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NIETZSCHE:
0 Só c r a t e s d e N o s s o s Te m p o s
Mario Vieira de Mello
N.Cham. 1(430) M527n
Autor: Mello, Mario Vieira de.
Título: Nietzsche : o Socrates de nosso
Ex. 1 UFSC BC SIRIUS
|edusP
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ISBN 8 5- 3 14 - 0 07 6- 7
Nietzsche: 0 Sócrates de Nossos Tempos é
um liví o provocador desde o título. Acom
panhando a biografia e percorrendo as
obras de Nietzsche, Mario Vieira de Mello
nos mostra como este filósofo dionisíaco
tem, para o século XX, um valor análogo
ao que Sócrates - alvo de ruidosas críticas
de 0 Nascimento da Tragédia - tinha para a
Antiguidade grega. Através da repercussão
de seus livros e das inúmeras inte.rpreta-
ções feitas por pensadores como Karljas-
pers, Heidegger ou Bergson, o autor nos
conduz pelas múltiplas perspectivas filosó
ficas apontadas pelo autor do Zaratustra.
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N ie t z s c h e :
0 Só c r a t e s d e N o s s o s Te m p o s
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ESP Reitor
Vice-reitor
| edusP
Presidente Diretor Editorial Editor-assistente
Comissão Editorial
Roberto Ixal Lobo e Silva FilhoRuy Lauienti
EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÀO PAULO
João Alexandre BarbosaPlinio Martins FilhoManuel da Costa Pinto
Joào Alexandre Barbosa (Presidente)Celso LaferJosé E. MindlinOswaldo Paulo ForattiniDjalina Mirabelli Redondo
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U F S C - B U
0 . 2 7 4 . 0 0 2 - 9
NIETZSCHE:
0 Só c r a t e s d e N o s s o s Te m p o s
Mario Vieira de Mello
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r
Copyright © 1993 by Mario Vieira de Mello
Foi feito o depósito legal
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Mello, Mario Vieira de.
Nietzsche : O Sócra tes de Nossos Tempos / Mario Vieira de
Mello. - São Paulo : Editora da Universidade de São Paulo, 1993. -
(Campi ; 12)
Inclui índice onom ástico.
ISBN: 85-314-0076-7
1. Filosofia alemã 2. Nietz sche , Fried rich Wilhelm, 1844-1900
3. Niilismo (Filosofia) I. Título. II. Série.
92-1838
índices para catálogo sistemático:
1. Alem anh a : Filoso fia 193
2. Filosofia alemã 193
3. Filósofos alemães : Biografia e ob ra 193
CDD-193
fl <JCO /7- ãA j
Tipo de Aqu Uiç f lo
A d q u i r id o d e /F a f / / - U f S /
Data Aqu is ição $ / ? } / 3 ^
Preço_ _ _____________________
BU/DPT
0 . 2 7 4 . 0 0 2 - 9
c t n v . Ç > Ç »t r- c? ^ <? #
Direitos reservados à
Edusp - Editora da Universidade de São Paulo
Av. Prof. Luciano Gualberto, Travessa J, 374
6®andar - Ed. da Antiga Reitoria - Cidade Universitária
05508-900 - São Paulo - SP - Brasil Fax (011) 211-6988
Tel. (011) 813-8837 / 813-3222 r.4156,4160
iO -ßo)
'H
Printed in Brazil 1993
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A mem ória de Octávio de Faria,
amigo de juventude,
dedico com gratidão este livro.
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Sócrates, Sócrates, Sócrates! Sim, queremos invocar teu
nome três vezes, não seria demais invocá-lo dez vezes, se
de u m tal apelo fosse possível recolher algum proveito. E
geral a crença de que o m undo precisa de uma república,
de uma nova ordem social e de uma nova religião, mas
ninguém pensa que é de um Sócrates que mais precisa o
mundo agora, perplexo como está no meio de tantas
noções contraditórias.
K i e r k e g a a r d
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SUMÁRIO
Apresentação ......................................................................................... 13Prefácio...................................................................................................... 19
1. Reações, Comentários e C r ít ic a s .................................................... 212. A Influência da Obra sobre a V id a .............................................. 473. A Unidade das Virtudes e a Coragem E sp ir itua l...................... 734. A Comunicação Indireta, as Interpretações e as Máscaras . . . 97
5. A Crítica da D ecadência .....................................................................1436. O N iilis m o............................................................................................. 1657. A Medicina e a É t ic a ...........................................................................1898. O Destino Trágico - As Altern ativas...............................................2099. Nietzsche e Sua D o e n ç a ................................................. 229
índice Onomástico....................................................................................247
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O leitor deste belo livro, escrito com severa paixão filosófica, se
sente espicaçado desde o título, pois todos sabem que Nietzsche atacou
Sócrates com veemência: mas Mario Vieira de Mello constrói o seu
argumento sobre a idéia de uma antologia essencial da função de ambos.
A este aparente paradoxo seguem outros, como a sugestiva afirmação
que em Nietzsche a obra condiciona a vida, ou a convicção de que os
seus escritos finais não sofreram o peso da loucura nascente, pois são
conseqüência lógica da sua posição mental; de tal modo que a mensa
gem suprema do Ecce Homo equivale à Apologia de Sócrates.
Mario Vieira de Mello está interessado no problema da construção
do homem como ser livre, e sob este aspecto Nietzsche lhe parece um
educador incomparável, como Sócrates, ambos intemeratos, destinados
ao sacrifício, sujeitos à opinião deformadora. Longe de simplificar, ele
desdobra ante o leitor a opulenta complexidade do filósofo alemão, num
relato onde vida e obra se fundem. Para isso, estabelece entre outras
coisas nexos comparativos com outros pensadores, outros contextos
culturais e diversos intérpretes, além de mostrar as oscilações criadoras
do seu pensamento. E por todo o livro sentimos os traços fundamentais
do pensador austero que é Mario Vieira de Mello: a sinceridade que faz
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da escrita um movimento colado ao raciocínio e a coragem mental, que
o torna adequado para falar de Nietzsche, com o qual possui em comum
a sobranceria das idéias, a maneira pessoal de expô-las e a soberana
indiferença pelas modas do momento.
A n t o n i o C â n d i d o
12 MARIO VIEIRA DE MELLO
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APRESENTAÇAO
Pediu-me Mario Vieira de Mello que escrevesse, para apresentar
este livro, um texto evocativo do cenário em que se movimentava a
mocidade universitária no início dos anos trinta, mais precisamente em
1930, e a influência que exerceria sobre a formação cultural de todo um
grupo de jovens que então ingressava na Faculdade de Direito do
Catete, a singular agremiação que ali atuou por mais de uma década: o
CAJU (Centro Acadêmico Jurídico Universitário).
Quando estava a alinhavar este texto, alguém me perguntou, vendo
o título da obra: “Você também é especialista em Nietzsche?” Ao que
respondi: “Não, sou especialista em Mario...”
Na verdade, há mais de cinco décadas lido de perto com Mario
Vieira de Mello, hoje a mais antiga de minhas amizades, contemporâ
neos que fomos ainda nos anos vinte no Colégio Santo Inácio. Voltaría
mos a nos encontrar, desta vez defmitivamente e em estreito contato,
em 1930, sob o signo do CAJU, onde pontificava um grupo seleto de quartanistas e bacharelandos da faculdade, futuras personalidades des
tacadas da vida literária, política e acadêmica do Rio de Janeiro, como
Américo Lacombe, Antônio Gallotti, Gilson Amado, Thiers Martins
Moreira, Plínio Doyle, Chermont de Miranda, Hélio Viana, Clóvis P. da
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Rocha, e entre os quais surgiam duas incontestáveis lideranças: Octávio
de Faria e San Tiago Dantas.Essa agremiação, estranhamente até hoje - quiçá felizmente -, não
tendo sido objeto de dissertação de mestrado, em plena atividade durante, creio, pelo menos uma década, era uma verdadeira academia
de jovens, de total seriedade, cuja membership era conquistada mediante apresentação e aprovação, por comissão especialmente designada, de
uma tese original sobre temas relativos às áreas de interesse do centro:
ciências jurídicas em geral, história, literatura, filosofia, ciências sociais.
A estimulante atuação desse grupo de jovens estudiosos e sua
influência sobre as novas gerações que chegavam à faculdade revelam
hoje, para nós, o espírito humanista que há meio século ainda impregnava nosso processo educacional, até ali não afetado pelos efeitos da
massificação que fatalmente se lhe imporia na era desenvolvimentista. Voltadas para metas essencialmente funcionais, a educação superior e
a pós-graduação dirigiam seus alvos de excelência para as áreas científicas e tecnológicas, e, progressivamente, a corrida para tais carreiras
como que ofuscou e esvaziou as áreas dos estudos clássicos, retirando
de nossa formação universitária todo o componente humanístico que a
deve permear, como a própria expressão e essência da cultura.Nesse meu reencontro com Mario, eu já no quinto ano de medicina
e ele ingressando em direito, diluía-se a diferença de dois ou três anos
de idade que no colégio nos distanciava.
Eu então já convivia com o grupo do CAJU, trazido por Octávio, ao qual me ligava a recente aventura do Chaplin Club, bela aventura de
quatro rapazolas de dezesseis a dezenove anos, empenhados em impor
o cinema como arte autônoma, com identidade própria, a sétima arte, à
intelligentsia brasileira.Por interesses comuns, passariam também a conviver com o grupo
do CAJU meus colegas de medicina Vieira Pinto e Tito Leme Lopes, inesquecíveis amigos, e Carlos Chagas Filho. Na geração que entrara
para a Faculdade do Catete em 1930 também estavam, além de Mario,
caros amigos que já nos deixaram: Vinícius de Morais, que no ano
seguinte publicaria O Caminho para a Distância, seu primeiro livro de
poesia, José Artur Frota Moreira, que mais tarde faria marcante carreira política, Augusto de Rezende Rocha, Álvaro Penafiel, futuro autor
de Grupo e Espírito. Lembro-me bem das defesas de tese de Augusto
sobre Wilde e de Mario sobre Nietzsche e, anos antes, a de Octávio, A
Desordem do Mundo Moderno.
1 / MARIO VIEIRA DE MELLO
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Poderíamos dizer, numa oportuna retrospectiva, que as atividades
do CAJU refletiam os interesses, a visão do mundo e do Brasil e os
projetos de vida da mocidade de cinquenta anos atrás; muitos voltados,
como também os de hoje, para a música, os esportes, a vida social, mas
sempre polarizados em torno de valores culturais que o traço humanís-
tico, ainda patente em sua formação educacional, os estimulava a incor
porar.
Mario, ao ingressar na faculdade, já se iniciara em Nietzsche e teve
em Octávio, cultor fervoroso do filósofo, um precioso orientador. Mas,
pouco conhecido ainda entre os colegas, causou um certo impacto ao
candidatar-se ao CAJU. Aquele atletão, queimado de sol, o “Mario-
asa” de Copacabana, apresentar-se com uma tese sobre Nietzsche,
trabalho de maturidade incomum entre os iniciantes!
Cabe aqui uma referência espeGial a Octávio de Faria, a cuja
memória Mario dedica este livro. Octávio, um pouco mais velho que
todos nós, pertencia a uma família de escritores: o pai, Alberto de Faria,
e seus cunhados, Afrânio Peixoto e Alceu Amoroso Lima.
Fora criado num ambiente literário e de alto nível social. Contava-
nos as recepções na casa de veraneio da família em Petrópolis, onde, ainda rapazinho, ouvia Claudel recitar... Tinha assinatura da NRF e se
correspondia com livrarias e editoras francesas. E todas as suas luzes
nos transmitia generosamente. Quanto lhe devemos em nossa formação
literária! Já tínhamos, antes de conhecê-lo (naquele tempo saía-se do
colégio lendo corretamente o francês), nossas leituras avulsas e desor
denadas de autores estrangeiros: Balzac, Hugo, Zola, Stendhal Dickens,
algum Anatole, os russos, e ansiávamos por novas leituras, novas vozes.
E isso Octávio nos daria à perfeição. Por ele ordenamos leituras e
chegamos a Proust, Gide, Thomas Mann, Radiguet, Malègue, Alain-
Fournier, Mauriac; às novelistas inglesas, M. Kennedy, Virginia Woolf,
Rosamond Lehmann, as Brontë; aprofundamo-nos na obra dos russos
- novos horizontes. Pode-se dizer que, para o nosso grupo, para a
geração de Vinícius e Mario, Octávio desempenhou o mesmo papel de
maître, de preceptor literário, que Roberto Alvim Corrêa exerceria
depois, na Faculdade de Filosofia e fora dela, para a mocidade dos
quarenta. Já tenho dito que “nada sei” mas “que o pouco que saiba o
devo a Octávio”, e assim reforço com emoção o preito rendido por
Mario a quem tanto nos deu.
Voltando ao autor deste livro, diria que, na época a que vimos nos
referindo, embora sociável e até com um certo penchant por festas e
NIETZSCHE: O SÓCRATES DE NOSSOS TEMPOS 15
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reuniões e certamente capaz de sólidas amizades, além de participativo
em relação ao seu grupo, Mario, um introspectivo, amiúde assumia uma
postura de isolamento. Em nossas longas caminhadas noite adentro,
deixava-se ficar para trás como que absorto... Literalizados, gracejáva
mos: “Ses ailes de géant 1’empêchent de marcher”... Conversas com “o
interlocutor invisível”, diria eu hoje, após ler este livro...
Custou-lhe fixar-se na vida prática: sem qualquer vocação para a
advocacia, teve ocupações vagas que não lhe interessavam. Para “ganhar
tempo”, chegou mesmo - o que era moda na ocasião - a inscrever-se na
Reserva Naval Aérea, onde seu aprendizado foi interrompido quando
conseguiu avariar um avião... e finalmente decidiu-se pela carreira
diplomática, compatível desde logo com o seu projeto cultural, com o
recurso às fontes estrangeiras, numa época em que a carreira universi
tária, o estuário natural dum estudioso de sua marca, era objetivo a longo
prazo e de limitadas perspectivas.
No exercício de suas funções diplomáticas, em longas estadas no
estrangeiro, Mario aprofundou continuamente seu saber.
Estudioso e pesquisador solitário, hoje uma das mais completas
formações clássicas de nosso país, com sua vertente filosófica embasada
num sólido conhecimento, não só de filosofia clássica e contemporânea,
como de história antiga, de filologia e de história das religiões, Mario
pouco publicou em relação ao que tem a dar ao leitor brasileiro.
Só recentemente, encerrada a carreira diplomática, tem participa
do mais extensamente do debate universitário e apresentado contribui
ção valiosa em reuniões de alto nível, notadamente na Universidade de
Brasília (UNB) e no Instituto de Estudos Políticos Econômicos e Sociais
- Rio de Janeiro (IEPES). Publicou três livros, todos do melhor padrão,
embora tenha obras de ficção que até agora preferiu deixar inéditas.
Com Desenvolvimento e Cultura, o Problema do Estetismo no Brasil, de
1963, já entra fundo na análise dos temas do seu interesse maior em
relação à evolução cultural e política de nosso país; O Conceito de uma
Educação da Cultura, publicado em 1986, é talvez o ensaio brasileiro
mais profundo e bem-estruturado sobre o conceito da educação através
da história, suas relações com a evolução cultural do Brasil e as pers
pectivas com que nos defrontamos. Finalmente, de certo modo anteci
pada em esmerada súmula, numa coletânea, Nietzsche, de três
conferências sobre o criador de Zaratustra, chega ao público brasileiro
a obra-mestra de Mario Vieira de Mello sobre Nietzsche, objeto de
16 MARIO VIEIRA DE MELLO
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algumas décadas do seu culto e reflexão de pensador: Nietzsche, o
Sócrates de Nossos Tempos.
Neste livro de uma vida, Mario apresenta a sua visão da obra e da
vida de Nietzsche num exaustivo estudo em que, a partir da Origem da
Tragédia, analisa toda a trajetória do pensamento do filósofo, desde o
seu repúdio a Sócrates, que ali considera como pensador decadente, até
as proposições dos seus últimos livros, num longo processo de realinha-
mento ao contraponto socrático.
O autor, neste trabalho, além de analisar em profundidade, com sua
visão pessoal, toda a obra de Nietzsche, procede a um rigoroso estudo
cronológico de tudo o que de importante se publicou sobre o filósofo durante a sua vida, bem como depois de sua morte. Trata-se de um
referencial bibliográfico certamente dos mais completos, objeto da
pcrcuciente análise crítica de um dos nossos mais legítimos pensadores.
Reconstitui, assim, Mario Vieira de Mello todo o histórico da
repercussão de cada obra de Nietzsche e da evolução dos juízos con
temporâneos e posteriores à sua aparição, desde o silêncio formado
após a Origem da Tragédia até o reconhecimento, hoje inconteste, do
gênio do mais ousado pensador de nossos tempos.
Permeia todo o livro a convicção do autor de que, a cada passo mais
ousada e corajosa, foi a obra de Nietzsche que passou a condicionar sua
vida, levando-o finalmente à aceitação da loucura como única solução
para o confronto com uma verdade insuportável.
O discurso indomável de Nietzsche tem neste ensaio uma leitura a
um tempo vigorosa e apaixonada, aparente contradição que a qualidade
do texto torna irrelevante. Mario, trabalhador solitário e obstinado, mas
que talvez por falta de um mais amplo debate sobre os seus livros, através
dos anos, não tenha podido se beneficiar da fruição de possíveis dúvidas,
terá talvez agora a chance de considerá-las, ao enfrentar as prováveis
contestações dos seus pares.
Este livro que, dada a autoridade de seu autor, não raro é apologé
tico e laudatório, certamente dará margem a críticas e polêmicas. A
estas, Mario já está habituado e sempre se mostra capaz de enfrentá-las
à altura de seus contestadores.Resta, entretanto, e isso me ocorre ao ler os trechos sobre o
“interlocutor invisível” nas caminhadas de Nietzsche, a interferência do
diálogo-solilóquio, que sempre me intrigou, do ignorado leitor com o
desconhecido e distante escritor... Mas, atenção, desavisado leitor: tão
NIETZSCHE: O SÓCRA TES DE NOSSOS TEMTOS 17
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competente como no debate aberto, nesse confronto fantasma, nesse
metadiálogo, Mario também é um adversário implacável...
Almir de Castro
18 MARIO VIEIRA DE MELLO
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PREFÁCIO
Em entrevista concedida ao semanário DerSpiegel, em 1967, Martin
Heidegger exprime uma opinião que é uma boa amostra de sua arrogância. Disse ele: Os franceses, quando começam a pensar, falam ale
mão.
Essa opinião naturalmente tem sua origem nas convicções nazistas
do filósofo, que só agora vão sendo investigadas. Não era entretanto
completaménte gratuita; baseava-se numa experiência realmente ocorrida. Os franceses, embora vítimas do nazismo, haviam se empenhado, depois da guerra, em estudar devotamente o idioma alemão - haviam
sido seduzidos por Heidegger e esforçavam-se portanto no aprendizado
daquele idioma, embora isso não tenha parecido ajudá-los na compreensão de onde o filósofo estava querendo chegar. Os ensaios filosóficos na França, produzidos na época, estão repletos de expressões
alemães que parecem inúteis, pois o autor já havia encontrado no idioma
francês sua equivalência perfeita. Muitas vezes a equivalência saltava
aos olhos das pessoas menos versadas no alemão. Mas o autor julgava-se
obrigado a registrar as duas expressões como se de repente tivesse
perdido a confiança no poder de expressão de seu próprio idioma.
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Houve certamente e continua a haver uma espécie de terrorismo
cultural da língua alemã na área da disciplina filosófica. E naturalmente
cabe a Heidegger uma boa parte da responsabilidade por esse fato. No
Brasil, entretanto, houve e continua a haver a esse respeito não apenas
terrorismo, como também superstição e pedantismo. Por ignorância ou
afetação sempre se julgou entre nós que alguns filósofos só seriam
acessíveis a quem pudesse ler alemão. Julgava-se, não pelas razões de
Heidegger, vinculadas ao nazismo, mas por pretensão erudita, que a
filosofia, como a poesia, é intraduzível - deixando assim sem explicação
o fato de que a filosofia, nascida em solo grego e profundamente
vinculada ao idioma do povo grego, foi, ao lado do cristianismo, um fator
essencial na formação da cultura ocidental que durante muitos séculos
a assimilou unicamente através do latim; deixando também sem expli
cação o fato de que, quando o grego se tornou uma língua conhecida, a
filosofia nem por isso deixou de ser o que havia sempre sido; e deixando
finalmente sem explicação o fato de que ela se transformou sob a
influência da ciência e não desse novo conhecimento lingüístico.
Por que estou fazendo tais observações? - Simplesmente para dizer
que Nietzsche é um autor eminentemente traduzível. E essa, aliás, uma
das razões pelas quais sua obra já exerceu e continua exercendo uma
enorme influência em quase todas as áreas da cultura ocidental. O leitor
brasileiro, que ainda está fora desse movimento universal de incorpora
ção do mundo nietzschiano, não deveria se deixar intimidar pelo terro
rismo cultural nazista ou pela superstição ou pedantismo nacionais. Se
não conhece o alemão, leia Nietzsche nas boas traduções - eis o conselho
prático que me permito dar-lhe aqui. Oxalá possa encontrar neste livro
boas razões para convencer-se dos benefícios que resultariam de uma
tal leitura.
20 MARIO VIEIRA DE MELLO
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1. REAÇÕES, COMENTÁRIOS E CRÍTICAS
Tudo o que se refere à vida e à obra de Nietzsche está marcado pelo
estigma de um violento contraste. Hoje, quando ainda não passaram
nove décadas desde sua morte, já existe em torno de sua figura uma
literatura que vai além de três mil volumes. Entretanto Nietzsche, durante sua fase produtiva, teve até dificuldades em encontrar quem
quisesse publicá-lo. O silêncio que se formava após o aparecimento da
maior parte de seus livros era algo de surpreendente e mesmo de
inexplicável. Como podia um autor armado de um estilo tão obviamente
excepcional ser a esse ponto ignorado? Como podia o conteúdo de uma
obra, cuja forma desafiava comparações ou reticências, prejudicar de
modo tão sensível o brilho e a força de que era revestida a expressão?
São essas perguntas que fazemos hoje, testemunhas que somos de uma
glória que não faz senão crescer. Mas os contemporâneos de Nietzsche,
e em particular alguns de seus amigos, pareciam sofrer com a publicação
de certos livros seus como se pode sofrer com as manifestações extra
vagantes de um ser que nos é caro.Esse é um fato que convém particularizar, proteger contra compa
rações e generalizações fáceis, para que possa ser examinado em toda
a sua singularidade. Nietzsche não foi um gênio incompreendido como
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se costuma dizer. Desde logo, com a publicação de sua A Origem da
Tragédia, ganhava corpo a noção de que surgira, no horizonte da cultura
alemã, um fenômeno insólito. |
As reações que o livro despertava nos meios acadêmicos eram
naturalmente negativas. Não se podia endossar as idéias de um autor
que apresentava Sócrates como um pensador decadente. Mas no círculo
wagneriano as reações eram entusiastas. Wagner, um leitor interessado, sentia-se transportado - e arrastava naturalmente nessa sua admiração
todo o grupo de entusiastas que viviam em torno dele. Se lhes faltava
competência em matéria filológica, sobrava-lhes certamente percepção
em matéria artística e musical. Ninguém, dizia Wagner a seus adeptos,
havia como Nietzsche conseguido traduzir em palavras aquilo que ele
sentia ao compor seus dramas musicais.
E importante registrar aqui as primeiras reações a esse livro, porque
com ele se inicia um drama que ia evoluindo com graus sempre mais
elevados de intensidade e emoção. Os primeiros exemplares saíram da
impressão no final de 1871. Em janeiro de 1872, Nietzsche enviava um
exemplar a Wagner acompanhado de uma carta que falava da relação
estreita existente entre as teorias do livro e a criação wagneriana. Wagner respondia: “Nunca li livro melhor do que o seu. É absolutamen
te esplêndido”. Apesar disso, ao fim de poucas semanas, ficava perfeitamente claro que o mundo acadêmico recebera o livro de modo hostil e que tampouco outros círculos não ligados a Wagner haviam manifestado uma receptividade maior. Nietzsche se sentia especialmente magoado com o silêncio de seu mestre Ritschl; e por esse motivo resolvia
escrever-lhe uma carta. No seu Diário, Ritschl anotava: “Carta espan
tosa de Nietzsche - megalomania”; mas ao respondê-la a carta adotava um tom conciliador, explicando que dele, um scholar alexandrino, não
se podia esperar que abandonasse o “conhecimento” pela “arte”. Logo
se colocava a questão de saber para que público o livro estaria dirigido:
se para o meio musical ou o meio acadêmico e filosófico. Erwin Rohde, colega e amigo de Nietzsche, escrevia um artigo em que dava realce ao
aspecto filosófico do livro - e naturalmente Cosima Wagner, embora
afirmasse tê-lo apreciado, observava que a ênfase nesse aspecto havia
sido excessiva. O artigo de Rohde era recusado por uma revista especializada em assuntos clássicos. Mas, quando Rohde manifestou-lhe a
intenção de publicá-lo numa revista não especializada, Nietzsche respondeu que preferia esperar por nova oportunidade. Até maio de 1872,
só uma crítica surgia na revista italiana Rivista Europea. O livro estava
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agora com uma venda razoável, mas o mundo acadêmico e mesmo o
mundo literário continuavam a manter-se em silêncio. No fim do mês de
maio, um novo e longo artigo preparado por Rohde aparecia numa
revista não especializada, com simpatias wagnerianas; o artigo reconhe
cia no livro a abertura de novas e profundas perspectivas no campo da
estética e uma compreensão original do valor e da eterna primazia da
( irécia e da arte grega.
Dias depois do aparecimento desse segundo trabalho de Rohde, o
silêncio da ortodoxia clássica rompia-se. Ulrich von Wilamowitz-Mõel-
lendorf, um jovem scholar de vinte e quatro anos, num longo artigo de
vinte c oito páginas, procurava demolir o livro de Nietzsche, enfileirando
um grande número de razões: o tom do livro, seu estilo e sobretudo a
l.ilta de scholarship; acusava Nietzsche de desonestidade e ignorância;
i de 1er cometido uma enormidade de erros de princípio e de detalhe.
Nietzsche não pareceu muito atingido por esse ataque. Mas quando
Wagnci veio em sua defesa, escrevendo um artigo desastrado, em que
d.iv.1 .1 entender que A Origem da Tragédia havia sido escrito não para
uhiiliin in.is p.ii.i artistas, Nietzsche achou-se prejudicado e teve o
,i nluiii nlo de que devei ia surgir em sua defesa alguém do mundoii i.l. ........ Rnliile, o amigo leal, prontificou-se a produzir um novo
.uligii qui lui i .i i tin i ui Iiiiii l.ui hostil a Wilamowitz quanto o dele o
li .- i l h ......... a o I.h,.ni .i Niel/selie. O jovem demolidor, dizia Rohde,
i i ii m il mli a ni h h11 |h i ’,un!,i iso; dado a calúnias, crítico incompetente;
h avi.i tg in a ii •h ...... ni. in lu ii île le et mil e tilosól tco do livro c se limitado
an pmlili um da 11 holarship Nietzsche havia sido obrigado, pela natu-
ii i du lo in a i fi .envolvei sens aigumentos sem rclerências eruditas -
ma nimpli Min nii a imaturidade île Wilamowitz que o impedia de li b ut ilii ai a . limles cm que Nietzsche se apoiava.
I a lesposla de Rohde não sensibilizou o mundo acadêmico,
t filando Wilamowitz escreveu mais um artigo em resposta ao que agora
|,i ei a um ataque a sua pessoa, ele o fez com o sentimento de que o seu
objetivo havia sido atingido. Mas as observações de Rohde não haviam
sido feitas cm vão. Wilamowitz agora não atacava mais a scholarship de
Nietzsche - denunciava simplesmente o fato de haver seu colega posto
cm dúvida o valor de uma tradição bimilenar de cultura.A publicação do livro, de imediato, teve para Nietzsche apenas uma
conseqüência prática: “Há uma coisa que me está perturbando”, escre
via ele a Wagner em novembro de 1872, “o semestre de inverno chegou
e não tenho discípulos. Nossos classicistas não aparecem!” Veremos
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entretanto que, com o correr do tempo, suas consequências foram se
mostrando permanentes e profundas. ^
Essas foram então as circunstâncias que cercaram o aparecimento
dcA Origem da Tragédia. Com relação à publicação de outros livros de
Nietzsche, seremos mais sucintos. Cuidamos do aparecimento de seu
primeiro livro de modo mais extenso porque se trata de uma obra
fundamental, uma obra que exprime um projeto de vida que atravessará
a existência do filósofo até o apagar de sua consciência. Convinha, pois,
indicar de que modo esse projeto havia sido recebido pelas diferentes
audiências que o jovem autor desejava sensibilizar. Durante os anos
imediatamente consecutivos, a situação de Nietzsche no mundo acadê
mico como que se estabilizara. Seus cursos passaram a ser moderada
mente freqüentados, mas sua nova orientação de fazer da filosofia o
interesse principal de suas atividades filológicas retirava-lhe, sem dúvi
da, parte da autoridade científica que lhe caberia se, além dessas
atividades filosóficas, estivesse também cobrindo os outros setores da
disciplina filológica que escolhera. Correspondem a esse período suas
quatro Considerações Inatuais, todas elas escritas ou a pedido de Wag
ner ou tendo em vista sua obra. As reações a esses quatro livros natural
mente eram entusiásticas nos círculos wagnerianos, algumas vezes
coléricas fora deles. No último deles, entretanto, Richard Wagner em
Bayreuth, uma ligeira alteração se produziu. Embora o livro tivesse sido
muito bem recebido por Wagner, nada se fazia no sentido de sua maior
divulgação. E que o teatro de Bayreuth se tinha transformado num
empreendimento que, para ser levado a bom termo, exigia cautela,
versatilidade e mesmo diplomacia. Nietzsche, com sua maneira direta,
franca e por vezes contundente de expressão, representava sempre um
risco de desagradar a eventuais patrocinadores. A situação era curiosa
porque o livro, de caráter ambíguo, revelando, para quem sabia lê-lo, a"S
dúvidas já existentes no espírito de Nietzsche a respeito da validade da
obra wagneriana, havia sido recebido com entusiasmo por Wagner e só
não tivera uma repercussão maior porque o grande músico não julgara
prudente divulgá-lo entre o seu público, já afluente, apresentando-lhe
“verdades” que talvez não estivesse ainda em condições de assimilar.
Quando o próximo livro de Nietzsche, Humano, demasiadamente Humano, foi enviado a Wagner, a ambiguidade se dissipou e a ruptura
entre os dois tornou-se inevitável. Wagner a princípio pretendera não
ter lido o livro, por amizade a Nietzsche, dizia ele. Mas finalmente não
resistiu a mostrar que sucumbira à curiosidade e manifestou então de
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mil formas o quanto se sentia atingido. Entre as muitas coisas que o
feriam estava a crítica a Schopenhauer. Wagner e Cosima, nessa crise
de amizade, revelavam a natureza algo egoística de seus sentimentos -
não pouparam o amigo que antes lhes havia sido tão devotado, insinuando entre outras coisas que se tratava de um homem doente. Diziam
também ter a impressão de que Nietzsche renunciara à sua personali
dade para assumir a de Paul Rée, um amigo recente do filósofo e autor
de um livro intitulado^ Origem dos Sentimentos Morais, inspirado nos
sensualistas franceses; Rohde, aliás, tivera a mesma impressão. E sobre
Overbeck, co-locatário nos primeiros tempos de Basiléia e amigo de
Nietzsche o resto da vida, o livro exercera também uma impressão
negativa. E, como não se podia deixar de esperar, as críticas adversas
em Bayreuth eram veementes. Embora fossem favoráveis as reações de
Jakob Burckhardt, antiwagneriano decidido, com quem Nietzsche man
tinha relações cordiais mesmo no período wagneriano, as de Paul Rée
naturalmente e sob reservas as de Malvida von Meysenburg, em cuja
casa de Sorrento o filósofo escrevera parte do livro, tornava-se evidente
que, de uma maneira geral, seu texto não havia sido bem recebido.
Depois de ter perdido sua reputação no mundo acadêmico, Nietzsche
perdia agora a estima do círculo wagneriano.
Inicia-se então, na vida do filósofo, um período de isolamento
crescente. No prefácio da edição de 1886 do Humano, demasiadamente
Humano, isto é, oito anos depois de seu aparecimento, Nietzsche nos
diz que foi justamente na Alemanha que o livro foi lido com maior
negligência e menor compreensão, embora tenha encontrado leitores
em outros países. Ora, em 1886 estamos distantes três anos apenas do
fatal acontecimento com que devia terminar a vida consciente do filósofo. Os livros que se seguiram, Opiniões e Sentenças Misturadas, O
Viajante e sua Sombra, A Gaia Ciência e finalmente Falou Zara-
tustra, só faziam aumentar a hostilidade que pouco a pouco ia fechando
seu círculo em torno do filósofo. Com o Zaratustra o círculo parecia
fechar. Nietzsche, que até então conseguira de um modo ou de outro
fazer editar seus livros e chegara mesmo a encontrar tradutores, sente
agora dificuldade em achar alguém que se interesse pela nova produção.
As primeiras partes do Zaratustra têm sua impressão retardada porque o editor deseja imprimir antes cinco milhões de exemplares de Cânticos
para a época de Páscoa e também livros relacionados com uma campa
nha anti-semita; e quanto à última parte, Nietzsche era mesmo obrigado
a imprimi-la por conta própria, com o dinheiro ganho no processo que
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movera contra seu editor. Jakob Burckhardt, que havia tido palavras de
simpatia com relação ao Humano, demasiadamente Humano, tinha
agora dificuldade em esconder sua decepção. E mesmo Rohde, cOm sua
fidelidade de sempre, limitava agora seus comentários a generalidades
pouco expressivas, chegava mesmo a usar fórmulas um tanto ambíguas: “Seu Zaratustra, sob todos os aspectos, deu-me uma impressão bem mais salutar que vários de seus últimos escritos”.
É preciso reconhecer a realidade: logo depois de Zaratustra um
completo vazio se formava em torno de Nietzsche. Foi durante o período
em que se processou sua elaboração que ocorreu o episódio Lou
Salomé. Indicaremos em outro capítulo o que consideramos haverem
sido as conseqüências desse episódio, mas antecipemos aqui nossa
opinião de que o Zaratustra parece ter sido escrito sob o efeito do trauma
que pôs fim a tal episódio. Os analistas de um modo geral não estabelecem uma relação qualquer entre a experiência Lou e a produção do
Zaratustra, mas penso que há fortes motivos para avançar que tal perspectiva deve ser reconsiderada. De qualquer modo, se temos de um
lado uma experiência frustrada, temos do outrc um livro que é no mínimo
problemático; um livro, em todo caso, que pode sem exagero ser responsabilizado por muitas das incompreensões que se formaram, em sentido
positivo e negativo, em torno das idéias, das intenções e mesmo das
experiências que levaram Nietzsche a escrevê-lo.
Façamos aqui um parêntese para dizer que Nietzsche não era um
autor que escrevesse em vão. Havia sempre, pelo menos, um leitor
extremamente atento ao que ele escrevia: ele próprio. Apesar de suas
contradições e autodilaceramentos, apesar dos sim e dos não pronun
ciados a respeito de uma mesma questão, Nietzsche foi um escritor que
manteve sempre a mais estrita coerência entre o que dizia e os momentos
particularizados de sua evolução espiritual Essa coerência obriga o
pesquisador, na sua análise, a evitar que se dissocie, por um segundo
que seja, o que exprimiu Nietzsche do momento especial em que surgiu
a expressão; obriga-o também a procurar compreender, através do que
foi dito, a qualidade especial de um tal momento. Nietzsche foi um
escritor cuja ação se fez sempre sentir - fez-se sentir desde seu primeiro
livro; mas fez-se sentir de modo inusitado, pois era ele, o próprio
Nietzsche, quem mais se sentia afetado por essa ação. Durante vários
anos, os livros de Nietzsche agiram principalmente sobre ele mesmo, criando uma situação sui generis que procuraremos exprimir indicando
como e por que foi sua obra que influenciou sua vida.
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Mas voltemos ao efeito produzido pela publicação do Zaratustra,
em edições privadas. Em torno de Nietzsche, a partir de 1883, nada
havia, apenas o silêncio. Só em 1886 esse silêncio foi amenizado, até um
certo ponto, pela carta em que Hippolyte Taine, então já famoso na
França, agradecia-lhe a remessa do livro Para além do Bem e do Mal e
tecia comentários elogiosos sobre pontos precisos da obra. Essa carta
de Taine, que foi talvez o primeiro sinal de sua glória nascente, era,
pouco depois, seguida de um bilhete curto em que Taine se dizia feliz
por ter Nietzsche apreciado seus artigos sobre Napoleão. Erwin Rohde,
o amigo velho e experimentado do filósofo, teve um gesto desastrado
nesse momento delicado da vida de Nietzsche - enviou-lhe uma carta
em que exprimia seu pouco apreço por esse autor celebrado que, antes
de qualquer outro, oferecia sua solidariedade ao escritor solitário.
Resultou daí o rompimento da relação entre os dois homens, que haviam
sido verdadeiros amigos, e cuja separação dificilmente se pensaria
pudesse ocorrer em virtude de tal incidente1.
No estado de excitação em que se encontrava Nietzsche, a tristeza
causada pelo rompimento com Rohde talvez tenha sido amortecida pela
satisfação derivada do recebimento de uma carta de (ieorg Brandes, crítico dinamarquês de grande sensibilidade, que já havia se notabiliza
do pela divulgação inteligente que fizera da obra de Sõren Kierkegaard.
A carta de Brandes respondia à remessa que lhe havia feito Nietzsche
de A Genealogia da Moral e revelava grande vivacidade e perspicácia
por parte de seu autor. Vale a pena citá-la:
Respiro em seus livros um espírito novo, original. Nem sempre compreendo intei-ramente o que leio, nem sempre sei aonde o senho r qu er chegar, mas muito do que diz
se harmoniza com minhas idéias e minhas simpatias: como o senhor, tenho pouca estima
pelo ideal ascético , a mediocridade democrática me causa igualmente uma repugnância
profunda; admiro seu radicalismo aristoc rático. O desprezo que professa pela moral da
piedade é uma coisa que não está perfeitamente clara para mim [...] Sobre o s enhor nada
sei. Vejo com espanto que é professor, doutor. De qu alque r modo receba meus cumpri-
mentos pelo fato de ser intelectualmente tão pouco professor. O senhor pertence ao
pequeno número de hom ens com quem eu desejaria conversar2.
1. Informação dada por Daniel Halévy em sua biografia de Nietzsche.
2. C'ilação reproduzida da biografia de Daniel Halévy.
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Essa era uma carta que não podia deixar Nietzsche indiferente -
mas talvez estivesse chegando um pouco tarde. Brandes nunca pôde
satisfazer seu desejo de conversar com Nietzsche e muito menos realizar
sua intenção de iniciá-lo na obra de Sòren Kierkegaard. Nietzsche e
Kierkegaard, esse dois espíritos tão próximos um do outro, apesar da
diversidade de suas convicções religiosas, traçaram assim linhas paralelas no espaço cinzento do século XIX, sem jamais se encontrarem. Mas
é sintomático que os dois, desde o início de suas respectivas carreiras, tenham encontrado em Sócrates o estímulo insubstituível para a reflexão
filosófica.
Sõren Kierkegaard morreu extremamente jovem, em 1855, com quarenta e dois anos de idade. Nietzsche tinha então apenas onze e,
durante os trinta e quatro anos de vida consciente que lhe sobraram, não
teve ocasião de conhecer os livros do pensador dinamarquês. Esses dois
homens cujas obras revelam uma tão clara afinidade e que exprimiram, fora de dúvida, nos respectivos idiomas, um espírito novo e inconfundível, deixaram de produzir, segundo os padrões de nossos tempos, quando ainda eram extremamente jovens. É naturalmente ocioso especular
sobre o que teria acontecido se Kierkegaard tivesse podido viver mais algum tempo, mas não é arbitrário imaginar que o contato pessoal ou
literário de um Nietzsche jovem com um Kierkegaard já maduro seria
algo que teria tido repercussões profundas no contexto cultural dos
nossos tempos.
Kierkegaard e Nietzsche pensaram sobre Sócrates o que ninguém
mais pensou no século XIX. O cristianismo de Dostoiévski não impedia
Nietzsche de ver no romancista russo um mestre que lhe podia dár lições
em psicologia. Do mesmo modo, o cristianismo de Kierkegaard provavelmente não o teria impedido de ver no filósofo dinamarquês um
mestre em socratismo, já que Nietzsche, impressionado com o otimismo
teórico de Sócrates, deixara, no começo de sua carreira, passar despercebida sua ironia. O ironista nunca é um otimista - essa lição que
Nietzsche aprendeu a duras penas e por conta própria, ele a teria
assimilado facilmente de um Kierkegaard maduro, ainda nos primeiros
anos da sua juventude curiosa.
Constitui, sem dúvida, mais do que uma coincidência o fato de que
os dois pensadores que mais contribuíram para uma valorização do fator
ético, na Europa do século XIX, fossem justamente aqueles que tiveram
um relacionamento especial com Sócrates. Foi no século passado e
através desses dois pensadores que se compreendeu claramente a ne-
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cessidade de conciliar duas imagens de Sócrates que pareciam contra
ditórias - a do precursor dos universais e a do descobridor do indivíduo.
Não havia dúvida de que a natureza de Sócrates fosse suficientemente
rica para autenticar as duas imagens. O problema era saber como
operar, no interior da natureza socrática, a transição, a passagem de
uma imagem para outra. Nietzsche era suficientemente perspicaz para
compreender que a descoberta dos universais, o otimismo teórico, a
decadência, não esgotavam o problema socrático. Kierkegaard, por seu
lado, sabia que a ironia do indivíduo não era a última palavra da
sabedoria socrática: a ironia era simplesmente propedêutica. Um e
outro teriam indubitavelmente se completado se o destino não tivesse
tido o capricho de aproximá-los na contemporaneidade mas não na
contiguidade das gerações que surgiam.
Em 1892 Max Nordau, um crítico austríaco, publicava um ensaio,
intitulado “Degeneração”, sobre a cultura decadente da Europa do
século XIX, em que Nietzsche era violentamente atacado. O super-ho
mem era nele visto como um animal de rapina, capaz das mais lamentá
veis proezas. Esse ensaio foi traduzido para o russo em 1893 e foi um
dos mais eficazes instrumentos da disseminação da obra de Nietzsche
na Rússia, vista sob esse aspecto negativo da interpretação de Nordau.
Mas Nietzsche encontrou também na Rússia uma grande quantidade dc
leitores interessados e simpatizantes. Pode-se mesmo dizer que foi
naquele país que a obra nietzschiana exerceu o seu primeiro grande
impacto. Merejkóvski, Rozanov, Fedorov, Berdiaev, Shcslov, (iórki,
Lunacharski, entre vários autores, cujas tendências iam do neo-idealis-
mo ao marxismo, foram nietzschianos, pelo menos durante uma certa
fase de sua evolução espiritual. De 1895 a 1915 nenhum país da Europa
ocidental pôde rivalizar com a Rússia nesse particular. Toda a literatura
russa desse período esteve impregnada de um espírito que era clara
mente nietzschiano. O mesmo sentimento de afinidade que experimen
tara Nietzsche ao ler Dostoiévski os russos experimentaram então lendo
o pensador alemão. O clima histórico em que viviam parecia exigir
mudanças profundas e radicais: só o espírito totalmente livre de Nietzs
che parecia ser capaz de conduzir aquela massa enorme de aspirações
c exigências que se agitava confusamente antes de explodir e causar a
grande transformação social que marcou o nosso século.
Na Europa ocidental, entretanto, um dos primeiros, senão o primei
ro ensaio favorável a Nietzsche, parece ter sido publicado em 1893, por
Lou Salomé, uma jovem russa, personagem problemática e que com o
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livro ganhou renome internacional. Lou Salomé conheceu Nietzsche em
1882 e durante alguns meses manteve com ele estreitos laços de amizade. Paul Rée, amigo de Nietzsche, era também amigo de Lou e, embora seu
nome não figure na capa do livro de Lou, deve, segundo todas as
probabilidades, ter contribuído consideravelmente para sua feitura. O
sucesso do ensaio se deve a várias causas, a primeira das quais tendo
sido o quase total desconhecimento por parte do público das circunstâncias que cercaram seu aparecimento. A verdade é que Lou Salomé,
que se apresentava como uma das primeiras pessoas capazes de compreender e de interpretar a obra de Nietzsche, havia exercido, sem a
menor dúvida, uma influência claramente negativa na vida do filósofo e,
como intérprete, errava o alvo tanto nas suas apreciações encomiásticas
quanto nas críticas e censuras que se permitia formular. Sua falta de
discernimento se revelava no fato de acreditar ter sido Nietzsche influenciado por Paul Rée, a ponto, dizia ela, de através dessa influência
ter o filósofo enterrado para sempre seu idealismo antigo. É possível
que esse julgamento lhe tenha sido “soprado” pelo próprio Rée. Mas, de uma forma ou de outra, o que o livro revela é uma inegável falta de
escrúpulos na manipulação dos elementos utilizados para a elaboração
de seu trabalho: e o exemplo mais flagrante dessa falta de escrúpulos se
encontra na alusão feita ao aforismo 279 de A Gaia Ciência, onde, sob
o título de “Amizade das Estrelas”, Nietzsche se despede de Richard
Wagner - alusão feita, entretanto, com o propósito de fazer crer aos leitores que era de Paul Rée que Nietzsche se despedia. Se houve alguma
influência importante entre os dois - Nietzsche e Rée - durante a época
em que foi escrito o Humano, demasiadamente Humano, ela certamente
teria provindo do filósofo, apesar de tudo o que disseram em contrário
Wagner, seu círculo e também Erwin Rohde, uns e outros já então muito
afastados dos problemas e experiências que constituíam a vida de
Nietzsche.
Mas as relações entre Nietzsche, Lou Salomé e Paul Rée são um
capítulo à parte e aqui estamos interessados unicamente na emergência
da reputação literária e filosófica de Nietzsche. Em 1893 Elisabeth
Fõrster, irmã de Nietzsche, voltava do Paraguai, viúva de um marido
anti-semita e sobrevivente de uma experiência fracassada. A situação
que encontrava no seu núcleo familiar se apresentava duplamente modificada: o irmão vivia num estado de prostração inconsciente, mas sua
fama crescia rapidamente, o interesse dos editores pela publicação de
seus livros aumentando dia a dia. Ela, que durante a vida consciente do
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irmão chegara mesmo a julgar algumas de suas idéias “detestáveis”,
resolvia agora administrar essa glória nascente. A primeira providência
que tomava era modificar seu nome. Passava agora a assinar suas cartas
com o nome de Elisabeth Förster-Nietzsche e, para dar validade a esse
acréscimo, pedia oficialmente que fosse feita a mudança, o que lhe era
concedido por decreto. Essa foi a primeira d’é uma série de providências
que a levaram à propriedade e ao domínio exclusivo dos arquivos em
que se encontravam os manuscritos e as cartas de Nietzsche.
Para enfatizar sua autoridade sobre tudo o que dizia respeito a
Nietzsche, Elisabeth pôs-se a escrever uma biografia do irmão. O pri
meiro volume foi publicado em 1895. Cobria apenas o período da vida
de Nietzsche durante o qual Elisabeth convivera com o irmão, isto é, até
1886. Essa convivência, entretanto, fora marcada por um grande número
de desentendimentos: o período da amizade de Nietzsche e Lou Salomé,
em que explodira o ciúme de Elisabeth, sua acintosamente íntima
amizade com os Wagner, mesmo depois da ruptura provocada pelo
irmão, seu noivado e casamento com um homem que Nietzsche não
estimava. Pode-se, pela simples enumeração dessas desinteligências,
imaginar o tipo de biografia que foi então publicada. O livro teve,
entretanto, algum sucesso de livraria, o que encorajou a obstinada
mulher a prosseguir na sua ambiciosa tarefa. Para o segundo volume,
Elisabeth resolveu viajar de modo a conhecer os lugares e os amigos que
o irmão freqüentara durante o tempo em que ela se ausentara da
Europa; recorreu também às luzes de Rudolph Steiner, que acabara de
publicar um livro sobre Nietzsche e que na época ficou impressionado
com a ignorância de Elisabeth sobre tudo o que dizia respeito à filosofia
do irmão.Tal é, em brevíssimos traços, o perfil da mulher que iria, durante
muito mais de quarenta anos, administrar o legado cultural deixado por
um dos maiores filósofos de todos os tempos. Muito da incompreensão
e da ignorância, que durante tantos anos envolveram a vida e a obra de
Nietzsche, deve-se naturalmente a ela. E o fato de haver a reputação do
filósofo resistido tantos anos a uma ação tão persistente e destruidora é
algo que merece ser assinalado.
Em 1895, Rudolph Steiner publicava seu ensaio Nietzsche, um
Inimigo de seu Tempo, em que o filósofo era apresentado como a vítima
de uma época científica. As preocupações espiritualistas de Steiner
cedo o levariam à teosofia e o tornariam incapaz de compreender que
a ciência não era o único problema do século XIX. Segundo Steiner, os
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preconceitos da ciência impediam Nietzsche de contemplar o homem
espiritual no homem físico. Isso teria criado nele a ilusão de um homem
natural superior.
Provavelmente antes de terminar o século (a segunda edição, que é
a que conheço, é de 1902), Alfred Fouillée escreveu um livro intitulado
Nietzsche e o Imoralismo, obra que pode ser considerada clássica na
literatura criada em torno da figura de Nietzsche; clássica, não pelas
virtudes de análise e de interpretação crítica, mas pelas características
que lhe são diretamente opostas - pela incompreensão, pela presunção,
pela total incapacidade de perceber os interesses que motivaram o
filósofo.
Quando Nietzsche morreu, em 1900, Stefan George, então um dos
poetas mais celebrados da Alemanha, dedicou-lhe um poema. Com isso
a reputação de Nietzsche elevou-se a um nível maior de significação não
só na Alemanha, mas em toda a Europa. Stefan George era mais do que
um grande poeta, era o líder de um círculo de intelectuais e artistas
possuidores de prestigioso talento, com uma obra crítica, historiográfi-
ca, literária e artística que representa talvez um dos pontos altos da
moderna cultura alemã. Friedrich e Ernst Gundolf, Rudolf Borchardt,
Kantorowicz, Ernst Bertram, Kurt Hildebrandt e Ludwig KJages são
nomes que atravessaram as fronteiras da Alemanha e que se impuseram
à admiração da Europa, por uma qualidade especial de seus escritos,
em que profundidade crítica e elã admirativo, eros platônico e análise
lúcida se misturavam numa dosagem até então desconhecida pela en-
saística do mundo ocidental.
O poema de Stefan George foi publicado em 1907 no volume de
poemas intitulado O Sétimo Anel. O poeta vê, em Nietzsche, um amal
diçoado, uma vítima da vulgaridade moderna, um profeta conduzido à
loucura pela cegueira e pela surdez de seus contemporâneos. O esforço
de Nietzsche havia sido heróico mas inútil. Tornava-se necessária a
criação de um pequeno círculo, que constituísse o núcleo da regenera
ção futura - o núcleo que ele, Stefan George, havia formado. Num
segundo poema, escrito na véspera da Primeira Guerra Mundial, Geor
ge não mais lamenta a inutilidade do heroísmo de Nietzsche. O mal
estava inteiramente do lado dos que não haviam sabido compreender a
grandeza do profeta. O poema exprime a desilusão do poeta. Não havia
por que esperar uma regeneração futura. E a Nietzsche, com seu amor
fati e com sua teoria do Eterno Retorno, é atribuída agora uma nova
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0 00&-Q
façanha, uma façanha de uma ousadia inacreditável! A tentativa de
paralisar a história e de impedir uma catástrofe inevitável.
Havia, na visão poética de George, elementos que poderiam conduzir a uma concepção verdadeira e justa da personalidade de Nie- Izsche. Mas a obediência cega com que os membros do círculo ouviam
.1 palavra do mestre fez com que essa visão fosse utilizada para uma
apoteose de George. Nietzsche, pensavam eles, era apenas um precursor, uma voz no deserto a pregar o acontecimento iminente: “George é”, chegou a afirmar um dos discípulos, “aquilo que Nietzsche convulsivamente desejava ser”.
O caso de Ernst Bertram, entretanto, merece uma consideração à parte. Walter Kaufmann encara sua interpretação de um Nietzsche em
perpétua autocontradição como uma conseqüência extremada da visão
de George de um Nietzsche autodilacerado. Kaufmann nega a legitimidade desse ponto de vista. Segundo ele, Bertram projetou, em Nietzsche, sua própria personalidade romântica quando propôs que o
considerássemos um filósofo “tipicamente ambíguo”.
Discutir a tese de Kaufmann não é fácil. Há, na sua argumentação,
algo que é inquestionavelmente verdadeiro, mas há também elementos que são contestáveis. A ambigüidade de Nietzsche não o identifica
automaticamente com os românticos como parece pensar Kaufmann. O
que caracteriza os românticos é a indefinição, não a ambigüidade. Sócrates, Platão e Lutero são ambíguos, mas não são românticos. Superação de si mesmo e não ambigüidade é a chave de Nietzsche, propõe- nos Kaufmann - mas a superação de si mesmo não explica vários dos grandes temas nietzschianos: em momento nenhum de sua obra, Nietzs
che possui a certeza de que a máscara histriónica pode ser superada pela
máscara do divino; Nietzsche era um decadente que se sabia decadente; o saber-se decadente podia ser uma superação da decadência, mas podia ser também uma outra forma de decadência etc., etc.
É inegável que Bertram abusa do conceito de ambigüidade para
explicar a personalidade de Nietzsche. O erro parece consistir no fato
de Bertram derivar essa ambigüidade das características da personalidade de Nietzsche e não do tipo de problemas que o filósofo precisou
enfrentar. Seu ensaio sobre Nietzsche, publicado em 1918, trai insofismavelmente a tendência a apresentar Nietzsche como uma personalidade romântica. Dito isso, é preciso reconhecer que se trata de uma das peças de crítica literária e filosófica mais brilhantes que já foram escritas. Sua interpretação de Nietzsche, como uma personalidade românti
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ca, permite-lhe explorar exaustivamente todos os aspectos da ambigüi-
dade do filósofo e oferecer-nos assim um vasto material donde podemos,
de um outro ponto de vista, e talvez com maior lucidez e objetividade, selecionar o que no criador de Zaratustra é ambíguo, em virtude da
inexorabilidade dos problemas.
Friedrich Gundolf não escreveu um livro sobre Nietzsche. Mas as
poucas páginas que lhe dedicou, em alguns ensaios, entre os quais os
estudos sobre César e Shakespeare, têm talvez mais relevância do que
vários dos volumes consagrados à memória do filósofo. Friedrich Gun
dolf foi sem dúvida alguma, depois de George, a figura mais brilhante
do círculo, mais brilhante mesmo que Bertram, tendo produzido obras de uma grande importância como estudos sobre Paracelso e Goethe,
além dos que já mencionamos. Nas poucas páginas dedicadas a Nietzs
che no ensaio sobre César, Gundolf nos revela o segredo das máscaras
do filósofo:
[...jentre todas as imagens heróicas conhecidas Nietzsche escolhe a de César po rque é ela
que se aproxima mais do seu novo desejo de clareza, de contorno, de densidade terre stre,
como de seu desejo mais antigo de grandeza, de enormidade, de fatalidade e de superio-ridade espiritual. Mais do que no jovem Alexandre, embriagado de espaços longínquos,
envolvido em nuvens de imaginação romântica, ele sente prazer em encontrar em César
a imagem de seu desejo e o modelo de seu pensamento , o romano. [...] César para ele era
simplesmente o herói monumental não romântico.
Uma única palavra nos comentários decididamente elogiosos que
faz a respeito da personalidade de Nietzsche revela uma restrição, uma
dúvida, uma reticência: o adjetivo que qualifica Zaratustra, identificado
com César. César seria, segundo Gundolf, um Zaratustra mais sadio. Linhas adiante, termina o ensaio dizendo que sua época não tinha visto
ainda nascer um dominador como César, embora já reinasse sobre ela
uma personalidade em que se uniam uma sabedoria amadurecida e uma
vontade inexorável de comando - alusão transparente a Stefan George,
que parecia assim se apresentar como o Renovador que nem Nietzsche
nem Zaratustra haviam podido ser.
Outros membros do círculo que escreveram sobre Nietzsche foram
Kurt Hildebrandt e Ernst Gundolf, irmão de Friedrich. Hildebrandt
escreveu quatro ensaios sobre o filósofo, um dos quais publicado junta
mente com um trabalho de Ernst Gundolf no volume intitulado Nietzs
che como Juiz do Nosso Tempo e publicado em 1923. De um modo geral
se poderia dizer que o círculo de Stefan George, embora utilizando
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Nietzsche como um pedestal para a apoteose de George, contribuiu
para retirá-lo da atmosfera de mediocridade dentro da qual se havia
debatido até então a crítica nietzschiana. Entre outras coisas surgira, em
1902, um ensaio de Paul J. Möbius, em que era estudada a doença de
Nietzsche de um ponto de vista estritamente médico. Möbius realizara
pesquisas nas clínicas da Suíça e da Alemanha em que Nietzsche fora
internado após a crise de Turim e chegara à conclusão de que a causa
da loucura de Nietzsche era de natureza exclusivamente física: Niejzfc
ehe teria adquiridasiTüis, em Leipzig ou nos quarteirões mal-afamados
de alguma cidade italiana, e pagava, aos quarenta e três anos de idade,
o preço de suas aventuras escabrosas. Teremos a ocasião de dizer mais
adiante o que valem as pesquisas e conclusão de Möbius. Havia também
outros tipos de polêmicas manifestamente incompreensivas como as de
Roberty e Liechtenberger, dois intérpretes afinados mais ou menos com
o diapasão de Alfred Fouillée.
Em 1904 Richard Oehler publicou um ensaio “intitulado” Nietzsche
e os Pré-Socráticos, que teve uma certa repercussão. Segundo Oehler,
Nietzsche estava completamente sob a influência de Schopenhauer e
por isso repudiara o otimismo socrático. Muito mais tarde, em 1935,
Oehler publicou um novo trabalho sobre Nietzsche: Nietzsche e o Futuro
da Alemanha. Os dois livros se caracterizam por uma intensa teutoma-
nia.
Em 1908, na Sociedade Psicanalítica de Viena, realizavam-se semi
nários sobre Nietzsche, com a participação de Freud, Adler e Otto
Rank. Essas discussões pouco interesse têm do ponto de vista de um
entendimento de Nietzsche. Eram apenas uma indicação da glória
crescente do filósofo, já que tanto Freud quanto Adler e Rank não se interessavam especificamente pelo problema que para Nietzsche era
crucial - o problema da decadência da cultura. As afinidades que
sentiam entre si próprios e o filósofoeram marginais, afinidades que, de
formas diversas, um grande número de pessoas também sentia, sem que
por isso estivessem identificadas com os problemas essenciais da filoso
fia de Nietzsche.
Virgile J. Barbat publicava, em 1911, um livro intitulado Nietzsche
- Tendências e Problemas, que representava um esforço para estabelecer uma certa ordem nas idéias do filósofo, aliás entendidas num espírito
de servil submissão.
Em 1912, Max Scheler, do ponto de vista da fenomenologia, escrevia
seu trabalho sobre o ressentimento, procurando refutar a visão nietzs-
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chiana do cristianismo. Thomas Mann, em 1919, credenciava-se para
receber um prêmio que havia sido instituído para o melhor livro escrito
num espírito nietzschiano (Reflexões de um Apolítico). O ensaio de
Bertram sobre Nietzsche o entusiasmara; seu Doutor Fausto, escrito
mais tarde, foi também profundamente influenciado pelas idéias do
fdósofo. Ludwig Klages, anti-semita e irracionalista, escrevia em 1926
um livro sobre Nietzsche, fazendo da oposição entre o “espírito e a vida”
a inspiração fundamental do seu trabalho.
Entramos agora num período de análise da obra nietzschiana em
que o trabalho dos comentaristas consistia sobretudo em divulgação.
Nenhuma análise da importância do ensaio de Bertram apareceu antes
da publicação, em 1936, do livro de Karl Jaspers sobre Nietzsche. É
verdade que Charles Andler publicara de 1920 a 1931 seus seis alentados
volumes, que vão dos precursores até a última filosofia de Nietzsche, e
que Daniel Halévy produzira, pouco depois, uma inteligente biografia
do filósofo. Mas, embora Andler tenha erigido à memória do filósofo
um monumento impressionante pela sua dimensão e pela variedade e
riqueza de detalhes, faltava-lhe a visão do essencial e a percepção da
pulsação íntima do pensamento nietzschiano; e a biografia de Halévy se
ressentia naturalmente da falta de elementos de informação ciosamente
guardados por Elisabeth Fórster nos Arquivos Nietzsche. Satelizava a
obra monumental de divulgação de Andler um sem-número de comentaristas igualmente falhos de uma visão essencial, tais como Émile
Faguet, Jules Gaultier, Pierre Lasserre, Genieve Bianques, Stefan
Zweig, Georges Bataille, E. F. Podach, August Mueller, Karl Heckel, Karl Justus Obenauer, Cari Albrecht Bernouille, Friedrich Muckle,
Georg Simmel, B. Groethuysen e muitos outros. Seria impossível fazer
aqui um catálogo completo dessa literatura e muito menos um comentário pormenorizado de cada um desses livros.
Com Karl Jaspers, chegamos a um outro marco importante no
desenvolvimento da crítica nietzschiana. Nietzsche é apresentado pela
primeira vez como um filósofo que não pode ser compreendido através
de posições definidas, ou complexos de pensamentos extraídos de sua
obra. E verdade que havia, já em Bertram, uma certa tendência nesse
sentido. A concepção que Bertram tinha de Nietzsche, como uma
personalidade ambígua, excluía naturalmente a possibilidade de um
Nietzsche formulador de doutrinas positivas. Mas a diferença entre a
concepção de Bertram e a de Jaspers é que a ambigüidade, na primeira, deriva da personalidade de Nietzsche, ao passo que, na segunda, resulta
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«I.i própria natureza da verdade que persegue. Walter Kaufmann, que
li,ui reconhece essa diferença, julga que Jaspers foi influenciado pelas
idéias do círculo de Stefan George-julgamento, seja dito de passagem,
<|ue surpreendeu profundamente Jaspers, distante como parece ter
sempre estado da área de influência do grande poeta.
Jaspers não se interessa'pela filosofia de Nietzsche, mas pelo seu
filosofar. As contradições do filósofo não o perturbam, são-lhe, ao
contrário, uma garantia de que o sopro da liberdade não permitirá que
essa ou aquela idéia se transforme em dogma. Publicado em 1936, seu
livro sobre Nietzsche foi provavelmente a causa de sua demissão da
cátedra de professor da Universidade de Heidelberg. Mesmo sem
considerar a qualidade de sua interpretação, o fato de Jaspers ter
ousado enfrentar o regime nazista com uma imagem de Nietzsche, que
era uma clara censura a esse regime, seria suficiente para garantir-lhe
um lugar de destaque na história da literatura criada em torno da figura
do filósofo. E é digna de registro, para completar uma definição do seu
caráter, a declaração pública que fez depois do colapso do nazismo,
quando confrontado com a glorificação em torno de seu nome promo
vida pela rádio e pela imprensa: “Não sou um herói e não desejo ser
considerado como tal”.
Em 1934, Alfred Báumler publicou seu estudo sobre Nietzsche e o
nacional-socialismo. Esse livro deu início a toda uma literatura que fazia
de Nietzsche o filósofo oficial do nazismo. Cabe aqui relembrar o papel
que desempenhou Elisabeth, irmã de Nietzsche, na formação da crença
de que o nazismo nada mais era do que a tradução, em termos políticos,
das idéias expressas por Nietzsche. Desde cedo, antes mesmo de ir para
o Paraguai, Elisabeth adquirira a convicção de que o imperador Guilherme se interessaria pelas idéias do irmão, caso as conhecesse - idéias
que, segundo Elisabeth, iam ao encontro do estado de espírito do povo
alemão, sedento de glória e de poder. Sob a influência de um marido
recalcado e medíocre, Elisabeth misturava, no seu espírito pouco afeito
às idéias, ardor nacionalista, fanatismo anti-semita e religião wagneria
na, obstinando-se contra toda a realidade dos textos a descobrir, na obra
do irmão, suporte para essas tendências. Mais tarde, depois da Primeira
Guerra Mundial e da ascensão de Mussolini ao poder, ela enviou-lhe uma mensagem de felicitações com um retrato de Nietzsche, tendo
recebido um telegrama de agradecimento em que Mussolini lhe falava
de sua antiga admiração por Nietzsche. Nos Arquivos Nietzsche, dirigi
do por ela, todo mundo falava de Mussolini, e foi com delírio que os
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Arquivos receberam a visita do embaixador da Itália, vindo especial
mente a Weimar para transmitir pessoalmente, a Elisabeth, os votos do
Duce. Foi ainda com a cooperação de Elisabeth que a peça escrita por
dois autores, um dos quais Mussolini, e intitulada Campo deMaggio, foi
representada pela primeira vez na Alemanha, no Teatro de Weimar, em
1932. Hitler compareceu a essa representação e foi ao camarote de
Elisabeth cumprimentá-la. Em 1935, Elisabeth, meses antes de morrer,
foi homenageada com uma visita do Führer aos seus Arquivos; e Hitler
fez questão de comparecer ao seu enterro para demonstrar a estima que
sentia pela irmã do ilustre filósofo. No fim da cerimônia fúnebre Hitler
marcava ainda mais o seu apreço pela defunta, aproximando-se do
caixão e depositando sobre o corpo inanimado uma enorme coroa de
louros.
Tão falsas quanto as interpretações nazistas de Nietzsche eram
naturalmente as interpretações do filósofo feitas pelos marxistas da
Europa ocidental. E a razão não é difícil de entender: essas interpreta
ções tinham um vício de base - a crença de que o Nietzsche nazista
constituía uma imagem válida do filósofo. Assim Lukács, no livro intitu
lado A Destruição da Razão, publicado em 1959, diz-nos que o que Nietzsche fez foi opor à dialética materialista, ao materialismo histórico,
um sistema adverso, um mito irracionalista. Essas e outras concepções
de Lukács, tais como a idéia da existência de um relacionamento entre
as filosofias de vida e o imperialismo, são por demais simplistas para que
valha a pena nos determos sobre elas. Lukács era, entretanto, um autor
marxista que dispunha de grandes recursos de erudição filosófica; se
suas análises não oferecem interesse, a razão disso certamente deverá
ser atribuída à esterilidade do ponto de vista que resolveu adotar.
Antes de analisarmos a interpretação que deu de Nietzsche um dos
filósofos mais influentes de nossa época, Martin Heidegger, deveremos
considerar se o criador de Zaratustra exerceu algum tipo de influência
sobre Rainer Maria Rilke* o segundo grande poeta que a Alemanha teve
neste século. Vimos a importância atribuída a Nietzsche por Stefan
George e seu círculo. Rilke certamente não contribuiu da mesma forma
para aumentar a glória do filósofo e constitui talvez um caso único na
história da influência de Nietzsche sobre personalidades criativas: não
são poucas as pessoas e mesmo os críticos literários que entraram em
contato com Rilke sem sentir o impacto que sobre ele teve essa influên
cia nietzschiana.
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É verdade que não é fácil explicar o fato de ter Rilke aparentemente
evitado mencionar, seja nos seus escritos seja nas suas cartas, o nome
de Nietzsche. Em 1900, o poeta escreveu as seguintes linhas à margem
do seu exemplar de A Origem da Tragédia:
Atrás de mim se encontram coros sombrios, florestas que se agitam, mares; e de
ludo o que pesa me livro eu; pois de vez em q uando ouço um respirar mais forte que o
meu por detrás do curso dos acontecimentos. Entüo fico certo de que minhas mãos não
me traem quando engendram novas formas, mas que pelo contrário suportariam qual
quer peso para criar para essa respiração um peito sobre-humano.
Esses comentários, entretanto, só foram publicados em 1966; e a
ausência de referências a Nietzsche, na obra de Rilke, talvez tenha
criado a impressão de que não tinha havido qualquer influência do
filósofo sobre o poeta. Qual teria sido o motivo da reserva que o poeta
parece ter imposto a si mesmo? As relações de Rilke com Lou Salomé
tornam improvável a hipótese de que a figura e o destino de Nietzsche
nunca tenham ocupado seu espírito - disso a citação que fizemos é prova
mais do que suficiente. Mas se fosse algum sentimento derivado de seu
envolvimento com Lou Salomé o que tornava Rilke tão comedido nos
seus pronunciamentos sobre Nietzsche, como compreender uma poesia
que parecia estar tão impregnada do espírito nietzschiano? Mais curiosa
ainda do que a reticência de Rilke é a circunstância de que, ao falar das influências por ele recebidas, o poeta se refere a um sem-número de
coisas e de nomes, a Jacobsen e a Rodin em primeiro lugar, mas jamais
ao nome do filósofo.
Erich Heller, no seu livro The Desinherited Mind, inclui um capítulo
sobre as relações entre Nietzsche e Rilke, que constitui, aparentemente, a única análise, na vasta literatura sobre Nietzsche ou Rilke, a se ocupar
de modo consistente das relações entre os dois, procurando mostrar o
que há neles de comum e também de insuficiente. Heller parte naturalmente da premissa de que Nietzsche influenciou Rilke - e essa parte de
seu trabalho é perfeitamente justa e penetrante, como é eventualmente
compreensível sua crítica de Rilke. O ponto fraco de sua argumentação parece residir no fato de Heller atribuir a Nietzsche as deficiências que
discerne em Rilke, como se a circunstância de ter havido uma influência
implicasse a necessidade de estarem os dois unidos numa participação
aos mesmos fatos negativos.
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A fim de completar o que tínhamos a dizer sobre essa influência, citemos um trecho do capítulo a que nos referimos do livro The Desi-
nherited Mind:
Rilke entre tan to é o poe ta de um mundo cujo filósofo é Nietzsche. A formação dessemundo escapa a q ualquer sistema tradicional de cartografia. A dúvida substituiu todasas certezas. Ao inom inado é dad o um nome e o indizível é pronunciado. É um m undo noqual a ordem de correspondência é violentamente perturba da. N ão podem os mais estarcertos de que am amos o que é amável e detestamos o que é detestável. O bem não produznada de bom e o mal não molesta ninguém.
Em 1936, Martin Heidegger iniciou seus cursos sobre Nietzsche, que se prolongaram até 1940. Antes de falarmos da interpretação heideggeriana de Nietzsche, convém examinar alguns aspectos do rela
cionamento de Heidegger com o nacional-socialismo. Há quem preten
da invalidar sua obra, pelo fato de ter sido ele nazista, e há quem considere essa obra totalmente independente das circunstâncias da sua biografia. Do que não pode haver mais a menor dúvida é de que ele tenha sido de fato nazista, desde sua entrada no partido, em 1933, até o
colapso final da Alemanha, em 1945. O livro de Victor Farias Heidegger e o Nazismo, publicado em 1987, elimina qualquer incerteza sobre essa questão. E verdade que Farias não pôde consultar o arquivo guardado pela família do filósofo - por razões desconhecidas e que parecem no mínimo suspeitas. Mas o que pôde consultar constitui prova mais do que suficiente. Heidegger era um nazista; sua maneira de ser nazista era talvez diferente da maneira de Hitler, Goebbels e outros dirigentes nazistas - mas é evidente que, em questões essenciais, seu ponto de vista
coincidia totalmente com os pontos de vista de tais dirigentes. Heidegger era anti-semita, inimigo da democracia, profeta de uma missão especial do povo alemão e da supremacia da língua alemã. Esses ele
mentos são suficientes para caracterizar o nazista. O problema que nos concerne é, então, saber se um nazista tem autoridade para interpretar um filósofo como Nietzsche - já não quero discutir aqui a questão de saber se um nazista tem autoridade para construir uma ontologia. Os discípulos de Heidegger têm uma tal fascinação pela construção inte
lectual elaborada pelo mestre, que a julgariam respeitável, mesmo que ficasse provado ter sido Hitler, e não o filósofo, o autor dessa obra. Do ponto de vista nietzschiano, entretanto, é totalmente inadmissível pensar que um filósofo possa ser compreendido sem se levar em conta os fatos de sua existência biográfica. Os discípulos de Heidegger podem se
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concentrar todo o tempo que quiserem sobre as excentricidades da
ontologia de O Ser e o Tempo, mas estão tão desqualificados quanto o
mestre para emitir o menor julgamento sobre a problemática de Nietzsche - para se qualificarem teriam, como o mestre, de provar, contra as
afirmações de Nietzsche, que a essência de uma filosofia nada tem a ver
com a personalidade e as experiências várias do homem que a elaborou.
Heidegger nos oferece uma filosofia do Ser. E manifesta seu desdém pelas filosofias interessadas pelo conceito de valor. Eis a frase que
pronunciou em 1935, num curso que só foi publicado em 1952, sob o
título Introdução à Metafísica:
Em 1928 apareceu uma bibliografia geral do conceito de valor, primeira parte,
í 'itam-se aí seiscentas e sessenta e uma publicações sobre o conceito de valor. E provável
c|ue agora já se tenha chegado ao milhar. Eis o que se chama hoje de filosofia. Em
pa rticu lar o que é hoje lançado no mercado como fdosofia do nacional-socialismo e que
nada tem a ver com a verdade interna e a grandeza desse movimento (isto é, o encon tro,
a correspondência entre a técnica determinada planetariamente e o homem moderno)
faz sua pescaria nas águas turvas desses valores e dessas cifras.
Estaria a filosofia de Nietzsche incluída na lista dessas filosofias que
nada tinham a ver com a verdade interna e a grandeza do movimento
nazista? Se isso é verdade - e deveria sê-lo, porque o tema fundamental da filosofia de Nietzsche é a questão do valor -, por que Heidegger estuda de modo tão minucioso uma filosofia inspirada em princípios que
despreza? Na verdade, ao analisar a obra de Nietzsche, o principal esforço de Heidegger é no sentido de mostrar que a noção de valor
representa nela a forma mais extremada do esquecimento do Ser - como se, em épocas anteriores, o homem pouca atenção tivesse dado ao
problema do valor e só se tivesse preocupado com a maior ou menor
refulgência do Ser. É baseado nessa idéia extravagante - mas recebida
por intelectuais sofisticados com um entusiasmo quase delirante - que
Heidegger pontifica sobre Nietzsche, caracterizando-o como o último metafísico do Ocidente. Qualquer leitor de Nietzsche mais perspicaz
não poderia deixar de surpreender-se com essa extravagância. Nietzs
che, um metafísico ? Nietzsche, pronunciando-se sobre valores que são apenas a última dissimulação do Ser, a sua mais extremada ocultação?
- Sim, respondem gravemente os heideggerianos, e mais gravemente ainda nos descrevem todo o processo, todas as etapas por que passa a
idéia do Ser até transformar-se nessa realidade totalmente diferente que
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é o valor e por trás da qual aquela idéia se esconde em virtude de um
jogo curioso, cujas regras é difícil de atinar.
Heidegger interpreta, pois, a filosofia de Nietzsche, tomando como ponto de partida não a idéia de valor, mas a idéia do Ser. A metafísica
de Nietzsche, segundo ele, representa o aniquilamento do Ser no seu
esquecimento extremo. A subjetividade do Espírito racional de Hegel
cede lugar à subjetividade absoluta da Vontade. É preciso, dizem os
heideggerianos, que a Vontade destrone a Racionalidade, é preciso que
ela se aproprie da essência incondicional da subjetividade liberada de
toda determinação extrínseca. O que há de querer a Vontade? - Nada,
a não ser ela própria. Querer a si própria, tornar efetivo seu próprio caráter absoluto, isto quer dizer: autorizar-se, a partir de si mesmo, ao
exercício soberano de um poder sempre acrescido - assim encarada na
sua essência autotélica, uma tal Vontade deve se chamar Vontade de
potência. Longe de suprimir as categorias lógicas que destronou, tal Vontade as submete a seu serviço; essas categorias, subordinadas à
Vontade, tomam agora o nome de valores. A filosofia de Nietzsche, então, é o fim de um longo processo de obnubilação do Ser, até o seu
esquecimento total; é assim uma metafísica de vontade de potência, isto é, uma filosofia que não cria, mas apenas posiciona valores. Nietzsche,
definitivamente, não cria valores, ele simplesmente esquece o Ser; e por
isso sua filosofia é uma metafísica, isto é, uma disciplina ligada primordialmente ao Ser, que é esquecido e transformado em valor.
Vemos, assim, como a compreensão que Heidegger tem de Nietzsche revela suas afinidades com o nazismo. O anúncio do fim da
metafísica e a rejeição das filosofias de valor só podem significar o
advento de uma nova era, em que a vontade de potência se afirma como
o fator preponderante, como o fato fundamental da vida humana - o
advento de uma era, em que o Führer é chamado a representar um papel essencial na organização das sociedades. E verdade que a ontologia de
Heidegger deixa entrever a possibilidade de uma existência autêntica,
em que a natureza do Ser é revelada plenamente - mas isso não parece
poder ser realizado sem a intervenção conjunta do povo e do Führer. Heidegger deixa sempre envolto em espessas camadas de mistério o
processo pelo qual o Ser poderia ser revelado plenamente, criando até
a ilusão de que a seu ver a autenticidade da existência poderia ser
adquirida pelo esforço exclusivo do indivíduo. Mas quando refletimos
sobre suas declarações a respeito do encontro do homem moderno com
a técnica determinada planetariamente, vemos com clareza que não é
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através de soluções obtidas no plano do indivíduo que Heidegger pensa
poder afrontar os problemas da civilização contemporânea. Heidegger
i <■ jeita os valores e aceita o Führer - o Führer não como anunciador de
valores novos, mas como um dos fatores indispensáveis à realização da
existência autêntica.
A literatura sobre Nictzsche tomou um rumo completamente novo
depois da interpretação heideggeriana. Heidegger foi, depois da Segun
da ( iuerra Mundial, juntamente com Marx, o filósofo mais influente na
Europa continental e, em particular, na França. A teoria dos valores
parecia, então, ter entrado em declínio, e a ontologia se afirmava como
a disciplina filosófica por excelência. Falava-se de Nietzsche, naturalmente, não porque suas idéias suscitassem interesse, mas porque Hei
degger falara nele e falara de um modo que, para alguns, parecia mesmo
excessivo. A verdade é que Nietzsche foi o grande adversário que
Heidegger encontrou no ápice de sua carreira. Heidegger procurou
dominá-lo, transformá-lo numa peça do seu sistema, reduzi-lo à sua
própria visão de mundo, mas, no final, conheceu o fracasso e foi vencido
pela qualidade mais viva do pensamento de Nietzsche. Acontece tam
bém que, mais ou menos nessa época, os Arquivos Nietzsche tornaram-
se acessíveis aos pesquisadores. Karl Schlechta, em 1958, escreveu seu
livro O Caso Nietzsche, em que as manipulações e falsificações de
Elisabeth, irmã de Nietzsche, eram pela primeira vez levadas ao conhe
cimento do grande público. Heidegger, naturalmente, havia analisado
os textos de Nietzsche, quando eles ainda estavam sob o controle de
Elisabeth. Alguns de seus discípulos, espectadores daquela luta silen
ciosa, devem ter compreendido qual era a motivação essencial de um
tal confronto. Nietzsche passou a ser estudado não por constituir objeto
das preocupações de Heidegger, mas como o pensador que se dirigia
melhor do que ninguém aos problemas da época. Uma série de livros
surgiu nessa época de renascença de Nietzsche: de Eugen Fink, de Gilles
Deleuze, de Klossowsky, de Jean Grenier, de Paul Valadier, de Georges
Morei, de Sarah Kaufmann, de Michel Guérin, de Pierre Vance e de
Curt Paul Janz, entre outros. Desejo destacar aqui Jean Grenier, com
um estudo extremamente competente sobre o problema da verdade em
Nietzsche; Paul Valadier, que submete sua fé cristã a uma confrontação
com o pensamento nietzschiano e que, com grande coragem e penetra
ção, se dispõe a passar pelo teste; e Curt Paul Janz, que nos ofereceu a
melhor e mais completa biografia de Nietzsche surgida até hoje. Esses
autores e muitos outros contribuíram fortemente para criar um novo
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clima e para dar uma nova dimensão à literatura formada em torno de
Nietzsche.
Na Alemanha, Rudolph Binion publicou, em 1966, um livro sobre
Lou Salomé, discípula de Nietzsche, que lança dúvidas sobre o caráter
de Lou e sobre a versão dada por ela às relações entre os dois. Binion
procura mostrar, através de documentos, que Lou Salomé não era uma
testemunha em quem se pudesse confiar; entre outras coisas, espalhara
a história de que Nietzsche e Paul Rée a tinham pedido em casamento
(Nietzsche por intermédio de Rée). Binion sustenta que Nietzsche
nunca a pediu em casamento, embora aparentemente ela tivesse espe
rado por isso, e afirma que ajovem russa permaneceu virgem pelo menos
até 1892, isto é, dez anos depois de sua convivência com Nietzsche.
Nos Estados Unidos, Walter Kaufmann, autor alemão, publicou,
em 1950, um ensaio sobre Nietzsche, cujos méritos devem ser ressalta
dos não só em virtude da própria qualidade do livro, como também pelo
fato adicional de ter sido a primeira interpretação importante da obra
de Nietzsche feita no mundo anglo-saxônico. Surgiram, depois dele,
vários trabalhos em língua inglesa também dignos de nota: em primeira
linha, o trabalho monumental de Richard Schacht; mas também os livros
de R. J. Hollinrake, E. F. Peters e de J. P. Stern. Hollinrake escreveu um
livro intitulado Nietzsche, Wagner e a Filosofia do Pessimismo, que foi
de grande valia na elaboração do nosso texto. E. F. Peters escreveu
Nietzsche e sua Irmã Elisabeth, donde pudemos recolher informações
extremamente úteis. E J. P. Stern não só escreveu um livro sobre
Nietzsche, como, de parceria com M. S. Silk, escreveu, em 1981, um livro
intitulado Nietzsche on Tragedy, que representa o estudo mais completo,
mais compreensivo e mais importante até hoje publicado sobre A Ori
gem da Tragédia.
Finalmente, em livro publicado em 1983, R. Hinton Thomas nos faz
ver como é falsa a impressão largamente generalizada de que, em
matéria social e política, Nietzsche, no Ocidente, representava, de 1890
a 1918, um pensamento que legitimava sobretudo a posição dos conser
vadores (ou reacionários). Hinton Thomas nos descreve com minúcia a
composição e as atividades dos grupos sociais e políticos que, na Alemanha daquele período, foram influenciados pelas idéias de Nietzsche
- grupos de tendências marcadamente reformistas senão revolucioná
rias, socialistas de toda espécie sobre os quais tais idéias exerciam um
efeito estimulante e liberador.
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Para qualquer lado que a análise se volte, encontrará sempre
vestígios de influência de Nietzsche. O Nourritures Terrestres, de Gide,
e i Homme Révolté, de Camus, têm a marca de Nietzsche. Bergson e
Proust discutiram Nietzsche: Bergson, ao analisar o problema dos dois
tipos de moral; Proust, ao refletir sobre o problema da amizade. A
problemática do romance monumental de Robert Musil, O Homem sem
Qualidades, está inextricavelmente ligada às perspectivas, à temática e
às aspirações de Nietzsche.
Como dissemos ao começar este capítulo, hoje, a literatura sobre
Nietzsche é representada por mais de três mil volumes.
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2. A INFLUÊNCIA DA OBRA SOBRE A VIDA
A vida e a obra de Friedrich Nietzsche estão de tal modo ligadas, que não é menos difícil fazer-lhe a biografia sem um exame paralelo de
suas idéias do que seria fazer esse exame sem dar atenção à biografia. Não se trata apenas de levar em consideração o fato de que suas
experiências pessoais foram transportadas para um mundo de idéias que
as acolheu transfiguradas; não se trata apenas de compreender que a
vida de Nietzsche explica sua filosofia; é necessário também compreender como, de que modo, sua filosofia explica sua vida. A análise filosófica já vai se habituando a um tipo de filosofia que nem é acadêmica nem
abstrata e que mostra disposição para participar das paixões, das vicissitudes e tragédias do destino humano - homens como Pascal e Kierke-
gaard já lhe indicaram o caminho. Mas, apesar disso, o caso de Nietzsche
parece exigir algo mais, um esforço ainda maior nesse sentido. Pascal e
Kierkegaard construíram seu mundo de idéias a partir de experiências
que representavam o que podemos chamar de sua base biográfica. Essa
base era como que o elemento estável sobre o qual se elevava uma
construção espiritual - construção que refletia, naturalmente, os movimentos da paixão e da sensibilidade, mas que nem por isso deixava de
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assegurar a proteção desses elementos dentro de um quadro bem
definido e permanente.
Com Nietzsche, a situação já não é a mesma. Seu mundo de idéias
tinha uma base biográfica - mas não era ele próprio a fonte de aconte
cimentos que compunham uma biografia? Se refletirmos um pouco
sobre essa questão, verificaremos que não há, para ela, senão uma
resposta: esse mundo de idéias serve também de base para a existência
biográfica de Nietzsche. E curioso que as idéias de um homem possam
modificar seu perfil biográfico - mas tal foi a experiência que, através
de Nietzsche, nos foi dado a conhecer.
A trajetória espiritual de Nietzsche nos oferece, assim, o espetáculo de uma oscilação permanente entre a vida e a obra do filósofo. Se
quisermos isolar o aspecto biográfico do destino de Nietzsche, chegare
mos, em pouco tempo, a uma imagem do filósofo totalmente estranha
ao que ficamos sabendo quando lemos seus livros e estudamos sua obra.
Era aquele homem delicado, atencioso, amável, de uma sensibilidade à
flor da pele, a mesma criatura que escrevia livros tão ousados, tão
radicais, tão revolucionários? Era aquele autor que escrevia num estilo
tão atraente, tão apaixonadamente comprometido com o leitor, o mesmo homem que, para não ofender certos amigos e parentes, fazia o
possível para evitar que seus livros fossem lidos por eles? O próprio
isolamento que, pouco a pouco, ia envolvendo a vida do filósofo era um
elemento do seu destino que não tinha apenas um caráter biográfiço.
Nietzsche não foi um escritor que tivesse sido pouco a pouco abando
nado pelos meios intelectuais em que se formara. Os laços que o
prendiam a esses meios foram se afrouxando insensivelmente, em virtu
de sobretudo de atitudes e iniciativas que partiam dele próprio. Seu isolamento era, assim, não apenas um acontecimento biográfico, mas
também uma opção de natureza espiritual. O problema da doença, na
sua obra, não era apenas um reflexo das condições particulares de seu
estado físico - não era apenas um reflexo de acontecimentos biográficos,
mas era também uma questão espiritual, que o levara mesmo a pensar
que um homem tinha tantas filosofias quantos fossem os estados de
saúde por que tivesse de passar. Em A Genealogia da Moral, o homem í
é definido como um “animal doente” - esse homem é concebido, não a Jpartir da doença do indivíduo Nietzsche, e sim em conseqüência de uma
análise histórica, de uma interpretação do judaísmo. '/
Vemos, assim, como é falacioso o desejo que demonstram certos
analistas de tudo explicar a partir da existência de um relacionamento
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íntimo entre a vida e a obra do filósofo. Não há a menor dúvida de que
o relacionamento existe. Mas essa asserção deve ser feita, não com o
intuito de aplainar dificuldades e abrir caminhos (como acontece comu-
mente), mas, ao contrário, com a disposição de enfrentar os problemas
que, na realidade, a asserção cria mais do que resolve para o investigador. Na verdade, esse relacionamento é de um tipo especial, muito
diferente do relacionamento que existe, por exemplo, nos casos de
outros grandes escritores como Shakespeare, Goethe ou Dostoiévski.
Shakespeare, por exemplo, escreveu Hamlct para conjurar o fantasma
do regicídio; Cioethe escreveu Werther para conjurar a tentação do
suicídio; Dostoiévski transferiu para seus romances um excesso de
vitalidade que os limites de sua existência física não permitiam encarnar.
Nietzsche, pensam então alguns analistas, teria, do mesmo modo, feito
da filosofia um instrumento para dar largas a seu temperamento explosivo Trata-se de uma interpretação que encontra apoio numa leitura
superficial dos textos nietzschianos e que, por isso mesmo, tem se
transformado num vade-mécum de muitos investigadores perplexos
com a aparente falta de coordenadas na obra do filósofo. O problema,
como teremos a ocasião de ver, é mais complicado e exige de nós um
esforço de compreensão suplementar. Não é a vida de Nietzsche que
explica sua filosofia; será talvez sua filosofia que explique sua vida. Em
todo caso, existe aqui um problema que precisa ser atacado em toda a
sua intratabilidade, porque nem a história da literatura nem a história
da filosofia nos oferecem exemplos que possam tornar mais fácil o
trabalho de investigação que lhes é apropriado.
Em poetas, romancistas e dramaturgos, o relacionamento entre a
vida e a obra se exprime sempre por uma influência da vida sobre a obra. A vida é aquele elemento do passado que influi sobre o futuro, que é a
obra a executar. É assim que comentaristas e críticos descobrem, nas obras que estão procurando analisar, traços dos elementos que pertencem à biografia do autor. A descoberta desses traços permite uma
melhor compreensão da obra em seu conjunto. E justifica a curiosidade,
modernamente difundida entre críticos e analistas, em torno desse
elemento biográfico da obra literária.
O caso de Nietzsche, entretanto, reserva surpresas não pequenas.
Sua vida está naturalmente vinculada à sua obra. Mas o elemento
propriamente biográfico de sua existência não parece refletir-se de
modo transparente na sua reflexão filosófica. Filho e neto de pastores
protestantes, a infância de Nietzsche desenvolveu-se naturalmente
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numa atmosfera cristã, pietista e moralista. Como adolescente e univer
sitário, Nietzsche teve uma formação humanista, como todo indivíduo
com recursos suficientes para beneficiar-se das luzes que, na época, os
melhores centros culturais da Europa podiam difundir. Orfão de pai
ainda menino, seu ambiente familiar reduziu-se desde cedo à sua mãe e
a uma irmã, entre as quais naturalmente dividia sua afeição e seu
carinho. Em nada disso, como vemos, pode-se perceber um traço qual
quer, um elemento anômalo capaz de determinar algum aspecto da obra
que nasceria no futuro. As relações de Nietzsche com a mãe e com a
irmã eram normais, as relações que se espera que um homem tenha com
a mãe, com a irmã - afetuosas, ternas, sem nenhum aspecto que as afastasse do normal. Nietzsche não manifestava, com relação à mãe,
nenhum sentimento outro que o de amor filial - não havia nele nenhuma
fixação, nenhuma dependência excessiva do amor que, sabia, lhe era
consagrado. Não tinha, com relação à irmã, qualquer laço diverso
daquele que une naturalmente dois irmãos - não havia entre eles
nenhuma afinidade intelectual, nenhum comércio de idéias, nenhum
plano ou propósito de uma aventura intelectual levada em comum.
Nietzsche chega, pois, ao fim de seus estudos universitários como chegaria qualquer europeu que tivesse tido meios e disposição para culti-
var-se: com a bagagem de uma formação cristã, já então sujeita a
questionamento, e com um conhecimento da cultura clássica adquirida
através de estudos sérios e prolongados - estudos em virtude dos quais
lhe foi possível, ainda muito jovem, candidatar-se com sucesso ao pro
fessorado de filologia clássica na Universidade de Basiléia.
Vemos, então, como não há, até esse momento, qualquer elemento
biográfico que possa intervir na configuração da obra de Nietzsche.
Naturalmente, sem sua formação cristã já desgastada, sem os conheci
mentos clássicos adquiridos na vida universitária, Nietzsche não teria
podido escrever seu primeiro livro. Mas esses não são elementos espe-
cificamente biográficos; fazem parte essencialmente de um processo de
desenvolvimento intelectual que poderia ou não levar à produção de
uma obra. E somente quando essa obra é produzida que podemos
começar a pensar num possível relacionamento entre a vida e a obra de
Nietzsche; é somente então que a vida de Nietzsche começa a ser afetada
por algo que não é ela própria - a obra publicada simplesmente. A
Origem da Tragédia cria para seu autor duas situações novas, situações
que só poderiam ter sido criadas pela publicação dessa obra - o estrei-
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lamento de suas relações com Wagner e o esvaziamento de seu prestígio
junto às autoridades acadêmicas universitárias.
Não é claro, então, que o relacionamento entre a vida e a obra, em Nietzsche, começa não por uma influência da vida sobre a obra, mas, ao
contrário, por uma influência da obra sobre a vida? A publicação de A
Origem da Tragédia foi um ato que teve conseqiiências sobre a totalidade
da vida do filósofo. Depois dessa publicação, Nietzsche tornou-se uma
outra pessoa. E entre as modificações que ela trouxe, para a constituição
da estrutura íntima da personalidade de Nietzsche, está o fato de que
cada um dos livros que foram publicados em seguida também represen-
Iava um gesto que tinha conseqiiências na vida do filósofo. “Ressalvando apenas uma exceção, aliás essencial - convém num certo sentido, ante
datar todas as minhas obras.” Com essas palavras, Nietzsche nos faz ver
como cada um de seus livros corresponde a um gesto novo, a algo que
deverá determinar uma nova orientação no seu desenvolvimento pessoal. “Meus livros falam unicamente de minhas vitórias”, diz ele também
na mesma página do prefácio de 1886 de Opiniões e Sentenças Mistura
das, de onde tiramos a primeira citação. Seus livros falam de suas vitórias
e são suas vitórias que determinam sua vida futura. Nesse sentido, eles não são meramente a expressão de uma experiência; são isso natural
mente, mas são também e sobretudo essa própria experiência voltada
para o futuro, disposta a agir sobre ele e a determinar sua estrutura.
É por isso que o relacionamento entre a vida e a obra, em Nie-
(zsehe, parece ser mais tenso, mais dramático, mais profundo. O que se
vê comumente são autores cujas obras só começam a exercer uma
influência depois de terem sido, elas próprias, influenciadas pela expe
riência vivida de seus criadores. A obra de Nietzsche, entretanto, exerceu sobre a vida do filósofo uma influência que antecedeu toda
influência que a vida possa ter exercido sobre a obra. Nesse sentido, pode-se dizer que, antes de influenciar a posteridade, a obra de Nie- Izsche começou por influenciar seu próprio criador.
No relacionamento entre a vida e a obra de um autor, parte-se
naturalmente da vida em direção à obra. Quando se estuda a obra de
um escritor, é geralmente esse o caminho que se segue. Estuda-se a
escola que freqüentou, a Igreja a que pertencia, o contexto familiar, as
amizades, as leituras, as experiências amorosas e outras. O resultado de
tudo isso e mais o gênio criador é a obra. O positivista que existe em
lodos nós age desse modo. Mas com Nietzsche a coisa é diferente. Em
primeiro lugar, como já vimos, nada há de especialmente característico
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no período de sua existência que antecedeu à publicação de seu primeiro
livro. E, em segundo lugar, o relacionamento que estamos procurando
só se manifesta depois de uma tal publicação; e, ainda assim, seria preciso, para bem compreendê-lo, inverter a ordem da demarche inter-
pretativa: seria preciso partir da obra em direção à vida. As obras de
outros autores passam, em geral, a influir sobre a vida depois de estarem
terminadas. A obra de Nietzsche começa a agir sobre a vida antes de
estar terminada e retroativamente sobre o próprio Nietzsche, antes de
agir sobre qualquer outro ser humano. Essa influência da obra sobre a
vida se manifesta, em Nietzsche, através das interpretações que faz de
si mesmo. Já no começo de sua carreira intelectual, quando da caracterização de Sócrates como pensador decadente, Nietzsche faz a primeira
grande interpretação de si mesmo: sua ruptura com Wagner e suas
homenagens a Voltaire constituem uma segunda interpretação em gran
de escala; sua rejeição de todo mestre “que não sabe rir de si mesmo”,
uma terceira; sua citação de Turenne, no Livro V da Geia Ciência, uma
quarta. Nietzsche é, sem a menor dúvida, o primeiro e o maior intérprete
de si mesmo. A seu lado, todos os outros intérpretes, sejam eles um
Bertram, um Jaspers, um Heidegger ou um Kaufmann, fazem figura de intérpretes menores - não há, entre a versão deles e a do próprio
Nietzsche, uma medida comum -, o que em Nietzsche se projeta para
novos horizontes, neles se restringe, se limita e acaba se confundindo
com a problemática do passado.
Qualquer esforço de interpretação da personalidade e da obra de
Nietzsche parece, pois, ficar seriamente prejudicado, se não se partir do
pressuposto de que o que se vai interpretar é já, essencialmente, uma
interpretação. Para tal esforço de interpretação, essa é uma condição
absolutamente sine qua non - condição que, entretanto, tem sido quase
sempre ignorada, o que explica por que muito trabalho e as mais finas
análises em torno do pensamento do filósofo foram, em muitos casos,
vãs, puro desperdício, sem que se consiga encontrar o ponto de Arqui-
medes para levantar o peso dos obstáculos à sua compreensão.
Em toda a história da cultura não existe exemplo igual. O único que
dele se possa talvez aproximar é o de Sócrates - Sócrates que nada
escreveu. Mas é justamente essa circunstância que permite a aproxima
ção. A figura de Sócrates tornou-se conhecida na história não através
de uma iniciativa própria, mas através de uma interpretação. Se esse
conhecimento histórico chegou a ter o peso que tem - revelado na
enorme influência que sobre nós exerceu e continua exercendo -, isso
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sc deve naturalmente à existência real da figura de Sócrates. Se pudés
semos duvidar dessa existência, é provável que as idéias socráticas nunca
tivessem chegado até nós. Mas também, se pudéssemos duvidar da
fidelidade da interpretação platônica, é provável que não atribuíssemos
a essas idéias a validade que reconhecemos em virtude de seu enraiza
mento profundo numa personalidade real. Nietzsche não encontrou
nenhum intérprete como Platão, foi ele mesmo o seu próprio intérprete.
Mas, se sua figura tem peso histórico, isso se deu tanto em virtude do
fato de sua existência real quanto em consequência da interpretação que
fez de si mesmo. Se pudéssemos duvidar da sua existência real (acredi
tando, por exemplo, que se tratava de uma mente desequilibrada),
certamente suas idéias não teriam tido, sobre o mundo moderno e
contemporâneo, a imensa repercussão que tiveram. Se pudéssemos
duvidar da fidelidade de sua interpretação de si mesmo, certamente não
atribuiríamos a essas idéias a validade que reconhecemos em virtude de
seu enraizamento numa personalidade real.
Por que, no caso de Sócrates, é tão necessária a crença na sua
existência real? - E necessária porque sua existência não consistiu
unicamente na sua realidade física. Sócrates fazia parte de um contexto
social com características próprias. As realidades desse contexto se
refletiam sobre sua personalidade e ocasionavam naturalmente reações
de tipos diversos. Se fôssemos duvidar da existência desse contexto ou
da realidade das reações socráticas, ficaríamos evidentemente impossi
bilitados de compreender suas motivações. Por que se dizia ele ignoran
te? Por que dizer tal coisa adquiria uma significação tão fundamental?
Se, à personagem descrita por Platão não tivesse correspondido um
homem de carne e osso, com razões muito especiais para se dizer
ignorante, um tal dito teria passado despercebido, como uma dessas
muitas afirmações que se faz impensada ou inconseqüentemente.
Mas a crença na interpretação platônica dos atos de Sócrates é,
nessa questão, ainda mais indispensável do que a crença na realidade
desses atos. Se duvidássemos um momento da interpretação de Platão,
duvidaríamos não só de Sócrates mas também de Platão. Duvidaríamos
de que Sócrates tivesse sido, como Platão o descrevera, mas duvidaríamos também de tudo o que Platão nos pretendesse mostrar. Fora
realmente a morte de Sócrates que o fizera abandonar a política? Não
era seu espírito essencialmente contemplativo e a morte de Sócrates um
simples pretexto que dera a si próprio? Havia sido Sócrates, realmente,
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um homem mais justo que sua cidade? Não podia sua morte se justificar
de uma certa maneira?
E no caso de Nietzsche? Por que era necessária a crença numa
mente equilibrada? - Sem dúvida porque, sem uma mente equilibrada,
Nietzsche não teria existido como pessoa. O contexto social e cultural a
que reagiu não se teria refletido adequadamente sobre uma personali
dade, a sua. Duvidaríamos da existência desse contexto e da adequação
das reações nietzschianas. Como levar a sério seus julgamentos? Como
aceitar sua crítica devastadora? A crença no Nietzsche real, na sua
existência como pessoa era, pois, indispensável. Mas a crença no Nietz
sche interpretado por si próprio era ainda mais imperiosa. Se duvidássemos do Nietzsche interpretado, duvidaríamos não apenas dele, mas
também do Nietzsche real. Duvidaríamos não apenas que suas críticas
fossem responsáveis, frutos de um espírito equilibrado, mas também que
fossem instrutivas, criadoras, reveladoras de um projeto do mundo
capaz de nos fascinar. Para que possamos ver o que de outro modo
ficaria invisível, Nietzsche tem necessidade de se metamorfosear, de se
transformar, por assim dizer, num outro ser, dotado de um outro poder
de percepção e de um outro aparelho de visão. A auto-interpretação, em Nietzsche, significa precisamente isto: ser personagem, assumir uma
possibilidade de vida que permita um novo ângulo de visão da realidade.
Esse intercâmbio entre realidade e interpretação é um fato fundamental
nas obras de Sócrates e de Nietzsche. Sem Platão, a realidade de
Sócrates jamais nos seria acessível; sem o Nietzsche-intérprete, o Nietzs
che real seria para nós um mundo inatingível.
A influência da obra sobre a vida, na história de Nietzsche, encontra, assim, sua perfeita equivalência na presença de Sócrates na obra de
Platão. Superficialmente, poder-se-ia dizer que a vida de Nietzsche teve
uma influência sobre sua obra. Mas, se quisermos encarar o problema
de um ponto de vista mais profundo, deveremos dizer que foi sua obra
que influenciou sua vida. Do mesmo modo, se quisermos ver as coisas
de um modo superficial, diremos que a vida de Sócrates determinou a
obra de Platão; mas, se procurarmos encarar a questão de um modo
mais profundo, compreenderemos que foi a obra de Sócrates que
determinou a vida de Platão. Os diálogos de Platão têm, como tema
principal, não a personalidade de Sócrates, mas a visão que Platão
adquiriu depois de ter sofrido o impacto da obra produzida por aquela
figura formidável.
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A existência dessa possibilidade de duas perspectivas nos proble
mas de Sócrates e de Nietzsche, de dois modos de ver esses problemas,
um mais superficial e outro mais profundo, é o que justifica a necessi
dade de se traçar um paralelo entre as duas vidas e as duas obras desses
representantes máximos da humanidade. Platão não é, evidentemente,
uma mera testemunha, um escriba (um datilógrafo, como costuma dizer
o mau gosto contemporâneo), que anota os pensamentos e as intuições
de Sócrates. Platão é um homem que representa a encarnação mais
perfeita, o exemplo mais ilustrativo dos efeitos completos de uma explo
são cultural. Se de um ponto de vista superficial poderia ser visto como
uma testemunha, de um ponto de vista mais profundo deverá ser encarado como um protagonista, como uma explosão personificada. Não se
(rata meramente de considerar sua personalidade transformada, modi
ficada pela ação explosiva da existência socrática. Trata-se de algo mais
profundo, de uma metamorfose mais essencial: de uma simbiose de uma
natureza tão completa que impossibilita o discernimento justo dos
elementos de que se compõe, como comprovam as infindáveis contro
vérsias dos scholars desejosos de separar, nos Diálogos, a parte que cabe
a Sócrates e a que cabe a Platão. Nietzsche, por outro lado, poderia também ser visto como uma mera testemunha, como um escriba que
anota seus próprios sentimentos e idéias. Mas essa seria uma visão
extremamente superficial do filósofo. Nietzsche foi, exatamente como
Sócrates, um dos exemplos mais perfeitos de uma explosão cultural.
Essa explosão, para não se perder num espaço de indiferença, necessi
taria, como necessitou a explosão socrática, de um homem em quem
pudesse se encarnar, de um homem que, da maneira mais completa,
absorvesse seus efeitos a fim de dar-lhes consistência e continuidade.
Era uma explosão que aniquilaria uma simples testemunha - uma
explosão cujos efeitos só poderiam se perpetuar se acontecessem não
num espaço de indiferença, com meras testemunhas, mas num ambiente
especialmente preparado, fortemente protegido e em que os seus efeitos
daninhos pudessem ser eliminados e os benefícios, perfeitamente assi
milados. Nietzsche, menos feliz que Sócrates, não encontrou o homem
que pudesse representar esse ambiente. Seu instinto, aliás, desde cedo
lhe dizia que jamais o encontraria. Quando se rebelou contra a cultura
socrática, ainda submisso a Wagner e a Schopenhauer, deve ter sentido
o que a rejeição dessa cultura representava como proposta explosiva e
a pouca ou nenhuma chance que teria de encontrar um homem de valor
que a quisesse endossar. Sua veneração por Wagner havia sido, talvez,
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um modo de anestesiar esse sentimento. Só na música, só num gênio
musical poderia encontrar o companheiro que se dispusesse a segui-lo
numa tal aventura. Nietzsche não era um gênio musical, a música não
era seu meio de expressão natural e, entretanto, foi desde o começo um
elemento essencial de sua vida. Como explicar isso senão pelo fato de
que era nela que encontrava o que lhe recusava o resto do mundo - a
companhia, a solidariedade, a compreensão? “A vida sem música é
simplesmente uma fadiga, um erro”, dizia ele. Era como se dissesse: a
vida, sem amizade, sem companhia, sem solidariedade, é uma fadiga,
um erro. Essa função complementar que a música tinha, na sua vida
solitária, não tem sido habitualmente objeto de investigação - Stefan
Zweig, que no seu livro sobre Nietzsche, dedica um capítulo ao refúgio
da música, não menciona essa função -, mas é uma coincidência que
merece ser analisada o fato de que foi, justamenle no momento de sua
ruptura com o mundo da cultura socrática, que sua veneração por
Wagner se manifestou mais forte. Não era fácil, para um filólogo da
qualidade de Nietzsche, sentir-se subitamente exilado do mundo dos
Ritsehl e dos Wilamowitz. Não era fácil realizar que todo o seu prestígio,
acumulado durante anos de labor intenso e de excepcionais desempe
nhos, ruía por terra em virtude de uma proposta que sabia ser justa,
embora explosiva. O isolamento, a solidão que essa proposta ocasiona
va, era justamente o isolamento, a solidão que uma explosão ocasionava.
Só a música poderia conviver com a desolação criada por uma tal
explosão, só a música poderia se instalar nesses espaços desolados para
recriar um mundo que substituísse aquilo que havia sido destruído.
A compreensão de um livro como A Origem da Tragédia só recen
temente parece estar encontrando seu caminho. Dele já se disse que era
um livro genial, mas uma obra rejeitada pelo consenso do mundo
acadêmico. De que maneira se aferia a genialidade do livro ou se
justificava a rejeição dos filólogos eram coisas que permaneciam no
vago. Deixava-se, talvez, entrever que o livro era genial porque Nie
tzsche era um gênio, porque se afirmara posteriormente como tal;
sugeria-se que as interpretações nietzschianas da época trágica dos
gregos eram obra de diletante e que um exame rigoroso e científico dos
textos respectivos longe estava de confirmar suas conclusões apressadas.
Wilamowitz, que mais tarde se tornaria o grande mestre da filologia
clássica, não havia poupado Nietzsche nas suas críticas contundentes -
pesquisas mais recentes têm mostrado, entretanto, que seus motivos não
eram apenas determinados pelas exigências do rigor e da ciência. Com
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a publicação desse livro, Nietzsche viu-se de repente numa situação
inteiramente nova. De membro respeitado e distinguido de uma comu
nidade científica, passou a uma situação extremamente inconfortável,
em que suas idéias eram vistas com reservas e suspeitas. Para defendê-
las, apenas seu amigo Ei win Rohde se apresentava, mostrando que era
possível ver no livro, mesmo de um ponto de vista filológico, algo que
merecia ser considerado.
Hoje em dia, o diletantismo de A Origem da Tragédia é um argu
mento que não mais nos impressiona. A importância do livro não nos
parece prejudicada, muito pelo contrário, parece-nos realçada por uma
opção que Wilamowitz estigmatizava como sendo fruto do diletantismo.
De que se tratava, afinal? Tratava-se, naturalmente, da rejeição de uma
I radição cultural bimilenar levada a efeito por Nietzsche - de sua famosa
proposta explosiva. No seu segundo ataque a Nietzsche, Wilamowitz
reconheceu que era essa rejeição que julgava inadmissível; era esse o
ponto que não podia de modo algum aceitar - e com isso, implicitamen
te, reconhecia que, no fundo, sua polêmica fora suscitada, não por
problemas de filologia propriamente dita, mas por um ponto de vista
que para ele era inaceitável, porque destruía todo um mundo que
laboriosamente havia construído.
Abandonado pelos colegas (exceto Rohde), pelos alunos, excluído
do consenso do mundo da filologia clássica, Nietzsche seria já um
solitário, se não tivesse a música. A música, entretanto, não era seu meio
de expressão natural e, portanto, não poderia nunca ser um substituto
eompleto da companhia humana, quando esta lhe faltasse. Mas a música
dos músicos ainda estava lá para acompanhá-lo. A amizade de Nietzsche
por Wagner pôde durar enquanto a música do grande compositor pôde
exercer essa função. Foi o tempo em que Nietzsche pôde mais eficaz
mente conjurar o fantasma da solidão. Seu relacionamento com Wagner
e sua mulher Cosima, suas visitas a Tribschen, episódios triviais como
sua espera, finalmente frustrada, da chegada do alfaiate com o terno que
vestiria na sua primeira visita ao mestre, tudo isso indica uma orientação
de vida que era oposta à que deveria tomar em seguida: um sentimento
de que se está no centro do mundo, participando intensamente de tudo
o que nele existe de importante. A singularidade da situação tem sido
pouco observada: aqui temos um homem de letras, um filólogo, um
pensador talvez, que passa a maior parte do seu tempo com um grupo
de amigos que têm, todos eles, um interesse predominantemente musi
cal, que se encontram não para discutir idéias, mas para ouvir música e
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que apreciam, provavelmente nesse homem de letras, nesse filólogo, não a força intelectual ou a cultura clássica, mas a sensibilidade musical, o
gosto refinado e a alta compreensão do fenômeno artístico.É verdade que Nietzsche tinha algumas veleidades musicais. Mas não foram elas que determinaram sua aceitação, seu sucesso junto ao
círculo exclusivo dos Wagner. Suas produções musicais despertavam um
interesse medíocre; e poder-se-ia mesmo dizer que, se tinham tido
algum efeito, seria antes um efeito negativo. Temos que nos curvar diante da evidência dos fatos: Nietzsche era apreciado pela sua sensibilidade, não pela sua criatividade musical; e, como contrapartida, o que
Nietzsche procurava, em Wagner, e o que pensava ter encontrado era, não uma música que satisfizesse sua sensibilidade artística, mas uma arte que correspondesse aos seus anseios de um novo mundo e de uma nova
cultura. Ora, Nietzsche encontrou, em Wagner, apenas um músico que satisfazia sua sensibilidade artística; não encontrou, na música de Wagner, uma arte que correspondesse aos seus anseios de um novo mundo
e de uma nova cultura. Vêm daí os julgamentos contraditórios sobre Wagner, que vemos esparsos através de sua obra. Há, em Nietzsche, uma
razão profunda para isso, e esse é apenas um primeiro exemplo dos muitos que poderiam ser citados para ilustrar as contradições de sua
natureza.
Mas deixemos de lado, por enquanto, essa questão. O ponto que
estamos agora perseguindo é a solidão nietzschiana, que a música de Wagner, durante algum tempo, conseguiu protelar. Foi a proposta explosiva da rejeição da cultura socrática que determinou a necessidade da companhia de Wagner ou foi, ao contrário, a companhia de Wagner
que determinou o aparecimento da proposta explosiva? Aqui um exame da cronologia dos fatos mais aparentes poderia talvez nos servir de guia. Embora uma estrita apuração desses fatos seja talvez um propósito
irrealizável, tudo parece indicar que foi o entusiasmo por Wagner que deu a Nietzsche a coragem, o impulso para romper com a tradição bimilenar que o mundo em que vivia, o mundo da filologia clássica, respeitava religiosamente. Nesse sentido, poder-se-ia dizer que foi a companhia de Wagner que determinou o aparecimento da proposta
explosiva.Mas por que, perguntemos agora, a personalidade de Wagner
despertou, em Nietzsche, um entusiasmo tão grande? O que estava procurando Nietzsche, que pensava ter encontrado em Wagner? 7- Já o dissemos - um caminho que o levasse a um novo mundo, a uma nova
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cultura. Não podemos saber exatamente que anseios, que pressentimen
tos já se haviam formado no espírito de Nietzsche na véspera do dia em
pie se encontrou com Wagner pela primeira vez, 8 de novembro de
1868, na casa do professor Brockhaus; mas sabemos que, pouco mais de
uma semana depois, Nietzsche já podia escrever a seu amigo Rohde uma
carta, em que previa as grandes dificuldades que encontraria na sua
carreira de filólogo. Essas dificuldades diziam respeito justamente ao
fato de que Nietzsche estava procurando alguma coisa e que essa coisa
cie já sabia não poder encontrar na filologia clássica. Que tenha pensado
cm encontrá-la em Wagner significa não que o contato com o músico
lhe tenha trazido novas luzes, que o conhecimento do compositor lhe
tenha inculcado novas disposições, mas talvez que disposições, já arrai
gadas no seu ser, o predestinavam à admiração, ao entusiasmo por
Wagner; e o predispunham a isso de um modo tão suigeneris, tão íntimo,
tão pessoal, que o próprio Wagner ficava estupefato diante do poder dc
assimilação, de apropriação e quase que de identificação que revelava
seu discípulo.
A verdade da cronologia dos fatos aparentes parece, pois, encobrir
uma verdade mais profunda. Se o entusiasmo por Wagner não tivesse
raízes nos anseios mais profundos do seu ser, se fosse apenas uma
experiência sem continuidade com sua existência anterior, Nietzsche
não teria sentido a necessidade de questionar a carreira que abraçara.
O problema da solidão não se teria colocado para ele. Esse entusiasmo
poderia persistir, e Nietzsche se transformaria num wagneriano ou
cessaria, um dia, de o ser, sem que isso trouxesse para si maiores
consequências. Nietzsche passaria simplesmente a preferir um outro
tipo de música. O que ocorreu, entretanto, é que o entusiasmo tinha
raízes profundas e que sua duração deveria necessariamente depender
de uma expectativa da realização daqueles anseios e esperanças que
alimentavam essas raízes. Se cessou um dia, foi porque a expectativa da
realização de tais anseios e esperanças se viu frustrada. Nietzsche se
separou de Wagner, mas não da coragem, do impulso que o levara a
romper com uma tradição bimilenar. Do ponto de vista meramente
cronológico dos fatos aparentes, parece, pois, ter sido a companhia de
Wagner que determinou o aparecimento da proposta explosiva da
rejeição da cultura socrática - é, em A Origem da Tragédia, quando
Nietzsche parecia estar totalmente convertido ao drama wagneriano,
que essa proposta aparece. Mas, de um ponto de vista mais profundo,
do ponto de vista dos fatos ocorridos na mais recôndita intimidade de
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sua consciência, devemos reconhecer que foi essa proposta, sob a forma
larvar de uma insatisfação total com a cultura e o espírito do seu tempo,
que lançou Nietzsche nos braços de Wagner.
Nietzsche, o dionisíaco; Nietzsche, o anti-socrático - foi essa a
primeira interpretação que fez de si mesmo, seu primeiro aparecimento
no teatro da cultura. Essa foi sua grande explosão, a proposta revolu
cionária que fez e que, como por encanto, o transformou num ser votado
à solidão. Nietzsche, o wagneriano, foi o aspecto complementar dessa
sua primeira auto-interpretação, desse seu primeiro aparecimento no
mundo das idéias, o único em que deveriam ter lugar seus principais
desempenhos. Aqui a perspectiva da solidão parecia se esmaecer. Não
que o choque do primeiro impacto se tivesse atenuado; mas, durante
algum tempo, Nietzsche pôde acreditar que a tradição recolhida e
preservada - a tradição dionisíaca - era mais forte e mais viva que a
tradição rejeitada, e que se veria surgir, dos escombros da explosão
provocada, um novo mundo, mais rico, mais dinâmico, mais criador -
um mundo que se originaria do espírito da música, que substituiria, com
vantagem, o mundo de Sócrates e que certamente levaria o homem às
mais altas esperanças. A música era, pois, agora, seu mundo, seu conso
lo, sua defesa contra a situação de isolamento que parecia ameaçá-lo.
Nada nos pode dar uma idéia mais nítida do drama que se ia formando
e que, com o correr do tempo, se transformaria em tragédia do que
pensar na absoluta confiança com que Nietzsche, de início, apostara na
música - para, pouco depois, ingressar no mundo das primeiras incer
tezas, das primeiras dúvidas, das primeiras desconfianças de que a
aposta feita não seria premiada. Não era só uma decepção que se
formava - era também um grande ponto de interrogação que se dese
nhava. Se, depois da grande explosão, a música não era o inevitável
caminho, qual seria, então, esse caminho? O silêncio que se forma agora,
em torno de Nietzsche, torna essa pergunta ainda mais angustiante. A
solidão que o cercava era realmente opressiva, e um espírito menos forte
teria talvez chegado à conclusão, capaz de levar a depressões ainda
maiores, de que era ela, afinal, uma solidão merecida. O que nos dá uma
medida exata da saúde, da energia mental de Nietzsche, e que deveria
ser lembrado aos adeptos das interpretações medicais do filósofo, é que,
nem por um momento, ele recuou ou vacilou nas suas propostas, quando
considerava as conseqüências que poderiam produzir. A ruptura com
Wagner, sua segunda ruptura, deixava-o totalmente só, entregue a si
mesmo, e era dentro de si mesmo que deveria encontrar um sucedâneo,
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primeiro para o mundo, que fizera explodir, e segundo para a música,
que era obrigado a abandonar.
Nietzsche transforma-se, então, no mais extraordinário psicólogo ile todos os tempos. Com uma capacidade de autometamorfose até
então nunca vista, uma autometamorfose orientada por um instinto
infalível, Nietzsche destila a verdade essencial de cada situação. Nunca
um ser humano, para imaginar possibilidades de vida, dispôs de órgãos
sensoriais tão apurados, fossem eles visuais, táteis ou auditivos. As
personagens que Nietzsche arranca de si mesmo muitas vezes não têm
nome, mas sempre têm algo a nos dizer que é surpreendente, algo
também que parece irrespondível. Qual é seu objetivo? Dir-se-ia que Nietzsche é atuado por uma intuição do dionisíaco - por uma intuição
desse deus que passa como uma força vital pelas almas individuais, sem
se demorar mais do que um curto instante, o suficiente para fazê-las
sentir que o importante não é a forma individual, mas a corrente
dinâmica que as carrega na sua avalanche irresistível. De qualquer
modo, é aqui que encontraremos um começo de resposta à grande
interrogação que se desenhara após a ruptura com Wagner. As másca
ras de Nietzsche, suas metamorfoses, suas auto-interpretações são manifestações do dionisíaco. Se sua psicologia é a mais extraordinária
realização de que se tenha notícia na cultura do Ocidente, isso se deve,
indubitavelmente, ao seu caráter dionisíaco - uma psicologia que nega
aos estados de alma um caráter estático e uma forma definida e que
procura motivações partidas, não da epiderme do ser, mas das origens
obscuras do instinto e do sangue. Se examinarmos a situação com
cuidado, veremos que, apesar da aparência de uma mudança brusca de
orientação, o desenvolvimento espiritual de Nietzsche se faz aqui em obediência a uma linha inalterável de continuidade; veremos que o velho
sonho de um ressurgimento da cultura trágica, dionisíaca dos gregos,
frustrado com a experiência wagneriana, reacende suas esperanças com
o desabrochar de uma psicologia que dissolve as formas, que ignora os
limites, que desarticula o indivíduo, envolvendo todos esses elementos
no turbilhão de um movimento que não é cego nem desatinado: um
movimento que tem um propósito, um objetivo, e que torna, cada vez
mais clara, cada vez mais consciente, a razão de seus impulsos.
Mas a psicologia dionisíaca não era uma resposta completa à grande
interrogação que se desenhara após a ruptura com Wagner. A época
trágica dos gregos não produzira unicamente uma cultura dionisíaca -
produzira também uma cultura apolínea. Nietzsche não pudera renun-
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ciar ao dionisíaco. Mas, à medida que o tempo passava, ia se tornando
cada vez mais clara a necessidade de renunciar ao apolíneo. Na expe
riência que tivera com Wagner, Nietzsche conhecera o falso dionisíaco.
Mas agora que conseguira superar esse problema, uma outra dificulda
de o defrontava: chegava-lhe a vez de conhecer o falso apolíneo. Havia,
na cultura que lhe era contemporânea, muitos exemplos do falso dioni
síaco: Wagner, Schopenhauer, a maior parte dos românticos. Mas havia
também uma profusão assustadora de falsos apolíneos. A cultura de sua
época era dominada pelo falso apolíneo, por um instinto totalmente
histriónico. O histrionismo naturalmente consistia numa simulação do
dionisíaco; mas, menos obviamente, onde se afirmava também era na
tentativa de produzir o fenômeno apolíneo lotalmente desligado de suas
raízes dionisíacas. Nietzsche, que, nas suas várias interpretações de si
mesmo, utilizava uma série sucessiva de máscaras, sabia que havia uma
condição essencial para que elas não se transformassem num fenômeno
histriónico: é que não perdurassem, que se sucedessem rapidamente,
impelidas pelo turbilhão dionisíaco. Esse é, entretanto, um imperativo
que mostra a ruptura da relação orgânica que existia outrora entre o
instinto apolíneo e o dionisíaco. E porque Nietzsche tem consciência dessa ruptura que o problema da relação entre a vida e a obra se
configura nele de modo tão particular. A obra de Nietzsche influencia
sua vida constantemente - para que a vida não se corrompa. Se a relação
orgânica existisse, a forma apolínea não se corromperia, não se trans
formaria num fenômeno histriónico. Mas uma cultura falsamente apo
línea, uma cultura histriónica, se caracteriza não apenas pela ruptura
com suas bases dionisíacas, como também pelo seu poder de corrupção
cada vez mais envolvente e que termina por corromper essas fontes
mesmas de que se separou - o êxtase dionisíaco, ele próprio. Uma
cultura falsamente apolínea termina por ser, forçosamente, uma cultura
falsamente dionisíaca. Essa foi a conclusão a que chegou Nietzsche
depois de sua experiência com Wagner. Depois dela, atitudes tais como
as de otimismo ou pessimismo não poderiam mais ser consideradas
reveladoras, não poderiam ser tomadas como indicadores da vitalidade
e da força de uma cultura. Poderia haver tanto um pessimismo de força
quanto um pessimismo de fraqueza. Nietzsche se volta para dentro de
si mesmo e procura inspiração numa nova meditação sobre a época
trágica dos gregos: e, agora, o que dela extrai não é mais uma mera opção
estética do pessimismo forte dos gregos excludente de Sócrates, mas um
projeto de vida que comunicasse a esse pessimismo o dinamismo da
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ação, um projeto de vida, uma resolução que permitisse uma nova
meditação sobre Sócrates e que devesse constituir fonte determinante
de experiências futuras, experiências não passivamente aceitas, mas
ativamente procuradas - projeto de vida, resolução que se formara
anteriormente a qualquer experiência de vida, derivado que era daquilo
que só poderia ser definido, no sentido mais rigoroso da expressão, como uma experiência de cultura -, uma maneira de sentir o passado
equivalente, mas num outro registro, à maneira de sentir clássica, que
fora objetivo da auto-educação empreendida por Goethe durante sua
permanência na Itália. Goethe procurara conscientemente trabalhar
sua natureza, torná-la clássica, de modo que sua sensibilidade, através
de seus poemas, exalasse um perfume clássico. É famosa a carta em que
Schiller, descrevendo para o grande poeta a maneira pela qual compreendia sua evolução, afirma que Goethe, gênio de essência helénica, mas nascido numa natureza setentrional, se vira obrigado a optar entre
ser um artista do norte ou criar, dentro de si mesmo, uma Grécia através
da força inventiva do espírito, através de um ato de razão. Realizada a
opção, feita a correção da sensibilidade nórdica através da força inven
tiva do espírito goethiano e à luz de princípios racionais, uma outra
tarefa se impunha ainda a Goethe, segundo a compreensão de Schiller. Era preciso, dizia ele, depois de ter passado da intuição concreta à
abstração (a fim de objetivar a correção), adotar a marcha inversa,
traduzir de novo as idéias abstratas em intuições concretas, transformar
pensamentos em sentimentos, pois só desse modo pode-ria o gênio, agora clássico, de Goethe desabrochar em produções poéticas.
Essa descrição de Schiller tem muito a ver com a trajetória percorrida por Nietzsche. Não havia nele o propósito de se descartar da sua
natureza nórdica, mas foi, através da força inventiva do espírito que
criou dentro de si uma determinada Grécia. Essa Grécia, que não era a
Grécia de Goethe, foi formada por intermédio de uma convergência de
influências, intuição, imaginação, sensibilidade e também, natu- ralmen- te, a razão. Era uma Grécia que, como a de Goethe, resultava de uma
experiência de cultura, mas que, diversamente da dele, não era uma
forma de sensibilidade, mas um projeto de vida - que devia se realizar através de uma experiência vivida capaz de encarnar a estrutura desse
projeto, do mesmo modo que a sensibilidade clássica de Goethe deveria
se concretizar em poemas, em criações literárias que refletissem a
estrutura dessa sensibilidade.
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Nietzsche não necessitara realizar a “marcha inversa” descrita por
Schiller, a tradução das idéias abstratas em intuições concretas, dos
pensamentos em sentimentos, porque sua identificação com a Grécia
não fora totalmente o resultado de um esforço consciente, de um ato de
razão. A razão entrara nesse processo como elemento subsidiário, já que
todo estudo e toda aquisição de cultura passam naturalmente por canais
racionais; mas o que levara Nietzsche a esses estudos fora uma predisposição natural, um instinto que não lhe dizia estar contrariando sua
natureza, como ocorrera no caso de Goethe. Entretanto, uma vez
formado o projeto de vida, a situação de Nietzsche era, em todos os
pontos, análoga à do grande poeta alemão - deviam todos os dois
concretizar, em experiências, a essência daquilo que tinha representado
para eles uma grande experiência de cultura.
Eis como surge, na paisagem nietzschiana, sua extraordinária psicologia - uma psicologia derivada de um projeto de vida. Dela ficam
distanciadas as psicologias com pretensões científicas, as psicologias
que acreditam ser sua função descrever meramente estados de alma
existentes. A psicologia, entendida como conhecimento da alma huma
na, admite a existência de projetos nessa alma, mas apenas de projetos
individualizados, e por vezes até mesmo contraditórios. Há, entretanto, entre os psicólogos, uma como que obstinação em considerar a alma
humana uma realidade sem projeto, uma vivência definida por uma
sucessão de estados que não estão necessariamente ligados entre si. É
assim que se fala nas contradições do coração humano como se essas
contradições provassem justamente que os diferentes estados de alma
não dependessem uns dos outros. Numa tal maneira de considerar a
psicologia, não há lugar para um projeto unificador. A psicologia, nesse
caso, é meramente um instrumento que registra sentimentos passivamente tolerados.
Para Nietzsche, entretanto, a psicologia tem outras funções. Ela é
derivada de um projeto de vida e, portanto, os sentimentos que registra
são ativamente provocados e dinamicamente encarados. Não se trata
aqui de descrever estados de alma bem delimitados e auto-suficientes,
que mantêm, com outros estados de alma, relações exteriores, mas que
não participam interiormente de uma unidade superior que os transcenda. Trata-se não de registrar sentimentos independentes de um projeto
de vida maior, mas de mostrar como um tal projeto se manifesta na
infinita variedade de situações, condições, circunstâncias que informam
a vida de um homem. No empenho em configurar essa rica variedade de
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manifestações, possibilidades de vida que até então não tinham sido
exploradas, aspectos do ser humano são descobertos, e estes desvendam
maneiras novas de pensar e de agir. Referindo-se a Dostoiévski, Nietzs-
che declarou haver encontrado nele o único autor capaz de lhe ensinar
algo em matéria de psicologia - e a razão disso reside provavelmente no
fato de haver, em Dostoiévski, um projeto de vida que se manifestava
das mais variadas formas, através da infinita riqueza de tipos humanos
que criava e das inúmeras contradições que descobria no coração de
seus heróis.
O projeto de vida donde procede a psicologia nietzschiana teve a
sua origem, como já dissemos, numa experiência de cultura. A maior
parte dos comentadores de Nietzsche, entretanto, não parece apreciar
suficientemnte esse fato. Firmados na idéia de que o princípio funda
mental da filosofia de Nietzsche é a famosa vontade de potência, esses
comentadores procuram compreender sua origem numa generalização,
numa abstração derivada da observação dos fenômenos empíricos.
Seria, assim, algo como um princípio motor do cosmos, como o amor e
o ódio na filosofia de Empédocles, como o logos espermático na filosofia
dos estóicos ou, mais perto de nós, como a vontade em Schopenhauer.
Concorreram naturalmente para a difusão dessa tendência as manipu
lações de textos efetuadas por Elisabeth Fõrster-Nietzsche, quando,
depois da doença do irmão, se viu senhora absoluta dos Arquivos que
continham seus manuscritos. Elisabeth estava obcecada pela noção de
que a vontade de potência era a idéia central da filosofia do irmão e
interpretava essa idéia de uma maneira totalmente exteriorizada e
superficializada, como uma afirmação de energia, de força, de superio
ridade e de domínio que, segundo ela, representava o traço essencial do
caráter e da alma alemã. No período produtivo da vida de Nietzsche, ela
já tinha querido enviar seus livros ao imperador alemão; e, mais tarde,
como já dissemos, quando Mussolini ascendeu ao poder, ela lhe enviara
fotografias do irmão; recebera o embaixador italiano nos Arquivos} fora
a principal promotora da representação no Teatro Nacional de Wqimar
de uma peça intitulada Campo dei Maggio e escrita por dois autores, um
dos quais Mussolini; conhecera Hitler na primeira representação dessa
peça, quando o Fúhrer, sabendo que a irmã de Nietzsche estava na sala,
apresentou-se ao seu camarote com um enorme bouquet de rosas ver
melhas; mantivera, depois disso, com Hitler, uma relação que foi das
mais cordiais. Essas relações naturalmente foram a origem de toda uma
literatura em torno de Nietzsche, que o apresentava como o filósofo
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oficial do nazismo. A ambição desmedida de Hitler naturalmente en
contrava sua legitimação na vontade de potência de Nietzsche. Uma
literatura nazista deveria, pois, forçosamente se desenvolver em torno dessa, interpretação grosseira do pensamento nietzschiano.
Mas embora nem todos os intérpretes de Nietzsche fossem adeptos
do nazismo, muitos retiveram a noção básica de que a vontade de
potência era a idéia central da filosofia nietzschiana. Retinham também
o sentimento de que a origem dessa idéia era puramente empírica.
Assim como Schopenhauer - tendo, no decurso da sua vida, observado
o fenômeno empírico da vontade humana e caracterizado suas diferen
tes manifestações - chegara finalmente a uma concepção abrangente, que englobava todos os fenômenos vitais e mesmo os materiais e os
subordinava a um impulso fundamental, permanente e identificado com
a vontade como a essência do mundo, assim, também Nietzsche, tendo
observado o fenômeno empírico da vontade de potência no homem e
caracterizado suas diferentes manifestações, chegara também a uma
concepção abrangente, à conclusão de que todos os fenômenos vitais se
subordinavam a esse impulso fundamental e permanente. A famosa
expressão de Nietzsche - “onde houver vida haverá certamente vontade, não vontade de viver mas vontade de potência”1- não significava, para
aqueles críticos, o que significava para Nietzsche, isto é, a interpretação
da vida como um projeto, mas sim o seu entendimento em termos
naturalistas como objeto de uma observação de ordem empírica. Assim,
não raro, esses intérpretes procuravam, de modo talvez inconsciente,
encontrar, na natureza de Nietzsche, traços que revelassem uma dispo
sição autoritária, aspirações a uma situação de superioridade e domínio
e, não os encontrando, se satisfaziam com a explicação de que se verificava nele a lei das compensações - de que, sendo uma natureza
delicada, frágil, sensível, procurara compensar, com ideais de força,
energia e mesmo violência, as lacunas, as deficiências de sua natureza,
que tanto o afligiam.
Tudo isso nos mostra como estamos aqui diante de interpretações
que atribuem às motivações de Nietzsche uma origem puramente empí
rica. Na realidade, depois da decepção wagneriana, Nietzsche contri
buíra, de um certo modo, para uma tal situação, parecendo estar agora
unicamente inspirado pelo ideal científico. Suas homenagens a Voltaire,
seu racionalismo empirista pareciam ter deixado para trás, sem possibi-
1. Assim Falou Zaratustra (cap. “Do Domínio sobre Si Mesmo”).
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lidade de retorno, sua visão da Grécia trágica. Charles Andler, por
exemplo, na sua obra monumental, caracteriza esse período como sendo
de um “transformismo intelectualista”, o que parece indicar um traba
lho intelectual aplicado a uma matéria empírica preexistente em contínua transformação. Mas não é só ele que entretém essa opinião. A
metafísica da vontade de potência tornou-se um lugar-comum entre
uma grande variedade de comentadores, e mesmo Heidegger, como já
mostramos, com sua compreensão especialíssima da história da metafísica, não hesita em designar Nietzsche como o último dos metafísicos
ocidentais.
Mas o que vem a ser um metafísico? - É naturalmente um pensador
que procura compreender e explicar o mundo tal como ele é. A metafísica é uma ciência que procura ver além dos fenômenos, mas é uma
disciplina que não pretende mais do que fazer ver, fazer compreender, explicar. Uma metafísica da vontade, por exemplo, deve forçosamente
ser uma ciência que procura ver, além das vontades empíricas dos
diferentes indivíduos, uma vontade supra-empírica que governe eventualmente os destinos do homem. A metafísica é defmitivamente uma
ciência e, por mais refinada que seja, por maiores que sejam os aperfeiçoamentos que possa eventualmente ter recebido, por mais capaz que
se mostre de captar a essência da realidade, há um limite que jamais
poderá ultrapassar, um aspecto da atividade espiritual do homem a que
jamais terá acesso e que constitui um domínio reservado a uma atitude
totalmente outra que o simples ver, compreender e explicar. A metafísica da vontade poderá, por exemplo, se inspirar na observação empírica
da vontade humana para transformá-la num princípio metafísico, mas
não poderá jamais inspirar a vontade humana a ser algo diferente
daquilo que ela habitualmente é no mundo empírico, predispô-la a uma
metamorfose e, eventualmente, a uma profunda transformação. Para
isso, é necessário que haja não simplesmente uma visão, uma compreensão ou uma explicação da vida, mas um projeto - um projeto de vida,
cuja estrutura, métodos empíricos não estão em condições de apreciar.
Podemos vislumbrar, assim, que a famosa “metafísica da vontade
de potência” de Nietzsche não pode ser senão um mal-entendido. A
vontade de potência nietzschiana, transformada em princípio explicativo do universo, deixaria, por exemplo, sem explicação sua faculdade
camaleônica de transformar-se a ponto de se tornar irreconhecível e de
só poder ser identificada pelo fato de ser fiel a um mesmo projeto de
vida. Quando se tem consciência dessa circunstância, está-se pronto
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para acolher a suspeita de que, em Nietzsche, o que é fundamental é o
projeto de vida e não a vontade de potência e que esta última é apenas
uma tradução, em termos de psicologia e de realidade empírica, de uma
experiência cultural que antecedeu a toda elaboração do conceito de
vontade de potência em Nietzsche e que, na história do Espírito, só
encontra paralelo na experiência cultural de Goethe, tão bem descrita
na famosa carta de Schiller.
Essa experiência cultural, que é como que uma antecipação do
futuro pensamento de Nietzsche, foi a base, a proposta explosiva sobre
a qual Nietzsche edificou seu projeto. O que se considera sua obra é,
num certo sentido, sua vida, influenciada por aquela proposta explosiva e por aquele projeto que constituem propriamente sua obra verdadeira.
Se admitirmos que Sócrates e Platão não constituem duas personalidades distintas e sim uma unidade espiritual, que não pode ser fragmentada, teremos, então, o mesmo tipo de relacionamento de vida e de obra
que encontramos em Nietzsche. No Sócrates platônico, é a obra que
influencia a vida e não o contrário. É a obra de Sócrates que influencia
a vida de Platão, embora os Diálogos dêem a impressão de que é a vida
de Sócrates que influencia a obra de Platão. Temos aqui um primeiro ponto de contato entre Sócrates e Nietzsche. Embora o filósofo alemão
dê, a muitos de seus leitores, a impressão de que suas preocupações
pessoais estão continuamente invadindo seus textos, é exatamente o
contrário o que sucede: seu projeto de vida, sua obra intervém em cada
uma de suas ações, e é essa intervenção que se reflete em seus livros.
Mas em que consiste esse projeto de vida a que já nos referimos
tanto e que nos pareceu mais fundamental para a compreensão de sua
obra do que a própria “vontade de potência”? - Consiste, antes de mais
nada, numa “maneira de sentir”, de um certo modo análoga à “maneira
de sentir” que Goethe procurara e conseguira adquirir. Uma maneira
de sentir helénica, mas não uma maneira de sentir clássica - uma
maneira de sentir trágica. Essa diferença englobava, na realidade, duas
diferenças bem diversas - uma que dizia respeito aos métodos de
aquisição, outra que dizia respeito à realidade adquirida. Goethe realizara sua transformação por métodos predominantemente conscientes,
empregando-se a fundo para adquirir, para a sua poesia, uma sensibilidade clássica; Nietzsche realizara a sua dè forma predominantemente
instintiva, inconsciente, embora o tenha feito por meio de estudos
rigorosos e extensos. O que visava era transformar-se num educador que
tivesse sempre diante de si o modelo do homem trágico, capaz de
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afrontar tudo o que há de terrível na existência, o modelo do homem
dionisíaco, capaz de ser cruel consigo mesmo, sem qualquer garantia de
uma forma apolínea que viesse salvá-lo dessa crueldade. Um homem,
entim, em quem a realidade da existência se sobrepusesse sempre à
idealidade da aparência. Um tal homem deveria considerar a existência
como valendo por si mesma, sem que houvesse necessidade de adorná-la
com outros ingredientes. Existência e valor eram assim confundidos
numa mesma visão afirmativa que inviabilizava qualquer qualificação
pessimista ou otimista. Foi essa a visão do homem dionisíaco utilizada
mais tarde, quando a obra incidiu sobre a vida para a legitimização da
crueldade e, de um modo geral, para a avaliação das diversas formas
pelas quais se manifestava a vontade de potência - vontade de dominar,
vontade de suprimir, vontade de destruir, que colocava os mais fracos à
mercê dos mais fortes, mas que podia também, por um renversement
d ’alliances, colocar os mais fortes à mercê dos mais fracos. Ao acompanhar a vontade de potência em contínuas transformações através dos
meandros por onde ela passava, Nietzsche não perdia de vista seu
projeto de vida, que era caracterizar onde se encontrava a meta digna
de um esforço e de uma aspiração - meta que justamente dependia da
constelação de forças que se formasse no âmbito daquele projeto.O projeto dionisíaco de Nietzsche não podia, pois, ser reduzido a
um princípio metafísico, da mesma forma que o projeto que corresponde à ignorância socrática não poderia ser reduzido à teoria das idéias. É essa dupla diminuição que encontramos na obra de Heidegger. E, em
virtude dela, que o autor de O Ser e o Tempo pôde caracterizar a história
da metafísica como uma evolução que se situa entre Platão e Nietzsche
e que devia agora cessar, por ter-se exaurido o processo que dera início
a um retraimento e a um encobrimento da realidade do Ser, confundido
que era, então, com a realidade de um simples valor.
Heidegger, apesar de tudo, sentiu que havia uma afinidade entre
Sócrates e Nietzsche. Sentiu sobretudo que, para combater com mais
eficácia o projeto dionisíaco de Nietzsche, devia começar por minar as
bases do projeto socrático. A teoria das idéias poderia ser subsidiaria-
mente considerada uma metafísica, mas ela se refere primordialmente
a um projeto de vida, um projeto que faz dessa vida o objeto de uma ação educacional capaz de transformar o ser humano num participante
da realidade divina. No projeto platônico, o ser é revelado ao mesmo
tempo que o valor, e o ser não se revelaria autêntico se o valor não se
revelasse igualmente autêntico. A idéia de que o valor poderia constituir
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um impedimento à revelação autêntica do Ser resulta da crença de que
se pode ter uma revelação autêntica do Ser sem se ter passado pelo
processo educacional, projeto de vida que está na base da filosofia
socrático-platónica. E porque na filosofia de Platão, o elemento essencial é esse projeto educacional e não a metafísica, que se torna fútil a
questão heideggeriana de saber se o valor é ou não uma revelação
autêntica do Ser. Só a opção heideggeriana de fazer da metafísica o eixo
principal da filosofia platônica poderia legitimar sua decisão no sentido
de caracterizar o valor como uma revelação inautêntica do Ser. Também
só essa mesma opção, feita com relação à filosofia de Nietzsche, poderia
legitimar seu desconhecimento da posição central que tem nessa filoso
fia o projeto dionisíaco de fazer do valor uma expressão imediata e insofismável da realidade do Ser.
É porque as filosofias socrático-platónica e nietzschiana constituem
projetos de vida, que se pode dizer que nelas a obra influencia a Vida. As diferentes produções intelectuais e artísticas que semeiam a história
da cultura têm sido geralmente obras que não constituem projetos de
vida. Podem eventualmente se transformar em tais, mas essa transformação é aleatória e depende das circunstâncias históricas. A obra de
um Homero, por exemplo, foi um projeto que, só séculos mais tarde, foi
se realizando. As obras de um Aristóteles, de um Paulo de Tarso foram
projetos de vida que surgiram séculos depois da morte deles, os projetos
medievais de vida. As obras dos renascentistas italianos e a de Lutero
foram os projetos de vida do homem moderno e contemporâneo. Só as
filosofias do Sócrates platônico e a de Nietzsche parecem constituir
exceções a essa regra; só nelas se vêem as obras exercendo uma influência imediata sobre a vida - e a tal ponto, que é sobre os próprios autores
dessas obras que as influências começam a se fazer sentir.
O caso do Sócrates platônico é sui generis. Não se tem, em toda a
história da cultura, notícia de um outro exemplo de união espiritual tão
profunda. Não se tem notícia da existência de um discípulo que tenha
tido a estatura do mestre e que, ao mesmo tempo, tenha afastado
qualquer veleidade de sublinhar tal posição marcando diferenças. Não
se tem notícia de um discípulo que se tenha tornado grande e mesmo
admirável, não em virtude de progressos ou aperfeiçoamentos realizados na obra do mestre, mas em razão mesmo da fidelidade, da escrupulosa exatidão com que foram assimilados seus ensinamentos. Platão é
muito mais do que um discípulo. É muito mais do que uma testemunha,
do que um companheiro de pesquisa, é também protagonista do drama
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que testemunha. É muito mais do que um intérprete de Sócrates, é
também um intérprete de si mesmo. Platão interpretara a morte de
Sócrates como um símbolo do conflito que surgira entre a autoridade
do Estado e a autonomia do indivíduo. Mas interpretou também sua
própria renúncia à vida e à carreira política como uma segunda morte
a que era condenado e que o levava a transferir, para a intimidade da
vida do indivíduo, todos aqueles elementos que faziam parte da vida
exterior das comunidades.
Há, portanto, no caso do Sócrates platônico, uma influência visível e imediata da obra sobre a vida. A morte de Sócrates, que fez, sem
dúvida, parte de sua obra, de seu projeto de vida - o projeto do indivíduo
de afirmar sua autonomia em face do Estado -, representa também o
momento culminante dessa obra. Essa morte exerceu sobre a vida de
Platão uma influência decisiva; uma influência a tal ponto determinante, que seus contornos como que se reproduziram na renúncia platônica à
vida política. Os Diálogos de Platão, a República, As Leis não são
simplesmente uma rememoração, um registro da passagem de Sócrates
pelo mundo: são também um monumento para que sua morte jamais
seja esquecida, para que jamais se perca de vista que, somente através
dela, o futuro poderá fazer sentido.
No caso de Nietzsche temos um fenômeno idêntico. Sua filosofia
naturalmente não resulta da união espiritual profunda realizada por
dois indivíduos. Por isso a influência da obra sobre a vida tem logicamente, no seu caso, um sentido diferente daquele que ocorre no caso
do Sócrates platônico. A influência da obra sobre a vida, neste último, começa com a morte de Sócrates; ela começa, no caso de Nietzsche, já
nos tempos de sua juventude. A partir de então, toda a sua vida foi repetidamente influenciada por um projeto que já exprimia o essencial
de sua obra. O leitor provavelmente estranhará que estejamos aqui identificando projeto com obra - habituado que está a ver na obra a
execução de um projeto. Mas o projeto de vida, tal como o estávamos
considerando aqui, não é um projeto que aguarda sua execução, mas um
projeto que já foi executado - por conseguinte, no sentido mais rigoroso
da palavra, uma obra. Quando Sócrates se recusou a reconhecer a justiça
do Estado e, ao mesmo tempo, aceitou a imposição que lhe foi feita de beber a cicuta (poderia ter-se evadido, como queriam os amigos), não
concebeu simplesmente um projeto de vida - executou-o plenamente,
oferecendo assim, a Platão, a obra que deveria transformá-lo. Quando
Nietzsche, depois de escrever A Origem da Tragédia, recusou-se a
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aceitar a justiça da comunidade científica a que pertencia, quando, ao
mesmo tempo, aceitou o opróbrio que caíra sobre ele (poderia ter
tentado se defender, ao invés de deixar que só o fizesse um amigo), já
tinha realizado uma obra, pois já havia vivido aquele momento como sua
proposta explosiva, a conseqüência inevitável de um empreendimento a
que não pudera se furtar. A Origem da Tragédia constituiu, para Nietzs- che, sua morte no mundo acadêmico. Esse livro, que correspondia
praticamente a um suicídio (como o ato de Sócrates bebendo a cicuta), representava também uma obra, uma vitória, uma conquista que traria
consequências larguíssimas à sua vida futura. Sócrates, quando bebeu a
cicuta, sabia que havia, entre seus discípulos, um que se chamava Platão. Nietzsche, quando aceitou o opróbrio da comunidade científica a que
pertencia, não ignorava que a esse opróbrio correspondia a esperança
de uma aurora gloriosa. Era preciso morrer para uns para renascer para
outros - fórmula socrática que Nietzsche assimilou. É curioso, é paradoxal que a mais formidável, a mais violenta, a mais iconoclástica das
críticas que, ao longo dos séculos, a legenda de Sócrates tenha sofrido,
tenha sido apresentada por quem mais de perto, e como que instintivamente, seguia seus passos, repetia seus gestos e adotava, com solicitude,
seus modelos. Repudiando Sócrates, Nietzsche fazia a primeira grande
interpretação de si mesmo. Imitava Sócrates, que repudiara os deuses
da mitologia e da cosmologia grega, como se adivinhasse que ele próprio
iria se tornar o centro de uma nova cultura. No caso de Nietzsche, é
difícil prever-se o que o futuro poderá reservar-lhe. Mas nenhum outro
pensador do século passado ou do presente tem, como Nietzsche, a chance de ganhar uma legenda que possa se comparar à de Sócrates -
uma legenda que, como nos diz Ernst Bertram,
sobe lentamente ao céu estrelado da Memória humana; que parece hab itarsucessivamen-
te cada uma das constelações místicas do zodíaco, cada uma das doze grandes “ Moradas
do Céu”, como se ela tivesse nascido nessa constelação, como se ela aí se sentisse
verdadeiramen te em casa; e que, quando possui um poder de revolução sobre si mesma
de tal intensidade que os homens a qualificam de eterna, ascende por gravitações
sucessivas em direção ao pólo; tão alto que, como uma constelação setentrional, nunca
mais desce abaixo da linha de horizonte da nossa memória.
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3. A UNIDADE DAS VIRTUDES
E A CORAGEM ESPIRITUAL
Quando o Sócrates platônico, antes de ir com Hipócrates encontrar
Protágoras, tenta saber quais são as razões do jovem amigo para desejar
tanto esse encontro, verifica, pouco a pouco, que elas são vagas e
inconsistentes. Hipócrates quer beneficiar-se dos ensinamentos de Pro
tágoras, mas não sabe exatamente o que ele ensina. Quando, mais tarde,
os dois chegam à presença do sofista, Sócrates repete sua questão:
Hipócrates deseja passar algum tempo na companhia de Protágoras,
mas gostaria de saber antes o que resultaria dessa convivência. Dirigindo-se a Hipócrates, Protágoras responde: “Depois de cada dia que
passar na minha companhia você se tornará melhor”. Mas Sócrates
pergunta ainda: “Se tornará melhor em quê?”
O diálogo em que estão narrados esses fatos forma com o Górgias
e o Meno o tripé em que repousa a majestosa estrutura do pensamento
socrático-platónico. O problema de que se ocupam é o de saber se a
virtude pode ser ensinada. Ensinar a virtude é, sem dúvida, a mais nobre
tarefa que possa existir, e ninguém mais do que Sócrates está consciente
desse fato, quando interpela Protágoras. Há, entretanto, em torno dessa
tarefa, um certo número de dúvidas. O que vem a ser a virtude? Existe
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uma só ou várias virtudes? É ela ou são elas transmissíveis pelo conhecimento? - Hipócrates queria entregar-se aos cuidados de Protágoras,
sem conhecer que resposta haveria para essas perguntas. E agora
Sócrates, em seu benefício, questiona o sofista, não tanto para mostrar
ao amigo os riscos que corre, quanto para desimpedir o terreno, criando
condições favoráveis para a execução daquela nobre tarefa.
Ensinar a virtude. No período feudal da Grécia, não se fazia distinção entre virtude política e virtude individual, e essa virtude indiferenciada era transmitida, seja por via hereditária, seja por meio de exemplos
colhidos nas relações próximas com as quais convivia o aristocrata.
Quando se estabeleceu a democracia, essa forma de transmissão da
virtude desapareceu, surgindo, então, a necessidade de se criar uma
nova forma que a substituísse. Os sofistas se apresentaram para suprir
essa necessidade. A virtude, segundo eles, podia ser ensinada. Mas já
então a virtude feudal se havia diferenciado em virtude política e em
virtude individual. Sócrates, no seu confronto com Protágoras, apresenta argumentos de grande força para provar que a virtude política não
pode ser ensinada. Na realidade, essa não era sua última palavra sobre
o assunto. Sócrates acreditava, no fundo, que a virtude em geral pudesse
ser ensinada, mas não na forma preconizada pelos sofistas. Somente
depois de estabelecer que a virtude individual podia ser ensinada,
acreditava Sócrates ser possível reconhecer que a virtude política também pudesse ser ensinada. Mas qual era o porquê dessa crença? - Sem
dúvida, não passara despercebido a Sócrates que a diferenciação entre
virtude política e virtude individual era uma das causas do obscurecimento que havia sofrido a compreensão do que fosse a virtude. A
democracia fora a causa dessa diferenciação e era, portanto, também a
causa desse obscurecimento. Quando todos os homens são iguais, não
há ninguém que possa assumir a posição de educador da sua sociedade.
Existe a dificuldade de princípio causada pela igualdade e a dificuldade
de fato causada pelo obscurecimento. Nessas condições, o aparecimento de uma classe como a dos sofistas era, por assim dizer, inevitável. Os
sofistas se apresentavam como educadores da sociedade como um todo.
Mas, na realidade, o que ocorria era que eles pensavam na educação, não como um esforço a realizar-se para a sociedade como um todo, mas
como uma ação a exercer-se unicamente sobre seus líderes e a exercer-
se sobre eles encarados, não como homens comuns, mas como líderes
que desejavam adquirir os meios mais eficazes para chegar ao poder.
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Assim se forma a diferenciação entre a virtude política e a virtude
individual. A educação, para os líderes, não visa desenvolver virtudes
idividuais, mas virtudes capazes de dotar um homem de poder sobre
as massas. Paralelamente a esse desenvolvimento, um outro fenômeno
ocorria. A educação da época feudal dos gregos era regulada pelo
princípio da arelé, da excelência. Mas agora, nos tempos democráticos, o princípio que regula a educação deixa de ser a areté para se tornar o
princípio do prazer. Tanto a virtude política quanto a virtude individual passam a ser reguladas pelo princípio do prazer. A sofística e a retórica,
principais instrumentos nessa determinação da virtude política, utilizam
o princípio do prazer para chegar a seus objetivos. O líder, a ser formado
pela nova educação, deve aprender sobretudo os métodos de proporcionar prazer às massas. Sua sabedoria e sua eloqüência devem lisonjear
as massas, acenando para aquilo que lhes agrada mais. E a virtude
individual igualmente deve ser regulada pelo princípio do prazer.
É por isso que Sócrates fingiu admitir esse princípio, quando procurou demonstrar que a virtude individual pelo menos podia ser ensinada. Essa demonstração era necessária como uma primeira etapa para
o seu objetivo final, que era provar que não só a virtude individual como
também a virtude política podiam ser ensinadas - objetivo que foi atingido, quando Sócrates abandonou o princípio do prazer para recuperar o princípio da aretc, da excelência, como norma reguladora de
uma educação que visasse a virtude integral.
Sócrates, assim, abandonando o princípio do prazer, recuperou a
noção dos tempos feudais da Grécia, da areté, da excelência, como
norma reguladora de uma educação que visava a criação de uma virtude
integrada. Mas essa virtude naturalmente não era a mesma da época
feudal, pois era obtida através de um processo que tinha, como ponto
de partida, a virtude individual, produto da diferenciação operada na
época democrática. A virtude individual, que serviu de ponto de partida
para esse processo de recuperação socrática, foi a coragem. Foi analisando a coragem, que Sócrates conseguiu refutar a perspectiva do
princípio do prazer, ao mesmo tempo que provava que a virtude podia
scr ênsinada. Uma vez conseguido isso, não lhe restava senão consolidar
essa refutação do princípio do prazer e substituí-lo definitivamente pelo
princípio da areté, da excelência. Sócrates, com isso, recuperava totalmente a visão de uma virtude integrada, embora essa visão apresentasse, agora, o caráter não mais de uma realidade objetiva passada, mas o de
NIETZSCHE: O SÓCRA TES DE NOSSOS TEM TOS 75
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um projeto de realidade, objetiva naturalmente, mas não mais que um
projeto que contemplasse o futuro.
A coragem teve, pois, na obra de Sócrates, um papel essencial. Foi
ela que permitiu ao filósofo enfrentar o princípio do prazer e mostrar
como ele era insuficiente como norma reguladora das ações humanas.
Se, como pensa o homem comum, prazer e bem são a mesma coisa,
ninguém preferirá o que é menos bom, isto é, o que é menos prazeroso.
O que se pensa ser uma deficiência moral - ser dominado pelo prazer,
isto é, pelo que é bom - é, na verdade, algo diverso. Se o homem comum
prefere o que é menos bom, isto é, o que é menos prazeroso, não é,
segundo o hedonista, em virtude de uma deficiência moral, mas sim de
um erro de julgamento. Ele assim o faz, porque se engana sobre a
quantidade de prazer envolvido. O engano é cometido involuntariamen
te - pois, afirma Sócrates, com seu famoso paradoxo: “Ninguém erra
voluntariamente”. Ninguém deseja voluntariamente o menos bom. Nin
guém deseja voluntariamente o mal. Até aqui, o princípio do prazer
parece ser inatacável. A possibilidade de enganar-se sobre a quantidade
de prazer obtida não priva esse princípio de sua função reguladora das
ações humanas. Cabe-nos apenas evitar tais enganos. Mas o problema
da coragem coloca-nos diante de uma opção fundamental. Trata-se não
de escolher entre um prazer maior ou menor, mas de enfrentar um
perigo que o homem comum teme. Trata-se, na realidade, de enfrentar
um mal. Esse enfrentamento é de uma certa maneira um desejo, pois o
mal poderia ser evitado, se não o desejássemos. Mas o que vemos, então?
O homem corajoso avança em direção ao mal, ele o deseja voluntaria
mente.
Quando chegamos a esse ponto, assistimos ao colapso do princípio do prazer. Se esse princípio continuasse vigente, o homem corajoso
deveria agir como o covarde, pois todos os dois seriam incapazes de
avançarem direção ao que é terrível, isto é, desejando o mal. A diferença
entre eles é que o covarde é regido pelo princípio do prazer, enquanto
o corajoso é regido pelo princípio da areté, da excelência. Um teme a
morte, o outro teme a desonra, o aviltamento, a perda da excelência. Um
teme a morte em virtude de sua ignorância do princípio da areté, o outro
teme a desonra, porque despreza o princípio do prazer.Vemos assim a importância do problema da coragem para Sócrates.
Não só foi ele o meio eficaz de destruir a credibilidade do princípio do
prazer, como norma reguladora das ações humanas, como se torna no
Protágoras, o que é fato sabido, o instrumento principal na legitimação
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da equação virtude = conhecimento e, por conseguinte, da convicção
de que a virtude pode ser ensinada. E há mais ainda. A concepção da
virtude coragem adquire, ao mesmo tempo, com Sócrates, um caráter
mais profundo, mais espiritual do que o que havia sido o seu, anterior
mente. Antes, a coragem havia sido uma mera qualidade física ou,
quando muito, uma disposição moral para enfrentar perigos que decor
riam da fidelidade a certos princípios. Agora, a coragem mostrava
também ter uma qualidade espiritual, na medida em que contribuía mais
que qualquer outra virtude para restabelecer a vigência do princípio de
areté como norma reguladora das ações humanas. O princípio de areté
não era um princípio qualquer. Era a fonte de todos os impulsos que
contribuíam para a formação da personalidade ética do homem. Era,
portanto, essencialmente um princípio criador. Sem o ideal da areté,
qualquer concepção de um processo educacional se perdia no vago, no
informe, no vazio. A coragem socrática, que recuperou esse ideal,
revelou-se, assim, extremamente criativa, espiritual. E não é só no plano
teórico que devemos realçar sua importância - a vida de Sócrates, o
desafio que representou face à realidade adversa do Estado, as ameaças
e os avisos que a circundaram e finalmente a morte que a coroou são outros tantos elementos que devemos associar a essa biografia privile
giada.
Quando se examina com cuidado a obra de Nietzsche, chega-se à
conclusão de que a primeira condição requerida para sua abordagem
eficaz e proveitosa consiste em considerá-la essencialmente sob o pris
ma da coragem. Coragem sim, mas não a coragem física, a coragem que
é necessária simplesmente para viver; não a coragem moral, que se confunde facilmente com a coragem física e nada mais é do que o
destemor das consequências físicas de nossas atitudes morais (a cora
gem de um Lutero, por exemplo, na Dieta de Worms); mas a coragem
espiritual - coragem difícil de ser definida, porque ela é, no sentido mais
rigoroso da palavra, uma qualidade, uma virtude nova. Na realidade,
uma tal caracterização é, e ao mesmo tempo não é, uma verdade plena.
Sê-lo-á, se julgarmos que, depois de mais de dois mil anos de um eclipse
lotai, essa virtude teria o direito de apresentar-se outra vez como uma
qualidade nova. Nietzsche, para representar para si mesmo a virtude
nova que sentia dentro de si, invocou as famosas palavras de Turenne:
“Treme, Carcaça, mas tremerias muito mais se soubesses aonde vou te
levar”. Mas se tivesse podido evocar, numa só frase, a personalidade e
NIETZSCHE: O SÓCRA TES DE NOSSOS TEMPOS 77
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I
a missão de Sócrates, teria coberto de maneira muito mais completa o
conjunto de problemas que essa virtude encerrava.
Nietzsche, com efeito, tinha diante de si problemas que, num outro registro, lembram fortemente os problemas que havia enfrentado Sócra
tes. Era natural que situaçõe,s parecidas suscitassem o aparecimento de
meios, de instrumentos, de virtudes semelhantes para resolvê-las. Sócra
tes vivera num período de crise, de decadência; decadência de uma
ordem social, cultural e política que não podia mais ser recuperada, mas
que continha elementos capazes de contribuir para a edificação de um
futuro melhor. Nietzsche viveu num período de crise, de decadência; a
decadência de uma ordem social, cultural e política que também não podia ser recuperada, mas que continha igualmente germes de um
grande futuro. O passado que inspirava Sócrates era um passado próxi
mo, um passado que podia oferecer vivas esperanças de um aproveita
mento em grande escala; o passado que inspirava Nietzsche era um
passado remoto, tão remoto, que o próprio Sócrates, incluído nesse
passado, podia por momentos parecer um elemento inaproveitável, uma
força incapaz de contribuir para a edificação do futuro que antevia
Nietzsche. Mas podia dar essa impressão por momentos apenas. Havia,
entre as duas situações, a de Sócrates e a de Nietzsche, uma tal seme
lhança, havia, entre as faculdades que essas situações suscitavam, um tal
parentesco, que distorções ocasionais que pudessem obscurecê-lo eram
logo corrigidas de modo que o fato fundamental, a identidade dos dois
destinos ficasse solidamente restabelecida.
Como na filosofia de Sócrates, na filosofia de Nietzsche a virtude
da coragem desempenha um papel essencial. O grande inimigo que
Sócrates tivera que enfrentar fora o princípio do prazer, que represen
tara, para o filósofo ateniense, o principal obstáculo ao seu empenho de
fazer reviver o princípio da are té. O grande inimigo de Nietzsche fora
tudo o que se opusera a seu ideal de grandeza, versão moderna do
princípio da areté - o princípio do prazer em primeiro lugar, mas
também suas manifestações mais recentes: a indiferença pelo dioni
síaco da comunidade científica a que pertencia e o histrionismo não
só da comunidade wagneriana que o acolhera, como também do
mundo da arte e da cultura do seu tempo. A coragem de Sócrates
fora necessária para fazer reviver uma antiga tradição dos helenos.
A de Nietzsche seria para fazer reviver um princípio que se afirmara
claramente na literatura trágica dos gregos.
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Para enfrentar tais inimigos, era preciso, antes de mais nada, ter a
coragem da solidão. Sócrates foi, mais do que tudo e apesar das suas
conversas e discussões, um solitário. Sua ignorância, sua ironia, seu
demônio o isolavam do resto do mundo. Sócrates era, na sua época, um
exemplar humano absolutamente original, suigeneris, que não dispunha
de meios de entrar em comunicação direta com seus semelhantes. Assim
também era Nietzsche. Sócrates sabia que sua solidão, seu isolamento
do resto da comunidade eram vistos com suspeição e terminariam por
indiciá-lo como um criminoso. Nietzsche também sabia que sua solidão,
seu isolamento do resto da humanidade eram vistos com suspeição e
terminariam por indiciá-lo como um ser anormal. A comunidade ate
niense não podia admitir que um dos seus membros não participasse,
não estivesse solidário com seus propósitos e ideais. Assumir sua soli
dão, assumir seu isolamento era, portanto, já por si mesmo um ato de
coragem. Mas Sócrates não se contentara com isso. Paradoxalmente, ele
como que divulgava seu isolamento, fazia todo mundo sentir a realidade
de sua solidão. Seu eterno questionamento não podia senão produzir o
efeito de tornar evidente sua inconformidade com as idéias e com as
opiniões da comunidade em que vivia. Dir-se-ia que Sócrates, toda a sua
vida, procurou levar a um desenlace o conflito potencial que existia entre
o seu modo de ser e o modo de ser da comunidade ateniense.
Nietzsche também era assim. Apesar das amizades e do devotamen-
to de alguns seres; apesar das inúmeras cartas e do desejo de um
discípulo, Nietzsche foi tanto quanto Sócrates um ser solitário. As etapas
do caminho que o levam a uma completa solidão são, entretanto, mais
visíveis do que as que levaram Sócrates pelo mesmo caminho. Primeiro
a ruptura com a comunidade científica a que pertencia; em seguida a
ruptura com o círculo wagneriano; abandono dos sonhos de uma vida
de estudos em comum com Lou Salomé e com Paul Rée; ruptura com
o grande público após a publicação do Zaratiistra\ solidão final em
cidades e lugarejos escolhidos segundo critérios de conveniência mera
mente física.
Essa solidão era, ao mesmo tempo, procurada e sofrida. Isso parece
tornar a coragem de Nietzsche menor do que a de Sócrates. Mas o fato
de não termos, no que diz respeito aos problemas da solidão, conhecimento de qualquer expressão de amargura por parte do ateniense não
torna maior sua coragem. Sócrates não precisou procurar a solidão; ela
como que veio a seu encontro, e sua coragem consistiu mais em aceitá-la
como um fato natural. Nietzsche, ao contrário, precisou procurar a sua
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e certamente o fez com mais afã do que Sócrates - e a esse maior afã
correspondia naturalmente um abalo emocional maior, quando encon
trava o que procurava. Sócrates como que foi se acostumando pouco a
pouco a viver na solidão. Nietzsche não fugia das consequências inevitáveis da sua procura que foram, primeiro, os abalos emocionais causa
dos; em seguida, o ritmo vertiginoso de um pensamento totalmente
isolado; e final e tragicamente a loucura.
Mas não é naturalmente do ponto de vista puramente biográfico
que a coragem constitui um traço comum nas obras desses dois filósofos.
Já vimos o papel importante que a virtude da coragem desempenhou na
refutação e recuperação socráticas, respectivamente do princípio do
prazer e do princípio da arcté como normas reguladoras da educação e
da cultura. Vimos também como, para definir o tipo de coragem que
reclama para a compreensão dos nossos tempos, Nietzsche utiliza as
famosas palavras com que Turenne apostrofa o próprio corpo em plena
ação militar. Essa é uma coragem que Nietzsche espera de nós e, ao
mesmo tempo, sente dentro de si. Por que é ela tão necessária? Que
perigo estamos correndo? Essa nossa ignorância revela o tipo de cora
gem que Nietzsche está proclamando - uma coragem que não é só
bravura, mas também inteligência. Q fato de que desconhecemos o tipo
de perigo que corremos mostra que nos falta não somente coragem para
enfrentá-lo como inteligência para compreender qual seja sua natureza.
A coragem que Nietzsche nos propõe nada tem a ver com a coragem
que é do nosso conhecimento habitual. A coragem de Sócrates também
nada tinha a ver com a coragem de Protágoras. Essa era o resultado de
uma atividade instintiva. Aquela era o resultado do conhecimento do
que deve ser e do que não deve ser evitado. A coragem que é do
conhecimento habitual do homem contemporâneo é também o resulta
do de uma atividade instintiva. Mas como nos mostra a frase de Turenne
que Nietzsche utiliza como epígrafe do Livro V da Gaia Ciência, a
coragem do filósofo é o resultado de uma aliança entre heroísmo e
veracidade, entre bravura e inteligência. Assim como a nova concepção
de coragem intuída por Sócrates permitia-lhe refutar o princípio do
prazer e substituí-lo pelo princípio da arcté, a nova concepção de
coragem intuída por Nietzsche permitia-lhe rejeitar o ideal de felicidade e substituí-lo pelo ideal de grandeza.
Que significa essa aliança entre inteligência e bravura? - Significa
naturalmente a mesma coisa que significava para Sócrates. Significa que
inteligência é bravura e que bravura é inteligência. (Em termos socráti-
SO MARIO VIEIRA DE MELLO
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cos: que coragem é sabedoria e que sabedoria é coragem.) É essa
extraordinária aliança que faz de Nietzsche uma figura ímpar dos tempos modernos. Nenhum pensador dos últimos séculos teve, como ele, o
poder de combinar e de fundir, numa faculdade única, essas duas
aptidões da alma humana. E por isso nenhum foi, como ele, capaz de
desafiar e confundir a experiência, a perspicácia, o poder de análise, a
variedade de perspectivas da crítica contemporânea; nenhum tampouco
tem demonstrado uma tal capacidade de se manter sempre próximo de
nós sem se deixar distanciar, como seria natural com o correr dos anos. Lá se vão mais de cem anos desde que seu primeiro livro apareceu, e
suas idéias se discutem hoje como se apenas ontem tivessem sido
divulgadas. Em torno de sua obra, avolumam-se paixões, inibições, correspondências, desencontros, idiossincrasias e afinidades. Nenhuma
aquisição definitiva, nenhum resíduo permanente parece, entretanto, resultar desse pulular de impressões contraditórias. Não existe, na
época atual, unanimidade em torno de sua figura; e saber se essa
unanimidade poderá algum dia existir já é, hoje, talvez uma questão com
seu interesse próprio. Contrariamente a Kant, contrariamente a Des
cartes - muito discutidos ao serem publicados, totalmente incorporados ao patrimônio espiritual da humanidade, uma vez que lhes foi dado um
tempo razoável para que se realizasse essa incorporação -, Nietzsche
ainda hoje continua a ser objeto de uma perplexidade, que se traduz por
vezes em diatribes, que se manifesta também através de adesões entusiastas e que não se ausenta nem mesmo quando há o parti pris de
examinar sua obra com frieza e objetividade. A impressão de estranheza
que produziu sobre seus contemporâneos parece ser, ainda hoje, um dos
efeitos inescapáveis de uma incursão em sua obra.
Se procurarmos agora uma explicação para a situação que descrevemos, encontraremos logo um primeiro fato que parece irrecusável: a
violência do contraste entre a qualidade espiritual de Nietzsche e a
qualidade do espírito da época em que viveu. Se tivesse vivido em outras épocas, Nietzsche, caso não tivesse sucumbido à loucura, certamente
teria sido, como o foi Sócrates, condenado à morte. O conflito que
irresistivelmente se formou entre seu modo de ser e a realidade do
mundo que o envolvia só poderia cessar com a derrocada de um dos dois
elementos conflitantes: ou o mundo se transformava, e vencia Nietzsche,
ou triunfava o mundo, e Nietzsche seria eliminado. Exatamente como
no caso de Sócrates.
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Com uma variedade de nuanças que vão da mais irrestrita admira
ção a uma aprovação um tanto morna e das mais prudentes restrições à
mais arrogante censura, diz-se de Nietzsche que é, ora o campeão do
individualismo, ora o doutrinador do fascismo. Ora só se vêem nele
estímulos e vastas descobertas, ora só taras, desequilíbrios e deficiên
cias. Os detectores dessas taras e deficiências empregariam melhor seu
tempo procurando detectar os desequilíbrios e as taras do século em
que viveu Nietzsche e, por extensão, a morbidez e as deficiências da
época em que vivemos. Veriam, então, que nenhum pensador moderno
ou contemporâneo seria comparável a Nietzsche na detecção dessas
taras e desequilíbrios - nenhum sobretudo que fosse comparável na
lucidez e na coragem com que essa operação foi realizada.
De uma certa maneira, parece inconcebível que possamos viver no
mundo de hoje como se, ao redor de nós, tudo fosse normal e razoável.
Parece inexplicável que não despertemos da letargia em que vivemos e
que não nos ponhamos a correr pelas ruas gritando e imprecando contra
tudo o que nos cerca. Entretanto, essa é a realidade. Vivemos como se
estivéssemos no melhor dos mundos. De vez em quando, uma catástrofe,
uma tragédia, um acontecimento insólito nos faz sentir que o mundo é
governado de modo absurdo e irresponsável. Mas esse sentimento não
nos ocupa muito tempo. Logo voltamos à rotina da insensibilidade e
fazemos tudo para esquecer que vivemos num contexto de crise e de
decadência.
E sobretudo por isso que a figura de Nietzsche é contestada. Se
vivemos num mundo que nos parece normal, não será difícil duvidar da
grandeza do nosso filósofo. Para isso, basta pensar que os valores do
homem contemporâneo - alvo de sua crítica devastadora - não estão essencialmente comprometidos. Basta pensar que esses valores, de uma
•certa maneira, poderiam ser recuperáveis, reavaliados por processos
não tão violentos - o que parece inaceitável é pensar que tais valores
estejam seriamente ameaçados.
Há, evidentemente, na biografia de Nietzsche, elementos que po
dem ser explorados por quem esteja à procura de índices negativos. Sua
experiência da amizade - Proust caracteristicamente considerou que se
baseava num equívoco; sua experiência do amor - que é por vezes
descrita com uma comiseração importuna como se Nietzsche precisasse
de alguma indulgência para ter seu comportamento emocional justifica
do perante a posteridade; sua doença - que explica, segundo alguns,
seus excessos, suas injustiças, seus furores; e finalmente o obscurecimen-
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to de sua inteligência - que restará sempre como um último argumento
para quem não se quer deixar convencer pelas suas intuições fulguran
tes: todos esses elementos são muitas vezes enfatizados com um objetivo
único - fazer esquecer o contexto dentro do qual se situa a obra de
Nietzsche, um contexto de crise e de decadência. Dir-se-ia, ao ouvir as
palavras candentes de indignação de uma certa crítica de Nietzsche, que
a época em que viveu era feliz e próspera, que a ciência, as artes, a
cultura haviam chegado ao seu máximo de expressão e de realização;
que a vida nunca fora tão harmoniosa, a fé dos homens tão profunda,
seus talentos tão úteis e diversos; e que era uma lástima que uma voz
insólita, discordante e ilegítima viesse perturbar os acordes harmonio
sos de uma civilização em ascensão com a denúncia de males que não
existiam, que ninguém via e não podia ver, porque eram frutos de uma
imaginação superexcitada e trabalhada por um processo doentio que
deveria forçosamente levá-la à loucura.
A verdade é que, ao acusarmos Nietzsche, estamos, de um certo
modo, procurando nos inocentar. O mundo não vai tão mal quanto
pensa o filósofo, dizemos com nossos botões, a prova somos nós mesmos,
pessoas boas e dignas, que se sentem bem neste mundo. Fala, nesses momentos, a voz da nossa covardia. Falta-nos coragem para acompa
nhar o filósofo na sua perigosa aventura. Falta-nos lucidez para com
preender que é esse um perigo que precisamos enfrentar. Assusta-nos
a radicalidade do pensamento de Nietzsche. Assusta-nos a perspectiva
da necessidade de um exame de consciência do qual resultariam conse
quências que não somos capazes de prever. Não estamos preparados
para modificar nossa vida. Não estamos preparados para trazer à luz da
consciência aquilo que sentimos instintivamente, isto é, que as coisas
não vão bem, que existe dentro de nós um mal qualquer que nos está
roendo as entranhas. Por isso nos deixamos levar pelas palavras super
ficiais de homens, covardes como nós, que pretendem ter descoberto a
natureza desse mal. Homens que, por covardia, procuram se iludir e
iludir os outros e por isso se esquivam a qualquer exame mais completo,
evitando fazer penetrar mais fundo o bisturi da análise. Curiosamente
ouvimos falar muito na crise que ameaça nosso mundo, embora, ao
mesmo tempo, se proceda de modo sistemático a fim de que nunca se
desvende a verdadeira face dessa crise. Impacientes com a inutilidade
da retórica, ouvimos discursos anunciarem que a humanidade está
prestes a cair num abismo e que só está retida pelas arestas já rachadas
dos últimos penhascos. A imagem pode ser assustadora, mas são mais
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do que ridículos os métodos que propõem nossos retóricos para salvar
a humanidade dessa queda fatal e iminente. Há uma desproporção
imensa entre esses riscos e perigos e a organização de socorro que nos
está sendo enviada. Hoje em dia, somos marxistas, liberais, freudianos,
marcusianos, ecologistas, pacifistas, democratas, socialistas - e por quê?
- Porque sentimos instintivamente que as coisas não vão bem, e não
temos coragem de procurar o mal lá onde ele verdadeiramente se
encontra.
Esses disfarces e pretextos têm talvez uma origem mais profunda.
Talvez não se trate apenas do fato de procurar o mal no lugar errado.
Nossa vida em geral sugere amiúde a impressão de que vivemos parali
sados pelo medo. Quando nos falam em coragem, nossa primeira reação
é pensar que se trata de uma virtude ultrapassada. Não vivemos num
mundo diferente, em que a grande novidade é o enorme desenvolvimen
to tecnológico a que chegamos? Neste mundo, que significação poderá
ter uma virtude como a coragem? No plano físico, pelo menos, a
coragem é uma virtude ultrapassada pelo desenvolvimento tecnológico.
A ação corajosa de um indivíduo, de um soldado, por exemplo, se
nulifica diante de máquinas de guerra infernais, diante da simples
pressão de um dedo contra um botão capaz de provocar a mais espan
tosa explosão.
Essa é nossa primeira reação. Obedecemos aí, indubitavelmente, a
uma lógica. Mas, ao fazê-lo, não nos perguntamos se não seria essa uma
lógica de declínio e de decadência; não nos perguntamos se não existiria,
por acaso, uma outra lógica, uma lógica de renovação e de recuperação.
Uma lógica em que a coragem não fosse vista como uma virtude ultra
passada. Uma lógica que compreendesse os benefícios resultantes de uma aliança da bravura com a veracidade.
Não, não chegamos a fazer essa pergunta. O exemplo de Turenne
está diante de nós, registrado pela história, mas passamos por ele sem
compreender a mensagem que nos traz. E, entretanto, um exemplo mais
vivo, mais próximo de nós do que a lição de Sócrates, mais distante e
que exige, para sua compreensão, estudos aprofundados e uma certa
capacidade de imaginação histórica. O exemplo de Turenne está diante
de nós. E só Nietzsche, entre todos os modernos, foi capaz de captar o
que ele tinha a nos dizer. Nietzsche toma Turenne como modelo, porque
acredita numa lógica de renovação. Nietzsche acredita, porque a sente
dentro de si, na força desse instinto que impulsionou Turenne. Acredita
numa coragem feita não apenas de heroísmo, mas também de ciência;
M MARIO VIEIRA DE MELLO
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numa coragem de quem sabia que o perigo não estava somente ali, a seu
lado, mas bem mais longe, bem mais adiante; numa coragem de quem
sabia, de quem conhecia o verdadeiro perigo; numa coragem que era
bravura, mas era também intuição, compreensão do que era o perigo. Nietzschc toma Turcrnc como modelo para si, porque pensa que só da
aliança desses dois instintos - a vocação para o heroísmo e a paixão pela
verdade - poderia resultar a nova figura do filósofo que a crise de nossos
tempos está a reclamar.
Nietzschc viveu numa época em que a influência do medo longe
estava de ter chegado ao paroxismo de nossos dias. Seus primeiros
sintomas se haviam, entretanto, manifestado no pessimismo de filósofos
e de artistas, na procura de um mundo irreal, que fizesse esquecer a
atualidade presente, numa domesticação e castração da cultura que
evitasse seus impulsos mais fortes, na secularização do cristianismo de
modo a reter suas promessas amenas e eliminar suas exigências mais
rigorosas, na simulação de gestos fortes e atitudes enérgicas que pudes
sem preservar a imagem de um passado vigoroso e perdido. () medo
agia assim, preventivamente, na esperança de que tais cuidados preser
vassem a humanidade de maiores perigos. Mas explodiu de repente a Primeira Ciuerra Mundial. Surgiu a necessidade de fabricar armas,
instrumentos de destruição cada vez mais aperfeiçoados, cada vez mais
destrutivos. A Primeira Cirande Ciuerra e logo depois a Segunda trans
formariam o mundo no paraíso da tecnologia. Só uma guerra contra
outro planeta justificaria o aparecimento de uma tal profusão de armas.
Chegamos ao momento em que se poderia, com a simples pressão de
um dedo contra um botão, provocar a mais terrível explosão. Já então o
medo, que crescera em relação direta ao desenvolvimento tecnológico, paralisava a vida de um modo geral. Num mundo tal como o nosso, que
vive paralisado pelo medo, parece uma ironia cruel falar numa filosofia
da coragem; num mundo que, apavorado pelos fantasmas criados por si
mesmo, empilha febrilmente arma atômica sobre arma atômica, arma
zenando insensatamente um poder de destruição inverossímil; num
mundo onde o terrorismo - doença das sociedades falidas - vai-se
alastrando assustadoramente, transformando, num pesadelo sinistro,
nosso futuro imediato; num mundo finalmente em que, como nos desenhos animados que excitam e obsedam a imaginação infantil, cresce, a
olhos vistos, o vulto desmesurado, o espectro colossal do furor e da
violência: que sentido tem, neste mundo, uma virtude como a coragem?
- Nele o razoável seria pregar, aconselhar, receitar, como qualidade
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obrigatória, a tendência oposta. Cultivar o medo. Cultivar o medo,
porque ele significa a prudência elementar sem a qual não se chegará
muito longe. Fazer todas as concessões, se somos estadistas e se não
possuímos meios físicos de impor nossa vontade. Libertar presos, criminosos, embora não ignoremos que com isso só contribuímos para que se
torne maior a criminalidade. Demitir ministros, gabinetes inteiros, renunciar às altas posições que se ocupa, se essa é a vontade dos criminosos. Entregar a receita do país inteira para salvar a vida de inocentes. Se
somos simples cidadãos, mostrar-nos cuidadosos ao extremo, porque
essa é a maneira de sobrevivermos. Seria de bom alvitre pesar com
atenção todas as palavras que dissermos para prevenir qualquer ofensa
que possa causar a sensibilidade dos vizinhos. Uma vingança inesperada
pode nos atingir. Nunca sair de casa sem olhar antes pelas janelas, de
um lado e de outro, para vermos bem se não há alguém na rua que
constitua uma ameaça. Tomar mesmo precauções maiores. Não seria
demais comprar armas, revólveres, carabinas, metralhadoras, segundo
a importância do patrimônio que se tiver a defender. O patrimônio
mínimo é naturalmente a vida. Mas já para esse mínimo se precisa de
medo, de muito medo, se quisermos realmente conservá-lo.
Como já dissemos, essa é a lógica do declínio e da decadência. É a
lógica que faz objeções a uma filosofia da coragem. É a lógica dos que
se pretendem inteligentes, lúcidos, realistas, e rejeitam, com um muxoxo
de desprezo, uma figura como Nietzsche. Mas, no mundo envolto numa
crise de que tantos se queixam, já se indagaram alguma vez se não é
justamente essa inteligência, essa lucidez, esse realismo que estão provocando a crise de que a justo título tanto se lamentam? Que fariam tais
pessoas, se lhes fosse dito que precisamente essa inteligência, essa
lucidez, esse realismo não são inteligentes, não são lúcidos, não são
realistas porque lhes falta um ingrediente que seria o único capaz de
legitimá-los? Que fariam elas, se lhes fosse dito que foi Nietzsche, e
nenhum outro, quem mostrou, de modo insuperável, que sem esse
ingrediente, sem a virtude da coragem, a inteligência não é mais do que
um equívoco, a lucidez mais do que uma ilusão, o realismo mais do que
um mal-entendido? Na verdade, Nietzsche mostrou isso, não elaboran
do teorias, mas exercendo-se em todo tipo de práticas - na prática de
sua experiência humana, na prática psicológica do bisturi da análise. Quem reconhecer o que não paJerá deixar de ser reconhecido, isto é, que Nietzsche é um dos maiores psicólogos de todos os tempos - e quem
não o fizer será por sua própria conta e risco -, reconhecerá também
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que, se suas análises têm uma força irrecusável, é porque o metal do
bisturi que usa é forjado com uma liga de inteligência e de coragem. Se
lhe faltasse coragem, Nietzsche teria sido um psicólogo medíocre. Se lhe
faltasse coragem, Nietzsche teria sido um homem pouco lúcido. O mistério de Nietzsche consiste em que sua lucidez - que é como um sol
ardente que quase nos ofusca - resulta diretamente da aliança que
mantinha com a coragem. Era esse também o mistério de Sócrates - que
era um grande estadista, que podia ensinar a virtude, porque seu
demônio lhe dizia ser a sabedoria inseparável da coragem.
Assim, quando rejeitamos com um muxoxo a filosofia de Nietzsche, por ser uma filosofia da coragem, estamos caindo no ridículo de rejeitar
um tipo de inteligência maior em nome de um tipo de inteligência
menor. É como se preferíssemos, em princípio, a um cão de raça, um
vira-lata qualquer. Na verdade, estamos com isso rejeitando uma coisa
que não só não conhecemos, como também não temos meios de conhecer, apesar de toda a nossa inteligência. O que nos pode sacudir aqui, neste momento, e nos preparar para uma visão mais justa do problema
é o sentimento do ridículo. Se há coisa de que nos orgulhemos é
certamente nossa lucidez, nossa clarividência, nossa racionalidade. Não
temos vergonha de ter medo. O que outros chamariam de covardia nós
chamamos simplesmente de prudência. Não nos parece que se trate aqui de um vício, mas de uma virtude. A coragem é uma virtude que julgamos
pertencer a um mundo primitivo, de qualquer modo um mundo pré-tecnológico, para nós irremediavelmente perdido. Não temos nostalgia
desses tempos. O mundo de hoje, a era tecnológica exige uma única
virtude, um único instinto: uma completa lucidez! E se essa lucidez nos
aconselha à prudência, à moderação ou mesmo ao medo, nada mais nos
resta a fazer senão escutar e seguir a sabedoria do conselho.
Dizemos isso com orgulho, certos de que nossos argumentos são
irrespondíveis. Dizemos isso com a arrogância de um Protágoras. Mas
se nos defrontarmos de repente com um novo Sócrates e imitarmos o
sofista, não fugindo ao debate, poderemos, como ele, evitar que o
sentimento do ridículo nos domine finalmente? - Protágoras interrompeu a discussão, quando sentiu que era esse o desenlace que o ameaçava
- mas não sem antes reconhecer, um tanto contrafeito, o valor da argumentação socrática. E nós, o que faríamos? - Interromper simples
mente a discussão não nos evitaria o ridículo. Como não havíamos nem
mesmo compreendido o tipo de coragem que estávamos procurando
refutar, ficaria claro que nos encontrávamos desde o início derrotados.
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Prosseguir na discussão, tentar mostrar que, com nossa lucidez, com
nossa prudência, com nossa covardia, conseguiríamos talvez obter re
sultados bem concretos, uma paz, uma harmonia que fosse a base de
edificações futuras, seria a melhor maneira de mostrar como essa lucidez era insensata, como essa prudência era leviana, como essa covardia
era um sentimento desprezível. Caminharíamos irresistivelmente para a
apoteose do ridículo. Só nos restaria, pois, fazer como Protágoras:
interromper a discussão, mas não sem antes reconhecer o valor da
argumentação de Nietzsche; interromper a discussão, mas já agora para
reconsiderar, para reexaminar, para reavaliar de que modo a obra de
Nietzsche pode exercer, sobre nossos preconceitos, uma ação transfor
madora - essa seria, ao que nos parece, a única maneira de evitar que
- se abatesse sobre nós o sentimento do ridículo.
Por que pensa Nietzsche que, sem a coragem, não se descobre a
verdade? Não é essa a contrapartida da posição socrática segundo a
qual, sem a verdade, não se manifesta a coragem? - Coragem e verdade,
coragem e sabedoria, virtude e sabedoria - temos aqui a equação que
justifica a convicção socrática de que a virtude pode ser ensinada. Não
é essa também uma convicção nietzschiana? Quando refletimos sobre
essa questão, vemos claramente como essa identidade de pontos de vista
é mais importante, mais essencial, mais definitiva do que as divergências
entre os dois filósofos que A Origem da Tragédia se empenhou em
sublinhar. Nietzsche poderia considerar Sócrates um decadente do
ponto de vista dionisíaco que naquele livro adotava. Mas do ponto de
vista do ensinamento da virtude, que, tanto para si quanto para Sócrates,
era a questão essencial, a identidade entre os dois não poderia ser mais
completa.
O ensinamento da virtude, para esses dois filósofos separados por
mais de dois milênios, não poderia, entretanto, apresentar-se sob a
mesma forma. Sócrates naturalmente pensava que a virtude poderia ser
ensinada, se fosse recuperada e transmitida. Nietzsche, entretanto, via
o problema de maneira mais complexa. Julgava impossível recuperar
uma virtude que existira num passado tão remoto. O princípio da areté
ainda vivia no espírito de Sócrates e, embora não vivesse mais na vida
real de cada indivíduo, vivia na memória coletiva da comunidade ateniense. O ideal de grandeza vivia no espírito de Nietzsche, mas não vivia
nem na vida real dos indivíduos nem na memória coletiva do mundo em
que vivia. Escolhendo entre o prazer e a excelência, Sócrates tivera
alguma chance de ser seguido por alguns poucos na escolha de sua
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preferência. A prova disso fora Platão e sua Academia. Escolhendo
entre a felicidade e a grandeza, Nietzsche não tinha a menor chance de
ser seguido por quem quer que fosse na escolha que fizera. O mundo
em que vivia já havia escolhido, por unanimidade, o ideal da felicidade.
Para ensinar sua virtude, Nietzsche, por conseguinte, não dispunha das
facilidades de que dispusera Sócrates. Não encontrara um contexto que
abrigasse os vestígios do antigo esplendor da areté, vestígios que pudes
sem ser aproveitados para uma recomposição e para um novo modelo.
Não encontrara uma receptividade determinada por uma sensibilidade
um tanto adormecida, mas ainda viva e capaz de reagir positivamente à
evocação dos esplendores de um passado de triunfos e glórias. Não
encontrara nada disso. A receptividade para um ideal de grandeza, tal
como o concebera seu espírito, era, no mundo em que vivia, absoluta
mente nula. Nesse mundo, só o ideal da felicidade era aceito e com
preendido.
Sócrates, indubitavelmente, possuía algumas alavancas para re
construir seu modelo de virtude. Sua vida de perguntas e de questiona
mentos, sua argumentação e sua dialética mostram bem que essa
reconstrução tinha alguns pontos de apoio no mundo real. As respostas
que obtinha eram como tijolos atirados para o alto sob o impulso da
alavanca que usava Sócrates no afã da construção. Nietzsche não tinha
nada disso. E por isso seu modelo de virtude parece ser tirado de si
mesmo. Figuras históricas eram por vezes utilizadas para exemplificar
esse ou aquele modelo que Nietzsche desejava estudar. Mas essas
figuras já não representavam o mundo real, o mundo em que o filósofo
estava inserido. Ora, a virtude, para ser o que é, tem forçosamente que
manter uma relação direta com o mundo real. Nietzsche corria, pois, o
risco de condenar suas virtudes a uma existência de fantasmas, se não
lhe ocorresse, num clarão intuitivo verdadeiramente genial, a idéia de
fazer da sua própria vida o solo real onde pudessem caminhar as virtudes
que estudava. Não se tratava de tirar de si mesmo os modelos de virtude.
Tratava-se de procurar, no mundo exterior, fora de si, tal como fizera
Sócrates, elementos para sua construção. Como, porém, esse mundo
não lhe era contemporâneo, não era o mundo de sua convivência,
ficava-lhe faltando uma certa densidade, a densidade da vida real.
Nietzsche oferecia-se então, oferecia seu corpo, oferecia seus sentimen
tos, oferecia enfim todo o seu Ser físico, moral e espiritual, como campo
de experiência, onde esses elementos fantasmáticos, trazidos de um
outro mundo, pudessem se implantar, experimentar uma vivência, se
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consubstanciar. Essa foi a forma de Nietzsche perseguir seu ideal de
grandeza, transmitindo-lhe uma realidade que de outro modo não
poderia ser obtida. Sócrates, com suas questões-alavancas, transmitiu
realidade a seu ideal de excelência. Nietzsche, fazendo de seu Ser físico,
moral e espiritual o campo de experiências de elementos de um mundo
que não era o seu, transmitiu realidade a seu ideal de grandeza. O que
é importante sublinhar é que esses elementos, mesmo quando viviam
dentro de Nietzsche, pertenciam a um mundo que não era o seu. A
filosofia de Nietzsche é mal compreendida, quando não se percebe a
importância deste fato fundamental - quando se pensa que a obra de
Nietzsche espelha apenas o dinamismo de um processo que se desen
volve unicamente no interior de sua subjetividade.Sem coragem não se descobre a verdade. E a dádiva de si mesmo,
que encontramos em Nietzsche, ilustra, da maneira mais comovente, o
bem fundado dessa afirmação. A verdade não se acha facilmente. Entre
nós mesmos e a verdade existe um caminho semeado de perigos. É
preciso ter grandeza para querer percorrê-lo. Dir-se-ia que dragões
sequestraram a verdade. Dragões ciumentos, que a impedem de se
tornar atuante e visível. Dragões que naturalmente não são de carne e
osso, mas que nem por isso constituem ficções poéticas ou imagens sem
qualquer eficácia. São entes que incidem sobre nossa vida real de modo
inequívoco. São fantasmas que nos perseguem, que nos paralisam, que
transformam o curso de nossa existência concreta. E que agem assim,
desse modo abusivo, porque nos falta coragem para expulsá-los da nossa
vida real.
O Deus morto é um desses fantasmas. Quando era vivo, não aparecia como um dragão. Participava da nossa vida como um fator positivo. Enriquecia nossa experiência humana. Dava a nosso Ser uma maior
plenitude. Fazia da nossa atividade uma dinâmica mais produtiva.
Agora que está morto, transformou-se num fantasma que nos intimida, que nos persegue, que nos paralisa a vontade. Temos medo de
quê, se é um fantasma? Se não é mais capaz de nos fulminar com os raios
de sua cólera? Não o sabemos nós mesmos. Mas o medo que nasce
dentro de nós é maior do que o causado pela antiga justiça divina. T alvez,
quem saiba, tenha havido um engano (assim fala esse medo). Talvez nem
tenha morrido. Saindo à rua, tínhamos ouvido notícias de sua morte.
Mas voltando para casa, havíamos decidido não transmitir aos nossos a
informação terrível. Nada havíamos feito para que se alterasse a rotina
doméstica. Havíamos continuado a viver como se nada de importante
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houvesse ocorrido. Pensávamos assim contornar o problema. Mas de
noite, quando não tínhamos insônia, sonhos estranhos nos visitavam.
Ele” vinha ao nosso quarto perguntar o que pretendíamos; que significava nosso mutismo, nosso silêncio - era, por acaso, nossa intenção
continuar dissimulando e mentindo? Que fraqueza, que falta de coragem mostrávamos! Dava-nos um prazo, alguns dias, para que contássemos ao mundo inteiro o que se passara. E queria ver seu próprio túmulo
visitado todos os dias e coberto de flores sempre renovadas.
Agora que está morto, Deus transformou-se para nós num dragão, num dragão que nos sequestra a verdade. Não por culpa sua - que culpa
poderia ter um Deus que está morto? - Por culpa nossa, por culpa da
nossa fraqueza. Quem sabe não ressuscitaria se fôssemos mais corajosos? Mas nós, com nosso medo, alimentamos o dragão. Se as coisas
continuarem assim, virá o dia em que teremos esquecido que Deus havia
morrido ou mesmo que tenha algum dia existido. Será também o dia em
que teremos esquecido que nossa maior distinção havia sido o amor à
verdade.
Houve tempo em que a Beleza era tida como o esplendor da Verdade. Assim pensaram homens que viveram em épocas felizes. Mas
com o correr dos séculos essa noção confiante foi-se transformando, foi-se reduzindo, foi-se limitando, a Beleza passou a ser simplesmente
a expressão da Verdade. E não parou aí; prosseguiu nesse processo de
descaracterização, tornou-se indiferente à verdade. Finalmente, para
nós, para os homens de nossos dias, a Beleza se apresenta exatamente
como o oposto da Verdade - exatamente como um dragão, um dragão
que nos seqüestra a verdade. Metade anjo, metade demônio - aparência que toma para nos enganar -, ela nos desfigura totalmente a Verdade.
Sua ambiguidade e seu mistério representam, para nós, um desafio que
cresce sempre na razão direta da fraqueza ou da covardia que mostramos diante da sua natureza enigmática. Só enfrentando esse enigma com
uma coragem heróica e clarividente, seremos capazes de vencer o
desafio.Va Beleza é uma coisa terrível e assustadora^ confessa Dimítri;
em Os Irmãos Karamazov de Dostoiévski. E ainda: “É uma coisa não
apenas terrível mas também misteriosa - é o diabo em luta contra Deus,
e o campo de batalha é o coração dos homens”. Dimítri pensa que, se o
coração for fraco, apenas trevas resultarão dessa luta, mas que, se for
forte e clarividente, resultará da luta a irradiação de luz a que damos o
nome de verdade. Dimítri é pessimista e pensa que a maioria dos
homens não dispõe dessa coragem e termina sempre nas trevas, em
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Sodoma, só conseguindo cultivar o ideal da Madona, o ideal do coraçao
forte e clarividente, nos jovens anos da inocência.
O Bem é ainda um outro dragão, figura monstruosa de camaleão,
em contínua transformação. Nunca sabemos como ele realmente é. Sua
especialidade são essas metamorfoses incessantes, esse desejo insaciá
vel de camuflar a verdade. Num dado momento, sua cor nos sugere que
ele é uma coisa, mas logo se modifica e assume cor totalmente diversa.
Essas mudanças constantes o tornam suspeito, o privam de “credibili
dade”. “E terrível não ver no Bem nada de bom”, diz-nos Gógol,
deprimido e assustado com o sentido negativo de uma tal constatação.
Mas nossa covardia continua inalterável diante desse terceiro fantasma,
diante desse novo dragão que não só nos ameaça, como se diverte em
frustrar nossos esforços no sentido de captar sua verdade. Desse modo,
ela continua seqüestrada, e nossa fraqueza nos faz aceitar as imperti
nências do camaleão, as artimanhas que emprega para burlar nossas
tentativas de um maior entendimento e a arrogância despudorada com
que interfere na trama cotidiana de nossa vida real.
Sem coragem não se descobre a verdade. Fica assim justificada uma
filosofia da coragem. Mas Nietzsche não queria apenas descobrir a verdade, queria também ensinar a virtude. Nietzsche, como Sócrates,
era um grande educador. Como Sócrates, queria tornar os homens
melhores; melhores não no sentido de mais capazes ou mais bondosos,
mas no sentido de maiores, de dotados de dimensões interiores mais
avantajadas. Exatamente como Sócrates. O ideal de grandeza nie-
tzschiano é a versão moderna do ideal da areté do filósofo ateniense - é
um ideal de excelência tal como o podia elaborar o espírito do homem
moderno. Suas bases dionisíacas projetavam-no no mundo moderno, salvando-o da característica de ser um projeto antiquado. Mesmo o
cristianismo podia ser absorvido por ele, como nos mostra a última, a
mais trágica das mensagens de Nietzsche: Dionísio em face do Crucifi
cado. A moral cristã era uma catástrofe, mas uma catástrofe que preci
sava ser assimilada, uma catástrofe com a qual deveríamos entreter
eternamente um diálogo. Écrasez l’infâme, sim, mas manter sempre
Dionísio em face do Crucificado.
Acontece, entretanto, que ensinar a virtude - esse ideal de grandeza
- não se faz sem a posse de talentos inexcedíveis. Talentos tais como a
habilidade de mostrar os aspectos contraditórios de uma mesma atitude,
de um mesmo princípio, de uma mesma opção. Talentos que implicam
um poder extraordinário de evocar novas perspectivas, poder que tem,
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como ingredientes, não só uma imaginação prodigiosa, como também
uma avassaladora intimidade com os refolhos mais escondidos e mais
bem protegidos da realidade.
Não há dúvida de que Nietzsche possuía essas qualidades. E as
lições que nos deixou estão preservadas em páginas gloriosas, que nos
falam com uma voz tão vibrante que quase podemos sentir a presença
física de quem as articulou. É essa a marca inconfundível de todo
educador. Não só o que ele fala, mas toda um atmosfera espiritual é
evocada e transmitida no curso de suas lições. O que ele nos diz não nos
convence apenas - incorpora-se a nós como algo que passa a fazer parte
da nossa substância - como algo de que já não podemos mais nos
apartar. Nos Diálogos de Platão, a presença física de Sócrates se faz
sentir. Já a forma literária, nesses Diálogos, aponta para essa presença. O que é espantoso, nos textos de Nietzsche, é que toda uma atmosfera
espiritual de debate, de comunicação de idéias, de transmissão de
convicções e de presença de mestre e discípulo seja evocada pelo
simples poder de sugestão, pela magia inexplicável do verbo, das pausas,
das reticências e das hesitações. Na época em que a solidão ainda não
o dominara, Nietzsche era tido como um causeur admirável. O período
durante o qual exerceu o magistério oficial foi marcado por sucessos
impressionantes, tendo-se em vista sua pouca idade. Nietzsche era, ao
que parece, um professor soberbo. Isso naturalmente num período em
que relativamente pouco de seu tinha a transmitir. Essa disposição
maravilhosa, que não encontrara até então um objeto, só pôde assim
revelar-se de um modo incompleto, num momento ainda imaturo, que
conduziria, mas não conduzira ainda, a uma afirmação ampla e plena. Era o momento em que seus textos seriam talvez um tanto pesados, e
em que seu talento expressivo afirmava-se mais através de uma expressão facial, da entonação da voz, da sutileza dos gestos, das vibrações do
olhar. Quando cessou o magistério oficial, quando a solidão se instalou, todos esses elementos de expressão perderam naturalmente seu campo
de aplicação e se recolheram forçadamente na expectativa melancólica
de um período longo de hibernação. Mas a expectativa era falsa. Eles
reapareceram logo depois, transformados, metamorfoseados, como
agentes invisíveis e, ao mesmo tempo, presentes em um dos estilos mais
comunicativos, mais expressivos, mais vivazes de que se tem notícia em
toda a história da literatura - um estilo brilhante, fulgurante, capaz de
aliciar o mais indiferente dos leitores que, por desfastio, tenha uma vez
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procurado passar momentos perdidos folheando distraidamente algum
livro seu.
Todos esses elementos do estilo de Nietzsche traem de modo
inequívoco sua vocação de educador. Platão naturalmente escolheu a
forma literária do diálogo, porque também era essa sua vocação. Mas
Platão tinha estímulos para optar por essa forma literária, pois dispunha
de ouvintes, discípulos e pessoas de sua convivência para tomar como
modelos; dispunha inclusive para a figura central do educador de uma
personalidade que conhecia na intimidade e que era muito mais que um
modelo, que era sua mais funda inspiração. Nietzsche era constrangido
a ser Platão e Sócrates ao mesmo tempo. A forma literária que era
obrigado a escolher não podia delinear os contornos reais, as presenças
físicas do educador ou de seus discípulos, apenas podia sugerir presenças invisíveis. Seus gestos, a expressão do olhar, a ênfase sonora das
palavras, tudo isso, que havia sido fator de sucesso no período de seu
magistério oficial, tudo isso devia passar agora através de um estilo que
pressupunha a existência de um educador disposto a dialogar com sua
audiêpcia. O educador e os discípulos estavam ausentes conforme a
letra, mas encontravam-se presentes, invisíveis, em virtude da força
inigualável de um estilo que parecia ter nascido, não no confinamento
de um gabinete, mas nos espaços livres de um horizonte aberto.\É
conhecido o hábito que tinha Nietzsche de fazer longas caminhadas. Um
contemporâneo seu, que tivesse conseguido segui-lo disfarçado, teria
talvez podido captar palavras perdidas no espaço que a aragem trazia e
que eram certamente fragmentos de um diálogo que o filósofo mantinha
com um interlocutor invisível. Essas palavras seriam eventualmente recolhidas no ato. Isso, entretanto, só aconteceria se o diálogo se tor
nasse mais vivo.\Nietzsche, que nessas caminhadas carregava sempre
consigo uma sacola com cadernos e livros, se deteria então diante do
primeiro banco ou diante do primeiro parapeito encontrado. Tinha
medo, provavelmente, de perder, de deixar fugir da memória a atmosfera especial, a temperatura, o ritmo das palavras que haviam sido
trocadas. Debruçado sobre a amurada ou curvado sobre o banco que
lhe servia de mesa, anotava o essencial do que havia ocorrido. Outras
vezes, a caminhada terminava sem interrupções e então era, no hotel ou
na pensão do momento, que fazia o registro dos diálogos sustentados ao
ar livre, na orla marítima de Rappalo, de Santa Margarida, ou em alguma
vereda suíça, como Platão o fizera talvez em Atenas dois milênios atrás,
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fixando por escrito as conversas e discussões que tivera com os compa
nheiros durante passeios noturnos ao longo dos cais do Pireu.
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4. A COMUNICAÇÃO INDIRETA, AS INTERPRETAÇÕES E AS MÁSCARAS
Kierkegaard foi um dos pensadores que com mais acuidade refletiu
sobre as formas possíveis de comunicação entre os homens. Não só sua
obra como também sua vida foi afetada por esse tipo de reflexão. Kierkegaard acreditava que viera ao mundo para pregar a mensagem
de Cristo - pregar essa mensagem, entretanto, a um mundo que já se
considerava cristão. Como comunicar a verdade a quem já se considera
possuidor dessa verdade? - Tal foi o grande problema que se apresentou
à consideração do filósofo dinamarquês. Vamos aqui tentar descrever
sucintamente como procurou resolvê-lo.Há, segundo Kierkegaard, duas formas possíveis de comunicação
entre os homens: uma direta e outra indireta. Na forma direta, exprime- se tudo o que se sabe, tudo o que se sente, tudo o que se pensa. E uma
forma de comunicação franca, aberta, inocente, a comunicação que
poderia haver entre os anjos, sem culpa, sem remorso, sem reticências. Na forma de comunicação indireta, entretanto, um elemento demoníaco
intervém. Não se exprime tudo o que se sabe, tudo o que se sente, tudo
o que se pensa. Procura-se mesmo enganar, disfarçar, dissimular uma
parte do que se pensa. Trata-se certamente de uma forma de comunicação que não é inocente, mas a culpa que nela possa existir deve ser
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corajosamente assumida por quem quer comunicar um certo tipo de
verdade. Sem essa forma, o tipo de verdade que temos em vista jamais
poderia ser transmitido.
Expliquemo-nos melhor, ajudados por Kierkegaard. Existe uma
imensa diferença, uma diferença dialética entre os dois casos seguintes:
1. o caso de um homem que é ignorante e precisa receber uma certa
instrução - ele pode ser comparado a um vaso vazio que precisa ser
enchido ou a uma folha de papel em branco sobre a qual algo deverá ser
escrito; 2. o caso de um homem que é vítima de uma ilusão - que precisa,
em primeiro lugar, ser desembaraçado dessa ilusão. Da mesma forma,
existe uma enorme diferença entre se escrever numa folha de papel em branco ou se revelar, através da aplicação de um fluido cáustico, um
texto que estava escondido por baixo de um outro de produção mais
recente. Supondo-se então que uma determinada pessoa seja vítima de
uma ilusão e que seja nosso empenho comunicar-lhe a verdade, nossa
primeira tarefa, quando bem compreendida, seria remover essa ilusão
- se não começarmos por enganá-la, seremos levados a pensar em nossa
tarefa em termos de uma comunicação direta. Entretanto, a comunica
ção direta pressupõe o fato de que o recipiente seja capaz de aceitá-la sem obstáculos-o que aqui justamente não acontece. A ilusão se levanta
como uma barreira, impedindo que a comunicação se realize. Conse-
qüentemente, se quisermos levar avante nosso projeto, precisaremos,
antes de mais nada, aplicar o fluido cáustico - esse fluido que, dialeti-
camente falando, consiste em inicialmente negar a verdade da comuni
cação a ser tentada e, com a negação, caracterizar o engano.
Essas concepções de Kierkegaard tiveram uma influência decisiva
sobre sua vida concreta. Kierkegaard era um escritor que queria divul
gar a mensagem de Cristo. Seu primeiro cuidado foi, por isso, enganar
seu público, o público de Copenhague, então uma pequena comunidade
em que sua figura era bem conhecida. Kierkegaard teve a primeira e
angustiante ocasião de fazer isso no seu relacionamento com Regina
Olsen, uma adolescente de catorze anos, por quem se apaixonou quando
tinha vinte e quatro anos. O jovem apaixonado resolveu esperar três
anos, e só quando perdeu o pai e se tornou herdeiro de uma pequena
fortuna é que se decidiu a empreender a conquista da moça com o fito
de esposá-la; passou então a usar de todos os talentos e de todos os
recursos que tinha a seu dispor para chegar a esse fim - e Regina, dentro
em pouco, estava também totalmente apaixonada. Mas então Kierke-
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gaard já adquirira consciência do isolamento, da solidão a que o conde
nava seu destino espiritual. Ficaram noivos embora Kierkegaard
entretivesse as maiores dúvidas sobre o compromisso que tomava.
Decidiu, depois de muitas lutas interiores, romper o noivado. A moça,
desesperada, sem compreender o que se passava, fez o possível e o
impossível para evitar o rompimento. Foi então que Kierkegaard, sem
deixar por um momento de amá-la como nos primeiros tempos, passou
a representar junto à noiva o papel de rufião. Hamlet, para apartar de
si o sentimento de Ofélia, se finge de louco. Kierkegaard, para apartar
de si o sentimento de Regina, passou a agir como um dom-juan pouco
escrupuloso.
Para completar suas táticas, Kierkegaard publicou sob pseudônimo
um livro intitulado Ou Isso ou Aquilo, do qual uma das partes se
apresentava sob a rubrica “O Jornal do Sedutor”. Não só Regina, mas
todo o público de Copenhague, que conhecia suficientemente o autor
para enganar-se com o pseudônimo usado, ficou profundamente cho
cado com essa publicação. Regina, como era natural, sentiu-se profun
damente atingida pela maneira leviana, desrespeitosa, quase demoníaca
com que havia sido tratado, no livro, seu caso de amor. Mas havia ainda
nele outros elementos qúe não diziam respeito a Regina, mas que eram
também profundamente desconcertantes, despropositados para um pú
blico que conhecia bem o autor e sua vocação de escritor religioso. Havia
ali expresso um estetismo irresponsável, um farisaísmo ético medíocre,
a sofisticação de um egoísmo insensato, a glorificação de uma sedução
demoníaca. A reputação de Kierkegaard, no que dizia respeito à serie
dade, à firmeza de convicções e mesmo à honestidade de caráter, sofreu
nessa ocasião um certo abalo. Ele procurava acentuar ainda mais a
impressão de leviandade e de irresponsabilidade que aquela publicação
causara, aparecendo, por brevíssimos momentos, nos lugares mais fre-
qüentados da cidade, nos restaurantes mais procurados, nos teatros, nos
cafés, nas ruas, mas unicamente nas ocasiões em que era certo que fosse
visto pelo maior número possível de pessoas. Cumprido o ritual, voltava
rápido para casa, para sua mesa de trabalho, onde o esperava um labor
insano, uma atividade por assim dizer vertiginosa, responsável por uma
produção literária de uma vastidão e de uma riqueza que seus contemporâneos, mais tarde, tiveram condições de avaliar.
Os pseudônimos que usava para seus trabalhos estéticos, embora
não enganassem ninguém (pelo menos em Copenhague), eram uma
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marca que queria ver bem assinalada de seu descomprometimento com
relação às idéias expressas nesses trabalhos. Eles descreviam experi
mentos praticados por um especialista em maiêutica, não experiências
vivenciadas por uma personalidade imaginária ou real. Era por isso que não havia, nessas descrições, a mistura do bem e do mal, da sombra e
do sol, a incoerência, as hesitações, as dúvidas que fazem parte da vida.
Eram experimentos que revelavam a coerência profunda, as consequên
cias últimas das diferentes opções que se apresentavam num drama de
personagens transformadas em símbolos.
Tais táticas naturalmente se referiam unicamente ao comportamen
to exterior do filósofo. Eram táticas que visavam dar, do escritor de
vocação religiosa que ele era, uma idéia totalmente enganosa; e essa mistificação praticada com método era aquela primeira tarefa a que nos
referimos acima, a tarefa de remover as ilusões de quem não está
preparado para receber a verdade através de uma comunicação direta.
Qual era a verdade que urgia antes de mais nada comunicar? - Era
naturalmente sua total impossibilidade de casar com Regina - impossi
bilidade não física, mas espiritual e moral. Qual era a ilusão que pertur
bava Regina, que perturbava os outros, que os impedia de assimilar essa
verdade? Era naturalmente a crença de que Kierkegaard podia tornar
Regina feliz. Nosso filósofo, humanamente falando, não tinha meios de
fazê-los ver que isso era totalmente impossível (não esqueçamos que ele
a amava). Só havia um recurso - era enganá-los. Passando por rufião,
enganando Regina, enganando o seu meio, Kierkegaard conseguia afi
nal transmitir a verdade sobre as perspectivas de seu casamento.
Quando ficou encerrado o período dos trabalhos estéticos, e Kier
kegaard sentiu que passara a necessidade de enganar para abrir caminho
à verdade - quando renunciou aos pseudônimos, ao descomprometi
mento e passou a falar em seu próprio nome, compiometido e sem
intenção de enganar-, ainda assim conservou sua tática de comunicação
indireta - não enganava, mas disfarçava, dissimulava. Em suas batalhas
em defesa do cristianismo, nunca dizia: “Sou um verdadeiro cristão (o
que era verdade), os outros é que não são cristãos”. Sua atitude era a
seguinte:
Sei em que consiste o cristianismo - minhas deficiências como cristão reconheço
plenamente mas sei em que consiste o cristianismo. E sa ber o que é o cristianismo
parece-me ser do interesse de todo mundo, cris tãos e não cristãos, seja para ace itá -lo ou
para rejeitá-lo. Por isso nunca ataquei alguém por não ser cris tão, nunca o condenei por
tal motivo.
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A tática comumente usada, para trabalhar em favor do cristianismo, tem sido, ao longo da história, a de empregar todos os meios imagináveis
para atrair a seu seio o maior número possível de gente e, se possível, a
humanidade inteira - mas sem muitos escrúpulos para verificar se foi realmente ao cristianismo que todas essas pessoas aliciadas se associa
ram. A tática de Kierkegaard é bem diferente, é, a bem dizer, oposta. Consiste em empregar todos os meios para tornar perfeitamente claras
quais são verdadeiramente as exigências do cristianismo - mesmo que
isso dissuada todo mundo de adotá-lo e mesmo que leve todo mundo a
renunciar à sua própria condição de cristão (em cujo caso deveria se
sentir obrigado a admitir o fato abertamente). Por outro lado, é sua
tática também, ao invés de procurar dar a impressão, por mais superficial que seja, de que existem dificuldades no cristianismo que justificam
sua apologia, caso queiramos induzir pessoas a abraçá-lo - ao invés de
procurar dar essa impressão, é sua tática representá-lo, ao contrário, como uma coisa tão inacessível, o que na verdade ele é, que uma
apologia se tornaria necessária não para justificá-lo, e sim para justificarmo-nos nós mesmos, caso tenhamos a pretensão de tê-lo adotado; e, nessas circunstâncias, a apologia redundaria necessariamente num re
conhecimento contrito de que devemos agradecer a Deus o fato de
podermos nos considerar cristãos.
Veja bem o leitor como, ainda aqui, embora sem enganos ou
embustes, funciona a comunicação indireta. A vocação de Kierkegaard
é pregar a mensagem de Cristo. Mas como os homens a quem deve ser
dirigida essa mensagem vivem sob a ilusão de que já são cristãos, a
primeira tarefa do filósofo é remover essa ilusão. Como fazê-lo? - A
ilusão existe, porque os homens em questão têm do cristianismo uma
idéia apoucada, amesquinhada e não julgam favor especial ou privilégio
serem recebidos em seu seio. A primeira coisa a fazer é então, como já
dissemos, remover essa ilusão, fazê-los compreender o favor altíssimo
que representa poderem ser eles incluídos nas fileiras do cristianismo. Esse favor altíssimo só nos sobrevém quando compreendemos que as
exigências do cristianismo são enormes e quando, uma vez pelo menos, nos chega o desânimo de podermos algum dia nos elevar ao nível em
que se encontram elas.
É por isso que Kierkegaard relutava em se considerar um verdadeiro cristão. Diante das enormes dificuldades que envolviam a condição
de ser cristão, ele hesitava. Outros podiam levianamente lançar-se na
afirmação de que eram cristãos. Ele resistia. Não julgava temerariamen-
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te os outros, não condenava, não negava que fossem cristãos; mas se
reservava o direito de pensar que, quanto a si mesmo, estava muito longe
de realizar as condições de vida do verdadeiro cristão. Essa era sua
mensagem, sua pregação do Cristo; através dela, tinha a esperança de
que as verdadeiras exigências do cristianismo pudessem finalmente ser
ouvidas e talvez seguidas, praticadas.
Foi desse modo que Kierkegaard resolveu o problema de sua
vocação religiosa de escritor. Como comunicar a verdade a quem já se
considerava possuidor dessa verdade? - Sabemos, agora, qual foi sua
resposta. Se havia necessidade de comunicar a verdade, era porque
quem julgava possuí-la vivia sob uma ilusão. Como era possível removê-
la? - Proclamando o Cristo, confessando o Cristo? - Essa proclamação,
essa confissão encontrariam a barreira da ilusão. Para removê-la, era
necessário lançar mão de uma maiêutica que tivesse, como pressuposto,
a idéia de que o cristianismo é um bem que a humanidade poderia
eventualmente possuir - um bem que não é apoucado, amesquinhado,
mas um bem supremo - e que tivesse como finalidade fazer aflorar à
consciência dos homens as enormes responsabilidades de quem dese
jasse apropriar-se desse bem.
Numa entrada do seu Diário de 1847, Kierkegaard diz que os
homens podiam fazer o que quisessem com sua pessoa, insultá-lo,
invejá-lo, não mais o lerem, matá-lo - mas não poderiam jamais negar
que a idéia, que regrava a sua vida, representava um pensamento original
e a concepção mais original existente na língua dinamarquesa - a idéia
de que o cristianismo exigia uma maiêutica e de que tinha compreendido
sua essência e a arte sutil de praticá-la.
Estamos, agora, de posse de todos os elementos necessários para compreender o desmesurado interesse que tinha Kierkegaard pela
personalidade de Sócrates. Sua carreira de escritor iniciou-se, na ver
dade, não com o seu Ou Isso ou Aquilo, mas com a apresentação de uma
dissertação acadêmica: O Conceito de Ironia, com Referência Constante
a Sócrates. Esse trabalho, submetido a julgamento em obediência às
práticas exigidas para a obtenção de um diploma de Master of Arts, a 3
de junho de 1841, foi formalmente aceito no dia 16 do mês seguinte, por
uma comissão presidida por F. C. Sibbern, decano da Faculdade de
Filosofia de Copenhague. A defesa oral ocorreu a 29 do mês de setem
bro. Apesar de as normas acadêmicas exigirem que fosse feita em latim
e mesmo tendo durado mais de sete horas, os jornais noticiaram que o
debate havia atraído “uma audiência excepcionalmente numerosa”.
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É certamente correta a afirmação de Lee M. Capei, tradutor para
o inglês e introdutor dessa obra de Kierkegaard, de que o estudo de
Platão, feito pelo filósofo dinamarquês, resultou numa teoria sobre a
comunicação indireta, definida por Capei ceme um recurso literário destinado a reproduza a experiência da conversação socrática. Foi
indubitavelmente a necessidade de encontrar uma maiêutica capaz de
fazer aflorar, à consciência dos homens, a idéia de que o cristianismo
não é um bem apoucado e sim um bem supremo que todos eles poderiam
possuir - foi certamente essa necessidade que o levou a uma reflexão
profunda sobre a natureza da ironia socrática. A dissertação acadêmica,
que foi o primeiro livro escrito por Kierkegaard, apresenta uma curiosa
analogia com o primeiro livro publicado por Nietzsche. Nas duas obras, Sócrates é a figura central; foram as duas recebidas pelos meios acadê
micos com um misto de aprovação e de censura - a aprovação, no caso
de Nietzsche, representada apenas pelos artigos de Rohde; a censura, no caso de Kierkegaard, em termos não tão rigorosos. O fato, entretanto,
é que a razão dessacensura residia nos retratos, nada ortodoxos, que
haviam sido-feitos da figura de Sócrates. O de Nietzsche causou escândalo - era inadmissível a tentativa de marcá-lo com o estigma da
decadência. Mas o de Kierkegaard também era censurado, pela exibição do picante, da malícia, da mordacidade, pelo excesso de sarcasmo e de
galhofa e, de um modo geral, “pelo mau gosto que não era de se esperar
da parte de quem demonstrava ter uma cultura”.
A verdade é que os dois retratos de Sócrates apresentavam distorções importantes. E a reação dos meios acadêmicos a que foram apresentados era compreensível. Mas, do ponto de vista da economia do
crescimento interno que ocorria em cada um dos dois jovens filósofos, os retratos correspondiam a uma realidade - a realidade determinada
pela mais necessária e pela mais rigorosa das leis que presidem à
formação das grandes personalidades: o projeto de uma obra e o
pressentimento de uma vocação. É verdade também que o retrato de
Nietzsche foi muitas vezes retocado, ao passo que o de Kierkegaard
permaneceu sempre o mesmo. Mas o ponto de partida foi idêntico.
Sócrates significou, para cada um deles, um arranque inicial, uma
promessa de viagens enriquecedoras por espaços espirituais desconhecidos, a instalação de uma problemática que se abria sobre vastos
horizontes. O problema socrático, em Nietzsche, estava ligado a Dioní-
sio e a sua contrafação moderna, Wagner. Em Kierkegaard, estava
ligado a Cristo e a sua contrafação moderna, Hegel.
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Qual era a posição de Hegel? - Ele pretendia encontrar um sentido
afirmativo, uma positividade na declaração de Sócrates de que o Estado
melhor e mais feliz é aquele em que todos os cidadãos se entendem e
obedecem às leis. Mas Kierkegaard pretende que Sócrates seja pura
negatividade, lembra que a razão pela qual o Sócrates citado por Hegel
parece oferecer algo positivo reside num equívoco - Hegel não percebe
que Sócrates reconhece essa positividade antes de ser Sócrates, isto é,
antes de entrar no seu processo de negação infinita: o que acontece é
que o Sócrates de Hegel, inicialmente, sem qualquer movimento pró
prio, concede, reconhece de imediato a existência de um mundo social
mente estabelecido; esse mundo não correspondia a uma positividade
que sucedesse a uma negação absoluta, mas era uma positividade que a
precedia. A declaração de Sócrates representava assim um movimento
fingido, não um autêntico movimento socrático. Kierkegaard conclui
que a discussão, em torno dessa declaração, não podia decidir sobre a
questão da positividade de Sócrates.
Toda a argumentação do livro está alicerçada sobre esta convicção.
Sócrates é pura negatividade, negatividade absoluta e infinita, e tal
negatividade, dirigida à realidade histórica, é a essência da ironia. A
ironia dos românticos, de Schlegel, de Solger, de Tieck, por exemplo,
não é a verdadeira ironia, porque é uma ironia dirigida a uma realidade
fabricada por ela própria, dirigida não à realidade histórica, mas a uma
história transformada em mito, poesia, saga, conto de fadas. A ironia do
Sócrates a de Hegel, por sua vez, não é a verdadeira, não é negação
absoluta, infinita; a positividade lhe é necessária.
Alguns comentadores pretendem que a dissertação utiliza ironica
mente uma linguagem e uma conceituação hegeliana. Confesso que essa
interpretação me parece algo artificiosa. Kierkegaard, então um jovem
estudante de filosofia e de teologia, não tinha ainda aprofundado seus
estudos hegelianos. Era por isso natural que esse seu primeiro trabalho
traísse uma dependência do aspecto formal do pensamento de Hegel.
Mas era claro que, sob essa dependência formal, já apontavam os
motivos que o levavam a uma discordância real. De qualquer maneira,
essa suposta ironia formal não foi complementada na dissertação por
uma ironia substancial. E com a maior seriedade que nela Kierkegaard
examina os argumentos de Hegel, empenhando-se sempre em apresen
tar suas próprias razões com a consideração e com o respeito que eram
esperados de um crítico da obra do grande mestre. A discussão da
opinião de Hegel sobre a declaração de Sócrates, a respeito do Estado
104 MARIO VIEIRA DE MELLO
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melhor e mais feliz - referida acima mostra-nos bem o tom mantido
por Kierkegaard nessa sua polêmica com o filósofo de Stuttgart.
Causa, portanto, uma certa surpresa constatar, como já o fizemos,
o tipo de reação que a dissertação despertou no meio acadêmico de
Copenhague. A mordacidade, a malícia, o sarcasmo poderiam talvez ser
notados nas referências de Kierkegaard aos representantes de Hegel
naquela cidade, mas nunca nas observações feitas a propósito do pró
prio Hegel. Foi só cinco anos mais tarde, no Postscriptum, que o filósofo
de Stuttgart foi objeto de uma declarada ironia. Mas já então a obra de
Hegel havia sido bem assimilada, e a dependência formal de Kierke
gaard se tinha esfumado. Vou aqui transcrever um trecho do Postscrip
tum, que me parece representativo de sua ironia e que dá uma boa idéia
de sua maneira de reagir ao pensamento de Hegel:
Se Hegel tivesse publicado sua Lógica sob o título de Pen sa m en to Puro, sem
indicação de autoria, ou data de publicação, sem prefácio ou notas ou autocontradições
didáticas, sem explicações confusas a respeito de coisas que poderiam se explicar por si
próprias; se tivesse publicado isso como uma espécie de analogia aos fenômenos da
natureza, aos sons po r exemplo que a lenda popular diz serem ouvidos na ilha de Ceilão,
como se fossem os m ovimentos imanentes do pe nsamento puro ele próp rio - esse atoteria sido verdadeiramente pra ticado no esp írito de um filósofo grego. Se um grego tivesse
concebido a mesma idéia, isso é o que ele teria feito. A reprodução do co nteúdo na forma
é essencial para todo trabalho artístico que envolve esses dois elementos; e é particular
mente importante que se evitem referências a um determinado con teúdo em forma que
não apresente esse grau de adequação. Mas a L óg ic a como se oferece agora com seu
amontoado de notas produz a estranha impressão que teria experimentado um homem
a quem fosse entregue uma carta que se anunciasse ter vindo do céu, embora estivesse
acom panhada de um .mata-borrão e revelasse assim claramente a sua origem m undana.
Deixar-se levar nessa L ógic a a uma polêmica com tal ou qual pessoa portadora de um
nome, o ferecer sugestões pa ra a orientação d o leitor e coisas congêneres, é trair o fato
de que existe um pensador que pensa o pensamento puro, um pensad or cuja palavra se
mistura aos movimentos imanentes do pensamento puro e que pode mesmo falar com
ou tro pensador, estabe lecendo desse modo relações com ele. Mas se existe um pen sado r
que pen sa o pensamen to puro, todo o a parato crítico da dialética grega, bem como toda
a polícia de segurança da dialética existencial vão querer imediatamente agarrá-lo e
retê-lo pela aba do casaco, não para conquistar um novo discípulo mas com o simples
intuito de investigar qual seria seu relacionamento com o pensamento puro. No mesmo
instante toda ilusão se dissipará. Imaginem Sócrates conversando com Hegel. Apenas
com o auxílio das misteriosas notas ele desarmaria a guarda de Hegel; e não estandoacostum ado a ser engrolado com protelações sob o pretexto de que tudo se tom ará claro
no fim e suportando mal mesmo um discurso que durasse cinco minutos, para não falar
de um desenvolvimento ininterrup to que se estendesse por dezessete volumes impressos,
Sócrates daria então uma violenta brecada nessa verbiagem apenas para divertir-se com
a cara de espanto que faria Hegel.
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Será preciso ser um hegeliano empedernido para não sorrir diante
da ironia profunda dessas palavras. Confesso que, ao tê-las pela primeira vez diante dos olhos, fiz mais do que sorrir - é verdade que não sou
um hegeliano -, fui obrigado a interromper minha leitura para dar largas, com uma boa risada, a um sentimento de profunda participação. A publicação da Lógica sem indicação de autoria ou data de publicação, sem prefácio ou notas, sem explicações de qualquer espécie, como se
fosse um simples fenômeno da natureza; a imagem do homem recebendo uma carta do céu acompanhada de um mata-borrão; a idéia de um
ser humano atrelado aos movimentos imanentes do pensamento puro, talvez arrastado por ele - tudo isso me parecia de uma comicidade
irresistível. Kierkegaard foi o primeiro e talvez o único filósofo (depois de Sócrates) que me fez rir como se pode rir diante da representação
de uma comédia - fartamente, abundantemente, com o prazer profundo
derivado de uma experiência ocorrida no mais íntimo do ser. É possível
que alguém que conheça Hegél melhor do que eu (o que em alguns casos
quer dizer alguém que renunciou à sua consciência crítica diante de uma
obra de dimensões agigantadas) - ou alguém que conheça pouco Hegel seja insensível ao que me fez rir. Experiências não se discutem. Seria
aliás de um otimismo um tanto inocente pensar que, no nosso século racional e científico, uma filosofia pudesse ser desmontada pelo riso. Mas foi talvez o que aconteceu comigo. E consolo-me pensando que se
em nossos tempos o gnosticismo de Hegel tem sido estigmatizado como
uma deformação, como uma contrafação do cristianismo derivada das
influências gnósticas do Evangelho de São João - se em nossos tempos
a Lógica de Hegel pôde ser caracterizada como o documento mais
representativo dessa deformação e contrafação - opinião justificada
pelas próprias palavras de Hegel ao apresentar a sua Lógica -, se em
nossos tempos tudo isso ocorreu, atrevo-me a pensar que o riso de
Kierkegaard teve talvez alguma parte nesse desenvolvimento; atrevo-me
a pensar que sem esse riso não se teria talvez encontrado a trilha, a
senda, o caminho capaz de nos levar ao ponto em que é possível ver o
que há de não filosófico na filosofia de Hegel.
Comparemos, por exemplo, o que diz Kierkegaard sobre a Lógica
de Hegel com o que afirma Eric Voegelin no Volume IV de sua obra
monumental Ordem e História, publicada em 1974.
Os movimentos gnósticos modernos derivam mais das influências gnósticas no
Evangelho de São João do que de outras variedades psicodramáticas de cores mais vivas.
Fundamento essa asserção citando o documento que considero mais representativo da
/ 31) MARIO VIEIRA l)E MELLO
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deformação da consciência característica desses movimentos gnósticos e que consiste na
apresen tação que faz Hegel de sua ciência da lógica: “A lógica deve ser concebida como
o Sistema da razão pura, como o reino do pensamento puro. Este reino é o da verdade
tai como ela existe, em si e por si, sem máscara nem véus. E possfvel po rtan to d izer que
seu conteúdo é uma representação de Deus tal como ele é na sua essência eterna,
anteriorm ente à criação da natureza e de qualque r espirito finito”.
E Voegelin arremata:.
No começo era a Sabedoria ; no começo era a Torá; no começo era a Palavra; no
começo era Hegel com sua L óg ic a . Com a transformação e a deformação egofânica do
Símbolo em Sistema e a apresentação feita da própria consciência do pen sado r como a
Palavra Divina do Começo nos encontramos no centro da luta da dogmática ideológicaque ocupa a cena pública com seu criminoso grotesco.
Voegelin parece ver também o lado cômico de Hegel, mas o que
mais o impressiona naturalmente é seu lado nefasto, perverso. E com
preensível que, tendo nascido quase que um século depois de Kierke-
gaard, tenha podido apreciar melhor as consequências funestas do
gnosticismo de Hegel, que tenha podido, entre outras coisas, apreciar
as consequências da posição gnóstica que Marx herdou de Hegel. Mas isso é outra história. O que nos interessa aqui é mostrar como foram as
armas socráticas e não qualquer tipo de argumentação baseada nos
recursos do pensamento lógico, que tornaram Kierkegaard apto a com
bater a contrafação daquilo que para si representava um projeto da vida
- foi a ironia socrática que lhe deu forças para desacreditar, pelo menos
perante si mesmo, o gnosticismo de Hegel e assim preservar, em toda a
sua elevação e pureza, a única definição que podia aceitar do cristianis
mo.() gnosticismo, tanto o antigo quanto o moderno e contemporâneo,
deriva na realidade da consciência escatológica criada no período pro
fético e apocalíptico da história israelita, consciência nascida da neces
sidade de evasão do mundo cosmológico, sentido como uma prisão, ao
mesmo tempo que do mundo pragmático, histórico, sentido como irre
mediavelmente perdido. A deformação gnóstica derivada dessa cons
ciência escatológica se inspirou no projeto de, através de uma ação
apoiada pelo conhecimento, fazer voltar à transcendência espiritual e divina o espírito do homem, que vivia alienado no cosmos ou no mundo
pragmático e histórico. Historicamente, o gnosticismo resultou da inte
ração da expansão imperial dos persas, de Alexandre e seus sucessores
e de uma contração da consciência do divino no homem. Na história
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pragmática, o gnosticismo resultou de seis séculos de expansão imperial
e da destruição de civilizações. O impacto destruidor das conquistas
sobre as formas tradicionais de existência foi abrupto; e, ao caráter
abrupto do impacto, não correspondeu uma resposta espiritual que
restabelecesse o equilíbrio com igual rapidez. A autoridade divina dos
velhos símbolos foi prejudicada, quando as sociedades, cuja ordem real
exprimiam, perderam sua independência política, ao passo que a nova
ordem imperial, inicialmente pelo menos, possuía não uma autoridade
espiritual, mas uma simples autoridade de poder. Assim a vida intelec
tual e espiritual dos povos sujeitos a esses acontecimentos foi alienada
da realidade da existência humana política e socialmente ordenada. A
sociedade e o cosmos dos quais eles faziam parte foram sentidos e
vividos como esferas de desordem, e a esfera de ordem, na realidade da
existência humana, passou a ser restrita e limitada à área da existência
pessoal ordenada em direção à transcendência divina.
Esse confmamento da ordem divina na esfera da existência pessoal
não constituiu, entretanto, uma diferenciação de consciência, que pres
supunha não um tal confmamento, mas á criação de um novo símbolo
da ordem, pessoal e social, na existência humana. Ao contrário, o que
ocorreu foi que o antigo símbolo foi deformado, primeiro porque os
deuses específicos das civilizações particulares destruídas se mostravam
incapazes de exprimir a ordem pessoal e social da humanidade, que vivia
agora numa sociedade imperial; e segundo porque a experiência da
diferenciação de consciência, que daria origem ao símbolo de uma
espiritualidade baseada numa humanidade vivendo dentro de um impé
rio universal mas pessoal e socialmente ordenada, não ocorreu. A
consciência deformada procurou, então, encontrar símbolos que expri
missem uma experiência que não havia ocorrido. E os símbolos que
encontrou naturalmente não eram os verdadeiros símbolos, os quais
exprimem, sempre de uma maneira indireta, uma experiência realmente
ocorrida - eram falsos símbolos que exprimiam diretamente uma expe
riência fictícia.
Essas indicações que acabo de dar e que foram extraídas do já
citado livro de Voegelin me parecem necessárias para fazer o leitor
entender a razão pela qual os símbolos usados pelos gnósticos apresentam forçosamente um caráter gratuito. São símbolos falsos, porque não
exprimem indiretamente, como todo símbolo deve exprimir, uma expe
riência de ordem efetiva, como, por exemplo, o mito do Demiurgo, no
Timeu de Platão, mas que querem, ao contrário, exprimir diretamente
1 00 MARIO VIEIRA DE MELLO
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algo que não representa uma experiência de ordem efetiva. Philo de
Alexandria, por exemplo, não foi um gnóstico, mas utilizou falsos sím
bolos, que exprimiam diretamente algo que não experimentou. Para ele,
a história da criação da Gênese não representa um simbolismo mítico
que dependa da diferenciação mosaica e profética da consciência da
transcendência, e sim uma filosofia da natureza sem qualquer relação
com essa diferenciação e interessada apenas na representação do co
meço do mundo. Quando as duas simbolizações, a da transcendência e
a do começo do mundo, deixam de estar relacionadas a partir da
experiência da transcendência - como foi o caso de Philo - , e a centra-
lidade da consciência do homem é interpretada a partir da simbolização
do começo do mundo, a deformação gnóstica já se encontra presente.
O símbolo, que dependia de uma experiência efetiva expressa indireta
mente, se faz independente e quer exprimir agora diretamente algo que
não se experimentou. Philo realizou em parte esse movimento, mas
somente em parte e por isso não pode ser caracterizado como um
gnóstico. Mas não há dúvida de que, fazendo de Moisés um filósofo,
contribuiu poderosamente para o aparecimento do gnosticismo.
O gnosticismo utiliza, pois, falsos símbolos, que pretendem exprimir
diretamente experiências que não ocorreram. Essa definição é como
que o negativo daquilo que se poderia dizer de Kierkegaard. Kierke-
gaard procura exprimir indiretamente as únicas experiências que o
interessam, as experiências que realmente ocorreram. Por isso o seu
existencialismo pode de uma certa maneira ser interpretado como um
antignosticismo radical; dir-se-ia que foi inspirado por ele - inspirado
ironicamente, está claro, inspirado para projetar-se na afirmação do
contrário. A noção de que a idéia existencial de Kierkegaard é uma idéia
essencialmente irônica não tem sido objeto de qualquer atenção; entre
tanto, é uma noção que me parece merecer um exame. A idéia de que
o pensamento possa existir sem “uma existência” encerra realmente
algo de cômico. A dedução de Descartes “penso, logo existo”, o famoso
cogito cartesiano, como que produziu, sobre as nossas faculdades críti
cas, uma espécie de paralisia; e vários séculos precisaram passar para
que pudéssemos nos perguntar se a existência do pensador era idêntica
à existência do pensamento. Foi preciso que surgisse alguém não desprovido de uma certa petulância, de uma certa irreverência mesmo para
ter a coragem de perguntar ao pensador se ele existia. Não era fácil
conduzir a conversa. O pensador podia ser um homem com toda a
aparência de uma boa saúde, de faces coradas, de sólido corpo - era
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delicado perguntar se ele existia. As dificuldades eram muitas; era
preciso explicar que não se tratava de existência física, essa era evidente, clamava por todos os poros - não de uma existência mental, a existência
mental no sentido de Descartes, do “penso, logo existo”, essa era uma
história que já conhecíamos - tratava-se de existência mental, no sentido
de que se o pensador, quando pensa, está preocupado com sua própria
existência, não a esquece um só minuto, tem como objetivo dar-lhe
assistência, não abandoná-la, existir no pensamento, não se exilar da
existência.
Esse diálogo difícil poderia se prolongar indefinidamente. Por mais tranquilizadoras que fossem as respostas, sentia-se que faltava ainda
algo, o interrogatório não chegava a uma conclusão satisfatória. Tentávamos mais uma pergunta: quando o pensador pensa em si, na sua
existência, está excluindo as idéias? A prática da vida não exclui a teoria?
As respostas persistem em manter o seu caráter inconclusivo. Faltava
qualquer coisa que se recusava a aparecer. Mas de repente a simples
inversão do cogito surge como uma solução possível; e se disséssemos-
“eu existo, logo penso”? Heureca! É possível, quando se é um ser
humano, existir sem pensar? - Um homem pode pensar sem existir, isto
é, esquecendo de si mesmo - mas, a menos que seja um gaiato, um
palhaço, uma personagem cômica, não pode existir sem pensar.
E aqui nos vemos de novo confrontando o problema da comicidade
ou da ironia que a revela. Sempre que pensarmos na relação entre o
pensamento e a existência, seja privilegiando o pensamento, seja privilegiando a existência, encontraremos a possibilidade do cômico. Bergson, no seu ensaio sobre o riso, nos diz que “un personnage comique est
généralement comique dans l’exacte mesure où il s’ignore lui-même. Comme s’il usait à rebours de l’anneau de (iyger, il se rend invisible à
lui-même en devenant visible à tout le monde”. E mais adiante: “U est
comique de se laisser distraire de soi-même”.
O primeiro ponto sobre o quai Bergson deseja chamar a atenção é
o de que não há nada de cômico fora do domínio propriamente humano.
Uma paisagem pode ser bela, graciosa, sublime, insignificante ou feia;
jamais será ridícula. Podemos rir de um animal, mas será unicamente
porque surpreendemos nele uma atitude ou uma expressão humana.
Podemos rir de um chapéu; mas o que nos faz rir nele não é o feltro ou
a palha, mas a forma que lhe foi dada pelo homem, o capricho humano
que inspirou o modelo. Como um fato tão importante na sua simplicidade não prendeu mais a atenção dos filósofos? Vários dentre eles têm
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definido o homem como um animal que sabe rir. Teriam podido defini-
lo como um animal que faz rir porque, se algum outro animal ou algum
objeto inanimado o consegue, é unicamente pela semelhança com o
homem ou pelo uso que dele o homem faz.
Um segundo ponto abordado por Bergson é que, para compreen
der o riso, é preciso recolocá-lo no seu meio natural, que é a sociedade;
é necessário, sobretudo, determinar sua função útil, que é uma função
social. O riso deverá responder a certas exigências da vida em comum.
Deve ter uma significação social.
No que se refere ao cômico das palavras, Bergson pensa que a
função do riso é castigar os costumes, fazer uma correção. Não temos
dificuldade em adotar essa abordagem, mas cremos que é importante
assinalar, nesse tipo de comicidade, o fato de que o riso é uma forma de
comunicação entre os homens, uma forma de comunicação que já
conhecemos, de que já falamos, uma forma de comunicação que visa
transmitir mensagens de uma maneira indireta. As palavras que provo
cam o riso não são palavras que nos informem de alguma coisa ou que
nos instruam; são palavras que não ambicionam provar qualquer coisa,
nem defender ou refutar uma tese - são simplesmente palavras que
suscitam um estado de espírito que nos predispõe à incredulidade. Um
pensador que conseguir, através desse método, criar um tal estado de
espírito a respeito da obra de um seu opositor terá talvez avançado muito
mais, no sentido de uma refutação dessa obra, do que se tivesse diligen
ciado em encontrar argumentos e em armazenar provas para invalidá-la.
O riso teria aqui uma função essencial. Ele nos restituiria a liberdade
que a reputação e o prestígio do pensador criticado nos haviam roubado.
Ele nos comunicaria talvez novas forças para recomeçar, numa outra
base, um esforço de compreensão. Ele “limparia” a área de nossa
investigação para um novo exame mais exigente, mais rigoroso.
O cômico, diz-nos Bergson ainda, resulta do mecanismo rígido que
surpreendemos uma vez ou outra, como um intruso, na continuidade
viva das coisas humanas; ele é como que uma distração da vida. Quanto
mais profunda é a distração, mais alta é a comicidade. E cômico se deixar
distrair de si mesmo. O cômico dos acontecimentos pode se definir
como uma distração das coisas, da mesma forma que o cômico dum
caráter individual deriva sempre de uma certa distração fundamental da
pessoa. Mas a distração das coisas é excepcional. Seus efeitos são
ligeiros. E ela é, em todo caso, incorrigível, de forma que não produz
efeito algum a gente rir-se dela. A idéia de criar uma arte em função
NIETZSCHE: O SÓCRA TES DE NOSSOS TEMPOS 111
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dela, o vaudeville, não viria ao espírito de ninguém, se o riso não fosse
um prazer e se a humanidade não aproveitasse a menor ocasião para
provocá-lo.
A distração das pessoas é, porém, diferente. É uma distração mais
profunda. Quanto mais profunda é a distração, mais alta é a comicidade.
E profundamente cômico se deixar distrair de si mesmo. Aqui o abuso
que se faz do riso, no caso da distração das coisas (no vaudeville), é talvez
compensado por uma certa desatenção, por um certo desaproveitamento das fontes do cômico que nos estão sendo oferecidas.
Vejamos Hegel, por exemplo. Não temos aqui o caso de alguém que,
em virtude de uma espécie de “distração histórico-mundial”, esqueceu-
se de que é um ser humano? Não, naturalmente, que tenha esquecido o
significado do ser humano em geral - isso os filósofos especulativos não
esquecem nunca -, mas esquecido do que significa o fato de que você,
ele e eu somos seres humanos, cada um por si mesmo. De esquecimento
em esquecimento, de distração em distração, ele chegou aos resultados
mais surpreendentes. Em primeiro lugar, sua incomparável descoberta,
a introdução do movimento na lógica - depois de anunciá-la, Hegel
esqueceu-se de mostrar em que parte da lógica o movimento se tinha
aninhado. Era, de qualquer modo, uma grande distração fazer do
movimento uma coisa fundamental numa esfera onde o movimento é
impensável; e era uma distração ainda maior fazer o movimento explicar
a lógica, quando a lógica não consegue explicar o movimento.
Outra distração de Hegel diz respeito ao Sistema. O Sistema, diz
ele, começa com o imediato, isto é, sem nenhum pressuposto, absolutamente; o começo do Sistema é um começo absoluto. Mas como começa
o Sistema com o imediato? Imediatamente? Hegel esqueceu de fazer essa pergunta. Esqueceu de pensar que o Sistema não poderia surgir
antes da existência e que por isso era forçosamente ex post facto, isto é, não começava imediatarnente com o imediato, o que só a existência
poderia fazer, embora, em outro sentido, se possa dizer que a existência
não começou com o imediato, porque o imediato não é nunca tal, mas
é transcendido tão cedo apareça. O começo que inicia com o imediato
é, pois, atingido através de um processo de reflexão. Hegel distraiu-se
tanto que chegou a esquecer que nenhum sistema lógico pode gabar-se de ter um começo absoluto, porque tal começo, como o ser puro, é uma
pura quimera.
E curioso que essas coisas todas, essas pequenas distrações e a
distração maior, que foi, no caso de Hegel, o esquecimento de si mesmo,
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só tenham parecido cômicas ao pensador dinamarquês. Isso prova, creio
eu, o que disse antes sobre o abuso do riso no caso do vaudeville e a
parcimônia com que se utiliza o riso no caso da distração das pessoas.
Um único filósofo capaz de rir no meio de uma multidão de basbaques
e admiradores! É verdade que esse filósofo foi também o único que, em
sua época, avaliou, com total consciência e clareza, a significação e a
importância de uma figura como a de Sócrates. Foi o único que compreendeu, através de Sócrates, a significação profunda do fenômeno da
ironia. Foi o único que assimilou, em profundidade, a lição de Sócrates.
Nietzsche, que apareceu em cena um pouco mais tarde, fez o mesmo, mas não de modo totalmente consciente. Sua problemática dividia-lhe
a personalidade epi duas partes: uma mais superficial, mais epidérmica,
que era anti-socrática; e outra mais profunda, a parte verdadeiramente
criadora, que reproduzia, no registro da desconfiança, da suspeita, às
vezes mesmo do sarcasmo, o método da ironia que a dialética socrática
inventara.
A ironia socrática era bem o modelo em que se pautara Kierke-
gaard. O filósofo ateniense tivera diante de si homens como os cristãos
de Kierkegaard, a quem era necessário pregar o cristianismo, isto é, não
homens totalmente ignorantes e que precisavam receber uma certa
instrução - não homens que podiam ser comparados a um vaso vazio,
que precisa ser enchido, ou a uma folha de papel em branco, sobre a
qual algo deverá ser escrito; tivera diante de si homens comparáveis a
textos que estavam escondidos sob outros textos mais recentes e que só
poderiam ser revelados pela aplicação de um fluido cáustico. Eram, ém
suma, homens que, como os cristãos de Kierkegaard, eram vítimas de
uma ilusão e que precisavam, em primeiro lugar, ser desembaraçados
dela. Sócrates, em princípio, queria comunicar a verdade aos homens.
Se eles fossem livres de ilusões, se fossem como uma folha de papel em
branco, o que deveria fazer era começar poí comunicar diretamente a
verdade. Essa comunicação tem como pressuposto que a capacidade do
recipiente de acolhê-la esteja perfeitamente intacta. Mas vimos que aqui
não é o caso. Uma ilusão perturba, impede essa perfeita acolhida. Quer
dizer: é preciso, em primeiro lugar, aplicar ao texto escondido o fluido
cáustico. Esse fluido, em termos de comunicação da verdade, significa
negatividade, e negatividade, entendida em nosso contexto, significa
dissimulação ou disfarce.
E o que significa, nessa fase da nossa discussão, dissimular? -
Significa não começar diretamente com a matéria que se quer comuni
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car, mas começar aceitando as ilusões do próximo, do interlocutor, como moeda legítima. É o que Sócrates fazia. É o que Kierkegaard
aprendeu a fazer com Sócrates. É o método da comunicação indireta.
E o método que Nietzsche aplicará mais tarde, com uma diferença - tornando mais dramático, mais intenso, mais emocionalmente envolven
te o jogo com a ilusão a ser vencida - , fundindo o metal frio da ironia no
cadinho incandescente, onde borbulham as paixões.
Mais do que o estado precário de sua saúde, o fato que incompatibilizou Nietzsche com a vida acadêmica foi o ataque desabrido que
empreendeu contra a veneranda figura de Sócrates. É verdade que, depois, a deterioração de suas condições físicas determinou de forma
imperiosa seu afastamento do magistério. Mas é probabilidade extremamente remota a suposição de que, sem sua enfermidade, Nietzsche
teria continuado a participar das atividades e dos interesses do mundo
acadêmico. Em A Origem da Tragédia, Sócrates é apresentado como um
“decadente”, o “primeiro decadente”, o homem que destruiu, que
arruinou com seu racionalismo, com seu otimismo, com sua atitude
teórica, a seiva vigorosa, o ímpeto dionisíaco, o sentimento pessimista e
trágico da cultura grega dos séculos que o precederam. Este foi o
verdadeiro motivo do sentimento de escândalo que experimentou por
exemplo Wilamowitz. Este scholar, que veio a se tornar mais tarde o
“papa” da scholarship clássica na Alemanha, escreveu dois artigos com'
o propósito bem definido de declarar Nietzsche persona non grata no
mundo acadêmico e não só isso - com o propósito de obter também,
entre os seus colegas, o maior número possível de adesões a essa
declaração. Wilamowitz foi, ao que parece, movido igualmente por
outras razões de ordem pessoal menos admiráveis - o essencial é que
tinha nas suas mãos um bom motivo e que dele se valeu com a energia
que lhe inspirava a jovem crença no valor e no respeito devido à
disciplina que abraçara.
De um autor que inicia sua nova carreira de pensador independente, de explorador e franco-atirador no mundo da cultura, a partir de uma
atitude tão radical, de uma crítica tão ousada, o que se poderia esperar era que essa atitude radical, essa crítica ousada fossem determinantes
para o resto da sua existência. Nietzsche, o crítico de Sócrates, o
primeiro pensador de grande envergadura a repudiar, em todo o curso
da história ocidental, os ensinamentos do grande mestre, deveria forço-
114 MARIO VIEIRA DE MELLO
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samente fazer refletir, na sua obra subsequente, as conseqüências de um
tal repúdio. Na sua natureza, deveria existir forçosamente um traço
profundo, um traço que o fizera não vacilar diante da radicalidade
daquela atitude, um traço eminentemente anti-socrático. Esse traço
explicaria a origem e o sentido último de sua obra.
As explicações, com efeito, não se fizeram esperar. Nietzsche era
um ser dionisíaco, amante da música, e Sócrates era um apolíneo,
indiferente à música. Sócrates era ainda menos que um apolíneo (que
preserva um contato com suas raízes dionisíacas), era um teórico, um
racionalista, uma alma devorada pela obsessão da verdade. Nietzsche,
ao contrário, era um artista que ousava ter, nas suas relações com a
verdade, liberdades que Sócrates jamais se permitiria.
Todas essas explicações e muitas outras não chegavam, entretanto,
a dissimular um fato que foi se tornando cada vez mais visível para todos
os estudiosos que se debruçavam sobre a obra nietzschiana - a presença
nela, obsessiva, embora invisível, daquele homem, daquele mestre que
Nietzsche começara por repudiar. Ernst Bertram foi talvez o primeiro
- em todo caso foi o mais penetrante - dos críticos que tiveram uma
sensibilidade para esse fenômeno. Mas Bertram foi uma vítima do seu
próprio romantismo, que procurou projetar na personalidade estudada.
A presença invisível de Sócrates, na obra de Nietzsche, ele a atribui a
uma atitude nostálgica. Nietzsche teria a melancolia de não poder ser
como Sócrates. Bertram acumula, no capítulo do seu ensaio sobre
Nietzsche dedicado a Sócrates, um número impressionante de citações,
que provam pelo menos a freqüência com que a visão do ateniense
aparecia ao espírito do alemão; mas a questão de saber se essas frequen
tes visões eram frutos da nostalgia ou de uma concentração contínua sobre um modelo - um modelo que tinha o sentido de uma força viva e
atuante -, essa questão Bertram deixou informulada.
Bertram teve, sem dúvida alguma, o mérito de tornar suficientemen
te claro o fato de que o problema Sócrates, na obra de Nietzsche, é muito
mais complexo do que se poderia pensar numa primeira impressão. Os
fatos que mais calavam no nosso espírito, quando ainda estávamos sob
uma tal impressão, eram o caráter dionisíaco da natureza de Nietzsche
e seu envolvimento com a música. Sua primeira esperança de uma
regeneração da cultura, através dos efeitos produzidos por obras de arte
e em particular por uma criação musical, se situava bem nas antípodas
do ideal de um Sócrates - de um Sócrates antiartista e antimusical.
Sócrates parecera ser seu inimigo natural. E essa imagem de contornos
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hem firmes e nítidos parecera constituir uma viga mestra do edifício do
seu pensamento, embora houvesse aqui e ali uma observação, um reparo
que podia prejudicar a transparência da imagem que se tinha formado.Essa primeira abordagem de Nietzsche lembra uma abordagem de
Platão que não é incomum. Platão, como se sabe, expulsou os poetas de
sua República. Tanto bastou, para que se pensasse e se dissesse que
Platão era inimigo da poesia - essa é uma opinião que encontra ainda
hoje uma larga audiência. Ora, se Platão expulsou os poetas de sua
República, ele o fez num espírito de competição, em virtude do desejo
que tinha de assumir o papel que antes era atribuído aos poetas. Homero
havia sido o educador da Grécia, e todos os poetas que o tinham
sucedido haviam contribuído para essa grande obra da educação dos
helenos. Quando Platão surge, já a filosofia, por intermédio de Sócrates,
se apresentava com a intenção de ser a continuadora dessa grande obra.
A filosofia baseava sua pretensão no fato de ser uma força educacional
mais consciente, mais organizada, mais concentrada, mais deliberada,
no fato de ser uma força que produzia efeitos educacionais elevados a
uma potência superior. A filosofia não era inimiga, mas continuadora,
uma competidora substituta da obra dos grandes poetas. Essa era pelo
menos sua ambição, que pressupunha naturalmente alguma crítica, uma
crítica severa mesmo, mas sobretudo uma relação respeitosa com aquela
função, com aquela tradição - uma admiração, uma veneração por
aquela força, cujas funções queria agora assumir. Afinal de contas, a
influência que queria suplantar era a influência que modelara a Grécia.
Havia sido o elemento mais essencial na gestação dessa cultura grega
que o mundo inteiro admirava. O fato de Platão ter expulsado os poetas
de sua República, longe, pois, de trair uma natureza avessa à poesia,
revelava, ao contrário, sua natureza de grande poeta metamorfoseado
em filósofo. Essa é, aliás, a informação que nos transmite a tradição; e
é também a impressão que produz o conjunto de suas obras; trata-se,
portanto, de uma miopia singularmente curiosa procurar ver em Platão
um inimigo da poesia e julgar desnecessário explicar como, em tal caso,
poderiam florescer os dons que lhe permitiram escrever seus mais belos
Diálogos.
Com relação a Nietzsche, o mesmo fenômeno ocorre. Nietzsche
expulsou Sócrates de sua República, e por isso logo se disse que Nietzs
che era inimigo de Sócrates. Mas as razões dessa expulsão foram as
mesmas que moveram Platão. Sócrates havia sido o grande educador do
Ocidente. Nietzsche se apresentava como um competidor, um continua-
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dor, um substituto do grande ateniense. Era essa sua ambição, que
pressupunha naturalmente emulação, admiração, veneração por aquela
tradição, aquela força, aquela função que queria agora assumir. Afinal
de contas, Sócrates havia sido o mestre de todo o Ocidente, o principal responsável por uma cultura que se havia imposto ao mundo inteiro.
Nietzsche tinha suficientemente senso histórico para compreender que
sua ambição envolvia enormes responsabilidades. A expulsão de Sócra
tes de sua República dava, a quem a compreendesse, a medida exata da
ambição nietzschiana. Essa expulsão não podia, portanto, ser explicada
por motivos mesquinhamente temperamentais. Não se tratava do fato
de ter Nietzsche uma natureza avessa ao espírito socrático; seus motivos
tinham a ver fundamentalmente com uma imposição histórica e revelavam, ao contrário, uma natureza essencialmente socrática. Essa é, aliás,
a impressão que produz o conjunto das obras de Nietzsche; e certamente
trata-se aqjji também de uma miopia singular procurar ver em Nietzsche
um inimigo de Sócrates e julgar desnecessário explicar como, em tal
caso, puderam florescer os dons que lhe permitiram escrever seus
aforismos mais admiráveis.
Quando, em A Origem da Tragédia, Nietzsche nos descreve Sócrates
como uma “natureza completamente anormal em quem a sabedoria
instintiva não intervém senão para entravar, combater o entendimento
consciente”; quando diz que “enquanto nos outros homens, no que diz
respeito à gênese da produtividade, o instinto é precisamente a força
positiva, criadora, e a razão consciente desempenha uma função crítica,
desestimulante, em Sócrates o instinto se revela crítico e a razão criado
ra - verdadeira monstruosidade perfectum”; quando declara que “se
constata nisso uma monstruosa falta de toda disposição natural ao
misticismo” - quando focaliza, no Ecce Homo, os elementos que cons
tituem sua inteligência do socratismo: “Sócrates reconhecido pela pri
meira vez” (em A Origem da Tragédia) “como o instrumento da
decomposição grega, como o tipo do decadente” - quando faz tudo isso,
Nietzsche está na verdade formulando uma crítica e uma crítica severa.
Mas é curioso que na própria Origem, no parágrafo que precede ime
diatamente sua denúncia radical, Nietzsche pergunte a si mesmo, como
que assustado com a blasfêmia que pronunciaria logo a seguir:
Quem é este homem que sozinho ousa renegar a própria essência do helenismo;
que sozinho ousa se subs tituira Hom ero, a Píndaro, a Esquilo, substituir Fídias e Péricles,
suplantar a Pitonisa e Dionísio, e que como o abismo mais insondável e o cume mais alto
está certo de antem ão de nossa admiração e nosso culto? Oue força sobren atural ousa
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pensar t er o direi to de deixar se perder na poeira aquele filtro encantado? Quem é este
semideus contra o qual o coro invisível dos mais nobres entre os seres humanos se vê
reduzido a protestar Desgraça! Desgraça! Este mundo de beleza tu o derrubaste com
teu braço possante; ele cai, se desmorona!
Essa é a primeira, mas não é a única manifestação de veneração e
de respeito que a legenda de Sócrates provoca em Nietzsche. Muitas
outras e mais incisivas nos mostram como não há nele apenas assombro
diante do fenômeno socrático, mas também interesse, curiosidade, de
sejo de uma maior compreensão que permita uma emulação mais
perfeita. Não é por nostalgia que, no Ecce Homo, Nietzsche, o psicólogo
incomparável, nos diz que, em Schopenhauer educador e em Richard
Wagner em Bayreuth, quis abordar coisa totalmente diversa da psicolo
gia;
um problema de educação sem igual, uma nova concepção da disciplina de si, da defesa
de si mesmo, indo até a dureza, um caminho para a grandeza e para missões que
interessam a história universal, tudo coisas que precisavam ser expressas pela primeira
vez.
Nietzsche, o psicólogo, o conhecedor da alma humana, se mostra
então desinteressado pelo conhecimento que não visa a educação do
homem - tal como o Sócrates que nesses momentos procurava emular.
Não era por nostalgia que Nietzsche procurava desde sua juventude uma
forma de atividade capaz de metamorfosear o ser humano. O que
Sócrates fizera a seu modo cumpria fazer agora de modo diverso.
Sócrates escolhera a dialética; Nietzsche pensara a princípio que a arte,
a arte trágica, o drama musical de Wagner podiam realizar o milagre.
“Quando imagino”, diz em uma carta escrita a Erwin Rohde, logo após
o grande concerto wagneriano de Mannheim em 1871, “quando imagino
somente algumas centenas de homens, na próxima geração, experimen
tando pela música o que eu mesmo experimento, sinto nascer em mim
a esperança de que surja deles uma civilização absolutamente nova!” A
idéia volta nas Considerações que tratam “Da Utilidade e dos Inconve
nientes da História”:
Suponha alguém persuad ido de que bastam cem homens, não mais do que isso, mas
produtivos, educados e agindo com um espírito novo pa ra expulsar da Alemanha a falsa
cultura que justamente no momento está na moda; que força lhe daria saber que a
civilização do R enascimento emergiu deste modo, sobre os ombros de uma centena de
homens formada em coorte.
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Fala aqui o educador socrático, o homem impaciente para quem
tarda o momento de entrar em ação, não o pensador nostálgico que
evoca possibilidades irremediavelmente perdidas. Se tivermos disso
alguma dúvida, leiamos um pouco mais adiante, no mesmo livro: “Fechem ao redor de si o cercado de uma vasta e grande esperança [...]
Modelem em vocês mesmos uma imagem à qual corresponda o futuro
e esqueçam essa superstição de que vocês são Epígonos Bertram,
que levantou a hipótese da nostalgia, cita essas palavras que deveriam
tê-lo feito refletir melhor. Leiamos ainda:
Alimentem suas almas com Plutarco e ousem crer em vocês mesmos ao acreditar
em seus heróis. Com uma centena de homens educados de uma maneira tão poucomoderna, isto é, amadurecidos e acostumados ao heroísmo, pode-se agora reduzir ao
silêncio para sempre toda essa falsa cultura espalhafatosa de nosso tempo.
A idéia de uma Academia de Cavaleiros da Ordem do Templo,
platônicos, de uma Ordem dos Cavaleiros do Templo da Verdade, de
um monasticismo da arte, duma loja maçónica daqueles que foram
batizados pela música, de uma Academia de Adeptos do Grande Ho
mem - todos esses projetos se formam no espírito de Nietzsche no seu primeiro período, revelando a força de sua inspiração socrática. Por
vezes a Academia adquire um caráter tradicional, outras vezes um
caráter revolucionário, extravagante - mas invariavelmente permanece
a idéia de uma comunidade destinada a servir de alavanca para a
civilização que deverá surgir.
Mas até agora só temos falado do primeiro período da carreira
intelectual de Nietzsche, do livro A Origem da Tragédia e de todo o
mundo de experiências e de idéias que se organizou em torno dele. Com a experiência representada pela ruptura com Wagner, uma nova pers
pectiva se abre do ponto de vista das relações que já existiam entre
Nietzsche e Sócrates. O racionalismo, o intelectualismo que até então
haviam constituído a objeção fundamental de Nietzsche ao grande
ateniense passaram a ser revalorizados na personalidade de Voltaire. O
que acontecera? - Nietzsche perdera sua fé no poder regenerador da
arte. Seu retorno a Sócrates se faz então de maneira gradual e quase
inconsciente. Nietzsche escreve seu Humano, âemasiadamente Huma no: Um Livro para os Espíritos Livres. Esboçado durante a estação de
inverno em Sorrento (1876-1877), o livro não seria publicado, diz Nietzs
che, em começos de 1878, se a proximidade do dia 30 de maio não tivesse
suscitado nele o mais vivo desejo de oferecer a tempo uma homenagem
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pessoal a um dos maiores liberadores do espírito humano. O livro, um
monólogo, foi dedicado à memória de Voltaire, por ocasião do centési
mo aniversário de sua morte, em 30 de maio de 1778.
Nietzsche perdera sua fé no poder regenerador da arte. Perdera a
fé no poder liberador da música. E na ânsia de encontrar um novo
caminho capaz de levar o homem à liberdade, voltava-se para a perso
nalidade que, mais do que qualquer outra, fizera da razão sua bandeira
e sua glória.
E curioso lembrar que, justamente nesse curto momento de encon
tro com o filósofo do Século das Luzes, Sócrates tenha sofrido seu
primeiro e talvez único eclipse no firmamento de Nietzsche, eclipse
causado aparentemente pelo aparecimento do novo planeta; esse fato
não ocorrera no momento mais longo do encontro com Wagner, o que
teria parecido mais compreensível - curiosamente, o que se produzira
havia sido apenas, como já mostramos, uma visibilidade menor do
ateniense. No Humano, demasiadamente Humano, entretanto, as refe
rências a Sócrates que encontramos são todas, com duas ou três exce
ções, pouco significativas, de um teor negativo. E essas exceções, o
acordo registrado com opiniões socráticas ou com opiniões sobre Sócrates, dizem respeito a questões de tal modo conhecidas ou banais que
se diria ter sido a intenção de Nietzsche sublinhar que só em relação a
tais questões um acordo com Sócrates seria possível. Quando se trata
de assuntos que têm para ele uma significação maior, Nietzsche se
mostra então mais do que nunca irreconciliável. Sócrates, por exemplo,
era a “pedra” jogada nas engrenagens da máquina em movimento
acelerado da cultura grega, acidente que a fizera quebrar; era mestre
em determinados assuntos e por isso mesmo se tornara ignorante na
maior parte dos outros; era o marido de Xantipa, obrigado por ela a
viver fora de uma casa que lhe era hostil, reduzido a viver nas ruas onde
pudesse palrar e flanar; isso havia feito dele o maior dialético das ruas
de Atenas, o que não o privara do desejo de se comparar a uma mosca
que um deus teria colocado no pescoço daquela bela égua Atenas, para
deixá-la intranqüila; Sócrates era certamente o homem em quem Nietzs
che pensava quando dizia que a ironia só se justifica como meio peda
gógico aplicado por um mestre nas relações que tem com seus discípulos
- que em outras ocasiões ela era apenas falta de compostura, vulgarida
de d’alma, que corrompia o caráter de quem se habituava a ela e dava
origem, pouco a pouco, a uma qualidade de alegria maligna. A ausência
deliberada do nome de Sócrates nessas considerações levantava natu-
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ralmente a dúvida sobre se seria ele o mestre através de quem se
justificaria a ironia ou se não estaria ele ao contrário incluído na censura
da vulgaridade d’alma manifestada “em outras ocasiões”; essa suspeita
se reforçava com outra referência à ironia em que Sócrates é mencionado, sem que se saiba se e a propósito do aspecto negativo ou do aspecto
positivo da ironia - e com ainda uma outra, em que só o aspecto negativo
é mencionado; Sócrates finalmente, confia-nos Nietzsche, havia sido
muito bem retratado - não por Platão, que dele fizera uma caricatura,
mas por Xenofonte, que dele nos transmitira uma imagem verdadeira
mente fiel, exatamente tão inteligente quanto era o modelo - frase de uma
malícia que revela uma hostilidade incontrolável.
Foi somente dois anos mais tarde, no texto do Viajante e sua Sombra,
que as referências de Nietzsche a Sócrates passaram a ter um sentido
mais positivo. Merece um comentário essa incompatibilidade total que
se manifestou entre Voltaire e Sócrates quando, entre Wagner e Sócra
tes, se manifestara apenas uma incompatibilidade parcial. O curto
eclipse da figura de Sócrates, no período voltairiano, não ocorreria se
não tivesse havido, ao mesmo tempo, um eclipse do projeto educacional
no espírito de Nietzsche - e não há naturalmente prova mais evidente
da solidariedade que havia nele entre a figura de Sócrates e esse projeto.
Educado [diz Nietzsche nesse período desabusado] todo homem é, pelas circuns
tâncias, pela sociedade, pelos parentes, irmãos e irmãs, pelos acontecim entos do tempo,
do lugar: mas tudo isso é uma educação feita ao acaso, muito apropriada a dar de muitas
maneiras ao ser humano uma formação infeliz. Ora a humanidade no seu conjunto não
conseguiu ainda ultrapassar essa educação feita ao acaso: en travada que foi po r esta idéia
metafísica (que em botou mesmo o espírito agudo dum Lessing) de que Deus se respon
sabilizou pela educação dos homens e de que somos incapazes de compreender suas
intenções. Daqui po r diante a educação deverá se pro po r fins ecumênicos e excluir o acaso
mesmo no destino dos povos: - tarefa tão grande que uma espécie ab solutamen te nova
de educadores, uma organização nova de médicos, professores, padres, naturalistas,
artistas da antiga civilização...
Nietzsche não termina seu pensamento, mas é evidente que fala
aqui a voz do desânimo.
A extraordinária precariedade de todas as formas do ensino [diz-nos ele ainda maisadiante) que faz que cada adulto de nossos tempos tenha o sentimento de que seu único
educador foi o acaso - a versatilidade dos m étodos e dos fins da educação se explicam
pelo fa to de que atualm ente tanto as forças civilizadores mais antigas quanto as mais
recentes querem numa assembléia pop ular tumultuosa ser ouvidas mais que com preen
didas e demonstrar a todo preço, por seus clamores, que elas existem ainda ou que já
NIETZSCHE: O SOCRATES DE NOSSOS TEMPOS 121
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existem. Os pobres professores e educadores ficaram a princípio estonteados pela gritaria
^sens ata, depois reduzidos ao silêncio e finalmente atoleimados, suportando essas coisas
com a mesma resignação que revelam ao transm itir tudo aos alunos. Eles próprios não
são educados; como poderiam educar? Eles próprios não são troncos verdes e vigorosos,que cresceram sem desvios: quem q uiser se apo iar neles deverá se torcer e se curvar a fim
de toma r igualmente uma atitude contorcida e contrafeita.
Aqui o pensamento inconcluso do aforismo precedentemente cita
do é novamente abandonado - a tarefa de uma educação nova é tão
grande que é melhor esquecê-la. Nietzsche fixa seus olhos somente
sobre a miséria da educação de seu tempo, faltam-lhe forças para
retomar seu grande projeto.
Por mais estranho que isso pareça à nossa época [diz ele ainda uma vez], já houve
poetas e artistas cuja alma estava acima das paixões, de suas convulsões e de seus êxtases
e que por isso se deleitavam com assuntos claros e nítidos, caracteres dignos, intrigas e
desenlaces delicados. Se por um lado os grandes artistas de hoje são na sua maioria
capazes de dar livre curso à vontade e por isso mesmo, em certas circunstâncias, capazes
de liberar a vida, por outro lado, os outros, os de antigamente sabiam disciplinar a
vontade, metamorfosear o animal, ser criadores do homem e, em suma, ser escultores
que executavam a tarefa de m odificar e aperfeiçoar as formas de vida - enquan to hoje a
glória dos contemporâneos é procurada na rejeição das imposições, nos grilhões que se
partem, na destruição . Os gregos antigos pediam ao poeta que fosse o educador dos
adultos; mas que vergonha sen tiria hoje um poeta a quem fosse pedido isso, a ele que não
foi um bom professor de si mesmo e que não sabe por isso fazer de sua pessoa um bom
poem a, uma bela ob ra. O que ele é, na melhor das hipóteses, não passa de uma certa
forma de escombros de um templo, atraentes e inquietantes, mas também, com isso, de
uma caverna de apetites, recob erta como uma ruína, de flores, plantas cheias de espinhos,
ervas venenosas, caverna povoada e dom inada p or serpentes, vermes, aranhas e pássaros
- objeto de uma meditação entristecida que pergunta p or que se faz necessário que os
seres mais nobres e os mais preciosos se desenvolvam pa ra tomarem -se logo uma ruína,sem conhece r nem o passado nem o fu turo da perfeição.
Não pode haver expressão mais desolada de uma situação criada
pela educação “feita ao acaso”. Mas dois anos depois da publicação do
Humano, demasiadamente Humano, encontraremos no texto do Viajan
te e sua Sombra um luar de esperança. Nietzsche começa a entrever “o
lado perigoso da filosofia das luzes”. Citemos ainda esse aforismo, que
nos parece essencial para a compreensão do que se passa, neste momento preciso, no espírito de Nietzsche.
E um conjunto de traços quase dementes, histriónicos, bestialmente cruéis, volup
tuosos e sobretudo duma sentimentalidade sempre pronta a se embriagar de si mesma
que constitui o fundo propriam ente revolucionário e que a ntes da Revolução se tinham
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encarnado na pessoa e no gênio de Rousseau: ora, o indivíduo que esses traços definem
encon trou meios ainda de com um entusiasmo perverso colocara filosofia das luzes sobre
sua cabeça fanática; e ela começou a brilhar como que transfigurada por esse halo, essas
mesmas luzes que no fundo lhe eram tão estranhas, e que agindo por si próprias teriam
podido como um raio bri lhante atravessar tranquilamente as nuvens durante muito
tempo e se contentando em refoimar apenas os indivíduos poderiam depois reformar,
em bora lentamente, os costumes e as instituições dos povos. Mas agora, associada a um
fenômeno violento e brutal, a filosofia das luzes se fez ela própria violenta e brutal. O
perigo que ela representa se tornou quase maior que o elemento útil de emancipação e
esclarecimento que ela introduziu no vasto movimento revolucionário. Quem com preen
der isso saberá também de que confusão trata-se agora de arrancá-la e de que sujeira
purif icá-la a fim de que possa con tinuar cm seguid a p o r si m esm a a obra das luzes e de,
esmagando o germe da Revolução já acontecida, fazer como se ela não tivesse ocorrido.
Nietzsche começa aqui a se emancipar da sedução voltairiana, do
sortilégio da filosofia das luzes. Não estaria ele já em condições de voltar
ao seu velho projeto educacional e por isso mesmo de ceder, como
antigamente, à irresistível atração que exercia sobre ele o fenômeno
socrático? É na verdade o que vemos concretizado nesse mesmo texto
do Viajante e sua Sombra, no aforismo “Missionários divinos”, que
reconhece em Sócrates, sem reticências maiores, uma atitude corajosa
de liberdade em virtude da qual o missionário se coloca no mesmo nível de Deus. Logo em seguida, Nietzsche ainda prevê que, se tudo andar
bem, tempo virá em que, para o aperfeiçoamento da moral e da razão, se preferirá recorrer às Memórias de Sócrates antes que à Bíblia. “Sócrates”, diz Nietzsche, “tem sobre o fundador do cristianismo a
vantagem do sorriso que torna mais leve sua gravidade e a vantagem
dessa sabedoria um tanto travessa que constitui no homem seu melhor
estado de espírito.”
No prefácio de 1886 do primeiro volume do Humano, demasiada
mente Humano, Nietzsche reconhece que .inventou, num dia em que
tinha netessidade disso, “os espíritos livres” aos quais é dedicado o livro; isso era um embuste, mas quem poderia lhe dizer que grau de falsidade
lhe seria necessário para continuar a se permitir o luxo de sua veracidade
própria? Esses espíritos livres, Nietzsche não duvidava que a Europa os
tivesse um dia no futuro, ele já os via chegar, já previa seus contornos:
deveriam, em primeiro lugar, passar por um grande acontecimento, uma grande libertação - um grande abalo, um rompimento, um dilaceramen- to -, a alma que experimenta isso não compreende o que se passa. E um
elã, um impulso que comanda e que a submete a uma ordem - uma
vontade que desperta de partir não sabe para onde, a qualquer preço;
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uma curiosidade que se inflama em todos os sentidos, veemente, peri
gosa, um desejo de mundos virgens. “Antes morrer que viver aqui”, diz
a voz imperiosa e sedutora; e este aqui é tudo quanto havia amado até
então! Esse desejo absurdo, insólito, faz da alma que o experimenta um ser solitário, doentio, cada vez mais doentio à medida que esse desejo
vai se intensificando na afirmação de suas exigências. Mas de doença
em doença, o caminho para quem o segue leva a uma saúde transbor-
dante, que chega mesmo a fazer da doença um meio e uma isca para o
conhecimento; leva também àquela liberdade de espírito, amadurecida,
que dá ao espírito o privilégio de viver a título de experiência.
Um passo a mais nessa cura, graças às súbitas luzes de uma saúde,
por assim dizer, ainda vulcânica, ainda instável, e o espírito livre, cada vez mais livre, começa a adivinhar o enigma do grande acontecimento,
da grande libertação, até lá obscuro, problemático, intangível. Até agora
não havia ousado perguntar:
Mas por que esse isolamento? Por que essa renúncia a tudo o que se venera, por
que essa dureza, essa suspeita, esse ódio de minhas próprias virtudes? - a pa rtir desse
instante ele ousa formular a questão e ouve já qualqu er coisa como uma resposta: era
preciso qu e te to rnasses senhor de ti próprio, senhor tam bém de tuas próprias v irtudes.Eram elas que te dominavam antes; mas agora não lhes será permitido senão ser
instrumentos ao lado de teus outros instrumentos.
Tal é a resposta que dá o espírito livre à questão do grande aconte
cimento, da grande libertação. E ao conhecê-la, ele compreende que o
que lhe aconteceu deve acontecer a todo homem através de quem uma
missão deve se realizar.
Nesse magistral esboço que nos oferece de sua evolução espiritual, Nietzsche liga o problema dos espíritos livres ao problema da missão
que lhes era destinada. Não fica claro se “para ele” a consciência da
missão vem antes, durante ou depois da aquisição da liberdade. Fica
apenas claro que “para os outros” a missão deve se configurar depois
da liberdade. Nietzsche nos diz que o estágio a que pertence o Humano,
demasiadamente Humano, na evolução que acaba de descrever, não
seria segredo para o psicólogo ou para o adivinhador. Curiosa enume
ração: como se os poderes de um e de outro representassem forças idênticas. Penso por vezes que Nietzsche inconscientemente preferiria
que a questão permanecesse em segredo: pois logo após tê-la formula
do, ele se põe a perguntar, com uma certa volubilidade, se no mundo de
hoje existem psicólogos.
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Mas voltemos agora ao problema das relações entre Sócrates e
Wagner e entre Sócrates e Voltaire, no pensamento de Nietzsche. E
evidente que fora a consciência de uma missão que levara Nietzsche a
idealizar a figura de Wagner e a repudiar a figura de Sócrates. O
problema dos espíritos livres existia naquela época como que embutido
na consciência de uma missão. Wagner ia regenerar a cultura, ia libertar
os homens do espírito realista, otimista e teórico que a ciência criara. A
Origem da Tragédia era um grito de revolta contra o espírito estreito,
acanhado, mesquinho da vida acadêmica de sua época. Era, além disso,
o livro que fazia de um erudito um filósofo - um livro que lhe abria novos
espaços, criava um mundo de liberdade para quem até então se sentira
obrigado ao respeito pelos textos, pelos métodos de pesquisa convencionais, pela observância das regras de interpretação filológica. Pode-se
mesmo dizer que o mérito maior desse livro reside justamente no fato
de ter introduzido uma maior liberdade na maneira de se interpretar o
mundo antigo. Não se trata de um trabalho de scholarship clássico. Mas
contém uma boa quantidade de material que somente um scholar pode
ria conhecer; e pressupõe um certo número de coisas conhecidas de que
só um scholar teria noção. Só poderia, por conseguinte, ter sido escrito
por quem, independentemente do que pretendesse ser, fosse um scholar
autêntico. E se havia um grupo de leitores a quem parecesse se dirigir
de modo mais direto, ele só poderia ser composto de scholars simpati
zantes ou pelo menos de espírito aberto.
Acontece, entretanto, que esse não era o único aspecto da questão.
Ao lado dele havia um outro mais inquietante. Nunca se tinha visto um
scholar denunciar com um vigor maior, de sua cátedra, o socratismo
como heresia, o socratismo de que a ciência e a scholarship eram as
expressões mais legítimas; nunca se praticara também tão fielmente o
que se pregava, desrespeitando as normas mais óbvias da prosa acadê
mica e dando o curso mais pleno ao exercício de outras virtudes menos
socráticas. E se, apesar de tudo, o livro representava uma contribuição
significativa para a apreciação das realidades culturais e espirituais do
mundo antigo, deixava no espírito do leitor uma pergunta, uma questão:
como separar, como distinguir, nesse livro, o aspecto positivo do aspecto
polêmico, perturbador, talvez negativo?Apesar de Wilamowitz ter exercido uma influência considerável na
scholarship grega das épocas subseqüentes, Eduard Fraenkel - um dos
mais importantes scholars do nosso século e discípulo ele próprio de
Wilamowitz - sugeriu que o fator mais poderoso a influir nas diferenças
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de perspectiva entre a geração de Wilamowitz e a sua havia sido exata
mente a influência de Nietzsche. Diz ele: “A Origem da Tragédia foi a
principal fonte dessa influência e é um livro que continua a merecer
ainda hoje a atenção de todos os estudiosos sérios da Antiguidade”. Essa
é também a opinião de M. S. Silk e de J. P. Stern; o primeiro, um
especialista da literatura clássica dos gregos; o segundo, um especialista
da literatura alemã (que publicou também um livro sobre Nietzsche).
Esses doissc/to/a/s, trabalhando juntos, elaboraram um estudo sobre A
Origem da Tragédia - Nietzsche on Tragcdy (1981) - que é a coisa mais
completa e mais profunda que já surgiu até o presente momento sobre
o assunto. A conclusão a que chegaram coincide com o que dissemos
acima. A consciência de uma missão existia no filósofo desde o início e
não prejudicara a contribuição do filólogo. Mas o propósito de uma
maior liberdade, embora menos aparente, era tariibém profundamente
real. Esse propósito ficou talvez um tanto na sombra, porque até pouco
tempo se pensava que havia talvez, no Nietzsche filólogo, ao lado de
intuições profundas, uma certa tendência ao diletantismo. As críticas de
Wilamowitz tiveram um efeito que custou a morrer. Hoje, entretanto,
vemos com a maior nitidez que, desde o início, a consciência de uma
missão e a aspiração a uma maior liberdade eram, em Nietzsche, coisas
tão intimamente associadas quanto sua consciência filológica e sua
vocação de filósofo. A aspiração à liberdade não tinha, no começo, a
forma de um grande abalo, de um rompimento, de um dilaceramento -
não era uma vontade de partir não se sabe para onde, a qualquer preço,
um desejo de mundos virgens -, não era uma voz que dizia “Antes
morrer que viver aqui”, mesmo sabendo que este aqui era tudo quanto
se havia amado até então. Não, essa era uma aspiração à liberdade que
se dissociara da consciência de uma missão. A aspiração à liberdade de
A Origem da Tragédia ainda estava embutida na consciência de uma
missão, e era por isso que o livro fora o veículo de uma denúncia que,
de tão radical, parecia estranha e descabida num scholar.
No Humano, demasiadamente Humano, a consciência de uma nova
missão como que se apaga. Nietzsche dedica o livro a Voltaire, aos
espíritos livres, mas, como ele próprio confessa no prefácio de 1886, isso
havia sido um embuste. Decepcionado com Wagner, tendo abandonado
Sócrates, Nietzsche se sente de tal modo isolado que é levado a inventar
um fantasma que pudesse lhe servir de companhia - “Voltaire, o espírito
livre”. Data de então seu uso de ilusões, de máscaras para “preservar
sua veracidade”. Com Schopenhauer, com Wagner, sua relação havia
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sido equivocada, mas não simulada, não consistira na criação de um ser
fictício. Durante seu entusiasmo por Schopenhauer ou por Wagner, sua
consciência de uma missão era viva; e ilusões, se haviam, não eram
deliberadas; a aspiração à liberdade, embora dissimulada, também
estava presente. Mas sua homenagem a Voltaire era um embuste; a
consciência de uma missão se apagara, e a aspiração à liberdade, por
conseguinte, não encontrava meios de se exprimir através de um projeto
em que se manifestasse.
Como explicar então os ares misteriosos de Nietzsche, a questão
sobre o estágio de evolução a que correspondia o Humano, demasiada
mente Humano, a suposição de que esse estágio não seria um segredo
para o psicólogo ou para o adivinho? Nietzsche parece crer ter encon
trado um caminho para dar corpo e realidade à sua aspiração à liberda
de. A homenagem a Voltaire e aos espíritos livres é um embuste incapaz
de dar a essa aspiração um cumprimento efetivo; esses espíritos livres
não existem, mas Nietzsche seria o último a negar que eles pudessem
algum dia existir; ele já os vê chegar e talvez mesmo possa apressar sua
chegada descrevendo por antecipação sob que estrela ele os vê nascer;
é o embuste então que põe Nietzsche no caminho do grande aconteci
mento, da grande libertação, do sentimento de abalo, de rompimento,
de dilaceração, no caminho do impulso, da vontade de partir para não
sabia onde, do desejo de morrer ao invés de ficar aqui, mesmo que esse
aqui fosse tudo quanto se tinha amado antes, desse desejo insólito capaz
de levar finalmente àquela liberdade que dá ao espírito o privilégio de
viver a título de experiência. Quando Nietzsche chega a esse estágio, sua
aspiração à liberdade já tem um cumprimento efetivo. E tudo bem
considerado, foi o embuste que conduziu a aspiração a esse feliz desenlace.
E a consciência de uma missão? - Estava evidentemente apagada
na hora do embuste. Mas logo que este começa a produzir seus efeitos,
logo que a aspiração à liberdade começa a ter seu cumprimento efetivo,
a consciência de uma missão desperta do seu estado letárgico. A figura
de Sócrates começa de novo a adquirir um certo relevo. No livro Aurora:
Pensamentos sobre os Preconceitos Morais, que foi escrito logo depois
de Humano, demasiadamente Humano, Nietzsche declara que “o ceticismo de Sócrates a propósito de todo o conhecimento moral continua
a ser sempre o acontecimento fundamental - não tem ficado esquecido”
(fragmentos póstumos). Sócrates aqui se levanta no firmamento de
Nietzsche como um astro que brilha depois de um eclipse em que
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extremo rigor com que são interpretadas as consequências da moral
cristã. Para compreender essa situação, o ódio cristão do Eu a que
recorre, por exemplo, Bertram, não tem força explicativa. O ódio cristão
do Eu só tem sentido dentro de um contexto cristão. O cristão cujo ódio
contra si mesmo levasse ao anticristianismo seria como o homem que
procurasse remover o tapete sobre o qual ele próprio estivesse sentado.
Não, a peculiaridade do anticristianismo de Nietzsche se explica
pelo fato de estar a imagem de Cristo, no seu espírito, intimamente
associada à problemática de Sócrates. Existe a possibilidade de conce
ber-se um cristianismo cético, uma moral cristã renovada pelo ceticis
mo? Essa é uma pergunta que, na obra de Nietzsche, encontra resposta,
uma resposta provisória, apenas em A Gaia Ciência. Neste livro, Nietzs
che nos fala do ceticismo moral no cristianismo - um ceticismo “que já
existia com relação à atitude das grandes figuras virtuosas da Antigui
dade - esses homens populares imbuídos de sua perfeição que caminha
vam com pose de toureiros” - e nos fala também dos progressos desse
mesmo ceticismo que, diante dos livros cristãos, tem o mesmo sentimen
to de superioridade que os cristãos possuíam com relação aos antigos.
Mas a resposta definitiva a uma tal pergunta ficou ainda por ser dada.
A indagação, entretanto, havia sido feita com a nitidez necessária para
que não se confundisse o anticristianismo de Nietzsche com as outras
formas de irreligiosidade a que nos referimos acima. A resposta defini
tiva deixou de ser dada, mas Nietzsche nos surpreende, no final do Ecce
Homo, com aquela imagem de Dionísio em face do Crucificado - seria
essa a expressão de um cristianismo socrático? A obra de Nietzsche é
uma obra truncada, uma obra inacabada, um torso que nos dá apenas
uma idéia incerta do que seria o corpo inteiro. Mas de uma coisa
podemos ter certeza: esse torso estava sendo esculpido no mais puro
estilo socrático.
A partir de Aurora, Sócrates é um astro que não mais desaparece
do firmamento de Nietzsche. O seu questionamento, a sua dialética
tomam, na obra nietzschiana, a forma de uma suspeita universal, uma
suspeita que se estende sobre todas as coisas. Uma suspeita engendra
outra suspeita. Tudo o que até hoje foi considerado bom, verdadeiro,
justo, é submetido a uma dúvida, dúvida muito mais radical do que a
dúvida cartesiana. Não há, para ela, como existe para Descartes, um
desenlace, uma primeira certeza que, como um porto seguro, abrigue o
veleiro batido pelas tempestades da travessia perigosa e incerta. Como
tudo é dúvida, a realidade desaparece, permanece a aparência apenas.
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Mas a aparência não engana. Sabe-se que a aparência é aparência, que
é apenas uma máscara. E o mundo se dissolveria num jogo de sombras
e de ilusões, se o questionamento socrático, se a dialética socrática e se
a suspeita nietzschiana não tivessem sido motivadas por um impulso
moral, pela visão de um objetivo real, pela antecipação das idéias, das
realidades platônicas, no caso de Sócrates, e, no caso de Nietzsche, pela
esperança de uma máscara que fosse divina, verdadeira, objetiva, real e
não histriónica, produto espúrio de uma simples aparência.
Entretanto, não havia outro meio de chegar à divindade senão pelo
emprego das máscaras histriónicas. Era o método que Nietzsche já
empregara inconscientemente, mas de que agora se apropriava para um
uso totalmente consciente. O seu Sócrates “fanático do conhecimento
moral” fora a primeira das máscaras que empregara na sua prática
inconsciente do estilo socrático de pesquisa, o estilo de comunicação
indireta. O Schopenhauer educador e expressão de uma cultura forte e
pessimista fora a segunda dessas máscaras. Wagner, o regenerador da
cultura alemã, uma terceira. Voltaire, o patrono dos espíritos livres,
havia sido a quarta. E Sócrates, de novo, “fanático do ceticismo moral”,
havia sido a quinta, que fechara essa série e abrira um novo ciclo de
máscaras histriónicas, que exprimiam agora não mais as ilusões de
Nietzsche, ilusões inconscientemente entretidas, mas ficções delibera-
damente elaboradas por ele e que faziam parte do vasto mundo de
possibilidades, em que se comprazia com uma liberdade novamente
adquirida e que lhe dava o privilégio de poder experimentar com a vida.
A máscara histriónica era para Nietzsche uma imposição do mundo
em que vivia. Quando se vive cercado de histriões, não há outra maneira
de comunicação humana. A máscara histriónica é uma forma de comunicação indireta que permite lançar pontes para formas de existência
ainda não contaminadas pelo histrionismo. Essa é a sua esperança e a
sua justificação. Quem pretender dar combate à cidadela do histrionis
mo sem nela se insinuar primeiro, de modo cauteloso e clandestino,
quem pretender enfrentá-la de fora, num afrontamento de forças primi
tivo, verá, em pouco tempo, que uma nova cidadela muito mais irresis
tível e envolvente surgirá do solo, como que por um milagre, para
enclausurá-lo em seu espaço próprio.Kierkegaard utilizava o método da comunicação indireta para re
mover ilusões. Utilizava a ironia, o riso, para arrancar da distração de si
mesmo quem esquecera que a existência do pensamento era diferente
da existência do pensador. Nietzsche utilizava o método de comunica
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ção indireta para entreter ilusões. Essas ilusões lhe permitem experimen
tar com a vida, transformar a vida de modo que passe de sujeito a objeto
de experiência. Será essa talvez a única maneira de lutar contra o
histrionismo. Quando a vida é sujeito de experiência, a experiência como
que já está condicionada pelas realidades do sujeito - a experiência será
histriónica se o sujeito é histriónico, o que é quase sempre o caso. Mas
quando a vida é objeto de uma experiência, o sujeito que experimenta
pode determinar o condicionamento da experiência, ele está livre, com
uma liberdade divina, para escolher as condições em que a experiência
vai se realizar, o propósito a que vai obedecer, os perigos que deve evitar.
Só há um pressuposto para essa liberdade absoluta: o experimentador
deve ser um psicólogo consumado, um mestre insuperável na arte de ler
e de interpretar o coração dos homens. Sem isso, ele não será capaz de
criar uma ilusão que tenha força de convencimento, que nos dê a
impressão de que é um ser real com quem se pode falar e não um
fantasma, uma simples aparência histriónica. Sem isso, ele não será
capaz de nos dar a impressão de que está presente, quando está ausente
dos seus textos, e de que está ausente, quando está presente. A psicolo
gia é o grande instrumento nietzschiano para executar seus projetos de
comunicação indireta. Muito mais do que uma ciência, ela é para ele
uma arte. Com a psicologia, ele não descobre verdades, produz ilusões.
Mas essas ilusões são meios infalíveis de se chegar à verdade. A psico
logia, em Nietzsche, atingiu esse grau supremo de integração de todos
os seus elementos, grau supremo em que a verdade se anuncia não tanto
pelo fato de corresponder a uma realidade, mas sobretudo pela vontade
de correspondência que desperta, pelo poder de atração que exerce,
iluminando, transfigurando o mundo, numa forma de relacionamento
em que ilusão e realidade se entrelaçam, cada uma se alimentando da
outra, cada uma dando e recebendo da outra aquela força sem a qual
não existem nem verdade nem realidade.
A utilização das máscaras pressupõe naturalmente uma auto-inter
pretação de quem as usa. Ao interpretar Sócrates como fanático do
conhecimento moral, otimista e teórico, Nietzsche, na realidade, estava
se auto-interpretando como o campeão da vida instintiva e dionisíaca,
musical e poética. Ao interpretar o pessimismo de Schopenhauer como
uma manifestação de força e de virilidade e o drama musical de Wagner
como um renascimento da arte trágica dos gregos, Nietzsche estava se
auto-interpretando como o anunciador de um novo tipo de cultura,
como um profeta, como um filósofo que tinha rompido os quadros do
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conhecimento científico, filológico da Antiguidade clássica e da cultura
histórica de seu tempo, animado que estava de um novo espírito que
enriquecia o presente como a união fecunda do passado e do futuro. Ao
interpretar Voltaire como o patrono dos “espíritos livres”, Nietzsche se
auto-interpretava como o viajante em busca de liberdade, que se dispõe
a fazer a grande despedida, a despedida de tudo o que lhe era mais caro,
do lugar que mais amava, para partir, sem saber para onde, para regiões
inóspitas e desconhecidas. E finalmente, ao interpretar Sócrates como
o fanático do ceticismo moral, Nietzsche teve uma sensação de. Aurora,
a revelação de novos horizontes, sensação que o fez conceber, de uma
maneira inteiramente outra, sua missão, sua tarefa, seu dever. O que lhe
cabia agora era enfrentar as imensas dificuldades de um trabalho sub
terrâneo, um trabalho a ser executado nas condições mais precárias: o
que lhe incumbia agora era solapar os alicerces, as bases do mundo em
que vivera enclausurado, solapar a velha confiança sobre a qual esse
mundo fora construído, a velha confiança na moral.
A partir desse momento, a obra de Nietzsche, como um rio cauda
loso que encontra seu leito, prossegue em seu curso agitado, tumultuoso,
mas invariável e contínuo. Nietzsche se auto-interpretava agora como
um ser subterrâneo, solapador. Fundara sua escola, a “escola da suspei
ta”; e essa sua atividade destruidora, no subsolo das regiões onde se
articulam as idéias, não deixa de ter um efeito negativo sobre sua saúde.
Depois de solapar a velha confiança na moral, muitas outras coisas
perdem também sua validez: o filósofo já não pode mais ser considerado
um ser privilegiado, cujas idéias independem de seus humores, de suas
condições físicas, psicológicas e vitais. A veracidade de um filósofo tem
algo a ver com seu estado de saúde, com a doença que o domina ou com
o grande sofrimento que o libera. A verdade não é mais confiável,
quando se lhe retira o véu que a cobria. “Aviso aos filósofos”, exclama
então Nietzsche: “Dever-se-ia honrar melhor o pudor com o qual a
natureza se dissimula por trás dos enigmas e das incertezas coloridas”.
Em outras palavras: dever-se-ia honrar no filósofo o pudor da vontade
de saúde, tanto quanto o orgulho da vontade de veracidade.
O trabalho subterrâneo continua. A inspiração socrática o anima.
E apesar dos riscos dessa atividade de solapa que lhe solapa também a
saúde, Nietzsche consegue afinal recuperar as suas forças, a confiança
na vida, a alegria, um sentimento mais delicado das coisas e uma
coragem ainda maior para enfrentar novos perigos. A Gaia Ciência, o
ceticismo moral de Sócrates dão agora origem a frutos saborosos.
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Biblioteca Universitária
________UFSC
Quando o insensato grita na praça pública: “Deus está morto! E fomos
nós que o matamos!”, todo mundo se cala e o olha sem o compreender. O insensato se cala também, mas retoma logo em seguida seu discurso,
depois de lançar ao solo sua lanterna: “Cheguei cedo demais, meu
tempo não veio ainda”. O silêncio da multidão não mais o desconcerta,
explica para si mesmo que “o acontecimento formidável está viajando e
vem vindo; não chegou ainda ao ouvido dos homens. É preciso tempo
ao raio e ao trovão, é preciso tempo à luz dos astros, é preciso tempo às
ações para que seus efeitos sejam vistos e ouvidos”.
Aqui vemos como a confiança de Nietzsche já não é mais abalada
pelo silêncio que o envolve. É a Gaia Ciência. Pouco adiante no livro, a
imagem de Sócrates morrendo lhe dá a oportunidade de dizer que
“admiro a coragem e a sabedoria de Sócrates em tudo o que ele dizia e
não dizia” - e isso é quase uma confissão de amor. Só um homem
plenamente reconciliado com a vida poderia se exprimir dessa maneira. Não devemos nos esquecer de que, no seu primeiro período, a grande
objeção de Nietzsche a Sócrates era seu otimismo teórico, sua crença
de poder, através da razão, da ciência, reengendrar a cultura. Na sua
fase mais racionalista, voltairiana, Nietzsche não fora nem pessimista
nem otimista. Mas depois do grande abalo, da grande libertação, na
escolha do caminho que o levava a se despedir de tudo aquilo que amava,
de tudo aquilo que lhe era mais caro - houvera nele um morrtento de
confusão, em que doença e pessimismo pareciam provir da mesma
origem. Agora, depois dessa experiência terrível, em que tudo ao redor
de si parecera vacilar, Nietzsche recobrava seu equilíbrio, sentia que
podia de novo ter confiança na vida. E a fisionomia de Sócrates, para
ele, também mudava. Fora um engano pensar que Sócrates era um
otimista. Sócrates soubera bem dissimular seu pessimismo. O pessimismo que dissimulava a ponto de parecer otimismo tornava-o próximo, inesperadamente próximo, de Nietzsche; tão próximo que parecia estar
prestes a operar o grande milagre, a grande transformação: arrancar
Nietzsche, com mão firme e persuasiva, de sua maior solidão.
É nesse estado de euforia que surge a concepção do Zaratustra. A
sabedoria de Nietzsche começa a incomodá-lo, ele se sente como a
abelha que acumulou mel em demasia, tem necessidade de ver mãos
estendidas para ele para que possa distribuir o que possui. Aparentemente, a influência de Sócrates parece ter chegado aqui a seu ponto
máximo. Nietzsche pensa que, como Sócrates, poderá ter discípulos. A
idéia de encontrar um discípulo, um ser humano sobre quem possa agir
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diretamente, começa a exercer sobre ele uma poderosa influência. As
circunstâncias de sua vida exterior vieram ao encontro dessa disposição
íntima, para a qual tinham concorrido todos os fatos da evolução do seu
espírito tal como a viemos descrevendo. Nietzsche conhece, em Roma,
Lou Salomé, hóspede como ele de Malvida von Meysenburg.
Do nosso ponto de vista - que é o da influência que Sócrates teve
sobre Nietzsche -, a história do relacionamento do filósofo com Lou
Salomé tem uma grande importância. E possível que, de outros pontos
de vista, ela tenha menos. Mas, se quisermos saber por que transforma
ções passou a inspiração mestra da vida de Nietzsche - a inspiração
socrática - durante o período desse relacionamento, deveremos sem
sombra de dúvida fazer uma pausa para examinar com o maior cuidado
em que consistiu essa experiência.
A idéia do Zaratustra, como já dissemos acima, foi concebida sob
os melhores auspícios. Infelizmente, em abril de 1S82, quando já estava
escrita a Caia Ciência, que se compunha então de apenas quatro livros,
Nietzsche encontrou, em Roma, Lou Salomé. O filósofo estava predis
posto para o encontro de um ser humano que quisesse ser seu discípulo,
como, nos tempos de seu professorado, estivera predisposto para encontrar um ser humano que quisesse ser seu mestre. O relacionamento
de Nietzsche com Lou Salomé reproduz exatamente o mesmo tipo de
experiência que o filósofo tivera com Wagner, com uma única diferença
- num caso ele era o discípulo, no outro era o mestre. Nos dois casos, a
aparência foi tida por realidade, a máscara histriónica por máscara do
divino. Nietzsche, sempre sob a influência de Sócrates, se auto-interpre-
tou como discípulo no primeiro caso, como mestre no segundo. E agora
que ele já tinha elaborado seu método de comunicação indireta, agora que as últimas objeções ao otimismo de Sócrates tinham desaparecido,
tudo levava a crer que tivesse chegado ao ápice daquela sua evolução,
no sentido de uma sempre maior identificação com o destino do ate
niense: pois agora não se apresentava até mesmo a oportunidade, feliz
entre todas, de acompanhá-lo nas suas menores circunstâncias, na ação
direta sobre um ser humano que se revelara especialmente apto a
assimilar seus ensinamentos?
O Zaratustra poderia ter sido enriquecido por essa bela experiência.
Mas as coisas tomaram um rumo diferente. O relacionamento com Lou
não proporcionou a Nietzsche uma experiência de mestre; ao contrário,
repetiu-se a decepção que lhe causara o relacionamento com Wagner -
e, em termos tão semelhantes, embora num registro diferente, que o
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che (inclusive a de que sua filosofia deve ser procurada não na obra por
ele publicada - um simples hors d ’oeuvre - e sim nos escritos póstumos),
parece, apesar disso, ter tido uma predileção especial pelo Zaratustra,
que se julga em condições de explicar. Mas suas explicações tornaram
o livro ainda mais incompreensível. Não é que as idéias expressas nessa
obra sejam obscuras; a objeção que se lhe pode fazer é, ao contrário, o
excesso de clareza, a forma importunamente direta com que são trata
dos os problemas. O que falta ao livro não é a clareza, é força de
persuasão. As opiniões de Zaratustra nos são transmitidas em fórmulas
acabadas, sem que tenhamos tido a possibilidade de penetrar na intimi
dade dos sentimentos e das experiências que levaram o profeta a essas
fórmulas. Quem leu as outras obras do filósofo ou acompanhou de muito
perto sua evolução espiritual, compreenderá melhor o livro, mas essa
compreensão não insuflará, na concepção do Zaratustra, um maior
sopro de vida. Zaratustra é uma personagem com quem não temos o
menor contato. E, aliás, muito menos um personagem que uma paródia,
uma paródia que corresponde não a uma experiência, mas a uma
frustração, e que, por isso mesmo, é muito menos um símbolo que um
esquema. Zaratustra é o caminho do super-homem, diz-nos Nietzsche.
Mas ele nos parece mais ser o super-homem, não a experiência do
super-homem, mas sim um esquema destituído de vivência. O caminho
é justamente o que falta ao livro, o caminho, isto é, o percurso, as etapas
que precisariam ser vencidas para se chegar a uma tal vivência - o
caminho socrático.
Foi assim que, no momento em que Nietzsche parecia aproximar-se
mais da experiência socrática, o recuo se tornou mais sensível. Imagine-
se um Sócrates destituído de ironia, revelando suas convicções mais
íntimas, pregando artigos de fé em praça pública, dirigindo-se a coleti
vidades. Em vão se procurará no Zaratustra uma idéia expressa de
maneira indireta. As imagens de que está sobrecarregado o estilo do
livro apontam diretamente para o sentido que devem exprimir. Toda
poesia associada a tais imagens parece incapaz de nos atrair a um círculo
mágico de emoções, sentimentos e vivências. Reconhecemos a beleza, a
justeza das imagens, mas não nos deixamos envolver por elas. Uma
sensação inexplicável de estranheza, de distância, de alheamento para
lisa qualquer movimento em direção ao mundo que essas imagens
pretendem evocar - a um mundo que está muito claramente definido
para que tenha o dom de nos sensibilizar.
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O que ocorreu então? No momento em que Nietzsche mais parecia
estar se aproximando de Sócrates, um abismo se abriu entre os dois. O
uue garantia a proximidade de Sócrates era, para Nietzsche, o uso das
máscaras. Mas Nietzsche, no Zaratustra, escolheu a paródia, não a
imitação cômica e burlesca, mas a analogia sem humor, a analogia com
uma intenção de malícia, que não chegou a se concretizar. A paródia
cômica seria um equivalente da máscara e manteria Nietzsche na pro
ximidade de Sócrates. Mas ele escolheu a paródia sem comicidade, onde
o riso só era lembrado nas exortações de Zaratustra: “Aprendei a rir”.
Ora, o uso da paródia grave implica um procedimento totalmente
diverso daquele que é empregado no uso das másearas. A máscara
dissimula a verdade ou cria uma ilusão para remover outra ilusão, a
paródia cômica ataca indiretamente a ilusão, provocando o riso. Mas a
paródia sem comicidade corre frequentemente o riseo de não deixar
suficientemente claro que está tentando estabeleeer uma analogia. A
paródia sem comicidade é uma forma de comunicação direta, principal
mente por isto: não consegue tornar visível e presente a realidade de
que pretende ser a expressão indireta; o que era meio torna-se fim; e o
mundo que nos apresenta fica assim privado de qualquer transparência,
como se fosse ele, e não um outro, que devesse constituir o objeto do
nosso maior interesse.
Como se vê, nada poderia ser mais anti-socrático. R. J. Hollinrake,
no seu livro Nietzsche, Wagner e a Filosofia do Pessimismo, faz-nos ver,
em seus mínimos detalhes, a fidelidade com que Nietzsche, no seu
Zaratustra, parodiou não só o Anel dos Nibelungos como também o
Purfisal de Wagner. Mas quantos anos se passaram sem que fosse
sentida a analogia! E mesmo agora, quando devemos nos render à
evidência dos fatos, a importância do livro não parece aumentar. Hol
linrake mostra-nos também como a idéia do Eterno Retorno surge como
uma réplica e como uma paródia ao pessimismo cristão-budista de
Wagner e Schopenhauer. Essa idéia, que tem sido apresentada como
um mito, é o melhor exemplo que se pode oferecer da ineficácia da
paródia sem riso, quando o intuito que se tem é o de remover a ilusão
de um mundo que tem um sentido e uma finalidade. Nietzsche, como já
mostramos, viera se reaproximando de Sócrates com uma compreensão
cada vez mais clara do problema do pessimismo. O seu aforismo “Só
crates morrendo”, no final do Livro IV da Gaia Ciência, nos faz ver
como, já naquela época, não existia mais, para ele, uma incompatibili
dade qualquer entre os dois pólos fundamentais de sua problemática -
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o pessimismo e o otimismo. É possível que, na primeira visão do Zara-
tiistra, ele tenha julgado viável fundir numa só imagem esses dois pólos,
conservando-se na companhia do ateniense. Mas interveio então a
experiência de Lou Salomé. A jovem russa lhe fizera lembrar, de uma maneira vivíssima, sua experiência com Wagner, reabrira chagas que só
lentamente iam se cicatrizando. Reagindo a Lou, foi sobre Wagner que
se concentraram suas baterias .Zaratustra se transformou numa paródia
à obra de Wagner. E o Eterno Retorno, tema principal desse livro, passou a exprimir, num estilo descarnado, esquemático, de paródia sem
comicidade, aquela visão tão cara a Nietzsche e que se exprimira de
modo tão convincente na sua interpretação da época trágica dos gregos,
na sua rejeição de um Sócrates otimista e na sua reaproximação do
“Sócrates morrendo”, na véspera do passo equivocado que daria mergulhando na concepção do Zaratustra.
Tem-se procurado explicar o Eterno Retorno de mil maneiras
diferentes. As explicações mais benévolas o definem como um princípio
disciplinar, um dogma a que não se deve atribuir o valor da verdade. Separa-se assim a “norma”, o “princípio disciplinar”, da verdade que
lhe deveria ser inerente. Mas não é isso justamente a negação de todo o esforço nietzschiano, que é um esforço socrático, no sentido de unir
norma e verdade, conhecimento e virtude? Quando Nietzsche ataca as idéias morais, em nome da veracidade, da probidade intelectual, não
está ele querendo encontrar idéias morais que sejam também verazes?
Quando denuncia o instinto plebeu de tudo querer saber - quando o
próprio das naturezas aristocráticas é ter confiança em instintos não
analisados -, não está ele querendo encontrar idéias morais que já
tenham dentro de si a garantia, o selo, a autoridade conferida por uma inata veracidade? Essas duas atitudes, que seriam contraditórias em
qualquer outro pensador mas que, em Nietzsche, se completam de modo
essencial, só se justificam pelo socratismo - como um esforço para
consolidar a idéia de virtude através da reflexão e do conhecimento - e
para intensificar a força da inteligência reflexiva e do conhecimento
através de um contato com essa idéia de virtude assim consolidada. Toda
a obra de Nietzsche pode ser representada como um movimento de
oscilação entre esse dois pólos - a moral e a verdade pólos naturalmente nem sempre visíveis, mas sempre atuantes por baixo dos mil disfarces, dissimulações, divagações mesmo que constituem, nessa obra
multiforme, os processos obrigatórios sugeridos pelo método de comunicação indireta.
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E o que vemos com o mito do Eterno Retorno? - Um princípio
disciplinar, sem força disciplinadora. Um mito sem força comunicativa;
uma idéia que a ciência repudia com escárnio; um tema que representa
verdadeirametne o fulcro do pensamento de Nietzsche, mas que, em
virtude do método de comunicação direta pelo qual foi transmitido, jaz
diante de nós como um cadáver, vítima de incompreensões e de uma
rejeição desdenhosa.
E uma coisa, pelo menos temerária, permitir-se alguém impugnar
com seu veto uma obra já consagrada como o Zaratustra. A rejeição é
tanto mais atrevida por ser o próprio Nietzsche - cuja grandeza nem de
longe se pretende desconhecer - quem nos afirma que é esse o seu livro
mais extraordinário, uma dádiva única com que a humanidade se enri
queceu. O enorme sucesso que teve o livro, logo em seguida ao colapso
de Nietzsche, parece ser também um argumento irrespondível. Não só
críticos, poetas, escritores e intelectuais eminentes, mas também o
grande público, passando por políticos, jornalistas e governantes, se
deteve diante daquilo que consideravam uma reivindicação da natureza,
com admiração e respeito. O brilho da forma, a maestria incomparável
do estilo desafiavam qualquer comparação. E, entretanto, um sentimento de frustração, a consciência de uma incapacidade de chegar até o
livro, de incorporá-lo à nossa vivência, de senti-lo como um elemento
nosso, devidamente assimilado e apropriado, não deixou nunca de
acompanhar quantos se debruçavam sobre ele num esforço superlativo
de absorver-lhe o conteúdo. O princípio disciplinador, longe de nos
disciplinar, levantava uma barreira que impedia qualquer contato real
de Nietzsche com seus leitores. O silêncio que cercara o livro, durante
a vida consciente do autor e que tanto o amargurara, havia sido substituído por um sucesso ruidoso depois do seu colapso; mas nem por isso
desapareciam as barreiras que dificultavam de modo implacável o
acesso à realidade mais íntima do filósofo. Entretanto, quem ainda hoje
ousa duvidar da justeza da opinião de Nietzsche sobre o próprio livro,
e mesmo quem se atreve a duvidar da justeza de qualquer opinião
favorável, mas menos exaltada sobre ele, deverá encontrar um apoio
firme onde escudar-se - pois avassaladora é a influência de um renome
que foi criado a partir de uma mistura estranha de elementos espúrios,
pitorescos, sensacionalistas, mas também reflexivos, genuínos e verazes.
O que me dá coragem de afirmar que o Zaratustra é um livro que
não conseguiu realizar os objetivos a que se tinha proposto, um livro de
um certo modo raté, é sem sombra de dúvida o exemplo de Sócrates.
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Salomé, a frustração da expectativa de ter um discípulo, um ser humano
sobre quem pudesse agir diretamente; a reabertura de chagas mal
cicatrizadas. Lembremo-nos de que a ruptura com Wagner causara um
efeito análogo: Nietzsche se afastara de Sócrates, embora não tivesse
tido então o impulso de abandonar o método da comunicação indireta.
Hollinrake, no seu livro sobre Nietzsche, nos diz que, “de acordo com
certas alusões feitas em carta por Ida Overbeck, Lou recebia por vezes
uma parcela do crédito pelo Zaratiistra”. Cita também um trecho da
carta de Kõselitz a Hofmiller, de 10 de novembro de 1896: “O fato de
ter sido Lou quem alçou Nietzsche a tais alturas himalaias faz dela um
objeto de reverência”. Finalmente o próprio Nietzsche, em Ecce Homo,
reconhece que a idéia do Zaraluslra surgiu na mesma época que o Hino
à Vida (para coro misto e orquestra), cujo texto era composição de Lou.
Na nossa óptica, entretanto, Lou deveria antes receber, pelo fato
de sua associação com o Zaratustra, uma parcela, e mesmo uma grande
parcela, de descrédito (se não houvesse ainda outras razões para desa
creditá-la). Devia ser objeto não de reverencia mas de censura. Lou nos
parece ter representado, na vida de Nietzsche, um elemento totalmente
negativo, tão negativo quanto o elemento representado pela irmã do filósofo, Elisabeth Forster. Embora se possa dizer que a experiência de
Lou tenha sido, para Nietzsehe, como que uma repetição da experiência
de Wagner, não há dúvida de que essa semelhança só em parte pode ser
justificada. Wagner contribuiu de modo poderoso para a evolução e
para o amadurecimento das idéias do filósofo, apesar de tudo o que
possa ter havido de negativo na influência que exerceu; ao passo que em
Lou só o aspecto negativo pode ser apreciado. O seu livro sobre Nietzs
che reflete aspectos curiosos de sua personalidade presunçosa e egocêntrica; mas é na desorientação em que deixou Nietzsche durante a
elaboração do Zaratustra que encontraremos a verdadeira razão para
considerar perniciosa sua brusca irrupção na vida do filósofo.
Em junho de 1887, apareceu em Leipzig, na Editora Fritzsch, uma
segunda edição da Gaia Ciência, em que surgia, pela primeira vez, um
quinto livro adicionado aos quatro já publicados na primeira edição.
Intitulava-se esse quinto livro: Nós, Homens Destemidos, e tinha como
epígrafe a célebre frase de Turenne: “Treme, Carcaça, mas tremerias
muito mais se soubesses aonde vou te levar”. Com esse quinto livro da
Gaia Ciência, estamos de volta ao Nietzsche a que já nos tínhamos
habituado, ao Nietzsche da comunicação indireta. Nietzsche se dá
finalmente conta de que a verdade não existe sem a coragem necessária
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para se chegar até ela. Já indicamos, num capítulo anterior, a significa
ção que tanto Sócrates quanto Nietzsche atribuem ao problema da
coragem. Aqui nos cabe unicamente mostrar como esse problema está
ligado à questão da comunicação indireta. Tomando consciência de que
sua filosofia é uma filosofia da coragem e de que a coragem que tem em
vista é uma coragem “clarividente”, Nietzsche retoma a tradição socrá
tica, no que ela tem de mais puro, e é assim levado a adotar insensivel
mente os procedimentos que essa tradição legitima e que eram os
mesmos que, desde o início de sua carreira, havia inconscientemente
escolhido. O Eterno Retorno não é mais uma idéia que ocupe longa
mente seu espírito. De vez em quando, a lembrança do Zaratustra lhe
volta à memória. Mas o que se pensa ser sua idéia central já deixou de
ter uma força atuante. Nietzsche tem consciência de que há muitos
perigos que o aguardam, ameaças desconhecidas que exigirão de si não
só a coragem de enfrentá-las, como também a coragem de procurá-las.
E é nesse estado de espírito que retoma sua interrompida caminhada
socrática.
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5. A CRÍTICA DA DECADÊNCIA
Sócrates viveu durante um momento da história grega em que todas
as energias espirituais daquele grande povo se concentravam para dar
o passo que lhes asseguraria a imortalidade, embora os conduzisse
também, sem possibilidade de retorno, a uma situação de desastre e de
catástrofe. O que caracterizou esse momento crucial para a história de
toda a humanidade foi a simultaneidade de uma percepção aguda das
riquezas do passado e de uma obediência humilde aos imperativos do
futuro. Sem uma sensibilidade extrema a esse duplo apelo, a Grécia não teria elaborado uma cultura clássica - teria certamente perdido sua
forma histórica, sem preservá-la para a posteridade, mas teria talvez
podido participar de modo mais ativo nas grandes formações de poder,
que disputavam entre si uma posição de primazia no novo mundo que
então se desenhava.O que fez da cultura clássica dos gregos uma realização imperecível
foi então uma fidelidade entranhada a um passado que lhe era caro e a
consciência viva e imperiosa de que, para ser preservado, esse passado
deveria ser violentado através da aliança com forças que lhe eram
contrárias e para as quais pareciam estar reservadas as promessas do
futuro. Essas forças naturalmente eram constituídas pelo avanço irre
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sistível do espírito racional a que os filósofos jónicos tinham dado início.
Elas invadiam todos os aspectos da atividade humana, quer na vida
privada, quer na vida púbüca. Representavam, na realidade, um elemen
to corrosivo, que minava lenta mas seguramente os alicerces de um
passado glorioso.
O gênio de Sócrates consistiu em transformar esse elemento corro
sivo num fermento que consolidasse a massa que se desfazia, descobrin
do virtudes aglutinadoras naquilo que até então havia exercido apenas
uma ação desagregadora. Havia, pois, nas suas atividades, um duplo
aspecto: em primeiro lugar, Sócrates se apresentava como o aliado das
forças que violentavam um passado glorioso - era, por conseguinte, um
decadente; em segundo lugar, afirmava-se como o prestidigitador, como
o mágico capaz de transformar essas forças subversivas em algo afirma
tivo - e era por isso um precursor, um fundador, o mestre de uma
humanidade nova. Nietzsche não estava assim totalmente destituído de
razão ao vê-lo, em A Origem da Tragédia, como um decadente - e esse
julgamento, que pareceu a homens como Wilamowitz tão absurdo,
imbuído que estava de uma fé racionalista, privada de nuanças, parece-
nos hoje possuir um valor indiscutível, pois abre-nos o caminho para
uma compreensão mais cuidadosa do que tenha sido realmente o fenô
meno socrático. Se por outro lado Nietzsche parece desconhecer o fato
de que Sócrates, com seu racionalismo, preservou uma cultura que de
outro modo teria provavelmente desaparecido - uma cultura que de
outro modo não o teria atingido - , se Nietzsche parece desconhecer esse
fato, para nós tão evidente, a única explicação plausível é a circunstância
de ter sido ele inconscientemente um rival de Sócrates - de ter tido ele
inconscientemente a ambição de encontrar meios mais adequados e
mais eficazes para preservar aquele passado glorioso de que Sócrates
foi o primeiro a se ocupar.
Quando Nietzsche reconhecia que era um decadente, mas um
decadente que se sabia decadente e que era capaz de superar sua
decadência, é impossível que ele não se tivesse sentido atuado pelo
espírito de Sócrates. As duas situações são tão semelhantes que se diria
estarmos diante de um fenômeno de reencarnação. Sócrates se consi
dera um estadista que vive num Estado decadente, incapaz de regenerar
o Estado dentro do qual vive; considera que não deve participar da vida
desse Estado, porque, se o fizesse, seria perseguido, condenado e
executado; não se isola, não se aliena, não se separa da comunidade a
que pertence, porque é através dessa comunidade que sua vida tem
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sentido - e é no seu passado glorioso que vai procurar inspiração. Qual
é, em suma, seu statusl Sócrates teria sido um estadista, embora não
exercesse sua vocação? Teria tido razão em julgar decadente o Estado
em que vivia? Em pensar que conhecia os meios de regenerá-lo? Em
acreditar que seria perseguido e condenado, se optasse por uma parti
cipação na vida política desse Estado? Em decidir que, apesar de tudo,
só através da comunidade a que pertencia poderia sua vida ter sentido?
Essas perguntas teriam uma resposta negativa, se a vida de Sócrates
não tivesse tido o fim que teve. Sócrates não teria tido razão em se julgar
um estadista, se tivesse cedido à injunção de Críton de se evadir da
prisão; em julgar decadente o Estado em que vivia, se tivesse considerado a fatalidade que o atingia simplesmente um erro, um engano
judiciário; em pensar que conhecia os meios de regenerá-lo, se tivesse
concebido e levado a efeito a idéia de participar da vida política de
Atenas.
Acontece, porém, que Sócrates se tinha preservado de tais equívo
cos. As respostas, então, se tornavam afirmativas. Sócrates tinha tido
razão de se considerar um estadista, embora não tivesse exercido sua
vocação, porque, nas circunstâncias históricas em que se encontrava, a
única maneira de exercer a vocação de estadista era não a exercendo -
resposta esdrúxula, paradoxal, mas afirmativa; razão de considerar
decadente o Estado em que vivia porque ele não preenchia as funções
que lhe cabiam - e essas funções Sócrates era capaz de dizer quais eram
exatamente; razão de se considerar incapaz de regenerar o Estado pelos
métodos habituais de participação na vida política - seu método de
exercer a vocação de estadista, não a exercendo, equivalia realmente a
uma certa incapacidade, uma incapacidade, entretanto, que necessitava
ser qualificada; razão em pensar que seria perseguido e condenado, se
participasse da vida política do país, porque teria sido então levado a
fazer coisas que contrariariam a maneira habitual de se conceber essa
participação; e, finalmente, razão em pensar que, apesar de tudo, só
através da comunidade a que pertencia, sua vida poderia ter sentido -
embora só num passado glorioso fosse possível colher inspiração.
Vejamos agora o que poderíamos dizer de Nietzsche. Ele se consi
derava um filósofo que vivia numa cultura decadente; que era incapaz
de regenerar pela filosofia essa cultura (queria, primeiro, regenerá-la
pela música, depois por um não exercício da filosofia manifestado por
mil formas diversas - renúncia, exílio da filosofia; trabalho de solapa nos
alicerces das convicções filosóficas, morais, culturais, nos alicerces de
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tudo aquilo que mais amava, de tudo aquilo que lhe era mais caro);
considerava que não podia participar da vida da cultura que lhe era
contemporânea, porque, se o fizesse, seria corrompido, empobrecido,
destruído; não se isolava, não se alienava, não se separava da comunidade intelectual a que pertencia (intemporal, supra-histórica), porque
só através dela a vida poderia ter sentido - que só nela poderia colher
inspiração. Qual era, em suma, seu status? Seria um filósofo, embora não
exercesse a filosofia? Teria tido razão em julgar decadente a cultura em
que vivia? Em pensar que conhecia os meios de regenerá-la? Em
acreditar que seria corrompido, diminuído, destruído, se participasse
da vida da cultura em que estava inserido? Em imaginar que só na
comunidade intelectual a que pertencia (intemporal, supra-histórica)
poderia colher inspiração?
Essas perguntas teriam também uma resposta negativa, se a vida de
Nietzsche não tivesse tido o fim que teve. Nietzsche não teria tido razão
de se considerar um filósofo, se não tivesse previsto que pagaria com a
perda de sua consciência a ousadia dos imensos perigos a que se
expunha; razão de pensar que a cultura do seu tempo era decadente, se
tivesse recuado amedrontado diante da fatalidade que o esperava; razão
tampouco de acreditar que conhecia os meios de regenerá-la se tivesse
decidido participar da vida dessa cultura decadente.
Acontece, porém, que a vida de Nietzsche teve o desfecho que
sabemos. As respostas se tornam, então, afirmativas. Nietzsche tinha
tido razão de se considerar um filósofo, embora não exercesse a filosofia,
porque, nas circunstâncias históricas em que se encontrava, a única
maneira de exercer a vocação de filósofo era não a exercendo - resposta esdrúxula, paradoxal, mas afirmativa; razão em considerar decadente a
cultura em que vivia, porque ela não preenchia as funções que lhe
cabiam - e essas funções Nietzsche era capaz de dizer quais eram
exatamente; razão de se considerar incapaz de regenerar a cultura pelos
métodos habituais que empregava a filosofia - seu método de exercer a
vocação de filósofo, não a exercendo, equivale realmente a uma certa
incapacidade, incapacidade, entretanto, que necessitava ser qualifica
da; razão em pensar que seria corrompido, diminuído, destruído, se
participasse da vida da cultura que lhe era contemporânea - as tentativas
que fizera o tinham levado ao descrédito, no mundo acadêmico, à
abominação no círculo wagneriano, às intrigas e a uma situação perversa
na infeliz experiência com Lou; e, finalmente, razão de pensar que só na
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comunidade intelectual a que pertencia (intemporal, supra-histórica)
poderia colher inspiração.
Mas as analogias entre esses dois destinos, o de Sócrates e o de
Nietzsche, não terminam aí. A nota trágica que marcou o fim desses dois
homens não foi, na expressão que usam cautelosamente os produtores
de filmes cinematográficos, “uma mera coincidência”. Havia razões
fortes para que esses dois homens, cujos destinos apresentavam tantas
semelhanças, chegassem ao termo de suas vidas conscientes de modo
igualmente trágico. A serenidade de Sócrates, o equilíbrio em que se
mantém até o último instante de sua existência, nos faz esquecer um
pouco o sentido real do drama que Platão nos deixa entrever - na
verdade, o que está acontecendo é nada mais nada menos do que o
seguinte: um homem, na força de seus dotes intelectuais e de seu impulso
criador, vê subitamente cortada sua carreira por uma denúncia absurda,
por uma condenação leviana, por uma injustiça sem igual. Sua obra
ainda não está terminada. Não há indícios de que essa obra, que ele não
teve o cuidado de preservar por escrito, possa sobreviver. Se havia em
Sócrates, do que não temos o direito de duvidar, uma consciência viva
e clara do que significava sua vida, sua pessoa, não é evidente que, aos
seus olhos, assumia um caráter violento de tragédia a necessidade brutal
de dar por terminada uma tarefa cujo fim ainda não se tinha entrevisto?
Esse caráter de tragédia se acentuava mais ainda pelo fato de depender
de Sócrates que as coisas terminassem daquele modo. Dependia dele o
sentido de sua obra, que não podia ser prejudicada por uma fraqueza
de última hora. A situação, na realidade, comportava os elementos
clássicos que constituem normalmente os ingredientes de uma tragédia:
de um lado a necessidade brutal do fim, o corte violento que paralisava
um impulso generoso que se projetava longe; do outro a possibilidade
de evitar esse fim, de evitar esse corte, caso Sócrates aceitasse a dimi
nuição, a destituição de relegar sua obra, a significação de sua vida e de
seu esforço, a um plano secundário.
O fim de Sócrates foi trágico não porque tivesse sido envolvido num
tumulto violento de sentimentos e paixões: foi trágico por ter sido a
expressão trágica de um destino. Sem sua morte injusta e consciente
mente aceita, sua obra e sua vida não teriam tido o sentido que posteriormente vieram a ter. Foi para preservar esse sentido que Sócrates
declinou a possibilidade que lhe era oferecida de fugir da prisão. Mas o
preço que teve que pagar em troca de uma tal preservação era muito
alto - não era apenas sua vida mas a dúvida sobre o acolhimento dessa
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obra cujo sentido era tão precioso. Os objetivos que o levavam a aceitar
a própria morte podiam ser tragicamente atingidos pelos efeitos mes
mos dessa morte.O fim trágico da vida consciente de Nietzsche verificou-se em
condições estranhamente semelhantes. Não houve serenidade no seu
caso - houve euforia. Mas a catástrofe, o colapso, o mergulho súbito no
abismo negro da inconsciência parece ter dependido tanto de uma
decisão de sua vítima quanto a morte de Sócrates dependeu de sua
decisão de esvaziar a taça da cicuta. Anos antes de seu colapso, Nietzsche havia citado Turenne para exprimir seu sentimento de que esco
lhera um caminho extremamente perigoso, um caminho que só percorreria quem tivesse uma extrema coragem. A expressão que saiu
da pena de Nietzsche - “viver perigosamente” - transformou-se, entretanto, numa máxima que se popularizou tanto que passou a ser empregada não só por quem nunca tinha lido Nietzsche, como também por
quem nunca tinha ouvido sequer falar em seu nome. Nosso Guimarães
Rosa a emprega no seu romance Grande Sertão: Veredas. E aí, como em
outras ocasiões em que ela faz parte do uso corrente do povo, o que se
quer significar é um certo prazer do risco, quase uma maneira esportiva de conceber a vida, quando o esporte inclui um certo elemento de risco,
como a corrida de automóveis, caçadas na África, acrobacias aéreas etc., etc.
Temos aqui um exemplo típico de como o pensamento de Nietzsche pode ser desvirtuado. Nunca passou pela sua cabeça que o perigo
pudesse ser utilizado como um condimento, como um ingrediente destinado a intensificar e a multiplicar as sensações de prazer que possam
amenizar nossa existência. Nunca passou pela sua cabeça de um modo
geral que o perigo pudesse ser instrumentalizado. Não era o resultado
de uma escolha, de uma preferência, de uma decisão cujo objetivo fosse
promover uma vida mais movimentada, mais variada, mais cheia de
emoções. Era, ao contrário, a conseqüência de uma decisão, de uma
preferência, de uma escolha - trágica - , a escolha de si mesmo e de sua
missão, uma missão mais do que espinhosa, de uma dificuldade indescritível, de uma exigência sem limites, uma missão que poderia levá-lo
aos piores infernos, às desgraças mais inenarráveis e não apenas a
simples perigos e males de vulto circunscrito. Nietzsche sabia que
escolhera uma missão que abrigava em seu bojo essas consequências
pavorosas. E sabia também que, para bem cumpri-la, precisava não
somente enfrentar o perigo, fosse ele qual fosse, como também provo-
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A questão se resume, então, em saber como interpretar os últimos
clarões da inteligência de Nietzsche. Quem vê neles os primeiros sinais
de uma loucura emergente está apenas ampliando o entendimento
segundo o qual todo o território da vida de Nietzsche, mesmo aquelas
partes que coincidiam com sua vida consciente, sempre tinham estado
ameaçadas por erupções vulcânicas da loucura. Essa é, na verdade, uma
interpretação que hoje tem dificuldade de encontrar adeptos. Mas
quem não a aceita - e realmente não vejo como se possa aceitá-la - deve
indagar com toda a seriedade se o fim da vida consciente de Nietzsche
representa verdadeiramente um desfecho clinicamente inevitável: se foi
o resultado de uma evolução de sua natureza psicossomática totalmente
independente da sua problemática filosófica. Se a resposta for afirma
tiva, não haverá fim para o assombro provocado pelo fato de ter podido
o homem de quem se diz ter sido, em vida, vítima de uma doença que
devia levá-lo à loucura, de ter podido esse homem, depois de morto, se
transformar, em menos de um século, no ponto de referência obrigatório
para tudo o que nossa época produziu de grande. Se, entretanto, a
resposta for negativa, os últimos textos publicados por Nietzsche deve
rão merecer de nossa parte uma atenção redobrada: pois eles represen
tam uma última mensagem da parte de quem se sabe condenado não
por atavismo psicossomático, mas por um destino - um destino de que
só encontraremos uma equivalência na legenda de Sócrates. Vista re
trospectivamente, afigura-se-nos que a vida de Nietzsche devia terminar
necessariamente da maneira por que o fez, não por razões de atavismo
psicossomático, mas por razões de destino - exatamente como se nos
afigura a vida de Sócrates, vista retrospectivamente, como devendo
necessariamente terminar da maneira por que o fez, isto é, pela ação da
cicuta.
Senão, vejamos. Que destinos poderiam ter dois homens que pro
clamaram um a falência do Estado, outro á falência da cultura do seu
tempo? Se o diagnóstico fosse falso, a condenação, num caso, e a
loucura, no outro, não teriam ocorrido. Um Estado justo não condenaria
um Sócrates equivocado. Uma cultura não falida não imporia uma
solidão de efeitos devastadores sobre a consciência de um Nietzsche
equivocado e envolto em perplexidades - seu ritmo saudável prevalece
ria finalmente e traria essa consciência de volta a uma situação de
equilíbrio e de normalidade. Mas o problema foi que, tanto num caso
como no outro, o diagnóstico era verdadeiro. Sócrates não se equivocara
e por isso devia morrer bebendo a cicuta. Nietzsche igualmente em
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porâneos. Sua sabedoria, declara, reside em sua oposição à época em
que vivia - e já vimos como se sentia próximo de Sócrates nesse parti
cular. A segunda questão - “Por que sou tão perspicaz?” - é respondida
de modo igualmente socrático: “Nunca propus questões quando era
inoportuno propô-las”. De novo vem à nossa lembrança aApologia onde
Sócrates declara seu desinteresse pelas especulações filosóficas dos
primeiros filósofos que procuravam uma explicação para a constituição
física do universo. A filosofia ensaia seus primeiros passos na estrada
real do conhecimento, limitando suas perguntas a umas poucas questões
sobre a natureza ética do homem. Limitação e concentração - fórmula
de Sócrates que Nietzsche adota com entusiasmo: “Por que escrevo
livros tão bons?”, pergunta Nietzsche finalmente. A resposta aqui é
surpreendente: “Porque são livros da espécie mais altiva e refinada; são
livros que podem atingir o máximo a que é possível se chegar na vida,
isto é, o cinismo; para assimilar esses livros é necessário se ter ao mesmo
tempo dedos sutis e punhos valorosos”. Kaufmann nos traz à memória
aquela sabedoria socrática cheia de facécias e malícia que constitui o
melhor estado d’alma (O Viajante e sua Sombra, parágrafo 86). Lem
bra-nos também o encontro do homem superior com os cínicos ( Para
além do Bem e do Mal, parágrafo 26), com os cínicos que reconhecem
em si mesmos o animal simplesmente, a vulgaridade, mas que possuem
também bastante espírito para serem levados a falar, diante de testemu
nhas, de si próprios e de seus semelhantes. O cinismo, diz-nos então
Nietzsche, é a única forma sob a qual almas pouco elevadas se aproxi
mam da sinceridade; e o homem superior deve abrir seus ouvidos a todas
as nuanças do cinismo e se julgar feliz de poder ouvir as bufonarias sem
pudor ou as digressões científicas do sátiro. Existe mesmo um caso “em
que o encanto se mistura à repulsa, por exemplo, quando por um
capricho da natureza o gênio é concedido a um desses sátiros, um desses
monos indiscretos”. Em O Crepúsculo dos ídolos, lembra-nos ainda
Kaufmann, Sócrates é chamado de bufão; o Alcibíades de Platão o
chama de sátiro. Parece, pois, em vista do exposto, que no Ecce Homo
Nietzsche se recorda de um daqueles casos “em que o encanto se
mistura à repulsa, por exemplo, quando por um capricho da natureza o
gênio é concedido a um desses sátiros indiscretos”. Recorda-se de
Sócrates, sem dúvida, e atribui à influência salutar de suas indiscrições
a qualidade excepcional dos livros que escrevera.
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Kaufmann menciona um último exemplo, a nosso ver o mais decisi
vo, para evidenciar o relacionamento íntimo entre Sócrates e Nietzsche.
P a r a d a r u m a i d é i a d o p s i c ó l o g o q u e s o u [ d iz - n o s N i e t z s c h e n o Ecce Homo], e x t r a í
d e Para além do Bem e do Mal u m a c u r i o s a d e s c r i ç ã o p s ic o l ó g ic a ; p r o i b o , e n t r e t a n t o ,
q u a l q u e r c o n je c tu r a so b r e q u e m e u e s t e ja d e s c r ev e n d o : “ O g ê n i o d o c o r a ç ã o t a l c o m o o
p o s s u i e s s e g r a n d e M i st e r io s o , e s s e d e u s t e n t a d o r , e s s e h i p n o t iz a d o r d e r a t o s d a s c o n s
c i ê n c ia s , c u ja v o z s a b e i n v ad i r a té o s s u b t e r r â n e o s d a s a l m a s , q u e n ã o d i z u m a p a la v r a ,
n ã o l an ç a u m o l h a r o n d e a s e d u ç ã o n ã o e s te ja e s c o n d i d a , e q u e te m a a r te - é u m d e s e u s
g r a n d e s l a n c e s - d e s a b e r p a r e ce r n ã o t al q u al e l e é m a s ta l q u al é p r e c i so s e r p ar a t o m a r
m a i s d e p e n d e n t e s d e s e u s p a s s o s a q u e l e s q u e o s e g u e m e p a ra o b r i g á -l o s a s e c o m p r im i r
m a i s e s t r e it a m e n t e a s e u r e d o r p a r a e s c o l tá - l o d u m a m a n e i r a se m p r e m a i s f e r v o r o s a e
p e r f e i ta [...] O g ê n i o d o c o r a ç ã o q u e f a z a s p e s s o a s s e c a l a r e m , o s b a r u l h e n t o s e v a i d o s o s
o b e d e c e r e m , q u e d á u m p o l im e n t o à s a lm a s g r o s se ir a s e u m n o v o d e s e j o , a v o n t a d e d e
t e r e m u m a p e l e l is a c o m o u m e s p e l h o p a r a r e f le t ir o c é u p r o f u n d o [ ...] O g ê n i o d o c o r a ç ã o
q u e e n s i n a a m ã o s i n á b e i s e i m p a c i e n t e s o t a t o e a m o d e r a ç ã o , q u e a d i v in h a o l u g a r d o s
t e so u r o s e s c o n d i d o s , a g o t a d e b o n d a d e e d e d e li ca d e z a s o b o g e l o e s p e s s o e f o s c o , o g ê n i o
d o c o r a ç ã o , v a r a m á g i c a q u e r e v e l a o m e n o r g r ã o d e o u r o e n t e r r a d o n a l a m a e n a a r e i a
[...] O g ê n i o d o c o r a ç ã o q u e n i n g u é m t o c a r ia s e m s e e n r i q u e c e r , n ã o q u e s e f iq u e
e s m a g a d o p o r b e n s p r o v e n i e n t e s d e o u t r e m m a s p e l o c o n tr á r io m a is r ic o n a s u a p ró p r ia
s u b s t â n c ia , m a i s o r ig in a l d o q u e a n t e s p e r a n t e si m e s m o , d e s b l o q u e a d o , t r a n s p a r e n t e ,
s u r p r e e n d i d o c o m o q u e p o r u m v e n t o d e d e g e l o , m a i s in c e r to t a lv e z , m a is d e l ic a d o , m a is
f rá g il , m a i s f a ti g a d o , m a s c h e i o d e e s p e r a n ç a s a in d a s e m n o m e , c h e i o d e n o v o s d e s e j o s e
d e n o v a s te n d ê n c i a s , c h e i o s d e n o v o s c o n t r a d e s e j o s e d e n o v a s c o n t r a t e n d ê n c i a s
Antes de fazer essa autocitação, Nietzsche nos proíbe de qualquer
conjectura sobre quem ele está descrevendo - mas no Para além do Bem
e do Mal, donde a citação é tirada, ele nos diz que
a q u e l e d e q u e h á p o u c o fa la v a n ã o é s e n ã o o d e u s D i o n í si o , e s se p o d e r o s o d e u s , e q u í v o c o
e t e n t a d o r , a q u e m , c o m o s e s a b e , o f e r e c i m i n h a s p r i m í c ia s , c o m r e s p e i t o e m i st é r i o -
t e n d o s i d o o ú l ti m o , a o q u e l h e p a r e c ia , q u e l h e t i v e s se o f e r e c i d o q u a l q u e r c o i sa : p o i s n ã o
e n c o n t r e i e n t ã o n i n g u é m q u e c o m p r e e n d e s s e o q u e h a v ia fe i to .
E Nietzsche acrescenta:
D e s d e e n t ã o a p r e n d i m u i to , m u i ta s c o is a s s o b r e a f i lo s o f ia d e s s e d e u s e a s r e p it o ,
d e b o c a a b o c a - e u o ú lt im o d i sc íp u l o e o ú l tim o in i cia d o d o s m i st é ri o s d o d e u s D i o n í si o .
E p o d e r i a e u e n f im o u s a r c o m e ç a r , m e u s a m ig o s , a v o s f a ze r se n t ir u m p o u c o o g o s t o ,
t a n t o q u a n t o m e é p e r m i ti d o , d e s s a f il o s o fi a ? E m v o z b a ix a , e s t á c la r o - p o r q u e s e t ra ta
a q u i d e n ã o p o u c a s c o i s a s s e c r e t a s, n o v a s , e s tr a n h a s , m a r a v i lh o s a s e i n q u i e t a n t e s. J á o
f a to d e D i o n í s io s e r u m f i ló s o f o e d e p o r t a n t o o s d e u s e s ta m b é m s e o c u p a r e m d e f il o so f ia ,
m e p a r e c e u m a n o v i d a d e q u e n ã o d e ix a d e s e r p e r i g o sa e q u e t a lv e z d e s p e r te a d e s c o n
f ia n ç a , s o b r e t u d o e n t r e o s f il ó s o f o s .
154 MARIO VIEIRA DE MELLO
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Em Ecce Homo, Nietzsche nos proíbe de conjecturar sobre quem
possa ser o gênio do coração, mas é taxativo sobre o fato de que ele, Nietzsche, é um discípulo do filósofo Dionísio (no prefácio) - não se
trata, nesse caso, de falar em voz baixa. Em Para além do Bem e do Mal
é somente em voz baixa que Nietzsche transmite um pouco da filosofia
de Dionísio, mas é taxativo ao afirmar que é a Dionísio que está se
referindo quando está descrevendo o gênio do coração. Dir-se-ia que, em Para além do Bem e do Mal, é a contragosto que Nietzsche admite
que Dionísio possa ser filosófico, isto é, socrático e que, em Ecce Homo,
é a contragosto que admite que Sócrates possa ser dionisíaco. Não é
curiosa essa inversão de termos quando se verifica que existe uma
reticência em face de uma tal identificação? - Sabemos ainda que, em
A Gaia Ciência, Sócrates é descrito como um hipnotizador de ratos das consciências - não é curioso também que a mesma descrição seja feita,
uma vez referindo-se a Sócrates, outra a Dionísio? - Não é mais curioso
ainda que, na segunda vez, Nietzsche nos proíba de fazer uma conjectura
que não era difícil de entreter? Kaufmann está, pois, plenamente autorizado a tirar a conclusão a que essa comparação de textos nos conduz: na fase final do pensamento de Nietzsche, Dionísio e Sócrates parecem
identificados. E essa é uma conclusão que só não é plenamente satisfatória porque deixa ainda aberta a questão de saber a partir de que
momento essa identificação se operou ou mesmo a questão de saber se
a possibilidade dessa identificação não poderia ser estendida aos primeiros tempos da vida intelectual do filósofo, a título, pelo menos, de
uma necessidade que fora, em virtude da experiência wagneriana, estranha, inexplicavelmente desatendida.
Sócrates identificado com Dionísio! Quanto caminho percorrido desde que Sócrates havia sido identificado como o demônio que apare
cera para se opor a Dionísio - o demônio que falava pela boca de
Eurípides e que expulsava Dionísio do mundo trágico numa espécie de
suicídio! Quanto caminho percorrido desde que Sócrates tinha sido
identificado como um otimista, como uma natureza essencialmente
antiartística, incapaz de compreender o valor do pessimismo, sua necessidade para quem interpreta o mundo de um ponto de vista fundamen
talmente estético! Quanto caminho percorrido desde que Sócrates tinha sido identificado como o homem teórico, fanático da moral e do saber,
nem dionisíaco, nem apolíneo - meramente socrático!
É curioso que, ao combater o instinto dionisíaco, o demônio socrático tenha combatido, ao mesmo tempo, o instinto apolíneo - num
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rancor sem limites por todo tipo de arte. É curioso que o instinto
socrático se tenha substituído ao instinto apolíneo para formar com o
dionisíaco um novo tipo de tensão - não mais um jogo de coordenadas
submetidas a um mesmo fim, mas uma simples oposição franca e declarada. Mas o mais curioso em tudo isso é a evolução que acabamos de
estudar do instinto socrático em direção a Dionísio: de uma oposição
inflexível e intransigente para uma identificação quase amorosa. Estariam agora no EcceHomo, o último livro de Nietzsche, eliminados todos
os conflitos, superadas todas as oposições? Não era Sócrates, em A
Origem da Tragédia, o grande inimigo de Dionísio? As últimas palavras
do Ecce Homo, entretanto, as últimas mensagens que recebemos do
filósofo nos deixam ver que no seu espírito havia ainda um último
conflito, um último problema - Dionísio em face do Crucificado. O que
aconteceu então? Não temos o direito de supor que Dionísio, uma vez
identificado com Sócrates, vai agora permitir a Nietzsche sua última
oposição, sua palavra final sobre as tensões espirituais que desde sempre
haviam percorrido sua obra? Sócrates, em face do Crucificado, poderia
bem ser o desfecho desse drama, cujo primeiro ato nos mostrava o
conflito do dionisíaco com o apolíneo - um drama cuja ação começava
quando uma parte da história do herói já se desenrolara -, a parte que
se referia às primeiras preocupações espirituais do adolescente, sua
formação religiosa, seu cristianismo pietista, suas primeiras indagações
sobre o valor da fé que lhe havia sido incutida.Em Ecce Homo Nietzsche nos dá algumas indicações sobre essa sua
primeira formação - mas essas indicações não podem ser recebidas sem
reservas. São suas palavras:
D e u s , im o r t a li d a d e d a a l m a , r e d e n ç ã o , li b e r ta ç ã o , s ã o i d é i a s à s q u a i s j a m a i s c o n s a
g r e i n e m m i n h a a te n ç ã o , n e m m e u t em p o , m e s m o n a m i n h a p rim e i r a j u v e n t u d e - t a lv e z
n ã o t e n h a s i d o e u b a s t a n t e i n fa n t il p a r a f a z ê -l o ? - N ã o c o n s i g o v e r n o a t e ís m o u m
res u l t ado , um acont ec i m ent o : em m i m e l e cons t i t u i um i ns t i n t o nat ura l [ . . . ] Ex i s t e um a
q u e s t ã o b e m m a i s in t e r e ss a n t e d a q ua l a “s a lv a ç ã o d o s h o m e n s ” d e p e n d e m u i to m a is d o
q u e d e t o d a s a s cu r i o s id a d e s d o s t e ó l o g o s : a q u e s t ã o d a a l im e n t a ç ã o .
Paul Valadier no seu livro Nietzsche, l’Athée de rigueur, faz também
essas reservas e pergunta, com muita pertinência, se não estamos aqui diante de uma brincadeira de mau gosto. Decidiu que não, pois com a
leitura exaustiva da parte do livro em que se encontra essa passagem
(“Por que Sei Tantas Coisas”), evidenciam-se a tenacidade e a coerência
com que é tratada a brincadeira. Concluiu, entretanto, que, mesmo não
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nossas entranhas que podemos dizer que somos verdadeiramente cris
tãos. A doutrina cristã fundamental do cristianismo exprime as verdades
profundas do coração humano - não é senão o símbolo delas”. Esse
texto, tirado de uma autobiografia da juventude, nos mostra bem, de
uma parte, a exigência da adesão a uma fé que diz respeito ao que o
homem tem de mais íntimo em si mesmo, rejeitando, pois, a tentação de
uma religião de práticas cultuais ou de conformismo moral e, de outra
parte, o rigor de uma renúncia total a si mesmo, no abandono da graça.
Compreende-se, à luz de um tal texto, que Nietzsche tenha podido dizer
mais tarde, em 1888, já separado do cristianismo: “O cristianismo
admite que o homem não saiba, não possa saber o que é bom, o que é
mau, para ele: ele crê em Deus que é o único a saber” (O Crepúsculo
dos ídolos, Perambulações Inatuais, parágrafo 5). Essa interioridade,
onde o crente lê (crê ler) a vontade de Deus sobre ele, é, aliás, a um tal
ponto a verdadeira morada da fé que não somente a adesão intelectual
a um sistema de crenças parece suspeita, como também a referência a
uma revelação histórica cede o passo ao sentimento atualizado de Deus.
Esse é o motivo pelo qual, na passagem autobiográfica há pouco citada,
o jovem Friedrich pôde ver no cristianismo, talvez já não sem uma
nuança crítica, uma expressão “simbólica” do coração humano. Só a fé,
com efeito, salva, não uma personagem histórica exterior e estranha ao
crente. O que se relaciona com a expressão histórica ou dogmática
simboliza as verdades do coração humano: quer dizer, essa expressão
tende a se suprimir em benefício duma experiência através da qual ela
adquire um sentido, experiência que, em definitivo, pode prescindir da
expressão para se fazer verdadeira.
A idéia de que Nietzsche conheceu apenas um cristianismo moral
e cultual deve, pois, ser afastada. Conheceu realmente uma religião que
envolvia o indivíduo numa experiência religiosa “sentida”. Mas vê-se
bem como, sobre a base de uma tal experiência, as solicitações da crítica
exegética liberal encontravam um terreno favorável. Se as Sagradas
Escrituras são mitos através dos quais as disciplinas exprimiram os
sentimentos do crente, se a atitude autêntica do crente deve justamente
rejeitar esses mitos para restaurar a adesão interior a Deus, se Jesus, ele próprio, aparece menos como um fundador da religião ou como aquele
por meio de quem se pode chegar à salvação, do que como aquele que
se entregou sem reservas ao sentimento do Reino presente, convidando
cada um a aderir a um tal sentimento - se tudo isso é verdade, torna-se
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inevitável que, em junho de 1865, o jovem Friedrich escreva à sua irmã
Elisabeth o seguinte:
S e t i v é s s e m o s a c r e d i t a d o , d e s d e n o s s a j u v e n t u d e , q u e a s a lv a ç ã o d a a l m a d e p e n d i a
d e u m o u t r o q u e n ã o J e s u s , d e M a o m e t , p o r e x e m p l o , n ã o é c e r t o q u e t e r ía m o s p a rt ic i
p a d o d a s m e s m a s b e n d i ç õ e s ? C e r t a m e n t e s ó a f é sa lv a , n ã o a o b je t iv i d a d e q u e s e e n c o n t r a
p o r t r á s d e la .
Nietzsche, então, pensa já nos “crentes que recorrem a suas expe
riências interiores para de lá concluírem com a infalibilidade de sua fé”.
Afirma que “toda fé verdadeira não engana, traz o que o crente espera
encontrar nela, mas não apresenta a menor base para a justificação de uma verdade objetiva”. E diz finalmente, numa carta a seu amigo Cari
von Gersdorff, em 1867: “A verdade habita raramente lá onde se
constrói um templo para ela e onde se ordenam os padres”.
Temos, então, aqui o rápido esboço elaborado por Valadier do
processo que conduz Nietzsche ao ateísmo; separada de uma referência
histórica ou intelectual, a experiência da fé tende a perder pouco a
pouco seu conteúdo, na medida em que o crente começa a se perguntar
se, nessa experiência íntima, ele não estaria talvez fazendo uma experiência de si mesmo. Uma vez feita essa pergunta, o caminho está aberto
para uma aventura pessoal. A experiência íntima do cristianismo come
ça a se tornar insatisfatória, porque antecipa uma resposta que parece
antes dever ser o resultado da experiência constituída pela aventura
pessoal; e, nessa aventura, Nietzsche compreende agora que deve lan
çar-se, embora ignore tudo sobre aonde ela deverá levá-lo. A partir de
um tal momento, essa é sua única certeza, certeza que tem, como pano
de fundo, uma total ignorância do caminho a ser percorrido e do seu
ponto de chegada.
O novo sentido da vida, Nietzsche o descreve numa carta dirigida a
seu amigo Gersdorff em 1870: “Nosso combate se encontra ainda diante
de nós - eis por que devemos viver”. Nietzsche, ao recusar a resposta
antecipada do cristianismo quanto ao sentido do mundo e da vida, se
aventurara na experiência pessoal de negar todo e qualquer sentido a
esse mundo. Compreende-se, então, facilmente qual foi seu entusiasmo
ao deparar por acaso, numa livraria, com a obra de Schopenhauer. Esse
autor era justamente o primeiro filósofo dos tempos modernos que
ousava perguntar se a existência teria um sentido. Se a resposta fosse
negativa, então se confirmavam as razões que haviam levado Nietzsche
a abandonar o cristianismo. Ç uma nova problemática, a questão de
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saber como poderia o homem se orientar num mundo a que faltasse
completamente o sentido, passava a constituir para Nietzsche a grande
preocupação. Cedo verifica que o pessimismo de Schopenhauer não o
satisfaz. Schopenhauer se deixa vencer pelo peso de sua própria desco
berta e termina criando para si o mesmo tipo de ilusão que havia criado
o cristianismo ao inventar um sentido para a vida. Nietzsche aceita o fato
de que a falta de sentido do mundo deva conduzir ao pessimismo - mas
não a um pessimismo de resignação, não a um pessimismo de fraqueza
e de derrrota. A compreensão que já tem de sua missão, de sua tarefa,
não lhe permite aceitar uma tal conclusão. A falta de sentido do mundo,
ao invés de provocar desfalecimento e desânimo, deveria, ao contrário,
estimular ainda mais a energia e a coragem de quem teve a força de
encarar essa verdade - deveria suscitar não um pessimismo de derrota
e de fraqueza, mas um pessimismo de força e de coragem.
Uma vez chegado a esse ponto, ficam estabelecidas e articuladas,
para nós, as principais coordenadas da obra de Nietzsche. Daí em
diante, o que vamos ver é um desdobramento dessas coordenadas nas
diferentes experiências que enriquecem a vida do filósofo. A experiência
com Wagner, na sua estrutura esquemática, se resume assim numa confrontação entre um pessimismo de força e um pessimismo de fraque
za, tal como a experiência com Schopenhauer. Depois da ruptura com
Wagner, Nietzsche se aplica com uma profundidade verdadeiramente
abismal a definir, no contexto da experiência de colocar sob suspeita os
valores mais consagrados e veneráveis, sua concepção de um pessimis
mo de força e de coragem.
Mas desse relacionamento, entre um pessimismo de força e de
coragem e a desconfiança e a suspeita de tudo o que era sagrado e
venerável, resultava o estabelecimento de uma equação - a coragem
pessimista crescia na proporção direta do conhecimento do mundo, na
verdade, na proporção direta do conhecimento de sua falta de sentido
-, podia-se mesmo dizer que a coragem pessimista era igual ao conhe
cimento do mundo, na verdade, de sua falta de sentido. Ora, era essa
uma equação que lembrava demais uma equação histórica, a equação
socrática segundo a qual a coragem era igual ao conhecimento ou, em
termos mais genéricos, aquela segundo a qual a virtude era igual ao
conhecimento. Era impossível que Nietzsche, ao amadurecer suas
idéias, não se desse conta da proximidade em que se encontrava da
posição socrática. Esse amadurecimento o levava inclusive a encontrar
- como Sócrates o fizera através de suas dúvidas - , a descortinar, através
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de sua “escola de suspeita”, coisas, senão sagradas, pelo menos, venerá
veis, de que já não podia suspeitar. O próprio cristianismo que fora
abandonado, vítima da suspeita inicial, era agora percebido como tendo, de um certo modo, contribuído para a formação do ímpeto de suspeita
que o havia derrubado. Leiamos, na sua íntegra, o aforismo 122 do Livro
III da Gaia Ciência, intitulado “O Ceticismo Moral do Cristianismo” e
já referido em outro capítulo:
O c r is ti a n is m o t a m b é m c o n tr ib u i u d e m o d o c o n s id e r á v e l pa r a a p r o p a g a ç ã o d a s
lu z e s : e l e e n s i n o u o c e t i c is m o m o r a l d u m a m a n e i r a m u i to p e n e t r a n t e e e fi c a z , à fo r ç a d e
acus ar , de i rr it ar, m a s com u m a pac i ênc i a e um a s u t il eza in f a t igáve i s ; des t ru i u em cada
h o m e m p a r t ic u l a r a c r en ç a e m s u a s v ir t u d e s p r ó p r i as ; fe z d e s a p a r e c e r p a r a s e m p r e e s s a s
g r a n d e s fig u r a s v i r tu o s a s q u e a b u n d a v a m n a A n t i g u id a d e - e s s e s h o m e n s p o p u l a r e s
i m b u í d o s d e s u a p r ó p r i a p e r f e i ç ã o q u e p a s s e a v a m p e l a s ru a s c o m a t i t u d e s d e t o u r e ir o .
Q u a n d o n ó s , fo r m a d o s p e l a e s c o l a c r is tã d o c e t i c is m o , l e m o s h o j e o s e s c r i to s m o r a i s d o s
a n t ig o s , ta is c o m o o s d e S ê n e c a e d e E p í te t o , n ã o d e i x a m o s d e e x p e r i m e n t a r u m a
s u p e r io r i d a d e m o m e n t â n e a e n o s s e n t im o s c h e i o s d e c o m p r e e n s ã o e d e in t u i ç õ e s s e c r e
ta s; a o l ê - l o s t e m o s o s e n t im e n t o d e e s t a r o u v i n d o u m a c r i an ç a fa l a r d i a n t e d e u m a n c i ã o
o u d e e s t a r o u v in d o u m a jo v e m e b e la e n t u si a st a d ia n t e d e L a R o c h e f o u c a u ld ; s a b e m o s
m e l h o r , n ó s o u t r o s , d e q u e a v ir t u d e é f e it a ! M a s , p a r a t e r m i n a r , e s s e m e s m o c e t ic i s m o
n ó s o e x e r c e m o s i g u a lm e n t e so b r e t o d o s o s e s t a d o s e p r o c e s s o s r e l ig i o so s , ta is c o m o o
p e c a d o , o r e m o r s o , a c re n ç a , a s a n t if ic a ç ã o , e d e i x a m o s o v e r m e c o r r o e r t a n t o q u e a g o r a ,
l e n d o q u a l q u e r l iv r o c r i st ã o , s e n t i m o s a m e s m a s u p e r i o r i d a d e , a m e s m a p e r s p i c á c ia s u tis :
s a b e m o s m e l h o r ig u a l m e n t e d e q u e s ã o f e i to s o s s e n t i m e n t o s r e li g io s o s ! E é m a i s d o q u e
t e m p o d e c o n h e c ê - lo s b e m e d e d e s c r e v ê -l o s c o r r e t a m e n t e p o r q u e o s h o m e n s d e f é , d a
v e l h a c re n ç a , e l e s ta m b é m v ã o d e s a p a r e c e r - s a l v e m o s a o m e n o s a im a g e m d e l e s e
ta m b é m o t ip o c o m o o b j e t o d e c o n h e c im e n t o !
Não temos aqui o próprio cristianismo recrutado para colaborar na
obra de solapa a que se dedica o pessimismo viril, o pessimismo de força,
o pessimismo de coragem de Nietzsche? Na verdade, podemos observar
no pessimismo de Nietzsche uma evolução que vai do pessimismo viril
encontrado na época trágica da cultura grega, passando pelo pessimis
mo de força em contraposição ao pessimismo de fraqueza de Schope-
nhauer e de Wagner, pelo pessimismo de coragem do ser subterrâneo,
do solapador da velha confiança na moral do Aurora, pelo pessimismo
de força presumidamente inspirado na noção do Eterno Retorno, até chegar ao êmulo de Turenne, no Livro V da Gaia Ciência, que proclama
um novo tipo de coragem. Quando se chega a esse último estágio, a
coragem que estava implícita no pessimismo do primeiro e o pessimismo
que está implícito no último estágio não são apenas demolidores, des
trutores das crenças nas coisas veneráveis do passado; eles são também
NIETZSCHE: O SÓCRATES DE NOSSOS TEMPOS 161
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capazes de discernir, entre essas coisas, algo que pode servir para
construções futuras. O caso mais claro desse aproveitamento de coisas
do passado é naturalmente a recuperação de Sócrates. Mas acabamos
de ver que o próprio cristianismo, de cujo abandono resultara toda a
grande aventura de uma recusa cada vez mais acentuada das tradições
do passado, era agora novamente contemplado de uma maneira clara
mente positiva, como se realmente não nos fosse possível desvencilhar-
mo-nos dele com um gesto radical e definitivo, como se, no seio de
nossas maiores veleidades de independência, existisse sempre uma
amarra, uma cadeia, que nos prendesse a esse passado insubstituível.
A recuperação de Sócrates naturalmente era muito mais acentuada,
muito mais visível do que a do cristianismo. E por isso somos insensivel
mente levados a pensar se a recuperação do primeiro não poderia ser
considerada uma preparação para o advento maior de uma recuperação
do segundo. Temos já tido sob exame o caso de Sòren Kierkegaard. Para
ele a experiência socrática fora uma etapa indispensável para sua plena
identificação com o cristianismo. Por que a mesma coisa não teria
podido acontecer a Nietzsche? - Os sinais que encontramos na fase final
de sua vida consciente falam sugestivamente, senão claramente, nesse
sentido: a crescente simpatia com que a figura de Sócrates é considera
da, a progressiva tendência a salientar em Sócrates o elemento dionisía
co, a misteriosa identificação de Sócrates e Dionísio. Chega-se
finalmente ao ponto em que, nas suas últimas palavras publicadas,
Dionísio é colocado face a face com o Crucificado, como, no começo de
sua carreira intelectual, Dionísio havia sido colocado face a face com
Apoio, o deus do sonho e da individualidade. Acontece, entretanto, que
Dionísio agora já tinha sido identificado com Sócrates. Não sabemos por
que motivo Nietzsche preferia não colocar Sócrates face a face com o
Crucificado. Mas, depois do que já dissemos sobre “o gênio do cora
ção”, não é justo que nos ocorra esse pensamento? - Não teríamos aqui,
numa expressão extremamente simplificada, numa mensagem por assim
dizer telegráfica, um programa que Nietzsche não teve tempo de cum
prir, mas que Kierkegaard levou a termo, tendo iniciado sua execução
ainda nos primeiros anos de súa juventude, sem passar pelas experiên
cias, esperanças e decepções que dilaceraram e atormentaram a vida de Nietzsche?
Jesus é um dos poucos nomes que nos legou a história que nem uma
só vez se tornou o alvo das flechas venenosas da crítica nietzschiana.
Contrastando com a violência, com a brutalidade mesmo dos golpes
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Dionísio face a face com o Crucificado. Sócrates face a face com o
Jesus suprajudaico, o Jesus que não procurou a Cruz, mas apenas o
Reino de Deus. Sócrates face a face com o Jesus que queria arrancar
seu povo do pesadelo de uma maldição histórica, inaugurando um novo
Reino, uma nova era, em que Israel venceria seus inimigos não pela força
das armas, mas pela superior consciência de uma realidade anunciada,
esperada e agora prestes a se confirmar - tal não podería ter sido a
conclusão final de uma obra que foi interrompida e que, mais do que
qualquer outra, foi vítima de interpretações tendenciosas por parte
tanto daqueles que a estimavam quanto daqueles que não a apreciavam?
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6. O NIILISMO
A filosofia começa verdadeiramente quando os dois elementos que
haviam até então atraído a atenção dos pensadores - a realidade física
do universo e as virtudes dos seres humanos - travaram a primeira
batalha decisiva de que resultou o amálgama íntimo desses dois elemen
tos transfigurados no mito do Ser divino do Bem, mito que era um
símbolo construído em função da experiência da fusão desses dois
elementos. Essa aliança entre o Ser que representava a objetividade do
mundo e o Valor atribuído às ações humanas, ou derivado delas, não
constituía uma união interpares. Era a partir de uma primazia do Valor
que se realizara o amálgama. Platão naturalmente foi o promotor dessa
primeira união, que não se desfez com a intervenção de Aristóteles;
entretanto, o preço que o estagirita precisou pagar, para que não se
desintegrasse a união, foi inverter a ordem da primazia e fazer do Ser o
elemento hegemônico.
A inversão da ordem de primazia teve como conseqüência imprimir
um caráter artificial ao símbolo criado por Platão. O Bem divino de
Platão era um mito que simbolizava uma experiência realmente ocorrida
de ascensão dialética; o Bem supremo de Aristóteles foi apenas um
conceito que não correspondia a uma experiência de valor e que só
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podia funcionar como uma alegoria do Ser - pois, como já procuramos
mostrar, um símbolo para se constituir não pode prescindir da ocorrência da experiência que é sua função exprimir.
Com o cristianismo, um novo símbolo surge na cena da história, o
símbolo do Cristo crucificado. Mas esse era um símbolo que exprimia
apenas uma experiência de valor e que era, portanto, de uma certa
maneira, incompleto. Quando a experiência cristã se transformou numa
experiência greco-cristã e o símbolo do Cristo crucificado, que carecia
de uma complementação, relacionou-se com o amálgama artificial representado pelo conceito aristotélico do Bem supremo (que era apenas
uma alegoria do Ser) - quando o símbolo do Cristo crucificado relacio
nou-se desse modo, verificou-se que uma verdadeira fusão se tornava
difícil, porque ficava indecisa a questão da primazia do Valor ou do Ser.
A experiência greco-cristã não teve, assim, uma simbolização que
lhe garantisse uma certa estabilidade. Por vezes era a experiência do Ser
que predominava, por vezes a experiência do Valor. Mas, durante
séculos, nenhuma das duas foi excluída do campo cultural em que se
exerciam essas tensões. Foi unicamente com o aparecimento de Lutero
que a experiência greco-cristã, orientando-se no sentido de uma maior
interioridade, construiu uma nova simbolização, forjada a partir de uma
experiência exclusiva do Valor. A so lafide de Lutero significou, então, que apenas o valor da graça divina podia contar e que qualquer consideração de natureza objetiva, obras, culto, normas de conduta - tudo
enfim que diz respeito à existência de um mundo situado fora do mundo
subjetivo do crente, do homem de fé, deixa de ter significação para ele.
É, por conseguinte, a partir de Lutero que uma filosofia do Valor,
exclusiva de qualquer consideração sobre o Ser, se impõe aos espíritos.
Heidegger vê, nesse fenômeno, a extrema ocultação do Ser, invertendo
de modo extremamente curioso o sentido da ocorrência que consistiu
precisamente no fato de ter sido o Valor, durante alguns séculos, ocultado pela prevalência do Ser. Quando Nietzsche aparece em cena, é justamente o fato de ter todo o sentido das coisas refluído para o
domínio do Valor - abandonando o domínio do Ser, do mundo objetivo,
da realidade física totalmente destituída do sen tido-, é justamente esse
fato que vai determinar a problemática filosófica. Pessimismo versus
otimismo é atitude filosófica que só pode existir num contexto em que
o Ser do mundo está dissociado do seu Valor de modo que o homem
que confronta esse mundo tem a possibilidade de reagir dessa ou
daquela maneira diante de tal mundo destituído de sentido. O otimista
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é o indivíduo que é tal coisa porque não percebe que o mundo é
desprovido de sentido. Só o homem que vive num contexto em que Ser
e Valor estão soldados na mais íntima das ligas pode situar-se acima do
pessimismo e do otimismo - pois o Valor que encontra no mundo não se distingue da experiência que tem da existência das coisas. Essa fusão
de Ser e Valor é letra morta para nós que vivemos no mundo de hoje.
Nossa cultura está gravemente ameaçada, porque não consegue encon
trar um sentido para o mundo dentro do qual se constituiu. Paira sobre
nossas cabeças a ameaça gravíssima do niilismo. Já no século passado,
a consciência desse perigo preocupava espíritos como os de Dostoiévski
e de Nietzsche e determinava a problemática em torno da existência de
Deus, que esses dois grandes pensadores melhor do que ninguém desenvolveram e levaram às suas diversas conseqüências.
A entrada da Rússia, no século passado, como um dos protagonistas
principais da cultura do Ocidente é um fenômeno a que não se tem dado
a atenção que merece. No dizer de Nikolai Berdiaev, em seu livro sobre
Dostoiévski, os russos naquela época se consideravam “apocalípticos”
ou niilistas, entendendo-se por isso que não suportavam um clima
psíquico medíocre, já que tinham um temperamento que os levava
irresistivelmente para posições extremas. Apocaliptismo, niilismo, tendência aos excessos, uma necessidade de levar as coisas aos seus úl
timos limites os impeliam para tais extremos. A estrutura da alma russa
diferia profundamente nesse particular da estrutura da alma francesa
ou alemã; o alemão era um crítico ou um místico, o francês, um cético
ou um dogmático. Ao lado deles, o russo era o mais incapacitado para
elaborar uma cultura, para encontrar seu caminho histórico. Um tal
povo jamais poderia ser feliz na sua história. Os extremos a que chega
ram, o extremo da religião ou o extremo do ateísmo, apocaliptismo ou
niilismo, os induziam a destruir igualmente a cultura e a história cuja
posição se situa justamente no meio do caminho. E se o russo se
revoltava contra essa cultura e essa história, se suprimia todos os valores
e fazia tábua rasa de tudo, era difícil discernir se agia como niilista ou
como apocalíptico, persuadido que estava de que o mundo desaparece
ria numa grande apoteose religiosa. “O niilismo apareceu entre nós”,
escreveu Dostoiévski no seu Diário, “porque nós somos todos niilistas.”
Berdiaev vê nessa disposição da alma russa a explicação para o fato
de ser ela tão refratária a uma disciplina espiritual. O russo, segundo
ele, é mais facilmente um santo que um homem honesto. A honestidade
é uma espécie de meio-termo moral, uma virtude burguesa que não
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interessa a extremistas convencidos de que o mundo vai acabar. Essa
era naturalmente uma característica fatal para o povo russo, porque os
santos são raros e um grande número de pessoas são predispostas à
desonestidade. Se de um lado alguns poucos atingem um plano extremamente elevado de espiritualidade, do outro a maioria fica muito
abaixo da média cultivada dos outros povos. Daí o contraste, na Rússia
do século passado, entre uma elite que atingiu um nível espiritual dos
mais elevados e a massa analfabeta. Não existia, naquela época, cultura
média na Rússia, nem mesmo tradições culturais. Nesse particular,
quase todos os russos eram niilistas. Por quê? - Porque a cultura não
resolve os problemas finais, a evasão fora do processo terrestre - ao
contrário, ela consolida o meio social humano. Para o russo absorvido
pela solução das questões metafísicas, por Deus, pela imortalidade ou
pela organização da humanidade segundo um estatuto novo, assim como
para o ateu, o socialista ou o anarquista - para todos eles, a cultura
representava um obstáculo atravessado contra o movimento impetuoso
que os transportava para um desenlace.
Tal é o perfil que Berdiaev nos traça de seu país no século passado.
E é por isso compreensível que a literatura russa daquela época despertasse, no Ocidente, um tão grande interesse. Não começava também a
despertar na Europa civilizada, amadurecida na sua cultura, o sentimen
to de que seu mundo de valores, laboriosamente construído, principiava
a se desmoronar? O sentimento de que começavam a ser corroídas as
bases metafísicas desse mundo, a confiança no Ser que lhe dava susten
tação e energia? Feuerbach, com sua noção de que era o homem e não
Deus que constituía a razão de ser do mundo; Schopenhauer, com seu
pessimismo; Nietzsche, com sua visão do Insensato proclamando a
morte de Deus: não tínhamos já aqui todos os elementos para com
preender, de uma maneira íntima e profunda, o alcance e a procedência
do niilismo declarado numa nação que até aquele momento se mantive
ra alheia aos problemas espirituais da comunidade européia? O niilismo
dos russos era uma conseqüência de sua consciência apocalíptica. A
cultura, para eles, era um estorvo, um atraso, uma perda de tempo.
Queriam chegar logo ao fim dos tempos, ao limiar da nova era, do novo
mundo. Por isso todas as comodidades, todas as facilidades, todos os
artifícios que o homem europeu havia laboriosamente construído eram,
para eles, letra morta. Antiguidade clássica, Renascimento, todos esses
belos períodos em que a humanidade se havia comprazido e em que,
pela memória, continuava ainda a se comprazer, nada significavam para
lbS MARIO VIEIRA DE MELLO
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eles. O sentimento da iminência de uma grande transformação, de uma
transfiguração do mundo os absorvia tão completamente que tudo o
mais, ao lado disso, se dissolvia em insignificâncias. Niilistas eram,
portanto, não porque tivessem muito que destruir ou rejeitar; niilistas eram porque tudo o que existia perdera, para eles, qualquer significação
- e mesmo a existência bruta, desprovida de atrativos, de uma sociedade
malformada como a deles, constituía já algo excessivo, algo que repre
sentava uma presença importuna para essas consciências, distendidas
pelo esforço de alcançar o momento de glória, que antecipavam na sua
visão apocalíptica.
O niilismo na Europa tinha evidentemente um caráter diferente. Ele
era mais destrutivo que o niilismo russo, porque tinha mais coisas para
destruir. Não se originava de uma consciência apocalíptica, porque fora
justamente o lento amadurecimento de uma cultura que determinara na
Europa a extinção de uma consciência apocalíptica. A Igreja de Roma,
ao estreitar cada vez mais fortemente seus laços com a filosofia e a
cultura gregas, terminara por lançar no mais completo esquecimento a
expectativa de uma segunda vinda do Redentor. O niilismo europeu
tinha, pois, idéias pouco claras sobre o que o mundo poderia vir a ser.
Embora tivessem surgido, nessa época, teorias sobre como deveriam ser
o homem e a sociedade do futuro - teorias que justificavam uma
destruição pelo menos parcial da estrutura do presente -, não se confi
gurara a visão de um apocalipse verdadeiro, isto é, de uma transfigura
ção total do universo que abolisse, por completo, todo e qualquer
elemento que fizesse parte dessa estrutura.
O niilismo na Europa foi, assim, marcado por uma espécie de
meio-termo, por uma ausência de extremismos, que os niilistas russos não poderiam ver senão com pouco apreço (apesar de a doutrina
comunista no Ocidente ser considerada, por muita gente, uma doutrina
extremista). Esse niilismo foi, como outros produtos da cultura do
Ocidente, marcado por um estigma de mediocridade burguesa que fazia
do revolucionário europeu um indivíduo tímido quando comparado
com um verdadeiro anarquista russo. O futuro era considerado, pelo
niilista europeu, de uma maneira essencialmente reativa, não uma rea
lidade de que se pudesse ter uma visão direta mas uma conseqüência, um pretexto, digamos mesmo um meio de justificar a ação destrutiva do
presente. Tudo era feito tendo em vista the baby to be bom - mas as
características desse baby, os traços de sua fisionomia, eram totalmente
indiscerníveis.
N1ETZSCHE: O SÓCRA TES DE NOSSOS TEMPOS 169
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Pode-se assim dizer que todas as formas de utopia que surgiram no
Ocidente entre o século XVIII e o século XX - a utopia liberal, a
positivista, a socialista, a nazista e a marxista - foram formas de niilismo
mitigado, um niilismo que se contentava em destruir alguns elementos
do presente, mas que tinha idéias muito vagas sobre o que deveria ser o
futuro. Chamou-se a isso espírito revolucionário. O niilismo verdadeiro,
o niilismo disposto a tudo destruir porque tinha uma visão claríssima do
futuro, não chegou nunca a se implantar na Europa, porque parece
existir uma relação direta entre o fato da existência de uma cultura e a
impossibilidade de se ter do futuro uma clara visão apocalíptica. A
existência de uma cultura determina não apenas uma grande dependên
cia do passado como também uma limitação quanto ao número e tipo
de possibilidades que o presente é capaz de projetar para o futuro.
Destruir uma cultura, solapar suas raízes que têm por vezes a profundi
dade de milênios, em nome de um futuro não claramente entrevisto,
seria obra de insensatez que o homem, em todo o percurso de sua
existência histórica, jamais teve a ousadia de fazer. A Revolução Russa,
como sabemos, foi inspirada num niilismo derivado de uma consciência
apocalíptica que justamente tinha pouco ou nada para destruir. E só uma
sociologia cega, totalmente esquecida de seus pressupostos culturais,
pôde ver nela um passo à frente, um estágio mais avançado no processo
de evolução social que a Revolução Francesa havia inaugurado.
Tudo isso que dissemos, entretanto, não significa que o niilismo,
pelo fato de ter tido na Europa um desempenho mitigado, não possa
mais tarde constituir para ela uma grave ameaça. Comparado com o
niilismo radical na Rússia do século XIX, o atual niilismo europeu
apresenta a desvantagem de não ter uma clara visão do futuro e de, por
conseguinte, ser levado a destruir irracionalmente o presente em nome
de expectativas e valores que não foram suficientemente examinados e
aprofundados. O fator de moderação, o “meio-termo” que, de um modo
geral, funciona como um elemento de boa medida e equilíbrio, aqui tem,
ao contrário, um efeito desastroso. Quando as expectativas e os valores
desejados são mal examinados, a avaliação do presente, tido como
obstáculo, não pode deixar de ser também defeituosa. Do niilismo
apocalíptico dos russos do século XIX, não se poderia dizer que a
avaliação do presente fosse defeituosa. Eles tinham a mais clara cons
ciência e a mais lúcida inteligência de que tudo o que representasse
cultura, idéias, estruturas, instituições e filosofias constituíam um estor
vo no caminho que os levaria ao limiar da nova era. Não havia modos de
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se enganar. A questão era saber apenas o que encontrariam: se Deus ou
o Vazio. Era essa uma aposta que estavam dispostos a fazer e em torno
da qual organizavam suas vidas.Já o niilismo europeu estava longe de ter essa nitidez de linhas e
propósitos. Não havia uma experiência em que nada havia a perder e
tudo a ganhar. O que havia eram compromissos desastrosos, remendos
insatisfatórios, recuos tardios quando se verificava que as avaliações não
haviam sido boas e que faltavam lucidez e inteligência na apreciação dos
fatos. Esses erros, evidentemente, significavam o sacrifício inútil de
multidões de vítimas inocentes. Significavam o aviltamento, o empobre
cimento de uma cultura que se pretendera sanear. Significavam a desorientação, a perplexidade daqueles que, cegamente, se haviam
deixado entusiasmar e que tinham agora os olhos descerrados para os
resultados lamentáveis daquilo que havia sido o objeto de seu entusias
mo. Significavam, muitas vezes, um endurecimento contra todo tipo de
aspiração a um mundo melhor que induzia à crença de que só o
aviltamento e o empobrecimento da cultura resultariam de qualquer
esforço de renovação e de transformação da sociedade.
Entre todos os niilistas mitigados da Europa, Nietzsche surge como
o mais radical. Sua radicalidade não chega ao ponto extremo do niilismo
apocalíptico da Rússia do século XIX, porque Nietzsche, naturalmente,
é um dos produtos mais preciosos de uma cultura que tem atrás de si
milênios de um elaborado desenvolvimento. Nietzsche não quer destruir
essa cultura, nem em parte, nem na sua totalidade. Mas ele quer
prescindir dela, pelo menos por um tempo, ser um apátrida da cultura,
ficar desmunido do passaporte por ela conferido, ser o viajor errante
que tem como único documento seu passe de viagem. A cultura para ele
também era um estorvo, um obstáculo, como era para o niilista apoca
líptico, com a única diferença de que seu objetivo não era chegar de um
só impeto ao limiar de uma nova era, mas viajar, abandonar todas as
moradas confortáveis que, por um momento, seduziam seu corpo e seu
espírito cansados, continuar por tempo indefinido o seu caminho em
demanda de novos horizontes.
Nietzsche é assim, num certo sentido, mais destrutivo do que seus
congêneres europeus e, num outro sentido, menos destrutivo. Seu nii
lismo é mais abrangente do que o niilismo, por exemplo, da utopia
liberal, da positivista, da socialista, da nazista e mesmo mais abrangente
do que o da utopia marxista, que não rejeita a cultura, pelo menos sob
forma de ideologia. Mas é menos agressivo do que todas as outras
NIETZSCHE: O SÓCRATES DE NOSSOS TEMPOS 171
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formas de niilismo mitigado, porque não consiste numa eliminação pura
e simples desta ou daquela parte da cultura, como acontece com a utopia
liberal, que elimina a disciplina da vontade; com a positivista, que
elimina a metafísica; com a socialista, que elimina a autonomia do
indivíduo; com a nazista, que elimina a autonomia do espírito, e com a
marxista, que elimina a espiritualidade. Não, o niilismo nietzschiano
considera a cultura e a história entraves, obstáculos não a um movimento
impetuoso que se lance em direção ao limiar de uma nova era onde não
existiriam mais nem história nem cultura (como o niilismo apocalíptico
dos russos), mas a um movimento menos apocalíptico de reformulação
total dessa cultura, sobre bases absolutamente novas e até um certo
ponto ignoradas.
Já em 1873, no seu ensaio “sobre a verdade e a mentira num sentido
extramoral”, Nietzsche assim se exprimia:
N u m c a n t o q u a l q u e r a f a s ta d o d o u n i v e r so p e r d i d o n o c i n t i la m e n t o d e i n u m e r á v e is
s i st e m a s s o l a r e s e x is ti u u m a v e z u m a s t r o s o b r e o q u a l a n im a i s a s t u c i o s o s i n v e n ta r a m o
c o n h e c i m e n t o . F o i o m i n u t o m a i s a rr o g a n t e e m a i s m e n t i r o s o d a h i s tó r i a u n iv e r sa l; n ã o
d u r o u e n t r e ta n t o s e n ã o u m m o m e n t o . H o u v e a lg u n s p o u c o s s u s p ir o s d a n a tu r e z a e l o g o
o a s t r o s e c o n g e l o u e o s a n i m a i s a s t u c i o s o s m o r r e r a m . - A s s im a l g u é m p o d e r i a in v e n t a r
u m a f á b u l a e e n t r e t a n t o e s t a r ia a i n d a m u i t o , l o n g e d e t e r i lu s t r a d o q u ã o d i g n a d e
c o m i se r a ç ã o e r a a e x c e ç ã o , p a s s a g e ir a c o m o u m a s o m b r a f u g it iv a - q u ã o d e s t i tu í d a d e
f in a l id a d e e d e s e n t i d o e r a a e x c e ç ã o q u e c o n s t it u í a o i n t e l e c t o h u m a n o n a n a t u r e z a .
H o u v e e t e r n i d a d e s d u r a n t e a s q u a i s e l e n ã o e x i st iu ; e q u a n d o t i v e r d e s a p a r e c i d o d e n o v o
s e r á c o m o s e n a d a t iv e s s e o c o r r id o . P o r q u e n ã o e x i s te p a r a o i n t e l e c t o u m a m i s s ã o m a i s
v a s t a q u e s e p r o l o n g a r i a a l é m d a v id a h u m a n a .
Já em 1873, portanto, as bases do niilismo de Nietzsche estavam
assentadas. Se a existência do intelecto humano é coisa efêmera, que
desaparece como um grão de poeira perdido nas eternidades, como
quando ainda não existia ou como quando não existir mais - se o sentido
que o intelecto humano atribui às coisas e ao mundo deverá também
desaparecer, perdido nessas eternidades, não está longe o dia em que
se tirará a conclusão de que a existência efêmera de um mundo dotado
de sentido equivale praticamente à sua inexistência.
Em 1878, quando Nietzsche publicou o seu Humano, demasiada-
mente Humano, a conclusão já estava tirada. No primeiro livro dessa
obra, Dos Princípios e Fins, Nietzsche nos mostra como as verdades que
o homem procura atribuir ao mundo são todas falsas e ilusórias, inau
guradas apenas para assegurar a existência da raça humana no nosso
planeta.
172 MARIO VIEIRA DE MELLO
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O e s p í r it o d e c i ê n c ia [ d iz - n o s e le ] é f o r te n o d e t a l h e , m a s n ã o n o t o d o . O s d o m í n io s
d i st in t o s d a c iê n c ia - o s m e n o r e s - s ã o t r a ta d o s d e m o d o p u r a m e n t e o b j e ti v o , m a s a s
c i ê n c i a s m a i o r e s , u n i v er s a is , s e c o n s i d e r a d a s u m t o d o , f a z e m a o c o n t r á r io s u b i r a o s l á b i o s
a q u e s t ã o , id e a l s e m d ú v id a : f a z e r i s so p o r q u ê ? c o m q u e u t i li d a d e ? [ ...] A t é o p r e s e n t e
n ã o h o u v e a i nd a u m f il ó s o f o n a s m ã o s d e q u e m a f il o so f ia n ã o t e n h a s e t o m a d o u m a
e s p é c i e d e a p o l o g ia d o c o n h e c i m e n t o [ e n ã o u m c o n h e c i m e n t o ve r d a d e ir o , a c r e sc e n t a
r í a m o s n ó s ].
A essência do problema é, pois, que o mundo é destituído de sentido
e que os filósofos e as religiões inventam fábulas para encobrir essa
situação. Nietzsche não se contenta com a generalidade dessa afirma
ção. Estuda um por um todos os meios de que o homem se utiliza para
cobrir o mundo da rede de interpretações e de explicações que possa
torná-lo mais favorável, mais habitável para o ser humano. Estuda os
meios de que lança mão o homem para descobrir verdades que sejam
úteis à vida humana, que possam assegurar-lhe mais proteção, mais
tranquilidade, mais confiança no futuro. Verifica que a grande desco
berta realizada pelo homem foi simplesmente compreender que, atri
buindo a essas verdades úteis, necessárias à vida, um caráter absoluto,
independente, estaria transformando o mundo que é destituído de
sentido numa morada adequada ao homem, num lugar em que o homem
se sentiria à vontade, num mundo, enfim, dotado de sentido.
Mas abandonemos, por enquanto, as análises de Nietzsche que
mostram o homem empenhado em mobiliar o mundo para transformá-
lo numa morada aprazível e confortável. Concentremo-nos sobre seu
niilismo, que consiste precisamente nisto: o mundo é totalmente indife
rente ao homem. Não há como encontrar no mundo vestígios de uma
intenção, seja ela qual for, com relação ao homem. “O homem e o
mundo”, diz-nos Nietzsche. Que pretensão se revela nessa simples
partícula, nessa conjunção! Não há uma medida comum entre uma coisa
e outra. E a única decisão que o homem pode tomar é a de encontrar
em si mesmo um sentido, um objetivo, uma finalidade de que o universo
como um todo é absolutamente privado.
Esses são os limites do niilismo de Nietzsche. Não nega que o
homem possa criar para si mesmo um sentido, um objetivo, uma finalidade. O que nega é que exista, anteriormente a qualquer intervenção
humana, um sentido prefixado para o mundo em sua totalidade. Mas
sua negação, que a primeira vista pode parecer de pouco alcance,
equivale, na verdade, a um terremoto de violência suficiente para fazer
desmoronar as estruturas do mundo em que o homem se habituou a
NIETZSCHE: O SÓCRA TES DE NOSSOS TEMPOS 173
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viver. A humanidade não crê num sentido, num valor que não tenha suas raízes no Ser, na objetividade do mundo. Se o sentido está só em mim e
não nas coisas, e não no mundo - reflete habitualmente o homem -, então esse sentido não existe. Mas não é terrível viver dentro de um
mundo sem sentido? - Toda a problemática do pessimismo e do otimismo que ocupou tanto o espírito do jovem Nietzsche deriva dessa pergunta. Os gregos da época trágica eram pessimistas, segundo o jovem
filólogo, porque pressentiam a realidade terrível de um mundo sem
sentido. Dionísio era o deus que lhes dava uma medida exata do mundo
em que viviam, era o deus que os punha em contato com a realidade
terrível desse mundo, realidade perigosa, destrutiva, mas irrecusável.
Apoio, entretanto, era o deus que os salvava através do sonho das belas
formas e aparências.Depois da ruptura com Wagner e de um período extremamente
difícil de sofrimentos físicos e espirituais, a pergunta se apresenta de
novo para Nietzsche, em toda a sua intratabilidade: diante do caráter
terrível de um mundo totalmente destituído de sentido, e privado dos
benefícios do sonho apolíneo, que novo sonho poderá salvar o homem?
- Nietzsche responde depois de um período de pausa e reflexão, de um
período em que submete a questão do pessimismo a um novo exame e
em que conclui que pessimismo e otimismo são palavras que perderam
o crédito, já que o mundo não é bom nem mau -, Nietzsche responde:
o que pode salvar o homem é a “gaia ciência”. Nietzsche nos diz num
texto memorável:
T a l v e z o r is o t a m b é m t e n h a u m f u tu r o a su a f r e n t e . T a l v e z o r i so p o s s a s e r u m d ia
o a l i a d o d a s a b e d o r i a e n ã o h a j a o u t r o sa b e r q u e o d a G a i a C i ê n c ia ! [ ...] N ã o s e e n c o n t r o u
a i n d a a lg u é m q u e s a i b a d iv e r t ir - se c o m e s s e s p r o m o t o r e s , e s s e b e n f e i t o r e s d a h u m a n i d a
d e q u e s ã o t ã o c e l e b r a d o s ! E s s e s h o m e n s q u e n o s d i z e m : s i m , v a l e a p e n a v i v e r ! S i m ,
s o m o s d i g n o s d e v i v e r ! e n o s t o m a m i n t e r e s s a n t e s p o r u m b r e v e p e r í o d o a t é q u e
n o v a m e n t e o r i s o , a r a z ã o e a n a t u r e z a r e t o m e m s e u s d i r e i t o s e a a r t i f i c i a l m e n t e
i m a g i n a d a t r a g é d i a n ã o s e t r a n s f o r m e m a i s u m a v e z n a e t e r n a c o m é d i a d a e x i st ê n c i a . É
p r e c i s o q u e o n d a s e m a is o n d a s d e h i la r id a d e a p a r e ç am p a ra s u b m e r g i r m e s m o a q u e le
q u e é o m a i o r e n t r e e s s e s tr á g ic o s .
Negar o sentido do mundo é destruir as raízes ontológicas do Valor.
Não é só o mundo físico mas também o mundo moral, o mundo religioso, o mundo social que a violência do abalo sísmico destrói.
D e u s e s tá m o r t o ! - n ã o e ra e le q u e m c o m u n i ca v a a o m u n d o s e u s e n t id o ? C o m e l e
d e s a p a r e c e m t o d a s a s e s tr u t u r a s m o r a is , in t e l e c tu a i s , s o c i a i s - o e f e i t o é r e a l m e n t e o d e
174 MARIO VIEIRA DE MELLO
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u m v i o le n t o t e r r e m o t o . O p r o b l e m a e n t r e t a n t o é q u e n ã o p e r c e b í a m o s o g r o t e s c o i m e n s o
q u e e x i s te n o f a t o d e p e n s a r q u e o m u n d o f o i f e i to p a r a n ó s , q u e f o i o r g a n i z a d o e m n o s s a
in t e n ç ã o . N ã o p e r c e b í a m o s c o m o é c ô m i co p e n s a r q u e h a v ia u m a p r o v i d ê n c i a a s e o c u p a r
d e n ó s - a p r o d u z ir á g u a p a ra m a t a r n o s s a se d e , a r p a r a q u e p u d é s s e m o s r e sp ir a r, um S o l
p a r a n o s e s q u e n t a r . E s s a i d é ia d e q u e h a v ia a l g u é m q u e c u i d a v a d e n ó s e s ta v a e c o n t in u a
a e s ta r d e t al m o d o e n tr a n h a d a n o n o s s o s e r q u e n ã o p e r d í a m o s a o c a s i ã o d e h o n r a r e
p r e s t ig i a r a q u e l e s q u e d e u m a m a n e ir a o u d e o u t r a n o s d e s s e m a i m p r e s s ã o d e e s t a r
c o l a b o r a n d o n e s s a g r a n d e o b r a d e a s s is t ê n c ia à s u t il id a d e s v á r i a s q u e e s t ã o li g a d a s a o
e x is ti r d o h o m e m . N e s s a s o c a s iõ e s d e r e c o n h e c im e n t o p ú b l ic o d e b e n f e it o r ia s n o s
t o r n á v a m o s s o l e n e s e g r a ve s; e c o m o e r a m t a m b é m o c a s i õ e s e m q u e e x a lt á va m o s as
v i r tu d e s q u e h a v i a m s i d o c a p a z e s d e p r o m o v e r t a i s b e n f e it o r i a s , o t a l e n t o , a i n t e li g ê n c ia ,
o s a b e r - r e a li za v a -s e n a t u r a lm e n te , se m o m e n o r e s fo r ç o , a f u s ã o d o s a b e r e d a g ra v id a d e .
N ã o e r a p o ss ív e l te r d o m u n d o u m c o n h e c i m e n t o a d e q u a d o s e n ã o a tr a v é s d e u m s a b e r
grave . N a f i l o s o f ia , na t eo l og i a , nas c i ênc i as em gera l , o r i so era pro i b i do . A h i s t ór ia do
m u n d o e r a u m d r a m a , p o r v e z e s u m a t r a g é d i a . F ic a v a t o t a lm e n t e e x c l u íd a a p o s s i b i li d a d e
d e s e e n c a r a r a e x i st ê n c i a c o m o u m a c o m é d i a .
Nietzsche encontrava assim um sucedâneo para o sonho apolíneo
da época trágica dos gregos. Pessimismo e otimismo eram palavras que
haviam perdido o crédito. A realidade do mundo era terrível porque era
destituída de sentido - mas o sentido grave que se havia querido
emprestar ao mundo era cômico, e a primeira coisa que um espírito livre, recentemente emancipado dessa gravidade, podia fazer era rir-se dela
e do sentido a que estava ligada.
Neste ponto, torna-se necessária uma pausa e indispensável um
retorno ao problema que levanta o Zaratustra. No novo prefácio escrito
para a segunda edição de 1886 de A Gaia Ciência, edição que continha
um novo livro, Nietzsche solicita:
m a s q u e m p u d c r q u e m e p e r d o e d e u m p o u c o d e l o u cu r a , d e e x u b e r â n c ia , d e g a ia c iê n c ia
- p o r e x e m p l o , u m p u n h a d o d e c a n ç õ e s n as q u a i s u m p o e t a e s c a rn e c e d e to d o s o s p o e t a s
d e m o d o d i fi c il m e n t e p e r d o á v e l.
E acrescenta:
A h ! n ã o é s o m e n t e c o m r e s p e it o a o s p o e t a s e s e u s b e l o s se n t i m e n t o s l ír ic o s q u e e s t e
r e s s u s c it a d o s e n t e o d e s e j o d e e x e r c e r s u a m a l íc ia : q u e m s a b e q u e g ê n e r o d e v í ti m a
e s c o lh e r á , q u e m o n s t r o d e a s s u n t o p a r ó d i c o o e x c it ar á d e n t r o e m p o u c o ? Incipit t ragéd i a
e s t á e s c r it o n o f im d e s t e li v ro d e u m a d e s e n v o l t u r a i n q u i e ta n t e - q u e s e f aç a a t e n ç ã o !
A l g o d e e s s e n c i a l m e n t e s i n i st r o e p e r v e r s o s e p r e p ar a : Incipit p a r ó d i a , d i s s o n ã o h á a
m e n o r d ú v i da .
NIETZSCHE: O SÓCRATES DE NOSSOS TEMPOS 175
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A alusão ao Zaratustra não podia ser mais clara. Hollinrake tem
carradas de razão em utilizar essa citação como apoio de sua tese
segundo a qual o Zaratustra seria uma paródia das obras de Wagner. A
“vítima”, o “monstro” de assunto paródico não poderia ser senão o
grande compositor musical. O resultado do exercício de sua malícia não
podia ser senão o Zaratustra que Nietzsche terminara pouco antes de
escrever aquele prefácio. A intenção de Nietzsche havia sido evidente
mente fazer do Zaratustra uma obra que transpirasse humor, alegria,
leveza de coração, espontaneidade no riso, prazer de dança e de movi
mentos harmoniosos, toda uma sinfonia que exprimisse o máximo de
euforia humana em face de um mundo que havia sido compreendido no
mais íntimo de seu âmago, isto é, o máximo de euforia humana em face
de um mundo que se sabia ser totalmente destituído de sentido. A
paródia parecera, a Nietzsche, ser a melhor maneira de exprimir essa
veia cômica que já então era inseparável, para ele, da gaia ciência. E
Wagner, naturalmente, que havia representado a grande paixão de sua
vida, o grande sentido que o mundo, em certa hora, lhe parecera ter -
Wagner se apresentava inelutavelmente como o objeto preferido sobre
o qual teria Nietzsche o desejo de exercer sua malícia, sua veia cômica.
Haverá naturalmente quem discorde da interpretação de Hollinra
ke; e haverá também quem não possa aceitar o fato de que o Zaratustra
seja o resultado de um momento em que falhou, na vida de Nietzsche,
a inspiração socrática. Mas o argumento de que se trata de um grande
livro, que não pode ser reduzido aos estreitos limites de uma paródia -
e nem tampouco explicado pela falha de uma inspiração, fosse ela qual
fosse -, esse argumento, se desassistido por outras razões, impressiona
pouco. Não se trata aqui de negar a beleza de muitas passagens do livro
e não só da beleza como da profundidade de alguns dos conceitos
emitidos. Trata-se de avaliar o sentido geral do livro, sua significação
como um todo e não aspectos isolados. O que acontece com o Zaratustra
é que, ao lê-lo, nosso espírito não está em condições de ligar essa ou
aquela sugestão que nele encontramos ao mundo de idéias, que é o
nosso; não está em condições de fazê-lo, pois qualquer sugestão, qual
quer pronunciamento que lá esteja se encontra forçosamente ligado a
uma personagem central que, em princípio, deveria estar definida dessa
ou daquela maneira, mas que, na realidade, não o está; de modo que
permanecemos numa oscilação estéril entre uma personagem central
não bem delineada e seus pronunciamentos, que nada mais representa
vam do que idéias abstratas, sem qualquer vínculo com uma personali
176 MARIO VIEIRA DE MELLO
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dade bem-estruturada e definida - oscilação estéril que inviabiliza nossa
contribuição pessoal capaz, eventualmente, de se transformar em sim
patia e em comunhão de sentimentos e idéias.A intenção inicial de Nietzsche, como já dissemos, havia sido pro
vavelmente fazer do Zaratustra uma obra que transpirasse alegria, leveza
de coração, riso espontâneo - a prova decisiva de que o objetivo do livro
não foi alcançado é que, em momento nenhum, Nietzsche consegue
fazer rir o leitor; em momento nenhum consegue tornar mais leve seu
coração; em momento nenhum comunica ao leitor qualquer alegria.
Sócrates nos faz sorrir quando alega ter uma memória demasiadamente
fraca para poder acompanhar as longas dissertações de Protágoras.
Kierkegaard nos faz sorrir quando imagina os livros de Hegel sem data,
sem título, sem indicação de procedência. Mas Nietzsche, com seu
Zaratustra, apesar de falar em alegria, em risos, em passos alados e
movimentos de dança, apesar da exortação de Zaratustra - “Aprendei
a rir!” -, apesar de tudo isso, Nietzsche só consegue nos transmitir,
através de todo o livro, a sensação, talvez, de um riso sarcástico que não
nos conquista e que, pelo contrário, só produz o efeito de criar entre
Nietzsche e nós um abismo de incomunicabilidade e de estranhamento.
Se Nietzsche tivesse conseguido nos transmitir a sensação de jovia
lidade, de euforia que são os estados de alma exaltados no livro, ele teria
realmente conseguido realizar a obra que pensava, ainda nos últimos
dias de sua vida consciente, ter de fato escrito. Se não conseguiu nos
transmitir a sensação de tais estados de alma foi porque efetivamente
não podia, por mais esforços que fizesse para sentir dentro de si as
emoções correspondentes. Nietzsche é um escritor genial, um dos maio
res que já houve, e não se pode conceber que ele tenha experimentado
dificuldades em passar para o papel aquilo que lhe ia na alma. A única
explicação que se pode encontrar para o caráter insatisfatório do Zara
tustra é o fato de uma paralisia das emoções que o impediu de transfor
mar em vivência aquilo que naquele momento constituía o seu credo: a
gaia ciência. Esse era já o seu credo antes da experiência com Lou e era
o credo que teoricamente deveria permanecer até o fim de sua vida
consciente - mas a experiência com Lou havia sido amarga, havia lhe
roubado a possibilidade de transpor para a literatura um estado de alma
que não era capaz de vivenciar. Depois da decepção que se seguira às
esperanças, aos belos momentos, à sensação de um encontro com a
discípula perfeita; depois da decepção que se seguira à expectativa de
uma vida em comum em que os poderes de Eros e da filosofia se
NIETZSCHE: O SÓCRA TES DE NOSSOS TEMPOS 177
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conjugassem como nos tempos de Sócrates - depois de tudo isso era
difícil encarar a falta de sentido das coisas com jovialidade. É claro que
esse foi um período de grande depressão para Nietzsche, como atesta sua correspondência e como não podia deixar de ser. Foi durante esse
período que foi escrita a maior parte do Zaratustra. É estranho que
muito se tenha falado sobre esse livro, mas pouco se tenha dito sobre o
contraste existente entre o estado de espírito do autor no momento em
que o escrevia e a profissão de fé, os sentimentos, os estados de alma
que procurava exprimir.
A consequência de tudo o que acabamos de descrever foi que o
niilismo de Nietzsche, mitigado como já dissemos, num certo sentido
menos destrutivo que as utopias do mundo moderno - pois via no riso,
na alegria, um anteparo, uma restrição ao ímpeto niilista - a conseqüên- cia foi que, em virtude de sua incapacidade de transmitir, pelas razões
que apontamos, a sensação do cômico e da alegria, esse niilismo tornou-
se algo de profundamente radical e, de um certo modo, incompreensível. O super-homem é uma expressão que rola de boca em boca, como uma
moeda falsa, extremamente bem-cunhada, rolaria de mãos em mãos até
que se descobrisse que era apenas um metal que circulava ilegalmente.
O aspecto construtivo da obra de Nietzsche não parece, pois, se encontrar no Zaratustra como muita gente tem o ar de pensar - encontra-se
justamente naquela parte de seus trabalhos que aparentemente é apenas
crítica e corrosiva. Antes de Elisabeth Fórster com suas manipulações
de texto, falsificação de cartas etc., etc., criar uma imagem totalmente
falsa do irmão, já o Zaratustra havia contribuído para estabelecer, em
torno de Nietzsche, uma zona de silêncio que perdurou até o colapso que o vitimou. O Nietzsche das máscaras, da comunicação indireta, da
inspiração socrática ficou durante vários anos submergido pela interpretação zaratustriana de sua obra, que o livro, de um certo modo, e a
insistência da irmã, sobretudo, fizeram prevalecer. Na verdade, é justamente nesse Nietzsche das máscaras, da comunicação indireta, da inspiração socrática que parece encontrar-se o aspecto construtivo de sua
obra. Seria, assim, preciso inverter a ordem que a opinião geral estabe
lece para a avaliação dessa obra se quiséssemos ter uma noção mais correta das coisas. O que parecia ser corrosivo e crítico é, na realidade,
o que contém a boa semente já germinando para o futuro; e o que
parecia ser uma mensagem, um descerrar de cortinas, uma revelação de
horizontes novos, é de fato a semente caída em terreno calcinado e que, por falta de água, já começa a murchar.
17S MARIO VIEIRA DE MELLO
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E depois do Zaratustra? Que anteparo poderia Nietzsche encontrar
para o seu ímpeto niilista já que o riso, a comédia, a alegria eram estados
dr alma que ninguém se podia forçar a ter, que não se podia improvisar,
que não dependiam de nossa vontade, que não se submetiam ao nosso
comando? O Livro V da Gaia Ciência, publicado depois do Zaratustra,
se abre tendo como epígrafe a frase célebre de Turenne. Isso é para nós
um aviso. Já podemos ter uma idéia do que virá depois. Agora o
anteparo de Nietzsche para o seu niilismo é pura e simplesmente a
coragem. Desse momento em diante, a filosofia de Nietzsche vai se
desenvolver como uma filosofia da coragem, uma filosofia que faz da
coragem não apenas uma virtude física, não apenas uma virtude moral,
mas uma virtude espiritual porque é através dela, através da sua infati
gável procura, através da sua vocação para o conhecimento e também
através do seu grandioso heroísmo que o mundo, arrasado por uma
suspeita universal, pôde começar a se recompor e, partindo de uma falta
absoluta de sentido, se orientar para algo que pareça com uma estrutura
organizada ou um esboço de intenções.
Já indicamos anteriormente qual é, de um modo geral, a significação
da coragem na obra de Nietzsche. Aqui o que nos interessa é fixar sua
significação no que diz respeito ao problema do niilismo. Os efeitos da
percepção por parte do homem, da falta de sentido do universo, podem
ser neutralizados por um simples ato de coragem? Esgota-se o sentido
deste ato com essa simples neutralização? Essa era a questão que
parecia preocupar Nietzsche a partir do Livro V da Gaia Ciência. Aonde
quer Nietzsche levar sua “Carcaça”, seu corpo e seu espírito, uma vez
que, com a percepção da falta de sentido do mundo, ele parece já ter
atingido o máximo do perigo? Que idéia pior que essa seria necessário
fazer seu espírito suportar? O que Nietzsche parece agora pôr em
dúvida é a própria validade de sua suspeita universal. Não seria ela
também uma ilusão, uma ilusão a mais a ser removida, um contentamen
to que se procurava, uma satisfação de poder dizer não ao universo
inteiro? Se seu espírito podia suportar a idéia da falta de sentido do
universo, poderia ele suportar também a idéia de que essa suposta falta
de sentido era uma inverdade que derivava do mesmo instinto que criara
a fábula de um universo pleno de sentido? - Era para esses abismos de
perplexidade que conduzia Nietzsche agora seu espírito. Quanto mais
fundo fazia penetrar o bisturi da análise, mais descobria o filósofo a
inseparabilidade dos dois aspectos que podem ter as coisas, o negativo
e o positivo. Nietzsche descobre então a origem da má consciência. Ela
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não é uma consequência do castigo que a sociedade impõe ao criminoso.
Esse castigo, pelo contrário, endurece o culpado, torna-o mais decidido
na sua intenção criminosa. Nietzsche descobre a má consciência como
o estado mórbido em que caiu o homem quando sofreu a transformação
mais radical de que já se teve notícia - quando, semi-animal, acostuma
do à vida selvagem e à guerra, às correrias e aventuras, viu-se de repente
obrigado a renunciar a todos os seus instintos - quando a sociedade
procurou domesticá-lo, transformá-lo num ser pacífico e inofensivo.
Quando isso sucedeu, aqueles instintos, sob a enorme força repressiva
da sociedade, voltaram-se para dentro, criando o que se chama a
interiorização do homem - e assim se desenvolveu o que mais tarde veio
a se chamar de alma.
Nietzsche descreve, assim, como apareceu no mundo a mais peri
gosa de todas as doenças, o homem doente de si mesmo, conseqüência
de um divórcio violento com o passado animal, de um salto para novas
condições de existência, de uma declaração de guerra contra os antigos
instintos, que constituíam antes sua força e seu caráter temível. Não
parece haver dúvida de que se trata de um grande perigo, de uma
situação de alto risco - a condição do homem doente de si mesmo. Mas
Nietzsche acrescenta que
o f a t o d e u n ia a lm a a n i m a l e n tr a r d e n t r o d e si m e s m a d e u a o m u n d o u m e l e m e n t o tü o
n o v o , tü o p r o f u n d o , tü o i n a u d i to , tã o e n i g m á t i c o , t ã o r i co e m c o n t r a d i ç õ e s e e m p r o m e s
s a s d e f u tu r o q u e o a s p e c t o d o m u n d o m u d o u r e a l m e n t e . E m v e r d a d e fa lt av a m e s p e c t a
d o r e s d i v in o s p ar a sa b o r e a r o d r a m a q u e e n t ã o c o m e ç o u e c u j o fi m n ã o s e p o d e a in d a
p r e v e r , d r a m a d e m a s i a d a m e n t e d e l ic a d o , m a r a v i lh o s o e a n t i n ô m i c o p a ra q u e c a r eç a d e
s ig n i f ic a ç ã o n o p la n e t a . D e s d e e n t ã o o h o m e m v e i o a s e r u m d o s f e i to s m a i s f e li z e s da
c ria n ça g r a n d e d e H e r á c li to q u e t e m p o r n o m e Z e u s o u A z a r e d e s p e rt a e m s e u f a vo r
i n t e r e s s e , a n s i o s a e x p e c t a t iv a , e sp e r a n ç a s e q u a s e c e r t e z a s , c o m o s e a n u n c i a ss e a lg u m a
c o i sa , c o m o s e o h o m e m n ã o f o s s e u m fi m m a s a p e n a s u m a e ta p a , u m i n c id e n t e , u m a
t rans i ção , um a p rom es s a [ ...] .
Nessa mesma ordem de idéias Nietzsche nos explica que, na casta
sacerdotal,
t u d o s e t o r n a m a is p e r i g o s o , n ã o s ó a d i a lé t ic a e a te r a p ê u t i ca , m a s t a m b é m o o r g u l h o , a
v i ngança , a pers pec t iva , o am or , a am bi ção , a v ir t ude e a doen ça .
E também que
é j u s t o c o n s i g n a r q u e é n o s e i o d e s t a c la s s e e s s e n c i a lm e n t e p e r i g o s a d e h o m e n s q u e o
h o m e m c o m e ç a a s e r um animal interessante e a a d q u i r ir u m a a l m a p r o f u n d a e m a l d o s a ,
ISO MARIO VIEIRA DE MELLO
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q u e l h e a s s e g u r a a su p r e m a c ia s o b r e o r e i n o a n i m a l . [...] S ó u m p o v o d e s a c e r d o t e s c o m o
o s j u d e u s p o d e r ia t e r s e v in g a d o d o s s e u s d o m i n a d o r e s , o s n o b r e s , c o m u m a v i n g a n ç a
es s en c i a l m en t e e s p i r it ua l . Com um a l óg i ca f orm i dáve l a ti raram p or t erra a ar i s tocrá t i ca
e q u a ç ã o d o s v a l o r e s b o m , n o b r e , p o d e r o s o , f o r m o s o , f e l i z , a m a d o d e D e u s e c o m o
e n c a r n i ç a m e n t o d o ó d i o a f ir m a ra m : s ó o s d e s g r a ça d o s s ã o b o n s ; o s p o b r e s , o s i m p o t e n
t e s, o s p e q u e n o s s ã o o s b o n s ; o s q u e s o f r em , o s n e c e s s it a d o s , o s e n f e r m o s s ã o o s p ie d o s o s ,
s ã o o s b e n d i t o s d e D e u s . [...] O q u e é m a i s c u r i o s o e n t r e t a n t o é q u e d o t r o n c o d a á r v o r e
d a v in g a ç a e d o ó d i o - d o ó d i o j u d a ic o , d o ó d i o m a i s p r o fu n d o e m a i s su b l im e q u e o
m u n d o já c o n h e c e r a , d o ó d i o c r i a d o r d o i d e a l, d o ó d i o tr a n s m u t a d o r d e v a lo r e s , d o ó d i o
s e m s e m e l h a n t e n a te r ra - , d o t r o n c o d e s t e ó d i o t e n h a s a í d o u m a c o i s a i n c o m p a r á v e l, um
a m o r n o v o , a m a i s p r o fu n d a e a m a i s s u b l im e f o r m a d o a m o r .
Nietzsche descobriu todas essas coisas. Como perseguir então uma
só linha de raciocínio, ficar apenas com um lado das coisas e desprezar
o outro? Tudo o que o mundo continha no seu bojo parecia ter ao mesmo
tempo um valor positivo e outro negativo (e nisso residia sua falta de
sentido), o bem tanto quanto o mal, e muitas vezes mesmo no bem
parecia prevalecer o aspecto negativo e no mal o aspecto positivo. Essa
perspectiva colocava a noção de falta de sentido do mundo numa
situação especial. Havia um sentido dissimulado, um sentido escondido
a ser captado, um enigma a ser decifrado através da falta de sentido que
tanto nos havia perturbado.
Chegando a esse ponto, Nietzsche tinha então se transportado para
um mundo inteiramente novo, um mundo não mais falto de sentido mas
enigmático. Um mundo em que era possível dizer não e sim à mesma
coisa. Um mundo em que a verdade que parecia ter sido banida reaparecia, embora sob forma enigmática. Um mundo em que a verdade
existia, embora parecesse estar seqüestrada. Seqüestrada por quem?
Sequestrada por seres que a deformavam, que a assimilavam à sua
própria substância monstruosa, seqiiestradores que eram dragões. Que
devia fazer o homem que se obstinasse em persegui-la? A pergunta
certamente não estava bem formulada. O que se deveria indagar seria
antes: como deve ser o homem que insiste eih persegui-la? - É aqui que
se encontra então, naturalmente, a explicação para a nova atitude, para
a nova solução que Nietzsche descobre para o seu niilismo mitigado. O
mundo não é totalmente destituído de sentido, existe um sentido oculto,
enigmático, quase inacessível, que não é impossível descobrir; mas, para
fazê-lo, o homem precisa desenvolver dentro de si mesmo uma coragem
que poderia ser um fenômeno novo em nosso planeta - uma coragem
que não se contenta em enfrentar o perigo presente, mas que se lança
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com a consciência de uma necessidade inelutável em direção ao perigo
que pressente.
Já nos referimos anteriormente à interpretação que Bertram faz do
Sócrates nietzschiano - um produto de sua nostalgia. Bertram considera
também que Nietzsche é um cristão que se ignora: “Quem foi um cristão
mais apaixonado e mais heroicamente asceta, mais desesperado do que
Nietzsche?”, pergunta ele no capítulo intitulado “O Cavaleiro, a Morte
e o Diabo” do seu belo livro. Esse tipo de interpretação nos mostra qual
foi a tendência geral do pensamento de Bertram ao escrever o seu
ensaio: ela consiste em atribuir à natureza própria de Nietzsche a
ambigüidade, a oscilação contínua entre um sim e um não que julga
possível registrar de maneira permanente através de toda a obra do
filósofo.
Jaspers também, que trata Nietzsche no seu ensaio como um pre
cursor da “filosofia da existência”, diz interessar-se não pela filosofia de
Nietzsche mas pelo seu “filosofar”. Com isso quer dizer naturalmente
que o seu interesse estava não no que o filósofo pudesse ser ou pensar,
mas naquilo que pudesse vir a ser ou pensar, depois de superado aquilo
que era ou que pensava antes. Esse processo de superação, entretanto, concebido como um fim em si era incapaz de oferecer um conteúdo e
se reduzia finalmente a uma autodilaceração contínua e sem objetivo.
Kaufmann tem perfeitamente razão em dizer, no seu ensaio sobre
Nietzsche, que o resultado das análises de Jaspers não diferem essen
cialmente das realizadas por Bertram, embora não pareça ter razão
quando afirma que Jaspers foi influenciado por Bertram ou pelas idéias
do círculo de Stefan George, a que Bertram pertencia. Bertram atribui
o fato de Nietzsche poder dizer, constantemente, e, ao mesmo tempo, sim e não a uma mesma coisa, a um traço de sua natureza, ambígua,
romântica, dividida, traço que confere à sua filosofia um caráter todo
especial e que lhe empresta uma auréola de legenda. Jaspers vê uma
semelhança entre a mobilidade do pensamento de Nietzsche e a mobi
lidade da realidade da existência.
Nós que viemos lentamente acompanhando a problemática do
filósofo e que vimos, como ponto de partida do seu niilismo, o pessimis
mo da época trágica dos gregos, em que a proteção contra o sentimento
dionisíaco do destino como realidade trágica era dada pelo otimismo
do sonho apolíneo, das belas formas e harmoniosas aparências - nós que
vimos como seu niilismo evoluiu para uma visão em que pessimismo e
otimismo não mais se opunham um ao outro porque ambos haviam
182 MARIO VIEIRA DE MELLO
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perdido qualquer sentido; em seguida como evoluiu ainda para uma
outra perspectiva, em que o esforço dos benfeitores da humanidade
para dar um sentido ao mundo era objeto de riso e de chacota; e
finalmente para a visão de um mundo enigmático, em que as coisas pareciam não só possuir um sentido mas também o seu contrário e por
isso exigir de quem as considerasse uma dose super-humana de coragem
- nós que viemos acompanhando lentamente essa evolução temos ra
zões para acreditar que a ambigüidade do filósofo seja inerente não à
sua natureza mas à sua problemática. Nietzsche não dizia ao mesmo
tempo sim e não às mesmas coisas no período de seu pessimismo trágico;
não dizia sim e não no seu período racionalista; não dizia sim e não no
tempo da gaia ciência, do riso e da paródia; começou a fazê-lo unicamente na fase final de sua vida consciente, quando as linhas mais
divergentes da sua evolução espiritual, extraordinariamente complexa,
pareceram subitamente mudar de rumo para convergir em direção a um
ponto real de trágica inevitabilidade. O sim e o não a que se referem
Bertram e Jaspers não são simultâneos, porque só nessa última fase se
apresentam desse modo. Nas outras fases, o sim, quando é pronunciado,
pode ser acompanhado de um não, mas de um não que se apresenta
como um eco remoto, distante, como uma sombra sem forças para
competir com a realidade forte e viva do sim afirmado; quando o não é
pronunciado, pode ser acompanhado de um sim mas de um sim igual
mente fraco e inerme. Só quem pretende recusar a Nietzsche o direito
de evoluir, de passar por um certo número de fases em que os problemas
se reagrupam de uma maneira cada vez diferente, só quem acredita que
a verdade sobre Nietzsche pode ser captada através de um só retrato e
despreza a sabedoria e a prudência dos que o examinam através de uma
série de retratos em diferentes atitudes - só quem tenta sintetizar, num
só momento, experiências que ocorreram em momentos e situações
diversas pode achar Nietzsche contraditório, interessado unicamente
em lutar contra si mesmo e em manter, com respeito a todos os valores,
uma relação de ódio amoroso inextricável. Não há dúvida de que, se
tomarmos afirmações do começo e do fim da vida consciente do filósofo
e se as compararmos entre si, encontraremos contradições. Não há
dúvida de que Nietzsche muito lutou contra si mesmo para conquistar
uma liberdade desejada. E não há dúvida de que, a partir de um certo
momento, ele se deu conta de que o mundo, como o Hermes Bifronte,
representava um enigma que requeria talvez, para que pudesse ser
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decifrado, uma certa ambigüidade senão uma duplicidade. Mas o que
esse enigma exigia mais do que tudo era coragem. A ambigüidade, quan
do não é fruto de um devaneio romântico, fruto da vontade de estar ao
mesmo tempo gozando as delícias de duas posições antagônicas - o que
é possível somente quando não há compromissos nem enraizamento
numa posição ou na outra -, a ambigüidade, quando tem os pés pousa
dos na terra, não é causa de deleite mas de sofrimento e angústia.
Quando, depois de sua ruptura com Wagner, Nietzsche se exilara,
partira em viagem rumo ao desconhecido, abandonando tudo aquilo
que mais amava, tudo aquilo que lhe era mais caro, o longo período de
afastamento, de isolamento lhe permitira adquirir novas luzes sobre uma
porção de coisas, cuja visão ficara sem dúvida prejudicada pela proxi
midade em que delas anteriormente se achava. Agora que estava de
volta da longa viagem, não se arrependia de tê-la feito. Não via mais as
coisas da mesma maneira, mas, ao mesmo tempo, não podia dizer que
houvesse renegado completamente o passado. Tinham ainda um lugar
na sua vida as coisas que tanto amara, as coisas que lhe haviam sido tão
caras. Mas não havia dúvida de que voltara da longa viagem com um
novo amor, com um novo desejo - ou melhor dito: voltava com a intenção
de amar os velhos amores de uma outra maneira, com mais inteireza,
com mais força, com mais lucidez e, sobretudo, com mais coragem. Essa
nova maneira podia inclusive dar a impressão de uma ruptura - não
havia mal em causar tal impressão - e talvez essa nova maneira de amar
equivalesse realmente a uma ruptura. Tudo isso contribuía para dar à
nova situação um caráter extremamente explosivo - mas ainda aqui a
explosão parecia constituir uma ocorrência necessária. O mundo era
enigmático, e esse enigma, como um cofre-forte de aço blindado, talvez
só se abrisse para nós se tivéssemos a coragem de explodi-lo. Era fácil
renegar o passado em nome de um futuro novo, desejado. Era fácil
celebrar o passado e suas façanhas, contar-lhe os méritos e as virtudes
e esperar que o futuro nada mais fosse do que uma continuação de tais
façanhas. Mas é uma tarefa ingente, sobre-humana, impossível, procu
rar dialogar com esse Hermes Bifronte, o mundo enigmático que exige
que as promessas do futuro coexistam com as virtudes do passado. Em
A Genealogia da Moral, Nietzsche nos mostra como foi o sacerdote que
transformou o homem num “animal interessante”. E nos mostra tam
bém como foi a “má consciência”, o sentimento do pecado que trans
formou a alma animal numa alma humana, rica de virtualidades, num
mundo interior cheio de promessas, de pressentimentos de coisas divi-
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nas. Como ficar com o “animal interessante” e esquecer o sacerdote,
como ficar com as promessas e esquecer a má consciência? Nietzsche
era um psicólogo demasiadamente fino para compreender a dificuldade
que havia em dissociar estados psíquicos que vivem num fusionamento
interior incessante e intenso. A coragem que devia cultivar tinha justa
mente sua aplicação no fato de ser necessário afrontar o perigo de
conservar o “sacerdote” para preservar o “animal interessante”, afron
tar o perigo de conservar a “má consciência” para preservar as “pro
messas do mundo interior”. Não eram esses perigos que assumiam
proporções gigantescas? Não eram verdadeiramente dragões? A neces
sidade de conviver com esses dragões coexistia com o imperativo de um
futuro inocente, sem culpabilidade, sem ódios, vinganças ou ressentimentos, um futuro helénico, um futuro dionisíaco. O conflito era violen
to demais, a tensão quase insuportável, Nietzsche sentia de modo cada
vez mais forte, cada vez mais urgente, a necessidade de um mediador.
Nesse momento em que resolve, num último assomo de coragem, pro
curar nas mais recônditas cavernas os perigos monstruosos, no momento
em que resolve encetar a descrição mais cruelmente minuciosa de tudo
aquilo que era mortalmente perigoso conservar, a maneira de fazer sua
descrição revela que quem corre o maior perigo é ele próprio. Sua
filosofia a golpes de martelo pretende destruir apenas as partes do
passado que podem ser destruídas sem perigo. Mas era possível realizar
essa operação delicada sem fazer partir contra si próprio algum golpe
maldirecionado? Nietzsche atinge com violência aspectos do passado
que talvez tivesse querido preservar. O dogma cristão é um amontoado
de mentiras, de falsidades, uma doutrina que envenenara a vida ao
negá-la e que conduzia o homem ao niilismo. O homem moderno mente
quando se diz cristão, não tem respeito pelo ideal ascético, que considera ultrapassado, nem pelo fim que lhe propunha esse ideal - autopu-
nir-se, expiar a própria culpa: chega assim, por vias transversas, àquele
niilismo que era a expressão mais autêntica e mais direta da negação da
vida peculiar ao cristianismo, e contra a qual, apesar de tudo, o ideal
ascético durante muito tempo o havia protegido. Agora também uma
nova acusação feita contra o cristianismo era a de que ele “nos frustrara
da colheita da cultura antiga”.
Nietzsche parece, com isso, voltar com um novo alento ao seu velho
entusiasmo pelo passado grego. Mas esse é um novo entusiasmo não
dissociado de suas preocupações com o cristianismo. Retoma seus
velhos hábitos de filólogo, interpreta o cristianismo utilizando os méto
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dos que usava outrora para investigar o passado helénico. E, na sua
urgência de se valer de um mediador, reencontra naturalmente a figura
do velho Sócrates, já identificado com Dionísio, que poderá aliviá-lo
agora de sua tensão, repartido que está entre dois mundos - Sócrates
que, em virtude de sua extraordinária ubiqüidade, poderá servir de elo,
de ligação entre o mundo grego e o mundo cristão, que agora parecem
disputar entre si as lealdades do filósofo. Não se tem já comparado
Sócrates ao Cristo, as duas vidas dedicadas exclusivamente ao propósito
de tornar melhor o homem, as duas mortes violentas causadas pela
devoção ao culto da verdade? O Ecce Homo, o último livro publicado
por Nietzsche, como Kaufmann bem observou, parece ter sido inspirado
na Apologia de Sócrates. Não vamos repetir aqui o que já dissemos. Mas
tudo leva a crer que assim como Nietzsche insensivelmente foi se
reappoximando de Sócrates, depois de tê-lo rejeitado na sua juventude,
assim também não seria absurdo imaginar que Nietzsche pudesse rea-
proximar-se do Cristo depois de ter passado pela experiência de uma
identificação com Sócrates. Ao lado do cristianismo socrático de um
Kierkegaard, poderia então talvez existir também um socratismo cristão
de origem nietzschiana que insuflasse um novo ânimo, uma nova ener
gia, um novo espírito no cristianismo anêmico, fantasmagórico, inope
rante de nossa época decadente.
Bertram, com sua interpretação de uma ambigüidade essencial em
Nietzsche, consideraria arbitrário que se visse emergir, no final da
evolução de Nietzsche, uma influência preponderante do mestre de
Platão. Seria tão justo - diria talvez ele - fazer a evolução de Nietzsche
girar em torno da figura de Sócrates quanto em torno do cristianismo.
Mas já vimos que a ambigüidade de Nietzsche não deriva de sua
natureza e sim da sua problemática: e o que esta nos mostra é uma
crescente recuperação do prestígio de Sócrates e um não menos pro
gressivo ardor na luta, no combate ao cristianismo. Ainda assim não
poderíamos dizer que Sócrates tivesse definitivamente conquistado o
terreno abandonado pelo cristianismo. O padre jesuíta de quem já nos
ocupamos e que dedicou dois livros, profundamente competentes e
apreciativos, à obra de quem se tornara o mais violento crítico da religião
que professava - Paul Valadier - terminou um deles, intitulado Nietzs
che e a Crítica do Cristianismo, do seguinte modo:
O c r i st ia n i s m o t e m t id o c e r t a m e n t e u m a c o n s c i ê n c i a p a r t ic u l a r m e n t e viv a d a n e c e s
s id a d e d e p r o n u n c i a r o “ s im ” e n v o l t o n o “ n ã o ” e i ss o a ta l p o n t o q u e o “ n ã o ” t e r m i n o u
p o r c o r r o e r t o d a a f i r m a ç ã o . M a s i n v e r s a m e n t e a p e r s p e c t i v a a b e r t a p o r N i e t z s c h e , n o
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q u e t e m d e t e m í v e l e d e t r á g ic o , n ã o c o r r e o r i sc o d e c o n f in a r a li b e r d a d e e m s e u s
p r o t e s t o s , e m c o n s e q i iê n c i a d o f a to d e n ã o l e v ar s u f ic i e n te m e n t e e m c o n t a a s c o n d i ç õ e s
d e s u a c r i a t iv i d a d e ? A t a r ef a f il o s ó f ic a p o r e x c e l ê n c ia n ã o c o n s i st ir i a e m a ju d a r p a c i e n
t e m e n t e o h o m e m a s e a b rir à a f ir m a ç ã o n a c o n v i c çã o d e q u e o “ s im ” , s e m p r e l im it a d o ,
c o r r e se m p r e o r is co d e s e d e ix a r p e r v e r t e r p e l o “ n ã o ” ? Q u e N i e t z s c h e n o s t e n h a
l e m b r a d o q u e h o j e n u m c e r t o se n t i d o , e m t o d o s o s n ív e is d o r e a l, n ã o h a ja q u e s t ã o m a is
im p o r t a n t e , c o n s t it u i a n o s s o s o l h o s s u a c o n t r i b u i ç ã o e s s e n c i a l à c r ia ç ã o d e u m m u n d o
d e l i b e r d a d e .
\
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7. A MEDICINA E A ÉTICA
Werner Jaeger, na sua Paidéia, nos fala do respeito de Sócrates pela
medicina, que era uma das maiores forças intelectuais de sua época. Esse é um ponto que não podemos deixar de lado se quisermos ter uma
compreensão exata da posição de Sócrates na filosofia antiga e uma
noção de sua atitude antropocêntrica. Seu uso de exemplos médicos é
mais do que freqüente - e não constituía uma prática arbitrária; tais
exemplos se ajustavam a seu modo de conceber sua própria personali
dade, a seu ethos, a toda a sua vida. Sócrates era realmente um médico.
Xenofonte chega a dizer que Sócrates se preocupava tanto com a saúde
física de seus amigos quanto com suas boas condições espirituais. Mas
ele era sobretudo, sabemos todos, um médico da alma.O respeito de Sócrates pela medicina não se explica apenas pelo
prestígio que tinha na sua época a ciência médic^. O fato de ser ela uma
das forças que lideravam o movimento cultural em que toda a Grécia se
encontrava envolvida - o fato de ser seu prestígio ainda mais abrilhan
tado pela sua associação com a ciência jónica que representava então o
que havia de mais avançado na cultura helénica -, essas circunstâncias
por si sós não explicariam a atitude respeitosa de Sócrates. Afinal de
contas, Sócrates tivera a coragem de romper com a tradição jónica e não
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poupara críticas às especulações cosmológicas dos representantes dessa
tradição. Um outro fator contribuía para que a ciência médica, apesar
de associada a uma ciência que abertamente criticava, retivesse sua
estima e seu respeito - e esse fator não era outro que o interesse da
ciência médica pelo corpo humano.
Sócrates parece se revelar, assim, como uma das mais legítimas
expressões da sabedoria popular helénica traduzida pela máxima mens
sana in corpore sano. Essa máxima com que nos defrontamos ainda
adolescentes, ao folhear enciclopédias com imagens de estatuária grega
e que esquecemos, anos mais tarde, quando mergulhamos nos proble
mas da modernidade, retém assim um aroma de candura e de ingenuidade que nos envolve todas as vezes que, por uma razão ou outra,
relembramos aqueles tempos em que procurávamos dar alguma forma
a nossas aspirações e entusiasmos.
A cultura moderna se interessa pouco por esse tipo de preocupa
ção. O princípio expresso na máxima mens sana in corpore sano, que
tinha indubitavelmente uma grande importância na vida dos helenos,
reflete a seu ver uma situação de fato, não uma situação de direito, e
pode, por conseguinte, ser ignorado apesar de todo o grande respeito e
consideração que nos mereça a cultura grega. Para a situação de fato
em que se encontravam os gregos, o princípio podia constituir uma
verdade; para nós que vivemos uma outra experiência e que evoluímos
no sentido de uma maior complexidade, o princípio já não pode mais
apresentar qualquer validade. O homem moderno está convencido de
que é perfeitamente possível ter-se uma mente completamente sã num
corpo vítima de graves doenças.
O que é curioso é que uma tal convicção que permeia tudo o que
pensamos e sentimos com respeito à nossa própria cultura, nós a trans
ferimos inconscientemente ao passado helénico, quando o estudamos
com o objetivo de assimilar aqueles elementos que julgamos poder nos
oferecer algum interesse. Não queremos ser regulados por um princípio
que nos parece incapaz de se aplicar à rica complexidade em que
vivemos, mas julgamos que/umo princípio, derivado dessa situação mais
complexa, pode perfeitamente regular a vida tal como foi vivida num
passado mais simples e, de um certo modo, mais ingênuo.
Quando estudamos Sócrates, por exemplo, descobrimos que foi ele
quem estabeleceu as bases do que constitui hoje nossa moralidade. Foi
ele o primeiro homem que declarou livre todo aquele capaz de, com sua
razão, reprimir o ímpeto de suas próprias paixões. Isso implica, de um
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certo modo, Uma oposição entre a razão e as paixões do homem; e isso,
por sua vez, implica uma certa adversidade entre a razão que constituiria
então a parte espiritual do homem e as paixões que, sendo instintos, representariam então a parte corporal do homem.
Não estamos então justificados em achar que Sócrates já pensava,
como nós, que, de um certo modo, era um homem moderno? Kant,
quando estabelece seu imperativo categórico, a máxima que devemos
seguir porque está livre de qualquer impureza empírica, a vontade pura
enfim - não está ele repetindo o gesto socrático, que consiste em opor
a uma racionalidade pura o empirismo da paixão e dos instintos?
Dessa maneira, julgamos possível estabelecer uma continuidade
entre o passado clássico da Grécia e o nosso período moderno. A mens
sana in corpore sano é uma máxima que podemos encontrar nos livros
sobre cultura física, com ilustrações de estatuária grega, ou nas enciclo
pédias, mas que, na realidade, não tem nenhum relevo dentro da pro
blemática da cultura moderna. Os problemas do espírito, para nós, são
realmente diferentes dos problemas do corpo. Essa era uma intuição a
que os próprios gregos haviam acedido, pelo menos na fase madura de
sua evolução cultural.
Um fato permanece, entretanto: Sócrates não só tinha um grande
respeito pela medicina como imitava seus métodos de pesquisa ao
debruçar-se sobre a alma humana. Isso significava, naturalmente, que
entre a alma do homem e o seu corpo alguma analogia haveria de
encontrar. E não apenas isso. Se os mesmos métodos eram utilizados,
isso não podia acontecer senão em virtude do fato de serem aplicados
a realidades cujas naturezas não se encontravam em oposição. Quando
Sócrates procurava definir os contornos da Virtude, fazia exatamente
como o médico que procurava definir os contornos da saúde. A virtude
máxima, a identificação com a idéia do Bem, vislumbrada através de
uma análise das diferentes partes da Virtude, representava o estado
ideal da alma. A saúde, vislumbrada através da análise dos diferentes
comportamentos fisiológicos, representava o>estado ideal do corpo. O
ideal da areté, da excelência, que dominava de modo irresistível o
panorama da vida e da cultura grega, consistia, evidentemente, na união
desses dois ideais. E inimaginável pensar-se que houvesse qualquer
oposição ou desunião entre eles. Quando Sócrates falava no domínio da
razão sobre as paixões, sobre os instintos, estava pensando não numa
atividade repressiva, tirânica, que ignorasse os direitos e as reivindica
ções próprias das realidades sobre as quais exercesse seu domínio;
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pensava antes num trabalho de coordenação e sobretudo de ordenação. Não eram instruções que o espírito deveria enviar ao corpo num dado
momento para que atacasse a si próprio dentro de uma área em que era
autônomo. Era uma sabedoria transmitida ao corpo através de um longo
processo, sabedoria que o corpo assimilava não só através de ensinamentos mas também através de sua própria participação no trabalho de
coordenação e de ordenação em que o espírito estava empenhado. Assim, a ginástica e a música, tanto quanto a matemática e a dialética, faziam parte integrante do programa socrático de domínio pela razão
das paixões e dos instintos.
As virtudes todas que Sócrates analisa seriam, no espírito de um grego, inconcebíveis se não estivessem enraizadas num estado corporal
de sarúde. Como poderiam eles imaginar a coragem sem saúde, a prudência, a temperança, a justiça, a sabedoria sem saúde? A famosa noção
de Sócrates “conhecimento é virtude” implicitamente continha a noção
“conhecimento é saúde”, que só não era explicitada porque se julgava
desnecessário fazê-loí Aristóteles, que parece ter-se escandalizado com
a noçãb de que “conhecimepto é virtude”, se escandalizaria talvez ainda
mais com a noção de que “conhecimento é saúde”. Mas Aristóteles
justamente quis fázer dó conhecimento algo separado do corpo e por
isso distinguiu dois tipos de sabedoria, uma filosófica e outra prática. A
sabedoria filosófica' para ele, era a representante autêntica do espírito.
A sabedoria prática não era propriamente uma representante do corpo, representava também o espírito, somente naquele aspecto em que ele
se encontrava inelutavelmente ligado ao corpo - e esse aspecto do
espírito, essa forma de conhecimento, não pareciam constituir para
Aristóteles objetos merecedores de interesse filosófico mais acentuado.Aristóteles é, assim, tanto quanto o cristianismo, responsável pela
oposição ou pelo menos pela indiferença, pela falta de solidariedade, entre o corpo e o espírito que passou a predominar no mundo ocidental depois do colapso da Grécia. É certamente um fato interessante a
registrar, essa curiosa coincidência histórica que fez com que uma
religião com um forte conteúdo ético como o cristianismo encontrasse
uma filosofia de conteúdo ético tão moderado como a aristotélica para
formar uma aliança que se prolongaria durante tantos séculos. Isso vale
mesmo no que diz respeito à aliança do cristianismo com a filosofia
neoplatônica, pois essa filosofia não era senão um platonismo aristote-
lizado. Quando pensamos nas estátuas mais antigas da Catedral de
Chartres e as comparamos com o que poderia ser o ideal do sábio
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porizações. Kant, para evitar que o espírito fosse contaminado pelo
corpo, para garantir que a soberania universal e absoluta do espírito
ficasse afirmada face ao relativismo e à particularidade do corpo - para fazer do espírito um a priori, algo que tivesse absoluta precedência em
tudo o que dissesse respeito à natureza humana, fora levado a concebê-
lo de modo puramente formal, já que a forma, sempre a mesma e capaz
de uma total independência, apresentava todas as características e
atributos que a natureza do espírito exigia.
Entretanto, o atentado que isso representava contra a realidade do
corpo provocava reações. Kant conseguiu, sem dúvida alguma, lançar
luzes importantes sobre aspectos da natureza do espírito que até então
não haviam sido bem examinados - e em particular sobre a questão de
sua autonomia mas o atentado ao corpo era um fato que não podia
ser ignorado. Entre outros, Max Scheler, um dos discípulos de Edmund
Husserl, procurou atenuar o caráter negativo da concepção kantiana.
Afirmou que o apriorismo ético de Kant, sua noção de um espírito
independente, livre, soberano, era perfeitamente justa, mas que seu
formalismo era inaceitável. Na sua opinião, o apriorismo não estava
necessariamente ligado ao formalismo - o espírito soberano, independente e livre não era uma mera forma. Julgava mesmo possível a
existência de um espírito que fosse soberano e livre, que fosse apriorís-
tico, mas não temesse o contato com o corpo, com a materialidade dos
instintos e das paixões - em outras palavras, julgava possível a existência
de um apriorismo ético que fosse não-formal mas material.
Dir-se-ia, assim, numa primeira impressão, que havia esperanças
de que os direitos do corpo fossem restabelecidos. Mas essa impressão
não resistia a um exame mais aprofundado. Scheler era um discípulo de
Husserl, o fundador da fenomenologia, um tipo de filosofia que “reduz
fenomenologicamente”, que põe entre parênteses a existência para
poder examinar cientificamente os fenômenos que ocorrem na cons
ciência humana. Ora, tais fenômenos não fazem parte apenas da vida
espiritual do homem mas também da sua vida corporal. A fenomenolo-
gia, por conseguinte, põe entre parênteses não só a existência da vida
espiritual mas também a existência da vida corporal. Tanto a existência
do espírito quanto a do corpo ficavam em nossa consciência como que
interditadas, por algum tempo pelo menos, e o processo de recuperação
daquilo que havia sido interditado, a chamada “constituição fenomeno-
lógica”, era uma promessa cujo cumprimento parecia transferido para
uma data indefinida.
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A ética material de Scheler, por conseguinte, só ilusoriamente nos
restitui o corpo. A existência das emoções, das paixões, dos instintos,
que deveria conferir materialidade a essa nova ética apriorística, tinha
por princípio sido interditada na consciência do analista dos problemas
éticos. As emoções podiam ser analisadas na sua qualidade de “essên
cias” como se estivéssemos analisando fantasmas; era impossível dar
densidade real a uma emoção que não estivesse particularizada numa
experiência corporal determinada. Podemos ver um bom exemplo de
como isso se passa quando Scheler, no seu Homem do Ressentimento,
opõe ao amor cristão tal como Nietzsche o analisa, visando um tipo
psicológico historicamente determinado, o amor cristão tal como ele é,
cm si mesmo, um gênero de abstração que fala do amor, desconsideran
do a realidade concreta de quem o vive, isto é, ignorando o corpo e a
alma particular dé quem o experimenta.
A ética de Kant representava um atentado ao corpo; mas pelo
menos ela reconhecia sua existência - o próprio atentado era um
reconhecimento. A ética de Scheler se exime dessa falta, mas o faz
cometendo uma falta ainda maior - procedendo como se o corpo de fato
não existisse. Com Scheler e seu continuador - Nicolai Hartmann -,
chegamos ao ponto extremo de um processo de desencarnação do
espírito e do ético, processo que, partindo da intensa solidariedade e
identificação helénicas com o corpo, passa pelo estágio aristotélico de
duplicidade - um espírito que tinha um pé no céu e outro na terra - ,
depois por outro, kantiano, de oposição - em que o espírito declara
abertamente guerra ao corpo -, para chegar finalmente à posição de
Scheler e de Hartmann em que o espírito não só não é solidário com o
corpo, não só não o reconhece como uma realidade paralela ou antagô
nica, como também não quer ter mais com ele qualquer trato, expulsan
do-o de seus domínios, como se fosse possível criar um mundo espiritual
totalmente isento de corporalidade.
Nenhum filósofo, nos tempos modernos, se preocupou tanto quanto
Nietzsche com o problema da saúde. E isso é dizer pouco: nenhum
filósofo como ele se preocupou realmente com o problema da saúde.
Isso se deve naturalmente ao fato de que a filosofia moderna nunca se
interessou pelo corpo humano; e também ao fato de que, monopolizan
do o espírito, se julgasse já possuidora de todos os recursos necessários
para realizar sua tarefa - difícil e cheia de surpresas -, que consistia em
tornar acessível e transparente o santuário da verdade.
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Nietzsche é assim, no mundo moderno, o único filósofo que, neste
particular, pode ser comparado a Sócrates: o único que fez da saúde um
objetivo filosófico; o único que poderia dizer com Sócrates: conheci
mento é saúde. Evidentemente a comparação só pode ser feita depois
de afastarmos do nosso caminho as condições e as circunstâncias que
envolveram a vida de cada um dos dois filósofos: Sócrates foi um homem
que não teve maiores problemas de doença (ao que sabemos, pelo
menos) e que identificou saúde e virtude por um ato inconsciente, largamente determinado pelo clima espiritual da época em que vivia; Nietzsche, ao contrário, foi um homem que, a partir de um certo
momento, justamente quando iniciava sua carreira filosófica, passou a
ser atormentado por crises periódicas de uma doença que desde então
nunca mais o abandonou e que, antes de levá-lo à morte, o fulminou com
uma paralisia que o privou das luzes da razão.
Acresce, além disso, o fato de que a noção - saúde é conhecimento
- não era algo que estivesse no consenso das opiniões que integravam a
atmosfera espiritual do tempo em que 'ãvia. Não podia, portanto, resultar de um ato inconsciente do seu espírito, não podia constituir uma
pressuposição tacitamente aceita pela sua organização mental Nietzsche era uma voz isolada no que dizia respeito a essa questão como o era
também, naturalmente, no que dizia respeito a tantas outras. Estimulada
pelo próprio fato das crises freqüentes da doença que o acometiam, sua
reflexão filosófica o levava a uma tal noção. O estado de saúde em que
se via depois de vencida uma crise lhe mostrava que com ele havia
adquirido uma nova consciência, uma nova possibilidade de divisar
verdades - não era isso uma prova de que saúde era conhecimento,
como pressupunha Sócrates? Mas deixemos a palavra com o filósofo:
Estou perfeitamente consciente de todas as vantagens que as variações infinitas de
minha saúde me dão sobre qualqu er representante grosseiro do espírito. Um filósofo que
atravessou e nâo cessa de atravessar vários estados de saúde conheceu outros tantos tipos
de filosofia: ele é levado forçosamente a transfigurar cada um desses estados na forma e
no horizonte mais espirituais - uma arte de transfiguração, eis o que é a filosofia. Não
nos cabe, a nós, filósofos, sepa rar a alma do corpo, como faz o povo, e menos ainda separar
a alma do espírito.
A filosofia se reaproxima da medicina. O filósofo é visto de novo
como um médico da alma. É conquistando a saúde que ele descortina
novos horizontes espirituais. E essa reaproximação é tanto mais necessária quanto o homem é agora visto como um “animal doente”. E curioso
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que Karl Jaspers, ao estudar o problema da doença em Nie-tzsche, tenha
considerado apenas seu caso particular e tenha refletido de modo tão
perfunctório sobre a interpretação geral do homem que encontramos
em A Genealogia da Moral. Entretanto, Jaspers foi, entre todos os
analistas de Nietzsche, aquele que parece ter-se debruçado com mais
clarividência sobre a questão de sua doença. Suas conclusões foram no
sentido de que era preciso abandonar a alternativa colocada pelo homem da rua de que ou Nietzsche era doente ou tinha uma significação
mundial - para admitir que as duas coisas eram possíveis ao mesmo
tempo. Jaspers assinala a intervenção na evolução espiritual de Nietzsche a partir de 1880, de um “fator biológico”, de caráter indefinível e
que não parecia fazer parte integrante dos ingredientes espirituais
normalmente compreendidos naquela evolução. O filósofo do existencialismo se recusa a identificar esse fator biológico como um fenômeno
mórbido. E afirma que sua intervenção não prejudica em nada o valor
da criação espiritual de Nietzsche, da mesma forma que um copo de
vinho ou de cerveja não prejudicaria o valor da eloquência de um orador, que, sem ele, não teria talvez tido o mesmo brilho ao pronunciar seu
discurso. Quanto à loucura, Jaspers declara que até o dia 27 de dezembro de 1888, isto é, doze dias antes do colapso nas ruas de Turim,
nenhum sinal de loucura era discernível nos escritos que nos foram
deixados. Tal é o depoimento desse filósofo competente que tinha
também uma experiência de psiquiatra.
Muito bem. Por que, então, refletiu Jaspers de modo tão descuidado sobre a interpretação de Nietzsche segundo a qual o homem era um
“animal doente”? É claro que essa interpretação não está dissociada da
interpretação que Nietzsche faz da sua doença particular: Jaspers não
parece levar a sério as reflexões de Nietzsche sobre o “animal doente”. Não parece levar a sério sua condição de médico da alma. Talvez sua
própria condição de psiquiatra, de médico dos tempos modernos, o
tenha incapacitado para apreciar, nos seus justos termos, a possibilidade
de um filósofo vir a ser um médico da alma.-
A Genealogia da Moral, entretanto, onde surge a concepção do
“animal doente”, é um dos grandes livros de Nietzsche. É lá que está
descrita a maneira pela qual Nietzsche concebe o aparecimento da “má
consciência”. Era preciso transformar o homem, um animal selvagem, guerreiro, cruel, sanguinário, num ser que pudesse conviver com seus
semelhantes sem uma rapina e sem uma destruição constante e recíproca. Era preciso orientar esses instintos selvagens do homem num sentido
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que permitisse a conservação da espécie. A organização social, o Estado, por meio do castigo, criaram barreiras formidáveis para se defender
contra essa rapinagem, conseguindo, assim, que todos os instintos do selvagem, livre e vagabundo, se voltassem contra si mesmos. A ira, a
crueldade, a necessidade de perseguir, tudo isso se dirigia contra o
possuidor de tais instintos: e tal foi a origem da má consciência. Então
surgiu no mundo a maior, a mais perigosa de todas as doenças, o homem
doente de si mesmo; mas, ao mesmo tempo, o fato de entrar uma alma
animal dentro de si mesma deu ao mundo um elemento tão novo, tão
profundo, tão inaudito, tão enigmático, tão rico em contradições e em
promessas do futuro que o aspecto do mundo mudou realmente. A má consciência deu à alma do homem uma profundidade que até então
havia sido ignorada.
Essa era a situação com que se defrontava Nietzsche, o médico da
alma. Podia sua doença particular servir-lhe de intermediário para a
descoberta do procedimento capaz de arrancar o “animal doente” ao
seu estado mórbido? - Essa é uma questão que, segundo meu conhecimento, nunca foi formulada. Fala-se muito da doença de Nietzsche, da
importância de sua influência sobre a obra do Filósofo, sobre suas
descobertas - mas isso é apenas repetir, com palavras nem sempre tão
adequadas, o que ele próprio revela de si mesmo. A questão precisamente é esta: é possível estabelecer-se alguma relação, algum laço
íntimo entre a doença do indivíduo Nietzsche de um lado - suas dores
de cabeça, seu reumatismo, suas dores de estômago, seus vômitos, a
depressão geral que o mantinha preso ao leito muitos dias - e do outro
sua condição de homem que, como os demais, era um “animal doente”?
O ano de 1879, de acordo com suas cartas, foi o pior de sua vida, do
ponto de vista de sua doença particular: Nietzsche contou cento e
dezoito dias de crises graves, excluídas as mais ligeiras. Foi o ano em
que abandonou seu professorado por causa da doença e começou sua
existência de viagens (maio de 1879). Em fevereiro de 1880, Nietzsche
volta do sul da Europa, começa novos trabalhos que foram a base do seu
livro Aurora. Inicia então um desenvolvimento espiritual, como que um
renascimento de sua reflexão, uma nova consciência de sua tarefa; essa
mudança pode ser acompanhada de agosto de 1880 até julho-agosto de
1881 e se prolonga até os estados de inspiração dos anos de 1882 e 1883.
É em 1880 que se situa a intervenção no desenvolvimento espiritual de Nietzsche daquilo que Jaspers chamou de fator biológico. Jaspers
descreve para nós o resultado dessa intervenção:
198 MARIO VIEIRA DE MELLO
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uma mudança que atinge Nietzsche mais profundam ente do que nunca antes em sua vida;
a mudança aparece não somente no conteúdo do seu pensamento mas também na forma
do que está sendo vivido. Nietzsche mergulha por assim dizer numa atmosfera nova; o
que ele diz assume outro tom. Esse estado de alma que penetra tudo é algo que sinalalgum, símbolo algum deixava prever antes de 1880.
Esqueçamos Jaspers um momento e pensemos na situação de
Nietzsche naquele ano terrível de 1879. Crise após crise, numa sucessão
que tomou praticamente uma terça parte do ano. Quando venceu todas
essas crises, quando recuperou sua saúde, Nietzsche se sentiu um outro
homem. Ele assim descreve aquela época no prefácio de 1886 à segunda
edição de Gaia Ciência:
para term inar , a fim de que o essencial não deixe de ser expresso: volta-se de tais abismos,
de tais graves depressões, como também da depressão de graves suspeitas, volta-se disso
tudo ressuscitado, com uma pele nova mais sensível, mais maliciosa, com um gosto mais
refinado da alegria, com um paladar mais delicado para todas as coisas boas, com os
sentidos mais alegres, com uma segunda e mais perigosa inocência na alegria, não só mais
ingênua como cem vezes mais refinada do que era antes.
Não temos aqui a sensação exata de que Nietzsche, ao vencer as terríveis crises de sua doença particular nesse ano de 1879, venceu
também a crise permanente de sua condição humana de “animal doen
te”? O fator biológico de que fala Jaspers não é justamente constituído
por essa vitória sobre o “animal doente”? Nietzsche certamente não
atribuiria uma tão grande importância à sua doença como fator de
desenvolvimento espiritual, se a função dessa doença consistisse apenas
em dar-lhe a oportunidade de exercer contra ela, do fundo do seu
desespero, sua vontade de afirmação da vida, sua aprovação irrestrita
de tudo o que a existência lhe oferecia. O texto que acabamos de citar
nos mostra que em 1880 Nietzsche, ao recuperar sua saúde particular,
recupera também o que chamava de “a grande saúde”, isto é, a saúde
que lhe restituía não só o bem-estar físico mas a inocência, a alegria, a
ingenuidade e um refinamento cem vezes maior do que o que conhecera
antes. Nietzsche não era apenas o homem estóico capaz de aceitar o
castigo do sofrimento sem alterar sua boa opinião sobre a vida: ele era
também o filósofo que sabia utilizar o sofrimento para encontrar as
razões de ter essa boa opinião sobre a vida - um filósofo em quem o
sofrimento revelava novas perspectivas, novos pontos de interrogação,
uma nova felicidade mesmo em face dos enigmas que a vida nos propõe.
Não era por um orgulho último de desesperado que o sofredor Nietzs-
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che se declarava o adepto mais entusiasmado da vida; ele realmente
parecia ter encontrado o caminho capaz de conduzi-lo a panoramas
onde a vida revelasse o que nela havia de mais exaltante, de mais digno de ser amado. Esse caminho havia sido o do sofrimento causado pelas
crises da doença que o afligia; e o panorama parecia ser o que se
desvendara a seus olhos depois de vencida a crise permanente que
resultava da sua condição humana de “animal doente”.
Não é mera coincidência o fato de que o prefácio da segunda edição
da Gaia Ciência termine como termina. Citemos ainda estas palavras de
Nietzsche, tão úteis para fazer compreender o que se passava então no
seu espírito:
Aviso aos filósofos! Dever-se-ia honrar melhor o pudor com o qual a natureza se
dissimula po r trás de enigmas e de incertezas coloridas. Talvez seu nom e, para falar grego,
fosse Baúbo? [...] Oh! esses gregos! Eles sabiam como viver: o que exige uma maneira
corajosa de se de ter na superfície, no exterior, na epiderme, na adoração da aparência,
na crença às formas, aos sons, às palavras, a todo o Olimpo na sua aparência! Esses gregos
eram superficiais po r profundeza! E não é exatamente a isso que voltamos, nós, espíritos
amantes do risco a todo preço, que escalamos o mais alto e mais perigoso cume do
pensamento contemporâneo e que do alto inspecionamos os horizontes, nós que desta
altura lançamos um o lhar para baixo? Não é po r isso que somos - gregos? Ado radores
das formas, dos sons, das palavras? E por conseguinte artistas?
Como não ver nessas palavras o resultado da vitória sobre o “animal
doente”, ela própria resultado da vitória sobre as crises da doença
particular de Nietzsche? O homem “animal doente” que criara a pro
fundidade, o mundo interior da alma humana através de sua “má
consciência” era visto “lá de cima do cume do pensamento contempo
râneo” como o fundo de um abismo sobre o qual se debruçavam agora
os espíritos amantes do risco a todo preço que compreendiam então a
sabedoria dos gregos - a necessidade de ser superficial por profundeza.
O que Jaspers considera um “fator biológico” parece ser, portanto,
um autêntico ingrediente do desenvolvimento espiritual de Nietzsche.
O preconceito manifestado por Jaspers nesse particular é o preconceito
inerente à mentalidade moderna no que diz respeito às relações entre
o corpo e o espírito do homem. O corpo é um aspecto da vida humana
com o qual a filosofia não tem que se preocupar. Entre a filosofia e a
medicina, entre a ética e a medicina, não há nenhuma relação digna de
interesse. Nietzsche foi o primeiro e o único pensador dos tempos
modernos que ousou examinar os diversos sistemas filosóficos do ponto
de vista dos sintomas de vida que eles revelavam. Foi o primeiro e o
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Essa vontade fraca naturalmente procurava uma causa, um responsável por esse niilismo. Se por princípio não se supunha estar a responsabilidade no homem, onde ela poderia então ser encontrada? É aí que
se manifestava a dependência em que Schopenhauer ainda se encontrava com relação à atitude cristã: seu pessimismo ainda era uma forma de
cristianismo - se a vontade individual por princípio não era culpada, a
vontade geral, a essência das coisas, deveria então ser a grande culpada. E, se a essência das coisas era culpada, cabia só ao homem, ao indivíduo,
redimi-la pelo sofrimento e pela aceitação lúcida e ascética de seu
próprio nada. “O que é isso senão um cristianismo invertido?”, pergunta
então Nietzsche ao final de sua experiência schopenhaueriana, no Hu
mano, demasiadamente Humano.
As virtualidades da experiência cristã de Nietzsche só ficam assim
exauridas quando se consuma nele a experiência de Schopenhauer e, por extensão, a de Wagner. Só então os frutos mais amargos do cristianismo se tornam visíveis. O estado do “animal doente” como que se
agrava. E também a época em que as crises da doença de Nietzsche se
sucedem, terríveis e numerosas. As diferenças de ordem doutrinária, cujo registro era inevitável quando a perspectiva era a do puro espírito
- o que separa um Schopenhauer de um Agostinho, de um Pascal, de
um Tomás de Aquino -, tais diferenças se confundem e perdem sua
significação quando a óptica que se utiliza não exclui o corpo e aquilo a
que se visa é estabelecer um diagnóstico de saúde ou de doença.
“Com o cruzar de espadas” das duas remessas, a do Parsifal para
Nietzsche e a do Humano, demasiadamente Humano para Wagner, consuma-se a experiência cristã de Nietzsche. E curioso que Jaspers
tenha sentido a necessidade de apelar para um fator biológico para explicar a mudança de tom, de atmosfera, de atitudes de Nietzsche a
partir de 1880 e que não lhe tenha bastado o simples fato da consumação, em Nietzsche, da experiência cristã. Tratava-se, entretanto, de um abalo
de repercussões inauditas que, no mínimo, poderia causar uma mudança de tom e de atmosfera. O que parece ter acontecido é que a fase inicial
do desenvolvimento espiritual de Nietzsche não foi bem compreendida.
Não se percebeu que a preferência do jovem filólogo pela época trágica
dos gregos era uma preferência nórdica, luterana, de um certo modo cristã; que a rejeição do otimismo socrático era um movimento instintivo
destinado a preservar as fontes puras de um sentido dramático da
existência, inicialmente comunicado pelo cristianismo; e finalmente que
era a originalidade dessa fusão de helenismo e de cristianismo que
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permitia a aplicação posterior do produto assim obtido a uma obra
moderna como era a de Wagner, uma obra marcada por tantos estigmas
da modernidade e inclusive por uma forma final de cristianismo em
pleno declínio.O reencontro de Nietzsche com a Grécia depois de vencida a
grande crise, a crise permanente do “animal doente”, foi, como já
dissemos, cautelosa e cheia de reticências. Ainda aqui a Grécia não ficou
isolada na sua pureza, mas o cristianismo continuava visível num horizonte longínquo. Havia, entretanto, uma diferença. Antes a mistura de
helenismo e cristianismo era inconsciente, não desejada e resultava de
uma assimilação incompleta dos elementos que assim se integravam. Agora o cristianismo havia sido perfeitamente assimilado e mesmo
exaurido, e a Grécia amadurecia em virtude de um movimento que
adotava o itinerário seguido por Sócrates. A fusão dos dois elementos
era agora menos que um fato, era um desejo, uma intenção, um objetivo; mas, ao mesmo tempo, a consciência da necessidade dessa fusão era
maior e o esforço para realizá-la, mais intenso - donde resultava então
a situação de tensão absolutamente formidável indicada pela expressão
telegráfica com que Nietzsche se despediu de nós: Dionísio em face do Crucificado.
No fim da minha adolescência, antes de completar os vinte anos,
precisei escrever uma tese para tornar-me membro de uma agremiação
estudantil de cultura. O tema que escolhi foi o problema das relações
entre Nietzsche e Wagner. O leitor pode imaginar o que pude escrever
no verdor dos meus anos, com a inexperiência e a ignorância desse belo
momento da minha vida. Já havia lido uma grande parte da obra de
Nietzsche e tinha também percorrido alguns textos que examinavam
essa obra cuja fama já corria o mundo inteiro. Como a maior parte dos
meus colegas, tinha da filosofia uma concepção acadêmica e considerava Jacques Maritain, Étienne Gilson, Descartes, Kant e Bergson entre
os modernos, Aristóteles e um Platão aristotelizado entre os antigos, os
verdadeiros representantes de uma forma de pensar que meu entusiasmo juvenil procurava assimilar.
A descoberta de A Origem da Tragédia e o subsequente interesse
pelos demais livros de Nietzsche causaram-me um choque cuja comple^
xidade não me julgo capaz de exprimir. Ali estava um autor que me
inspirava, por quem sentia uma fascinação crescente e que, entretanto,
contrariava todo o sentido da organização que sentia dever dar ao meu
espírito - um programa que laboriosamente estava procurando execu-
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encontrara ainda sua forma justa de expressão - uma verdade de cujo
conteúdo eu mesmo não sabia como me apropriar. Mas de uma coisa
eu tinha consciência: a situação de Nietzsche naquela época (há muito
mais de cinqüenta anos!) era a de um outlaw. O mundo acadêmico, o
mundo filosófico propriamente dito, não o tolerava. Seu nome era
lembrado e, por vezes, mesmo exaltado nos meios literários, no mundo
dessa literatura semifilosófica que, no nosso século, ganhou tanta im
portância. Sua obra jazia inerme como um gigante desacordado sobre
o qual corriam pigmeus que o saqueavam, roubando-lhe ora essa ora
aquela peça entre as muitas que o ornamentavam; não surgia ninguém
de sua estatura com competência para despertá-lo e colocá-lo novamente em condições de agir sobre o futuro. E a razão disso me parecia ser
justamente essa questão que eu ainda não tinha podido resolver: para o
gosto de nossos contemporâneos, Nietzsche insistia demais sobre o
problema fisiológico. Ninguém queria ser questionado e muito menos
refutado em razão de realidades que eram colhidas no mundo da
fisiologia. A decadência era um problema que não podia ser resolvido
por uma questão de doença ou de saúde. O preconceito, profundamente
arraigado na alma do homem moderno, de que o corpo e o espírito são
realidades distintas - preconceito que, depois de Nietzsche, só foi
abalado por Freud, mas de um ponto de vista estritamente médico e
científico - , um tal preconceito continuava a prevalecer nas altas esferas
em que são discutidos os problemas da filosofia. Considerava-se agora,
depois de Freud, que a alma humana estivesse estreitamente relaciona
da com o corpo, mas o espírito propriamente dito, essa realidade que
representa uma instância superior da alma, o espírito, na verdade, não
parecia ter com o corpo o menor comércio. Tal era a atitude do mundo acadêmico, tal era a maneira pela qual se concebia que os problemas
filosóficos devessem ser abordados. Em tal mundo, que lugar poderia
haver para Nietzsche?
Mas cinqüenta anos se passaram sobre essa época que evocamos.
Com relação a Nietzsche, mudou profundamente a atitude do mundo
acadêmico. A morte da irmã do filósofo, Elisabeth, e a reabertura dos
Arquivos Nietzsche muito contribuíram para isso. Nietzsche é hoje
considerado pelo mundo filosófico uma das grandes forças intelectuais
de nossos dias. Apesar de já ter morrido (pelo menos espiritualmente)
há praticamente um século, seu nome é menção obrigatória na pena de
todo homem com alguma aspiração à grande cultura. Mas o problema
da fisiologia persiste. Procura-se ainda, por meio de mil subterfúgios,
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dissimular o fato de que Nietzsche é um médico da alma, o fato de que
Nietzsche tem uma compreensão médica da alma, da mesma forma que
Sócrates também a tinha. Mesmo os analistas que levam um pouco mais
longe as.aproximações entre Sócrates e Nietzsche hesitam diante desse
passo fundamental, desse passo que nos faz ver que, se corpo e alma não
são realidades distintas, então não há por que separar da atividade ética
a atividade médica. Talvez o que nos impeça de realizar um tal passo
seja tudo o que persiste ainda em nós de resquícios do cristianismo. Com
toda a nossa falta de fé, com todo o nosso profundo desinteresse pelo
fenômeno religioso, somos um pouco como Schopenhauer, que se jul
gava emancipado da fé cristã, mas que, na verdade, adotava um cristia
nismo invertido. Não somos pessimistas, mas somos hiperespiritualistas,
acreditamos num espírito que não precisa do corpo. Isso é ainda cris
tianismo. E um cristianismo totalmente fantasmático, o Deus morto que
nos visita nas nossas noites atribuladas, que nos coloca numa situação
de servil dependência (já que não temos o corpo, que venham alucina
ções para orientar nossa conduta).
O que Nietzsche nos propõe é que façamos a liquidação dessa
experiência cristã inacabada. O que nos propõe é que façamos como
ele, que levemos à sua última consumação essa experiência que está a
nos paralisar a vontade, sem virtude para nos oferecer qualquer estímu
lo, mas com força suficiente para nos deter em qualquer arrancada que
tenhamos a veleidade de tentar em direção ao futuro. Só há uma maneira
de fazer tal liquidação, de realizar tal consumação: é fazendo de novo o
corpo colaborar com o espírito. Essa colaboração naturalmente não
significa nenhuma subordinação de qualquer uma dessas duas partes. E
estritamente uma interdependência. Foi assim que Sócrates concebeu
sua equação - virtude é conhecimento; conhecimento é virtude, que,
como já vimos, não explicita mas pressupõe uma noção que talvez
escandalizasse Aristóteles e que certamente escandalizaria o mundo
moderno - saúde é conhecimento; conhecimento é saúde.
Numa fase adiantada de sua evolução espiritual, Nietzsche, como
já dissemos, reaproximou-se da Grécia com cuidados e reticências. Fez
elogios ao culto grego do corpo, à superficialidade grega, mas por um
só motivo - os gregos se faziam superficiais porque eram profundos. Nós
também deveríamos nos reaproximar do corpo, com cuidados e reticên
cias. Deveríamos nos entregar ao corpo, à superficialidade do corpo,
mas por um só motivo - porque queremos ser profundos! Essa é uma
lição extremamente difícil de aprender e que faria com que muitos
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aprendizes se perdessem, seduzidos por facilidades. Só um contato
profundo, persistente, corajoso, leal e devotado com a experiência de
Nietzsche tornaria essa lição verdadeiramente frutuosa. Uma das objeções mais freqüentemente levantadas contra Nietzsche é a de que ele é
um autor perigoso. Quem caminha pela sua estrada pode facilmente ser
vítima de ciladas. E isso é verdade. Mas até nesse ponto Nietzsche nos
lembra o destino de Sócrates. Uma das acusações que foram lançadas
contra o ateniense era a de que ele corrompia a juventude. E isso
provavelmente também era verdade. Sócrates não corrompeu Platão,
não corrompeu Xenofonte, certamente não corrompeu muitos outros.
Mas podemos estar seguros de que, voltando para casa com o coração
pesado de incertezas, depois de ter passado horas com o filósofo, não
terá havido alguns de seus ouvintes ou de seus interlocutores, não terá
havido quem sentisse que um abismo se abrira, que uma vertigem o
tomava ao compreender que talvez nunca mais encontrasse a tranqüli-
dade de uma vida não examinada, o conforto de princípios que não
haviam sido questionados, a segurança de atitudes tomadas em virtude
de uma simples imitação? - A decisão que tomasse, uma vez passada a
vertigem, determinaria o seu destino; e se a tranquilidade, o conforto e a
segurança voltassem a indicar maior peso no fiel da balança, sem dúvida
Sócrates, de um certo modo, poderia estar associado às ações de um
corrupto - de um corrupto como Alcibíades, por exemplo, que tinha
assimilado a forma mas não o espírito do questionamento de Sócrates -,
da mesma forma por que Nietzsche, de certo modo, estaria associado às
ações de quem decidisse entregar-se, sem os seus motivos, à superficia
lidade do corpo. Essa era, inclusive, uma das razões pelas quais Nietzs
che acreditava que não havia senão uma maneira de viver: “vivendo
perigosamente”.
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8. O DESTINO TRÁGICO - AS ALTERNATIVAS
A melhor maneira de compreender o destino de um grande homem
é examinar quais seriam sua alternativas. É tentando penetrar no segredo de suas decisões que chegamos a ver, desenhados perante nossos
olhos, os contornos de sua natureza como que impostos por uma lei superior. Não se trata apenas de saber se há alguma razão forte para a
decisão tomada - trata-se de saber se haveria, por acaso, alguma outra
decisão que pudesse ser tomada.
Quando pensamos no caso de Sócrates, essa questão se apresenta
em toda a sua inexorabilidade. O seu gesto final, a ação de tomar a cicuta
constituía parte essencial do seu destino? O que aconteceria a Sócrates
se, no último momento, cedendo à pressão dos amigos, consentisse em
fugir da prisão e exilar-se numa cidade distante de Atenas? Sua legenda,
com um ligeiro retoque, descrevendo a fuga em lugar da ação da cicuta,
continuaria a exercer sobre nós, sobre a imensa posteridade que essa
legenda formou, a mesma ação decisiva?Procuremos desconstruir o todo resultante da experiência vivida
pelos protagonistas da história. Sócrates vivo, exilado numa cidade
distante de Atenas, o que teria podido suceder a Platão? - Teria
provavelmente acompanhado seu mestre. Mas o monumento que jun-
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tos, Sócrates e ele, estavam edificando, se teria desmoronado. Sem a
morte trágica de Sócrates, Platão não teria recebido o choque que o
fez compreender que o Estado em que vivia era irrecuperável; sem
ela, não teria se capacitado da necessidade de recolher as ruínas de um Estado em plena decomposição para, com elas, reconstruir um
novo Estado, de caráter ideal, um Estado que vivesse no interior da
alma humana e que fosse, portanto, capaz de sobreviver às duras
contingências da realidade histórica; sem ela, todas as riquezas que os
gregos haviam acumulado durante séculos de experiência histórica, política, moral, filosófica e científica - riquezas que se haviam concentrado numa estrutura única, a Cidade-Estado ateniense-, sem ela, todas
essas riquezas não teriam provavelmente sido preservadas.Teve Sócrates, no momento crucial da decisão, a percepção de tudo
o que poderia acontecer, se se recusasse a tomar a cicuta? Teve ele a
percepção de tudo o que iria acontecer, se se decidisse a tomá-la? É
essa uma especulação que se pode pensar não ter razão de ser. Mas o
destino de um grande homem é regido por leis misteriosas. Tudo o que
ele faz leva a marca desse destino. E é justamente uma tal marca que
nos impede de pensar que suas decisões sejam tomadas sem uma
intuição do futuro, já que o futuro, para ele, está ligado a um presente a que só ele tem acesso, pois é vivido como uma antecipação de coisas
que só ele vê.
De qualquer maneira, no diálogo Críton Sócrates se imagina na
iminência de ceder à pressão do amigo e de se ver subitamente interpelado pelas leis e pelo governo de Atenas. Eles lhe perguntam:
O que está fazendo, Sócrates? Vai tentar nos de rrubar com um gesto seu - a nós,
as leis, o Estado inteiro, tanto quanto isso está a seu alcance? Imagina que um Estado
possa subsistir e não se r derrubado quando as decisões de suas leis não são executadas e
são mesmo espezinhadas por indivíduos?
Sócrates se imagina ainda ponderando: “O Estado ofendeu-me e
condenou-me injustamente” - mas as leis voltam a interpelá-lo.
Mas foi isso o que combinamos? Ou você não devia se conformar com a sentença
do Estado?, responde Sócrates, que reclamação tem você contra nós que justifique suatentativa de nos destruir, a nós e ao Estado? Em prime iro lugar não é a nós que você deve
sua existência? Seu pai casou-se com sua mãe com a nossa ajuda e gerou você. Tem alguma
objeção contra as leis que regulam entre nós a instituição do casamento? Ou contra as
leis que regulam a alimentação e a educação das crianças e das quais você também retirou
proveito?
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impacto diferente, mais amortecido, como uma opção interessante, privilegiada, mas não com a força de uma necessidade irrecusável.
Por outro lado, Sócrates não quis nos confiar sua previsão do que aconteceria se tomasse a cicuta. Não sabemos se tinha alguma idéia do
que fariam seus discípulos depois de sua morte. Nas suas duas despedidas, aos juízes na Apologia e a Críton antes de sua morte, Sócrates se
refere a Deus. Aos juízes ele diz: “A hora da partida chegou, e cada um
de nós deve tomar seu caminho - eu para morrer, vocês para viverem. O que é melhor só Deus pode saber”. E para Críton: “Deixe-me agora,
Críton, para que eu possa cumprir a vontade de Deus e segui-lo para
onde Ele me leva”.A vontade de Deus, a sabedoria de Deus! Não é comovente ver
Sócrates, cuja existência fora dedicada ao único esforço de construir um
mundo onde o homem pudesse ser justo, tornar-se vítima da injustiça
dos homens e se despedir da vida confiando na vontade e na sabedoria
de Deus - isto é, confiando na justiça de Deus? - É comovente, mas é
também exaltante, pois essa confiança se justificou. Deus se incumbiu
de reparar o mal que os homens lhe haviam infligido, fazendo com que
a essência do que havia sido sua vida não se perdesse, mas ficasse
preservada por um fenômeno que é um caso único na história, o fenômeno que se chama Platão. Sócrates, exilado e trânsfuga, ao se despedir
de Platão na hora da morte, lhe teria talvez pedido que cumprisse sua
vontade. Na prisão, antes de tomar a cicuta, despedia-se da vida a fim
de cumprir a vontade de Deus. São dois tipos de morte que podem
parecer semelhantes, mas que diferença havia entre eles! - No primeiro
havia um consolo, a esperança de que pedaços da sua vida se conservas
sem na memória do amigo. Era difícil, na hora da morte, formular uma
vontade que contivesse tudo aquilo que representava a essência de sua
vida. Era difícil transmitir de homem para homem uma essência que
superasse o poder das palavras. Mas no segundo, como as coisas mudavam! Não era sua vontade que seria cumprida, era a vontade de Deus;
era a vontade de Deus que Sócrates queria cumprir e que seria cumprida
de um modo que, apesar de toda a sua imensa confiança, Sócrates não
teria ousado esperar - pela preservação miraculosa de tudo aquilo que
representava a essência de sua vida.
Não há nessa opção de Sócrates pela cicuta uma confirmação
espetacular do ensinamento bíblico “se a semente não morre”? Sócrates
aceita a morte e em virtude mesmo dessa aceitação como que ressuscita, transfigurado, reencarnado, na pessoa de Platão. Não há em toda a
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história um outro exemplo de fenômeno igual. Platão é muito mais do
que um discípulo. Platão não tem do discípulo nem a timidez, a deferência excessiva que leva à subserviência, nem a vontade de liberdade,
de independência de julgamento que leva ao desrespeito e à presunção.
Platão parece ter querido agir como se a existência de Sócrates tivesse
sido apenas um ensaio e como se sua verdadeira existência estivesse
sendo vivida nas páginas dos livros que escreveu. Sua obra - fruto de
amor e devoção filiais - é a mais bem sucedida tentativa conhecida, feita
no sentido de dar relevo e eficácia à ação de um homem provido apenas
das armas da lucidez e da coragem para construir sua legenda - que se
fosse privada dos frutos dessa devoção e desse amor poderia se perder
ou se apagar completamente na memória dos homens. Para alguém
fazer isso é preciso ser mais do que um simples discípulo. E preciso ter
renunciado à própria personalidade para constituir um espaço vazio que
a personalidade do mestre possa ocupar. É preciso poder imitar o gesto
do mestre, seguindo o ensinamento bíblico, embora de modo invisível -
morrendo para si mesmo - na esperança de que dessa morte resulte a
germinação de um rebento novo. Para fazer isso é preciso ser muito mais do que um simples discípulo. E foi exatamente o que Platão mostrou
que era. Fala-se da sua relação para com Sócrates como da relação de
um discípulo para com seu mestre, porque se trata de um caso único na
história, e a linguagem não forjou a palavra que seria necessária para
exprimi-lo e caracterizá-lo; usa-se uma expressão que é apropriada para
casos mais ou menos análogos, expressão que está longe de explicitar
toda a riqueza contida no fenômeno que estamos contemplando.
Duas mortes, uma visível, física, carnal, outra invisível, psíquica, espiritual - e o resultado foi a germinação de algo extraordinário, de
algo que nasceu sob o signo da imortalidade e que ficou conhecido na
história sob o nome de filosofia socrático-platónica. Levados pelo destino, Sócrates e Platão precisaram convidar a morte a antecipar o
trabalho da natureza-e quando ressuscitaram eram uma só pessoa, uma
pessoa a quem estavam assegurados todos os direitos, todos os privilégios, toda a glória da imortalidade.
Tudo isso naturalmente Sócrates não poderia prever. Entretanto
não hesitou um momento. Agiu como se tudo houvesse previsto. Agiu
como se tivesse conhecimento de causa de todas as conseqüências que
adviriam da decisão que tomara. As razões que deu a Críton para não
aceitar sua oferta eram lógicas e coerentes. Mas não haveria por trás
delas, escondido, um grão de loucura? O diálogo com as leis era algo
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que um homem normal, em sã consciência, promoveria? - Havia uma
outra alternativa que ainda não consideramos e que dependia não da
vontade de Sócrates de confiar num amigo ou da vontade de Sócrates
de confiar em Deus - a alternativa de um temor seu de que a vontade
de Deus lhe fosse adversa e que, ao invés de reparar a injustiça dos
homens, quisesse agravá-la, transformando assim sua morte numa razão
adicional para a infâmia de que queriam cobri-lo. Essa era uma alter
nativa em que certamente havia pensado, mas que não confiou a Críton
porque lhe daria outras razões para insistir sobre o projeto de fuga. Não
era uma alternativa possível? E se depois de sua morte os discípulos,
apavorados com o risco de uma amizade infamante, renegassem seu
nome? E se depois de sua morte decidissem abjurar solenemente em
praça pública todos os ensinamentos que dele haviam colhido? E se se
dispersassem procurando formas de vida que lhes permitissem ficar
esquecidos, após algum tempo, e confundidos com todos os outros que
só vagamente haviam ouvido falar em seu nome. Uma condenação à
morte podia se transformar numa coisa infamante. Bastava que as razões
da sentença, já por si mesma injusta, fossem ainda mais adulteradas num
processo de divulgação tendencioso e perverso.
Se Sócrates tivesse querido confiar a Críton o que imaginamos
poderiam também ter sido seus sentimentos, o amigo certamente lhe
teria respondido: “Mas é claro! Qualquer homem sensato pensaria o
mesmo! Só um louco se entregaria de pés e mãos amarrados para ser
vítima e joguete de uma tão grande injustiça!” Sócrates, entretanto,
preferiu se calar. Sentia provavelmente que não tinha razões para
argumentar contra a indignação que provocaria no amigo se se decidisse
a falar. Sim, provavelmente ele era louco. Seria difícil fazer alguém compreender por que se recusava a fugir (seria difícil sobretudo fazê-lo
em se tratando de nós, homens modernos). Havia indubitavelmente um
grão de loucura escondido nos refolhos de um espírito tão lúcido, e era
por causa desse grão de loucura que Sócrates escolhia a cicuta. Confiava
na vontade de Deus. Confiava sem nenhuma razão, contra todas as
razões, mais mesmo que Jesus, que na loucura da Cruz, no último
momento, perguntou a seu Deus: “Senhor, por que me abandonastes?”
A melhor maneira de compreender o destino de um grande homem
é examinar quais seriam suas alternativas. Examinamos as alternativas
de Sócrates. E a conclusão a que forçosamente chegamos é a de que ele
queria morrer como tinha morrido, que precisava morrer como tinha
morrido. Qualquer outro tipo de desenlace teria prejudicado sua obra.
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Há certos objetivos que nunca são atingidos se não se arrisca, se não se
recorre a um grão qualquer de loucura para que isso aconteça. E preciso
arriscar, ignorar a voz da razão, os conselhos do bom senso e da
prudência, confiar na vontade impenetrável de Deus para cumprir um
destino. Muito antes de ser acusado, Sócrates já havia recebido avisos,
premonições da sorte que o aguardava. Era, sem dúvida, a voz do bom
senso que com grande antecipação lhe falava. Mas Sócrates continuara
na rota que de há muito tempo vinha seguindo. Agora, no fim da jornada,
a voz do bom senso talvez lhe tivesse falado de novo. Mas então, ainda
menos disposto a ouvi-la, Sócrates prosseguia, rumo à loucura. O que
daí resultou todos nós sabemos - todos nós somos - pois todos nós,
homens que vieram ao mundo depois da morte de Sócrates, somos o
resultado de sua loucura.
O problema do destino de Nietzsche é singularmente complexo.
Teve ele um fim que compromete sua obra, um fim que não foi um
coroamento mas um desastre, um fim que revelou uma fraqueza que lhe era inerente? Se considerarmos que o fim de Sócrates, sua morte trágica,
foi na realidade um triunfo, deveríamos achar que o fim trágico de
Nietzsche, sua loucura, foi uma catástrofe? Os analistas de Nietzsche
têm tratado do problema de sua loucura de maneiras muito diversas. Há
os entusiastas que preferem ignorá-lo. Há os que consideram esse fim
extremamente significativo. Há os que o registram sem atribuir-lhe
maior importância. E há finalmente os que procuram verificar se é
possível discernir algum laço de valor positivo entre essa tragédia, de repercussões tão claramente negativas, e a significação mundial da obra
a que está associada.
Comecemos pelos entusiastas. Há naturalmente muita gente que
pensa que genialidade e loucura são duas coisas extremamente próximas
uma da outra e que Nietzsche não seria o único exemplo dessa proximi
dade que nos ofereceria a história da cultura - citemos apenas os nomes
de Hõlderlin, Van Gogh, Strindberg e Kleist para nos convencer dessa
verdade. A questão seria então se concentrar sobre aqueles aspectos da
obra ameaçada pelas nuvens da loucura que se conservaram sãos. Fazer
o que muitos de nós fazemos, por exemplo, quando vamos ao Museu
Van Gogh, nos detemos extasiados diante das telas do seu período são
e passamos algo compungidos pelos trabalhos da última fase em que a
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>111
1*1
Jill
desorganização mental do artista se manifesta de maneira tão implacá
vel.
O lado negativo dessa atitude reside evidentemente no fato de que
se engloba assim num caso único o que na realidade apresenta grandes
diferenças individuais. A loucura de cada uma dessas personalidades
que citamos oferece particularidades próprias e tem que ser considera
da isoladamente. Todas essas personalidades naturalmente manifesta
ram sinais de gênio e sintomas de loucura, mas em cada uma delas a
relação entre gênio e loucura tomou um aspecto diferente - e pode-se
mesmo duvidar que em todos os casos seja possível estabelecer uma
relação qualquer entre uma coisa e outra.Vemos assim que a atitude dos entusiastas os leva facilmente a um
impasse. Não é fácil desconsiderar, no exame do destino de um gênio
vítima da loucura, o fator negativo que essa doença representa. Cedo ou
tarde o problema se voltará contra os entusiastas a fim de exigir deles
uma solução, e o que farão dependerá do maior ou menor esforço
empreendido para penetrar mais profundamente no sentido da obra
pela qual sentem tanto entusiasmo.
Numa atitude oposta à que acabamos de considerar estão os que
consideram o fim trágico de Nietzsche extremamente significativo. São
analistas cuja tendência última seria invalidar a obra de Nietzsche pelo
fato de ter sido ela, segundo pensam, desmentida pelos seus últimos
acordes - tendência não completamente explicitada muitas vezes pelo
receio, pela timidez e talvez pela covardia que impedem esses analistas
de se pronunciarem diretamente contra uma reputação, contra uma
glória que, apesar dos esforços feitos para denegri-la, não faz senão
crescer.
Em primeiro lugar Paul Julius Mõbius. Ele descobriu que alguns
tios e tias de Nietzsche haviam sido doentes mentais; uma tia se teria
suicidado, outra teria ficado louca. Um tio que em 1901 tinha sessenta
e oito anos teve uma crise de demência. Além disso o pai, que morrera
de um amolecimento cerebral, moléstia não hereditária e só declarada
quatro anos após o nascimento de Friedrich, havia já tido, antes de sua
doença, “crises de nervos” segundo confidências da mãe de Nietzsche.
Na sua volumosa patografia de Nietzsche, aparecida entre 1902 e 1904,
Mõbius diagnostica finalmente uma paralisia progressiva, conseqüência
de uma infecção sifilítica. Esse diagnóstico de uma moléstia que havia
sido contraída contradizia naturalmente as pesquisas anteriores que
pressupunham a crença na existência de uma doença de caráter heredi-
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tário. Möbius foi mesmo levado a fazer uma análise crítico-literária da
obra de Nietzsche chegando à seguinte conclusão: “Se nela podemos
encontrar algumas pérolas, dispensemo-nos de pensar que o conjunto
faria um belo colar. Fiquem desconfiados porque este homem é um
doente mental”. Esse diagnóstico de Möbius foi compartilhado por
muitos neurologistas, vários dos quais profissionais de grande compe
tência e honestidade. E como as de Möbius, suas digressões de ordem
literária, campo em que a competência deles todos era discutível, con
venceram também muita gente com a propensão a se assustar com os
simples títulos das obras de Nietzsche.
Ainda assim seria preciso considerar com circunspeção o diagnós
tico de Möbius. Ele se baseia em depoimentos sobre a vida de Nietzsche
no período de seus estudos em Leipzig. Ora isso estabeleceria um
período de vinte a vinte e dois anos entre a infecção e a manifestação
aguda de paralisia, o que parece constituir um caso extremamente
atípico para o período de incubação da doença (sem falar no período
de onze anos entre essa manifestação e a morte). Outros depoimentos
no sentido de que Nietzsche teria contraído a infecção em 1873 ou
mesmo mais tarde na Itália ou no sul da França são meras hipóteses que
de forma alguma foram testadas. Seria, pois, da mais elementar prudên
cia renunciar a um pronunciamento definitivo sobre o assunto e subs
crever a opinião emitida por Curt Paul Janz, na sua excelente biografia
do filósofo:
Nenhuma interpre tação médica, por mais escrupu losa e penetrante que fosse,
poderia definitivamente ultrapassar o estágio de hipóteses ta teantes, pois hoje é impos
sível reconstituir um diagnóstico que o estado da ciência em 1880-1890 não permitia
estabelecer e sem o qual nenhum julgamento é cientificamente defensável.
Mas Curt Janz pensa que, por mais divergentes que tenham sido os
resultados das pesquisas realizadas desde Mõbius em 1902 a Lange
Eichbaum em 1961, há um ponto sobre o qual todos os pesquisadores
estão de acordo: é que houve uma transformação radical, uma metamor
fose na natureza de Nietzsche entre os anos de 1879 e 1881.
Já examinamos o problema dessa metamorfose quando discutimos
a hipótese de Karl Jaspers de um “fator biológico”. A questão se
resumiria em saber se foi mesmo um fator biológico ou um acontecimen
to situado num plano puramente espiritual. Os depoimentos que cita
Curt Janz do amigo de Nietzsche Erwin Rohde (uma atmosfera de uma
estranheza indiscutível, como se ele viesse de uma região que ninguém
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habita), de Paul Deussen e do teólogo Kaftan, nenhuma contribuição
podem oferecer a esse respeito. Um homem visitado por uma experiên
cia espiritual de uma grande intensidade agirá do mesmo modo estranho
que poderá ser observado em outro homem dominado pelos efeitos de
uma perturbação mental.
A hipótese de Karl Jaspers de um fator biológico leva-nos para a
terceira categoria que já mencionamos, a de analistas que aceitam a
possibilidade de um elemento extra-espiritual exercendo uma influência
sobre o espírito de Nietzsche, sem que isso lhes pareça constituir um
aspecto negativo. Houve mesmo quem pensasse que a sífilis, embora a
prazo longo destruísse necessariamente o organismo, pudesse, em fases
intermediárias, determinar reações bioquímicas que fossem estimulan
tes e espiritualmente positivas. Para tais analistas, a loucura de Nietzs
che não teria um efeito retroativo, invalidando obra tão significativa -
essa obra teria sido, ao contrário, socorrida pela pequena ajuda de
certas reações bioquímicas, como, por exemplo, o orador citado por
Jaspers, que necessita de um copo de vinho para abrilhantar seu discur
so. Precisamos, entretanto, pôr em relevo o fato de que Jaspers se nega
categoricamente a caracterizar seu fator biológico como um fenômeno
patológico. Essa distinção é importante, porque, vinda de um filósofo
que era ao mesmo tempo um psiquiatra, transmite uma grande autori
dade a quem deseja analisar a evolução de Nietzsche sem se deixar
influenciar pelas opiniões correntes da medicina contemporânea, tão
ligeira em endossar teorias que proclamam a interdependência nem
sempre bem compreendida da alma e do corpo - sem se deixar influen
ciar tampouco pelas opiniões correntes da filosofia contemporânea, tão
ligeira em endossar teorias que proclamam a completa separação do
corpo e do espírito. Transmite também uma grande autoridade a quem
procura analisar a evolução de Nietzsche a partir de uma concepção que
se baseia não no empirismo factual da ciência contemporânea mas no
empirismo racional da ciência socrática - não no empirismo que vê na
alma humana uma totalidade de fatos que podem ser relacionados
causalmente aos fatos da vida física mas no empirismo que vê na alma
uma totalidade de forças que podem ser avaliadas da mesma maneira,
por que podem ser avaliadas as forças que constituem a realidade do
organismo físico.
Esse empirismo racional representa naturalmente uma atitude que
pressupõe a convicção de que existe uma relação causal entre o valor
do corpo e o valor do espírito mas não uma relação causal entre os
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acontecimentos do corpo, concebidos como fatos, e os acontecimentos
do espírito que só podem ser concebidos como valores. Quando estes
acontecimentos se produzem, têm seu próprio valor, que se pode relacionar com um valor do corpo. Mas precisamos aqui insistir sobre este
ponto: não existem acontecimentos do espírito destituídos de valor, não
existem acontecimentos do espírito que sejam simples fatos. E há, pelo
contrário, acontecimentos do corpo que nada mais são do que meros
fatos: a digestão, a respiração, o sono não são valores, são meros
processos do corpo. O que se poderiam considerar valores do corpo
seriam uma boa digestão que permitiria uma assimilação perfeita dos
alimentos, uma boa respiração que permitiria uma melhor resistência,
inclusive na corrida e na marcha, um bom sono que permitiria uma
melhor reparação das fadigas da jornada de trabalho. Ou inversamente
se poderia considerar um desvalor uma má digestão, uma má respiração
ou um mau sono. Existe, entretanto, na órbita do corpo, além desses
valores e desvalores, o simples fato, o processo em si mesmo, e isso é
uma coisa que não existe no mundo do espírito. Não existem acontecimentos espirituais que não sejam nem bons nem maus. Ou eles são uma
coisa ou são outra. Não existem no mundo do espírito fatos, processos
no sentido em que essas palavras são empregadas com relação ao corpo. É por isso que o empirismo factual da ciência moderna, excludente
como é de qualquer noção de valor, se equivoca quando procura
estabelecer uma relação causal entre os acontecimentos do espírito -
que quer se queira ou não devem sempre ser concebidos como valores
- e os acontecimentos do corpo - que não podem ser concebidos, se não
como simples fatos, como simples processos.
Tudo se explica, afinal de contas, pela atitude que toma a filosofia
moderna e contemporânea com respeito ao problema da relação entre
o corpo e o espírito. Para ela essas duas realidades vivem separadas. Mas, quando a filosofia se deixa invadir pela ciência, ela admite que haja
um relacionamento entre o corpo e o espírito; só que, impregnada pela
mentalidade da ciência, ela reduz o espírito a uma realidade muito mais
restrita do que a que efetivamente possui e o priva de seu atributo
principal, que é sua cidadania no mundo dos valores. O espírito assim
reduzido pode então parecer estar relacionado causalmente com fatos
e processos que não estão habitualmente associados a valores. Mas o
que houve foi um simulacro do que pode eventualmente ocorrer. Para
corrigir o erro da filosofia contemporânea, que desconhece qualquer
tipo de relação entre o corpo e o espírito, a ciência, tomando o seu lugar,
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restabelece a relação, mas não sem antes desfigurar o corpo, reduzindo-o a uma série de fatos e processos não associados a valores e
pretendendo transformar o espírito em algo que é diretamente contrário
à sua natureza, isto é, algo destituído de valor e destituído, portanto, daquilo que constitui propriamente sua essência.
O relacionamento real que existe entre o corpo e o espírito, de que
a ciência contemporânea não nos oferece senão um simulacro, é um
relacionamento entre valores: os valores do corpo e os valores do
espírito. Foi isso que Sócrates entreviu quando se inspirou na medicina
do seu tempo para construir sua ética. Foi isso que Nietzsche não se
cansou de proclamar quando passava em revista as idéias do seu tempo
e de outras épocas. Quando, em 1873, estava preparando seu ensaio que
acabou tendo o título de Da Utilidade e dos Inconvenientes da História
para a Vida, Nietzsche escreveu a seu amigo Gersdorff que o título do
ensaio poderia ser: O Filósofo como Médico da Civilização. É curioso
que um homem que procurou restabelecer nos seus direitos a velha
tradição socrática de uma relação correta entre o corpo e o espírito seja
objeto de uma tentativa no sentido de desacreditá-lo - em nome precisamente de uma concepção errônea dessa relação por ele justamente
condenada. Seu interesse em saber a que valores vitais correspondiam
certas idéias era a manifestação mais evidente de que, como Sócrates, ele não aceitava um espírito separado do corpo, de que percebia claramente que tipo de relação havia entre essas duas coisas e de que
compreendia que essa relação só podia ser uma relação entre valores.
Não é curioso então que se queira agora, depois do colapso na incons
ciência, unir seu corpo a seu espírito, transformando um fato físico, a
doença, num estímulo para o espírito, isto é, num valor surgido não se
sabe de onde e que transmite a um espírito necessitado sua carga
positiva? - É verdade que Jaspers não fala em doença ou em doença
diagnosticável, mas em fator biológico. Mas isso é apenas a prudência
do cientista. - O fato é que Jaspers acredita na possibilidade de um fator
físico, factual, agir sobre a estrutura valorativa do mundo espiritual de
Nietzsche. E há naturalmente os outros que acreditam nos benefícios
para o espírito das reações bioquímicas da sífilis. Tudo isso é muito
absurdo e mostra que, se a obra de Nietzsche se torna suspeita em razão
de sua associação à loucura do filósofo, nós também poderíamos nos
tornar suspeitos em virtude da associação de nossas idéias às nossas
próprias loucuras. É evidentemente uma loucura pensar que podemos
viver prescindindo do mundo dos valores (como querem Heidegger e
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seus adeptos). E não é também esse o sentido mais profundo da tentativa
a que hoje assistimos de construir nossas vidas sobre bases puramente
científicas e tecnológicas? No mundo enlouquecido em que vivemos, homens como Nietzsche, que acreditam em valores, deverão passar por
loucos mesmo sem a inter/enção da medicina. Às vezes chego mesmo a
pensar que o que convence o mundo da realidade de uma loucura
inerente às idéias de Nietzsche não é propriamente o colapso que o
vitimou, mas as próprias concepções que elaborou. Afinal de contas, em
que consistiu a loucura de Nietzsche? - Numa paralisia súbita e geral de suas funções cerebrais1. É isso que chamamos de loucura? Encon
tramos, nas atitudes de Nietzsche durante o período posterior a 1888, algo da extravagância, do pitoresco, do tragicômico geralmente associado à maior parte das manifestações da loucura? Com a única exceção
das breves cenas de Turim e da viagem de volta à Suíça, o que vimos foi apenas um súbito desmoronamento das forças do espírito. A sensação
de loucura para um certo tipo de leitores parece, pois, ter sido transmitida mais pela petulância, pelo inusitado, pela enorme ousadia que
circulavam em seus livros; esses leitores, quando souberam que Nietzs
che morrera louco, se sentiram provavelmente mais seguros - ou se sabiam antes de procurar seus livros, interessaram-se por eles provavelmente na expectativa de encontrar algo pitoresco, algo extravagante ou
mesmo tragicômico-, expectativa evidentemente que dependente como
era do preconceito que a originara não podia senão ser confirmada.
O que digo agora não tem naturalmente o valor de um argumento. É uma impressão confiada en passant e que visa apenas mostrar que a
loucura é uma noção pouco precisa. Hamlet finge-se de louco tendo em
vista um objetivo. No momento em que ia atingi-lo deixa de fazê-lo, talvez por ter enlouquecido. Pronuncia palavras que prejudicam a
apuração do crime do rei na cena do teatro no teatro. Poupa o criminoso
que tinha a intenção de matar e mata um outro, que era inocente. O
resto do drama é uma conseqüência desse seu descontrole. A pergunta
que se impõe é, portanto, a seguinte: é Hamlet um homem louco que
tem momentos de sanidade ou é ele um homem são que tem momentos
de loucura? Shakespeare não nos fornece a resposta; mas deixa entrever, penso eu, que ela dependerá de nosso ponto de vista. Podemos
pensar o que expusemos acima ou então que a idéia de fingir-se de louco
1. O diagnóstico de Mõbius de uma paralisia progressiva induz a pensar num processo
gradativo de loucura.
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é em si mesma uma loucura. Por isso, na hora de atingir o seu propósito, Hamlet recupera seu espírito e poupa o homem que pretendia matar.
Procura depois arrancar da mãe o segredo que, por sua própria culpa, não arrancara do tio; e pressentindo um movimento por trás de uma
cortina atravessa com sua espada o corpo invisível de quem o escutava. Onde está a loucura? - Na relação de Nietzsche com o mundo moderno, tudo depende também do nosso ponto de vista: se considerarmos que o
mundo moderno e contemporâneo é um exemplo de equilíbrio, de
moderação, de liberdade, de espiritualidade, de integridade, de autenticidade, de vigor e de criatividade - então há fortes razões para se
pensar que Nietzsche era de fato um louco. Mas, se considerarmos, ao contrário, que esse mundo é um exemplo de desequilíbrio, de extravagância, de escravidão, de materialismo, de desonestidade, de dissimulação, de debilidade e de pasmaceira - então deveremos pensar que
Nietzsche é justamente o homem que poderia contribuir para o saneamento desses males. Ora, um homem que é capaz disso é tudo, menos
louco. A doença que o vitimou deverá talvez ser considerada conseqüên- cia e não causa do que foi sua vida e sua obra - consequência, notemos
bem, entre outras coisas, de uma loucura a que teve que se opor. É possível mesmo que sua loucura tenha sido o resultado de um contágio
- não de um contágio sifilítico mas de um contágio com a loucura do
mundo. Parece ter sido de qualquer maneira uma conseqüência; esse é
um ponto de vista que convém não esquecer.
Que dose de verdade um espírito suporta, que dose ousa suportar? - tal tem sido
para mim cada vez mais o cri tério ve rdadeiro para julgar o seu valor. O erro não é cegueira,
o erro é covardia.
Este pronunciamento socrático, que Nietzsche faz no prefácio do
Ecce Homo, deveria absolvê-lo da suspeita de ter sido vítima involuntá
ria das trevas que dentro em pouco o envolveriam. Nietzsche ousou
suportar uma dose de verdade que ultrapassava seus limites. O trecho
das últimas páginas do Ecce Homo que citaremos a seguir não pode ser lido sem um estranho confrangimento d’alma de tal modo ele nos parece
inatacável quanto à sua essência e, entretanto, extremamente problemático pela impossibilidade de ser visto como a descrição de um “papel”
no drama da história que um indivíduo, um ser humano, possa atribuir
a si próprio:
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Meu destino quis que eu fosse o primeiro homem honesto, quis que eu me sentisse
em contradição com milhares de anos. Fui eu o primeiro homem que descobriu umamentira na mentira, sentindo-a com meu olfato. Meu gênio está no meu nariz. Eu
contradigo como jama is se o fez e sou entre tanto o con trário de um espírito negador. Souum po rtad or de boas novas como nunca houve ou tro igual, conheço obrigações de umaaltura de que não se tinha tido idéia até hoje; e não é senão a pa rtir de mim que a esperança
pode recomeçar. Com tudo isso sou necessariamente também o homem da fatalidade.Porque quan do a verdade e ntr ar em luta com a mentira milenar, veremos abalos inauditosna história do mundo, sismos dilacerarão a terra, as montanhas e os vales se deslocarãoe não se terá podido imaginar nada semelhante. A idéia de política será então completamente absorvida pela luta dos espíritos, e todas as combinações dos poderes da velhasociedade explodirão no ar, construídas como todas são sobre a mentira: haverá guerrastais como a terra não terá nunca visto antes. É a partir de mim que a grande política
começará na terra.
Quem lê esse texto, sem nunca ter lido antes algo de Nietzsche, pensará certamente que se trata de um insensato. É inconcebível que um homem possa pensar tais coisas de si mesmo. O mundo está cheio de loucos que julgam ser Jesus, Napoleão, César e outras figuras de significação mundial. O que parece ser diferente em Nietzsche é apenas que ele nos oferece uma imagem de grandeza forjada por si próprio e não emprestada à história. Assim pensa quem nunca havia lido Nietzsche antes de percorrer o trecho do Ecce Homo que citamos. E acrescentaremos, se quisermos continuar ouvindo a voz da realidade: e curiosamente também muita gente que já o havia feito.
Dissemos curiosamente porque quem estudou cuidadosamente a obra de Nietzsche, quem leu todos os seus livros várias vezes e os comparou, quem meditou profundamente sobre esses textos - quem fez
todo esse esforço, com um espírito atento e despreconcebido, terá dificuldade em subscrever a opinião de que o trecho citado por nós contém indícios de loucura. E não é só isso. Julgará mesmo, colocando- se na pele de Nietzsche, que ele não poderia pensar outra coisa de si mesmo. Tal era o abismo a que o levara sua missão, sua vocação, seu destino. Nietzsche era obrigado a pensar sobre si mesmo aquilo que pensava e essa era uma dose de verdade que ele, como qualquer um de nós, não poderia suportar. A diferença entre ele e nós é que, se procu
rássemos fazê-lo, seria por vaidade, para não falar de megalomania - motivo pelo qual seríamos a justo título considerados loucos. Nietzsche, entretanto, era obrigado a fazê-lo porque, se não o fizesse, a intenção de sua obra não teria sido convenientemente avaliada. Jaspers, que procura ajuizar essa obra com um máximo de objetividade e de sinceridade, revela as limitações de sua integração numa sociedade burguesa
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quando procura separar os efeitos positivos da obra nietzschiana da falta
de compostura, da diminuição de tato, da ausência de espírito de
autocrítica e dos impulsos sentimentais desproporcionados. Falta de espírito de autocrítica em Nietzsche! Não foi justamente esse senso de
autocrítica que, por um processo inexorável, o levou à loucura? Se fosse
louco ou doente antes do colapso, consideraí-se o centro do mundo não
lhe causaria o menor problema. Não seria essa uma idéia que não
pudesse suportar. Não seria uma dose de verdade que ultrapassasse os
limites do valor de seu espírito. A falta de respeito com que Jaspers
separa os diversos aspectos da obra de Nietzsche, ignorando as articu
lações naturais desse organismo vivo, corresponde bem à lógica científica com que está comprometido. O que deve ter aumentado
consideravelmente, na última fase da vida de Nietzsche, foi justamente
seu senso de autocrítica - pois foi ele que foi tornando cada vez mais
insustentável a posição do homem que não queria renunciar a ser
filósofo.
O confrangimento d’alma que sentimos ao ler a passagem que
estamos discutindo, Nietzsche deve tê-lo sentido igualmente no ato de
escrevê-la. Mas que podia fazer? Não estava livre como nós, para retê-la
ou abandoná-la. Devia retê-la, porque ela fazia parte de sua missão, de
sua vocação, de seu destino. Era uma daquelas verdades cuja dose
violenta devia ousar suportar. Ao longo de sua vida, havia ousado
suportar muitas outras verdades: as verdades que representavam o
sacrifício de Sócrates, do cristianismo, do sentido do mundo, de seu
entusiasmo por Schopenhauer e do seu amor por Wagner; mas agora,
quase no final de sua vida consciente, uma ousadia ainda maior lhe era
exigida; deveria ousar o sacrifício dos últimos laços que o prendiam ao
mundo em que nascera - devia compreender sua vida como uma cbn-
tfadição com milhares de anos. Havia alguém que pudesse resistir aos
efeitos dessa colossal ousadia? - A mim me parece que só por um
milagre poderia escapar incólume o homem que tentasse viver uma tal
experiência - sobretudo quando sabemos que as palavras que a descre
veram, como tudo o que saía da pena de Nietzsche, eram palavras
arrancadas de seu sangue, das suas mais íntimas fibras.
Nesse sentido não deixaria de ser instrutivo refletir sobre o fato de
que tanto Nietzsche quanto Heidegger poderiam tornar-se objeto da
mesma suspeita de loucura, já que os dois estavam convencidos de que
se encontravam numa posição especialíssima - em contradição com
milhares de anos. Ambos desenvolveram suas idéias a partir de uma
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crítica radical da cultura clássica, de uma crítica radical da tradição
socrático-platónica - fonte de inspiração respeitada e venerada por todo
homem que se considera membro integrante da nossa cultura ocidental.
Nietzsche denunciou a decadência socrática, mas o fez dialeticamente,
sabendo que ele próprio era um filho de Sócrates, que o sangue socrático
corria em suas veias e que as propostas que poderia fazer para um futuro
melhor não seriam senão propostas socráticas. A denúncia de Heideg-
ger, entretanto, teve um caráter mais claro, peremptório, foi a denúncia
de um erro insofismável, de um equívoco completo, feita de um ponto
de vista supostamente científico - a ciência filológica do filósofo - e
pretendendo assim assumir, com a irrefutabilidade da ciência, a posição
de árbitro da história. Nietzsche colocou-se dialeticamente favorável a
uma opção que não pulverizava realmente a opção que fora preterida.
Heidegger, ao contrário, colocava-se num ponto de vista pretensamente
científico e, com a utilização de sua suposta ciência filológica, era levado
a uma posição megalomaníaca de absoluta independência com relação
a todo o passado cultural do homem do Ocidente.
Com seu tom dogmático e professoral, Heidegger fez então afirma
ções que tornaram modestos, por comparação, os mais arrogantes
pronunciamentos de Nietzsche. A seu ver, durante todo o período que
vai do aparecimento de Platão ao aparecimento de Nietzsche, o “ser”
esteve esquecido, isto é, “oculto”. Havia sido preciso que surgisse
Heidegger e a perfeição de sua técnica analítico-filosófico-científica
para que se começasse a ter uma noção do que fosse o “ser”, uma noção
por conseguinte do que fosse a “verdade”. Não se tratava de uma nova
interpretação, como a de Nietzsche, mas de uma revelação da “verdade
do ser”. Toda cultura do homem ocidental se tinha desenvolvido sob o
signo do “esquecimento do ser” e havia sido preciso que Heidegger nos
advertisse disso para que a cruel verdade aflorasse à nossa consciência.
Poderia haver demonstração maior de megalomania? As últimas mani
festações de Nietzsche, não só as que já citamos mas outras ainda que
podemos também encontrar no Ecce Homo e que citaremos a seguir,
são sem dúvida arrogantes, são mesmo mais do que isso - mas não se
apresentam envoltas no clima frio, dogmático e professoral que é carac
terístico do filósofo de O Ser e o Tempo. Essas manifestações revelam
mais do que arrogância porque, como tudo mais que vem de Nietzsche,
têm um caráter dialético. Nietzsche diz no Ecce Homo “[...] Eu conheço
meu destino. Um dia virá em que a lembrança de um acontecimento
formidável estará ligada a meu nome, a lembrança de uma crise única
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na história do planeta”, mas diz também que “[...] não desejaria trans
formar-me num santo, preferia ser considerado um bufão [...] E que
talvez mesmo fosse um bufão”. Diz ainda, como já vimos, que o destino
quis que ele fosse “o primeiro homem honesto e que se sentisse em
contradição com milhares de anos”; mas diz também que “meus livros
por vezes atingem o máximo a que se possa chegar neste mundo - ao
cinismo”. A arrogância e a autocrítica exacerbada faziam, pois, igual
mente, parte do clima de exaltação em que Nietzsche vivenciava seus
últimos problemas - faziam parte do conteúdo desses problemas.
Nietzsche tinha perfeita consciência dessa sua arrogância e, de uma
certa maneira, era o primeiro a sofrer do choque que causava; ela era
mais que arrogância - era também a coragem que o levava a pensar de
si mesmo algo extremamente destrutivo: aquela dose de verdade que
ninguém poderia suportar.
Heidegger não dizia, agia como se soubesse estar em contradição
com milhares de anos - mas nos seus gestos ou nas suas palavras, era
impossível encontrar qualquer indicação de que achasse essa situação
pelo menos anormal. Sua arrogância estava longe de ter uma consciência
nítida de si própria e estava ainda mais longe de ser a primeira a sofrer do choque que causava. Aliás essa arrogância não parece ter produzido,
como a de Nietzsche, qualquer abalo sobre uma parte apreciável do seu
público. E nunca houve a menor suspeita de que houvesse em Heidegger
algum desequilíbrio. Sua megalomania, escudada na sua pretensa ciên
cia, foi sempre aceita, explicada e discutida como se se tratasse de uma
excitante inovação filosófica merecedora da mais cuidadosa atenção.
Mas a monotonia do refrão continuamente utilizado por Heidegger -
“o esquecimento do ser” -, a pouco imaginativa uniformidade e esterilidade da denúncia contra tudo o que de mais interessante e nobre
produziu a cultura do Ocidente - tudo isso são manifestações que dão
o que pensar. Que diríamos se soubéssemos, por exemplo, que a filologia
de Heidegger foi repudiada frontalmente por um dos mais eminentes
filólogos zscholars clássicos deste século, Paul Friedlander, com muito
maior pertinência do que a de Nietzsche o havia sido pelo jovem e
inexperiente Wilamowitz? - Não teríamos então alguma razão de sus
peitar que haveria uma certa insanidade em se querer construir, a partir
de um erro filológico, uma interpretação tão negativa da cultura do
Ocidente?
No calor da discussão passamos insensivelmente da terceira para a
quarta categoria dos analistas de Nietzsche que trataram do problema
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de sua loucura. É nela que preferimos nos inserir para ver se nos é
possível discernir algum laço de valor positivo entre essa tragédia, de
repercussões tão negativas, e a significação mundial da obra a que está
associada. Vemos assim como a tendência à classificação é quase sempre vencida pela complexidade dos problemas. Já exprimimos nossa
convicção de que a doença que determinou o colapso de Nietzsche
parece ter sido conseqüência e não causa das idéias que agitavam o
espírito do filósofo. Isso não significa naturalmente que nunca tenha
existido o famoso fator biológico de Jaspers. O que não me parece ter
existido é um fator biológico que produzisse efeitos na evolução espiri
tual de Nietzsche; os efeitos se existiram se verificaram, a meu ver, no
seu organismo físico. E só se tornaram visíveis com o colapso final. Houve, portanto, creio eu, dois fatores que agiram concomitantemente
no sentido da paralisia súbita e geral: uma doença que tinha seu período
de incubação, que teve um período de incubação atípico, pois foi muito
mais longa do que seria normal e que, por conseguinte, poderia ter tido
um período de incubação ainda maior; e uma aventura espiritual, que
consistia numa experimentação perigosa e que causava uma tensão no
sistema nervoso de tal natureza que não poderia deixar de ter conse-
qüências de ordem corporal. É, portanto, extremamente provável que
essa tensão tenha agravado a precariedade das condições físicas de
Nietzsche e tenha muito naturalmente diminuído o período de incubação de sua doença. Note-se que, depois do colapso, Nietzsche ainda
viveu onze anos e que finalmente morreu não da doença mas de uma
pneumonia que contraiu. Pode-se assim pensar que, uma vez cessada a
influência do agente espiritual, desacelerou-se o ritmo da doença de
modo extremamente significativo. O período que separa o colapso do
aparecimento do fator biológico de Jaspers é de nove anos - é de onze
o que separa o mesmo colapso da morte, que, ainda assim, não foi causada pela doença.
Não parece então ser fruto da fantasia pretender que o mergulho
de Nietzsche nas trevas da inconsciência constituiu um ato filosófico da
mesma natureza que o gesto de Sócrates bebendo a cicuta.. Nietzsche
precisava ousar a dose de verdade que seu espírito não poderia suportar,
para coroar, para autenticar, para legitimar sua obra. Essa ousadia que
o levou ao desastre era insensatez do ponto de vista humano mas
sabedoria do ponto de vista de uma realidade mais alta. Sócrates
chamou-a de realidade divina; tinha morrido da maneira pela qual tinha
querido morrer, o que também era uma insensatez do ponto de vista
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humano - qualquer outro tipo de desenlace teria prejudicado sua obra.
Certos objetivos nunca serão atingidos se não se arrisca, se não se
recorre a um grão qualquer de loucura. Sócrates sabia que era preciso
arriscar, ignorar a voz da razão, os conselhos do bom senso e da
prudência, confiar na vontade impenetrável de Deus para cumprir seu
destino.
E Nietzsche? Em nome de que realidade lançou-se nas trevas? -
Realidade divina, sim, mas que Deus era esse que o recebia nos braços?
Dionísio? Sócrates? O Crucificado? - Todos os três eram deuses que
morriam e ressuscitavam. Nietzsche esperava talvez ter o mesmo desti
no. Mas antes de tê-lo, ele provavelmente já se sentia mui próximo, quase
idêntico a Sócrates-Dionísio, ao médico-filósofo, ao filósofo da comu
nicação indireta, ao descobridor da coragem do espírito, ao crítico da
decadência. Procuramos mostrar, neste livro, como a vida e a obra
desses dois homens se recobrem em muitos pontos; mas é no desenlace
final que eles revelam sua verdadeira identidade como se o mesmo
motivo devesse destruir um e outro para que se soubesse ter havido nos
ideais vividos por eles mais do que uma simples semelhança - uma
completa igualdade.
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9. NIETZSCHE E SUA DOENÇA
Agora que Friedrich Nietzsche se tornou um autor academicamen
te respeitável, é tempo talvez de se iniciar com relação à sua obra e sua
personalidade uma forma de investigação “mais filosófica” sobre sua
doença - o que se havia feito até recentemente tinha sido procurar
destruir, em razão de preconceitos e parti pris, uma reputação que,
apesar de tudo, ia consolidando-se. O momento parece maduro para
que empreendamos uma investigação filosófica sobre a verdadeira na
tureza de sua doença, tentando atender de modo mais sutil a complexi
dade do problema e evitando os escolhos de uma perspectiva científica
em torno das causas de sua pretensa loucura.
De qualquer maneira, estamos hoje longe das convicções de um
Paul Möbius, que, no começo do século, mobilizou (sem intenção de
trocadilho) seus conhecimentos médicos e científicos para estabelecer
a existência de uma relação causal entre a doença de Nietzsche e a sua
obra. Möbius começou suas pesquisas interessando-se pelo fator here
ditário que parecia lhe abrir um campo fértil em descobertas: o pai do
filósofo, Karl Ludwig Nietzsche, morrera jovem, aos trinta e oito anos
de idade, de uma convulsão da qual resultara um amolecimento cere
bral; alguns irmãos e irmãs da viúva Nietzsche haviam sido doentes
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mentais - uma irmã se teria suicidado, outra teria enlouquecido; um
irmão fora acometido de um acesso de loucura aos sessenta e oito anos
de idade. A mãe de Nietzsche havia mesmo especificado que uma de
suas irmãs morrera num sanatório. Tudo levava a crer que, com esses
dados, Möbius já teria reunido um número suficiente de elementos para
estabelecer em bases firmes sua tese sobre a relação entre a doença de
Nietzsche e sua obra.
Entretanto, da parte da família do filósofo, surgiam protestos indig
nados. Dizia-se que a viúva Nietzsche, por ocasião da morte do marido,
havia declarado peremptoriamente que, durante sua vida, nunca se
notara o menor indício, o menor traço de um sintoma de loucura, que
suas crises haviam sempre tido uma origem nervosa e que sua morte fora
determinada por causas exclusivamente físicas. Diante das suposições
de Möbius, Elisabeth, a irmã do filósofo, reagiu com mais violência
ainda, tornando-se até uma inimiga do médico e cientista. A loucura de
Nietzsche, afirmava de modo extremamente enfático, devia ser atribuída
não só ao uso de remédios, narcóticos e drogas que o irmão utilizava
para aliviar suas violentas dores de cabeça e de estômago como também
aos excessos de trabalho, ao esforço enorme exigido de um corpo
enfraquecido pelas crises sucessivas de uma doença que não lhe dava
tréguas.
Segundo Elisabeth, as hipóteses de Möbius fundavam-se todas
sobre um grande equívoco - nunca ouvira falar de doença mental entre
os seus, embora fosse verdade que, pelo lado Oehler da família, houves
se algo de original e que alguns de seus membros fossem predispostos
à melancolia. Supunha-se também que a morte de seu pai houvesse sido
ocasionada por uma queda. A obstinação de Möbius de encontrar,
mesmo durante o período da vida consciente do irmão, traços de
loucura, só podia ser atribuída à extrema aversão que sentia por suas
idéias.
Möbius, entretanto, não desistia. Sem abandonar completamente a
tese da hereditariedade, resolvia agora explorar outro filão. Havia
rumores de que Nietzsche, nos seus tempos de estudante em Leipzig,
havia se submetido a um tratamento anti-sifilítico. O dossiê médico do
sanatório de lena, onde Nietzsche esteve internado em 1889, registrava, em virtude de uma indicação dada talvez por ele próprio, uma infecção
sifilítica no ano de 1866. Muitos anos mais tarde, em 1961, Lange
Eichbaum, reputado médico e cientista, endossa também essa versão
dos fatos, depois de ter declarado haver um célebre neurólogo berlinen-
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se afirmado que Nietzsche, nos seus tempos de estudante, contraíra
sífilis, tendo em conseqüência se submetido a um tratamento com dois
médicos de Leipzig.
Mõbius não era um filósofo; as idéias de Nietzsche obviamente o
chocavam e, como não tinha competência para analisá-las de um ponto
de vista filosófico, valia-se de sua autoridade médica e científica para
lançar sobre elas sua condenação exasperada. Nos meios médicos e
científicos, naturalmente sua opinião fazia escola, e até a década de
sessenta havia médicos e cientistas que observavam a linha de investiga
ção de Mõbius, no que dizia respeito às experiências sexuais de Nietzs
che (e suas conseqüências). Elas não se limitavam agora às visitas
noturnas de Leipzig, mas tinham também, como teatro, a própria Basi
léia, onde Nietzsche exercera o seu professorado, e as cidades do litoral
mediterrâneo, Gênova e Nice.
Do meu conhecimento, o primeiro homem de ciência que se insur
giu contra essas teorias foi Karl Jaspers. Mas Jaspers não era apenas um
cientista, era também um filósofo. Antes de descortinar os amplos
horizontes da filosofia, já adquirira uma sólida competência e reputação
no campo da psicologia e da psiquiatria, de forma que suas opiniões não refletiam apenas a clássica oposição entre o cientista e o filósofo mas
um julgamento que não podia ser atribuído à visão excessivamente
idealista e “metafísica” de um filósofo que não tinha os pés plantados
na realidade.
Jaspers negou terminantemente que, até poucos dias antes da crise
de Turim - quando o filósofo subitamente perdeu contato com a reali
dade -, se tivesse manifestado em Nietzsche qualquer indício de um
distúrbio mental sério. Negou também que se pudesse estabelecer a existência de uma relação causal entre um fator físico e determinada
manifestação do espírito. Um orador, exemplificou ele, não deixa de ser
brilhante, eloquente ou inteligente quando se sabe que, para vencer um
certo retraimento ou inibição, necessita tomar um copo de cerveja ou
de vinho antes de iniciar o seu discurso. Seria, acrescenta ainda, até
possível imaginar que a sífilis, na fase inicial de seu processo, funcionas
se como um estímulo, como um agente capaz de intensificar o esforço e
o rendimento de uma atividade espiritual, se não se soubesse que, nas
fases posteriores do seu desenvolvimento, ela corrompe o organismo e
destrói as partes mais vitais da cerebração humana. De qualquer manei
ra, era inconcebível pensar que a obra de Nietzsche tivesse devido o que
quer que fosse a um fator de ordem patológica.
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O que Jaspers acreditava ter podido detectar na vida do filósofo,
no começo da década de oitenta, haviam sido sinais de uma modificação
na sua estrutura psicológica, modificação, Jaspers fazia questão de
enfatizar, que resultava não da intervenção de um fator de ordem
patológica mas daquilo que, na falta de uma caracterização mais precisa,
limitava-se a chamar de “fator biológico”. Uma espécie de exaltação,
uma euforia e um otimismo que não pareciam se justificar, era a nova
nota que parecia predominar agora na atmosfera espiritual do filósofo
- e sem ter uma explicação seja médica, seja filosófica, para esse novo
estado de coisas, Jaspers limitou-se a fazer o registro da nova condição,
sem dúvida com a intenção de, dessa forma, levantar uma barreira, uma
resistência ao diagnóstico com que se pretendia destruir a validade e a
importância das idéias nietzschianas.
Embora Jaspers seja merecedor de nossa grande admiração, entre
outras coisas pela coragem com que se levantou contra as opiniões dos
meios médico-científicos de que era oriundo, cabe aqui estranhar que,
tendo ele dedicado uma tão grande e perceptiva atenção ao problema
da doença de Nietzsche, não tenha conseguido obter senão resultados
negativos no que diz respeito à explicação para o enigma que procurava
desvendar - a questão de saber se Nietzsche era simplesmente um
homem doente ou se era alguém que tinha uma significação universal.
Na sua opinião, Nietzsche era as duas coisas ao mesmo tempo - mas isso
não resolvia o enigma, que consistia no fato de Nietzsche ter uma
significação universal justamente em virtude do fato de ser um homem
doente.
O que se pode observar na análise de Jaspers é que, tendo ele
examinado com olhos tão perceptivos o caso clínico do indivíduo Nietzs
che, não teve sua atenção voltada para o fato de que, na obra de
Nietzsche, não apenas o indivíduo Nietzsche mas o homem, o ser
humano de uma maneira absolutamente geral, é caracterizado como um
“animal doente” - o que aliás o torna, sempre de acordo com a concep
ção nietzschiana, um “animal interessante”. - Interessante por quê? -
Interessante, faz-nos entender Nietzsche, porque, a partir de um certo
período da história, passou a exercer sua violência, sua ferocidade, sua crueldade não mais contra vítimas e inimigos como fizera anteriormente
mas contra si mesmo. Interessante, porque essa ferocidade, essa violên
cia, essa crueldade não terminava em destruição e morte, mas, pelo
contrário, criava, abria no homem espaços interiores extraordinários e
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culminava produzindo a mais bela flor de que a humanidade pudesse se
orgulhar - o amor cristão.Tudo isso, segundo Nietzsche, estava ligado ao fato de ser o homem
um animal doente. Era a doença que transformava sua humanidade em
algo de extraordinariamente valioso - sem sua alma, capaz da mais desapiedada autodilaceração, capaz dos mais ferozes, dos mais sanguinários ataques contra si mesma, o homem seria um animal desinteressante - possuiria uma alma que conhecesse talvez as emoções da
simpatia, da solidariedade, da comunhão com a realidade cósmica mas
jamais o amor cristão - o amor que leva ao sacrifício, o amor que redime,
o amor que transfigura e cria um novo reino. Era a doença que levava o homem a criar dentro de si mesmo vastos espaços interiores nos quais
novos fatos, novos fenômenos, uma nova realidade eram milagrosamente produzidos, dando ao mundo um novo sentido, um novo valor, uma
nova configuração.É em A Genealogia da Moral, obra escrita depois de se ter verifica
do, segundo Jaspers, a intervenção do famoso “fator biológico”, que se
encontram as extraordinárias análises em que Nietzsche faz derivar o
fenômeno da consciência no homem de um fenômeno anterior que
caracterizou como “má consciência”. Pouco se tem refletido sobre essa
origem que a intuição histórica dc Nietzsche julgou discernir e que
parecerá digna de toda a atenção para quem se disponha a estudar com
a profundidade necessária a história de Israel. Foi somente quando um
povo renunciou a seus instintos predatórios, que o fazia lançar-se contra
o inimigo na fúria de destruir-lhe as entranhas, foi somente quando
renunciando a essa luta insana fez com que esses mesmos instintos se
voltassem contra si mesmo, foi somente então que surgiu na história do
homem a “má consciência” e então, como consequência, a consciência
e a aurora do amor cristão. Voltando-se contra si mesmo, o homem se
reconhece como pecador e atribui a si próprio a responsabilidade de
todos os males que lhe advenham. Mas ao mesmo tempo que se atormentava numa luta contra si próprio, levada a efeito com a mesma fúria
com que anteriormente havia lutado contra seus adversários, algo de
maravilhoso se criava dentro de si, um mundo novo se formava ante seus
olhos maravilhados, um mundo de que até então nunca tivera a menor
percepção - o mundo da consciência, o mundo da alma que surgia como
uma flor inesperada do seio dessas lutas sangrentas travadas dentro de
si, naquele espaço interior que se havia formado.
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A Genealogia da Moral é um dos mais belos livros de Nietzsche
porque une a profunda, a genial intuição do psicólogo à mais extraordi
nária elevação espiritual do filósofo. Nietzsche descreve, nessas páginas
absolutamente incomparáveis, como de uma atmosfera de ódio e ressentimento pôde nascer a mais pura, a mais bela flor - o amor cristão; como da selvageria dos instintos em luta contra si mesmos puderam
surgir as mais sublimes manifestações do espírito; e como é superficial
pensar que a luz da consciência é um fenômeno cuja aparição na história
do homem se deu sem combates terríveis, sem lutas sangrentas em que
o inimigo era o próprio combatente que nelas estava empenhado.
É essa concepção do homem dotado de uma consciência cujas origens não têm o caráter selvagem, feroz, violento que lhe atribui
Nietzsche - é essa concepção de uma consciência que não foi antes uma
“má consciência”, que não precisou ter sido uma má consciência, que
surgiu inexpücavelmente como uma luz que se acende, o que nos induz
a pensar que a saúde é o estado normal dos homens e que a doença é
uma exceção. Quando Nietzsche nos diz que o homem é um animal doente, o que ele nos está querendo sugerir é que foi a doença que nos
liberou do estado animal, do estado em que o animal normalmente é saudável. É o fato de ser o homem um animal doente que faz dele um
animal interessante - isto é, um animal que não é mais um animal. Essa
transformação é provocada pela doença - é ela diretamente responsável pela abertura de novos e vastos espaços interiores no homem, nos quais
novos fatos, novos fenômenos, uma nova realidade são milagrosamente
produzidos, dando ao mundo um novo sentido, um novo valor, uma nova
configuração.
Mas essa intuição do caráter essencialmente doentio da natureza
humana, Nietzsche só a teve depois que se exauriu completamente sua
experiência do cristianismo. Contrariamente ao que ele próprio diz no
seu Ecce Homo, Nietzsche viveu profunda e intensamente a experiência
cristã. Paul Valadier, nos seus dois belos livros sobre o filósofo, nos dá
disso provas que me parecem superlativamente convincentes. E foi
somente quando essa experiência se exauriu - fato que coincidiu com a
ruptura de sua amizade com Richard Wagner-, foi somente então que
se iniciou o processo de sua reflexão sobre o que bem poderia caracterizar a essência do homem.
O jovem que abraçou os estudos de filologia clássica era um espírito
profundamente marcado pela experiência cristã. E a profunda renovação que esse jovem realizou, já ocupante de uma cadeira de filologia na
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Universidade de Basiléia, foi ela também fortemente inspirada por essa
experiência. A descoberta do espírito “dionisíaco” não teria sido possí-
el para Nietzsche se ele não tivesse vivido com a maior intensidade o drama da paixão de Cristo. Os compêndios de história da filosofia
assinalam muitas vezes, mas quase sempre superficialmente, o fato de
que há alguma semelhança entre a doutrina cristã e certas correntes
místicas da religiosidade helénica dos séculos imediatamente anteriores
ao advento de nossa era. Dionísio é um deus que morre e que renasce,
um deus que perde a individualidade, envolvido no entusiasmo e na
paixão de uma tortura triunfante, traços comuns das crenças religiosas
dos povos que viviam ainda sob a forte impressão de suas experiências
agrícolas de semeadura de grãos e de colheita de cereais e de frutos. A
cultura grega, na sua totalidade e nos seus diversos elementos derivados
dos períodos arcaico, clássico e helenístico, exerceu, como se sabe, uma
grande influência sobre o cristianismo, mas as contingências históricas
fizeram com que fosse a filosofia, e não a religiosidade daqueles tempos,
que, em Roma e em Constantinopla, a exercesse de maneira definitiva.
O cristianismo, triunfando em Roma, cedo se latinizou. O aspecto da
cultura grega que podia naturalmente interessá-lo era a filosofia, já que
a religiosidade grega não representava para ele uma contribuição im
portante. Mas justamente essa sua estreita aliança com a filosofia e o
desdém que votava à religiosidade grega fez com que as gerações
posteriores se tornassem incapacitadas para avaliar na sua justa medida
a importância do elemento dionisíaco nas religiões em geral. Enquanto
o cristianismo da Rússia, desvinculado de Roma e da filosofia, conser
vava no seu bojo aquele elemento do cristianismo que tinha um caráter
dionisíaco - a consciência messiânica e escatológica -, o cristianismo do
Ocidente e de Constantinopla se orientava para uma concepção da
Grécia cada vez mais apolínea, o elemento dionisíaco era cada vez mais
esquecido, a idéia do milênio ia sendo abandonada e a salvação da
humanidade era tida como já realizada. Essa preponderância do ele
mento apolíneo era naturalmente determinada pela influência da filo
sofia grega que, com a exceção do que ocorria na Rússia, cada vez mais
ocupava espaços no mundo espiritual que se desenvolvia à sombra do
cristianismo.
A interpretação dada por Nietzsche ao fenômeno grego tinha, como
base essencial, uma experiência sua do cristianismo independentemente
das contingências históricas que o haviam vinculado à filosofia - era a
experiência de um cristianismo de tradição fideísta em que era dada
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uma ênfase especial à experiência religiosa interior, psicológica e afetivamente sentida, experiência aliada a um rigorismo moral exterior que
era a barragem necessária ao sentimento religioso transbordante. Note-
se que era uma experiência íntima transbordante, contida por uma
barreira exterior e não por uma sublimação ou transfiguração através
de uma outra experiência íntima contraposta, ou seja, uma experiência
apolínea. Era um cristianismo, diria Nietzsche, que se incorporava a nós, passando a fazer parte de nossas entranhas, e que era um símbolo das
verdades profundas do coração humano.Foi esse cristianismo dionisíaco que permitiu a Nietzsche ver o
período trágico da cultura grega emergir da consciência de um fundo
terrível da existência em que os instintos do homem ainda eram selvagens, em que o homem não era ainda um “animal doente”, um “animal
interessante”. Na Grécia essa selvageria dos instintos havia sido contida
pelo sonho apolíneo, diferentemente do que acontecera em Israel, com
seu sentimento de culpa. O homem moderno e contemporâneo, que é
uma síntese dessas duas culturas, encontra assim, numa tradição anterior a elas, fundada numa concepção selvagem, terrível da existência, o
fundo comum em que mergulha a verdade do seu ser. Nietzsche, ao descobrir o espírito dionisíaco do período trágico dos gregos, estava
descobrindo as verdadeiras raízes da cultura em que se desenvolveu e
se constituiu a alma do homem do Ocidente. Quando, no Ecce Homo,
ele disse se encontrar em contradição com milhares de anos, estava
dizendo uma coisa que decorria necessariamente de tudo o que havia
dito antes em A Origem da Tragédia e em A Genealogia da Moral. É
curioso que mesmo um intérprete do porte de Karl Jaspers não tenha
compreendido isso.Nietzsche descobriu Schopenhauer e se relacionou com Wagner
justamente depois de ter compreendido ser sua experiência interior do
Cristo uma experiência interior de si mesmo, isto é, quando o vigor do
seu sentimento cristão apresentava sérios sinais de desgaste. A intensidade do sentimento cristão, através do qual o crente se percebe unido
interiormente ao Cristo, começava a pensar Nietzsche, só dependia de
si próprio. O filósofo era assim levado a perguntar a si mesmo se idêntico
sentimento não ocorreria com relação a Maomet se o crente tivesse
nascido num meio não cristão mas maometano. Schopenhauer atraía-o
justamente naquela fase em que começava a sentir a possibilidade de
liberar-se do cristianismo - poderia talvez ser seu mestre porque o
dispensava da necessidade de se sentir culpado. Segundo Schope-
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nhauer, a culpa residia não no ser humano mas na Vontade Universal,
caprichosa e arbitrária. Havia também uma certa semelhança entre essa
Vontade Universal e o deus dionisíaco, que nos arrancava da nossa
individualidade e nos levava através de transportes exuberantes a uma
embriaguez em que se confundiam êxtase sublime e destruição insensata
- outra razão para o interesse de Nietzsche, recém-saído do seu cristia
nismo dionisíaco. Mas Nietzsche acabou por reconhecer que Schope-
nhauer, apesar dessas concepções que pareciam tão próximas do
espírito dionisíaco e da religiosidade grega, não se libertara em absoluto
do cristianismo - o que propunha era simplesmente um cristianismo
invertido: a culpa persistia, só que agora era transferida do homem para
a divindade.
O fato de Wagner ser um admirador de Schopenhauer havia sido,
no começo de suas relações com Nietzsche, um grande incentivo para
que se estabelecesse entre eles uma firme amizade. Mas agora que
Nietzsche vivia um período de dúvidas e de hesitações com relação à
obra musical do amigo, aquela admiração se transformava num real
empecilho. Wagner também não se libertara do cristianismo, apesar de
seu Siegfried e de seu paganismo germânico; e a criação de seu Parsifal, um herói cujo gesto mais expressivo se realizava no final do drama com
sua prosternação diante da Cruz, revelava sem a menor possibilidade
de dúvida o verdadeiro teor das emoções que o inspiravam.
Ao receber de Wagner o libreto do Parsifal, Nietzsche, como única
resposta, enviou ao amigo, que, com isso o deixava de ser, um exemplar
do seu Humano, demasiadamente Humano, acabado de sair da impres
são. Era esse um livro para os espíritos livres, dedicado à memória de
Voltaire em comemoração do aniversário de sua morte ocorrida em 30
de maio de 1778. A troca de correspondência, feita naquele exato
momento, soou no espaço - observava então Nietzsche - como um
tilintar de espadas que se cruzavam em duelo. Nietzsche rompia assim
os últimos laços que o prendiam ainda à experiência cristã dos tempos
de sua infância, de sua adolescência e de sua primeira juventude e
ingressava agora num mundo novo, totalmente estranho, que se abria
diante dele e do seu desejo de uma liberdade ilimitada, capaz das mais
atrevidas provocações e mesmo dos mais claros sacrilégios.
Corresponde precisamente esse episódio ao período em que
Nietzsche mais sofreu com suas violentas dores de cabeça, de estômago
e prostração em geral. Ele mesmo nos diz que, durante o começo do ano
de 1879, havia tido cento e oitenta e nove crises graves e que não estava
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levando em conta as crises mais ligeiras; ora, o começo de 1879 foi o
período que sucedeu imediatamente a publicação do Humano, dema
siadamente Humano e ao seu rompimento com Wagner - foi, portanto, o ano em que se tinham rompido ou se estavam rompendo os últimos
laços que o ligavam ao cristianismo. Falou-se, a respeito desse período
de crises tão graves, dos efeitos psiconeuróticos resultantes da ruptura
com Wagner, mas o que parece ter passado completamente despercebido é que essa ruptura com Wagner era, ao mesmo tempo, uma ruptura
mais profunda com o cristianismo, uma ruptura bem mais grave do que
tudo o quanto eventuais manifestações anticristãs anteriores tivessem
podido representar.Esse é, a meu ver, o momento, o ponto de confluência em que se
reúnem os dois tipos de doença que configuraram a vida e a obra do
filósofo: de um lado, a doença do indivíduo Nietzsche condicionada, sem
dúvida, por um sistema nervoso frágil, por uma atividade cerebral
certamente excessiva em face da fragilidade de um tal sistema e por um
rigor disciplinar talvez não o mais condizente com a natureza excepcional que se submetia a uma tal disciplina; do outro, a doença do homem,
do ser humano em geral, que Nietzsche em tal momento identificaria
como a contribuição específica do judaísmo e do cristianismo. É fora de
qualquer dúvida que Nietzsche se considerou privilegiado por ter podido, através de seus sofrimentos e de sua doença individual, adquirir uma
óptica em virtude da qual o homem se revelava aos seus olhos como um
“animal doente”, um animal que deixava de ser animal justamente
através do fato de se ter tornado um animal doente. A idéia de que a
vida do espírito tem sua origem na doença, ao invés de desvalorizá-la
aos seus olhos, fazia-o, ao contrário, valorizar a doença como contribuição essencial na vida do homem. Isso certamente não queria dizer que
a doença devesse ser cultivada por si própria; o grande objetivo continuava a ser a saúde, como sempre havia sido na vida de qualquer animal - mas para o homem, esse “animal doente”, o objetivo principal não era
a saúde, que podia inclusive fazê-lo decair na escala dos seres, mas a
“grande saúde”, que é aquela que é obtida a partir da consciência de
que, para o homem, o estado normal é, não a saúde, mas a doença.Esse é o motivo pelo qual acredito que não se possa dizer que
Nietzsche tenha, no final de sua vida, rompido inteiramente com o
cristianismo. O cristianismo, a seu ver, era uma interpretação da vida
que trazia no seu bojo muitos elementos negativos - mas era uma
interpretação que transformara em ser humano uma criatura que era
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antes um animal uma interpretação em que o fato interpretado é
menos importante que a interpretação que o transfigura - uma interpretação que se substituía ao fato. Esse animal doente é também um ser
alado, natureza que se apresenta agora como uma espécie sui generis,
que criou dentro de si mesma uma consciência capaz de gerar coisas
maravilhosas e cuja obrigação é, a partir do seu novo estatuto, aspirar à
saúde, à grande saúde, sem destruir dentro de si essas coisas maravilhosas que sua doença constitutiva lhe proporcionou. Diríamos assim que
o problema do cristianismo para Nietzsche não ficou inteiramente
resolvido - pôr de lado o cristianismo seria impossível porque seria pôr
de lado o próprio homem; aceitá-lo, com seus antigos vícios, com seus
muitos elementos negativos, seria igualmente impensável agora que
sabemos nele distinguir o joio do trigo. Nietzsche sacrifica seu espírito
no altar desse dilema excruciante.Essa seria então a explicação filosófica para a doença de Nietzsche,
o que se convencionou chamar de sua loucura. Nietzsche teria tido a
ousadia de levar a um ponto de exacerbação insuportável as contradições inerentes ao dilema que havia dilacerado sua vida. A dose de
verdade que seu espírito havia ousado suportar havia sido uma super-
dose que o havia fulminado. Desde então, uma vez aceita essa explicação, a doença final de Nietzsche deixa de ser um terrível acidente de
percurso, uma lamentável infelicidade para se transformar num acontecimento mundial, num ato filosófico inspirado no mais puro espírito da
tragédia, como o ato de Sócrates ao esvaziar a taça de cicuta que lhe
havia sido apresentada.
Mas nem todo mundo acredita na palavra do filósofo. É por isso
gratificante saber que, mesmo no campo da psicologia e da psiquiatria,
uma voz pelo menos se tenha levantado para apoiar as interpretações
do filósofo. Louis Corman, criador de um método de análise psicológica
que permite deduzir das feições do rosto humano os traços principais
de seu caráter - um método que desenvolveu baseado nas pesquisas de
Claude Sigaud, médico de Lyon, descobridor no começo do século da
lei que rege a relação das formas corporais com o temperamento - a lei da dilatação-retração -, Louis Corman, dizíamos, conseguiu, em 1937,
dar ao conhecimento das relações entre aquelas formas e o caráter a
base científica que lhe faltava até então. E para bem caracterizar essa
nova ciência, deu-lhe o nome de morphopsychologie.
Foi esse homem profundamente envolvido em questões de psicologia e de psiquiatria quem no seu livro intitulado Nietzsche, Psicólogo da
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Profundidade - publicado em 1982 - afirmou categoricamente que, ao
contrário do que dizem seus detratores, não foi a loucura que condicio
nou a obra e o método de pesquisa de Nietzsche, que, inversamente, foi sua pesquisa, levada além dos limites que podia suportar um homem, a
responsável pelo desfecho trágico de uma crise que pareceu ao mundo
inteiro ser uma crise de loucura.
Essa conclusão a que chegou Louis Corman não foi derivada de um
qualquer trabalho de elaboração intelectual ou filosófica, de uma qual
quer intuição que tivesse penetrado mais intimamente que os cientistas
nas regiões profundas do pensamento nietzschiano. Corman utiliza os
dados empíricos que sua profissão médica e sua atividade científica lhe
proporcionam a cada passo. Em primeiro lugar, contesta o diagnóstico
de paralisia progressiva que havia sido feito por Möbius e vários outros
médicos e biógrafos; autoriza-o a isso sua experiência da moléstia a que
consagrou vários anos de estudo dos quais resultou uma tese sobre a
constituição física dos paralíticos gerais. .Segundo Corman, a doença
tem esse nome porque, ligada a graves lesões do cérebro de origem
sifilítica, ela determina uma paralisia de todas as funções cerebrais,
evoluindo de maneira progressiva, em alguns anos, para um estado
terminal de decadência geral. Verifica-se, em especial, que a lesão do
cérebro se manifesta por um estado de demência que altera gravemente
a memória, o julgamento, a atividade ideativa, da mesma forma que o
controle de si próprio. Disso resulta principalmente que a imaginação
do doente perde seus freios e se afunda num delírio, especialmente no
delírio de grandeza.
Os primeiros médicos que trataram de Nietzsche, diz-nos Corman,
ficaram impressionados pela sua megalomania delirante e, como naque
la época esse era considerado o sintoma mais característico da paralisia
geral, não hesitaram, baseados nesse único sintoma, proferir seu diag
nóstico. Ora, diz-nos Corman, isso só seria válido se o delírio de Nietzs
che carregasse consigo a marca da loucura, isto é, se ele fosse incoerente
e absurdo em virtude de um déficit grave da memória e do julgamento.
Corman nos afirmou que tal não é o caso no que diz respeito a Nietzsche.
Todos (ou quase todos - exceção Paul Möbius e E. F. Podach) os
comentadores têm enfatizado o fato de que o último livro do filósofo -
Ecce Honro - escrito imediatamente antes da crise de Turim, embora
tenha as marcas de uma afirmação megalomaníaca de si mesmo, não
deixa de traduzir um pensamento vigoroso e escrito num estilo cuja
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perfeição não permite supor o menor enfraquecimento das faculdades
mentais.
Além disso, continua Corman, Nietzsche não apresentava nenhum
dos outros sinais habituais da paralisia geral. Ele não tinha dificuldade
de andar, e sua palavra estava intacta, ao passo que um dos principais
sintomas da doença é a dificuldade de articular as palavras - a dysathrria.
Segundo Corman, quando o micróbio da sífilis chega a criar no cérebro
lesões graves, isso redunda automaticamente numa falta de sensibilida
de no sistema de defesa do organismo, que se deixa então invadir sem
resistência pelo agente patológico. Essa falta de sensibilidade é agrava
da pela demência, e por isso para o médico é um sintoma importante da
paralisia geral a falta de sensibilidade dos centros nervosos, por exem
plo, o fato de o doente não reagir à ação de uma pressão. Além disso, a
hipossensibilidade se acompanha sempre de uma grande euforia antes
e durante a evolução mórbida. Nietzsche, entretanto, apresentava inva
riavelmente durante os exames médicos uma hiperestesia geral e foi
durante toda a sua vida um disfórico, um hipocondríaco, vítima de um
mal-estar contínuo. Seria, pois, surpreendente que a lesão sifilítica - se
existisse realmente - nunca tivesse sido sentida por ele e tivesse podido,
sem desfechar um só golpe, atingir o cérebro.
A conclusão de Corman, que julga a infecção sifilítica atribuída a
Nietzsche mais do que duvidosa, é que Nietzsche não sofria de uma
paralisia geral mas de uma psicose esquizofrênica, doença não demen-
cial mas provocada por uma ruptura existencial com a realidade, com
uma introversão total com refúgio e bloqueio do pensamento no ser
interior, sem que mais nada desse pensamento possa se manifestar
externamente.Compreende-se assim, termina Corman, que se possa considerar a
perda de consciência de Nietzsche o desfecho quase que natural da
tensão nervosa extrema na qual ele vivia e dúma introversão que exaltava
cada vez mais a vida interior profunda em prejuízo de uma adaptação à
vida exterior.
Está claro que a contribuição de Louis Corman para o esclareci
mento da questão relativa à doença de Nietzsche oferece um interesse
apenas relativo. A glória do filósofo despontou muito antes que se
chegasse a uma qualquer conclusão sobre os aspectos mais difíceis desse
complicado problema. Apesar dos argumentos médicos e psiquiátricos
do mundo da ciência, Nietzsche já havia sido consagrado por homens
como Stefan George, Friedrich Gundolf, Ernst Bertram, Charles An-
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dler, Karl Jaspers, Robert Musil, Thomas Mann e muitos outros, de
reputação universal. Se há um autor de quem se possa dizer que domi
nou de modo constante a atmosfera espiritual de nosso século, esse
autor terá sido certamente Friedrich Nietzsche. Pareceria, por conse
guinte, uma coisa de somenos estarmos agora nos rejubilando com o fato
de haver um psiquiatra, um especialista da moléstia da qual se dizia
haver sido ele vítima, surgido agora com um depoimento em que é
contestada a validade do diagnóstico que sua doença havia ocasionado.
Entretanto, a explicação filosófica que procuramos ter para a doen
ça de Nietzsche não interessará senão a filósofos. Para o homem da rua
colocado diante da alternativa de Jaspers - ou Nietzsche é um homem
doente ou tem uma significação universal a tendência mais forte é
obviamente optar pela primeira parte da alternativa. Quando, além
disso, chega a seu conhecimento que um certo número de psiquiatras
não só não tiveram dúvidas sobre a loucura do filósofo mas descobri-
ram-lhe mesmo uma origem sifilítica, o depoimento de um homem de
ciência como Louis Corman adquire o aspecto de um ato reparador e
necessário. Sobretudo o que há de mais importante nesse depoimento,
e que é indispensável ressaltar aqui, é que Corman afirma categoricamente, com toda a sua autoridade de médico e psiquiatra, que, mesmo
depois da crise de Turim, Nietzsche não sofria de uma moléstia demen-
cial.
Mas nosso intuito não é defender Nietzsche de seus detratores. Se
puséssemos de um lado os nomes dos que o consagraram e de outro os
dos que o denegriram, a imensa superioridade intelectual dos primeiros
sobre os segundos seria de tal natureza que já estaria resolvido o
problema de defendê-lo contra quem quer que fosse. A doença final de
Nietzsche tem para nós um interesse próprio, pois parece-nos ser o
resultado insofismável de um ato espiritual perfeitamente compreensí
vel. Assim como Sócrates, ao esvaziar a taça de cicuta que lhe foi
apresentada na prisão, realizou um ato espiritual que não se poderia
desconhecer, já que teria podido facilmente se evadir como haviam
planejado seus amigos - assim também Nietzsche, ousando pensar o que
nenhum ser humano teria estrutura mental para pensar, ousando se
considerar em contradição com milhares de anos sem que nem por um
momento perdesse a consciência da enomüdade que uma tal cofivicção
encerrava, caminhou realmente além de todos os limites que são indis
pensáveis para se preservar a integridade do ser humano. O que é nesse
caso importante ressaltar é que uma tal manifestação vinda de Nietzsche
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não era propriamente um sintoma de megalomania, porque resultava
de uma avaliação não totalmente subjetiva do que havia sido sua obra. Tudo o que Nietzsche havia escrito nos seus livros anteriores só teria
sentido - e as consagrações sucessivas que marcaram o crescimento de
sua reputação confirmavam que o tinha - se se admitisse finalmente que
o pensamento de Nietzsche estava efetivamente em contradição com
milhares de anos. Tratava-se, portanto, de uma verdade diante da qual
era difícil recuar. Que Nietzsche não o tenha feito demonstra não
fraqueza, vaidade megalomaníaca de quem perdeu o sentido da realidade; demonstra, a meu ver, a coragem suprema de ousar pensar uma
verdade que não poderia deixar de ser pensada, embora com a conse- qüência de que esse pensamento, ao se concretizar, se destruísse, provocando uma perda de contato com a realidade que nunca mais se
recuperaria. É óbvio que uma tal perda foi efeito e não causa da
pretendida manifestação megalomaníaca. Antes e durante o momento
em que pensou uma tal verdade, Nietzsche estava seguramente de posse
de uma das consciências mais lúcidas, mais penetrantes, mais sutis que
é possível encontrar no ser humano. Tudo o que ele nos diz, nesse livro
extraordinário que é o Ecce Homo, só um grande psicólogo, um genial
psicólogo seria capaz de produzir. Ecce Homo talvez seja o livro que nos
induz mais facilmente a ver em Nietzsche o maior psicólogo de todos os
tempos. Entretanto, é nele que seus detratores pretendem encontrar
indícios certos de loucura. Que houve, posteriormente à publicação do
livro, em Nietzsche, uma perda de contato com a realidade todos nós
sabemos; mas a perda foi posterior e não anterior à publicação do livro, e é essa diferença de tempo que separa os detratores de Nietzsche
daqueles que, como eu, vêem na tragédia dessa perda o resultado de um ato espiritual dos mais legítimos e, por todos os títulos, admirável.
Sócrates bebeu a cicuta, Nietzsche ousou pensar o que nenhum ser
humano suportaria ter pensado: dois atos espirituais da mais elevada
significação, mas que a posteridade teve e continua a ter alguma dificuldade em apreciar no seu justo valor. Vê-se em geral em Sócrates um
herói da inteligência e do caráter que aceitou com serenidade a sentença
de morte que lhe havia sido imposta. Mas Sócrates não era apenas um
herói da inteligência e do caráter; era sobretudo um gênio que tinha uma
obra a realizar e que foi colhido de surpresa por uma condenação à
morte, antes de ter podido realizá-la inteiramente. Sua atitude diante
de uma tal condenação era tudo o que lhe restava como meios para dar
a sua obra o desfecho que a completasse. Decidisse ele aceder ao desejo
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dos amigos e se evadir da prisão e estaria assim preservando a possibi
lidade de continuar sua obra longe de Atenas, com todos os riscos que
a nova situação comportava. Resolvesse ele cumprir a sentença que lhe
era imposta e sua obra chegaria a seu termo naquela prisão, no momento
em que bebesse a cicuta. Por que alternativa se inclinava ele naqueles
momentos cruciais que precederam sua morte? Certamente era grande
a tentação de continuar sua obra longe de Atenas, com os recursos que
lhe seria possível angariar. Mas a idéia de sua fuga não o seduzia-via-se
fugindo, disfarçado com uma pele de cabra, como era costume de seus
contemporâneos que fugiam para o exílio, e sentia o ridículo da situação;
imaginava-se num outro lugar que Atenas, apontado como um criminoso que desrespeitara as leis de sua cidade; sentia claramente, e o dizia
para que a posteridade o soubesse, que sua fuga permitiria talvez que
se prolongasse por mais algum tempo sua existência física, mas causaria
certamente um dano irreparável à sua existência espiritual. Decidido a
morrer, restou-lhe o consolo de que, com a sua morte, dava à sua obra
um acabamento glorioso, embora persistisse, para transformar em tra
gédia o seu dilema, o temor de que, sem ele, seus discípulos o renegas
sem e sua obra, estigmatizada por uma condenação à morte que todo
mundo aprovava, fosse finalmente esquecida.
Tal é a razão pela qual o ato de Sócrates de esvaziar a taça de cicuta
que lhe havia sido apresentada deve ser considerado um ato espiritual
da maior significação, um ato no mínimo da mesma importância do que
todos os outros de sua existência tão rica deles e tão pródiga. Foi um ato
que certamente contribuiu em máxima parte para a imensa repercussão
que teve sua obra. Com Nietzsche, naturalmente, temos ainda necessi
dade de um maior recuo para avaliar a repercussão que poderá ter sua
obra, uma vez que fique bem conscientizado entre os seus inúmeros
admiradores o fato de que Nietzsche não foi vítima da sua chamada
loucura, mas o principal agente que a provocou. Foi ele quem, de posse
da mais lúcida, da mais penetrante das consciências de que pode ser
dotado o ser humano, determinou e produziu os atos que deveriam
levá-lo à inconsciência, ao estado de alheamento do mundo em que ficou
até morrer, não por um desejo suspeito de se perder nele, mas por um
respeito intransigente pela verdade que lhe cabia investigar. Nietzsche
sabia perfeitamente e o disse com todas as letras que “era da espécie
dessas máquinas que podem explodir”. Sabia que, nas suas indagações
sobre o que seria a verdade, estava sendo levado para caminhos infini
tamente perigosos e que conduziam à perdição. Mas prosseguia na sua
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caminhada. Não teve o instinto de se poupar, de agir com mais prudên
cia, de guardar uma distância da esfinge devoradora que insistia em
questionar. Seu corpo, sua alma, seu ser inteiro eram usados como um
campo de experiências que até então nunca tinham sido feitas. Tratava- se de realizar a experiência de um cristão sadio, de uma alma que não
fosse o produto da doença, de um homem que fosse homem e se sentisse
ao mesmo tempo inocente, não mais culpado. Era uma experiência em
que as contradições se exacerbavam a um tal ponto, se transformavam
num conteúdo de tal modo explosivo que não havia frasco que pudesse
encerrá-lo. Era preciso imitar os gregos que se mostravam “superficiais
porque eram profundos”. Imitar o sacerdote que fizera do homem um
“animal interessante” e detestar o sentimento de culpa que criara entre
os homens o ódio e o ressentimento. Era necessário se amar a causa e
detestar o efeito a que ele estava fatalmente ligado por um laço indes
trutível. O que representava uma necessidade absolutamente vital e mais
do que isso espiritual revelava-se uma total impossibilidade do ponto de
vista racional. Nietzsche estava longe de ser um irracionalista como
pretendem tantos comentaristas superficiais. Não existe na sua obra
nenhuma afirmação que nos sugira ter ele o gesto fácil para repudiar os
imperativos da razão. O que há de fascinante em sua obra é justamente
que, mesmo nos momentos mais críticos em que nos mostra os desca
minhos a que nos pode levar a faculdade racional, seu pensamento é de
uma clareza, de uma transparência e de uma tal persuasão que não
hesitamos em atribuir-lhe as características da mais intacta racionalida
de. Nietzsche nunca fala do instinto ou da razão como se fossem
entidades autônomas que se afrontassem numa luta sem tréguas, inde
pendentemente da situação particular em que cada uma dessas facul
dades pudessse se encontrar - o que é o hábito inveterado de um grande
número de filósofos. Para ele não existe o “instinto em si” como também
não existe a “razão em si”. No cômputo geral de sua obra, a impressão
que fica é de uma consciência luminosa, penetrante, sutil, capaz de dar
forma e realidade aos movimentos mais obscuros, mais caóticos das
profundas regiões da alma, próximas dos estados corporais. Se isso é ser
irracional, Nietzsche certamente o era. Mas o irracionalismo sempre foi
definido como a atitude que nega à razão o poder de penetrar nas
regiões profundas do ser humano - e o racionalismo que resta, quando
Nietzsche é descartado, fica sendo então o racionalismo da superficia
lidade, da obviedade, das regras simplificadoras, o racionalismo que, na
verdade, não está longe de ser uma cegueira espiritual.
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Nietzsche, como acabamos de dizer, não desdenha os imperativos
da razão. E é por isso que o dilema que o desafiou devia vitimá-lo. Mas,
nesse episódio absolutamente decisivo de sua carreira espiritual, a
lucidez, a razão totalmente transparente que o habitava não protagoni
zou sozinha esse último ato da tragédia - a coragem do filósofo a
acompanhava, o destemor tão bem expresso e representado pelas pala
vras magníficas que brotaram do coração intrépido de um marechal
francês, pouco antes de se lançar na refrega de uma batalha decisiva:
“Treme, carcaça, mas tremerias mais ainda se soubesses aonde vou te
levar”.
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Faguet, Émile, 36
Farias, V ictor, 40
Fedorov, Nicolai, 29
Feuerbach, Ludwig, 168Fidias, 117
Fink, Eugen, 43
Förster, Elisabeth, 30, 31, 36-38, 43, 65,
141,159,178, 205, 230
Fouillée, Alfred, 32, 35
Fraenkel, Eduard, 125
Freud, Sigmund, 35, 205Friedlander, Paul, 226
Gaultier, Jules, 36
George, Stefan, 32-35,37,38,182, 241
Gersdorff, Carl von, 159, 220
Gide, André , 45
Goebbels, 40
Gilson, Étienne, 203
Goethe, Wolfgang, 34, 49, 63, 64,68,128,152
Gogh, Van, 215
Gógol, Nikolai, 92
Gorki, Máximo, 29Gren ier, Jean, 43
Groethuysen, Bernard, 36
Guérin, Michel, 43
Guilherme, imperador, 37Gundolf, Ernst, 32,34
Gundolf, Friedrich, 34,241
Halévy, Daniel, 27 n. 1-2, 36
Hartmann, Nicolai, 195
Meckel, Karl, 36
Hegel, Friedrich, 103-107, 112-177
Heidegger, Martin, 19, 20, 38, 40-43, 52,67, 69, 135, 220,224-226
Heller, Erich, 39
Heráclito, 180
Herm es, 183,184
Hildebran dt, Kurt, 32, 34
Hipocrates, 73,74
Hitler, Adolf, 38,40,42, 43, 65, 66Hofmiller, 141
Hölderlin, Friedrich, 215
Hollinrake, R. J., 44,137,141 ,176
Hom ero, 70,117
Husserl, Edmund, 194
Jacobsen , 39
Jaeger, Werner, 189
Janz, Curt Paul, 43,217
Jaspers, Karl, 36,37,52,182,183,197-200,
202, 217, 218, 220, 223, 224, 227, 231-233, 236, 242
Kaftan, 218
Kant, Immanuel, 81,191,193-195,203Kantorowicz, 32
Kaufmann, Sarah , 43
Kaufmann, Walter, 33,37,44,52,152-155,
182,186
Kierkegaard, Sören, 27-29,47,49, 97-107,109,113,130,162,177,186
Klages, Ludwig, 32, 36
Kleist, Heinrich von, 215
Klossowsky, 43
Köselitz, Heinrich, 141
Lasserre, Pierre, 36
Lessing, 121
Liechtenberger, 35
Lukács, Gyögy, 38
Lunacharski, Anatoli, 29
Lutero, M artinho, 33,77,166
Mann, Thom as, 36,242
Maomet, 159, 236
Maritain, Jacques,203
Marx, Karl, 43, 107,128
Merejkövski, Dim itri S., 29
Meysenburg, Malvida von, 25,134
Möbius, Paul J., 35, 216, 217, 221 n. 1,229-231, 240
Moises, 109
Morel, Georges, 43
Muckle, Friedrich, 36
Mueller, August, 36
Musil, Robert, 45,242
Mussolini, Benito, 37,38,65
24S MARIO VIEIRA DE MELLO
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http://slidepdf.com/reader/full/mario-vieira-de-mello-nietzsche-o-socrates-de-nossos-tempospdf 249/249
Napo leäo , 152, 223
Nietzsche, Karl Ludwig, 229
Nordau, Max, 29
Obenauer, Karl Justus, 36
Oehler, Richard, 35
Olsen Regina 98-100
Schopenhauer, Arthur, 25, 35, 55, 62, 65,
66,118,126,127,130,131,135,159-161,
168, 201, 202, 206, 224, 236, 237
Sêneca, 161
Shakespeare, William, 34,49 ,152,221
Shestov, 29
Sibbern, F. G , 102