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Rosa Elizabeth Acevedo Marin 1 1 USO, CONDIÇÕES DE ACESSO E CONTROLE DOS RECURSOS HÍDRICOS EM COMUNIDADES QUILOMBOLAS DO MUNICÍPIO DE SALVATERRA (ILHA DE MARAJÓ)- PARÁ 1 Rosa Elizabeth Acevedo Marin 1- INTRODUÇÃO É a água que dá o sustento e cria dificuldades, consola e leva ao desespero, condiciona a saúde, o trabalho, a vida da gente: sem levantar a voz, sem violência, mas implacável e total (G. Gallo, 1981). Este estudo realiza uma descrição e análise dos problemas relacionados com os recursos hídricos, em especial, sobre a água de consumo doméstico em comunidades quilombolas do município de Salvaterra, ilha de Marajó. Busca-se compreender como os grupos percebem as dificuldades de não ter acesso à água e as alternativas encontradas para suprir necessidades do liquido vital. As restrições aos recursos hídricos estão associadas a diversas situações de privação de fonte de alimentos, derivados das limitações de realizar a pesca artesanal 2 , de dificuldade para aproveitar recursos vegetais da várzea (extrativismo do açaí), do impedimento de movimentar-se no território pelo levantamento de cercas que obstaculizam o passo por atalhos que conduzem a portos, igarapés e lagos. Procura-se revelar uma esfera de ação ou prática como 1 Este artigo foi elaborado no quadro do projeto de pesquisa “Águas da Pan-Amazônia: institucionalização de marcos regulatórios, visões de atores políticos e estratégias” financiado pelo CNPq ASCIN/PROSUL, sub- projeto: “Campesinato étnico em Salvaterra (ilha de Marajó): acesso, controle e qualidade dos recursos hídricos”. CNPQ/UNAMAZ/UFPA/CCB. A autora agradece a colaboração da geógrafa Adaise Gouvêa Lopes, dos alunos do Curso de Turismo da Faculdade de Estudos Avançados do Pará – FEAPA, que participaram na coleta de dados do Censo Domiciliar, no município de Salvaterra. No povoado de Pau Furado tivemos a colaboração da professora Maria da Conceição Sarmento dos Santos, do professor João Batista Paes dos Santos e em Barro Alto de Maurício Pereira de Souza, auxiliar de Enfermagem. 2 A bióloga Cristiane Nogueira desenvolve este problema no seu artigo: Território de pesca no estuário marajoara: comunidades quilombolas, águas de trabalho e conflitos no município de Salvaterra. Belém. 2005. Esse artigo é resultado de pesquisas para dissertação de Mestrado (PLADES/NAEA) em elaboração que teve apoio financeiro e logístico do projeto mencionado.

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USO, CONDIÇÕES DE ACESSO E CONTROLE DOS RECURSOS HÍDRICOS EM COMUNIDADES QUILOMBOLAS DO MUNICÍPIO DE SALVATERRA (ILHA

DE MARAJÓ)- PARÁ1

Rosa Elizabeth Acevedo Marin 1- INTRODUÇÃO

É a água que dá o sustento e cria dificuldades, consola e leva ao desespero, condiciona a saúde, o trabalho, a vida da gente: sem levantar a voz, sem violência, mas implacável e total (G. Gallo, 1981).

Este estudo realiza uma descrição e análise dos problemas relacionados

com os recursos hídricos, em especial, sobre a água de consumo doméstico em

comunidades quilombolas do município de Salvaterra, ilha de Marajó. Busca-se

compreender como os grupos percebem as dificuldades de não ter acesso à

água e as alternativas encontradas para suprir necessidades do liquido vital. As

restrições aos recursos hídricos estão associadas a diversas situações de

privação de fonte de alimentos, derivados das limitações de realizar a pesca

artesanal2, de dificuldade para aproveitar recursos vegetais da várzea

(extrativismo do açaí), do impedimento de movimentar-se no território pelo

levantamento de cercas que obstaculizam o passo por atalhos que conduzem a

portos, igarapés e lagos. Procura-se revelar uma esfera de ação ou prática como

1 Este artigo foi elaborado no quadro do projeto de pesquisa “Águas da Pan-Amazônia: institucionalização de marcos regulatórios, visões de atores políticos e estratégias” financiado pelo CNPq ASCIN/PROSUL, sub-projeto: “Campesinato étnico em Salvaterra (ilha de Marajó): acesso, controle e qualidade dos recursos hídricos”. CNPQ/UNAMAZ/UFPA/CCB. A autora agradece a colaboração da geógrafa Adaise Gouvêa Lopes, dos alunos do Curso de Turismo da Faculdade de Estudos Avançados do Pará – FEAPA, que participaram na coleta de dados do Censo Domiciliar, no município de Salvaterra. No povoado de Pau Furado tivemos a colaboração da professora Maria da Conceição Sarmento dos Santos, do professor João Batista Paes dos Santos e em Barro Alto de Maurício Pereira de Souza, auxiliar de Enfermagem. 2 A bióloga Cristiane Nogueira desenvolve este problema no seu artigo: Território de pesca no estuário marajoara: comunidades quilombolas, águas de trabalho e conflitos no município de Salvaterra. Belém. 2005. Esse artigo é resultado de pesquisas para dissertação de Mestrado (PLADES/NAEA) em elaboração que teve apoio financeiro e logístico do projeto mencionado.

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é o suprimento de água conectada com um conhecimento material dos recursos,

mas também relacionada com a ineficiência e ausência de serviços que agentes

e instâncias estaduais e municipais não têm procurado dar atendimento.

O trabalho de campo, realizado em 2003 e 2004, orientou-se para mapear

os modos socialmente compartilhados dos recursos hídricos e as formas como os

grupos reagem e buscam resolver os problemas vinculados à água de consumo

domiciliar; descrever as experiências dos membros das famílias, vizinhos e

comunidade na identificação dos problemas relativos a água e organizar e refletir

percepções e mitos associados à água na ilha de Marajó. Os procedimentos em

campo incluíram realizar entrevistas, oficinas e registro de dados quantitativos por

meio do preenchimento do censo domiciliar.

A ilha de Marajó é caracterizada na literatura como “terra anfíbia” (Luxardo,

1951) ou território onde é exercida “a ditadura da água” (Gallo, 1981).

Paradoxalmente, nessa terra com abundância de água, grupos sociais

experimentam a escassez e a má qualidade da água de consumo doméstico. Nas

seis comunidades quilombolas, onde foi realizada a pesquisa de campo – Paixão,

Providência, Siricari, Barro Alto, Pau Furado e Deus Ajude, apenas a última

dispõe de serviço de caixa d’água e de rede de abastecimento (água encanada),

o que fundamenta o discurso da abundância e de excelência (boa qualidade) da

água que utilizam. Contudo, a análise bacteriológica com base em coleta

realizada em potes, garrafas plásticas e poços, realizada nos domicílios e na

caixa d’água do povoado indicam não ser a água de Deus Ajude apta para o

consumo humano. O resultado idêntico aos cinco outros povoados, que não

possuem esse serviço de abastecimento, suscita questões sobre processos

edafológicos, de salinização e de infiltração das águas no lençol freático que

expliquem a contaminação da água e o aumento da salinidade. Todas as

comunidades revelam problema de contaminação. Em Mangueira, a comunidade

com maior número de moradores, os graves problemas com a água de consumo

mobiliza os moradores para realizar um abaixo assinado dirigido às autoridades

municipais e do Estado na busca de soluções para a grave escassez

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experimentada no verão de 2004 (anexo) somada à péssima qualidade da água

disponível para consumo.

A coleta de água de consumo domiciliar para análise bacteriológica foi

realizada paralela ao estudo sócio-antropológico, conseguindo o cruzamento de

discursos de mulheres e homens das comunidades negras sobre os problemas

cotidianos com o abastecimento, as doenças de veiculação hídrica e o

desatendimento deste direito fundamental: garantia do “uso da água para as

primeiras necessidades da vida” 3 (Decreto Nº 24.643, de 10 de julho de 1934 –

Código das Águas).

A primeira parte deste artigo descreve os povoados e os recursos hídricos

compartilhados, segundo concepções de uso comum e normas de reciprocidade;

a segunda descreve as estratégias para resolver os problemas vinculados à água

de consumo domiciliar e as experiências compartilhadas por famílias, vizinhanças

e comunidades. Destaca-se a problemática dos poços, que têm sido a solução de

abastecimento dominante nas comunidades. Na terceira e última, apontam-se

alguns elementos simbólicos associados à água na ilha de Marajó que podem ser

interpretados como mecanismos de regular o uso e realizar a proteção de

ambientes aquáticos: cabeceiras, lagos, igarapés e rios. Ainda, esses elementos,

revelam as negociações e conflitos no interior da comunidade e aqueles que

representam confronto aberto com outros agentes econômicos e políticos e suas

formas de uso dos recursos hídricos.

É importante mencionar que este tipo de estudo está sendo executado

com uma perspectiva de informar e discutir alternativas de solução com os atores

sociais. O projeto realizou uma primeira oficina no III Encontro de Mulheres

Negras Quilombolas, em Mangueiras, de 24 a 27 de junho de 2004, com a

participação de 158 pessoas, representando o conjunto de comunidades negras

de Salvaterra, e dos municípios de Acará, Ananindeua, Castanhal, Mocajuba,

3 Os resultados desta análise feita no laboratório de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Pará, sob a responsabilidade da profa. Dra. Karla Tereza Ribeiro, foram encaminhados à Secretaria de Saúde e Prefeito do município de Salvaterra; diretora do Programa Raízes, da Secretaria de Justiça do Estado; ao Secretario de Saúde do Estado e, por último, apresentado à Associação de Remanescentes de Quilombos de Deus Ajude, com a finalidade de tomar providências, dada a gravidade das situações verificadas.

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Santa Isabel do Pará, Capitão Poço, Baião e ainda representação Estado do

Amapá. Esse trabalho teve continuação em oficina realizada na comunidade de

Deus Ajude, em outubro de 2004, paralelo ao preenchimento do Censo

Domiciliar4.

Estudos sobre o uso dos recursos hídricos em nível local são prioritários

para identificar e analisar a nova realidade da Amazônia brasileira em relação aos

recursos hídricos. Essa realidade está marcada pela perda quantitativa e

qualitativa de fontes de água e de alimentos; de decisões, emanadas ou não do

planejamento que são contraditórias e incompatíveis com a preservação desses

recursos. O uso da água para exploração agrícola, industrial e comercial gera

inúmeros problemas que afetam populações tradicionais. O propósito desta

pesquisa é apresentar resultados que permitam definir as diretrizes e estratégias

de gestão na esfera local. As populações tradicionais possuem, pelo acúmulo de

experiências, próprias ao seu modo de produzir e de vida mecanismos de

controle que emergem dentro de processos territorialização e de culturas

particulares. Ao longo desses processos desenvolvem-se campos de conflito e de

construção de poderes econômicos e políticos que transcendem à comunidade,

ao povoado ou ao bairro; portanto, não constituem realidades localizadas, nem

isoladas. Jenipapo, povoado situado às margens do lago Arari (município de

Santa Cruz) focalizado na pesquisa realizada por Wagner e Sprandel5 retrata os

problemas da água no quadro de conflitos pelo território entre moradores antigos

do lago e os fazendeiros. Todavia, poucas pesquisas interdisciplinares têm sido

voltadas para a questão do uso dos recursos hídricos e sistemas de controle por

populações tradicionais.

Certamente é uma interpretação naturalista, como afirma o Pe. Gallo, que

na ilha de Marajó ou qualquer lugar desta quem manda é a água (GALLO, 1981: 4 Estes procedimentos de pesquisa têm-se desdobrado para o município de Concórdia, onde o trabalho de pesquisa iniciou com o I Encontro de Saúde Preventiva e Meio Ambiente no Município de Concórdia do Pará, realizado no dia 14 de agosto de 2004, na Escola de Curuperé (ver anexo). 5 ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de; SPRANDEL, Márcia Anita. Palafitas do Jenipapo na ilha de Marajó: a construção da terra, o uso comum das águas e o conflito, 2000. 35 p. (Mimeo).

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p. 63). As relações homens – natureza são amalgamadas por relações sociais e

de poder que se sobrepõem ao domínio das águas e, pretender situar a natureza

no plano de autoridade, é metafórico. O embate homem-água, que poderia

distinguir o conflito ambiental, precisa, antes, que se defina o conflito social.

2. Ocupação da sub-bacia do rio Paracuari

A cartografia antiga e moderna sobre o arquipélago de Marajó6 revela a

intrincada malha aquática e confere veracidade à identificação da ilha tão regada,

e banhada de tantos rios ... além dos seus muitos rios, tem e muitos e grandes

lagos... como escreveu o Pe. João Daniel (1722-1776) (1976: v. I, p. 66). As

primeiras descrições da ilha de Marajó tão cercada de outras ilhas, quase por

todos os lados e de ilhotas que a faz parecer uma mãe cercada de muitos filhos,

foram feitas pelo padre João Daniel no seu “Tesouro Descoberto no Rio

Amazonas”, que descreve a formação e desembocadura do rio Amazonas e situa

a contribuição das “ribeiras da banda sul do Marajó”: Pouco abaixo do Rio das Areas, o Amazonas se divide em dois braços. O principal vai para o Norte e deságua junto a Caiana onde recebe algumas ribeiras da banda do Sul da Ilha do Marajó. Este braço austral do Amazonas, mais caudaloso, com as águas de tantos rios, especialmente do Tocantins, continua o seu curso depois da Baía Marapatá e vai repartindo o terreno em várias ilhas. Forma as baías de Atuá e sai à grande baía chamada Marajó onde muito se espalha e estende. (Daniel, 1975; v. I, p. 40)

6 A descrição da Ilha de Marajó pelo Pe. João Daniel mantém atualidade. O religioso escreveu discurso ao dizer que a Ilha do Marajó, merece o primeiro lugar por ser a maior de todas. Ela foi chamada também de Joanes ou Ilha Grande. Forma todo o continente do Rio Amazonas entre as suas duas grandes bocas, uma que busca o Norte, que é a principal, e outra que deságua pelo Sul. Entre as referidas bocas está este grande torrão de terra com o nome de Ilha Grande, pois lhe dão de comprimento mais de 60 léguas e outras 60 de largura. Medindo o comprimento de Leste a Oeste, principia-se um pouco acima do Tajupuru, até onde ela faz frente ao mar, que chamam de Barreiras. Retoma o debate dizendo sobre seu comprimento de Norte a Sul, porém todos concordam que é Ilha do Marajó é uma das maiores do mundo. Ela é repartida em muitas ilhas e penínsulas com os rios que juntamente a banham e fertilizam (Daniel, 1975; v. I, p. 64-65).

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Nessas observações, focaliza o embate das águas do rio Amazonas (o

monarca dos rios) com o mar que faz recuar por muitas léguas” e o perigo que

representam a grande baía do Marajó e Arari que se comunica com a baía de

Carnapijó e são bravas e perigosas pelos seus muitos baixos (Daniel, 1975; v. 2,

p. 41). Da grande Ilha Marajó, “abraçada” pelo rio Amazonas “com os seus dois

braços” os mais caudalosos cursos de água são o rio Anajás, que deságua no

Tajupuru, Marajó e Arari, que desembocam nas baías do mesmo nome, e o

Igarapé Grande, que deságua fora da barra para Nascente. (Daniel, 1975; v. 2, p.

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O rio chamado Igarapé Grande que deságua para o Sul da ilha de Marajó

é, como escreve Agassiz, um “corte” que põe em evidencia três formações

geológicas do Amazonas e que abriu caminho para as invasões das marés do

Oceano Atlântico (Agassiz apud Marajó, 1992; p.59). Para as populações que se

estabeleceram na parte denominada Marajó Oriental o Igarapé Grande é o

principal eixo fluvial, também conhecido como rio Paracuari. Os pescadores e

barqueiros das comunidades negras que conhecem suas voltas lhe dão três

denominações que correspondem a segmentos de um espaço aquático – Rio

Paracuari, Igarapé Grande e São Lourenço – que é continuo e resulta familiar ao

seu modo de vida. Também para eles são familiares todos os furos que seus

ancestrais conheceram por tê-los transitado e até batizado como o furo do

Miguelão7, Taboca e de Santa Lourdes. Navegar pelos furos é sempre uma forma

de reduzir a periculosidade de trechos do grande rio ou de ter a vantagem de

encurtar a distâncias, muitas vezes encontrando outros perigos8. Foram esses os

7 Durante a pesquisa realizamos, no mês de outubro de 2004, uma viagem de barco de Mangueiras a Soure, que tardou cinco horas, realizado durante a noite. Navegamos pelo furo Miguelão que oferece grande perigo nas curvas por causa dos fundos e da vegetação que fecha as margens com risco de choques. Seis dias depois desta viagem, tivemos a notícia de um acidente que vitimou o Sr. Manoel Alcântara, de 81 anos que regressava de Soure onde tinha recebido sua aposentadoria. O barco se chocou com uma árvore e ele que vinha sentado no convés do barco teve as pernas mutiladas. As condições dessa viagem de barco eram péssimas, mais de 30 pessoas, entre crianças e adultos, apinhavam-se dentro da embarcação: algumas em rede, outras deitadas no piso do barco, junto com bicicletas, sacolas e caixas. As autoridades não atentam para os problemas do transporte e as pessoas estão obrigadas a submeter-se a estas situações. 8 O Pe. João Daniel apresenta detalhes sobre os furos “que elegem por evitarem os perigos das costas nas Baías Arari, Marajó”. Destaca, além do seu significado em língua brasílica – igarapé

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caminhos transitados pelos escravos fugitivos das fazendas localizadas às

margens esquerda e direita do Igarapé Grande.

A ocupação colonial foi realizada acompanhando os rios, lagos e igarapés.

À margem direita do rio Paracauari, foi formada a fazenda São Lourenço e,

aderente a essa, estava a Roça de São Macário, que reunia os índios aldeados

trabalhando nos plantios de mandioca. Fazenda e roça formavam parte do

patrimônio dos padres mercedários9 (BAENA, 2003, p. 191). Ademais desta,

possuíam duas fazendas no rio Arari; uma na foz, de nome Santa Anna, e, outra,

no interior. Na costa boreal da ilha de Joanes tinham as fazendas: São Pedro,

Dos Retiros, São João, São José; Guajará; São Jerônimo, na foz do rio Arari.

Também os jesuítas tinham cinco fazendas de gado vacum e cavalar na ilha

Grande de Joanes. Os Carmelitas contavam com posses menores; na ilha de

Marajó era apenas uma fazenda de gado no rio Câmara.

Na passagem do século XVIII ao XIX, o número de escravos africanos

aumentou nas terras dedicadas ao cultivo da cana de açúcar e nos engenhos,

localizadas na parte ocidental. A criação de gado dominava os campos naturais

da parte oriental e setentrional. Nas vésperas da Independência, a população

escrava da ilha representava menos de ¼ do total. As notícias de fuga de

escravos10 não eram raras, direcionando-se para os pequenos cursos de água e,

rumo ao norte, procuravam alcançar Macapá e Caiena (GOMES, 1999;

ACEVEDO, 1985; SALLES, 1978). Os pequenos cursos e furos que se

encontram na história; os escravos e seus descendentes; passam

mirim – pequeno caminho de canoas que os índios tinham superstição pois ali habitam seus pajés e quando por eles passam e atravessam lhe oferecem algum mimo em sinal de respeito e adoração que deixam pendurados dos ramos das arvores, que cobrem e assombram o furo (Pe. Daniel, 1976. V. I, p. 46-47). Em viagens pelos furos os barqueiros dão avisos nas curvas estreitas, prestam atenção e permanecem silenciosos em estado de alerta. 9 Em 1794, a fazenda São Lourenço ou Paracauari foi seqüestrada dos Padres Mercedários. Posteriormente, passou a ser conhecida como fazenda São Macário. Essa informação é um elo importante da história doas terras do povoado de Bacabal. 10 Gomes informa, com base em pesquisa de arquivo, a existência de mocambos na Ilha de Joanes, Soure, Caviana, Mexiana, Arari e Chaves (GOMES, 1999, p. 286). No estudo de Gomes e Nogueira (1999) sobre a deserção na época colonial, citam os mocambos descobertos e as prisões realizadas em Chaves e Ponta de Pedras. Expedições foram feitas nos mocambos situados no igarapé Acorahy e rio Iaraucu nas proximidades das vilas de Veiros, Pombal e Souzel (GOMES & NOGUEIRA, 1999, p. 216-217).

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desapercebidos nos estudos de geógrafos mais atenciosos (NUNES PEREIRA,

1956; FERREIRA PENA, 1971).

As comunidades quilombolas abriram retiros e povoados próximos de

igarapés e vários compartilham igarapés, rios e lagos de menor volume, mas de

grande importância para sua existência física. O igarapé Siricari11 é central para

pessoas que vivem e se cruzam indo para Siricari, Caetano, Providência e Deus

Ajude. Já o rio Siricari e o denominado lago de Siricari tornam-se muito próximas

para os moradores de Barro Alto e Pau Furado. Os povoados de Bacabal, Pau

Furado e Barro Alto têm em comum compartilhar do rio São Macário, distinção

feita a uma parte do rio São Lourenço.

O igarapé São Tomé é o enlaçamento da história das famílias do retiro

Boa Fé, do povoado de Paixão de Boa Esperança. Ao norte, os igarapés Aterro e

o rio São Joaquim são compartilhados pelas famílias de Salvá e Mangueira, além

de ter um território comum banhado pelas águas do rio das Tartarugas e do rio do

Saco.

Os lagos, permanentes ou temporários, próximos do povoado, são

destacados pelos moradores como referência do ecossistema de campinas e

campos da ilha onde elaboraram modos de vida, de trabalho e de produção por

mais de uma centúria. Nesses lagos, pescam; e, nas margens, encontram

arvores frutíferas. Em vários casos, esses lagos têm existência temporária, o

significativo é o valor que adquirem para as comunidades.

3. Recursos hídricos e regras de uso comum

Os rios Anajás, Arari, Muana, Marajó-Açu, Cujuuba, Afuá, Atua, Arapixi,

Quió, Paracuari e Câmara viram formar, nas suas margens, fazendas originadas

em doações de sesmarias dos séculos XVIII até 1822, que nem sempre foram

confirmadas como estabelecia a lei de 1702. Esse instrumento de controle de

imensas áreas com vistas à pecuária, não se estendeu à exploração dos rios e

11 O cotejamento dos rios e igarapés mencionados por Nunes Pereira no seu famoso trabalho de geografia sobre a ilha de Marajó apenas menciona o rio Sericari, que deságua no rio Paracuari.

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lagos, ricos em espécies ictiológicas desconhecidas dos colonizadores. Portanto,

não foram os rios integrados a esse sistema de apropriação. D. Afonso criou, por

Carta Real, as Pescarias Reais que se destinavam ao suprimento de alimento

das tropas, das tripulações dos barcos da metrópole e de exportações que se

dirigiam ao reino (ACEVEDO, 1985, p. 81).

A prosperidade dos pesqueiros reais foi curta e, em 1818, o de Soure

passou da administração provincial para as mãos de concessionários, até ser

suprimido, em 1827. Os Aruans – mestres pescadores – haviam ficado

arregimentados por ordem real ao pesqueiro e, com seu fim, estavam livres

dessa sujeição. Baena afirma que não havia nenhum capital suscetível de manter

esse número de pescadores e nem eles aceitariam voltar ao regime anterior

(BAENA, 1839, p. 281-282). A pesca se transformou em atividade de pequenos

pescadores pobres, que pagavam impostos ao fisco provincial quando sua

produção se destinava à capital.

Os modos de existência e as formas de organização desses pescadores

lhes permitem controlar territórios de pesca, relativamente independentes das

terras controladas e vigiadas pelos feitores dos fazendeiros; em especial, trata-se

de ocupação de igarapés e de rios menores e lagos.

O território das comunidades quilombolas de Salvaterra situa-se na sub-

bacia12 do rio Paracuari e os pequenos igarapés que o circundam e cruzam

12 Segundo a Secretaria Executiva de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente – SECTAM, a ilha de Marajó está compreendida na região Hidrográfica Portel-Marajó, que ocupa uma área de 10,8% da área do estado. As principais drenagens são provenientes dos rios Anapu, Pacajá, Marinau, Tueré, Pracuruzinho, Curió, Pracupi, Urianã, Arataí, Mandaquari, Jacaré-Paru Grande, Jacaré Paruzinho, Anajás, Aramã, Jacaré, Cururú, Afuá, Jurupucu, Jurará e o rio dos Macacos. Esta região é composta pelos municípios de Portel, Pacajá, Bagre, Novo Repartimento, Anapu, Breves, Chaves, Afuá, Anajás, Curralinho, São Sebastião da Boa Vista, Muaná, Soure, Salvaterra, Cachoeira do Ararí, Santa Cruz do Arari e Ponta de Pedras. O clima nesta área é equatorial úmido, com amplitude térmica mínima, temperatura média em torno de 27ºC, sendo que a mínima superior em torno de 18ºC e a máxima em torno de 36ºC. Umidade máxima elevada em torno de 90%, com alta pluviosidade nos seis primeiros meses do ano, sendo o trimestre mais chuvoso fevereiro, março e abril, chegando a coletar 350mm, no último mês; enquanto que os meses de agosto, setembro e outubro, aparecem como o período menos chuvoso, com a precipitação aproximada de 70mm no mês de outubro. O índice pluviométrico anual é em torno de 2300mm. A insolação média anual é aproximadamente 2.200 horas. Essa sub-região abrange a ilha do Marajó, que representa um dos locais mais ricos em termos de recursos naturais no estado do Pará. Devido às diferenças em suas características fisiográficas, ela divide-se em Marajó Ocidental e Marajó Oriental. A Bacia dos Rios da Região Ocidental do Marajó tem como coordenada geográfica em torno de -00º42'36'' a -01º53'24'' de latitude, e

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corresponde a formas de apropriação e de uso comum de recursos hídricos.

Esses igarapés formam uma rede de conexões sobre a qual temos uma

aproximação por meio das informações de campo.

Segundo as informações de moradores de Deus Ajude, o igarapé Siricari é

o mais importante para esta comunidade: Siricari, Caetano e Providência. Este se

encontra com o Mãe de Deus

Vai pelo igarapé Siricari, chega no Mãe de Deus e daí pode chegar até Câmara. No período do inverno vai até Rosário e dali vaia no Câmara. No verão fica seco e passa-se em um lugar chamado Conceição. Paixão e Conceição estão perto. Conceição é perto de Siricari. Ali somente tem uma casa.

O igarapé São Tomé serpenteia e, às suas margens, estão o retiro Boa Fé

e Paixão. Para Barro Alto, o igarapé Matopirituba é o mais importante.

Nas comunidades existe consenso sobre a importância dos igarapés para

pescar e catar sarrara, siri, camarão e caramujo. Neles fazem tapagem na

procura desses alimentos. Outro reconhecimento é sobre a importância das

cabeceiras dos igarapés, pois nelas “desovam os peixes”.

A vida e ritmos dos igarapés forma parte de histórias e conhecimentos

compartilhados. Um entrevistado de Paixão fez a síntese das vivências dos

moradores da comunidade com o igarapé São Tomé:

O igarapé São Tome de novembro para dezembro fica seco. Eu viajei muito por ele de canoas a remo. Ia para a fazenda Cacoal, na mesma margem desse rio que vai para o rio de Soure, o Igarapé Grande. O São Tomé acaba no rio Paracuari. Essa viagem foi feita há quatro anos e durou 6 horas. As cabeceiras estão no igarapé Mata Fome, mas essa cabeceira foi serrada. O igarapé precisa de cuidado. O peixe vem do rio de Soure, mas esse braço esta serrando e não está transitando mais.

48º18'22'' a 51º24'21'' de longitude. Seus limites são: ao norte o estado do Amapá e o oceano Atlântico; ao sul o rio Pará; a leste a bacia dos rios da Região Oriental do Marajó e a oeste o estado do Amapá. A área desta Região é de 37.062,201 km2 correspondendo a 3,0 %. A Bacia dos Rios da Região Oriental do Marajó tem aproximadamente como latitude - 00º22'02'' a -01º45'00'' e longitude 48º18'06'' a 49º52'03''W. Aparece como limites: ao norte Oceano Atlântico; ao sul o rio Pará; a leste a Baia do Marajó e a oeste a bacia dos rios da Região Ocidental do Marajó. Sua área é de 21.328,425 km2 que corresponde a 1,7 % do estado.

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Nesses igarapés situam-se portos e trapiches que constróem parte da

história dos povoados, por ter sido o meio de comunicação mais importante e

uma forma de construir uma unidade. A referência de distâncias e tempos de

viagens entre os portos e trapiches foi feita a partir de vários depoimentos. Do porto de Pau Furado para o porto de Bacabal o tempo de

viagem de canoa é de 10 minutos. Do Porto de Deus Ajude para Mangueira é de três horas e media. Do porto de Santa Luzia para Deus Ajude é de duas horas e desse mesmo porto para Mangueira o percurso demora três horas. Do porto de Bacabal para Mangueira são duas horas e do Porto de Deus Ajude para Santa Luzia media hora.

Esse é o tempo calculado para atualizar relações de parentesco, de trocas,

de serviços e de seguir o tempo santoral desta parte da ilha de Marajó. Essa

referência de distância muda muito devido à construção de ramais entre os

povoados e os moradores terem feito, da bicicleta, o meio de transporte mais

freqüente, aposentando as canoas. De uma década para cá, a bicicleta é o bem

de consumo mais cobiçado.

As canoas, os barcos e os portos vão ficando para trás, exceção dos

múltiplos movimentos para chegar nos territórios de pesca que disputam com os

fazendeiros.

Os igarapés exigem cuidados que o desuso não facilita. Antes havia uma

rotina dos canoeiros cortar os paus: quando tínhamos canoas, limpávamos o rio

com machado. Era a passagem da canoinha que necessita esta limpa. O

abandono dessa embarcação não está dada apenas pela mudança do meio de

transporte: bicicletas e carros que entram no ramal, mas também pela falta de

“paus para fazer canoa”. Em Paixão, o conflito com o fazendeiro lhes impede

entrar na terra para ir buscar as madeiras. Eles não têm dinheiro para cortar. Os

conhecedores da confecção de canoas não aposentaram sua prática, apenas

experimentam a restrição de “não poder tirar mais madeira para fazer nada, não

poder tirar uma palha”. Os conflitos pela “beirada” e os lagos onde podem pescar

torna-se mais acintosa.

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As comunidades enfatizam os lagos que estão dentro dos seus territórios

e, essa referência também considera os problemas de acesso a lagos que

ficaram seqüestrados dentro das cercas das fazendas.

Os povoados A ilha de Marajó de hoje é produto de um processo de partilha da terra

entre grupos sociais formados nos séculos XVIII e XIX, o que dificultou, em

grande medida, a expansão da agricultura e do campesinato em tempo mais

recente. Roceiros, vaqueiros e pescadores lutaram para permanecer, muitas

vezes, no meandro das fazendas e dependentes de uma espécie de aristocracia

com poder de controle sobre a terra. O fato mais persistente na ilha é o processo

de concentração de terras e a formação dessa aristocracia local que demarca a

continuidade de relações sociais de subordinação de camponeses, sitiantes,

vaqueiros, pescadores, aos donos das fazendas. Entretanto, é importante

reconhecer que o mundo agrário do arquipélago também tem uma diversidade

considerável de tamanho de propriedades, de formas de acesso, de grupos

sociais formados pelos herdeiros e deserdados.

O povoamento da ilha tem sido objeto de observações que ressaltam o

“vazio da ocupação humana” enquanto o boi e búfalo tomaram conta dos campos

naturais. Essa visão hegemônica não considera a existência de um campesinato

negro que se originou da formação de mocambos na ilha, da existência de

pequenos sítios, de concessões, doações e aquisições de terras por grupos de

famílias que lutam por uma condição de autonomia e que, na maioria das

situações, ficaram limitadas pelas cercas das fazendas. É importante assinalar a

diversidade de acesso a terra, via doações, registro de posse e de ocupação por

várias gerações e compra de pequenas áreas como forma consuetudinária

principal de deter o usufruto da terra, floresta e cursos de água. Vários povoados

revelam essas origens diferenciadas. Hoje, sua contribuição á agricultura, pesca

e criação suína e de aves, na ilha, é um fato inegável. O seu grau de

envolvimento com o mercado e os negócios urbanos registra uma tendência ao

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13

aumento, em parte pelo impacto de rupturas das relações de reciprocidade com

menor regularidade das trocas entre comunidades e as famílias. De muito tempo

atrás data seus envolvimentos para enviar seus filhos a trabalhar na cidade como

amas e domésticas. A vida social se desenvolve dentro do limite do mundo do

sítio rodeado das fazendas, com diferentes envolvimentos como trabalhadores,

como cultivadores com acesso autorizado pelos fazendeiros ou gerentes. Nesse

tecido social distinguem-se os herdeiros e não herdeiros. Na ilha de Marajó

observam-se diferenças nos modos e meios sociais de vida. Pode-se afirmar que

o arquipélago incorpora poucas mudanças; em especial se a atenção é colocada

nos movimentos lentos de desconcentração da terra, por partilha dos grandes

herdeiros e vendas, mas em geral a ilha experimenta lento crescimento

demográfico.

Alguns antigos pequenos povoados decrescem por força de um processo

de implosão feito de dentro dos povoados. Outros, como Mangueira, cresceu; e

informam que cada vez menos pessoas nascem em fazendas, igual situação

ocorre em Deus Ajude, o “Grande Caldeirão e Campinas”, significando uma

quebra do padrão de relações dos antigos vaqueiros, que permaneciam por

décadas vivendo dentro da fazenda e se integram aos povoados.

Nos sítios estão reunidos os “herdeiros de uma terra”, como representação

tanto de uma filiação como de formas de acesso a um patrimônio. Trata-se de

uma herança compartilhada por filhos e filhas, característica que foi destacada

por Eric Wolf examinando outros contextos sociais e históricos nos seus estudos

sobre campesinato. A partir destas práticas se reconhece o direito dos herdeiros

e a “descendência bilateral”.

O município de Salvaterra, o de menor extensão de terra da ilha,

compartilha, com Soure, o rio Grande, Paracuari ou São Lourenço. Entretanto, a

divisão administrativa decretada pelas autoridades revela pouco significado para

entender a história da formação e compreender a intrincada rede de relações

entre os “povoados”, as diferentes localizações dos sítios que lhe deram origem.

Mangueira, por exemplo, com dificuldades de transporte, estabelece maior

intercâmbio comercial com Soure. Todavia, está na jurisdição de Salvaterra. Na

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14

atualidade, o efeito desta divisão tende a produzir diferentes feixes de relações

em função de serviços.

Salvaterra tem uma extensão de 804km e uma população total de 14.615

habitantes (censo de 2002), desta população 56,7% é considerada urbana e

43,7% rural. O survey realizado nos 11 povoados, com uma maioria de população

negra e mestiça, indica um total de 1916 pessoas, o que representa 35% da

população rural. Nesta contagem não está incluído Caldeirão, com mais de 100

casas. As famílias que vivem no lugar mantêm vínculos estreitos com os

povoados negros que se formaram nos séculos XIX e XX. Este dado é

significativo da importância desses grupos na economia e sociedade local.

População nas comunidades

5% 12%

17%

10%23%2%

6%

4%2%4%

15%

Deus Ajude Bacabal

Barro altoBoa VistaM angueirasPaixão

Pau FuradoProvidência SalváSiricari

Vla União

Os herdeiros de Deus Ajude e de Providência

A origem do povoado Deus Ajude apresenta-se completa em duas

narrativas conectadas: uma a existência de um “retiro” que tinha uma casa de

nome Retiro Deus Ajude. Este é o lugar de onde se expande o antigo povoado.

Esse retiro pertencia a Luís, que teve várias mulheres. Uma índia ele cassou no

mato. Também teve como mulher uma escrava. Outra mulher vivia em

Mangueiras. Tinha roças e gado. Aliás, ele chegou a comprar terras em Deus me

Ajude, Natividade Boi Gordo, Mangueira e Dalas. Em cada um desses lugares

tinha uma mulher e muitos filhos.

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Na área de Natividade Boi Gordo, abriu terras para plantar e também fez-

se uma vila. Ali morou Jorge Florêncio e Irmã. Neste lugar há coqueiros antigos e

mangueiras. Parte do território de Deus Ajude compreende a doação feita por um

alferes.

Para compreender a existência social do campesinato da ilha de Marajó é

preciso adentrar na noção de herança da terra, que tem um alto valor social em

cada povoado. Deus Ajude começa sua história em um “Retiro” com esse nome.

Uma pequena casa relativamente isolada que aumentou com novas famílias,

novas roças e necessidades, e se transformou em um sitio. Deus Ajude formou-

se de uma parte que foi doada, em 1914, por um Alferes e uma compra realizada

por Luis Antonio de Souza. A área se compõe de Nossa Senhora de Natividade

do Boi Gordo, enquanto a compra recebeu o nome de Deus Ajude.

Luis Antonio de Souza é figura central na história de Mangueira e de

Providência, onde também formou família e teve muitos filhos. Negro, homem

livre, casou com uma mulher que era escrava e, esta, foi a célula do povoado de

Deus Ajude.

Nessas terras ele fazia roça e tinha algum gado. Era costume que, em

relação ao território da família titular da herança, se levasse um dos filhos para

tomar conhecimento sobre os limites da terra. O Sr. Lair lembra que, quando

jovem, seu pai o levou até o limite da terras.

Em Deus Ajude, atualmente, vivem 19 famílias, embora algumas

permaneçam um tempo fora do povoado. A Associação de Quilombo Deus Ajude

reivindica a herança. As famílias estão atentas aos limites. Um fazendeiro “mais

teimoso” entrou 100 metros. Esta entrada ocorreu onde eles mantiveram a

floresta em pé por pelo menos noventa anos.

Deus Ajude está ensaiando a agricultura do arroz e do milho,

coletivamente, como nos demonstrou o senhor Laerson Alcântara de Souza, de

66 anos.

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Providência

O povoado situa-se no caminho de Deus Ajude a Mangueira. Nessa área

de campo, os moradores registram ter havido aumento de rebanho de búfalos e,

ainda, várias cabeças são dos vizinhos, que solicitam para o rebanho pastar nos

campos do povoado. Com isto são obrigados a construir cercas em torno das

casas para evitar as investidas dos búfalos.

Algumas pessoas afirmaram ter título do terreno e pagar anualmente uma

taxa. Em pequenas áreas realizam plantios e cuidam da produção da farinha, a

qual gera renda para a família. Outras espécies cultivadas nos quintais são

destinados apenas para consumo.

O povoado de Providência fica situado bem no centro de um campo

natural, pouco distante de – 3 km apenas – de Deus me Ajude. Entre ambos

existe uma estrada metade piçarra, metade areia.

Em Providência a primeira observação recai sobre o campo de futebol,

verdejante entre o final da estação chuvosa e início do período de seca. As casas

da comunidade estão construídas formando um semi-círculo, distantes umas das

outras uns 30 ou 50 metros; outras são acessíveis atravessando o campo. Os

terrenos não são demarcados por cerca e os búfalos vivem a pastar durante a

maior parte do dia no povoado e só ao final da tarde eles são presos em um

curral. Esses búfalos são criados para serem revendidos quando a situação

financeira da família não está muito boa.

No povoado de Providência há fornecimento de luz elétrica, porém não há

igreja, escola e sede comunitária. As crianças do povoado estudam em “Deus

Ajude”. A terra de herança do Sr. Gilberto Leal de Sousa foi recebida do seu pai.

Ele decidiu, muito jovem, tentar a vida no Amapá e em Belém e, mesmo, em

Salvaterra. Depois da morte do pai foi chamado para assumir o seu pedaço de

terra e nele cultiva, cria galinhas, porcos e búfalo. Os filhos ajudam no dia-a-dia.

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As pessoas do povoado de Providência estabelecem laços de amizade e

vizinhança. Dentre os problemas existentes no povoado estão a falta de um

transporte que possa levar os moradores até Salvaterra ou para outros povoados,

em especial nos casos de doença, quando a bicicleta não resolve. Falta também,

no povoado, uma escola para as crianças e um posto de saúde que venha a

cuidar dos doentes em suas necessidades básicas.

Siricari

O estudo sobre os povoados da ilha de Marajó focaliza, em uma

perspectiva mais abrangente, o papel dos pequenos criadores e roceiros na

economia da ilha e em relação à expansão do sistema de fazendas. Também

considera situações que não são exclusivas do município de Salvaterra, pois as

relações sociais e econômicas são entrelaçadas e freqüentes com os moradores

de sítios e povoados de Cachoeira do Arari, Soure e Muaná, ou com grupo de

fazendeiros e de comerciantes da ilha.

Cada povoado distingue-se pelas suas formas de inserção e pelo perfil das

unidades de produção. Mangueira, Deus Ajude e Siricari têm mais acentuada a

criação de animais. A formação desta constelação de povoados destaca-se numa

área de campos que foi ocupada por fazendas, enquanto os roceiros e pequenos

criadores organizam sua base territorial no interstício das terras não apropriadas

pelos fazendeiros.

Siricari têm menor número de unidades familiares, contudo confere-se a

importância da criação, em primeiro lugar de suínos, com 73 animais, seguido de

bufalinos. Uma informação de campo indica que havia 40 búfalos13 embora no

formulário preenchido em cada uma das casas este dado não seja confirmado. A

formação desse grupo de pequenos criadores revela uma dupla estratégia de

criação para o consumo e de reserva de um patrimônio que pode ser negociado

em caso de necessidade. A questão é compreender quais são as oportunidades

13 Entrevista com a professora do povoado de Siricari, em julho de 2003.

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para adquirir animais e de ascender à condição de pequenos criadores? Que

significado eles atribuem à criação de búfalos? Que renda é gerada com a

criação de suínos e bufalinos e como este patrimônio é concebido? Como é visto

quem acumula mais animais? Estas questões foram examinadas para Siricari

como possibilidade de conhecimento sobre a organização econômica e social do

povoado.

Siricari conta com população maior que Providência e menor que Deus

Ajude. Os três estão mais ao norte e mais próximos do rio Paracuari, divisa entre

os municípios de Soure e Salvaterra. Outro detalhe é que guardam entre si

pequena distância e utilizam caminhos para estreitar seus vínculos, o que é

facilitado pelas passagens ou atalho. Esses roteiros de acesso a cavalo, de

bicicleta ou a pé entrelaçam vidas e histórias. Antes esse acesso era mais

freqüente pelo igarapé Siricari utilizando canoas e pequenos barcos.

De Siricari à sede do Município a distância é de 10km que são percorridos

por uma estrada acidentada, não asfaltada e com uma ponte. A bicicleta é o meio

de transporte mais freqüente. O trajeto entre Siricari e Deus Ajude pode ser feito

em menos de 25 minutos de marcha, tomando-se um atalho que encurta a

distância ao atravessar o sítio denominado Caetano. Outro percurso é feito

tomando o ramal grande de piçarra, mais distante da estrada comum a Deus

Ajude e Siricari, onde se encontra um núcleo de casas chamado de Passagem

Grande e, mais adiante, Boa Vista, que é fronteira com Paixão.

Em Passagem Grande e Boa Esperança nasceram algumas pessoas que

se mudaram para Siricari. À margem direita da estrada encontra-se o lugar

conhecido como São Cristóvão (ver croqui). Na parte norte e oeste, está

definida a fronteira com o povoado de Deus Ajude; na parte leste está o povoado

de Boa Vista e, na parte sul, limita-se com a fazenda do “Baiano” e o igarapé

Siricari.

Atualmente, Siricari conta com 17 famílias e o cálculo é que a população

alcança cem moradores, segundo a informação oferecida pela professora da

escola que reconhece o aumento de moradores. O levantamento feito durante a

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pesquisa cobriu 14 unidades domésticas censadas. Todavia o número de

construções é maior, incluindo casas vazias, galpões e casas de farinha.

A dispersão das casas indica uma estratégia, pois a localização,

reservando terrenos entre as moradias permite garantir um espaço lateral maior e

impedir o fechamento das fazendas. Nesses terrenos abrem-se os quintais, os

chiqueiros, as casas de farinha e os paióis. Pelo ramal da Passagem Grande

tem-se acesso ao um conjunto de onze casas. Do lado esquerdo estão duas

outras: em uma funciona um pequeno comércio, com uma mesa de bilhar. Este

espaço representa Siricari, propriamente. Do lado direito segue uma pequena

estrada, com quatro casas; este permite chegar a Caetano onde se encontram

três outras moradias.

Na parte central onde está a escola, bem na sua frente observa-se uma

área de campo de pastagens, utilizado na forma de uso comum pelos criadores

de gado e búfalos. Assim, a vegetação de campo domina no centro do povoado.

Na parte norte, mais ao fundo, observa-se um corredor por onde transita o

rebanho de alguns fazendeiros vizinhos que teimam em trazer para pastar seus

animais, ou atravessam por Siricari na busca de alimento e água nas

proximidades.

Roceiros, pequenos criadores e pescadores de Siricari elaboram

estratégias de reprodução e estas dependem de romper os limites físicos que

lhes impedem ter acesso às fontes de água e de alimentos. A diversificação das

atividades e a inserção de grupos de idade e sexo, nelas, forma parte dessa

estratégia. O povoado experimenta o cercamento realizado pelas fazendas que

levantam cercas de arame farpado para impedir a passagem dentro dos limites,

em muitos casos, arbitrários. Também, elas impõem o trânsito contínuo do

rebanho por dentro das terras do povoado. O conflito é permanente entre os

roceiros de Siricari e os donos de grande rebanho que atravessam o povoado de

leste a oeste.

Durante o II Encontro de Mulheres Negras Quilombolas do Pará as

representantes de Siricari apontaram as situações que desencadeiam tensões e

choques. De um lado, entre os vizinhos se estabelece um tipo de conflito que

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afeta as relações comunitárias e gera rupturas internas devidas à privação de

frutos e de interdições sobre a passagem por herdeiros de terras que contam

ainda com maior número de cabeças ou se reconhecem com direito a maior área.

Outros choques ocorrem entre os roceiros e pequenos criadores com os

fazendeiros que possuem grandes rebanhos e que, no movimento para fazer a

ampliação de domínios privados, têm reduzido o território do povoado. Esse

entrosamento dos animais é ainda mais grave, pois, boi e búfalos “estragam” as

plantações e rompem com o sossego.

A vida social se opera entre esses marcos e situações de enfrentamento

cotidiano. O vínculo com Deus Ajude é estreito e as famílias de ambos os

povoados compartilham as festas religiosas e alguns processos políticos, tal

como a emergência do movimento organizativo para formar Associações, o

avanço do grupo de mulheres ou eventos políticos nos quais são discutidas

alternativas para resolver as questões de terra e que permitam reduzir as tensões

entre pequenos criadores (também roceiros) e os médios e grandes fazendeiros.

Deus Ajude e Siricari dividem o igarapé Siricari e herança das terras.

Algumas famílias criam búfalo, mas o maior problema do povoado é ter sido

transformada em lugar de passagem do gado das fazendas vizinhas. Os velhos de Siricari eram cinco irmãos. E essa é uma herança de Lili,

Luciano e Osinho. Mas o povoado está sob a pressão dos fazendeiros e das

tensões internas.

NO OUTRO RAMAL – Baçabal, Pau Furado, Barro Alto e Boa Vista

Bacabal Na ilha de Marajó, o domínio das grandes fazendas se estabelece na base

de uma interligação de conflitos com os moradores dos sítios, que, ao mesmo

tempo, são trabalhadores e mantém as fazendas em funcionamento. As relações

sociais e políticas entre fazendeiros e moradores são fonte de instabilidade das

famílias e dos trabalhadores. Desta forma, os povoados cercados pelas fazendas

são pressionados para reduzir a área de roça e oferecer força de trabalho para a

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limpeza dos pastos e cuidados com o gado. Assim, o povoado apresenta graus

de dependência dos fazendeiros e, embora as famílias disponham tempo para a

roça, dependem da liberação do terreno.

A cerca é uma instituição na ilha e dispõe o território e os movimentos

cotidianos das famílias que podem necessitar mais tempo para ir até o rio, ou são

obrigados a atravessar as cercas.

Bacabal registra uma seqüência de conflitos com fazendeiros. Nos anos

50, é reconhecido um proprietário “alemão”, que atuava com despotismo e foi

desafiado por um homem da família Pereira. A briga foi considerada como uma

ocorrência comum com agressões físicas entre as partes. A polícia quis prender

cinco pessoas de Bacabal e, em todo momento, agiu a favor do alemão, que

pouco tempo depois abandonou a terra.

Como os documentos e proprietários da terra na ilha de Marajó parecem

nascer como a salvação na ilha de Marajó. Nos anos sessenta, chegou um

“fazendeiro” dizendo que era dono das terras de Bacabal e cercou o terreno.

Algumas pessoas solicitaram que deixasse um pedaço para fazer a roça. O

Joaquim Nunes proibia a passagem pelos caminhos, a pesca no rio, abrir roças e

caçar. A cerca fechou todo o terreno e os moradores ficaram presos. Nesse

tempo, o povoado ficou reduzido a dez famílias, pois muitos preferiram sair que

suportar essa situação.

A cerca da fazenda São Macário aprisionou o povoado que não dispõe de

área para plantar. Com a instalação da cerca foram derrubados os bacurizeiros e

as casas. Este fazendeiro já é morto e as famílias de Bacabal enfrentam suas

sucessoras, uma delas dona do cartório de Soure, a Dra. Eva Bofaiate.

No início a proprietária contratava os homens para serviços braçais. O

sistema era o de “deixar campo” ou formar capim. Depois não deu mais trabalho

e mandou prender um deles, que queria levantar uma escola.

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Barro Alto

Mariquara14, São Sabá, Santa Maria, Mãe de Deus, Campo Alegre, São

Pedro e São Luis15, são os nomes de sítios ou vilas que hoje ficaram engolfados

pelo nome oficial de Barro Alto. Cada um destes sítios reúne unidades

domésticas que adquiriram independência e, como tal, são merecedoras de

designação específica, na visão dos seus moradores, apesar da indiferença dos

“outros” para esta sua teimosia em dar nome e valorizar uma micro-história local.

No trabalho de campo surgem outras identidades espaciais que os

entrevistados buscam ressaltar e, muitas vezes, o pesquisador somente

consegue apreender depois de várias visitas e entrevistas um nome oficial para

um povoado e as designações para outros muitos lugares que se entrelaçam na

história de famílias, de sua mobilidade, de estratégias de sobrevivência. Além dos

sítios, os moradores de Barro Alto destacam os retiros onde começou sua história

de vida. Um entrevistado sublinhou “o retiro onde nasci chama-se Retiro Carmo”,

e, outros, acrescentaram ter nascido ou ter vivido no “Retiro Grande”. O “Retiro

Carmo”, talvez é o mesmo que “Vila do Carmo”. Também há a “Vila Galvão” que

também forma parte de Barro Alto. Ainda necessita ser acrescentado uma

localidade chamada Valentim e o lugar Roque.

Barro Alto, por influência externa, está também sendo reconhecido como

“Bairro Alto” pela força de codificação que produz essa toponímia, a qual não

chega a retratar realidades espaciais e sociais e procede a confundi-las. Portanto,

o primeiro esclarecimento é sobre o nome: trata-se de Barro Alto ou Bairro Alto?

A segunda identificação, com inspiração em uma espacialidade urbana, insiste

em Bairro Alto, uma categoria e classificação própria dos censos demográficos.

Ela é consoante à fala de técnicos e de setores políticos de Salvaterra, que

encontram eco nas localidades vizinhas, demonstrando, entretanto, falta de

conhecimento da história local. Dona Conceição, filha do fundador do povoado, o

Sr. Miguel Sarmento – rebela-se e desmente a denominação de “Bairro Alto”, pois

14 Conferem-se duas grafias desse nome: Marinquara e Mariquara; esta última consta mais freqüentemente nas entrevistas. 15 Alguns referem à denominação de passagem São Luis e o indicam como lugar de nascimento.

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o nome original está associado com a história de vida do seu pai conhecido pelo

apelido de Miguel de Barro Alto.

A descrição de Barro Alto necessita ser feita a partir dos seus sítios para

responder por uma realidade local que estabelece diferenças na toponímia, nos

planos de organização social e se baseia em micro-histórias. Esta diversidade de

sítios, retiros e vilas, de espaços pouco amplos, sugere, ainda, os deslocamentos

e as relações com a terra, segundo um processo de territorialização que

necessita fazer frente ao mundo das fazendas.

O grupo pensa o território no presente como formado por essas

experiências coletivas de ocupação que concretizam em cada sítio. Este

representa uma construção coletiva, associado a uma terra herdada e às

ocupações e modo de vida. Os herdeiros constróem suas casas, abrem

pequenos criatórios, cultivam roças e formam pequenas áreas de capoeira,

limitado pelas fazendas confinantes. No povoado, o sítio ou Passagem São Luis é

um dos mais antigos. Nele nasceu o senhor Marinho dos Santos. Mariquara é

igualmente centenário. Vila Galvão aparenta ser o mais novo aglomerado. Barro

Alto é um nome convencional. A Prefeitura de Salvaterra interveio e começou a

chamar de Bairro Alto para o aglomerado de casas, e isto facilitava seu controle

de informações sobre o conjunto. Os moradores resistem a está iniciativa

classificatória e mostram que não é possível confundir através deste nome todos

os sítios, que são diferenciados e menos se pode, arbitrariamente, referir todos

eles como “Bairro Alto”. Dona Conceição destaca sua experiência entre Barro

Alto e Maricuara: “eu nasci aqui em Barro Alto, terra do meu pai e fui casar em

Mariquara”16, neste caso são as inter-relações entre as pessoas que são

valorizadas e a socialização de coletivos.

Nos sítios estão reunidos os “herdeiros de uma terra”, como representação

tanto de uma filiação como de formas de acesso a um patrimônio. Dona

Conceição e seus irmãos receberam a herança de Miguel de Barro Alto; as filhas

de Maria Leal também se reconhecem como herdeiras. Trata-se de uma herança

16 Entrevista com Dona Maria da Conceição Sarmento dos Santos, professora aposentada.

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compartilhada por filhos e filhas, característica que foi destacada por Eric Wolf

(2000) nos seus estudos sobre campesinato. A partir destas práticas se

reconhece o direito dos herdeiros e a “descendência bilateral” semelhante ao

estudo dessas demarcações sociais descritas para o povoado de Jenipapo, no

lago Arari por Almeida e Sprandel (1998, p. 3).

No interior do grupo doméstico é posta em prática uma série de

consentimentos sobre: quem reconhece os limites da terra herdada; aquele

chamado a guardar a documentação; quem responde legalmente pelo

pagamento de taxas (ITR, por exemplo); aquele que realiza o registro em cartório;

o grupo de pessoas que decidem a atribuição de uma fração da terra para

estabelecer moradia, abrir roça ou colocar animais. Portanto, regras de inclusão

de um novo usuário de parte da terra herdada.

O estudo sobre Barro Alto parte da premissa de que a história local é

tecida no próprio entrelaçamento de histórias coletivas e individuais dos

herdeiros; dos direitos que são construídos por eles; dos antagonismos que se

estabelecem com os fazendeiros e outros agentes externos que interferem na

continuidade desse sistema de regras de uso e acesso à terra, recursos

florestais, hídricos e pesqueiros. As situações sociais na qual se produzem

antagonismos dificultam a permanência na terra e põem em risco a linha de

continuidade da herança, porque interferem nas formas de apropriação de

recursos (solos, hídricos e florestais) e exercem um poder de coerção sobre as

unidades familiares.

A organização dos sítios é a base para a formação dos povoados que são

englobados por esta estrutura que começa a se definir pela existência de capela.

Perto de São Luis, hoje Barro Alto, existiam Maricuara, São Sabá, Santa Maria e

Mãe de Deus. Nos documentos é registrado o sítio São Luis, origem de Barro

Alto. Esse nome se origina no apelido de Barro Alto que foi dado a um membro

das famílias fundadoras, de nome Miguel Sarmento, e foi consagrado pela

prefeitura de Salvaterra .

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A terra é reivindicada em nome dos herdeiros de Joaquim Marinho, que

calculam em 50 famílias. O documento de terra é guardado com zelo por uma

das famílias.

O povoado está cercado, na parte leste, pela fazenda Forquilha, pela parte

norte tem a Estação Experimental da EMBRAPA e, na parte sul, a fazenda São

Macário. A fazenda “Forquilha” tem como proprietário uma pessoa que

identificam como “o americano” e está sob a responsabilidade de um gerente. A

cerca foi construída e, no seu traçado, entrou cem metros no povoado.

Vários agricultores de Barro Alto plantam “na terra do americano” e,

atualmente, o abacaxi é o cultivo mais freqüente. Eles pagam com a limpeza do

campo, o que significa trabalhar oito dias por ano na fazenda. Os moradores

informaram que existem 30 pessoas que “dão serviço” para a Forquilha.

A padroeira de Barro Alto é Nossa Senhora do Bom Remédio.

Pau-Furado

No sítio chamado Bom Jardim que se originou da terra recebida por Miguel

Antonio Sapocaia, um escravo que foi morgado – rei e por essa distinção recebeu

de Dom Pedro II esse favorecimento, nasceu Francisca Gonçalves e sua irmã

Dorialva Gonçalves. Os filhos dessas mulheres, quando adultos, foram morar no

sítio Pau Furado, onde nasceu Domingos Engelhard Carneiro (1925). Este é um

eixo da história do povoado que somente é compreensível quando se conhecem

as relações familiares dos herdeiros e a existência do documento que comprova

os seus direitos sobre esse território.

No primeiro trabalho de campo em Pau Furado fomos conduzidos, por

uma das herdeiras das terras de Pau Furado, até a casa da “pessoa que toma

conta do documento”. Na primeira fase, o entrevistado foi instado a falar sobre a

terra e o povoado, o qual disse: “É um documento de terra muito antigo” . Os

filhos de Domingos Engelhard Carneiro receberam em heranças as terras que

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estão desde alguns anos empresadas pela fazenda Forquilha e a fazenda São

Macário.

Pau Furado e Pau Furado II são duas áreas de terra – uma dos herdeiros

de Domingos Engelhard17 Carneiro e outra de Guilherme de Jesus Correa. Estes

dois sítios compreendem áreas de menos de cem hectares com características

diferentes. Enquanto Pau Furado agrupa um grupo de herdeiros e não herdeiros

em 18 unidades domésticas que compartilham a terra, o chamado Pau Furado II

é, também, uma pequena propriedade na qual vivem duas famílias (pai e filho)

que têm gado e terra disponível, que cedem para os trabalhadores de Pau

Furado.

O dono dessa terra em Pau Furado II e seu filho são, respectivamente, tio

e primo do responsável da herança de Pau Furado. Ambos os povoados têm em

comum experimentar tensões e confrontos com os proprietários e feitores das

fazendas Forquilha e São Macário.

Um documento de terras no Cartório de Soure, em 1956, identifica,

conforme normas de registro de imóveis, um “lote de terras” no lugar denominado

Pau-Furado, “situado nas cabeceiras do rio “Matupiriuba”. Um dos seus limites

era um marco da fazenda São Macário que pertencia a Frederico Hundertermak,

situada ao oeste. Limitava-se, ao norte, com as terras de Severino Fonseca da

Silva e, ao sul, com terras devolutas. Este lote media oitenta e sete hectares e

teve título expedido pela Secretaria de Obras Públicas, Terra e Viação a favor de

Maria Martins de Jesus, em 1940. A família de Maria Martins formou uma

“herdade”.

Desses títulos são herdeiras Manelina, Santana de Jesus, Raimunda de

Jesus, filhas da família de Maria Martins.

Outros herdeiros são Airton José Chaves, Marina Paiva, Benedita, Elvira

dos Santos. O documento citado, quando da morte da testamentária, foi

17 Os Engelhard são figuras centrais na história dos povoados estudados em Salvaterra. Domingos recebeu o nome Engelhard em honra ao Prefeito do Município de Soure, daquela época.

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transferido, sob responsabilidade, no último tempo, a Rosemiro Alves Carneiro, já

morto. O relato sobre heranças e documentos sugere um significado redobrado

aos papéis de terra. Esses papéis correspondem a direitos e a representação de

condição social de herdeiros.

A vintena de famílias de Pau-Furado buscam terras para plantar nas

fazendas próximas. Para pescar, atravessam a fazenda São Macário até alcançar

o rio. Esta passagem entre as cercas significa tensão permanente. Os herdeiros

de Domingos Engelhard Carneiro são praticamente todos os moradores de Pau

Furado. Todos compartilham uma pequena área de 87 hectares. Esta herança

segue uma cadeia que começou com Maria Martinez de Jesus, mãe de

Domingos. A área que ocuparam eram de terras devolutas do Estado. A narrativa

sobre a iniciativa de ocupar a terra, segundo o entrevistado, “essa herança foi

obra do meu avô. Ele era muito ligado ao dono da fazenda. Meu avô era amigo

desse fazendeiro e fizeram um acordo. O fazendeiro deu muita força. Foi o

fazendeiro que tirou a terra em nome do meu avô”. Nessa terra vivem e

trabalham 16 famílias que constituem os descendentes de Maria de Jesus e seu

filho. Por consenso do grupo, quem toma conta do “documento da terra” é o neto

– o Sr. Ademir Correia Carneiro. Os Carneiro têm outra herança, na distinção de

serem os filhos do primeiro professor de Pau Furado, de nome Benedito Tomas

Carneiro casado com Maria Martinez de Jesus. Este é motivo de orgulho dos

seus netos, entre eles o entrevistado Ademir Correia Carneiro.

Benedito lecionava na sala de sua casa e, como sua mulher, também

dispunha de tempo para abrir e cuidar da roça de mandioca.

Paixão

Na estação das chuvas o igarapé São Tomé ganha maior volume de água

e é diferente do fluxo minguado que corre na época da seca. Esse tempo

diferenciado pela natureza é vivido pelos moradores do povoado de Paixão de

forma rotineira: consertam as táboas para atravessar uma ponte de uns 50

metros e ir detrás das terras de cultivo; igualmente, saem em varias direções

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procurando os pontos de pesca para cima ou para baixo. Também para desfrutar

a maior abundância de água para tomar banho e inventar brincadeiras. Se for

necessário, lavar a roupa e, se necessário também, retirar o líquido para usar nos

serviços da casa. Esse discurso e as descrições que evocam não correspondem

à situação presente do igarapé, da ponte, e do que era um porto.

O primeiro motivo é que o igarapé São Tomé ficou fechado dentro da

cerca e os movimentos dos homens, mulheres e crianças estão sendo impedidos.

A ponte que antes era objeto de reparos e cuidados, repondo-se táboas ou

pregando as que ficavam soltas, não está mais sendo realizado. Não podem

retirar madeira para fazer os consertos. Não possuem mais cascos e canoas,

pois têm dificuldades de retirar paus para dedicar-se a fabricar esses meios de

transporte. Antes, quando transitavam de canoas, prestavam atenção aos paus e

as plantas que nasciam e as retiravam para evitar que fechasse o igarapé; com

isto evita-se a “enseada”. A funcionalidade da ponte e do trapiche para o povoado

era essencial. Essa essencialidade não mudou, o que se transformou foram as

condições de uso e acesso.

A relação de usos prioritários e da indispensabilidade desse pequeno

igarapé no cotidiano é certamente marcado pelas estações, mas também pelas

situações de vida de homens e mulheres que reconhecem o igarapé na

existência do povoado e dos indivíduos. Podiam acrescentar-se observações,

muito necessárias sobre as dimensões simbólicas, estéticas e afetivas que detém

o igarapé São Tomé, braço do rio de Soure. Foi através dessas palavras que

alguns entrevistados iniciaram suas falas sobre Paixão.

O igarapé está presente na memória de várias gerações que fizeram de

suas margens e leito parte de uma história em comum. Essa história divide-se no

tempo do ser e estar “libertos” e no tempo da “maldita cerca”. Recorrente estas

expressões no seu discurso, o pesquisador é conduzido a encontrar os

significados para as expressões de resistência e revolta.

Neste trabalho estão as memórias e formas de expor a existência e os

problemas de sobrevivência de mais de 20 famílias que vivem em Paixão e Boa

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Fé. Este último é descrito como um “retiro” no qual encontrou refúgio a família

Rodrigues que, descontente e amedrontada com as pressões e violência dos

fazendeiros, buscou na “sobra de terra” um espaço em que se sente menos

atingida.

As restrições ao uso do território, definido por seus recursos hídricos,

faunísticos e florestais, têm tido profundo efeito sobre a estratégia de vida das

famílias. Terra e água são elementos vitais para a sobrevivência de uma

coletividade humana e, destes dois elementos, estão privadas as famílias do

povoado de Paixão e de Boa Fé. No primeiro, contam-se 16 famílias e, no

segundo, cinco famílias.

Ponte de madeira sobre o igarapé São Tomé. A margem direita está o retiro Boa Fé. (Foto A. Lopes, 2004).

Antigamente, homens e mulheres se moviam em um espaço mais alargado

que o povoado de Paixão ou das fazendas, para realizar a exploração de seringa,

abrir roças e pescar; com liberdade para seus deslocamentos em busca de

alimento, madeira para fazer lenha ou fazer casas, espaço de roças e lugares de

pesca.

Homens, mulheres e crianças sentem a perda do território onde gozavam

de liberdade para trabalhar, transitar, tomar banho de igarapé, brincar, jogar bola

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e correr, todas práticas que estavam enraizadas na sociabilidade e cultura do

grupo.

Essa dinâmica social e espacial sintetiza as formas de territorialização e a

noção de territorialidade que na Antropologia, sugere concepções de espaço e de

materialização de movimentos e de relações sociais que um grupo desenvolve

em um espaço social que é cultural e ecologicamente identificado na sua história

(OLIVEIRA, 1998).

O processo de territorialização, para Oliveira, revela o conjunto das

profundas mudanças no funcionamento das instituições e manifestações culturais

de um determinado grupo social decorrente da atribuição de uma base territorial

fixa, juridicamente definida (OLIVEIRA, 1998, p. 54-55). Essas mudanças

implicam, simultaneamente, a criação de uma unidade sociocultural, o que

provoca a reelaboração da relação do grupo com sua cultura e com a memória

(produção de uma “etnicidade”) e a constituição de mecanismos políticos

especializados e na redefinição do controle social.

O território é constituído pelas relações entre agentes, agências,

expectativas, memória e natureza. Todo elemento físico ou histórico que entra na

sua composição passa pelo crivo de um processo de simbolização que os

desmaterializa, mas por outro lado, constitui a entrada de novos elementos que

provocam rearranjos no conjunto e em especial sobre os recursos ambientais.

Portanto, o processo de territorialização pode ser visto como um dos

efeitos dessa naturalização, ao mesmo tempo em que como um de seus mais

eficazes mecanismos, por meio do qual uma territorialidade formada por fluxos,

trocas, sobreposições e empréstimos cede lugar a uma espacialidade definida

pela solidez de um “dentro” e um “fora”.

A visão dos povoados formados por grupos negros em Salvaterra é de

uma intrincada rede de relações sociais, elaborada com base em uma estratégia

de localizalização que estabelece um contínuo físico e imaterial de

comunicações. As ligações usando os rios e igarapés foram redefinidas pela

construção de ramais. Cortando a PA 154 segue uma estrada de piçarra situada

à altura das casas de Campinas, logo em seguida encontra-se Boa Esperança e,

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mais adiante, está Paixão. A comunicação entre esses povoados é constante.

Paixão está em relação estreita com Boa Esperança por ser o lugar onde fica a

escola freqüentada pelas crianças. Os vínculos com Campina e Vila União

também são regulares. As famílias usam a bicicleta para vencer a distância até a

“pista” e, com alguma freqüência, entram as kombis e carros no ramal de Paixão

para deixar algum passageiro.

Quando os entrevistados são instados a falar de Paixão mencionam dois

outros sítios próximos: Rosário, onde nasceram algumas pessoas que logo

vieram morar em Paixão e os que viviam em São Tomé, um e outro situados a

cada margem do igarapé. Mais adiante estava o sítio Trindade e Vista Alegre,

mais próximo de Boa Vista. De outro lado, às referências são Jubim, Campina,

São Benedito e Condeixa.

4. Poços, potes e vasilhame para armazenar água.

Grupos humanos que vivem tanto em meio rural como em urbano têm a

qualidade da água em nível de domicílio como fator ambiental mais importante

(HOGAN,1995) para sua estabilidade e qualidade de vida. Os diagnósticos locais

sobre os recursos hídricos são instrumentos de conhecimento que escapa às

cartografias e análise geral. Esse tipo de diagnóstico requer um trabalho

sistemático de observação.

O uso comum dos recursos hídricos e o problema da água de consumo

doméstico na ilha de Marajó não representam problemas novos, sendo que

diversos tipos de literatura já enfatizaram sua incidência e gravidade. Não se trata

apenas de situações derivadas de estações climáticas e sua incidência tem que

ser considerada como questão eminentemente social e política.

Estudo antropológico escrito por Wagner e Sprandel com base em trabalho

de campo realizado em 1993, 1994 e 1997, apresenta uma descrição etnográfica

do povoado de Jenipapo, construído sobre as águas, na margem direita do alto

do rio Arari, próximo do lago e que está comprimido entre os imóveis rurais de

pequenos criadores que deixam pastorar seus rebanhos nas bordas do lago. A

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despeito de condições físicas adversas, como é a elevação do nível das águas do

lago, os moradores do povoado desenvolvem adaptações de suas vivendas e

espaço de trabalho regido por um sistema aberto de usufruto comum dos

recursos básicos. Não há, neste trecho da referida margem, que se estende até a sede municipal, nem cercas, interditando o acesso às águas e pastagens, nem vigias, coibindo o seu uso. Não obstante a titulação em cartório, os recursos básicos são mantidos em aberto, em conformidade com regras centenárias que disciplinam o usufruto comum. Os campos e as beiras, de igual modo que os rios, os lagos e os igarapés, possuem assim características de uso comum que são concomitantemente públicas e privadas. Ademais são acatadas de maneira consensual quer seja pelos pequenos criadores e pescadores entre si, quer seja entre seus pares e internamente a cada um destes segmentos. Atestam-no não apenas o gado de diferentes donos, pastando em comum, mas também os critérios de apropriação não-permanente dos chamados pontos, que dividem o lago entre as diferentes equipes de pesca durante o verão. O individual não se sobrepõe ao uso comum, antes com ele se articula, permitindo que se imagine um amplo pacto entre estes e aqueles, quanto ao manejo dos recursos essenciais.

No tocante ao problema de água, Jenipapo, semelhante a todos os outros

assentamentos da ilha não possui saneamento básico. O abastecimento de água

para uso doméstico desse conjunto de povoados é critica. Almeida e Sprandel

observam o caráter crítico para os moradores que vivem em palafitas: Durante o verão, o lixo e os dejetos acumulam-se sob o casario

palafitado. Neste período do ano, as mulheres e as crianças, em pequenos barcos (denominados localmente de cascos), remam até a correnteza central do rio Arari, onde as águas idealmente seriam mais limpas, enchendo baldes e bilhas. Crianças também buscam água nas margens, onde registramos diversos homens adultos ensaboados, se banhando. A água recolhida no meio do rio e levada para casa é despejada num reservatório chamado "tamborão". Com esta água, as mulheres precisam cozinhar, lavar as roupas, limpar a casa, fazer a sua higiene pessoal e a de seus filhos. É também a água disponível para a maioria da população beber. Na sede municipal há um reservatório, que capta a água diretamente do Lago Arari conduzindo-às habitações apenas nas primeiras horas da manhã. O encanamento já atinge o Jenipapo, atendendo no entanto a poucas casas. No inverno, quando as águas sobem ao nível das edificações, surgem diversos problemas. O da comunicação, anteriormente apenas possível por embarcações, vem sendo resolvido pela ampliação de grandes extensões de pontes de

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madeira, com largura de 1.20 metros, e a 3 metros do solo, unindo as partes do povoado... O problema do abastecimento de água, porém, ainda é dramático. Com a água que cresce, se misturam os dejetos e a sujeira. O sistema de caixas de madeira como depósito fecal revela-se inócuo. As águas contaminadas por bactérias, parasitas e fezes de homens e animais (porcos, búfalos, reses), entre outros poluentes, envolvem todo o povoado. Sem opção, os moradores se vêem obrigados a consumir estas águas servidas. As consequências aparecem nos registros feitos pelo Posto de Saúde de Jenipapo: inúmeros casos de gripe, pneumonia (que atinge principalmente as crianças), diarréia (casos de morte de crianças de 0 a 5 anos), hepatite, cólera (nove óbitos em 1992 e três em 1993), diabete e hipertensão. A amebíase, conforme expressou um funcionário e agente de saúde, "não tem quem não tenha". Durante o trabalho de campo desta pesquisa foram registradas distribuições regulares de hipoclorito, insuficiente para tratar de toda a água necessária para o consumo. No inverno aumentam ainda os casos de feridas purulentas, conhecidas como "maria preta", comum nos braços, pernas e nádegas das crianças pequenas. O Posto de Saúde, que funcionava com apenas três agentes de saúde e cinco auxiliares de enfermagem, não tinha estufa de esterilização nem geladeira para conservar vacinas. Para conseguir uma água de melhor qualidade, além do uso de hipoclorito e de filtros, as mulheres de Jenipapo, durante o inverno, enchem os "tamborões" com água da chuva. Deste reservatório, no início do verão, sai a água utilizada para a lavagem de roupas, em bacias, no "terraço das casas"; para "ariar vasilhas" no "lavatório", que consiste numa tábua apoiada do lado de fora da janela da cozinha, ao lado do "tamborão"; para "assear" a casa, ou seja, lavar, varrer e espanar; para preparar a "bebida"(que consiste no café, chá de erva cidreira ou chá de capim marinho), o almoço e o chamado "chibezinho" (mistura de água com farinha, levada pelos homens nas pescarias).

Estas observações apontam para práticas dos moradores que tentam

minimizar os problemas, difíceis de solução sem o posicionamento firme das

autoridades políticas para criar a infra-estruturas de saneamento e controlar atos

que afetam o coletivo. Um vereador de município de Santa Cruz do Arari

explicava aos antropólogos que, de 1992 a 1996, a sede municipal havia estado

sem água potável pela destruição, pela passagem dos búfalos, dos canos

plásticos, pouco resistentes ao peso dos animais, o que tinha afetado toda a

cidade e os povoados conectados a essa rede de distribuição.

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É importante estabelecer algumas relações para situar claramente o

problema de uso da água nas comunidades negras rurais de Salvaterra. Já foi

mencionado o problema de contaminação da água de consumo doméstico nos

seis povoados onde se fez coleta e análise bacteriológica do líquido. Esta

questão é fundamental e reconhecida com preocupação.

Em Paixão, os cinco poços que foram cavados perto das casas do

povoado têm problemas de contaminação. Os moradores reconhecem essa

situação pela cor amarelada da água e o cheiro desagradável, o que tem tornado

a água potável uma demanda premente para a administração municipal.

Quadro: Problemas da água de consumo em comunidades quilombolas de Salvaterra

Povoado Nº de domicílios

Total habitantes

Problemas em relação à água

Deus Ajude 27 135

Água encanada alimentada por caixa. As pessoas tendem a deixar em desuso os poços. Contaminação verificada

Siricari 17 95 Uso generalizado de poço. Salinidade da água de alguns poços Contaminação verificada.

Providencia 12 Uso generalizado de poço. Contaminação verificada.

Paixão 15 7 Uso generalizado de poço. Contaminação verificada

Barro Alto 67 351

Uso generalizado de poço. Salinidade da água de alguns poços. Escassez de água. Cheiro de água podre

Pau Furado 20 122 Uso generalizado de poço.

Bacabal 61 384 Uso de água encanada e de poço.

Mangueira 91 561 Uso generalizado de poço. Escassez acentuada.

Todas estas comunidades estão situadas em uma área com “riqueza” de

recursos hídricos. Contudo, processos de contaminação do lençol freático ainda

não examinados provocam escassez e a perda da qualidade e quantidade desse

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líquido. A posição na banda oriental da ilha, sob a influência da maré oceânica é

responsável pelo gosto salobro da água na época do verão. Nesta estação a

água é escassa e igarapés, lagos e os poços secam. A água é espessa e

amarela, além de escassa. No inverno, a água de chuva encharca os campos,

mistura-se às fezes dos animais escoando para os poços, provocando sua

contaminação. Com essa mistura, a água se torna escura e de péssimo gosto.

Assim, às condições de degradação ambiental que estão ocorrendo na ilha

somam-se as situações do ritmo das estações. Confere-se que não se trata de

territórios densamente povoados, o que representaria um impacto antrópico maior

sobre rios, igarapés, lagos. O debate sobre população e recursos em

ecossistemas específicos exige analise sobre as condições de degradação

ambiental. Outro foco que é imprescindível neste tipo de estudo desenvolve uma

perspectiva comparativa 18 entre povoados e entre grupos de família conforme

elementos de localização. Nas residências, o objeto mais importante depois do fogão, geralmente a

lenha, é o pote de barro19 para armazenar a água de beber. O pote é uma

aquisição prioritária das famílias e representa a preocupação e cuidados com a

água de consumo. Em geral, os cuidados para proteger o pote levam a fazê-lo

um objeto decorativo na cozinha ou na sala, acessível às crianças de maior idade

e adultos. Enfeitado com capa feita de tecido ou de crochê, não passa

desapercebido como objeto valioso. Normalmente uma pequena estante serve

para colocar os copos de alumínio ou de plástico no qual se servem os

moradores da casa e os visitantes a quem se oferecem o líquido com modéstia.

Nas Escolas também se encontram os potes que são alimentados com a água de

poço ou a água recolhida da chuva, na época de chuvas, quando o líquido que

está no poço é intragável.

18 A segunda parte deste trabalho pretende completar o estudo sobre os povoados de Santo Antônio, São Judas Tadeu, Curuperé e Curuperezinho, no município de Concórdia do Pará, e estabelecer comparações nas situações e discursos sobre a água. 19 Esta observação pode ser ampliada para outras comunidades. No filme “Quilombos da Bahia” (2004), de Antonio Olavo, diversos registros mostram as pessoas entrevistadas sentadas ao lado do pote de barro e, estrategicamente, estão os copos de alumínio e plástico.

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Todos constatam o problema da

água e têm informações sobre os

cuidados mínimos para prevenir como

uso de hipoclorito ou processo de

fervura. Contudo, isto não é suficiente

para pôr em prática esses

procedimentos com a regularidade e

perseverança que o caso exige, dados

os níveis de contaminação.

Os cuidados com o pote é uma

limpeza regular, enquanto a água que

ali é guardada é coada usando um

pedaço de pano fino para reter parte

da terra misturada com o líquido.

Quando têm disponibilidade, algumas

gotas de hipoclorito de sódio; e,

excepcionalmente, algum entrevistado

mencionou que fervia a água.

A concepção de uso comum da água de mananciais por parte da

comunidade rege também o uso de água dos poços. Cada família, conforme suas

possibilidades, empreende a abertura de poço do tipo comum, e

excepcionalmente tipo artesiano. A localização é sempre na parte posterior ou

lateral da casa, o mais próximo da cozinha e do lugar as pessoas tomam banho a

diário. Em geral, essa localização toma distância das fossas, de 12 até 30 metros

dos poços.

Os poços comuns são escavações que têm de 3 até 6 metros de

profundidade. Esse serviço pode ser contratado por uma pessoa que conhece a

técnica de abertura de poço e o cálculo é de R$ 25,00 por metro (em

profundidade); em média o serviço importaria em R$ 150,00. Nesta escavação

não é feito revestimento das paredes o que faz que a água fique misturada

permanentemente com terra, tanto da superfície como das próprias paredes.

Fotos: Poços de Providência

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Estes poços a céu aberto são protegidos com madeira e, em alguns casos, têm

tampa para evitar a queda de folhas, insetos e anfíbios (é comum que os sapos

caiam e morram dentro dos poços). Esse cuidado é observado para evitar

acidentes, em especial a queda das

crianças de menor idade.

No inverno, as terras

encharcadas pelas chuvas escoam

para o interior dos poços que ficam a

um nível igual ou menor do que o

terreno adjacente. Essa água de

chuva é misturada com detritos,

urinas e fezes de animais, que

contaminam os poços.

Correntemente as paredes do poço cobrem-se de limo e a água passa a ter cor

esverdeada ou escura. O cuidado com a limpeza é para retirar a lama

depositada, folhas e animais mortos. A água é retirada utilizando o balde

amarrado a uma corda, sendo cheio na superfície do poço.

O poço artesiano é uma escavação diferente. Cava-se um orifício pequeno

que recebe um cano e com o uso de uma bomba é retirada a água que é

depositada em uma caixa. De todas as comunidades estudadas, verificou-se que

há apenas um poço artesiano em Deus Ajude, com 12 metros de profundidade.

Este sistema cria uma proteção das águas que correm pela superfície do terreno.

Neste caso, o resultado da análise bacteriológica indicou a contaminação por

coliformes fecais, o que se explica pela proximidade da fossa e de criação de

galinhas, a menos de 4 metros do poço.

Quadro: Tipo de poço e distribuição nas comunidades

Povoado

Nº de domicílios Poço comum

Poço artesiano

Total de poços

Deus Ajude 31 12 01 13 Providência - - - - Siricari 19 15 0 15

Foto: Poço “Boca aberta” de Paixão.

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Caetano 3 Paixão - Boa Fé

17 6 2

0 8

Barro Alto 67 56 01 57 Bacabal - - - - Pau Furado 20 11 - 11

Fonte: Pesquisa de campo, 2004. O quadro mostra a distribuição de poços por domicílio. Apesar do poço

estar considerado como um bem particular e aberto no terreno que é tido como

privativo de uma família (terreno, quintal e poço), este pode servir a várias casas

e famílias. Em situação de escassez, alguns poços secam prematuramente e,

neste caso, aqueles que contêm água e que seja “boa”, será utilizado por um

número maior de pessoas. Este é um esquema de divisão do recurso que é

negociado pelo grupo.

Alguns entrevistados têm a recordação de que as “as pessoas se juntavam

para fazer o poço” e, em algumas comunidades, houve tempo em que “todas as

casas tinham poço” apoiado nesse sistema de trabalho. Essa reciprocidade e

solidariedade em relação ao uso da água, é colocada a prova na situação de

escassez: Algumas vezes dividimos a água, onde há água. Eram os vizinhos, que

são famílias que fazem isso sempre.

O poço é aberto por caso. Alguém faz uma casa por aqui. Vai fazer de

barro. O barro que tira do poço já serve para calhar a casa e aí tem que continuar

o poço.

Abrir um poço é um investimento e quando este utiliza a tecnologia do

poço artesiano triplica o gasto.

Discurso sobre as estações e a água

O discurso sobre as estações e a apresentação da assinala opostos: entre

boa água e água de má qualidade.

Inverno

Verão

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A água não é limpa No verão a água seca

O poço enche com as águas da chuva É carência

A água é boa A água é salobra (alguns poços )

Em nenhum caso é usada a água para o serviço doméstico porque é

longe. Somente em caso de lavar roupa e momentos de distração em que tomam

banho.

Em esse igarapé Siricari as pessoas ao tomar banho por esporte. Nos dias de maré grande enche ai dá para tomar banho bom. Quando ele esta seco tem um, dois metros. Ele enche e fica com cinco metros, isso ali no leito do igarapé até acima.

A água do igarapé Siricari é obscura mais é limpa. Mas essa água do igarapé não tem poluição. Essa cor preta é pelas folhas das águas do igarapé.

O poço artesiano não tem problema de sujeira. Ele foi perfurado com maquina. Coloquei tela para evitar que entre terra. Quando eu mandei fazer esse poço eu paguei trescentos reais só para cavar, fora o material.

Essa água era um pouco melindrosa. Eu puxava no balde, coava no pano e colocava no pote. Mas essa água era melindrosa. Ela vivia no aberto e por isto era melindrosa.

O poço comum tem 4 a 5 ou até 8 metros de profundidade. Ainda tem água por aqui que tem água com 4 ou cinco metros. O meu poço, com oito metros, deu na água, mas perfurou mais quatro e deu melhor. Eu utilizava água manual. Não havia eletricidade.

Pode afirmar-se que a água é um problema sobre o qual gira o dia-a-dia

das comunidades que experimentam escassez e má qualidade. Algo diferente de

Deus Ajude que tendo “a água em casa, em torneira e de boa qualidade”, não é

problematizado.

Na concepção do espaço interno e externo da casa O poço tem que estar

próximo da cozinha. Em Providência não tem água encanada. Na casa de Dona

Maria Raimunda o poço tem uns dez metros. Cada casa tem poço. A água para

banho é próximo, mas o sanitário é mais longe.

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No inverno tinha que deixar a água assentar. Assentava e às vezes pegava água para ferver. O tratamento era coar a água. O poço tem que estar longe do banheiro. A lei diz que o poço tem que ter para a fossa 20 metros. O meu poço está na lei.

A água do meu poço é boa, é limpa. Tem gosto bom e é protegida por cano plástico.

Antes a água colocava-se no filtro.

Essa esfera dos cuidados com o poço abrange uma série de discursos que

escapam a uma observação superficial. A primeira necessidade é de cercar o

poço para evitar que os animais o contaminem, caiam dentro. Várias dessas

observações chamam atenção sobre as práticas e cuidados mínimos de ensinar

os perigos, os usos e os cuidados.

No inverno o porco mete o funcho. Há necessidade de colocar aterro e a tampa no poço. Tinha que ter muito cuidado com as crianças. Isso acontece sempre. Tem que cercar o poço A criança vai com a gente, acompanha na beira do poço e tem que falar sobre o perigo. Muitas vezes a madeira esta podre e pode quebrar. Os poços de boca aberta a gente fazia limpeza. Era assim escoava a água, quando estava seco, descia e lavava. Essa limpeza era sempre no verão. O que se tira do poço bem cuidado é folha, a areia. Todo depende do aseio Tem gente que joga pau, lixo, plástico. Se o dono é bem celoso não passa isso. O cheiro ruim da água é quando não limpa e pode cair sapo e ficar podre. Agora não se vê sapo mas no inverno é sapo, galfanhoto, catorra, barata da água, lagarto e até cobra. A folha podre vai ficando e podre vai deixar a água fedorenta.

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Do poço sai também areia, cascalho. Tem poço que dá muita

areia

Em Pau Furado e Barro Alto o formulário respondido por dois professores

e um auxiliar de enfermagem que sintetiza os pontos de vista do conjunto das

famílias, informa que:

a água tem má qualidade. Ela é limpa no inverno e amarela no verão com cheiro de folha podre.

A água é abundante no inverno e escassa no verão. No inverno é limpa e doce e no verão é escassa.

A água é de cor amarelada no verão e tem cheiro estranho.

No inverno a água é limpa e doce no verão é escassa e salobra.

O cuidado com a caixa da água tem que ser feito. E quando a água está com uma cor amarela.

A limpeza dos poços comuns exige vários cuidados, que não se tornam

regulares. A externa é feita cortando o mato arredor do poço. Dentro da cavidade é menos freqüente e com risco.

O perigo de descer no poço para limpar é que a terra pode desmoronar. Pode ficar preso. Alguém tem que limpar. No tempo da mãe do meu marido veio um homem para limpar. Escutou-se o soco e quando foram ver todo estava desmoronado. O poço desmoronou. O poço vai solapando, caindo as pedras. O poço tem olho d’água. O olho vai assolapando. Os poços de boca aberta a gente fazia limpeza. Era assim escoava a água, quando estava seco, descia e lavava. Essa limpeza era sempre no verão. O que se tira do poço bem cuidado é folha, a areia. Todo depende do aseio Tem gente que joga pau, lixo, plástico. Se o dono é bem celoso não passa isso. O cheiro ruim da água é quando não limpa e pode cair sapo e ficar podre.

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Agora não se vê sapo mas no inverno é sapo, galfanhoto, catorra, barata da água, lagarto e até cobra. A folha podre vai ficando e podre vai deixar a água fedorenta. Do poço sai também areia, cascalho. Tem poço que dá muita areia

Algumas vezes coloco cloreto no filtro.

Quando chegou a água encanada em Deus Ajude

A valorização do fato de possuir água encanada não é apenas objetiva.

Um entrevistado em Deus Ajude comentava uma situação assemelhada com a

riqueza: Em Deus Ajude todo pessoal pode ser considerado rico. Antes existia o

sacrifício até de fazer poço. Deus Ajude é um dos poucos povoados negros que

dispõe de água encanada e isto estabelece uma diferença, que poderia situar as

casas e as famílias em um ponto da escala de qualidade de vida. Antes o serviço

era de poço. Esta água é melhor que a água de Belém. Ajude e Providencia sempre tiveram água boa e ate na época da chuva era normal. Este poço foi conseguido através da Associação Quilombola que fez o pedido. Veio por intermédio do CEDENPA e dos Raízes20. Foi já no governo de Jatene. Ele estava em campanha e fez promessa que daria. Já tinham vindo pela Associação para ver os benefícios de Deus Ajude. E nos já tínhamos pedido do prefeito. Nesse pedido também foi o da luz. O engenheiro veio por intermédio CEDENPA; oh! não esse engenheiro veio pelos dos Raízes. Esse engenheiro veio ver o solo. O entrosamento maior para isso era com os Raízes e foi por meio dos Raízes que veio.

A descrição dessa obra foi feita com segurança pelo morador: O poço tem

profundidade de 32 metros e capacidade de 5000 litros. Possui uma bomba

elétrica equipada.

20 O entrevistado faz referência ao Programa Raízes.

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O serviço não é prestado por igual em todos os domicílios e somente três

casas têm água de torneira dentro de casa, aquelas que estão a dez metros da

caixa e cujos proprietários tem liderança interna: Somente duas casas não têm

água encanada e 19 tem água encanada. A água é um tanto conforme para toda a comunidade. Essa área onde tem as três casas com torneira é domínio da família Alcântara, outros pegaram o nome de Souza. As outras casas coletam em vasilha água da torneira que tem uso coletivo.

Os cuidados devem multiplicar-se com o sistema implantado, pois os

animais e carros ameaçam quebrar os canos: Tem que ter carro com os canos

porque o gado pode quebrar. Se passa carro há perigo de quebrar. Quando é no

baixo, na profundidade o gado no quebra

O atendimento da solicitação foi seguido de reuniões para discutir como

seriam realizados os trabalhos e administrados os serviços. Para o processo de

encanamento cada um assumiu os custos e cada um foi comprando o seu cano.

Também fizeram acordos para compartilhar das torneiras. Dona Olavia e sua filha

Sandra têm uma torneira em comum. O recibo da água consumida chega e é

feita a divisão dos custos. O interessante é o funcionamento de estruturas de

administração da comunidade tanto para encontrar soluções, como para fazer

frente a etapas do trabalho, custos e cuidados.

A instalação do serviço em Deus Ajude mostra o divisor de águas do

tempo do poço para o tempo da água encanada. A questão sobre quais as

diferenças nos dois momentos indica o impacto e mudanças provocadas por

serviços realmente básicos na vida da comunidade. Essa diferença foi vista na

qualidade da água, na comodidade e no tempo: A diferença entre água de poço e

água encanada. A água de poço tinha muitas vezes sujo.

Aqui na caixa da água teve um tempo que teve areia. O problema segundo

o Sr. Lair era somente do movimento.

A caixa de água de Deus Ajude é limpa cada 20 dias. Passam sabão e não

pode ser usada na limpeza outra coisa que não seja água sanitária. Aqui são

Aldo e meu sobrinho são os que a limpam. São os homens que fazem.

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O que mudou com a água encanada? Esta resposta suscitou uma serie de

reflexões sobre o cotidiano. As mulheres fizeram observações sobre o trabalho

quando apenas dispõem de poço: A gente cansa de encher água. Eu não sei

lavar louca com pouca água. Por este motivo a mudança se reflete no aspecto

físico:

O movimento do braço... deixou de puxar. Tinha que acordar, ir no meio da chuva para buscar balde. A água é melhor. Antes a pele ficava amarela. A água para lavar roupa, sobretudo a branca ficou melhor. Aumentou o consumo da água pela facilidade do encanamento. Depois que tem a água é encanada a água de poço não é usada mais para lavar roupa.

Água e doenças nas comunidades

No livro “Marajó: a ditadura das Águas”, o Pe. Gallo fez uma descrição da

água que é fiel à realidade das comunidades estudadas: Precisa-se de beber, precisa-se de tomar banho. Entra em cena a portadora de água, água lamacenta, com aquela camada de espuma esverdeada boiando na superfície, fica limpa ou quase com um pingo de sulfato de alumínio. Mas poucos têm sulfato de alumínio, ou pedra-ume, poucos têm filtro; a maioria tapa o nariz, fecha os olhos e mata a sede, curtindo saudades pela água de chuva limpinha e gostosa.

A água com essa apresentação é vetor principal de doenças e do quadro

de desnutrição dentro das comunidades estudadas. No censo domiciliar foram

integradas várias questões sobre a saúde do grupo e a incidência de doenças de

veiculação hídrica. O quadro é alarmante, apesar de não ter sido registrado caso

de mortalidade infantil nos últimos cinco anos. As diarréias foram citadas nos

cinco povoados (exceção de Deus Ajude) como a mais freqüente, seguida de

doenças na pele (coceira, furúnculos, feridas que demoram a sarar).

Os encantados das águas

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“Os ‘encantados-do-fundo’ são designados como ‘bichos-do-fundo’, ‘oiaras’

ou ‘carauanas’. A denominação ‘bichos-do-fundo’ provém da crença de que os

‘encantados’ podem se manifestar sob a forma de diferentes animais aquáticos,

que vivem ‘no fundo’ dos rios, como peixes, cobras, botos, etc. Manifestando-se,

porém, com forma humana; geralmente nas zonas de ‘mangal’ (manguezais), à

margem dos rios e igarapés, os ‘encantados’ surgem na condição de ‘oiaras’. Já

os ‘caruanas’ (também conhecidos como ‘guias’ ou ‘cavaleiros’ são aqueles que

se manifestam sem que se possa visualizar sua forma, nas sessões xamanísticas

dos pajés, incorporando-se neles. ...

Outra faceta dos ‘encantados’ é a sua ‘malineza’. Concebidos como seres

perigosos, podem provocar doenças nos seres humanos, além de outros males.

Por isso, é necessário ter cautela com eles, não só pedindo a proteção divina

contra os males que podem provocar, como adotando atitudes respeitosas no

momento em que se passa pelos locais onde costumam manifestar-se, assim

como quando se esta assistindo ao trabalho de um pajé” (MAUÉS, 1994, p. 75-

76). ‘.... esses seres funcionam também como uma espécie de defensores míticos da floresta, dos rios, dos campos e dos lagos. Tudo tem sua ‘mãe’ (um ‘encantado’); abusos são castigados pela ‘mãe do rio’, quando este é poluído, pela ‘mãe do mato’ quando a floresta é devastada e assim sucessivamente.”

Parece, porém que, em certas áreas, ‘os curupiras foram embora’ desde

que a destruição das motosserras foi mais poderosa’ (MAUÉS, 1994, p. 76). Nas

comunidades negras quilombolas de Salvaterra os encantados das águas

continuam vivos. No igarapé São Tomé a Mãe d’ Água convive com o Santo que

cuida o igarapé e sai a dar pequenos passeios, marcando as pedras. No igarapé

Siricari aparece uma “mulher branca e muito bonita”. É ela que cuida do rio e

impede que a ponte fique de pé. Os cuidados são muitos para não despertar a ira

dos seres das águas e alguém, por irreverente, ser “flechado”. Guardar silêncio e

respeitar as águas é a recomendação de quem atravessa o rio. Os poços podem

ser melindrosos e um discurso de embelezamento da água convive com o

invisível da sua contaminação, contradizendo a aparência de “água boa”.

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Considerações finais

Não é possível pensar que os problemas da água na ilha de Marajó se

resolvem tecnicamente, controlando qualidade, distribuição, consumo, educação,

pois este problema se resolverá depois de ter solucionado a questão da terra e

do uso, transformação e controle dos recursos da natureza, detendo a destruição

e alterando as desigualdades que perpetua o sistema político (mandonismo,

paternalismo e violência). Sobre a questão da água existe uma consciência –

inclusive dos conflitos – que apenas revela princípios de organização política e de

defesa de direitos. Terra e águas são elementos integrados de territórios

quilombolas que se encontram ameaçados pelos atos e decisões em que o

Estado e as elites regionais continuam conduzindo projetos econômicos e seu

poder na ilha de Marajó.

O Pe. João Daniel, no século XVIII, insistia nas contradições do projeto de

destinação das campinas para a pecuária extensiva e observava o que ocorria

nas campinas:

No verão é muito insípida e sua água muito ofuscada, o que se atribui à grande multidão de crocodilos que o infestam e que anda cheio o seu lago, ou fonte, por revolverem o lodo, e pelo seu esterco, águas e imundices; ao que também ajuda muito o muito lodo das suas margens, revolvido pelo muito gado vaccum e cavalar que pastam nas suas Campinas de uma e outra banda em todo o seu distrito.

As elites e os planejadores insistem nessa destinação, hoje amenizada

com os projetos de ecoturismo. O projeto de criação de búfalos por pequenos

criadores apresentado pela EMBRAPA, Sociedade de Produtores, SAGRI,

SEICOM, EMATER, dentre outras agências envolvidas, que foi concebido dentro

do PRONAF, insiste nas vantagens econômicas da produção de leite e carne de

búfalo. Contudo, este tipo de projeto deve fazer revisão dos componentes

ambientais de sua localização. A expansão do rebanho tem-se acompanhado da

destruição de terras cultivadas, lagos permanentes e temporários e destruição de

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igarapés e manguezais. Assim como a presença dos animais têm forte impacto

sobre a pesca. As atividades de criação têm constituído uma forte concorrente

com a agricultura e os pequenos produtores de alimentos.

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Referências

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13 - LAGE, Sandoval. Quadros da Amazonia. Rio de Janeiro: Oficina Grafica Espirito Santo, 1944. 14 - LUXARDO, Líbero. Marajo: terra anfíbia. Belém: Grafisa, 1977. 15 - MATTA, Roberto da. Panema: uma tentativa de analise estrutural. In: __________. Ensaios de Antropologia Estrutural. Petrópolis: Vozes, 1973. p. 63-92. 16 - MARAJÓ, José Coelho da Gama Abreu. Barão de. As regiões amazônicas: estudos corograhicos dos Estados do Gram-Pará e Amazonas. Lisboa: Imprensa de L. da Silva, 1985. p. 268. 17-MAUÉS, Maria Angélica Motta. 'Trabalhadeiras' e 'Camarados': relações de gênero, simbolismo e ritualização numa comunidade amazônica. Belém: Editora Universitária UFPA, 1993. 216 p. 18 - MEGGERS, Betty J.; EVANS JR., Clifford. Uma interpretaçao das culturas da ilha de Marajo. Belém: Instituto de Antropologia e Etnologia do Para, 1954. (Publicaçao 7). 19 - NOGUEIRA, Cristine. Território de pesca no estuário marajoara: comunidades quilombolas, águas de trabalho e conflitos no município de Salvaterra. 20 - MAUÉS, Raymundo Heraldo. A Ilha encantada: medicina e xamanismo numa comunidade de pescadores, 1976. 21 - SALLES, Vicente. O negro no Pará sob o regime da escravidão. Belém: MEC/UFPA, 1979.