometida com o bem estar destes

povos. Para essas lideranças, se a política nacional vigente, distribuída entre os diversos

setores de relações humanas, não contempla todos os povos e não sana todas as necessidades

da população (em alguns casos, nem mesmo as básicas), formar os jovens indígenas para

buscarem a especialização adequada para atuarem nessas áreas seria uma maneira de melhorar

a qualidade dos órgãos gestores, melhor distribuir os serviços entre a população, zelar pelos

direitos adquiridos e, principalmente, prestar assistência adequada às comunidades indígenas.

É importante salientar que a questão não se resume em simplesmente selecionar e

enviar os jovens para a cidade e nem mesmo em preparar um não indígena para atuar fora da

aldeia. Por trás de toda esta credulidade, há o devido preparo dos escolhidos como forma de

86

conscientizá-los de sua importância para a comunidade e de prepará-los para os possíveis

obstáculos que poderão vir. Dessa forma, dependendo de sua incumbência, eles serão

capacitados para levar a sabedoria indígena para além de sua aldeia e buscar fora dela a

sabedoria necessária para melhorar a qualidade de vida de seu povo, bem como colaborar para

a melhor representação política e cultural deste perante a sociedade capitalista.

Podemos considerar, de certa forma, que estas são características do protagonismo

indígena percebidas em diversas áreas do saber, visto que muitos já não esperam mais por

uma mudança, mas atuam pela mudança que querem, abrangendo os diversos setores sociais.

Não podemos negar, portanto, que a atuação do Movimento Indígena, articulado no período

pré-constituinte, contribuiu demasiadamente para que as causas indígenas fossem levadas ao

bojo político nacional não por vias de integração (como pretendia o Estado), mas sim como

estratégia de manutenção de direitos e sobrevivência cultural destes povos. Com tudo isso, é

importante destacar que as lideranças "disseminavam entre seus pares uma visão nova de

participação na história brasileira. Ou seja, a atuação do movimento social obrigou a história

escrita até então a mudar de rumo e o Brasil a acolher – ainda que compulsoriamente – seus

primeiros habitantes" (MUNDURUKU, 2012: 211).

4.3. O caráter educativo do Movimento e a Literatura Indígena Contemporânea no

Brasil

Após analisarmos todo este panorama apresentado por Daniel Munduruku em O

caráter educativo do movimento indígena brasileiro (1970-1990) e verificarmos a

apropriação dos códigos dominantes pelos indígenas como maneira de conservação dos

direitos e da cultura, cabe-nos ressaltar a proposta do autor em considerar que por trás da

atuação do Movimento houve uma tendência educativa, ainda que inconsciente e

despretensiosa.

Podemos considerar que este caráter educativo toma duas distintas direções: uma de

formação interna, entre as comunidades indígenas, e outra externa entre a população não

indígena. A primeira ocorre devido à mobilização dos povos e da modificação do olhar dos

próprios indígenas para consigo (sua identidade) e seu pertencimento étnico (o que, de certo

modo, ocasionou o aumento da população autodeclarada no censo de 2000). Além disso,

podemos acrescentar, como influência pós-constituinte, a consequente formação especializada

87

e a capacitação indígena que mencionamos anteriormente. Já a segunda ocorre em âmbito

nacional, (re)descobrindo os povos e modificando o olhar que a sociedade não indígena

construiu com relação aos autóctones e seus descendentes. Daniel Munduruku sugere que a

maior contribuição dada à sociedade brasileira pelo Movimento Indígena foi a de revelar "a

existência da diversidade cultural e linguística", "através de um rosto que o Brasil ainda não

conhecia" (MUNDURUKU, 2012: 222 e 195), além de funcionar como uma espécie de

"articulador de uma nova consciência entre os indígenas e de aproximação com a sociedade

nacional" (Ibidem: 223).

Como já podemos notar, foi neste contexto de mobilização interna e externa que a

palavra indígena ganhou força, passando a responder por si e reivindicar seus interesses, mas

não somente através da oralidade como também da escrita. Ao ser interrogado por Daniel

Munduruku a respeito do caráter educativo no Movimento, Ailton Krenak, importante líder

indígena e reconhecido internacionalmente por sua atuação e militância em defesa dos

diversos povos, diz que não consegue ver nos fatos e eventos que marcaram a luta nacional no

período da Ditadura o teor educativo, a não ser que eles sejam buscados como fase da história

brasileira por aqueles que não os viveram. Ou seja, enquanto vivência e no auge dos

acontecimentos, não era tão clara para Krenak a contribuição formativa que se vinha

configurando, mas sim depois, enquanto passado histórico e marco nacional que a

importância das ações se mostram essenciais para o que se construiu ideologicamente como

história. E ao se indagar, no desenrolar de seus argumentos, de "Como passar isso para quem

não viveu" naquela época, Ailton Krenak conclui que "Talvez fazendo literatura"

(MUNDURUKU, 2012: 83), considerando a importância de um registro escrito ou até mesmo

oral, pelas diversas manifestações literárias, como uma das maneiras de conservação da

história.

Eliane Potiguara, em uma entrevista-depoimento dada a Daniel Munduruku, para

ilustrar a parte testemunhal de seu livro a respeito do Movimento Indígena, diz que "temos

vários movimentos, inclusive a literatura indígena é um movimento. Somos nós, os indígenas,

em movimento" (MUNDURUKU, 2012: 129), apontando de imediato que a literatura

indígena também é uma forma de manifestação dos direitos e identidades dos remanescentes.

Através da literatura e do que nos afirma Potiguara neste fragmento, podemos perceber que os

indígenas continuam em movimento e se articulam nas diversas formas de expressão e

comunicação humanas, ou seja, acreditamos ser a literatura um espaço de organização no qual

os escritores indígenas almejam mudanças, através de suas atitudes verbais, no contexto

88

nacional por direitos indígenas. Sendo assim, a literatura segue como uma das formas de

movimento de algumas lideranças.

Como já mencionamos nas análises textuais dos capítulos anteriores, também na

escrita dos textos percebemos a pretensão educativa destes militantes, portanto, o movimento

não é só por se escrever, mas pelo que se escreve. Nos livros de Olívio Jekupé e Daniel

Munduruku, tivemos claramente exemplos de pretensão educativa tanto interna – modificando

o olhar identitário e social dos personagens – quanto externa – permitindo uma amplitude

cultural no qual sua diversidade étnica está inserida. A partir das relações e conhecimentos de

outras culturas, puderam-se notar mudanças no que se (re)conhece sobre si e no que se sabe

sobre o outro, ou seja, a diversidade cultural segue como uma das diretrizes dos enredos e

sobre isso se constroem os melhores caminhos de respeito e compreensão para com o outro.

Retomando resumidamente os textos, temos em O saci verdadeiro não só a

desconstrução de um personagem que fora traçado no imaginário brasileiro unicamente como

um pequeno negro que fuma cachimbo, só possui uma perna e adora travessuras, mas também

o conhecimento de uma outra cultura que se reconhece prejudicada por ser uma das primeiras

de seu território, mas que não pôde se firmar como modelo ou mesmo história (pensada de

forma geral e particularizada). Todo o argumento é dado a partir de um personagem mítico

que nas aldeias é conhecido como sendo indígena, protetor dos animais e chamado de Saci-

Pererê. Além disso, neste mesmo livro temos um exemplo do choque cultural pela escrita, que

era tida pelo pequeno indígena Karaí como uma forma confiável de registro das histórias que

ouvia dos mais velhos, mas que não se revela como tal. Ao entrar em contato com a cultura

que a propagava a fim de aprendê-la, o personagem notou que o Saci que conhecia (através de

palavras ditas por seus ancestrais) estava totalmente desfigurado no papel (ou, melhor

dizendo, na escrita do livro). Outras possibilidades são mostradas como forma educativa e,

além de oferecerem ao público não indígena outras percepções da história, oferecem aos

indígenas um meio de fortalecimento da sabedoria ancestral que carregam como marca

tradicional.

Verificamos algo semelhante em O sinal do pajé, quando Curumim se vê com dúvidas

entre manter a tradição com a qual se identifica ou conhecer a modernidade que o seduz. Suas

dúvidas o conduzem a um mergulho cultural que faz com que ele conheça ainda mais sobre

seu povo e se reconheça como força e peça determinante para a permanência e duração

tradicional de sua cultura, fazendo assim com que não só ele aprenda sobre a sabedoria de sua

comunidade, mas também a dissemine fora das aldeias, entre indivíduos não indígenas. Ainda

89

pensando nesses possíveis aprendizados multiétnicos, temos a completa transformação do

olhar capitalista de Carlos (Irihi), em Todas as coisas são pequenas. Neste livro, de Daniel

Munduruku, o aspecto formativo se torna ainda mais evidente na adaptação de Carlos à

cultura indígena. Este homem que era totalmente voltado ao dinheiro e aos títulos sociais

aprende, depois de se perder na Floresta Amazônica, a conhecer a si mesmo enquanto parte de

um todo e a respeitar as diferenças que até então ignorava, além de descobrir que a cultura

indígena carrega uma sabedoria digna de admiração e propagação.

Ao optarmos pelos resgates desses textos analisados nos dois primeiros capítulos desta

dissertação, levamos em conta o caráter educativo defendido por Daniel Munduruku. Para o

autor, o Movimento Indígena, nas décadas de sua abordagem acadêmica (ou seja, de 1970 a

1990), gerou uma corrente educativa que atingiu indígenas e não indígenas, modificando as

ideologias internas e externas de cada cultura e, principalmente, permitindo que a diversidade

se deflagrasse como realidade nacional. Por considerarmos que, assim como afirmou Eliane

Potiguara, "a literatura indígena é um movimento" (MUNDURUKU, 2012: 129), podemos

comprovar, de forma ainda mais explícita que ainda na contemporaneidade o caráter

educativo do Movimento permanece através da escrita e publicação dos diversos textos

indígenas. Em outras palavras, percebemos que o caráter educativo não se encerrou nas

manifestações políticas que fizeram do Movimento Indígena, nas décadas de 1970, 1980 e

1990, examinadas por Munduruku, um marco nacional dos direitos indígenas, pois, também

através da literatura escrita pelos remanescentes dos povos autóctones, este Movimento segue

em atividade e permanece buscando a formação de novos e melhores olhares para as questões

indígenas.

Sendo assim, nossa aspiração, neste trabalho acadêmico, tem sido mostrar os

desdobramentos do Movimento Indígena na literatura contemporânea escrita pelos

remanescentes dos primeiros povos, que se configura em uma nova maneira de escrita e

percepção da história, pois, através da expressão escrita, os autores indígenas buscam articular

seus comprometimentos políticos e culturais à desconstrução de paradigmas internalizados e à

conscientização dos valores e direitos dos descendentes dos primeiros povos.

90

4.4. A Literatura de sobrevivência em Metade cara, metade máscara

Eliane Lima dos Santos, mais conhecida como Eliane Potiguara, é um exemplo não só

de remanescente das culturas indígenas que resistiram ao extermínio, como também de uma

grande parcela indígena que se apropriou das letras, dos números e dos códigos sociais do

colonizador para, através deles, disseminar a cultura de seu povo. Ela atuou nos momentos

iniciais do Movimento Indígena brasileiro e contribuiu politicamente para a criação e

articulação de vários outros movimentos e organizações, como o primeiro grupo de mulheres

indígenas no país, o Grumin (Grupo Mulher-Educação Indígena). Dentre os objetivos do

Grumin – gerado no ano de 1978, mas juridicamente criado em 1987 –, destacamos o mais

pertinente ao nosso contexto militante que é o de "promover o acesso de mulheres e homens

indígenas e suas organizações às informações, mobilizando-os, influenciando-os na formação

de opiniões" (POTIGUARA, 2004: 54), ou seja, preparar os indivíduos que já estão

organizados para se inteirarem ainda mais das problemáticas que envolvem sua cultura e

identidade a fim de se conscientizarem de sua importância na luta por melhorias e construírem

suas próprias opiniões a respeito da militância.

Eliane Potiguara é uma escritora indígena nascida em 1950 e é descendente do povo

Potiguara, que no século XVI habitava o litoral do Nordeste brasileiro e, com a presença do

“homem branco”, se dispersou entre outros estados brasileiros. Em seu livro Metade cara,

metade máscara, Eliane Potiguara trata de assuntos que marcam sua luta durante muitos anos

pelo reconhecimento da cultura indígena em suas múltiplas identidades étnicas, não somente

perante as autoridades responsáveis política e economicamente pelo país, mas também pela

sociedade em geral que ainda vê no indígena a identidade construída pelos invasores: de

aspecto bárbaro, selvagem e atrasado.

Optamos pela breve discussão do livro Metade cara, metade máscara, de sua autoria,

para destacar algumas características de seu protagonismo indígena e da literatura que

desenvolve como aspecto de seu movimento enquanto ativista. Dentre os diversos fatores

seletivos que nos fizeram escolher este título, destacamos a diversidade temática e, mais

precisamente, a problematização de assuntos referentes aos povos indígenas, tudo isso

associado à poética de suas palavras e à revolta de seus pensamentos, fornecendo um amplo

conhecimento aos seus leitores sobre a generalidade das lutas indígenas. Por seu espírito

militante e sua crítica a variados temas étnicos e nacionais, Eliane Potiguara se tornou uma

das principais e mais antigas lideranças políticas dos assuntos indígenas e procura registrar

91

sua árdua caminhada para a conscientização dos povos e respeito para com seus parentes. Em

Metade cara, metade máscara, a autora nos fornece o testemunho de sua luta pelo direito à

palavra, as diretrizes de sua contribuição para a formação e capacitação de outras lideranças e

sua mobilização escrita e física para que outros indígenas se libertem, através de atitudes

verbais ou sociais em busca da igualdade de direitos e de expressão.

O livro, em si, já é iniciado com um relato de sobrevivência dos predecessores de

Eliane Potiguara, comum a muitos indígenas daquela época. Trata-se de uma narrativa em

terceira pessoa, que mais tarde percebemos se tratar da história ancestral da própria autora

(por dissolver-se em marcas de primeira pessoa sobre o mesmo assunto), mas nela

observamos uma tentativa de impessoalidade, como se deixasse uma lacuna para que outros

indígenas e outros migrantes compulsórios pudessem se reconhecer no relato. Ele consiste na

descrição do cruel e impune assassinato de seu bisavô (denominado “índio X”), em

decorrência do qual as filhas dele – e várias outras famílias amedrontadas – migraram para

Pernambuco e logo em seguida para o Rio de Janeiro. Uma dessas filhas do índio X era a avó

de Eliane Potiguara, que no ano de 1928, com apenas 12 anos, deu à luz sua mãe após ser

violentada sexualmente pelo colonizador21

.

Embora o narrador afirme que o caso do “índio X” não é particular por existir muitas

histórias semelhantes, ele complementa dizendo também não ser um caso comum, pois este,

agora, em específico, é conhecido por nós, leitores diversos, e não só pelos parentes

indígenas. Segundo este mesmo narrador, “a diferença é que [a história narrada] está sendo

visibilizada, quando a esmagadora maioria de famílias indígenas violentadas [...] permaneceu

calada, enferma, enlouquecida” (POTIGUARA, 2004: 28). Por estas primeiras ideias contidas

no livro já notamos o diferencial que marca esta escrita indígena, que diz respeito à ruptura do

silêncio imposto ou amedrontado e a certeza de comunhão. Como vimos no fragmento, a

maioria permanece calada perante os abusos sofridos, mas a voz da narrativa se fortalece nas

muitas outras histórias que sabe para firmar seu argumento enquanto portadora não somente

do sofrimento do "índio X", como também de todos aqueles violentados e migrantes

indígenas. Ela quebra o silêncio comum entre seus pares para tornar seu relato "visível" e,

com isso, denuncia não somente os impunes assassinatos desse povo, mas também a privação

(voluntária – por medo – ou involuntariamente) da palavra com a qual os indígenas ainda

convivem.

21

Cf. POTIGUARA, Eliane. Metade cara, metade máscara. São Paulo: Global, 2004. (Série Visões Indígenas/

direção de Daniel Munduruku). p. 24.

92

As denúncias contidas neste breve resumo de um capítulo com fatos ainda mais

alarmantes nos fazem imaginar os possíveis motivos que fizeram de Eliane Potiguara uma

pessoa marcada para morrer. Ela elaborou várias formas de conscientização indígena e muitos

meios de denúncia do abuso legal e cultural que os indígenas sofriam e por este motivo não só

foi jurada de morte como também abusada pelos opressores nos momentos iniciais de sua

atuação em defesa da diversidade étnica no Brasil. A época22

(de Ditadura Militar) já marcava

uma censura política no país, na qual muitos engajados politicamente foram perseguidos,

violentados e até mesmo mortos, devido à repressão e falta de democracia que puniam aqueles

contrários ao regime vigente. Entretanto, como muitos outros remanescentes, Potiguara

sobreviveu e utiliza suas histórias como arma para a melhoria de vida das tribos e diásporas

indígenas e, inclusive, negras. Através da palavra – escrita e oral – a escritora "[desmistifica]

o apagamento dos Potiguara e de [outras populações] indígenas", compondo "uma das faces

do movimento literário indígena no Brasil" (GRAÚNA: 2013: 57): a literatura dos

ressurgidos.

"Literatura dos ressurgidos" é um termo utilizado por Graça Graúna para se referir aos

povos remanescentes que estão ressurgindo e atuando em um novo cenário literário

contemporâneo23

. Entendemos que o sintagma "dos ressurgidos" esteja vinculado às antigas

ideias exterminacionistas e integracionistas que mencionamos no início deste capítulo, pelo

fato de a sociedade não mais acreditar na existência de descendentes dos primeiros povos e,

nem mesmo, na diversidade que se mantinha "calada" (utilizando o adjetivo que Eliane

Potiguara deu ao silêncio indígena) e oprimida nas margens da nação que se configurava

como Brasil. No poema "Oração pela libertação dos povos indígenas", de Potiguara, o eu-

lírico faz um apelo aos colonizadores para que cessem as diversas formas de violência ainda

constantes que buscam oprimir as variadas manifestações culturais e tradicionais dos povos

indígenas. Vejamos um trecho:

ORAÇÃO PELA LIBERTAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS

Parem de podar as minhas folhas e tirar a minha enxada

Basta de afogar as minhas crenças e torar minha raiz.

Cessem de arrancar os meus pulmões e sufocar minha razão

Chega de matar minhas cantigas e calar a minha voz.

Não se seca a raiz de quem tem sementes

Espalhadas pela terra pra brotar.

22

A época aludida não corresponde especificamente ao relato de Eliane Potiguara sobre seu bisavô (Índio X) e

nem ao período de publicação de Metade cara, metade máscara, mas sim ao seu determinante momento de

militância e luta pelas causas indígenas, concomitantes e relativos à ação do e no Movimento Indígena. 23

Op. cit. 2013, p. 57.

93

Não se apaga dos avós – rica memória

Veia ancestral: rituais pra se lembrar

Não se aparam largas asas

Que o céu é liberdade

E a fé é encontrá-la.

(POTIGUARA, 2004: 35-36)

Estes versos expressam a permanência e sobrevivência indígenas e por isso os

utilizamos como forma de representar a diversidade dos remanescentes dos primeiros povos.

Lendo-os sob influência do termo "literatura dos ressurgidos", encontramos as possíveis

causas que não levaram os indígenas ao extermínio, pois, como nos diz o poema, "Não se seca

a raiz de quem tem sementes". Além disso, por mais que os versos estejam construídos no

imperativo, em tom de ordens, a liberdade se apresenta como elemento de busca, que faz com

que o eu-lírico demonstre a fé de encontrá-la, ou seja, percebe-se, neste caso, um processo de

libertação iniciado pela voz que se impõe como autoridade em seu discurso, mas ainda

associada a um a recorrido (o colonizador) que poda, afoga e sufoca.

Além dos poemas que abrangem toda a estrutura de Metade cara, metade máscara

como forma de liberar a voz feminina e indígena abafada por tantas opressões e,

principalmente, para exprimir a força ancestral que tanto influencia essa mesma voz, o livro é

estruturado em prosa, por uma construção narrativa dos valores indígenas e da importância de

seus reconhecimentos. Através de suas histórias pessoais, ora narradas em primeira, ora em

terceira pessoa, Eliane Potiguara se identifica com todo o seu povo, já que as histórias se

repetem de forma semelhante, sendo todos vítimas do colonizador. A própria autora afirma

que "foram muitas vidas violadas, culturas, tradições, religiões, espiritualidade e línguas. E

que a verdade está chegando à tona, mesmo que lhes arranquem os dentes" (POTIGUARA,

2004: 79).

Por esta afirmação, podemos entender que Potiguara se refere ao ressurgimento dos

“povos abandonados, condenados à extinção”. Refere-se aos indígenas (e outrora também aos

afrodescendentes) que tiveram que transformar suas crenças e valores para se adaptarem às

ideologias do colonizador e sabem que estas permanecem entranhadas até os dias atuais nas

suas ações e reações e nas de suas comunidades. A verdade à qual se refere Potiguara é

destacada em várias outras passagens, condizentes com a outra margem de uma história até

então unívoca. Além disso, percebe-se uma força mais resistente que está disposta a se fazer

ouvir mesmo que seus dentes sejam arrancados. Por esta constatação, notamos que a violência

já não mais a amedronta e que a liberdade de se expressar, para fazer valer seus direitos como

cidadã, é também a garantia de libertação da ancestralidade e do futuro de todo o seu povo.

94

Como defende Potiguara, "a voz dos oprimidos ecoa igualmente, em qualquer parte do

mundo, e temos que ouvi-la para que a justiça se faça a qualquer momento da história"

(Ibidem: 47).

Walter Benjamin, em seu ensaio intitulado "Sobre o conceito da História", diz que o

passado traz consigo um índice misterioso que o impele à redenção. A partir desta afirmação,

o autor começa a indagar: "Pois não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado

antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram? Não têm as

mulheres que cortejamos irmãs que elas não chegaram a conhecer?" (BENJAMIN, 1994:

223).

Desconsiderando o teor messiânico de suas ideias ao longo do texto e atentando

somente para o caráter histórico-materialista defendido por Benjamin, podemos associar a

valorização do passado, as questões esquecidas e apagadas pelos dominadores e a busca por

um novo conceito de história ao esforço militante diário de Eliane Potiguara e muitos outros

escritores indígenas contemporâneos.

Pelos questionamentos levantados pelo autor, podemos pensar também na literatura

indígena e afrodescendente no Brasil e nas narrativas históricas homogêneas, perpetuadas há

séculos pelas camadas dominantes da sociedade e que vêm sendo questionadas e

reconstruídas atualmente em outros discursos e margens. Por exemplo, quando Benjamin

indaga se nas vozes que escutamos há vozes emudecidas, está referindo-se justamente a esta

univocidade dos conhecimentos e acontecimentos do passado que não permitem segundas

interpretações e são ideologicamente irredutíveis e inquestionáveis.

O autor chama de materialista histórico o indivíduo que não rejeita esses apelos do

passado e que clama por sua recomposição. Lembra-nos que o sopro de ar que nos toca hoje

pode ser o respirado outrora por gerações abafadas e que de alguma forma se manifesta para

que possamos senti-lo e reconhecer sua existência. É o que observamos nas palavras de

Potiguara: “Estivemos enclausurados dentro de nós mesmos. Mas não aguentamos mais e

damos um basta! É hora de criar pacientemente o novo!” (POTIGUARA, 2004: 57).

Quanto ao “criar pacientemente o novo”, podemos interpretar como sendo as novas

narrativas surgidas ou ressurgidas que questionam e problematizam os cenários históricos e

literários. São narrativas que trazem questões desconhecidas ou ignoradas pelo poder

dominante e que agora, por perseverança, podem pensar e articular pacientemente algo

inovador, como a tomada da voz e de espaços para se fazerem ouvir.

95

No poema "A denúncia", de Eliane Potiguara, podemos exemplificar esta liberdade de

expressão e a carga histórica de um passado misterioso que vem revelar-se pelas novas vozes,

insinuando e ameaçando um largo período de violência e submissão.

A DENÚNCIA

Ó mulher, vem cá

que fizeram do teu falar?

Ó mulher conta aí...

Conta aí da tua trouxa

Fala das barras sujas

dos teus calos na mão

O que te faz viver, mulher?

Bota aí teu armamento.

Diz aí o que te faz calar...

Ah! Mulher enganada

Quem diria que tu sabias falar!

(POTIGUARA, 2004: 73)

Neste poema, o eu-lírico se dirige a uma mulher (possivelmente indígena, como a

maioria das personagens de Potiguara) que é questionada sobre sua voz e incentivada a falar

de suas histórias e do que a fortalece e oprime. É uma mulher que fora calada e que agora

pode se expressar, mesmo que à base de incentivo e encorajamento, mulher que fora

submetida por uma tradição silenciadora e agora pode ser resgatada por uma corrente

questionadora e subversiva.

Retomando a contribuição do Movimento Indígena não somente para a conquista de

direitos, mas também pela liberdade na autoidentificação indígena – pois, como

mencionamos, esta identidade étnica carregava certo preconceito social – e na autonomia dos

discursos, podemos perceber uma das influências desta organização no estímulo deste poema.

Como já dissemos anteriormente, Eliane Potiguara atuou decisivamente nos primórdios do

Movimento e, para ela, a literatura se mantém como maneira de conduzir sua atividade. Sendo

assim, percebemos nos discursos dos narradores aos quais dá vida através da escrita um teor

bastante político como maneira de incentivar outros indivíduos à luta, mantendo viva a

palavra indígena. Portanto, ao exclamar "Quem diria que tu sabias falar!", a voz do poema

reconhece o silêncio que oprimia sua interlocutora e se contenta com a fala que

provavelmente ouve depois de tanto incentivo.

Tomando como exemplo as palavras de Todorov de que as mulheres índias são

mulheres ou índios ao quadrado e por isso tornam-se objeto de uma dupla violentação

(TODOROV, 2003: 68) – por seu gênero e por seu pertencimento étnico –, podemos

96

compreender melhor o motivo pelo qual Eliane Potiguara se esforça tanto para resgatar na

mulher uma força que por muito tempo foi subestimada. A autora acredita que "a libertação

do povo indígena passa radicalmente pela cultura, pela espiritualidade e pela cosmovisão das

mulheres", e que "o papel da mulher na luta pela identidade é natural, espontânea e

indispensável" (POTIGUARA: 2004: 46).

Além de a autora defender a libertação indígena como um todo, defende também, de

forma mais específica, a libertação da mulher. Ela acredita que a mulher possui uma força

superior ligada intimamente com a terra, com a origem e com os ancestrais e por isso pode ser

a esperança de tempos melhores. Em outras palavras, a mulher pode representar a mediação

entre a terra e os homens, e, com a sabedoria que possui, pode fazer com que seus

descendentes se tornem pessoas melhores e mais ligadas à origem. Assim, a mulher

representa, nas ideias de Potiguara, uma figura indispensável e altamente significativa na

reconstrução da identidade indígena. Vejamos outro significativo poema que ilustra esta

afirmação:

O SEGREDO DAS MULHERES

No passado, nossas avós falavam forte

Elas também lutavam

Aí, chegou o homem branco mau

Matador de índio

E fez nossa avó calar

E nosso pai e nosso avô abaixarem a cabeça.

Um dia eles entenderam

Que deviam se unir e ficar fortes

E a partir daí eles lutaram

Para defender sua terra e cultura.

Durante séculos

As avós e mães esconderam na barriga

As histórias, as músicas, as crianças,

As tradições da casa,

O sentimento da terra onde nasceram,

As histórias dos velhos

Que se reuniram para fumar cachimbo.

Foi o maior segredo das avós e das mães.

Os homens, ao saberem do segredo,

Ficaram mais fortes para o amor, lutaram

E protegeram as mulheres.

Por isso, homens e mulheres juntos

São fortes

E fazem fortes os seus filhos

Para defenderem o segredo das mulheres.

Pra que nunca mais aquele homem branco

Mate a história do índio!

(POTIGUARA, 2004: 69)

97

Por este poema observamos importantes pontos de discussão e também de denúncia: a

força feminina pré-colonial, a imagem negativa dos europeus para os indígenas, o massacre

indígena na Conquista, o silenciamento das vozes indígenas femininas, a servidão dos povos

autóctones, a retomada de valores dos indígenas quando reconheceram que, juntos, poderiam

ser mais fortes para defenderem sua terra e cultura, e a importância supracitada da mulher

para a escritora Eliane Potiguara. Nele percebemos que as mulheres possuem um segredo

baseado nos ancestrais e que são elas que guardam as histórias e as tradições de seu povo; e ,

ainda, que é necessário fazerem fortes filhos para preservarem o “patrimônio-mulher”.

Além disso, em outras passagens, a autora escreve que "os caminhos e as respostas

para um novo mundo estão na aquisição e no reconhecimento dos conhecimentos tradicionais

das primeiras nações deste grande e luminoso asteroide azul contra o inimigo interno e

externo" (Ibidem: 84). E, assim, podemos considerar que, para ela, tanto a mulher quanto a

ancestralidade são os combustíveis para o fortalecimento do povo indígena.

Eliane Potiguara e muitos outros escritores indígenas contemporâneos se baseiam no

passado, nas histórias de suas tribos e de seu povo para clamarem por um presente justo e um

futuro liberto. Provando que a escrita não é uma habilidade que afasta estes escritores de suas

comunidades e tradições, Potiguara discorre ficcionalmente sobre seu legado militante,

justamente como uma ligação ancestral pré-estabelecida. A autora escreve:

O velho espírito disse a Cunhataí: Vai ave-menina e mulher! Cria asas e enxergue;

um dia, quem sabe, seremos livres! Ela foi pra longe sofrer. Por isso quando ela

retornou à sua aldeia de origem, o cacique, a pajé e os seguimentos do povo a

reconheceram, porque ela já era esperada por decisão dos ancestrais, há muitos

séculos. O seu olho direito roxo – o espiritual – foi identificado pelos líderes

conectados com a ancestralidade e pelo pitiguary, o pássaro que anuncia.

(POTIGUARA, 2004: 67-68)

Eliane Potiguara é associada à Cunhataí24

por sua marca no olho, embora a autora

afirme inicialmente que esta se trata de uma personagem atemporal e sem locais específicos

de origem. Aliás, cabe-nos relembrar que em uma mescla de pessoas e casos, em associações

entre personagens e biografia e em um reconhecimento das características ficcionais que a

literatura permite na elaboração de um texto, ficam evidentes algumas semelhanças entre o

que se diz sobre o outro e o que se escreve sobre si, em Metade cara, metade máscara. A

multiplicidade de faces e modos narrativos é uma das estratégias textuais que identificamos

24

Cunhataí é uma personagem criada por Eliane Potiguara para representar a figura feminina que, dentre os

muitos objetivos, luta pela manutenção e conquista dos direitos indígenas. Ela pode simbolizar, com outro

personagem chamado Jurupiranga, a família e o amor; e, independentemente do tempo ou do espaço, pode junto

a ele mudar de nome e representar o físico ou o onírico.

98

como o modo de aproximação da autora e seus interlocutores indígenas para que estes se

reconheçam em suas histórias e relatos.

Neste caso, assim como em muitos outros apresentados ao longo do livro, Eliane

Potiguara ficcionaliza inicialmente seus escritos e redige-os na terceira pessoa do plural e do

singular, se distanciando estilisticamente da narrativa. Porém, no decorrer do texto,

percebemos uma adaptação à primeira pessoa do singular e o resgate de relatos anteriores,

agora associados a suas histórias particulares, como uma espécie de autobiografia documental.

Com relação ao excerto acima, onde a autora ficcionaliza a militância de Cunhataí como uma

missão ancestral pré-estabelecida, ela discorre mais adiante que "a mancha que tenho é uma

grande folha de jenipapo que foi identificada pelos Kaiapós, quando eu os encontrei" e que

isso foi uma revelação de sua missão, além de ter descoberto por um xamã Potyguara que o

pitiguary "anunciava a chegada de um ser humano que possuía a seta direcionada para uma

obrigação, um trabalho" (POTIGUARA, 2004: 99 e 100), que era, neste caso, ela mesma,

Eliane Potiguara.

Considerando estes fragmentos a respeito de sua caminhada política e missão

ancestral, notamos a força dos antepassados bastante valorizada pela autora. Segundo sua

crença, ela é uma enviada para lutar pela liberdade indígena e foi esperada por muitos séculos

pelo seu povo. A mancha de nascença que traz no rosto serviu como sinal para o

reconhecimento de sua missão; e, pela sua literatura e por seu empenho físico, mental e

espiritual, divulgado por muitos meios comunicacionais, notamos que nem mesmo os tantos

obstáculos a impedem de seguir em combate. Um de seus caminhos mais certeiros é a

literatura e uma de suas conquistas mais audazes é a libertação da palavra indígena, sufocada

por muitos anos e que agora se configura por suas páginas, estimulando outras vozes.

4.5. A Literatura Indígena Contemporânea sob a ótica de Graça Graúna

Como vimos, a literatura se mostra como uma das diversas formas de manter o

Movimento Indígena atuando. Através dela percebemos que desconstruções continuam sendo

feitas a partir de outras perspectivas que não a oficializada pela História, bem como outras

maneiras de percepção do mundo são apontadas através de alternativas para melhorias da

sociedade. Notamos isso na análise dos textos de Olívio Jekupé e Daniel Munduruku nos dois

primeiros capítulos desta dissertação, com os livros O saci verdadeiro, O sinal do pajé e

99

Todas as coisas são pequenas. Ademais, procuramos mostrar que, para que estes textos

tivessem circulação nacional e um tímido público que vem aumentando gradativamente,

foram necessárias muita luta e resistência e que a articulação do Movimento Indígena foi de

extrema importância para a conquista desse espaço. Eliane Potiguara nos comprova, através

de sua escrita e testemunho, que a conquista dos merecidos direitos tem um preço que alguns

específicos "invasores" fazem questão de cobrar, seja "arrancando os dentes", "violentando

famílias" ou tirando a vida dos que se rebelam contra eles.

Por tudo isso, não podemos negar que os textos desses escritores remanescentes dos

primeiros povos estão carregados de histórias de um passado sofrido, invadido e corrompido,

que aos poucos se permitem registrar nas páginas da história que até então os ignorava. Para a

professora e escritora Graça Graúna, também remanescente de tribos Potiguara, há uma busca

pelo direito à palavra que expressa o desejo de liberdade e de autonomia, mas que ainda

encontra barreiras nos processos neocolonialistas. A autora diz que

a busca da palavra, mais precisamente a luta dos povos indígenas pelo direito à

palavra oral ou escrita, configura um processo de (trans)formação e

(re)conhecimento para afirmar o desejo de liberdade de expressão e autonomia e

(re)afirmar o compromisso em denunciar a triste história da colonização e os seus

vestígios na globalização ou no chamado neocolonialismo com a Área de Livre

Comércio das Américas (ALCA) que vêm impedindo a paz desejada no universo das

sociedades indígenas. (GRAÚNA, 2013: 54-55)

Este fragmento, encontrado em seu livro Contrapontos da Literatura Indígena

Contemporânea no Brasil, originário de sua tese de Doutorado defendida na Universidade

Federal de Pernambuco, no ano de 2012, representa tanto o olhar interno quanto o externo às

manifestações literárias indígenas. Quando a autora coloca entre parênteses os prefixos que

significam uma “situação além de”, uma “repetição”, “um movimento contrário” às palavras

sugeridas, ela escreve com uma perspectiva de consciência das produções e histórias

indígenas já existentes durante esses cinco séculos de esquecimento. Se esses prefixos não

fossem sugeridos, subentenderíamos, com uma visão exótica, que a luta estava apenas se

formando, em fase inicial, e sem nenhuma firmeza histórica. Além disso, neste excerto,

podemos observar as várias faces de dominação que se transformam ao longo dos anos, mas

que permanecem subjugando e impedindo a liberdade e a paz das sociedades indígenas.

As diversas formas de dominação cultural e até mesmo disfarce (caracterizado pelas

várias formas de integração) da diversidade não só no Brasil, mas em toda a América Latina,

colaboram ainda mais para a luta e a afirmação identitária de diversas etnias. Isso porque, ao

se depararem com a extrema violência que exterminou e dispersou diversos povos, algumas

100

lideranças se propuseram a lutar ainda mais ativamente por seus direitos e pela sobrevivência

de sua tradição e diversidade, constituindo, assim, o que vimos ser o Movimento Indígena.

Além disso, os aspectos que seguiram sendo determinantes para a resistência foram a

memória de um passado violado e a certeza de um presente atuante na melhoria e

sobrevivência no futuro. Dessa forma, a literatura segue como um espaço de confronto entre

as ideologias parcialmente dominantes e as ideologias temporariamente silenciadas25

, visto

que a escrita indígena, com suas particularidades e rupturas, caracteriza-se como uma espécie

de afronta aos que confiavam na homogeneidade nacional e na extinção dos autóctones.

Portanto, novos grupos literários vêm buscando espaços que desconstruam as

centralizações, a que somente uma minoria esteticamente padronizada tem acesso, e resgatam

o tempo perdido de vozes apagadas na história mas que se mantiveram vivas e ativas ao longo

dos anos através da oralidade e da tradição. No prefácio do livro de Graça Graúna, Roland

Walter diz que

é por meio da literatura enquanto espaço mnemônico que escritores multiétnicos das

Américas recriam os mitos necessários para se enraizar como sujeitos autóctones. A

reapropriação do espaço via memória possibilita a colocação do sujeito na sua

própria história. A renomeação do seu lugar e da sua história significa reconstruir

sua identidade, tomar posse de sua cultura; significa, em última análise, resistir a

uma violência epistêmica que, nas suas diversas formas e práticas continua até o

presente. (WALTER, 2013: 11)

Através da crítica de Walter, percebemos os contrapontos de uma literatura

mnemônica que se expande na América Latina pelos escritores multiétnicos até então

excluídos do contexto literário pela ideia monolítica defendida pelos grupos dominantes.

Além disso, o aspecto que mais atrai nossa atenção e que condiz bastante com algumas partes

que discutimos (principalmente no primeiro capítulo desta dissertação) é o fato de estes

escritores utilizarem a escrita relacionada à memória, ou seja, às lembranças dos

antepassados, para se firmarem como descendentes (tradicionais, e não somente sanguíneos)

dos autóctones. Percebemos ser a palavra uma forma de resgate e reconstrução da identidade

desses indivíduos que, ao se permitir enquanto literatura, reformula a História e as próprias

histórias de seus autores ao representar os mitos que fundam suas culturas. Em outras

palavras, para estes novos grupos literários a reconstrução de uma identidade outrora forjada

25

Colocamos a questão dessa forma por considerarmos que a homogeneidade ideológica serviu por um bom

tempo como sendo a única forma de pensamento nacional (e continental) e que vem sendo desconstruída com as

novas perspectivas firmadas pelas minorias que, logicamente, não foram dominadas, mas sim, silenciadas no

contexto histórico, político e literário nacional.

101

por projetos hegemônicos é uma forma de resistência às violências simbólicas, além de

representar uma reapropriação do espaço e do tempo.

A respeito dessa reapropriação da memória pela escrita como forma de manter a

diversidade cultural, Graça Graúna defende, baseada nas ideias de Diane Boudreau, que na

literatura indígena "os(as) autores(as) procuram expressar sua identidade/alteridade"

fornecendo, de acordo com as posições culturais, "uma literatura de sobrevivência para as

nações indígenas e de resistência para os 'brancos'" (BOUDREAU apud GRAÚNA, 2013:

60). Considerando os embates a respeito da questão identitária – em que a sociedade nacional

prioriza a unidade e os indígenas lutam por sua diversidade – ficam claras estas noções de

sobrevivência e resistência: sobrevivência indígena pelo fato de esses povos persistirem e

ainda existirem diante de tantas adversidades; e resistência, sob o olhar do outro, por

permanecerem reagindo contra muitos obstáculos e imposições.

Como já dissemos em muitas outras passagens, os autores indígenas contemporâneos

têm consciência de a escrita ser uma ação transformadora e utilizam-na em favor de suas

comunidades e culturas para que, através disso, tanto os indígenas quanto os não indígenas

possam conhecer e respeitar as origens e tradições dos primeiros habitantes. Ademais, Graça

Graúna diz que esta literatura "tem procedência na rebeldia que nasce também da exclusão"

(GRAÚNA, 2013: 169), no desejo de liberdade e autonomia, no compromisso de denunciar

anos de violência e submissão.

Selecionamos este livro da autora, Contrapontos da Literatura Indígena

Contemporânea no Brasil, por ser este um exemplo de teoria e crítica literária sobre a

temática indígena. Neste trabalho, Graúna não nos fornece unicamente informações a respeito

da conquista da palavra (que temos discutido nesta seção), mas também transita pelos

diversos processos políticos e literários que configuraram o que chamamos de Literatura

Indígena Contemporânea no Brasil. Para a autora, as manifestações literárias indígenas em

nosso país sugerem dois momentos singulares:

o período clássico referente à tradição oral (coletiva) que atravessava os tempos com

as narrativas míticas, e o período contemporâneo (de tradição escrita individual e

coletiva) na poesia e na “contação de histórias” com base em narrativas míticas e no

entrelaçamento da história (do ponto de vista indígena) com a ficção (em fase de

experimentalismo). (GRAÚNA, 2013: 74)

Ampliando nossas possibilidades e retrocedendo ao período da Conquista da América

para mais uma explicação referente à tradição oral, lembramos que Tzvetan Todorov faz um

importante levantamento a respeito da relevância da linguagem na vitória da colonização.

102

Entre as antigas civilizações, maias e astecas, se fazia claro o poder e o domínio da língua já

que eram os chefes de Estado que “possuíam a palavra” e, além disso, a fala ritual era muito

valorizada por estes grupos que, através dos discursos aprendidos de cor e transmitidos de

geração a geração, materializavam a memória social e garantiam a identidade da

coletividade26

.

Já para os europeus, a memória só era garantida através da linguagem escrita,

registrada graficamente a fim de contribuir para a transmissão ideológica dos costumes e

valores. Estes acreditavam, por esta e outras habilidades, serem superiores aos indígenas,

submetendo-lhes, anos mais tarde, ao aprendizado da escrita e à catequização. Concluímos

assim, com a citação de Todorov, que a linguagem em si "não é um instrumento unívoco:

serve igualmente à integração no seio da comunidade e à manipulação de outrem"

(TODOROV, 2003: 178).

Através destas constatações, percebemos que as culturas dos nativos e dos estrangeiros

em relação à palavra eram manifestadas e valorizadas de forma díspar. Enquanto os primeiros

possuíam uma tradição oral bem desenvolvida e equilibrada – admirada, inclusive, pelos

espanhóis – e utilizavam-na como preservação da cultura de seu povo, ou seja, pela

manutenção da coletividade, os segundos traziam a exaltação da escrita como a melhor forma

de se preservar a memória, e, que por sua vitória sobre o “outro”, passou a exercer sua

importância sobre a oralidade. Desta forma, notamos, mais uma vez, que a escrita é

acompanhada de poder e, por seu domínio e expansão, acabou tornando-se mais necessária

para a comunicação humana.

Por séculos, as tradições orais passaram a ser associadas ao passado, ao velho, ao

nativo, não deixando, porém, de serem valorizadas nas tribos indígenas e pelas comunidades

marginalizadas. Atualmente, essas tradições têm sido mais estudadas e menos estigmatizadas,

além de estarem fortemente presentes nas formas escritas destas sociedades. Um importante

exemplo do escritor indígena Yaguarê Yamã exprime esta afirmação: "Neste livro que […]

não é meu e sim fruto da sabedoria da tradição do meu povo, pude transpor a tradição oral

para a escrita. E espero que ele ajude a difusão da memória dos nossos ancestrais, da cultura

do povo Saterê Mawé" (YAMÃ apud GRAÚNA, 2013: 148).

Corroborando as ideias de Graça Graúna, não só o fragmento apresentado de Yaguarê

Yamã, mas a grande maioria dos textos indígenas contemporâneos traz essa memória

ancestral como afirmação de uma literatura sobrevivente. A autora afirma que as vozes da

26

TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. Trad. Beatriz Perrone – Moisés. 3. ed.. São

Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 111.

103

tradição têm um lugar de destaque dento das sociedades indígenas, e, além disso, defende que

a apropriação de aparatos tecnológicos e a utilização de vários meios de comunicação não é

uma forma de afastamento das tradições, pois se "a poesia urbanizou-se ou modernizou-se,

ora nos mares da internet, ora nos velhos caminhos de papel e tinta, isso não quer dizer que os

poetas indígenas contemporâneos no Brasil tenham quebrado o compromisso que firmaram

com a cultura e o pensamento do seu povo" (Ibidem: 115), contribuindo assim para a

discussão que travamos em um outro momento a respeito de a escrita ser ou não uma maneira

de afastamento das tradições autóctones.

Relativo à apropriação dos códigos dominantes como estratégia de registro, Graúna

faz outra importante colocação. Para ela, a recorrência dos autores indígenas aos mitos de

origem através da escrita pressupõe uma "consciência a respeito da escrita como manifestação

transformadora" (GRAÚNA, 2013: 172). Entretanto, esta transformação não significa

logicamente uma mudança cultural dos indígenas – fazendo com que eles deixem de ser

indígenas. A transformação que se coloca em evidência, neste caso, se refere à certeza de a

escrita ter sido uma forma de domínio e de agora estar sendo usada como instrumento de

modificação dos padrões históricos perpetuados na sociedade não indígena. Portanto, os

indígenas não se afastam da tradição por se apropriarem da escrita; pelo contrário, eles

utilizam-na justamente como forma de divulgação de sua diversidade e afirmação de sua

cultura, mantendo assim sua identidade indígena. Graúna explica que mesmo diante de tantas

adaptações ao universo não indígena – que cada vez mais espreme as comunidades

remanescentes – "a indianidade permanece, porque o índio e/ou a índia, onde quer que vá,

leva dentro de si a aldeia", mantendo-se como "filho legítimo pelo amor à terra" (Ibidem: 59).

Dessa forma, a autora contesta os termos "aculturação" e "desindianização"27

por acreditar

que um indígena será sempre um indígena, independentemente de suas escolhas e

apropriações.

Muitos trabalhos têm sido desenvolvidos em torno da dicotomia oralidade-escrita,

visto que, para alguns autores, é através dela que se constrói a narrativa latino-americana e,

como verificamos nos textos analisados no início desta dissertação, ela está fortemente

presente na literatura indígena. O choque “entre a voz das culturas ágrafas andinas e a letra da

instituição literária de origem ocidental”, por exemplo, é o eixo escolhido por Antonio

27

Desindianização foi um termo utilizado por Néstor García Canclini, em Culturas Híbridas: Estratégias para

Entrar e Sair da Modernidade, para se referir à "ruptura da identidade étnica original dos indígenas" (2013: 250),

e utilizado também por Darcy Ribeiro, em O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil.

104

Cornejo Polar, importante escritor peruano, para demonstrar esta tensão ocasionada pela

heterogeneidade literária do continente.

Através do “diálogo” travado em Cajamarca, em 1532, entre o Inca Atahuallpa e o

padre Vicente Valverde, o autor discorre criticamente sobre todas as versões para o mesmo

episódio, argumentando sobre a incomunicação entre a voz e a escrita. O trágico fim do Inca é

ocasionado por sua incompreensão das letras e dos mecanismos de um livro (sagrado para os

europeus), entregue pelo padre, que requeria a sujeição do índio às leis cristãs. Por ter

acreditado inicialmente que o livro falava e, após verificação, não “ouvir” nada do mesmo, o

Inca arremessa o livro ao chão, desencadeando a revolta dos colonizadores e sua morte.

Após o ocorrido em Cajamarca, o diálogo tomou várias versões orais e escritas. Mas o

importante é ressaltar que a escrita, nesse contexto, não possuía importância somente cultural,

mas detinha poder e domínio como acontece até a atualidade; e o referido livro não aparecia

somente como instrumento de comunicação, mas sim como um objeto sagrado capaz de

transformar as crenças e valores alheios. Depois de séculos de tradição, com variadas

explicações sobre as muitas mortes de Atahuallpa, o fato obteve uma dimensão histórica e foi

convertido em “um signo fluente, poroso e sempre renovado” – associado de alguma forma

com todo o povo quéchua (CORNEJO POLAR, 1994: 72).

Utilizamos brevemente este caso para destacar a valorização e a importância da

oralidade e da escrita na construção da identidade cultural e literária do continente americano,

no qual o Brasil está inserido. O que se percebe neste episódio e em vários outros

acontecimentos históricos, é que a escrita foi uma importante estratégia de conquista

territorial e, consequentemente, temporal, já que prevalece ideologicamente sobre a voz. O

Requerimento, documento utilizado no período da "Conquista" pelos colonizadores espanhóis

como forma de tomar posse das terras indígenas, era uma das principais armas utilizadas para

a dominação na época. Em nome da religião cristã e de um rei desconhecido para os

indígenas, os colonizadores declaravam, por este texto, a desocupação das terras e a servidão

dos autóctones; "se os índios ficarem convencidos após essa leitura, não se tem o direito de

fazê-los escravos (é aí que o texto “protege” os índios, concedendo-lhes um status). Se,

contudo, não aceitarem essa interpretação de sua própria história, serão severamente

punidos.” (TODOROV, 2003: 212-213).

Ademais, queremos, através deste fato histórico, evidenciar que a problemática

dicotomia oralidade e escrita ainda é discutida no presente e, no contexto literário brasileiro

105

apresentado por Graúna, é associada não somente ao passado e presente, mas também à ideia

de coletivo e individual:

A noção de coletivo não está dissociada do livro individual de autoria indígena;

nunca esteve, muito menos agora com a força do pensamento indígena configurando

diferenciadas(os) estantes e instantes da palavra. Ao tomar o rumo da escrita no

formato de livro, os mitos de origem não perdem a função, nem o sentido, pois

continuam sendo transmitidos de geração em geração, em vários caminhos: no

porantim, no traçado das esteiras e dos cestos, na feitura do barro, na pintura

corporal, nas contas de um colar, na poesia, na contação de histórias, e outros

fazeres identitários que os Filhos e as Filhas da Terra utilizam como legítimas

expressões artísticas, ligando-as também ao sagrado. (GRAÚNA, 2013: 172)

Sendo assim, a literatura indígena contemporânea, por mais que tenha se manifestado

através da escrita, possui uma raiz oral, firmada nas tradições e origens de seu povo. Ela se

revela pela confluência de vozes apagadas e silenciadas pela colonização. E agora, com a

possibilidade de retomada da palavra em tempo e espaço, em instantes e estantes, não perde

sua força coletiva que fez com que muitas comunidades indígenas sobrevivessem por tanto

tempo de ataque.

Pelo fragmento, podemos entender novamente que a manifestação literária indígena

também é uma forma de ligação com o sagrado (assim como as outras manifestações artísticas

apresentadas). É um compromisso firmado entre o autor e sua cultura transmitir a outras

gerações os conhecimentos, crenças e mitos, legitimando a tradição autóctone. É o individual

falando pelo coletivo e o coletivo se firmando no individual, o que Graúna identifica como

“auto-história” e define como “um ancorar-se nas raízes próprias do seu povo para se

reconhecer sujeito da história, da própria história” (Ibidem: 135).

Após traçarmos estes percursos seguidos pela Literatura Indígena Contemporânea,

cabe-nos ressaltar uma importante relação. Como apresentamos através do episódio de

Cajamarca, a escrita representava determinado poder e por meio dela se consolidaram muitas

conquistas territoriais. Por outro lado, uma das mais importantes reivindicações do

Movimento Indígena brasileiro foi e é a demarcação e manutenção dos territórios indígenas,

conquistados pelos invasores. Se agora os indígenas escrevem reconhecendo a escrita como

uma importante arma de mobilização e instrução, e fazem de seus textos pontes entre a

tradição e as comunidades indígenas e não indígenas, não há como negar seu caráter

formativo e sua particular estratégia de Movimento. Ou seja, se através da escrita territórios

(geográficos e históricos) foram tomados pelos invasores e posteriormente destruídos pela

falta de preservação, através dela pode-se pensar na retomada (mesmo que parcial) destes

territórios e na conservação do pouco que ainda se tem de natureza.

106

Ao tratarmos da questão territorial no contexto indígena, devemos levar em

consideração vários aspectos que expandem o termo para uma ideia além da geografia.

Território é história e carrega em si marcas dos diversos povos e períodos que passaram por

ele. Eliane Potiguara escreve que "um território não é apenas um pedaço ou vastidão de terras.

Um território traz marcas de séculos, de cultura, de tradições. [...] Território é vida e

biodiversidade, é um conjunto de elementos que compõem e legitimam a existência indígena"

(POTIGUARA, 2004: 105). Graça Graúna vai além ao associar o território à palavra e afirma

que "os excluídos marcham e multiplicam-se na luta pelo direito à terra (propriedade coletiva)

e à palavra porque a palavra também fertiliza a terra". A autora fortalece seu argumento

citando Cristobal Muñoz e Massimo Di Felice e na sequência de seu raciocínio declara que

"perdê-las (a palavra e a terra) 'significaria perder a própria história coletiva, a própria

identidade, enfim, o próprio significado que orienta as relações sociais do indivíduo dentro do

grupo e da comunidade em relação às demais e em relação ao próprio mundo simbólico'" (DI

FELICE; MUÑOZ apud GRAÚNA, 2013: 68).

Não há como negar o entrelaçamento das diversas questões abordadas neste trabalho,

visto que a palavra, agora, também se mostra relacionada à terra e que a terra é uma das

principais reivindicações indígenas, assim como o direito à palavra. Ambas são sagradas e

possuem vida na perspectiva autóctone. As terras foram invadidas e as palavras abafadas, mas

seus descendentes, firmados na memória de seus antepassados, lutam pela reconquista de

espaço tanto na história quanto na geografia da chamada nação brasileira. O Movimento

Indígena continua, pela palavra, pela terra, pela vida.

107

5. CONCLUSÃO

A proposta inicial deste trabalho era descobrir as vozes indígenas que se mantiveram

abafadas durante muito tempo na história do Brasil como forma de conhecer o outro lado da

Conquista e Descobrimento e não só os que ilustram as páginas da História oficial. Era

pesquisar, de certa forma, os textos que vinham traçando uma corrente literária particular

chamada Literatura Indígena Contemporânea e saber das contribuições que eles traziam ao

contexto literário nacional. A surpresa, porém, foi ao descobrir que estas contribuições não se

limitavam ao quesito literário, mas abrangiam os âmbitos humano, político e social de seus

leitores, conduzindo-os a universos inimagináveis – mas possíveis – graças à resistência dos

guerreiros e guerreiras indígenas.

De forma geral, esta pesquisa foi concentrada no protagonismo indígena ressurgido no

auge do Movimento Indígena brasileiro, em 1970, quando a reunião de diversas lideranças

possibilitou a discussão, em âmbito nacional, dos direitos dos povos indígenas. A partir desse

contexto, não somente os povos se permitiram falar, como a sociedade voltou a conhecer a

figura indígena, não mais a partir das imagens congeladas determinadas pelos colonizadores,

mas sim a partir de sujeitos, donos de seus próprios discursos e dominadores dos diversos

códigos e posições políticas e sociais do invasor.

Acreditamos, depois de todo o exposto, que a Literatura Indígena Contemporânea é

uma forma de manter os indígenas em movimento, como sugeriu Eliane Potiguara, e uma

forma de transmitir a tradição e sabedoria autóctones à sociedade que outrora desconsiderou a

sobrevivência dos primeiros habitantes, acreditando terem sido estes uma "raça extinta" dos

territórios invadidos. Agora, como vingança, seus descendentes ressurgem e trazem consigo o

outro lado da história, como forma de romper a homogeneidade a que fomos habituados.

Ao divulgar para além das aldeias os conhecimentos ancestrais, acreditando estarem

neles a razão para muitas coisas e, sem dúvida, divulgando sua potência cultural, percebemos

uma pretensão de mudanças. Ao tocar na questão identitária e visando um outro mundo

possível, como dito por Graça Graúna, o autor, de certa forma, esquematiza a transformação

que começa na leitura e, dependendo do grau de envolvimento do leitor, se estende na

conscientização de outras possibilidades de compreensão do mundo, buscando algo que

estimule o respeito não só com a natureza, provedora da vida, mas com o próximo e com nós

mesmos que a conservamos ou a destruímos. A sabedoria ancestral seria a chave para estas

108

conscientizações e os autores indígenas contemporâneos os porta-vozes, quiçá, desse

conhecimento primitivo.

Dessa forma, podemos afirmar, com base nas ideias apresentadas ao longo de todo o

trabalho, que na literatura indígena contemporânea há uma confluência de vozes marcadas

entre a oralidade e a escrita, a tradição e a modernidade e o passado e o futuro. E, sobretudo,

que ela é calcada não somente na sobrevivência de um povo silenciado, mas também na

transformação que os autores indígenas visam proporcionar à história, incluindo nela as vozes

de seus antepassados excluídos e proporcionando aos descendentes a liberdade de expressão

de crenças e valores.

109

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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