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NIETZSCHE:

0 Só c r a t e s  d e  N o s s o s   Te m p o s

Mario Vieira de Mello

 N.Cham. 1(430) M527n 

Autor: Mello, Mario Vieira de.

Título: Nietzsche : o Socrates de nosso

Ex. 1 UFSC BC SIRIUS

|edusP

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ISBN 8 5- 3 14 - 0 07 6- 7

 Nietzsche: 0 Sócrates de Nossos Tempos  é 

um liví o provocador desde o título. Acom

panhando a biografia e percorrendo as 

obras de Nietzsche, Mario Vieira de Mello 

nos mostra como este filósofo dionisíaco 

tem, para o século XX, um valor análogo 

ao que Sócrates - alvo de ruidosas críticas 

de 0 Nascimento da Tragédia - tinha para a 

Antiguidade grega. Através da repercussão 

de seus livros e das inúmeras inte.rpreta- 

ções feitas por pensadores como Karljas- 

pers, Heidegger ou Bergson, o autor nos 

conduz pelas múltiplas perspectivas filosó

ficas apontadas pelo autor do Zaratustra.

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N ie t z s c h e : 

0 Só c r a t e s  d e  N o s s o s   Te m p o s

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ESP Reitor 

Vice-reitor 

| edusP

Presidente  Diretor Editorial  Editor-assistente

Comissão Editorial

Roberto Ixal Lobo e Silva FilhoRuy Lauienti

EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÀO PAULO

João Alexandre BarbosaPlinio Martins FilhoManuel da Costa Pinto

Joào Alexandre Barbosa (Presidente)Celso LaferJosé E. MindlinOswaldo Paulo ForattiniDjalina Mirabelli Redondo

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   U   F   S   C  -   B   U

   0 .   2   7   4 .   0   0   2  -   9

NIETZSCHE:

0 Só c r a t e s  d e  N o s s o s   Te m p o s

Mario Vieira de Mello

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r

Copyright © 1993 by Mario Vieira de Mello

Foi feito o depósito legal

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Mello, Mario Vieira de.

 Nietzsche : O Sócra tes de Nossos Tempos / Mario Vieira de

Mello. - São Paulo : Editora da Universidade de São Paulo, 1993. -

(Campi ; 12)

Inclui índice onom ástico.

ISBN: 85-314-0076-7

1. Filosofia alemã 2. Nietz sche , Fried rich Wilhelm, 1844-1900

3. Niilismo (Filosofia) I. Título. II. Série.

92-1838

índices para catálogo sistemático:

1. Alem anh a : Filoso fia 193

2. Filosofia alemã 193

3. Filósofos alemães : Biografia e ob ra 193

CDD-193

fl <JCO  /7- ãA j

Tipo de Aqu Uiç f lo  

 A d q u i r id o d e /F a f / / - U f S /   

Data Aqu is ição $ / ? } / 3 ^  

Preço_ _ _____________________

BU/DPT

0 . 2 7 4 . 0 0 2 - 9

 c t n v . Ç > Ç »t r- c? ^ <? #

Direitos reservados à

Edusp - Editora da Universidade de São Paulo

Av. Prof. Luciano Gualberto, Travessa J, 374

6®andar - Ed. da Antiga Reitoria - Cidade Universitária

05508-900 - São Paulo - SP - Brasil Fax (011) 211-6988

Tel. (011) 813-8837 / 813-3222 r.4156,4160

iO -ßo)

'H

Printed in Brazil 1993

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 A mem ória de Octávio de Faria, 

amigo de juventude, 

dedico com gratidão este livro.

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Sócrates, Sócrates, Sócrates! Sim, queremos invocar teu 

nome três vezes, não seria demais invocá-lo dez vezes, se 

de u m tal apelo fosse possível recolher algum proveito. E  

geral a crença de que o m undo precisa de uma república, 

de uma nova ordem social e de uma nova religião, mas 

ninguém pensa que é de um Sócrates que mais precisa o 

mundo agora, perplexo como está no meio de tantas 

noções contraditórias.

K i e r k e g a a r d  

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SUMÁRIO

Apresentação ......................................................................................... 13Prefácio...................................................................................................... 19

1. Reações, Comentários e C r ít ic a s ....................................................  212. A Influência da Obra sobre a V id a ..............................................   473. A Unidade das Virtudes e a Coragem E sp ir itua l......................  734. A Comunicação Indireta, as Interpretações e as Máscaras . . . 97

5. A Crítica da D ecadência .....................................................................1436. O N iilis m o............................................................................................. 1657. A Medicina e a É t ic a ...........................................................................1898. O Destino Trágico - As Altern ativas...............................................2099. Nietzsche e Sua D o e n ç a .................................................   229

índice Onomástico....................................................................................247

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O leitor deste belo livro, escrito com severa paixão filosófica, se 

sente espicaçado desde o título, pois todos sabem que Nietzsche atacou 

Sócrates com veemência: mas Mario Vieira de Mello constrói o seu 

argumento sobre a idéia de uma antologia essencial da função de ambos. 

A este aparente paradoxo seguem outros, como a sugestiva afirmação 

que em Nietzsche a obra condiciona a vida, ou a convicção de que os 

seus escritos finais não sofreram o peso da loucura nascente, pois são 

conseqüência lógica da sua posição mental; de tal modo que a mensa

gem suprema do Ecce Homo equivale à Apologia de Sócrates.

Mario Vieira de Mello está interessado no problema da construção 

do homem como ser livre, e sob este aspecto Nietzsche lhe parece um 

educador incomparável, como Sócrates, ambos intemeratos, destinados 

ao sacrifício, sujeitos à opinião deformadora. Longe de simplificar, ele  

desdobra ante o leitor a opulenta complexidade do filósofo alemão, num 

relato onde vida e obra se fundem. Para isso, estabelece entre outras 

coisas nexos comparativos com outros pensadores, outros contextos 

culturais e diversos intérpretes, além de mostrar as oscilações criadoras 

do seu pensamento. E por todo o livro sentimos os traços fundamentais 

do pensador austero que é Mario Vieira de Mello: a sinceridade que faz

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da escrita um movimento colado ao raciocínio e a coragem mental, que 

o torna adequado para falar de Nietzsche, com o qual possui em comum 

a sobranceria das idéias, a maneira pessoal de expô-las e a soberana 

indiferença pelas modas do momento.

A n t o n i o  C â n d i d o

12 MARIO VIEIRA DE MELLO

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APRESENTAÇAO

Pediu-me Mario Vieira de Mello que escrevesse, para apresentar 

este livro, um texto evocativo do cenário em que se movimentava a 

mocidade universitária no início dos anos trinta, mais precisamente em 

1930, e a influência que exerceria sobre a formação cultural de todo um 

grupo de jovens que então ingressava na Faculdade de Direito do 

Catete, a singular agremiação que ali atuou por mais de uma década: o 

CAJU (Centro Acadêmico Jurídico Universitário).

Quando estava a alinhavar este texto, alguém me perguntou, vendo 

o título da obra: “Você também é especialista em Nietzsche?” Ao que 

respondi: “Não, sou especialista em Mario...”

Na verdade, há mais de cinco décadas lido de perto com Mario 

Vieira de Mello, hoje a mais antiga de minhas amizades, contemporâ

neos que fomos ainda nos anos vinte no Colégio Santo Inácio. Voltaría

mos a nos encontrar, desta vez defmitivamente e em estreito contato, 

em 1930, sob o signo do CAJU, onde pontificava um grupo seleto de quartanistas e bacharelandos da faculdade, futuras personalidades des

tacadas da vida literária, política e acadêmica do Rio de Janeiro, como 

Américo Lacombe, Antônio Gallotti, Gilson Amado, Thiers Martins 

Moreira, Plínio Doyle, Chermont de Miranda, Hélio Viana, Clóvis P. da

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Rocha, e entre os quais surgiam duas incontestáveis lideranças: Octávio 

de Faria e San Tiago Dantas.Essa agremiação, estranhamente até hoje - quiçá felizmente -, não

 

tendo sido objeto de dissertação de mestrado, em plena atividade durante, creio, pelo menos uma década, era uma verdadeira academia 

de jovens, de total seriedade, cuja membership era conquistada mediante apresentação e aprovação, por comissão especialmente designada, de

 

uma tese original sobre temas relativos às áreas de interesse do centro: 

ciências jurídicas em geral, história, literatura, filosofia, ciências sociais.

A estimulante atuação desse grupo de jovens estudiosos e sua 

influência sobre as novas gerações que chegavam à faculdade revelam 

hoje, para nós, o espírito humanista que há meio século ainda impregnava nosso processo educacional, até ali não afetado pelos efeitos da 

massificação que fatalmente se lhe imporia na era desenvolvimentista. Voltadas para metas essencialmente funcionais, a educação superior e 

a pós-graduação dirigiam seus alvos de excelência para as áreas científicas e tecnológicas, e, progressivamente, a corrida para tais carreiras

 

como que ofuscou e esvaziou as áreas dos estudos clássicos, retirando  

de nossa formação universitária todo o componente humanístico que a 

deve permear, como a própria expressão e essência da cultura.Nesse meu reencontro com Mario, eu já no quinto ano de medicina 

e ele ingressando em direito, diluía-se a diferença de dois ou três anos 

de idade que no colégio nos distanciava.

Eu então já convivia com o grupo do CAJU, trazido por Octávio,  ao qual me ligava a recente aventura do Chaplin Club, bela aventura de

 

quatro rapazolas de dezesseis a dezenove anos, empenhados em impor 

o cinema como arte autônoma, com identidade própria, a sétima arte, à 

intelligentsia brasileira.Por interesses comuns, passariam também a conviver com o grupo

 

do CAJU meus colegas de medicina Vieira Pinto e Tito Leme Lopes,  inesquecíveis amigos, e Carlos Chagas Filho. Na geração que entrara

 

para a Faculdade do Catete em 1930 também estavam, além de Mario, 

caros amigos que já nos deixaram: Vinícius de Morais, que no ano  

seguinte publicaria O Caminho para a Distância, seu primeiro livro de 

poesia, José Artur Frota Moreira, que mais tarde faria marcante carreira política, Augusto de Rezende Rocha, Álvaro Penafiel, futuro autor

 

de Grupo e Espírito. Lembro-me bem das defesas de tese de Augusto 

sobre Wilde e de Mario sobre Nietzsche e, anos antes, a de Octávio, A 

 Desordem do Mundo Moderno.

1 / MARIO VIEIRA DE MELLO

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Poderíamos dizer, numa oportuna retrospectiva, que as atividades 

do CAJU refletiam os interesses, a visão do mundo e do Brasil e os  

projetos de vida da mocidade de cinquenta anos atrás; muitos voltados, 

como também os de hoje, para a música, os esportes, a vida social, mas 

sempre polarizados em torno de valores culturais que o traço humanís- 

tico, ainda patente em sua formação educacional, os estimulava a incor

porar.

Mario, ao ingressar na faculdade, já se iniciara em Nietzsche e teve 

em Octávio, cultor fervoroso do filósofo, um precioso orientador. Mas, 

pouco conhecido ainda entre os colegas, causou um certo impacto ao  

candidatar-se ao CAJU. Aquele atletão, queimado de sol, o “Mario- 

asa” de Copacabana, apresentar-se com uma tese sobre Nietzsche, 

trabalho de maturidade incomum entre os iniciantes!

Cabe aqui uma referência espeGial a Octávio de Faria, a cuja 

memória Mario dedica este livro. Octávio, um pouco mais velho que 

todos nós, pertencia a uma família de escritores: o pai, Alberto de Faria, 

e seus cunhados, Afrânio Peixoto e Alceu Amoroso Lima.

Fora criado num ambiente literário e de alto nível social. Contava- 

nos as recepções na casa de veraneio da família em Petrópolis, onde, ainda rapazinho, ouvia Claudel recitar... Tinha assinatura da  NRF e se 

correspondia com livrarias e editoras francesas. E todas as suas luzes 

nos transmitia generosamente. Quanto lhe devemos em nossa formação 

literária! Já tínhamos, antes de conhecê-lo (naquele tempo saía-se do 

colégio lendo corretamente o francês), nossas leituras avulsas e desor

denadas de autores estrangeiros: Balzac, Hugo, Zola, Stendhal Dickens, 

algum Anatole, os russos, e ansiávamos por novas leituras, novas vozes. 

E isso Octávio nos daria à perfeição. Por ele ordenamos leituras e 

chegamos a Proust, Gide, Thomas Mann, Radiguet, Malègue, Alain- 

Fournier, Mauriac; às novelistas inglesas, M. Kennedy, Virginia Woolf, 

Rosamond Lehmann, as Brontë; aprofundamo-nos na obra dos russos 

- novos horizontes. Pode-se dizer que, para o nosso grupo, para a 

geração de Vinícius e Mario, Octávio desempenhou o mesmo papel de 

 maître,  de preceptor literário, que Roberto Alvim Corrêa exerceria 

depois, na Faculdade de Filosofia e fora dela, para a mocidade dos 

quarenta. Já tenho dito que “nada sei” mas “que o pouco que saiba o 

devo a Octávio”, e assim reforço com emoção o preito rendido por 

Mario a quem tanto nos deu.

Voltando ao autor deste livro, diria que, na época a que vimos nos  

referindo, embora sociável e até com um certo  penchant  por festas e

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reuniões e certamente capaz de sólidas amizades, além de participativo 

em relação ao seu grupo, Mario, um introspectivo, amiúde assumia uma 

postura de isolamento. Em nossas longas caminhadas noite adentro, 

deixava-se ficar para trás como que absorto... Literalizados, gracejáva

mos: “Ses ailes de géant 1’empêchent de marcher”... Conversas com “o 

interlocutor invisível”, diria eu hoje, após ler este livro...

Custou-lhe fixar-se na vida prática: sem qualquer vocação para a 

advocacia, teve ocupações vagas que não lhe interessavam. Para “ganhar 

tempo”, chegou mesmo - o que era moda na ocasião - a inscrever-se na 

Reserva Naval Aérea, onde seu aprendizado foi interrompido quando 

conseguiu avariar um avião... e finalmente decidiu-se pela carreira 

diplomática, compatível desde logo com o seu projeto cultural, com o 

recurso às fontes estrangeiras, numa época em que a carreira universi

tária, o estuário natural dum estudioso de sua marca, era objetivo a longo 

prazo e de limitadas perspectivas.

No exercício de suas funções diplomáticas, em longas estadas no 

estrangeiro, Mario aprofundou continuamente seu saber.

Estudioso e pesquisador solitário, hoje uma das mais completas 

formações clássicas de nosso país, com sua vertente filosófica embasada 

num sólido conhecimento, não só de filosofia clássica e contemporânea,  

como de história antiga, de filologia e de história das religiões, Mario 

pouco publicou em relação ao que tem a dar ao leitor brasileiro.

Só recentemente, encerrada a carreira diplomática, tem participa

do mais extensamente do debate universitário e apresentado contribui

ção valiosa em reuniões de alto nível, notadamente na Universidade de 

Brasília (UNB) e no Instituto de Estudos Políticos Econômicos e Sociais 

- Rio de Janeiro (IEPES). Publicou três livros, todos do melhor padrão, 

embora tenha obras de ficção que até agora preferiu deixar inéditas. 

Com Desenvolvimento e Cultura, o Problema do Estetismo no Brasil, de 

1963, já entra fundo na análise dos temas do seu interesse maior em  

relação à evolução cultural e política de nosso país; O Conceito de uma 

 Educação da Cultura,  publicado em 1986, é talvez o ensaio brasileiro 

mais profundo e bem-estruturado sobre o conceito da educação através 

da história, suas relações com a evolução cultural do Brasil e as pers

pectivas com que nos defrontamos. Finalmente, de certo modo anteci

pada em esmerada súmula, numa coletânea,  Nietzsche,  de três 

conferências sobre o criador de Zaratustra, chega ao público brasileiro 

a obra-mestra de Mario Vieira de Mello sobre Nietzsche, objeto de

16 MARIO VIEIRA DE MELLO

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algumas décadas do seu culto e reflexão de pensador:  Nietzsche, o 

Sócrates de Nossos Tempos.

Neste livro de uma vida, Mario apresenta a sua visão da obra e da 

vida de Nietzsche num exaustivo estudo em que, a partir da Origem da 

Tragédia, analisa toda a trajetória do pensamento do filósofo, desde o 

seu repúdio a Sócrates, que ali considera como pensador decadente, até 

as proposições dos seus últimos livros, num longo processo de realinha- 

mento ao contraponto socrático.

O autor, neste trabalho, além de analisar em profundidade, com sua 

visão pessoal, toda a obra de Nietzsche, procede a um rigoroso estudo 

cronológico de tudo o que de importante se publicou sobre o filósofo  durante a sua vida, bem como depois de sua morte. Trata-se de um 

referencial bibliográfico certamente dos mais completos, objeto da 

pcrcuciente análise crítica de um dos nossos mais legítimos pensadores.

Reconstitui, assim, Mario Vieira de Mello todo o histórico da 

repercussão de cada obra de Nietzsche e da evolução dos juízos con

temporâneos e posteriores à sua aparição, desde o silêncio formado 

após a Origem da Tragédia até o reconhecimento, hoje inconteste, do 

gênio do mais ousado pensador de nossos tempos.

Permeia todo o livro a convicção do autor de que, a cada passo mais  

ousada e corajosa, foi a obra de Nietzsche que passou a condicionar sua 

vida, levando-o finalmente à aceitação da loucura como única solução 

para o confronto com uma verdade insuportável.

O discurso indomável de Nietzsche tem neste ensaio uma leitura a 

um tempo vigorosa e apaixonada, aparente contradição que a qualidade 

do texto torna irrelevante. Mario, trabalhador solitário e obstinado, mas 

que talvez por falta de um mais amplo debate sobre os seus livros, através 

dos anos, não tenha podido se beneficiar da fruição de possíveis dúvidas, 

terá talvez agora a chance de considerá-las, ao enfrentar as prováveis 

contestações dos seus pares.

Este livro que, dada a autoridade de seu autor, não raro é apologé

tico e laudatório, certamente dará margem a críticas e polêmicas. A 

estas, Mario já está habituado e sempre se mostra capaz de enfrentá-las 

à altura de seus contestadores.Resta, entretanto, e isso me ocorre ao ler os trechos sobre o 

“interlocutor invisível” nas caminhadas de Nietzsche, a interferência do 

diálogo-solilóquio, que sempre me intrigou, do ignorado leitor com o 

desconhecido e distante escritor... Mas, atenção, desavisado leitor: tão

 NIETZSCHE: O SÓCRA TES DE NOSSOS TEMTOS 17

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competente como no debate aberto, nesse confronto fantasma, nesse 

metadiálogo, Mario também é um adversário implacável...

 Almir de Castro

18 MARIO VIEIRA DE MELLO

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PREFÁCIO

Em entrevista concedida ao semanário DerSpiegel, em 1967, Martin 

Heidegger exprime uma opinião que é uma boa amostra de sua arrogância. Disse ele: Os franceses, quando começam a pensar, falam ale

 mão.

Essa opinião naturalmente tem sua origem nas convicções nazistas 

do filósofo, que só agora vão sendo investigadas. Não era entretanto 

completaménte gratuita; baseava-se numa experiência realmente ocorrida. Os franceses, embora vítimas do nazismo, haviam se empenhado,  depois da guerra, em estudar devotamente o idioma alemão - haviam 

sido seduzidos por Heidegger e esforçavam-se portanto no aprendizado 

daquele idioma, embora isso não tenha parecido ajudá-los na compreensão de onde o filósofo estava querendo chegar. Os ensaios filosóficos na França, produzidos na época, estão repletos de expressões 

alemães que parecem inúteis, pois o autor já havia encontrado no idioma 

francês sua equivalência perfeita. Muitas vezes a equivalência saltava 

aos olhos das pessoas menos versadas no alemão. Mas o autor julgava-se 

obrigado a registrar as duas expressões como se de repente tivesse 

perdido a confiança no poder de expressão de seu próprio idioma.

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Houve certamente e continua a haver uma espécie de terrorismo 

cultural da língua alemã na área da disciplina filosófica. E naturalmente 

cabe a Heidegger uma boa parte da responsabilidade por esse fato. No  

Brasil, entretanto, houve e continua a haver a esse respeito não apenas 

terrorismo, como também superstição e pedantismo. Por ignorância ou 

afetação sempre se julgou entre nós que alguns filósofos só seriam 

acessíveis a quem pudesse ler alemão. Julgava-se, não pelas razões de  

Heidegger, vinculadas ao nazismo, mas por pretensão erudita, que a 

filosofia, como a poesia, é intraduzível - deixando assim sem explicação 

o fato de que a filosofia, nascida em solo grego e profundamente 

vinculada ao idioma do povo grego, foi, ao lado do cristianismo, um fator 

essencial na formação da cultura ocidental que durante muitos séculos 

a assimilou unicamente através do latim; deixando também sem expli

cação o fato de que, quando o grego se tornou uma língua conhecida, a 

filosofia nem por isso deixou de ser o que havia sempre sido; e deixando  

finalmente sem explicação o fato de que ela se transformou sob a 

influência da ciência e não desse novo conhecimento lingüístico.

Por que estou fazendo tais observações? - Simplesmente para dizer 

que Nietzsche é um autor eminentemente traduzível. E essa, aliás, uma 

das razões pelas quais sua obra já exerceu e continua exercendo uma 

enorme influência em quase todas as áreas da cultura ocidental. O leitor 

brasileiro, que ainda está fora desse movimento universal de incorpora

ção do mundo nietzschiano, não deveria se deixar intimidar pelo terro

rismo cultural nazista ou pela superstição ou pedantismo nacionais. Se 

não conhece o alemão, leia Nietzsche nas boas traduções - eis o conselho 

prático que me permito dar-lhe aqui. Oxalá possa encontrar neste livro 

boas razões para convencer-se dos benefícios que resultariam de uma 

tal leitura.

20 MARIO VIEIRA DE MELLO

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1. REAÇÕES, COMENTÁRIOS E CRÍTICAS

Tudo o que se refere à vida e à obra de Nietzsche está marcado pelo 

estigma de um violento contraste. Hoje, quando ainda não passaram 

nove décadas desde sua morte, já existe em torno de sua figura uma 

literatura que vai além de três mil volumes. Entretanto Nietzsche,  durante sua fase produtiva, teve até dificuldades em encontrar quem 

quisesse publicá-lo. O silêncio que se formava após o aparecimento da 

maior parte de seus livros era algo de surpreendente e mesmo de 

inexplicável. Como podia um autor armado de um estilo tão obviamente 

excepcional ser a esse ponto ignorado? Como podia o conteúdo de uma 

obra, cuja forma desafiava comparações ou reticências, prejudicar de 

modo tão sensível o brilho e a força de que era revestida a expressão? 

São essas perguntas que fazemos hoje, testemunhas que somos de uma 

glória que não faz senão crescer. Mas os contemporâneos de Nietzsche, 

e em particular alguns de seus amigos, pareciam sofrer com a publicação 

de certos livros seus como se pode sofrer com as manifestações extra

vagantes de um ser que nos é caro.Esse é um fato que convém particularizar, proteger contra compa

rações e generalizações fáceis, para que possa ser examinado em toda 

a sua singularidade. Nietzsche não foi um gênio incompreendido como

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se costuma dizer. Desde logo, com a publicação de sua A Origem da 

Tragédia, ganhava corpo a noção de que surgira, no horizonte da cultura 

alemã, um fenômeno insólito. |

As reações que o livro despertava nos meios acadêmicos eram 

naturalmente negativas. Não se podia endossar as idéias de um autor 

que apresentava Sócrates como um pensador decadente. Mas no círculo 

wagneriano as reações eram entusiastas. Wagner, um leitor interessado, sentia-se transportado - e arrastava naturalmente nessa sua admiração

 

todo o grupo de entusiastas que viviam em torno dele. Se lhes faltava 

competência em matéria filológica, sobrava-lhes certamente percepção 

em matéria artística e musical. Ninguém, dizia Wagner a seus adeptos, 

havia como Nietzsche conseguido traduzir em palavras aquilo que ele 

sentia ao compor seus dramas musicais.

E importante registrar aqui as primeiras reações a esse livro, porque 

com ele se inicia um drama que ia evoluindo com graus sempre mais 

elevados de intensidade e emoção. Os primeiros exemplares saíram da 

impressão no final de 1871. Em janeiro de 1872, Nietzsche enviava um 

exemplar a Wagner acompanhado de uma carta que falava da relação 

estreita existente entre as teorias do livro e a criação wagneriana. Wagner respondia: “Nunca li livro melhor do que o seu. É absolutamen

te esplêndido”. Apesar disso, ao fim de poucas semanas, ficava perfeitamente claro que o mundo acadêmico recebera o livro de modo hostil e que tampouco outros círculos não ligados a Wagner haviam manifestado uma receptividade maior. Nietzsche se sentia especialmente magoado com o silêncio de seu mestre Ritschl; e por esse motivo resolvia 

escrever-lhe uma carta. No seu Diário, Ritschl anotava: “Carta espan

tosa de Nietzsche - megalomania”; mas ao respondê-la a carta adotava um tom conciliador, explicando que dele, um scholar alexandrino, não 

se podia esperar que abandonasse o “conhecimento” pela “arte”. Logo 

se colocava a questão de saber para que público o livro estaria dirigido: 

se para o meio musical ou o meio acadêmico e filosófico. Erwin Rohde,  colega e amigo de Nietzsche, escrevia um artigo em que dava realce ao 

aspecto filosófico do livro - e naturalmente Cosima Wagner, embora 

afirmasse tê-lo apreciado, observava que a ênfase nesse aspecto havia 

sido excessiva. O artigo de Rohde era recusado por uma revista especializada em assuntos clássicos. Mas, quando Rohde manifestou-lhe a 

intenção de publicá-lo numa revista não especializada, Nietzsche respondeu que preferia esperar por nova oportunidade. Até maio de 1872,

 

só uma crítica surgia na revista italiana Rivista Europea. O livro estava

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agora com uma venda razoável, mas o mundo acadêmico e mesmo o 

mundo literário continuavam a manter-se em silêncio. No fim do mês de 

maio, um novo e longo artigo preparado por Rohde aparecia numa 

revista não especializada, com simpatias wagnerianas; o artigo reconhe

cia no livro a abertura de novas e profundas perspectivas no campo da 

estética e uma compreensão original do valor e da eterna primazia da 

( irécia e da arte grega.

Dias depois do aparecimento desse segundo trabalho de Rohde, o 

silêncio da ortodoxia clássica rompia-se. Ulrich von Wilamowitz-Mõel- 

lendorf, um jovem scholar de vinte e quatro anos, num longo artigo de 

vinte c oito páginas, procurava demolir o livro de Nietzsche, enfileirando 

um grande número de razões: o tom do livro, seu estilo e sobretudo a 

l.ilta de scholarship; acusava Nietzsche de desonestidade e ignorância;

i de 1er cometido uma enormidade de erros de princípio e de detalhe.

Nietzsche não pareceu muito atingido por esse ataque. Mas quando 

Wagnci veio em sua defesa, escrevendo um artigo desastrado, em que 

d.iv.1  .1  entender que  A Origem da Tragédia havia sido escrito não para 

uhiiliin  in.is p.ii.i artistas, Nietzsche achou-se prejudicado e teve o 

,i nluiii nlo de que devei ia surgir em sua defesa alguém do mundoii i.l. ........   Rnliile, o amigo leal, prontificou-se a produzir um novo

.uligii qui lui i .i i tin i ui Iiiiii l.ui hostil a Wilamowitz quanto o dele o

li .- i l h  ......... a o I.h,.ni .i Niel/selie. O jovem demolidor, dizia Rohde,

i i ii m il mli a ni h h11  |h i ’,un!,i iso; dado a calúnias, crítico incompetente;

h avi.i tg in a ii •h ...... ni. in lu ii île le et mil e tilosól tco do livro c se limitado

an pmlili um da 11  holarship  Nietzsche havia sido obrigado, pela natu-

ii i du lo in a i fi .envolvei sens aigumentos sem rclerências eruditas -  

ma nimpli Min nii a imaturidade île Wilamowitz que o impedia de li b ut ilii ai a . limles cm que Nietzsche se apoiava.

I a lesposla de Rohde não sensibilizou o mundo acadêmico, 

t filando Wilamowitz escreveu mais um artigo em resposta ao que agora 

|,i ei a um ataque a sua pessoa, ele o fez com o sentimento de que o seu  

objetivo havia sido atingido. Mas as observações de Rohde não haviam 

sido feitas cm vão. Wilamowitz agora não atacava mais a scholarship de 

Nietzsche - denunciava simplesmente o fato de haver seu colega posto 

cm dúvida o valor de uma tradição bimilenar de cultura.A publicação do livro, de imediato, teve para Nietzsche apenas uma 

conseqüência prática: “Há uma coisa que me está perturbando”, escre

via ele a Wagner em novembro de 1872, “o semestre de inverno chegou 

e não tenho discípulos. Nossos classicistas não aparecem!” Veremos

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entretanto que, com o correr do tempo, suas consequências foram se 

mostrando permanentes e profundas. ^

Essas foram então as circunstâncias que cercaram o aparecimento 

 dcA Origem da Tragédia. Com relação à publicação de outros livros de 

Nietzsche, seremos mais sucintos. Cuidamos do aparecimento de seu 

primeiro livro de modo mais extenso porque se trata de uma obra 

fundamental, uma obra que exprime um projeto de vida que atravessará 

a existência do filósofo até o apagar de sua consciência. Convinha, pois, 

indicar de que modo esse projeto havia sido recebido pelas diferentes 

audiências que o jovem autor desejava sensibilizar. Durante os anos 

imediatamente consecutivos, a situação de Nietzsche no mundo acadê

mico como que se estabilizara. Seus cursos passaram a ser moderada

mente freqüentados, mas sua nova orientação de fazer da filosofia o 

interesse principal de suas atividades filológicas retirava-lhe, sem dúvi

da, parte da autoridade científica que lhe caberia se, além dessas 

atividades filosóficas, estivesse também cobrindo os outros setores da 

disciplina filológica que escolhera. Correspondem a esse período suas 

quatro Considerações Inatuais, todas elas escritas ou a pedido de Wag

ner ou tendo em vista sua obra. As reações a esses quatro livros natural

mente eram entusiásticas nos círculos wagnerianos, algumas vezes 

coléricas fora deles. No último deles, entretanto,  Richard Wagner em 

 Bayreuth, uma ligeira alteração se produziu. Embora o livro tivesse sido 

muito bem recebido por Wagner, nada se fazia no sentido de sua maior 

divulgação. E que o teatro de Bayreuth se tinha transformado num 

empreendimento que, para ser levado a bom termo, exigia cautela, 

versatilidade e mesmo diplomacia. Nietzsche, com sua maneira direta, 

franca e por vezes contundente de expressão, representava sempre um 

risco de desagradar a eventuais patrocinadores. A situação era curiosa 

porque o livro, de caráter ambíguo, revelando, para quem sabia lê-lo, a"S

dúvidas já existentes no espírito de Nietzsche a respeito da validade da 

obra wagneriana, havia sido recebido com entusiasmo por Wagner e só 

não tivera uma repercussão maior porque o grande músico não julgara 

prudente divulgá-lo entre o seu público, já afluente, apresentando-lhe 

“verdades” que talvez não estivesse ainda em condições de assimilar.

Quando o próximo livro de Nietzsche,  Humano, demasiadamente  Humano, foi enviado a Wagner, a ambiguidade se dissipou e a ruptura 

entre os dois tornou-se inevitável. Wagner a princípio pretendera não 

ter lido o livro, por amizade a Nietzsche, dizia ele. Mas finalmente não  

resistiu a mostrar que sucumbira à curiosidade e manifestou então de

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mil formas o quanto se sentia atingido. Entre as muitas coisas que o  

feriam estava a crítica a Schopenhauer. Wagner e Cosima, nessa crise 

de amizade, revelavam a natureza algo egoística de seus sentimentos -  

não pouparam o amigo que antes lhes havia sido tão devotado, insinuando entre outras coisas que se tratava de um homem doente. Diziam 

também ter a impressão de que Nietzsche renunciara à sua personali

dade para assumir a de Paul Rée, um amigo recente do filósofo e autor 

de um livro intitulado^ Origem dos Sentimentos Morais,  inspirado nos 

sensualistas franceses; Rohde, aliás, tivera a mesma impressão. E sobre 

Overbeck, co-locatário nos primeiros tempos de Basiléia e amigo de 

Nietzsche o resto da vida, o livro exercera também uma impressão 

negativa. E, como não se podia deixar de esperar, as críticas adversas 

em Bayreuth eram veementes. Embora fossem favoráveis as reações de 

Jakob Burckhardt, antiwagneriano decidido, com quem Nietzsche man

tinha relações cordiais mesmo no período wagneriano, as de Paul Rée 

naturalmente e sob reservas as de Malvida von Meysenburg, em cuja 

casa de Sorrento o filósofo escrevera parte do livro, tornava-se evidente 

que, de uma maneira geral, seu texto não havia sido bem recebido. 

Depois de ter perdido sua reputação no mundo acadêmico, Nietzsche 

perdia agora a estima do círculo wagneriano.

Inicia-se então, na vida do filósofo, um período de isolamento 

crescente. No prefácio da edição de 1886 do Humano, demasiadamente 

 Humano,  isto é, oito anos depois de seu aparecimento, Nietzsche nos 

diz que foi justamente na Alemanha que o livro foi lido com maior 

negligência e menor compreensão, embora tenha encontrado leitores 

em outros países. Ora, em 1886 estamos distantes três anos apenas do 

fatal acontecimento com que devia terminar a vida consciente do filósofo. Os livros que se seguiram, Opiniões e Sentenças Misturadas, O 

Viajante e sua Sombra, A Gaia Ciência e finalmente  Falou Zara- 

 tustra, só faziam aumentar a hostilidade que pouco a pouco ia fechando 

seu círculo em torno do filósofo. Com o  Zaratustra  o círculo parecia 

fechar. Nietzsche, que até então conseguira de um modo ou de outro 

fazer editar seus livros e chegara mesmo a encontrar tradutores, sente 

agora dificuldade em achar alguém que se interesse pela nova produção. 

As primeiras partes do Zaratustra têm sua impressão retardada porque o editor deseja imprimir antes cinco milhões de exemplares de Cânticos 

para a época de Páscoa e também livros relacionados com uma campa

nha anti-semita; e quanto à última parte, Nietzsche era mesmo obrigado 

a imprimi-la por conta própria, com o dinheiro ganho no processo que

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movera contra seu editor. Jakob Burckhardt, que havia tido palavras de 

simpatia com relação ao  Humano, demasiadamente Humano,  tinha 

agora dificuldade em esconder sua decepção. E mesmo Rohde, cOm sua 

fidelidade de sempre, limitava agora seus comentários a generalidades 

pouco expressivas, chegava mesmo a usar fórmulas um tanto ambíguas: “Seu Zaratustra, sob todos os aspectos, deu-me uma impressão bem mais salutar que vários de seus últimos escritos”.

É preciso reconhecer a realidade: logo depois de  Zaratustra  um 

completo vazio se formava em torno de Nietzsche. Foi durante o período 

em que se processou sua elaboração que ocorreu o episódio Lou 

Salomé. Indicaremos em outro capítulo o que consideramos haverem 

sido as conseqüências desse episódio, mas antecipemos aqui nossa 

opinião de que o Zaratustra parece ter sido escrito sob o efeito do trauma 

que pôs fim a tal episódio. Os analistas de um modo geral não estabelecem uma relação qualquer entre a experiência Lou e a produção do 

 Zaratustra,  mas penso que há fortes motivos para avançar que tal perspectiva deve ser reconsiderada. De qualquer modo, se temos de um

 

lado uma experiência frustrada, temos do outrc um livro que é no mínimo 

problemático; um livro, em todo caso, que pode sem exagero ser responsabilizado por muitas das incompreensões que se formaram, em sentido 

positivo e negativo, em torno das idéias, das intenções e mesmo das 

experiências que levaram Nietzsche a escrevê-lo.

Façamos aqui um parêntese para dizer que Nietzsche não era um 

autor que escrevesse em vão. Havia sempre, pelo menos, um leitor 

extremamente atento ao que ele escrevia: ele próprio. Apesar de suas 

contradições e autodilaceramentos, apesar dos sim e dos não pronun

ciados a respeito de uma mesma questão, Nietzsche foi um escritor que 

manteve sempre a mais estrita coerência entre o que dizia e os momentos 

particularizados de sua evolução espiritual Essa coerência obriga o 

pesquisador, na sua análise, a evitar que se dissocie, por um segundo 

que seja, o que exprimiu Nietzsche do momento especial em que surgiu 

a expressão; obriga-o também a procurar compreender, através do que 

foi dito, a qualidade especial de um tal momento. Nietzsche foi um 

escritor cuja ação se fez sempre sentir - fez-se sentir desde seu primeiro 

livro; mas fez-se sentir de modo inusitado, pois era ele, o próprio 

Nietzsche, quem mais se sentia afetado por essa ação. Durante vários 

anos, os livros de Nietzsche agiram principalmente sobre ele mesmo, criando uma situação sui generis que procuraremos exprimir indicando 

como e por que foi sua obra que influenciou sua vida.

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Mas voltemos ao efeito produzido pela publicação do  Zaratustra, 

em edições privadas. Em torno de Nietzsche, a partir de 1883, nada 

havia, apenas o silêncio. Só em 1886 esse silêncio foi amenizado, até um 

certo ponto, pela carta em que Hippolyte Taine, então já famoso na 

França, agradecia-lhe a remessa do livro Para além do Bem e do Mal  e 

tecia comentários elogiosos sobre pontos precisos da obra. Essa carta 

de Taine, que foi talvez o primeiro sinal de sua glória nascente, era, 

pouco depois, seguida de um bilhete curto em que Taine se dizia feliz 

por ter Nietzsche apreciado seus artigos sobre Napoleão. Erwin Rohde, 

o amigo velho e experimentado do filósofo, teve um gesto desastrado 

nesse momento delicado da vida de Nietzsche - enviou-lhe uma carta 

em que exprimia seu pouco apreço por esse autor celebrado que, antes 

de qualquer outro, oferecia sua solidariedade ao escritor solitário. 

Resultou daí o rompimento da relação entre os dois homens, que haviam 

sido verdadeiros amigos, e cuja separação dificilmente se pensaria 

pudesse ocorrer em virtude de tal incidente1.

No estado de excitação em que se encontrava Nietzsche, a tristeza 

causada pelo rompimento com Rohde talvez tenha sido amortecida pela 

satisfação derivada do recebimento de uma carta de (ieorg Brandes, crítico dinamarquês de grande sensibilidade, que já havia se notabiliza

do pela divulgação inteligente que fizera da obra de Sõren Kierkegaard. 

A carta de Brandes respondia à remessa que lhe havia feito Nietzsche 

de A Genealogia da Moral   e revelava grande vivacidade e perspicácia 

por parte de seu autor. Vale a pena citá-la:

Respiro em seus livros um espírito novo, original. Nem sempre compreendo intei-ramente o que leio, nem sempre sei aonde o senho r qu er chegar, mas muito do que diz

se harmoniza com minhas idéias e minhas simpatias: como o senhor, tenho pouca estima

 pelo ideal ascético , a mediocridade democrática me causa igualmente uma repugnância

 profunda; admiro seu radicalismo aristoc rático. O desprezo que professa pela moral da

 piedade é uma coisa que não está perfeitamente clara para mim [...] Sobre o s enhor nada

sei. Vejo com espanto que é professor, doutor. De qu alque r modo receba meus cumpri-

mentos pelo fato de ser intelectualmente tão pouco professor. O senhor pertence ao

 pequeno número de hom ens com quem eu desejaria conversar2.

1. Informação dada por Daniel Halévy em sua biografia de Nietzsche.

2. C'ilação reproduzida da biografia de Daniel Halévy.

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Essa era uma carta que não podia deixar Nietzsche indiferente -  

mas talvez estivesse chegando um pouco tarde. Brandes nunca pôde 

satisfazer seu desejo de conversar com Nietzsche e muito menos realizar 

sua intenção de iniciá-lo na obra de Sòren Kierkegaard. Nietzsche e 

Kierkegaard, esse dois espíritos tão próximos um do outro, apesar da 

diversidade de suas convicções religiosas, traçaram assim linhas paralelas no espaço cinzento do século XIX, sem jamais se encontrarem. Mas

 

é sintomático que os dois, desde o início de suas respectivas carreiras, tenham encontrado em Sócrates o estímulo insubstituível para a reflexão 

filosófica.

Sõren Kierkegaard morreu extremamente jovem, em 1855, com quarenta e dois anos de idade. Nietzsche tinha então apenas onze e,  

durante os trinta e quatro anos de vida consciente que lhe sobraram, não 

teve ocasião de conhecer os livros do pensador dinamarquês. Esses dois 

homens cujas obras revelam uma tão clara afinidade e que exprimiram, fora de dúvida, nos respectivos idiomas, um espírito novo e inconfundível, deixaram de produzir, segundo os padrões de nossos tempos, quando ainda eram extremamente jovens. É naturalmente ocioso especular 

sobre o que teria acontecido se Kierkegaard tivesse podido viver mais algum tempo, mas não é arbitrário imaginar que o contato pessoal ou 

literário de um Nietzsche jovem com um Kierkegaard já maduro seria 

algo que teria tido repercussões profundas no contexto cultural dos  

nossos tempos.

Kierkegaard e Nietzsche pensaram sobre Sócrates o que ninguém 

mais pensou no século XIX. O cristianismo de Dostoiévski não impedia 

Nietzsche de ver no romancista russo um mestre que lhe podia dár lições 

em psicologia. Do mesmo modo, o cristianismo de Kierkegaard provavelmente não o teria impedido de ver no filósofo dinamarquês um

 

mestre em socratismo, já que Nietzsche, impressionado com o otimismo 

teórico de Sócrates, deixara, no começo de sua carreira, passar despercebida sua ironia. O ironista nunca é um otimista - essa lição que

 

Nietzsche aprendeu a duras penas e por conta própria, ele a teria 

assimilado facilmente de um Kierkegaard maduro, ainda nos primeiros 

anos da sua juventude curiosa.

Constitui, sem dúvida, mais do que uma coincidência o fato de que 

os dois pensadores que mais contribuíram para uma valorização do fator 

ético, na Europa do século XIX, fossem justamente aqueles que tiveram 

um relacionamento especial com Sócrates. Foi no século passado e 

através desses dois pensadores que se compreendeu claramente a ne-

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cessidade de conciliar duas imagens de Sócrates que pareciam contra

ditórias - a do precursor dos universais e a do descobridor do indivíduo. 

Não havia dúvida de que a natureza de Sócrates fosse suficientemente  

rica para autenticar as duas imagens. O problema era saber como 

operar, no interior da natureza socrática, a transição, a passagem de 

uma imagem para outra. Nietzsche era suficientemente perspicaz para 

compreender que a descoberta dos universais, o otimismo teórico, a 

decadência, não esgotavam o problema socrático. Kierkegaard, por seu 

lado, sabia que a ironia do indivíduo não era a última palavra da 

sabedoria socrática: a ironia era simplesmente propedêutica. Um e 

outro teriam indubitavelmente se completado se o destino não tivesse 

tido o capricho de aproximá-los na contemporaneidade mas não na 

contiguidade das gerações que surgiam.

Em 1892 Max Nordau, um crítico austríaco, publicava um ensaio, 

intitulado “Degeneração”, sobre a cultura decadente da Europa do 

século XIX, em que Nietzsche era violentamente atacado. O super-ho

mem era nele visto como um animal de rapina, capaz das mais lamentá

veis proezas. Esse ensaio foi traduzido para o russo em 1893 e foi um 

dos mais eficazes instrumentos da disseminação da obra de Nietzsche 

na Rússia, vista sob esse aspecto negativo da interpretação de Nordau. 

Mas Nietzsche encontrou também na Rússia uma grande quantidade dc  

leitores interessados e simpatizantes. Pode-se mesmo dizer que foi 

naquele país que a obra nietzschiana exerceu o seu primeiro grande 

impacto. Merejkóvski, Rozanov, Fedorov, Berdiaev, Shcslov, (iórki, 

Lunacharski, entre vários autores, cujas tendências iam do neo-idealis- 

mo ao marxismo, foram nietzschianos, pelo menos durante uma certa 

fase de sua evolução espiritual. De 1895 a 1915 nenhum país da Europa 

ocidental pôde rivalizar com a Rússia nesse particular. Toda a literatura 

russa desse período esteve impregnada de um espírito que era clara

mente nietzschiano. O mesmo sentimento de afinidade que experimen

tara Nietzsche ao ler Dostoiévski os russos experimentaram então lendo 

o pensador alemão. O clima histórico em que viviam parecia exigir 

mudanças profundas e radicais: só o espírito totalmente livre de Nietzs

che parecia ser capaz de conduzir aquela massa enorme de aspirações 

c exigências que se agitava confusamente antes de explodir e causar a 

grande transformação social que marcou o nosso século.

Na Europa ocidental, entretanto, um dos primeiros, senão o primei

ro ensaio favorável a Nietzsche, parece ter sido publicado em 1893, por 

Lou Salomé, uma jovem russa, personagem problemática e que com o

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livro ganhou renome internacional. Lou Salomé conheceu Nietzsche em 

1882 e durante alguns meses manteve com ele estreitos laços de amizade. Paul Rée, amigo de Nietzsche, era também amigo de Lou e, embora seu 

nome não figure na capa do livro de Lou, deve, segundo todas as 

probabilidades, ter contribuído consideravelmente para sua feitura. O 

sucesso do ensaio se deve a várias causas, a primeira das quais tendo  

sido o quase total desconhecimento por parte do público das circunstâncias que cercaram seu aparecimento. A verdade é que Lou Salomé,

 

que se apresentava como uma das primeiras pessoas capazes de compreender e de interpretar a obra de Nietzsche, havia exercido, sem a 

menor dúvida, uma influência claramente negativa na vida do filósofo e, 

como intérprete, errava o alvo tanto nas suas apreciações encomiásticas 

quanto nas críticas e censuras que se permitia formular. Sua falta de  

discernimento se revelava no fato de acreditar ter sido Nietzsche influenciado por Paul Rée, a ponto, dizia ela, de através dessa influência

 

ter o filósofo enterrado para sempre seu idealismo antigo. É possível 

que esse julgamento lhe tenha sido “soprado” pelo próprio Rée. Mas, de uma forma ou de outra, o que o livro revela é uma inegável falta de  

escrúpulos na manipulação dos elementos utilizados para a elaboração 

de seu trabalho: e o exemplo mais flagrante dessa falta de escrúpulos se 

encontra na alusão feita ao aforismo 279 de A Gaia Ciência, onde, sob 

o título de “Amizade das Estrelas”, Nietzsche se despede de Richard 

Wagner - alusão feita, entretanto, com o propósito de fazer crer aos leitores que era de Paul Rée que Nietzsche se despedia. Se houve alguma 

influência importante entre os dois - Nietzsche e Rée - durante a época 

em que foi escrito o Humano, demasiadamente Humano, ela certamente 

teria provindo do filósofo, apesar de tudo o que disseram em contrário 

Wagner, seu círculo e também Erwin Rohde, uns e outros já então muito 

afastados dos problemas e experiências que constituíam a vida de 

Nietzsche.

Mas as relações entre Nietzsche, Lou Salomé e Paul Rée são um 

capítulo à parte e aqui estamos interessados unicamente na emergência 

da reputação literária e filosófica de Nietzsche. Em 1893 Elisabeth 

Fõrster, irmã de Nietzsche, voltava do Paraguai, viúva de um marido 

anti-semita e sobrevivente de uma experiência fracassada. A situação 

que encontrava no seu núcleo familiar se apresentava duplamente modificada: o irmão vivia num estado de prostração inconsciente, mas sua

 

fama crescia rapidamente, o interesse dos editores pela publicação de 

seus livros aumentando dia a dia. Ela, que durante a vida consciente do

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irmão chegara mesmo a julgar algumas de suas idéias “detestáveis”, 

resolvia agora administrar essa glória nascente. A primeira providência 

que tomava era modificar seu nome. Passava agora a assinar suas cartas 

com o nome de Elisabeth Förster-Nietzsche e, para dar validade a esse 

acréscimo, pedia oficialmente que fosse feita a mudança, o que lhe era 

concedido por decreto. Essa foi a primeira d’é uma série de providências 

que a levaram à propriedade e ao domínio exclusivo dos arquivos em 

que se encontravam os manuscritos e as cartas de Nietzsche.

Para enfatizar sua autoridade sobre tudo o que dizia respeito a 

Nietzsche, Elisabeth pôs-se a escrever uma biografia do irmão. O pri

meiro volume foi publicado em 1895. Cobria apenas o período da vida 

de Nietzsche durante o qual Elisabeth convivera com o irmão, isto é, até 

1886. Essa convivência, entretanto, fora marcada por um grande número 

de desentendimentos: o período da amizade de Nietzsche e Lou Salomé, 

em que explodira o ciúme de Elisabeth, sua acintosamente íntima 

amizade com os Wagner, mesmo depois da ruptura provocada pelo  

irmão, seu noivado e casamento com um homem que Nietzsche não 

estimava. Pode-se, pela simples enumeração dessas desinteligências, 

imaginar o tipo de biografia que foi então publicada. O livro teve, 

entretanto, algum sucesso de livraria, o que encorajou a obstinada 

mulher a prosseguir na sua ambiciosa tarefa. Para o segundo volume, 

Elisabeth resolveu viajar de modo a conhecer os lugares e os amigos que 

o irmão freqüentara durante o tempo em que ela se ausentara da 

Europa; recorreu também às luzes de Rudolph Steiner, que acabara de 

publicar um livro sobre Nietzsche e que na época ficou impressionado 

com a ignorância de Elisabeth sobre tudo o que dizia respeito à filosofia 

do irmão.Tal é, em brevíssimos traços, o perfil da mulher que iria, durante 

muito mais de quarenta anos, administrar o legado cultural deixado por 

um dos maiores filósofos de todos os tempos. Muito da incompreensão 

e da ignorância, que durante tantos anos envolveram a vida e a obra de  

Nietzsche, deve-se naturalmente a ela. E o fato de haver a reputação do 

filósofo resistido tantos anos a uma ação tão persistente e destruidora é 

algo que merece ser assinalado.

Em 1895, Rudolph Steiner publicava seu ensaio  Nietzsche, um 

 Inimigo de seu Tempo, em que o filósofo era apresentado como a vítima 

de uma época científica. As preocupações espiritualistas de Steiner 

cedo o levariam à teosofia e o tornariam incapaz de compreender que  

a ciência não era o único problema do século XIX. Segundo Steiner, os

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preconceitos da ciência impediam Nietzsche de contemplar o homem 

espiritual no homem físico. Isso teria criado nele a ilusão de um homem 

natural superior.

Provavelmente antes de terminar o século (a segunda edição, que é 

a que conheço, é de 1902), Alfred Fouillée escreveu um livro intitulado  

 Nietzsche e o Imoralismo,  obra que pode ser considerada clássica na 

literatura criada em torno da figura de Nietzsche; clássica, não pelas 

virtudes de análise e de interpretação crítica, mas pelas características 

que lhe são diretamente opostas - pela incompreensão, pela presunção, 

pela total incapacidade de perceber os interesses que motivaram o 

filósofo.

Quando Nietzsche morreu, em 1900, Stefan George, então um dos 

poetas mais celebrados da Alemanha, dedicou-lhe um poema. Com isso 

a reputação de Nietzsche elevou-se a um nível maior de significação não 

só na Alemanha, mas em toda a Europa. Stefan George era mais do que 

um grande poeta, era o líder de um círculo de intelectuais e artistas 

possuidores de prestigioso talento, com uma obra crítica, historiográfi- 

ca, literária e artística que representa talvez um dos pontos altos da 

moderna cultura alemã. Friedrich e Ernst Gundolf, Rudolf Borchardt, 

Kantorowicz, Ernst Bertram, Kurt Hildebrandt e Ludwig KJages são 

nomes que atravessaram as fronteiras da Alemanha e que se impuseram 

à admiração da Europa, por uma qualidade especial de seus escritos, 

em que profundidade crítica e elã admirativo, eros platônico e análise 

lúcida se misturavam numa dosagem até então desconhecida pela en- 

saística do mundo ocidental.

O poema de Stefan George foi publicado em 1907 no volume de 

poemas intitulado O Sétimo Anel. O poeta vê, em Nietzsche, um amal

diçoado, uma vítima da vulgaridade moderna, um profeta conduzido à 

loucura pela cegueira e pela surdez de seus contemporâneos. O esforço 

de Nietzsche havia sido heróico mas inútil. Tornava-se necessária a 

criação de um pequeno círculo, que constituísse o núcleo da regenera

ção futura - o núcleo que ele, Stefan George, havia formado. Num 

segundo poema, escrito na véspera da Primeira Guerra Mundial, Geor

ge não mais lamenta a inutilidade do heroísmo de Nietzsche. O mal 

estava inteiramente do lado dos que não haviam sabido compreender a 

grandeza do profeta. O poema exprime a desilusão do poeta. Não havia 

por que esperar uma regeneração futura. E a Nietzsche, com seu  amor 

 fati  e com sua teoria do Eterno Retorno, é atribuída agora uma nova

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façanha, uma façanha de uma ousadia inacreditável! A tentativa de  

paralisar a história e de impedir uma catástrofe inevitável.

Havia, na visão poética de George, elementos que poderiam conduzir a uma concepção verdadeira e justa da personalidade de Nie-  Izsche. Mas a obediência cega com que os membros do círculo ouviam 

.1  palavra do mestre fez com que essa visão fosse utilizada para uma 

apoteose de George. Nietzsche, pensavam eles, era apenas um precursor, uma voz no deserto a pregar o acontecimento iminente: “George é”, chegou a afirmar um dos discípulos, “aquilo que Nietzsche convulsivamente desejava ser”.

O caso de Ernst Bertram, entretanto, merece uma consideração à parte. Walter Kaufmann encara sua interpretação de um Nietzsche em 

perpétua autocontradição como uma conseqüência extremada da visão 

de George de um Nietzsche autodilacerado. Kaufmann nega a legitimidade desse ponto de vista. Segundo ele, Bertram projetou, em Nietzsche, sua própria personalidade romântica quando propôs que o 

considerássemos um filósofo “tipicamente ambíguo”.

Discutir a tese de Kaufmann não é fácil. Há, na sua argumentação, 

algo que é inquestionavelmente verdadeiro, mas há também elementos que são contestáveis. A ambigüidade de Nietzsche não o identifica 

automaticamente com os românticos como parece pensar Kaufmann. O 

que caracteriza os românticos é a indefinição, não a ambigüidade. Sócrates, Platão e Lutero são ambíguos, mas não são românticos. Superação de si mesmo e não ambigüidade é a chave de Nietzsche, propõe-  nos Kaufmann - mas a superação de si mesmo não explica vários dos grandes temas nietzschianos: em momento nenhum de sua obra, Nietzs

che possui a certeza de que a máscara histriónica pode ser superada pela 

máscara do divino; Nietzsche era um decadente que se sabia decadente; o saber-se decadente podia ser uma superação da decadência, mas podia ser também uma outra forma de decadência etc., etc.

É inegável que Bertram abusa do conceito de ambigüidade para 

explicar a personalidade de Nietzsche. O erro parece consistir no fato 

de Bertram derivar essa ambigüidade das características da personalidade de Nietzsche e não do tipo de problemas que o filósofo precisou 

enfrentar. Seu ensaio sobre Nietzsche, publicado em 1918, trai insofismavelmente a tendência a apresentar Nietzsche como uma personalidade romântica. Dito isso, é preciso reconhecer que se trata de uma das  peças de crítica literária e filosófica mais brilhantes que já foram escritas. Sua interpretação de Nietzsche, como uma personalidade românti

Biblioteca Universitária 

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ca, permite-lhe explorar exaustivamente todos os aspectos da ambigüi- 

dade do filósofo e oferecer-nos assim um vasto material donde podemos, 

de um outro ponto de vista, e talvez com maior lucidez e objetividade,  selecionar o que no criador de  Zaratustra  é ambíguo, em virtude da 

inexorabilidade dos problemas.

Friedrich Gundolf não escreveu um livro sobre Nietzsche. Mas as 

poucas páginas que lhe dedicou, em alguns ensaios, entre os quais os 

estudos sobre César e Shakespeare, têm talvez mais relevância do que 

vários dos volumes consagrados à memória do filósofo. Friedrich Gun

dolf foi sem dúvida alguma, depois de George, a figura mais brilhante 

do círculo, mais brilhante mesmo que Bertram, tendo produzido obras de uma grande importância como estudos sobre Paracelso e Goethe,  

além dos que já mencionamos. Nas poucas páginas dedicadas a Nietzs

che no ensaio sobre César, Gundolf nos revela o segredo das máscaras 

do filósofo:

[...jentre todas as imagens heróicas conhecidas Nietzsche escolhe a de César po rque é ela

que se aproxima mais do seu novo desejo de clareza, de contorno, de densidade terre stre,

como de seu desejo mais antigo de grandeza, de enormidade, de fatalidade e de superio-ridade espiritual. Mais do que no jovem Alexandre, embriagado de espaços longínquos,

envolvido em nuvens de imaginação romântica, ele sente prazer em encontrar em César

a imagem de seu desejo e o modelo de seu pensamento , o romano. [...] César para ele era

simplesmente o herói monumental não romântico.

Uma única palavra nos comentários decididamente elogiosos que 

faz a respeito da personalidade de Nietzsche revela uma restrição, uma 

dúvida, uma reticência: o adjetivo que qualifica Zaratustra, identificado 

com César. César seria, segundo Gundolf, um Zaratustra mais sadio. Linhas adiante, termina o ensaio dizendo que sua época não tinha visto 

ainda nascer um dominador como César, embora já reinasse sobre ela 

uma personalidade em que se uniam uma sabedoria amadurecida e uma 

vontade inexorável de comando - alusão transparente a Stefan George, 

que parecia assim se apresentar como o Renovador que nem Nietzsche 

nem Zaratustra haviam podido ser.

Outros membros do círculo que escreveram sobre Nietzsche foram 

Kurt Hildebrandt e Ernst Gundolf, irmão de Friedrich. Hildebrandt 

escreveu quatro ensaios sobre o filósofo, um dos quais publicado junta

mente com um trabalho de Ernst Gundolf no volume intitulado Nietzs

 che como Juiz do Nosso Tempo e publicado em 1923. De um modo geral 

se poderia dizer que o círculo de Stefan George, embora utilizando

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Nietzsche como um pedestal para a apoteose de George, contribuiu 

para retirá-lo da atmosfera de mediocridade dentro da qual se havia 

debatido até então a crítica nietzschiana. Entre outras coisas surgira, em 

1902, um ensaio de Paul J. Möbius, em que era estudada a doença de 

Nietzsche de um ponto de vista estritamente médico. Möbius realizara 

pesquisas nas clínicas da Suíça e da Alemanha em que Nietzsche fora 

internado após a crise de Turim e chegara à conclusão de que a causa 

da loucura de Nietzsche era de natureza exclusivamente física: Niejzfc 

ehe teria adquiridasiTüis, em Leipzig ou nos quarteirões mal-afamados 

de alguma cidade italiana, e pagava, aos quarenta e três anos de idade,  

o preço de suas aventuras escabrosas. Teremos a ocasião de dizer mais 

adiante o que valem as pesquisas e conclusão de Möbius. Havia também 

outros tipos de polêmicas manifestamente incompreensivas como as de 

Roberty e Liechtenberger, dois intérpretes afinados mais ou menos com 

o diapasão de Alfred Fouillée.

Em 1904 Richard Oehler publicou um ensaio “intitulado” Nietzsche 

e os Pré-Socráticos, que teve uma certa repercussão. Segundo Oehler, 

Nietzsche estava completamente sob a influência de Schopenhauer e 

por isso repudiara o otimismo socrático. Muito mais tarde, em 1935, 

Oehler publicou um novo trabalho sobre Nietzsche: Nietzsche e o Futuro 

 da Alemanha. Os dois livros se caracterizam por uma intensa teutoma- 

nia.

Em 1908, na Sociedade Psicanalítica de Viena, realizavam-se semi

nários sobre Nietzsche, com a participação de Freud, Adler e Otto 

Rank. Essas discussões pouco interesse têm do ponto de vista de um 

entendimento de Nietzsche. Eram apenas uma indicação da glória 

crescente do filósofo, já que tanto Freud quanto Adler e Rank não se interessavam especificamente pelo problema que para Nietzsche era 

crucial - o problema da decadência da cultura. As afinidades que 

sentiam entre si próprios e o filósofoeram marginais, afinidades que, de 

formas diversas, um grande número de pessoas também sentia, sem que 

por isso estivessem identificadas com os problemas essenciais da filoso

fia de Nietzsche.

Virgile J. Barbat publicava, em 1911, um livro intitulado  Nietzsche 

- Tendências e Problemas, que representava um esforço para estabelecer uma certa ordem nas idéias do filósofo, aliás entendidas num espírito 

de servil submissão.

Em 1912, Max Scheler, do ponto de vista da fenomenologia, escrevia 

seu trabalho sobre o ressentimento, procurando refutar a visão nietzs-

 N1ETZSCHE: O SÓCRA TES DE NOSSOS TEMPOS   . f í 

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chiana do cristianismo. Thomas Mann, em 1919, credenciava-se para 

receber um prêmio que havia sido instituído para o melhor livro escrito 

num espírito nietzschiano (Reflexões de um Apolítico).  O ensaio de 

Bertram sobre Nietzsche o entusiasmara; seu  Doutor Fausto,  escrito 

mais tarde, foi também profundamente influenciado pelas idéias do 

fdósofo. Ludwig Klages, anti-semita e irracionalista, escrevia em 1926 

um livro sobre Nietzsche, fazendo da oposição entre o “espírito e a vida” 

a inspiração fundamental do seu trabalho.

Entramos agora num período de análise da obra nietzschiana em 

que o trabalho dos comentaristas consistia sobretudo em divulgação. 

Nenhuma análise da importância do ensaio de Bertram apareceu antes 

da publicação, em 1936, do livro de Karl Jaspers sobre Nietzsche. É 

verdade que Charles Andler publicara de 1920 a 1931 seus seis alentados 

volumes, que vão dos precursores até a última filosofia de Nietzsche, e 

que Daniel Halévy produzira, pouco depois, uma inteligente biografia 

do filósofo. Mas, embora Andler tenha erigido à memória do filósofo 

um monumento impressionante pela sua dimensão e pela variedade e 

riqueza de detalhes, faltava-lhe a visão do essencial e a percepção da 

pulsação íntima do pensamento nietzschiano; e a biografia de Halévy se 

ressentia naturalmente da falta de elementos de informação ciosamente 

guardados por Elisabeth Fórster nos Arquivos Nietzsche. Satelizava a 

obra monumental de divulgação de Andler um sem-número de comentaristas igualmente falhos de uma visão essencial, tais como Émile 

Faguet, Jules Gaultier, Pierre Lasserre, Genieve Bianques, Stefan 

Zweig, Georges Bataille, E. F. Podach, August Mueller, Karl Heckel, Karl Justus Obenauer, Cari Albrecht Bernouille, Friedrich Muckle, 

Georg Simmel, B. Groethuysen e muitos outros. Seria impossível fazer 

aqui um catálogo completo dessa literatura e muito menos um comentário pormenorizado de cada um desses livros.

Com Karl Jaspers, chegamos a um outro marco importante no 

desenvolvimento da crítica nietzschiana. Nietzsche é apresentado pela 

primeira vez como um filósofo que não pode ser compreendido através 

de posições definidas, ou complexos de pensamentos extraídos de sua 

obra. E verdade que havia, já em Bertram, uma certa tendência nesse 

sentido. A concepção que Bertram tinha de Nietzsche, como uma 

personalidade ambígua, excluía naturalmente a possibilidade de um 

Nietzsche formulador de doutrinas positivas. Mas a diferença entre a 

concepção de Bertram e a de Jaspers é que a ambigüidade, na primeira, deriva da personalidade de Nietzsche, ao passo que, na segunda, resulta

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«I.i própria natureza da verdade que persegue. Walter Kaufmann, que 

li,ui reconhece essa diferença, julga que Jaspers foi influenciado pelas 

idéias do círculo de Stefan George-julgamento, seja dito de passagem, 

<|ue surpreendeu profundamente Jaspers, distante como parece ter 

sempre estado da área de influência do grande poeta.

Jaspers não se interessa'pela filosofia de Nietzsche, mas pelo seu 

 filosofar.  As contradições do filósofo não o perturbam, são-lhe, ao 

contrário, uma garantia de que o sopro da liberdade não permitirá que 

essa ou aquela idéia se transforme em dogma. Publicado em 1936, seu 

livro sobre Nietzsche foi provavelmente a causa de sua demissão da 

cátedra de professor da Universidade de Heidelberg. Mesmo sem 

considerar a qualidade de sua interpretação, o fato de Jaspers ter 

ousado enfrentar o regime nazista com uma imagem de Nietzsche, que 

era uma clara censura a esse regime, seria suficiente para garantir-lhe 

um lugar de destaque na história da literatura criada em torno da figura 

do filósofo. E é digna de registro, para completar uma definição do seu 

caráter, a declaração pública que fez depois do colapso do nazismo, 

quando confrontado com a glorificação em torno de seu nome promo

vida pela rádio e pela imprensa: “Não sou um herói e não desejo ser 

considerado como tal”.

Em 1934, Alfred Báumler publicou seu estudo sobre Nietzsche e o 

nacional-socialismo. Esse livro deu início a toda uma literatura que fazia 

de Nietzsche o filósofo oficial do nazismo. Cabe aqui relembrar o papel 

que desempenhou Elisabeth, irmã de Nietzsche, na formação da crença 

de que o nazismo nada mais era do que a tradução, em termos políticos, 

das idéias expressas por Nietzsche. Desde cedo, antes mesmo de ir para 

o Paraguai, Elisabeth adquirira a convicção de que o imperador Guilherme se interessaria pelas idéias do irmão, caso as conhecesse - idéias 

que, segundo Elisabeth, iam ao encontro do estado de espírito do povo  

alemão, sedento de glória e de poder. Sob a influência de um marido  

recalcado e medíocre, Elisabeth misturava, no seu espírito pouco afeito 

às idéias, ardor nacionalista, fanatismo anti-semita e religião wagneria

na, obstinando-se contra toda a realidade dos textos a descobrir, na obra 

do irmão, suporte para essas tendências. Mais tarde, depois da Primeira 

Guerra Mundial e da ascensão de Mussolini ao poder, ela enviou-lhe uma mensagem de felicitações com um retrato de Nietzsche, tendo 

recebido um telegrama de agradecimento em que Mussolini lhe falava 

de sua antiga admiração por Nietzsche. Nos Arquivos Nietzsche, dirigi

do por ela, todo mundo falava de Mussolini, e foi com delírio que os

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Arquivos receberam a visita do embaixador da Itália, vindo especial

mente a Weimar para transmitir pessoalmente, a Elisabeth, os votos do 

Duce. Foi ainda com a cooperação de Elisabeth que a peça escrita por 

dois autores, um dos quais Mussolini, e intitulada Campo deMaggio, foi 

representada pela primeira vez na Alemanha, no Teatro de Weimar, em 

1932. Hitler compareceu a essa representação e foi ao camarote de 

Elisabeth cumprimentá-la. Em 1935, Elisabeth, meses antes de morrer, 

foi homenageada com uma visita do Führer aos seus Arquivos; e Hitler 

fez questão de comparecer ao seu enterro para demonstrar a estima que 

sentia pela irmã do ilustre filósofo. No fim da cerimônia fúnebre Hitler 

marcava ainda mais o seu apreço pela defunta, aproximando-se do 

caixão e depositando sobre o corpo inanimado uma enorme coroa de 

louros.

Tão falsas quanto as interpretações nazistas de Nietzsche eram 

naturalmente as interpretações do filósofo feitas pelos marxistas da 

Europa ocidental. E a razão não é difícil de entender: essas interpreta

ções tinham um vício de base - a crença de que o Nietzsche nazista 

constituía uma imagem válida do filósofo. Assim Lukács, no livro intitu

lado A Destruição da Razão, publicado em 1959, diz-nos que o que Nietzsche fez foi opor à dialética materialista, ao materialismo histórico, 

um sistema adverso, um mito irracionalista. Essas e outras concepções 

de Lukács, tais como a idéia da existência de um relacionamento entre 

as filosofias de vida e o imperialismo, são por demais simplistas para que 

valha a pena nos determos sobre elas. Lukács era, entretanto, um autor 

marxista que dispunha de grandes recursos de erudição filosófica; se 

suas análises não oferecem interesse, a razão disso certamente deverá  

ser atribuída à esterilidade do ponto de vista que resolveu adotar.

Antes de analisarmos a interpretação que deu de Nietzsche um dos 

filósofos mais influentes de nossa época, Martin Heidegger, deveremos  

considerar se o criador de Zaratustra exerceu algum tipo de influência 

sobre Rainer Maria Rilke* o segundo grande poeta que a Alemanha teve 

neste século. Vimos a importância atribuída a Nietzsche por Stefan 

George e seu círculo. Rilke certamente não contribuiu da mesma forma 

para aumentar a glória do filósofo e constitui talvez um caso único na 

história da influência de Nietzsche sobre personalidades criativas: não 

são poucas as pessoas e mesmo os críticos literários que entraram em 

contato com Rilke sem sentir o impacto que sobre ele teve essa influên

cia nietzschiana.

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É verdade que não é fácil explicar o fato de ter Rilke aparentemente 

evitado mencionar, seja nos seus escritos seja nas suas cartas, o nome 

de Nietzsche. Em 1900, o poeta escreveu as seguintes linhas à margem 

do seu exemplar de A Origem da Tragédia:

Atrás de mim se encontram coros sombrios, florestas que se agitam, mares; e de

ludo o que pesa me livro eu; pois de vez em q uando ouço um respirar mais forte que o

meu por detrás do curso dos acontecimentos. Entüo fico certo de que minhas mãos não

me traem quando engendram novas formas, mas que pelo contrário suportariam qual

quer peso para criar para essa respiração um peito sobre-humano.

Esses comentários, entretanto, só foram publicados em 1966; e a 

ausência de referências a Nietzsche, na obra de Rilke, talvez tenha 

criado a impressão de que não tinha havido qualquer influência do  

filósofo sobre o poeta. Qual teria sido o motivo da reserva que o poeta 

parece ter imposto a si mesmo? As relações de Rilke com Lou Salomé 

tornam improvável a hipótese de que a figura e o destino de Nietzsche  

nunca tenham ocupado seu espírito - disso a citação que fizemos é prova 

mais do que suficiente. Mas se fosse algum sentimento derivado de seu 

envolvimento com Lou Salomé o que tornava Rilke tão comedido nos 

seus pronunciamentos sobre Nietzsche, como compreender uma poesia 

que parecia estar tão impregnada do espírito nietzschiano? Mais curiosa 

ainda do que a reticência de Rilke é a circunstância de que, ao falar das influências por ele recebidas, o poeta se refere a um sem-número de  

coisas e de nomes, a Jacobsen e a Rodin em primeiro lugar, mas jamais 

ao nome do filósofo.

Erich Heller, no seu livro The Desinherited Mind, inclui um capítulo 

sobre as relações entre Nietzsche e Rilke, que constitui, aparentemente, a única análise, na vasta literatura sobre Nietzsche ou Rilke, a se ocupar 

de modo consistente das relações entre os dois, procurando mostrar o 

que há neles de comum e também de insuficiente. Heller parte naturalmente da premissa de que Nietzsche influenciou Rilke - e essa parte de 

seu trabalho é perfeitamente justa e penetrante, como é eventualmente 

compreensível sua crítica de Rilke. O ponto fraco de sua argumentação parece residir no fato de Heller atribuir a Nietzsche as deficiências que 

discerne em Rilke, como se a circunstância de ter havido uma influência 

implicasse a necessidade de estarem os dois unidos numa participação 

aos mesmos fatos negativos.

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A fim de completar o que tínhamos a dizer sobre essa influência,  citemos um trecho do capítulo a que nos referimos do livro The Desi- 

 nherited Mind:

Rilke entre tan to é o poe ta de um mundo cujo filósofo é Nietzsche. A formação dessemundo escapa a q ualquer sistema tradicional de cartografia. A dúvida substituiu todasas certezas. Ao inom inado é dad o um nome e o indizível é pronunciado. É um m undo noqual a ordem de correspondência é violentamente perturba da. N ão podem os mais estarcertos de que am amos o que é amável e detestamos o que é detestável. O bem não produznada de bom e o mal não molesta ninguém.

Em 1936, Martin Heidegger iniciou seus cursos sobre Nietzsche, que se prolongaram até 1940. Antes de falarmos da interpretação  heideggeriana de Nietzsche, convém examinar alguns aspectos do rela

cionamento de Heidegger com o nacional-socialismo. Há quem preten

da invalidar sua obra, pelo fato de ter sido ele nazista, e há quem considere essa obra totalmente independente das circunstâncias da sua biografia. Do que não pode haver mais a menor dúvida é de que ele tenha sido de fato nazista, desde sua entrada no partido, em 1933, até o  

colapso final da Alemanha, em 1945. O livro de Victor Farias Heidegger e o Nazismo, publicado em 1987, elimina qualquer incerteza sobre essa questão. E verdade que Farias não pôde consultar o arquivo guardado  pela família do filósofo - por razões desconhecidas e que parecem no mínimo suspeitas. Mas o que pôde consultar constitui prova mais do que suficiente. Heidegger era um nazista; sua maneira de ser nazista era talvez diferente da maneira de Hitler, Goebbels e outros dirigentes nazistas - mas é evidente que, em questões essenciais, seu ponto de vista 

coincidia totalmente com os pontos de vista de tais dirigentes. Heidegger era anti-semita, inimigo da democracia, profeta de uma missão especial do povo alemão e da supremacia da língua alemã. Esses ele

mentos são suficientes para caracterizar o nazista. O problema que nos concerne é, então, saber se um nazista tem autoridade para interpretar um filósofo como Nietzsche - já não quero discutir aqui a questão de saber se um nazista tem autoridade para construir uma ontologia. Os discípulos de Heidegger têm uma tal fascinação pela construção inte

lectual elaborada pelo mestre, que a julgariam respeitável, mesmo que ficasse provado ter sido Hitler, e não o filósofo, o autor dessa obra. Do ponto de vista nietzschiano, entretanto, é totalmente inadmissível pensar que um filósofo possa ser compreendido sem se levar em conta os fatos de sua existência biográfica. Os discípulos de Heidegger podem se

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concentrar todo o tempo que quiserem sobre as excentricidades da 

ontologia de O Ser e o Tempo, mas estão tão desqualificados quanto o 

mestre para emitir o menor julgamento sobre a problemática de Nietzsche - para se qualificarem teriam, como o mestre, de provar, contra as 

afirmações de Nietzsche, que a essência de uma filosofia nada tem a ver 

com a personalidade e as experiências várias do homem que a elaborou.

Heidegger nos oferece uma filosofia do Ser. E manifesta seu desdém pelas filosofias interessadas pelo conceito de valor. Eis a frase que 

pronunciou em 1935, num curso que só foi publicado em 1952, sob o 

título Introdução à Metafísica:

Em 1928 apareceu uma bibliografia geral do conceito de valor, primeira parte,

í 'itam-se aí seiscentas e sessenta e uma publicações sobre o conceito de valor. E provável

c|ue agora já se tenha chegado ao milhar. Eis o que se chama hoje de filosofia. Em

 pa rticu lar o que é hoje lançado no mercado como fdosofia do nacional-socialismo e que

nada tem a ver com a verdade interna e a grandeza desse movimento (isto é, o encon tro,

a correspondência entre a técnica determinada planetariamente e o homem moderno)

faz sua pescaria nas águas turvas desses valores e dessas cifras.

Estaria a filosofia de Nietzsche incluída na lista dessas filosofias que 

nada tinham a ver com a verdade interna e a grandeza do movimento 

nazista? Se isso é verdade - e deveria sê-lo, porque o tema fundamental da filosofia de Nietzsche é a questão do valor -, por que Heidegger  estuda de modo tão minucioso uma filosofia inspirada em princípios que 

despreza? Na verdade, ao analisar a obra de Nietzsche, o principal esforço de Heidegger é no sentido de mostrar que a noção de valor 

representa nela a forma mais extremada do esquecimento do Ser - como se, em épocas anteriores, o homem pouca atenção tivesse dado ao 

problema do valor e só se tivesse preocupado com a maior ou menor  

refulgência do Ser. É baseado nessa idéia extravagante - mas recebida 

por intelectuais sofisticados com um entusiasmo quase delirante - que 

Heidegger pontifica sobre Nietzsche, caracterizando-o como o último metafísico do Ocidente. Qualquer leitor de Nietzsche mais perspicaz 

não poderia deixar de surpreender-se com essa extravagância. Nietzs

che, um metafísico ? Nietzsche, pronunciando-se sobre valores que são apenas a última dissimulação do Ser, a sua mais extremada ocultação?  

- Sim, respondem gravemente os heideggerianos, e mais gravemente ainda nos descrevem todo o processo, todas as etapas por que passa a 

idéia do Ser até transformar-se nessa realidade totalmente diferente que

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é o valor e por trás da qual aquela idéia se esconde em virtude de um 

 jogo curioso, cujas regras é difícil de atinar.

Heidegger interpreta, pois, a filosofia de Nietzsche, tomando como ponto de partida não a idéia de valor, mas a idéia do Ser. A metafísica 

de Nietzsche, segundo ele, representa o aniquilamento do Ser no seu  

esquecimento extremo. A subjetividade do Espírito racional de Hegel 

cede lugar à subjetividade absoluta da Vontade. É preciso, dizem os 

heideggerianos, que a Vontade destrone a Racionalidade, é preciso que 

ela se aproprie da essência incondicional da subjetividade liberada de 

toda determinação extrínseca. O que há de querer a Vontade? - Nada, 

a não ser ela própria. Querer a si própria, tornar efetivo seu próprio caráter absoluto, isto quer dizer: autorizar-se, a partir de si mesmo, ao 

exercício soberano de um poder sempre acrescido - assim encarada na 

sua essência autotélica, uma tal Vontade deve se chamar Vontade de 

potência. Longe de suprimir as categorias lógicas que destronou, tal Vontade as submete a seu serviço; essas categorias, subordinadas à

 

Vontade, tomam agora o nome de valores. A filosofia de Nietzsche, então, é o fim de um longo processo de obnubilação do Ser, até o seu  

esquecimento total; é assim uma metafísica de vontade de potência, isto é, uma filosofia que não cria, mas apenas posiciona valores. Nietzsche, 

definitivamente, não cria valores, ele simplesmente esquece o Ser; e por 

isso sua filosofia é uma metafísica, isto é, uma disciplina ligada primordialmente ao Ser, que é esquecido e transformado em valor.

Vemos, assim, como a compreensão que Heidegger tem de Nietzsche revela suas afinidades com o nazismo. O anúncio do fim da 

metafísica e a rejeição das filosofias de valor só podem significar o 

advento de uma nova era, em que a vontade de potência se afirma como 

o fator preponderante, como o fato fundamental da vida humana - o 

advento de uma era, em que o Führer é chamado a representar um papel essencial na organização das sociedades. E verdade que a ontologia de 

Heidegger deixa entrever a possibilidade de uma existência autêntica, 

em que a natureza do Ser é revelada plenamente - mas isso não parece 

poder ser realizado sem a intervenção conjunta do povo e do Führer. Heidegger deixa sempre envolto em espessas camadas de mistério o 

processo pelo qual o Ser poderia ser revelado plenamente, criando até 

a ilusão de que a seu ver a autenticidade da existência poderia ser 

adquirida pelo esforço exclusivo do indivíduo. Mas quando refletimos 

sobre suas declarações a respeito do encontro do homem moderno com 

a técnica determinada planetariamente, vemos com clareza que não é

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através de soluções obtidas no plano do indivíduo que Heidegger pensa 

poder afrontar os problemas da civilização contemporânea. Heidegger 

i <■ jeita os valores e aceita o Führer - o Führer não como anunciador de 

valores novos, mas como um dos fatores indispensáveis à realização da 

existência autêntica.

A literatura sobre Nictzsche tomou um rumo completamente novo 

depois da interpretação heideggeriana. Heidegger foi, depois da Segun

da ( iuerra Mundial, juntamente com Marx, o filósofo mais influente na 

Europa continental e, em particular, na França. A teoria dos valores 

parecia, então, ter entrado em declínio, e a ontologia se afirmava como  

a disciplina filosófica por excelência. Falava-se de Nietzsche, naturalmente, não porque suas idéias suscitassem interesse, mas porque Hei

degger falara nele e falara de um modo que, para alguns, parecia mesmo 

excessivo. A verdade é que Nietzsche foi o grande adversário que 

Heidegger encontrou no ápice de sua carreira. Heidegger procurou 

dominá-lo, transformá-lo numa peça do seu sistema, reduzi-lo à sua 

própria visão de mundo, mas, no final, conheceu o fracasso e foi vencido 

pela qualidade mais viva do pensamento de Nietzsche. Acontece tam

bém que, mais ou menos nessa época, os Arquivos Nietzsche tornaram- 

se acessíveis aos pesquisadores. Karl Schlechta, em 1958, escreveu seu 

livro O Caso Nietzsche,  em que as manipulações e falsificações de 

Elisabeth, irmã de Nietzsche, eram pela primeira vez levadas ao conhe

cimento do grande público. Heidegger, naturalmente, havia analisado 

os textos de Nietzsche, quando eles ainda estavam sob o controle de  

Elisabeth. Alguns de seus discípulos, espectadores daquela luta silen

ciosa, devem ter compreendido qual era a motivação essencial de um 

tal confronto. Nietzsche passou a ser estudado não por constituir objeto 

das preocupações de Heidegger, mas como o pensador que se dirigia 

melhor do que ninguém aos problemas da época. Uma série de livros 

surgiu nessa época de renascença de Nietzsche: de Eugen Fink, de Gilles 

Deleuze, de Klossowsky, de Jean Grenier, de Paul Valadier, de Georges 

Morei, de Sarah Kaufmann, de Michel Guérin, de Pierre Vance e de  

Curt Paul Janz, entre outros. Desejo destacar aqui Jean Grenier, com 

um estudo extremamente competente sobre o problema da verdade em 

Nietzsche; Paul Valadier, que submete sua fé cristã a uma confrontação 

com o pensamento nietzschiano e que, com grande coragem e penetra

ção, se dispõe a passar pelo teste; e Curt Paul Janz, que nos ofereceu a 

melhor e mais completa biografia de Nietzsche surgida até hoje. Esses 

autores e muitos outros contribuíram fortemente para criar um novo

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clima e para dar uma nova dimensão à literatura formada em torno de 

Nietzsche.

Na Alemanha, Rudolph Binion publicou, em 1966, um livro sobre  

Lou Salomé, discípula de Nietzsche, que lança dúvidas sobre o caráter 

de Lou e sobre a versão dada por ela às relações entre os dois. Binion  

procura mostrar, através de documentos, que Lou Salomé não era uma 

testemunha em quem se pudesse confiar; entre outras coisas, espalhara 

a história de que Nietzsche e Paul Rée a tinham pedido em casamento  

(Nietzsche por intermédio de Rée). Binion sustenta que Nietzsche 

nunca a pediu em casamento, embora aparentemente ela tivesse espe

rado por isso, e afirma que ajovem russa permaneceu virgem pelo menos 

até 1892, isto é, dez anos depois de sua convivência com Nietzsche.

Nos Estados Unidos, Walter Kaufmann, autor alemão, publicou, 

em 1950, um ensaio sobre Nietzsche, cujos méritos devem ser ressalta

dos não só em virtude da própria qualidade do livro, como também pelo 

fato adicional de ter sido a primeira interpretação importante da obra 

de Nietzsche feita no mundo anglo-saxônico. Surgiram, depois dele, 

vários trabalhos em língua inglesa também dignos de nota: em primeira 

linha, o trabalho monumental de Richard Schacht; mas também os livros 

de R. J. Hollinrake, E. F. Peters e de J. P. Stern. Hollinrake escreveu um 

livro intitulado Nietzsche, Wagner e a Filosofia do Pessimismo,  que foi 

de grande valia na elaboração do nosso texto. E. F. Peters escreveu 

 Nietzsche e sua Irmã Elisabeth,  donde pudemos recolher informações 

extremamente úteis. E J. P. Stern não só escreveu um livro sobre 

Nietzsche, como, de parceria com M. S. Silk, escreveu, em 1981, um livro 

intitulado Nietzsche on Tragedy, que representa o estudo mais completo, 

mais compreensivo e mais importante até hoje publicado sobre A Ori

 gem da Tragédia.

Finalmente, em livro publicado em 1983, R. Hinton Thomas nos faz 

ver como é falsa a impressão largamente generalizada de que, em 

matéria social e política, Nietzsche, no Ocidente, representava, de 1890 

a 1918, um pensamento que legitimava sobretudo a posição dos conser

vadores (ou reacionários). Hinton Thomas nos descreve com minúcia a 

composição e as atividades dos grupos sociais e políticos que, na Alemanha daquele período, foram influenciados pelas idéias de Nietzsche 

- grupos de tendências marcadamente reformistas senão revolucioná

rias, socialistas de toda espécie sobre os quais tais idéias exerciam um 

efeito estimulante e liberador.

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Para qualquer lado que a análise se volte, encontrará sempre 

vestígios de influência de Nietzsche. O  Nourritures Terrestres, de Gide, 

e i Homme Révolté, de Camus, têm a marca de Nietzsche. Bergson e 

Proust discutiram Nietzsche: Bergson, ao analisar o problema dos dois 

tipos de moral; Proust, ao refletir sobre o problema da amizade. A 

problemática do romance monumental de Robert Musil, O Homem sem 

Qualidades, está inextricavelmente ligada às perspectivas, à temática e 

às aspirações de Nietzsche.

Como dissemos ao começar este capítulo, hoje, a literatura sobre  

Nietzsche é representada por mais de três mil volumes.

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2. A INFLUÊNCIA DA OBRA SOBRE A VIDA

A vida e a obra de Friedrich Nietzsche estão de tal modo ligadas, que não é menos difícil fazer-lhe a biografia sem um exame paralelo de

 

suas idéias do que seria fazer esse exame sem dar atenção à biografia.  Não se trata apenas de levar em consideração o fato de que suas 

experiências pessoais foram transportadas para um mundo de idéias que 

as acolheu transfiguradas; não se trata apenas de compreender que a 

vida de Nietzsche explica sua filosofia; é necessário também compreender como, de que modo, sua filosofia explica sua vida. A análise filosófica já vai se habituando a um tipo de filosofia que nem é acadêmica nem 

abstrata e que mostra disposição para participar das paixões, das vicissitudes e tragédias do destino humano - homens como Pascal e Kierke-

 

gaard já lhe indicaram o caminho. Mas, apesar disso, o caso de Nietzsche 

parece exigir algo mais, um esforço ainda maior nesse sentido. Pascal e 

Kierkegaard construíram seu mundo de idéias a partir de experiências 

que representavam o que podemos chamar de sua base biográfica. Essa 

base era como que o elemento estável sobre o qual se elevava uma 

construção espiritual - construção que refletia, naturalmente, os movimentos da paixão e da sensibilidade, mas que nem por isso deixava de

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assegurar a proteção desses elementos dentro de um quadro bem 

definido e permanente.

Com Nietzsche, a situação já não é a mesma. Seu mundo de idéias  

tinha uma base biográfica - mas não era ele próprio a fonte de aconte

cimentos que compunham uma biografia? Se refletirmos um pouco  

sobre essa questão, verificaremos que não há, para ela, senão uma 

resposta: esse mundo de idéias serve também de base para a existência 

biográfica de Nietzsche. E curioso que as idéias de um homem possam  

modificar seu perfil biográfico - mas tal foi a experiência que, através 

de Nietzsche, nos foi dado a conhecer.

A trajetória espiritual de Nietzsche nos oferece, assim, o espetáculo de uma oscilação permanente entre a vida e a obra do filósofo. Se 

quisermos isolar o aspecto biográfico do destino de Nietzsche, chegare

mos, em pouco tempo, a uma imagem do filósofo totalmente estranha 

ao que ficamos sabendo quando lemos seus livros e estudamos sua obra. 

Era aquele homem delicado, atencioso, amável, de uma sensibilidade à 

flor da pele, a mesma criatura que escrevia livros tão ousados, tão 

radicais, tão revolucionários? Era aquele autor que escrevia num estilo  

tão atraente, tão apaixonadamente comprometido com o leitor, o mesmo homem que, para não ofender certos amigos e parentes, fazia o 

possível para evitar que seus livros fossem lidos por eles? O próprio 

isolamento que, pouco a pouco, ia envolvendo a vida do filósofo era um 

elemento do seu destino que não tinha apenas um caráter biográfiço. 

Nietzsche não foi um escritor que tivesse sido pouco a pouco abando

nado pelos meios intelectuais em que se formara. Os laços que o  

prendiam a esses meios foram se afrouxando insensivelmente, em virtu

de sobretudo de atitudes e iniciativas que partiam dele próprio. Seu isolamento era, assim, não apenas um acontecimento biográfico, mas 

também uma opção de natureza espiritual. O problema da doença, na 

sua obra, não era apenas um reflexo das condições particulares de seu 

estado físico - não era apenas um reflexo de acontecimentos biográficos, 

mas era também uma questão espiritual, que o levara mesmo a pensar 

que um homem tinha tantas filosofias quantos fossem os estados de  

saúde por que tivesse de passar. Em A Genealogia da Moral, o homem í  

é definido como um “animal doente” - esse homem é concebido, não a Jpartir da doença do indivíduo Nietzsche, e sim em conseqüência de uma 

análise histórica, de uma interpretação do judaísmo. '/ 

Vemos, assim, como é falacioso o desejo que demonstram certos 

analistas de tudo explicar a partir da existência de um relacionamento

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íntimo entre a vida e a obra do filósofo. Não há a menor dúvida de que 

o relacionamento existe. Mas essa asserção deve ser feita, não com o 

intuito de aplainar dificuldades e abrir caminhos (como acontece comu- 

mente), mas, ao contrário, com a disposição de enfrentar os problemas 

que, na realidade, a asserção cria mais do que resolve para o investigador. Na verdade, esse relacionamento é de um tipo especial, muito 

diferente do relacionamento que existe, por exemplo, nos casos de 

outros grandes escritores como Shakespeare, Goethe ou Dostoiévski. 

Shakespeare, por exemplo, escreveu  Hamlct para conjurar o fantasma 

do regicídio; Cioethe escreveu Werther  para conjurar a tentação do 

suicídio; Dostoiévski transferiu para seus romances um excesso de 

vitalidade que os limites de sua existência física não permitiam encarnar. 

Nietzsche, pensam então alguns analistas, teria, do mesmo modo, feito 

da filosofia um instrumento para dar largas a seu temperamento explosivo Trata-se de uma interpretação que encontra apoio numa leitura

 

superficial dos textos nietzschianos e que, por isso mesmo, tem se 

transformado num vade-mécum de muitos investigadores perplexos 

com a aparente falta de coordenadas na obra do filósofo. O problema, 

como teremos a ocasião de ver, é mais complicado e exige de nós um 

esforço de compreensão suplementar. Não é a vida de Nietzsche que 

explica sua filosofia; será talvez sua filosofia que explique sua vida. Em 

todo caso, existe aqui um problema que precisa ser atacado em toda a 

sua intratabilidade, porque nem a história da literatura nem a história 

da filosofia nos oferecem exemplos que possam tornar mais fácil o 

trabalho de investigação que lhes é apropriado.

Em poetas, romancistas e dramaturgos, o relacionamento entre a 

vida e a obra se exprime sempre por uma influência da vida sobre a obra. A vida é aquele elemento do passado que influi sobre o futuro, que é a

 

obra a executar. É assim que comentaristas e críticos descobrem, nas obras que estão procurando analisar, traços dos elementos que pertencem à biografia do autor. A descoberta desses traços permite uma

 

melhor compreensão da obra em seu conjunto. E justifica a curiosidade, 

modernamente difundida entre críticos e analistas, em torno desse 

elemento biográfico da obra literária.

O caso de Nietzsche, entretanto, reserva surpresas não pequenas. 

Sua vida está naturalmente vinculada à sua obra. Mas o elemento 

propriamente biográfico de sua existência não parece refletir-se de 

modo transparente na sua reflexão filosófica. Filho e neto de pastores 

protestantes, a infância de Nietzsche desenvolveu-se naturalmente

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numa atmosfera cristã, pietista e moralista. Como adolescente e univer

sitário, Nietzsche teve uma formação humanista, como todo indivíduo 

com recursos suficientes para beneficiar-se das luzes que, na época, os 

melhores centros culturais da Europa podiam difundir. Orfão de pai 

ainda menino, seu ambiente familiar reduziu-se desde cedo à sua mãe e 

a uma irmã, entre as quais naturalmente dividia sua afeição e seu 

carinho. Em nada disso, como vemos, pode-se perceber um traço qual

quer, um elemento anômalo capaz de determinar algum aspecto da obra 

que nasceria no futuro. As relações de Nietzsche com a mãe e com a 

irmã eram normais, as relações que se espera que um homem tenha com 

a mãe, com a irmã - afetuosas, ternas, sem nenhum aspecto que as afastasse do normal. Nietzsche não manifestava, com relação à mãe, 

nenhum sentimento outro que o de amor filial - não havia nele nenhuma 

fixação, nenhuma dependência excessiva do amor que, sabia, lhe era 

consagrado. Não tinha, com relação à irmã, qualquer laço diverso 

daquele que une naturalmente dois irmãos - não havia entre eles 

nenhuma afinidade intelectual, nenhum comércio de idéias, nenhum 

plano ou propósito de uma aventura intelectual levada em comum. 

Nietzsche chega, pois, ao fim de seus estudos universitários como chegaria qualquer europeu que tivesse tido meios e disposição para culti- 

var-se: com a bagagem de uma formação cristã, já então sujeita a 

questionamento, e com um conhecimento da cultura clássica adquirida 

através de estudos sérios e prolongados - estudos em virtude dos quais 

lhe foi possível, ainda muito jovem, candidatar-se com sucesso ao pro

fessorado de filologia clássica na Universidade de Basiléia.

Vemos, então, como não há, até esse momento, qualquer elemento 

biográfico que possa intervir na configuração da obra de Nietzsche. 

Naturalmente, sem sua formação cristã já desgastada, sem os conheci

mentos clássicos adquiridos na vida universitária, Nietzsche não teria 

podido escrever seu primeiro livro. Mas esses não são elementos espe-  

cificamente biográficos; fazem parte essencialmente de um processo de 

desenvolvimento intelectual que poderia ou não levar à produção de 

uma obra. E somente quando essa obra é produzida que podemos 

começar a pensar num possível relacionamento entre a vida e a obra de 

Nietzsche; é somente então que a vida de Nietzsche começa a ser afetada 

por algo que não é ela própria - a obra publicada simplesmente.  A 

Origem da Tragédia cria para seu autor duas situações novas, situações 

que só poderiam ter sido criadas pela publicação dessa obra - o estrei-

50 MARIO VIEIRA [)E MELLO

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lamento de suas relações com Wagner e o esvaziamento de seu prestígio 

 junto às autoridades acadêmicas universitárias.

Não é claro, então, que o relacionamento entre a vida e a obra, em Nietzsche, começa não por uma influência da vida sobre a obra, mas, ao 

contrário, por uma influência da obra sobre a vida? A publicação de A 

Origem da Tragédia foi um ato que teve conseqiiências sobre a totalidade 

da vida do filósofo. Depois dessa publicação, Nietzsche tornou-se uma 

outra pessoa. E entre as modificações que ela trouxe, para a constituição 

da estrutura íntima da personalidade de Nietzsche, está o fato de que 

cada um dos livros que foram publicados em seguida também represen- 

Iava um gesto que tinha conseqiiências na vida do filósofo. “Ressalvando apenas uma exceção, aliás essencial - convém num certo sentido, ante

datar todas as minhas obras.” Com essas palavras, Nietzsche nos faz ver 

como cada um de seus livros corresponde a um gesto novo, a algo que  

deverá determinar uma nova orientação no seu desenvolvimento pessoal. “Meus livros falam unicamente de minhas vitórias”, diz ele também

 

na mesma página do prefácio de 1886 de Opiniões e Sentenças Mistura

 das, de onde tiramos a primeira citação. Seus livros falam de suas vitórias 

e são suas vitórias que determinam sua vida futura. Nesse sentido, eles não são meramente a expressão de uma experiência; são isso natural

mente, mas são também e sobretudo essa própria experiência voltada 

para o futuro, disposta a agir sobre ele e a determinar sua estrutura.

É por isso que o relacionamento entre a vida e a obra, em Nie-  

(zsehe, parece ser mais tenso, mais dramático, mais profundo. O que se 

vê comumente são autores cujas obras só começam a exercer uma 

influência depois de terem sido, elas próprias, influenciadas pela expe

riência vivida de seus criadores. A obra de Nietzsche, entretanto, exerceu sobre a vida do filósofo uma influência que antecedeu toda

 

influência que a vida possa ter exercido sobre a obra. Nesse sentido, pode-se dizer que, antes de influenciar a posteridade, a obra de Nie- Izsche começou por influenciar seu próprio criador.

No relacionamento entre a vida e a obra de um autor, parte-se 

naturalmente da vida em direção à obra. Quando se estuda a obra de 

um escritor, é geralmente esse o caminho que se segue. Estuda-se a 

escola que freqüentou, a Igreja a que pertencia, o contexto familiar, as 

amizades, as leituras, as experiências amorosas e outras. O resultado de 

tudo isso e mais o gênio criador é a obra. O positivista que existe em 

lodos nós age desse modo. Mas com Nietzsche a coisa é diferente. Em 

primeiro lugar, como já vimos, nada há de especialmente característico

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no período de sua existência que antecedeu à publicação de seu primeiro 

livro. E, em segundo lugar, o relacionamento que estamos procurando 

só se manifesta depois de uma tal publicação; e, ainda assim, seria preciso, para bem compreendê-lo, inverter a ordem da demarche inter- 

pretativa: seria preciso partir da obra em direção à vida. As obras de 

outros autores passam, em geral, a influir sobre a vida depois de estarem 

terminadas. A obra de Nietzsche começa a agir sobre a vida antes de  

estar terminada e retroativamente sobre o próprio Nietzsche, antes de 

agir sobre qualquer outro ser humano. Essa influência da obra sobre a 

vida se manifesta, em Nietzsche, através das interpretações que faz de 

si mesmo. Já no começo de sua carreira intelectual, quando da caracterização de Sócrates como pensador decadente, Nietzsche faz a primeira 

grande interpretação de si mesmo: sua ruptura com Wagner e suas 

homenagens a Voltaire constituem uma segunda interpretação em gran

de escala; sua rejeição de todo mestre “que não sabe rir de si mesmo”, 

uma terceira; sua citação de Turenne, no Livro V da Geia Ciência, uma 

quarta. Nietzsche é, sem a menor dúvida, o primeiro e o maior intérprete 

de si mesmo. A seu lado, todos os outros intérpretes, sejam eles um 

Bertram, um Jaspers, um Heidegger ou um Kaufmann, fazem figura de intérpretes menores - não há, entre a versão deles e a do próprio 

Nietzsche, uma medida comum -, o que em Nietzsche se projeta para 

novos horizontes, neles se restringe, se limita e acaba se confundindo 

com a problemática do passado.

Qualquer esforço de interpretação da personalidade e da obra de 

Nietzsche parece, pois, ficar seriamente prejudicado, se não se partir do 

pressuposto de que o que se vai interpretar é já, essencialmente, uma 

interpretação. Para tal esforço de interpretação, essa é uma condição 

absolutamente sine qua non - condição que, entretanto, tem sido quase 

sempre ignorada, o que explica por que muito trabalho e as mais finas 

análises em torno do pensamento do filósofo foram, em muitos casos, 

vãs, puro desperdício, sem que se consiga encontrar o ponto de Arqui- 

medes para levantar o peso dos obstáculos à sua compreensão.

Em toda a história da cultura não existe exemplo igual. O único que 

dele se possa talvez aproximar é o de Sócrates - Sócrates que nada 

escreveu. Mas é justamente essa circunstância que permite a aproxima

ção. A figura de Sócrates tornou-se conhecida na história não através 

de uma iniciativa própria, mas através de uma interpretação. Se esse 

conhecimento histórico chegou a ter o peso que tem - revelado na 

enorme influência que sobre nós exerceu e continua exercendo -, isso

52  MARIO VIEIRA DE MELLO

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sc deve naturalmente à existência real da figura de Sócrates. Se pudés

semos duvidar dessa existência, é provável que as idéias socráticas nunca 

tivessem chegado até nós. Mas também, se pudéssemos duvidar da 

fidelidade da interpretação platônica, é provável que não atribuíssemos 

a essas idéias a validade que reconhecemos em virtude de seu enraiza

mento profundo numa personalidade real. Nietzsche não encontrou 

nenhum intérprete como Platão, foi ele mesmo o seu próprio intérprete. 

Mas, se sua figura tem peso histórico, isso se deu tanto em virtude do 

fato de sua existência real quanto em consequência da interpretação que 

fez de si mesmo. Se pudéssemos duvidar da sua existência real (acredi

tando, por exemplo, que se tratava de uma mente desequilibrada), 

certamente suas idéias não teriam tido, sobre o mundo moderno e 

contemporâneo, a imensa repercussão que tiveram. Se pudéssemos 

duvidar da fidelidade de sua interpretação de si mesmo, certamente não 

atribuiríamos a essas idéias a validade que reconhecemos em virtude de 

seu enraizamento numa personalidade real.

Por que, no caso de Sócrates, é tão necessária a crença na sua 

existência real? - E necessária porque sua existência não consistiu 

unicamente na sua realidade física. Sócrates fazia parte de um contexto 

social com características próprias. As realidades desse contexto se 

refletiam sobre sua personalidade e ocasionavam naturalmente reações 

de tipos diversos. Se fôssemos duvidar da existência desse contexto ou 

da realidade das reações socráticas, ficaríamos evidentemente impossi

bilitados de compreender suas motivações. Por que se dizia ele ignoran

te? Por que dizer tal coisa adquiria uma significação tão fundamental? 

Se, à personagem descrita por Platão não tivesse correspondido um 

homem de carne e osso, com razões muito especiais para se dizer 

ignorante, um tal dito teria passado despercebido, como uma dessas  

muitas afirmações que se faz impensada ou inconseqüentemente.

Mas a crença na interpretação platônica dos atos de Sócrates é, 

nessa questão, ainda mais indispensável do que a crença na realidade 

desses atos. Se duvidássemos um momento da interpretação de Platão, 

duvidaríamos não só de Sócrates mas também de Platão. Duvidaríamos 

de que Sócrates tivesse sido, como Platão o descrevera, mas duvidaríamos também de tudo o que Platão nos pretendesse mostrar. Fora 

realmente a morte de Sócrates que o fizera abandonar a política? Não  

era seu espírito essencialmente contemplativo e a morte de Sócrates um 

simples pretexto que dera a si próprio? Havia sido Sócrates, realmente,

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um homem mais justo que sua cidade? Não podia sua morte se justificar 

de uma certa maneira?

E no caso de Nietzsche? Por que era necessária a crença numa 

mente equilibrada? - Sem dúvida porque, sem uma mente equilibrada, 

Nietzsche não teria existido como pessoa. O contexto social e cultural a 

que reagiu não se teria refletido adequadamente sobre uma personali

dade, a sua. Duvidaríamos da existência desse contexto e da adequação 

das reações nietzschianas. Como levar a sério seus julgamentos? Como 

aceitar sua crítica devastadora? A crença no Nietzsche real, na sua 

existência como pessoa era, pois, indispensável. Mas a crença no Nietz

sche interpretado por si próprio era ainda mais imperiosa. Se duvidássemos do Nietzsche interpretado, duvidaríamos não apenas dele, mas 

também do Nietzsche real. Duvidaríamos não apenas que suas críticas 

fossem responsáveis, frutos de um espírito equilibrado, mas também que 

fossem instrutivas, criadoras, reveladoras de um projeto do mundo 

capaz de nos fascinar. Para que possamos ver o que de outro modo 

ficaria invisível, Nietzsche tem necessidade de se metamorfosear, de se 

transformar, por assim dizer, num outro ser, dotado de um outro poder 

de percepção e de um outro aparelho de visão. A auto-interpretação, em Nietzsche, significa precisamente isto: ser personagem, assumir uma 

possibilidade de vida que permita um novo ângulo de visão da realidade. 

Esse intercâmbio entre realidade e interpretação é um fato fundamental 

nas obras de Sócrates e de Nietzsche. Sem Platão, a realidade de  

Sócrates jamais nos seria acessível; sem o Nietzsche-intérprete, o Nietzs

che real seria para nós um mundo inatingível.

A influência da obra sobre a vida, na história de Nietzsche, encontra, assim, sua perfeita equivalência na presença de Sócrates na obra de 

Platão. Superficialmente, poder-se-ia dizer que a vida de Nietzsche teve 

uma influência sobre sua obra. Mas, se quisermos encarar o problema  

de um ponto de vista mais profundo, deveremos dizer que foi sua obra 

que influenciou sua vida. Do mesmo modo, se quisermos ver as coisas 

de um modo superficial, diremos que a vida de Sócrates determinou a 

obra de Platão; mas, se procurarmos encarar a questão de um modo 

mais profundo, compreenderemos que foi a obra de Sócrates que 

determinou a vida de Platão. Os diálogos de Platão têm, como tema 

principal, não a personalidade de Sócrates, mas a visão que Platão 

adquiriu depois de ter sofrido o impacto da obra produzida por aquela 

figura formidável.

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A existência dessa possibilidade de duas perspectivas nos proble

mas de Sócrates e de Nietzsche, de dois modos de ver esses problemas, 

um mais superficial e outro mais profundo, é o que justifica a necessi

dade de se traçar um paralelo entre as duas vidas e as duas obras desses 

representantes máximos da humanidade. Platão não é, evidentemente, 

uma mera testemunha, um escriba (um datilógrafo, como costuma dizer 

o mau gosto contemporâneo), que anota os pensamentos e as intuições 

de Sócrates. Platão é um homem que representa a encarnação mais 

perfeita, o exemplo mais ilustrativo dos efeitos completos de uma explo

são cultural. Se de um ponto de vista superficial poderia ser visto como  

uma testemunha, de um ponto de vista mais profundo deverá ser encarado como um protagonista, como uma explosão personificada. Não se 

(rata meramente de considerar sua personalidade transformada, modi

ficada pela ação explosiva da existência socrática. Trata-se de algo mais 

profundo, de uma metamorfose mais essencial: de uma simbiose de uma 

natureza tão completa que impossibilita o discernimento justo dos 

elementos de que se compõe, como comprovam as infindáveis contro

vérsias dos scholars desejosos de separar, nos Diálogos, a parte que cabe 

a Sócrates e a que cabe a Platão. Nietzsche, por outro lado, poderia também ser visto como uma mera testemunha, como um escriba que 

anota seus próprios sentimentos e idéias. Mas essa seria uma visão 

extremamente superficial do filósofo. Nietzsche foi, exatamente como 

Sócrates, um dos exemplos mais perfeitos de uma explosão cultural. 

Essa explosão, para não se perder num espaço de indiferença, necessi

taria, como necessitou a explosão socrática, de um homem em quem  

pudesse se encarnar, de um homem que, da maneira mais completa, 

absorvesse seus efeitos a fim de dar-lhes consistência e continuidade. 

Era uma explosão que aniquilaria uma simples testemunha - uma 

explosão cujos efeitos só poderiam se perpetuar se acontecessem não 

num espaço de indiferença, com meras testemunhas, mas num ambiente 

especialmente preparado, fortemente protegido e em que os seus efeitos 

daninhos pudessem ser eliminados e os benefícios, perfeitamente assi

milados. Nietzsche, menos feliz que Sócrates, não encontrou o homem 

que pudesse representar esse ambiente. Seu instinto, aliás, desde cedo  

lhe dizia que jamais o encontraria. Quando se rebelou contra a cultura 

socrática, ainda submisso a Wagner e a Schopenhauer, deve ter sentido 

o que a rejeição dessa cultura representava como proposta explosiva e 

a pouca ou nenhuma chance que teria de encontrar um homem de valor 

que a quisesse endossar. Sua veneração por Wagner havia sido, talvez,

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um modo de anestesiar esse sentimento. Só na música, só num gênio 

musical poderia encontrar o companheiro que se dispusesse a segui-lo 

numa tal aventura. Nietzsche não era um gênio musical, a música não 

era seu meio de expressão natural e, entretanto, foi desde o começo um 

elemento essencial de sua vida. Como explicar isso senão pelo fato de 

que era nela que encontrava o que lhe recusava o resto do mundo - a 

companhia, a solidariedade, a compreensão? “A vida sem música é 

simplesmente uma fadiga, um erro”, dizia ele. Era como se dissesse: a 

vida, sem amizade, sem companhia, sem solidariedade, é uma fadiga, 

um erro. Essa função complementar que a música tinha, na sua vida 

solitária, não tem sido habitualmente objeto de investigação - Stefan 

Zweig, que no seu livro sobre Nietzsche, dedica um capítulo ao refúgio  

da música, não menciona essa função -, mas é uma coincidência que 

merece ser analisada o fato de que foi, justamenle no momento de sua 

ruptura com o mundo da cultura socrática, que sua veneração por 

Wagner se manifestou mais forte. Não era fácil, para um filólogo da 

qualidade de Nietzsche, sentir-se subitamente exilado do mundo dos 

Ritsehl e dos Wilamowitz. Não era fácil realizar que todo o seu prestígio, 

acumulado durante anos de labor intenso e de excepcionais desempe

nhos, ruía por terra em virtude de uma proposta que sabia ser justa, 

embora explosiva. O isolamento, a solidão que essa proposta ocasiona

va, era justamente o isolamento, a solidão que uma explosão ocasionava. 

Só a música poderia conviver com a desolação criada por uma tal 

explosão, só a música poderia se instalar nesses espaços desolados para 

recriar um mundo que substituísse aquilo que havia sido destruído.

A compreensão de um livro como A Origem da Tragédia  só recen

temente parece estar encontrando seu caminho. Dele já se disse que era 

um livro genial, mas uma obra rejeitada pelo consenso do mundo 

acadêmico. De que maneira se aferia a genialidade do livro ou se  

 justificava a rejeição dos filólogos eram coisas que permaneciam no 

vago. Deixava-se, talvez, entrever que o livro era genial porque Nie

tzsche era um gênio, porque se afirmara posteriormente como tal; 

sugeria-se que as interpretações nietzschianas da época trágica dos 

gregos eram obra de diletante e que um exame rigoroso e científico dos 

textos respectivos longe estava de confirmar suas conclusões apressadas. 

Wilamowitz, que mais tarde se tornaria o grande mestre da filologia  

clássica, não havia poupado Nietzsche nas suas críticas contundentes -  

pesquisas mais recentes têm mostrado, entretanto, que seus motivos não 

eram apenas determinados pelas exigências do rigor e da ciência. Com

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a publicação desse livro, Nietzsche viu-se de repente numa situação 

inteiramente nova. De membro respeitado e distinguido de uma comu

nidade científica, passou a uma situação extremamente inconfortável, 

em que suas idéias eram vistas com reservas e suspeitas. Para defendê- 

las, apenas seu amigo Ei win Rohde se apresentava, mostrando que era 

possível ver no livro, mesmo de um ponto de vista filológico, algo que  

merecia ser considerado.

Hoje em dia, o diletantismo de A Origem da Tragédia  é um argu

mento que não mais nos impressiona. A importância do livro não nos 

parece prejudicada, muito pelo contrário, parece-nos realçada por uma 

opção que Wilamowitz estigmatizava como sendo fruto do diletantismo. 

De que se tratava, afinal? Tratava-se, naturalmente, da rejeição de uma 

I radição cultural bimilenar levada a efeito por Nietzsche - de sua famosa 

proposta explosiva. No seu segundo ataque a Nietzsche, Wilamowitz 

reconheceu que era essa rejeição que julgava inadmissível; era esse o 

ponto que não podia de modo algum aceitar - e com isso, implicitamen

te, reconhecia que, no fundo, sua polêmica fora suscitada, não por 

problemas de filologia propriamente dita, mas por um ponto de vista 

que para ele era inaceitável, porque destruía todo um mundo que 

laboriosamente havia construído.

Abandonado pelos colegas (exceto Rohde), pelos alunos, excluído 

do consenso do mundo da filologia clássica, Nietzsche seria já um 

solitário, se não tivesse a música. A música, entretanto, não era seu meio 

de expressão natural e, portanto, não poderia nunca ser um substituto 

eompleto da companhia humana, quando esta lhe faltasse. Mas a música 

dos músicos ainda estava lá para acompanhá-lo. A amizade de Nietzsche 

por Wagner pôde durar enquanto a música do grande compositor pôde 

exercer essa função. Foi o tempo em que Nietzsche pôde mais eficaz

mente conjurar o fantasma da solidão. Seu relacionamento com Wagner 

e sua mulher Cosima, suas visitas a Tribschen, episódios triviais como 

sua espera, finalmente frustrada, da chegada do alfaiate com o terno que 

vestiria na sua primeira visita ao mestre, tudo isso indica uma orientação 

de vida que era oposta à que deveria tomar em seguida: um sentimento 

de que se está no centro do mundo, participando intensamente de tudo 

o que nele existe de importante. A singularidade da situação tem sido 

pouco observada: aqui temos um homem de letras, um filólogo, um 

pensador talvez, que passa a maior parte do seu tempo com um grupo 

de amigos que têm, todos eles, um interesse predominantemente musi

cal, que se encontram não para discutir idéias, mas para ouvir música e

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que apreciam, provavelmente nesse homem de letras, nesse filólogo, não a força intelectual ou a cultura clássica, mas a sensibilidade musical, o  

gosto refinado e a alta compreensão do fenômeno artístico.É verdade que Nietzsche tinha algumas veleidades musicais. Mas não foram elas que determinaram sua aceitação, seu sucesso junto ao 

círculo exclusivo dos Wagner. Suas produções musicais despertavam um 

interesse medíocre; e poder-se-ia mesmo dizer que, se tinham tido 

algum efeito, seria antes um efeito negativo. Temos que nos curvar diante da evidência dos fatos: Nietzsche era apreciado pela sua sensibilidade, não pela sua criatividade musical; e, como contrapartida, o que  

Nietzsche procurava, em Wagner, e o que pensava ter encontrado era, não uma música que satisfizesse sua sensibilidade artística, mas uma arte que correspondesse aos seus anseios de um novo mundo e de uma nova 

cultura. Ora, Nietzsche encontrou, em Wagner, apenas um músico que satisfazia sua sensibilidade artística; não encontrou, na música de Wagner, uma arte que correspondesse aos seus anseios de um novo mundo  

e de uma nova cultura. Vêm daí os julgamentos contraditórios sobre Wagner, que vemos esparsos através de sua obra. Há, em Nietzsche, uma 

razão profunda para isso, e esse é apenas um primeiro exemplo dos muitos que poderiam ser citados para ilustrar as contradições de sua 

natureza.

Mas deixemos de lado, por enquanto, essa questão. O ponto que  

estamos agora perseguindo é a solidão nietzschiana, que a música de Wagner, durante algum tempo, conseguiu protelar. Foi a proposta explosiva da rejeição da cultura socrática que determinou a necessidade da companhia de Wagner ou foi, ao contrário, a companhia de Wagner  

que determinou o aparecimento da proposta explosiva? Aqui um exame da cronologia dos fatos mais aparentes poderia talvez nos servir de guia. Embora uma estrita apuração desses fatos seja talvez um propósito 

irrealizável, tudo parece indicar que foi o entusiasmo por Wagner que deu a Nietzsche a coragem, o impulso para romper com a tradição bimilenar que o mundo em que vivia, o mundo da filologia clássica, respeitava religiosamente. Nesse sentido, poder-se-ia dizer que foi a companhia de Wagner que determinou o aparecimento da proposta 

explosiva.Mas por que, perguntemos agora, a personalidade de Wagner 

despertou, em Nietzsche, um entusiasmo tão grande? O que estava procurando Nietzsche, que pensava ter encontrado em Wagner? 7- Já o dissemos - um caminho que o levasse a um novo mundo, a uma nova

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cultura. Não podemos saber exatamente que anseios, que pressentimen

tos já se haviam formado no espírito de Nietzsche na véspera do dia em 

pie se encontrou com Wagner pela primeira vez, 8 de novembro de 

1868, na casa do professor Brockhaus; mas sabemos que, pouco mais de 

uma semana depois, Nietzsche já podia escrever a seu amigo Rohde uma 

carta, em que previa as grandes dificuldades que encontraria na sua 

carreira de filólogo. Essas dificuldades diziam respeito justamente ao 

fato de que Nietzsche estava procurando alguma coisa e que essa coisa 

cie já sabia não poder encontrar na filologia clássica. Que tenha pensado 

cm encontrá-la em Wagner significa não que o contato com o músico 

lhe tenha trazido novas luzes, que o conhecimento do compositor lhe 

tenha inculcado novas disposições, mas talvez que disposições, já arrai

gadas no seu ser, o predestinavam à admiração, ao entusiasmo por 

Wagner; e o predispunham a isso de um modo tão suigeneris, tão íntimo, 

tão pessoal, que o próprio Wagner ficava estupefato diante do poder dc 

assimilação, de apropriação e quase que de identificação que revelava 

seu discípulo.

A verdade da cronologia dos fatos aparentes parece, pois, encobrir 

uma verdade mais profunda. Se o entusiasmo por Wagner não tivesse 

raízes nos anseios mais profundos do seu ser, se fosse apenas uma 

experiência sem continuidade com sua existência anterior, Nietzsche 

não teria sentido a necessidade de questionar a carreira que abraçara. 

O problema da solidão não se teria colocado para ele. Esse entusiasmo 

poderia persistir, e Nietzsche se transformaria num wagneriano ou 

cessaria, um dia, de o ser, sem que isso trouxesse para si maiores 

consequências. Nietzsche passaria simplesmente a preferir um outro 

tipo de música. O que ocorreu, entretanto, é que o entusiasmo tinha 

raízes profundas e que sua duração deveria necessariamente depender 

de uma expectativa da realização daqueles anseios e esperanças que 

alimentavam essas raízes. Se cessou um dia, foi porque a expectativa da 

realização de tais anseios e esperanças se viu frustrada. Nietzsche se  

separou de Wagner, mas não da coragem, do impulso que o levara a 

romper com uma tradição bimilenar. Do ponto de vista meramente 

cronológico dos fatos aparentes, parece, pois, ter sido a companhia de 

Wagner que determinou o aparecimento da proposta explosiva da 

rejeição da cultura socrática - é, em  A Origem da Tragédia,  quando 

Nietzsche parecia estar totalmente convertido ao drama wagneriano, 

que essa proposta aparece. Mas, de um ponto de vista mais profundo, 

do ponto de vista dos fatos ocorridos na mais recôndita intimidade de

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sua consciência, devemos reconhecer que foi essa proposta, sob a forma 

larvar de uma insatisfação total com a cultura e o espírito do seu tempo,  

que lançou Nietzsche nos braços de Wagner.

Nietzsche, o dionisíaco; Nietzsche, o anti-socrático - foi essa a 

primeira interpretação que fez de si mesmo, seu primeiro aparecimento 

no teatro da cultura. Essa foi sua grande explosão, a proposta revolu

cionária que fez e que, como por encanto, o transformou num ser votado 

à solidão. Nietzsche, o wagneriano, foi o aspecto complementar dessa 

sua primeira auto-interpretação, desse seu primeiro aparecimento no 

mundo das idéias, o único em que deveriam ter lugar seus principais 

desempenhos. Aqui a perspectiva da solidão parecia se esmaecer. Não 

que o choque do primeiro impacto se tivesse atenuado; mas, durante 

algum tempo, Nietzsche pôde acreditar que a tradição recolhida e 

preservada - a tradição dionisíaca - era mais forte e mais viva que a 

tradição rejeitada, e que se veria surgir, dos escombros da explosão  

provocada, um novo mundo, mais rico, mais dinâmico, mais criador -  

um mundo que se originaria do espírito da música, que substituiria, com 

vantagem, o mundo de Sócrates e que certamente levaria o homem às 

mais altas esperanças. A música era, pois, agora, seu mundo, seu conso

lo, sua defesa contra a situação de isolamento que parecia ameaçá-lo. 

Nada nos pode dar uma idéia mais nítida do drama que se ia formando 

e que, com o correr do tempo, se transformaria em tragédia do que 

pensar na absoluta confiança com que Nietzsche, de início, apostara na 

música - para, pouco depois, ingressar no mundo das primeiras incer

tezas, das primeiras dúvidas, das primeiras desconfianças de que a 

aposta feita não seria premiada. Não era só uma decepção que se 

formava - era também um grande ponto de interrogação que se dese

nhava. Se, depois da grande explosão, a música não era o inevitável 

caminho, qual seria, então, esse caminho? O silêncio que se forma agora, 

em torno de Nietzsche, torna essa pergunta ainda mais angustiante. A 

solidão que o cercava era realmente opressiva, e um espírito menos forte 

teria talvez chegado à conclusão, capaz de levar a depressões ainda 

maiores, de que era ela, afinal, uma solidão merecida. O que nos dá uma 

medida exata da saúde, da energia mental de Nietzsche, e que deveria 

ser lembrado aos adeptos das interpretações medicais do filósofo, é que, 

nem por um momento, ele recuou ou vacilou nas suas propostas, quando 

considerava as conseqüências que poderiam produzir. A ruptura com 

Wagner, sua segunda ruptura, deixava-o totalmente só, entregue a si 

mesmo, e era dentro de si mesmo que deveria encontrar um sucedâneo,

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primeiro para o mundo, que fizera explodir, e segundo para a música,  

que era obrigado a abandonar.

Nietzsche transforma-se, então, no mais extraordinário psicólogo ile todos os tempos. Com uma capacidade de autometamorfose até 

então nunca vista, uma autometamorfose orientada por um instinto 

infalível, Nietzsche destila a verdade essencial de cada situação. Nunca 

um ser humano, para imaginar possibilidades de vida, dispôs de órgãos 

sensoriais tão apurados, fossem eles visuais, táteis ou auditivos. As 

personagens que Nietzsche arranca de si mesmo muitas vezes não têm 

nome, mas sempre têm algo a nos dizer que é surpreendente, algo 

também que parece irrespondível. Qual é seu objetivo? Dir-se-ia que Nietzsche é atuado por uma intuição do dionisíaco - por uma intuição 

desse deus que passa como uma força vital pelas almas individuais, sem 

se demorar mais do que um curto instante, o suficiente para fazê-las  

sentir que o importante não é a forma individual, mas a corrente 

dinâmica que as carrega na sua avalanche irresistível. De qualquer 

modo, é aqui que encontraremos um começo de resposta à grande 

interrogação que se desenhara após a ruptura com Wagner. As másca

ras de Nietzsche, suas metamorfoses, suas auto-interpretações são manifestações do dionisíaco. Se sua psicologia é a mais extraordinária 

realização de que se tenha notícia na cultura do Ocidente, isso se deve,  

indubitavelmente, ao seu caráter dionisíaco - uma psicologia que nega 

aos estados de alma um caráter estático e uma forma definida e que 

procura motivações partidas, não da epiderme do ser, mas das origens 

obscuras do instinto e do sangue. Se examinarmos a situação com 

cuidado, veremos que, apesar da aparência de uma mudança brusca de 

orientação, o desenvolvimento espiritual de Nietzsche se faz aqui em obediência a uma linha inalterável de continuidade; veremos que o velho 

sonho de um ressurgimento da cultura trágica, dionisíaca dos gregos, 

frustrado com a experiência wagneriana, reacende suas esperanças com 

o desabrochar de uma psicologia que dissolve as formas, que ignora os  

limites, que desarticula o indivíduo, envolvendo todos esses elementos 

no turbilhão de um movimento que não é cego nem desatinado: um 

movimento que tem um propósito, um objetivo, e que torna, cada vez 

mais clara, cada vez mais consciente, a razão de seus impulsos.

Mas a psicologia dionisíaca não era uma resposta completa à grande 

interrogação que se desenhara após a ruptura com Wagner. A época  

trágica dos gregos não produzira unicamente uma cultura dionisíaca -  

produzira também uma cultura apolínea. Nietzsche não pudera renun-

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ciar ao dionisíaco. Mas, à medida que o tempo passava, ia se tornando  

cada vez mais clara a necessidade de renunciar ao apolíneo. Na expe

riência que tivera com Wagner, Nietzsche conhecera o falso dionisíaco. 

Mas agora que conseguira superar esse problema, uma outra dificulda

de o defrontava: chegava-lhe a vez de conhecer o falso apolíneo. Havia, 

na cultura que lhe era contemporânea, muitos exemplos do falso dioni

síaco: Wagner, Schopenhauer, a maior parte dos românticos. Mas havia 

também uma profusão assustadora de falsos apolíneos. A cultura de sua 

época era dominada pelo falso apolíneo, por um instinto totalmente 

histriónico. O histrionismo naturalmente consistia numa simulação do 

dionisíaco; mas, menos obviamente, onde se afirmava também era na 

tentativa de produzir o fenômeno apolíneo lotalmente desligado de suas 

raízes dionisíacas. Nietzsche, que, nas suas várias interpretações de si 

mesmo, utilizava uma série sucessiva de máscaras, sabia que havia uma 

condição essencial para que elas não se transformassem num fenômeno 

histriónico: é que não perdurassem, que se sucedessem rapidamente, 

impelidas pelo turbilhão dionisíaco. Esse é, entretanto, um imperativo 

que mostra a ruptura da relação orgânica que existia outrora entre o 

instinto apolíneo e o dionisíaco. E porque Nietzsche tem consciência dessa ruptura que o problema da relação entre a vida e a obra se 

configura nele de modo tão particular. A obra de Nietzsche influencia 

sua vida constantemente - para que a vida não se corrompa. Se a relação 

orgânica existisse, a forma apolínea não se corromperia, não se trans

formaria num fenômeno histriónico. Mas uma cultura falsamente apo

línea, uma cultura histriónica, se caracteriza não apenas pela ruptura 

com suas bases dionisíacas, como também pelo seu poder de corrupção 

cada vez mais envolvente e que termina por corromper essas fontes 

mesmas de que se separou - o êxtase dionisíaco, ele próprio. Uma 

cultura falsamente apolínea termina por ser, forçosamente, uma cultura 

falsamente dionisíaca. Essa foi a conclusão a que chegou Nietzsche  

depois de sua experiência com Wagner. Depois dela, atitudes tais como 

as de otimismo ou pessimismo não poderiam mais ser consideradas 

reveladoras, não poderiam ser tomadas como indicadores da vitalidade 

e da força de uma cultura. Poderia haver tanto um pessimismo de força  

quanto um pessimismo de fraqueza. Nietzsche se volta para dentro de 

si mesmo e procura inspiração numa nova meditação sobre a época 

trágica dos gregos: e, agora, o que dela extrai não é mais uma mera opção 

estética do pessimismo forte dos gregos excludente de Sócrates, mas um 

projeto de vida que comunicasse a esse pessimismo o dinamismo da

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ação, um projeto de vida, uma resolução que permitisse uma nova 

meditação sobre Sócrates e que devesse constituir fonte determinante 

de experiências futuras, experiências não passivamente aceitas, mas 

ativamente procuradas - projeto de vida, resolução que se formara 

anteriormente a qualquer experiência de vida, derivado que era daquilo 

que só poderia ser definido, no sentido mais rigoroso da expressão,  como uma experiência de cultura  -, uma maneira de sentir o passado

 

equivalente, mas num outro registro, à maneira de sentir clássica, que 

fora objetivo da auto-educação empreendida por Goethe durante sua 

permanência na Itália. Goethe procurara conscientemente trabalhar 

sua natureza, torná-la clássica, de modo que sua sensibilidade, através 

de seus poemas, exalasse um perfume clássico. É famosa a carta em que 

Schiller, descrevendo para o grande poeta a maneira pela qual compreendia sua evolução, afirma que Goethe, gênio de essência helénica, mas nascido numa natureza setentrional, se vira obrigado a optar entre 

ser um artista do norte ou criar, dentro de si mesmo, uma Grécia através 

da força inventiva do espírito, através de um ato de razão. Realizada a 

opção, feita a correção da sensibilidade nórdica através da força inven

tiva do espírito goethiano e à luz de princípios racionais, uma outra 

tarefa se impunha ainda a Goethe, segundo a compreensão de Schiller. Era preciso, dizia ele, depois de ter passado da intuição concreta à 

abstração (a fim de objetivar a correção), adotar a marcha inversa, 

traduzir de novo as idéias abstratas em intuições concretas, transformar 

pensamentos em sentimentos, pois só desse modo pode-ria o gênio, agora clássico, de Goethe desabrochar em produções poéticas.

Essa descrição de Schiller tem muito a ver com a trajetória percorrida por Nietzsche. Não havia nele o propósito de se descartar da sua

 

natureza nórdica, mas foi, através da força inventiva do espírito que 

criou dentro de si uma determinada Grécia. Essa Grécia, que não era a 

Grécia de Goethe, foi formada por intermédio de uma convergência de 

influências, intuição, imaginação, sensibilidade e também, natu- ralmen- te, a razão. Era uma Grécia que, como a de Goethe, resultava de uma 

experiência de cultura, mas que, diversamente da dele, não era uma 

forma de sensibilidade, mas um projeto de vida - que devia se realizar através de uma experiência vivida capaz de encarnar a estrutura desse  

projeto, do mesmo modo que a sensibilidade clássica de Goethe deveria 

se concretizar em poemas, em criações literárias que refletissem a 

estrutura dessa sensibilidade.

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Nietzsche não necessitara realizar a “marcha inversa” descrita por 

Schiller, a tradução das idéias abstratas em intuições concretas, dos 

pensamentos em sentimentos, porque sua identificação com a Grécia 

não fora totalmente o resultado de um esforço consciente, de um ato de 

razão. A razão entrara nesse processo como elemento subsidiário, já que 

todo estudo e toda aquisição de cultura passam naturalmente por canais 

racionais; mas o que levara Nietzsche a esses estudos fora uma predisposição natural, um instinto que não lhe dizia estar contrariando sua

 

natureza, como ocorrera no caso de Goethe. Entretanto, uma vez 

formado o projeto de vida, a situação de Nietzsche era, em todos os 

pontos, análoga à do grande poeta alemão - deviam todos os dois 

concretizar, em experiências, a essência daquilo que tinha representado 

para eles uma grande experiência de cultura.

Eis como surge, na paisagem nietzschiana, sua extraordinária psicologia - uma psicologia derivada de um projeto de vida. Dela ficam 

distanciadas as psicologias com pretensões científicas, as psicologias 

que acreditam ser sua função descrever meramente estados de alma 

existentes. A psicologia, entendida como conhecimento da alma huma

na, admite a existência de projetos nessa alma, mas apenas de projetos 

individualizados, e por vezes até mesmo contraditórios. Há, entretanto, entre os psicólogos, uma como que obstinação em considerar a alma

 

humana uma realidade sem projeto, uma vivência definida por uma 

sucessão de estados que não estão necessariamente ligados entre si. É 

assim que se fala nas contradições do coração humano como se essas 

contradições provassem justamente que os diferentes estados de alma 

não dependessem uns dos outros. Numa tal maneira de considerar a 

psicologia, não há lugar para um projeto unificador. A psicologia, nesse 

caso, é meramente um instrumento que registra sentimentos passivamente tolerados.

Para Nietzsche, entretanto, a psicologia tem outras funções. Ela é 

derivada de um projeto de vida e, portanto, os sentimentos que registra 

são ativamente provocados e dinamicamente encarados. Não se trata 

aqui de descrever estados de alma bem delimitados e auto-suficientes, 

que mantêm, com outros estados de alma, relações exteriores, mas que 

não participam interiormente de uma unidade superior que os transcenda. Trata-se não de registrar sentimentos independentes de um projeto

 

de vida maior, mas de mostrar como um tal projeto se manifesta na 

infinita variedade de situações, condições, circunstâncias que informam 

a vida de um homem. No empenho em configurar essa rica variedade de

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manifestações, possibilidades de vida que até então não tinham sido 

exploradas, aspectos do ser humano são descobertos, e estes desvendam 

maneiras novas de pensar e de agir. Referindo-se a Dostoiévski, Nietzs- 

che declarou haver encontrado nele o único autor capaz de lhe ensinar 

algo em matéria de psicologia - e a razão disso reside provavelmente no 

fato de haver, em Dostoiévski, um projeto de vida que se manifestava 

das mais variadas formas, através da infinita riqueza de tipos humanos 

que criava e das inúmeras contradições que descobria no coração de 

seus heróis.

O projeto de vida donde procede a psicologia nietzschiana teve a 

sua origem, como já dissemos, numa experiência de cultura. A maior 

parte dos comentadores de Nietzsche, entretanto, não parece apreciar 

suficientemnte esse fato. Firmados na idéia de que o princípio funda

mental da filosofia de Nietzsche é a famosa vontade de potência, esses 

comentadores procuram compreender sua origem numa generalização, 

numa abstração derivada da observação dos fenômenos empíricos. 

Seria, assim, algo como um princípio motor do cosmos, como o amor e 

o ódio na filosofia de Empédocles, como o logos espermático na filosofia 

dos estóicos ou, mais perto de nós, como a vontade em Schopenhauer. 

Concorreram naturalmente para a difusão dessa tendência as manipu

lações de textos efetuadas por Elisabeth Fõrster-Nietzsche, quando, 

depois da doença do irmão, se viu senhora absoluta dos Arquivos que 

continham seus manuscritos. Elisabeth estava obcecada pela noção de 

que a vontade de potência era a idéia central da filosofia do irmão e  

interpretava essa idéia de uma maneira totalmente exteriorizada e 

superficializada, como uma afirmação de energia, de força, de superio

ridade e de domínio que, segundo ela, representava o traço essencial do 

caráter e da alma alemã. No período produtivo da vida de Nietzsche, ela 

 já tinha querido enviar seus livros ao imperador alemão; e, mais tarde, 

como já dissemos, quando Mussolini ascendeu ao poder, ela lhe enviara 

fotografias do irmão; recebera o embaixador italiano nos Arquivos} fora 

a principal promotora da representação no Teatro Nacional de Wqimar 

de uma peça intitulada Campo dei Maggio e escrita por dois autores, um 

dos quais Mussolini; conhecera Hitler na primeira representação dessa 

peça, quando o Fúhrer, sabendo que a irmã de Nietzsche estava na sala, 

apresentou-se ao seu camarote com um enorme  bouquet de rosas ver

melhas; mantivera, depois disso, com Hitler, uma relação que foi das 

mais cordiais. Essas relações naturalmente foram a origem de toda uma 

literatura em torno de Nietzsche, que o apresentava como o filósofo

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oficial do nazismo. A ambição desmedida de Hitler naturalmente en

contrava sua legitimação na vontade de potência de Nietzsche. Uma 

literatura nazista deveria, pois, forçosamente se desenvolver em torno dessa, interpretação grosseira do pensamento nietzschiano.

Mas embora nem todos os intérpretes de Nietzsche fossem adeptos 

do nazismo, muitos retiveram a noção básica de que a vontade de 

potência era a idéia central da filosofia nietzschiana. Retinham também 

o sentimento de que a origem dessa idéia era puramente empírica. 

Assim como Schopenhauer - tendo, no decurso da sua vida, observado 

o fenômeno empírico da vontade humana e caracterizado suas diferen

tes manifestações - chegara finalmente a uma concepção abrangente, que englobava todos os fenômenos vitais e mesmo os materiais e os 

subordinava a um impulso fundamental, permanente e identificado com 

a vontade como a essência do mundo, assim, também Nietzsche, tendo 

observado o fenômeno empírico da vontade de potência no homem e 

caracterizado suas diferentes manifestações, chegara também a uma 

concepção abrangente, à conclusão de que todos os fenômenos vitais se 

subordinavam a esse impulso fundamental e permanente. A famosa 

expressão de Nietzsche - “onde houver vida haverá certamente vontade, não vontade de viver mas vontade de potência”1- não significava, para 

aqueles críticos, o que significava para Nietzsche, isto é, a interpretação 

da vida como um projeto, mas sim o seu entendimento em termos  

naturalistas como objeto de uma observação de ordem empírica. Assim, 

não raro, esses intérpretes procuravam, de modo talvez inconsciente, 

encontrar, na natureza de Nietzsche, traços que revelassem uma dispo

sição autoritária, aspirações a uma situação de superioridade e domínio 

e, não os encontrando, se satisfaziam com a explicação de que se verificava nele a lei das compensações - de que, sendo uma natureza 

delicada, frágil, sensível, procurara compensar, com ideais de força, 

energia e mesmo violência, as lacunas, as deficiências de sua natureza, 

que tanto o afligiam.

Tudo isso nos mostra como estamos aqui diante de interpretações 

que atribuem às motivações de Nietzsche uma origem puramente empí

rica. Na realidade, depois da decepção wagneriana, Nietzsche contri

buíra, de um certo modo, para uma tal situação, parecendo estar agora 

unicamente inspirado pelo ideal científico. Suas homenagens a Voltaire, 

seu racionalismo empirista pareciam ter deixado para trás, sem possibi-

1.  Assim Falou Zaratustra (cap. “Do Domínio sobre Si Mesmo”).

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lidade de retorno, sua visão da Grécia trágica. Charles Andler, por 

exemplo, na sua obra monumental, caracteriza esse período como sendo 

de um “transformismo intelectualista”, o que parece indicar um traba

lho intelectual aplicado a uma matéria empírica preexistente em contínua transformação. Mas não é só ele que entretém essa opinião. A 

metafísica da vontade de potência tornou-se um lugar-comum entre 

uma grande variedade de comentadores, e mesmo Heidegger, como já 

mostramos, com sua compreensão especialíssima da história da metafísica, não hesita em designar Nietzsche como o último dos metafísicos

 

ocidentais.

Mas o que vem a ser um metafísico? - É naturalmente um pensador 

que procura compreender e explicar o mundo tal como ele é. A metafísica é uma ciência que procura ver além dos fenômenos, mas é uma 

disciplina que não pretende mais do que fazer ver, fazer compreender,  explicar. Uma metafísica da vontade, por exemplo, deve forçosamente

 

ser uma ciência que procura ver, além das vontades empíricas dos 

diferentes indivíduos, uma vontade supra-empírica que governe eventualmente os destinos do homem. A metafísica é defmitivamente uma

 

ciência e, por mais refinada que seja, por maiores que sejam os aperfeiçoamentos que possa eventualmente ter recebido, por mais capaz que

 

se mostre de captar a essência da realidade, há um limite que jamais 

poderá ultrapassar, um aspecto da atividade espiritual do homem a que 

 jamais terá acesso e que constitui um domínio reservado a uma atitude 

totalmente outra que o simples ver, compreender e explicar. A metafísica da vontade poderá, por exemplo, se inspirar na observação empírica

 

da vontade humana para transformá-la num princípio metafísico, mas 

não poderá jamais inspirar a vontade humana a ser algo diferente 

daquilo que ela habitualmente é no mundo empírico, predispô-la a uma 

metamorfose e, eventualmente, a uma profunda transformação. Para 

isso, é necessário que haja não simplesmente uma visão, uma compreensão ou uma explicação da vida, mas um projeto - um projeto de vida,

 

cuja estrutura, métodos empíricos não estão em condições de apreciar.

Podemos vislumbrar, assim, que a famosa “metafísica da vontade 

de potência” de Nietzsche não pode ser senão um mal-entendido. A 

vontade de potência nietzschiana, transformada em princípio explicativo do universo, deixaria, por exemplo, sem explicação sua faculdade  

camaleônica de transformar-se a ponto de se tornar irreconhecível e de 

só poder ser identificada pelo fato de ser fiel a um mesmo projeto de 

vida. Quando se tem consciência dessa circunstância, está-se pronto

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para acolher a suspeita de que, em Nietzsche, o que é fundamental é o 

projeto de vida e não a vontade de potência e que esta última é apenas  

uma tradução, em termos de psicologia e de realidade empírica, de uma 

experiência cultural que antecedeu a toda elaboração do conceito de 

vontade de potência em Nietzsche e que, na história do Espírito, só 

encontra paralelo na experiência cultural de Goethe, tão bem descrita 

na famosa carta de Schiller.

Essa experiência cultural, que é como que uma antecipação do 

futuro pensamento de Nietzsche, foi a base, a proposta explosiva sobre  

a qual Nietzsche edificou seu projeto. O que se considera sua obra é, 

num certo sentido, sua vida, influenciada por aquela proposta explosiva e por aquele projeto que constituem propriamente sua obra verdadeira. 

Se admitirmos que Sócrates e Platão não constituem duas personalidades distintas e sim uma unidade espiritual, que não pode ser fragmentada, teremos, então, o mesmo tipo de relacionamento de vida e de obra 

que encontramos em Nietzsche. No Sócrates platônico, é a obra que 

influencia a vida e não o contrário. É a obra de Sócrates que influencia 

a vida de Platão, embora os  Diálogos dêem a impressão de que é a vida 

de Sócrates que influencia a obra de Platão. Temos aqui um primeiro ponto de contato entre Sócrates e Nietzsche. Embora o filósofo alemão 

dê, a muitos de seus leitores, a impressão de que suas preocupações  

pessoais estão continuamente invadindo seus textos, é exatamente o 

contrário o que sucede: seu projeto de vida, sua obra intervém em cada 

uma de suas ações, e é essa intervenção que se reflete em seus livros.

Mas em que consiste esse projeto de vida a que já nos referimos 

tanto e que nos pareceu mais fundamental para a compreensão de sua 

obra do que a própria “vontade de potência”? - Consiste, antes de mais 

nada, numa “maneira de sentir”, de um certo modo análoga à “maneira 

de sentir” que Goethe procurara e conseguira adquirir. Uma maneira 

de sentir helénica, mas não uma maneira de sentir clássica - uma 

maneira de sentir trágica. Essa diferença englobava, na realidade, duas 

diferenças bem diversas - uma que dizia respeito aos métodos de 

aquisição, outra que dizia respeito à realidade adquirida. Goethe realizara sua transformação por métodos predominantemente conscientes,

 

empregando-se a fundo para adquirir, para a sua poesia, uma sensibilidade clássica; Nietzsche realizara a sua dè forma predominantemente 

instintiva, inconsciente, embora o tenha feito por meio de estudos 

rigorosos e extensos. O que visava era transformar-se num educador que 

tivesse sempre diante de si o modelo do homem trágico, capaz de

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afrontar tudo o que há de terrível na existência, o modelo do homem 

dionisíaco, capaz de ser cruel consigo mesmo, sem qualquer garantia de 

uma forma apolínea que viesse salvá-lo dessa crueldade. Um homem, 

entim, em quem a realidade da existência se sobrepusesse sempre à 

idealidade da aparência. Um tal homem deveria considerar a existência 

como valendo por si mesma, sem que houvesse necessidade de adorná-la 

com outros ingredientes. Existência e valor eram assim confundidos 

numa mesma visão afirmativa que inviabilizava qualquer qualificação 

pessimista ou otimista. Foi essa a visão do homem dionisíaco utilizada 

mais tarde, quando a obra incidiu sobre a vida para a legitimização da 

crueldade e, de um modo geral, para a avaliação das diversas formas  

pelas quais se manifestava a vontade de potência - vontade de dominar, 

vontade de suprimir, vontade de destruir, que colocava os mais fracos à 

mercê dos mais fortes, mas que podia também, por um  renversement 

 d ’alliances, colocar os mais fortes à mercê dos mais fracos. Ao acompanhar a vontade de potência em contínuas transformações através dos

 

meandros por onde ela passava, Nietzsche não perdia de vista seu  

projeto de vida, que era caracterizar onde se encontrava a meta digna 

de um esforço e de uma aspiração - meta que justamente dependia da 

constelação de forças que se formasse no âmbito daquele projeto.O projeto dionisíaco de Nietzsche não podia, pois, ser reduzido a

 

um princípio metafísico, da mesma forma que o projeto que corresponde à ignorância socrática não poderia ser reduzido à teoria das idéias. É essa dupla diminuição que encontramos na obra de Heidegger. E, em 

virtude dela, que o autor de O Ser e o Tempo pôde caracterizar a história 

da metafísica como uma evolução que se situa entre Platão e Nietzsche 

e que devia agora cessar, por ter-se exaurido o processo que dera início 

a um retraimento e a um encobrimento da realidade do Ser, confundido 

que era, então, com a realidade de um simples valor.

Heidegger, apesar de tudo, sentiu que havia uma afinidade entre 

Sócrates e Nietzsche. Sentiu sobretudo que, para combater com mais 

eficácia o projeto dionisíaco de Nietzsche, devia começar por minar as 

bases do projeto socrático. A teoria das idéias poderia ser subsidiaria- 

mente considerada uma metafísica, mas ela se refere primordialmente 

a um projeto de vida, um projeto que faz dessa vida o objeto de uma ação educacional capaz de transformar o ser humano num participante 

da realidade divina. No projeto platônico, o ser é revelado ao mesmo 

tempo que o valor, e o ser não se revelaria autêntico se o valor não se  

revelasse igualmente autêntico. A idéia de que o valor poderia constituir

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um impedimento à revelação autêntica do Ser resulta da crença de que 

se pode ter uma revelação autêntica do Ser sem se ter passado pelo 

processo educacional, projeto de vida que está na base da filosofia 

socrático-platónica. E porque na filosofia de Platão, o elemento essencial é esse projeto educacional e não a metafísica, que se torna fútil a

 

questão heideggeriana de saber se o valor é ou não uma revelação 

autêntica do Ser. Só a opção heideggeriana de fazer da metafísica o eixo 

principal da filosofia platônica poderia legitimar sua decisão no sentido 

de caracterizar o valor como uma revelação inautêntica do Ser. Também 

só essa mesma opção, feita com relação à filosofia de Nietzsche, poderia 

legitimar seu desconhecimento da posição central que tem nessa filoso

fia o projeto dionisíaco de fazer do valor uma expressão imediata e insofismável da realidade do Ser.

É porque as filosofias socrático-platónica e nietzschiana constituem 

projetos de vida, que se pode dizer que nelas a obra influencia a Vida. As diferentes produções intelectuais e artísticas que semeiam a história

 

da cultura têm sido geralmente obras que não constituem projetos de 

vida. Podem eventualmente se transformar em tais, mas essa transformação é aleatória e depende das circunstâncias históricas. A obra de

 

um Homero, por exemplo, foi um projeto que, só séculos mais tarde, foi 

se realizando. As obras de um Aristóteles, de um Paulo de Tarso foram 

projetos de vida que surgiram séculos depois da morte deles, os projetos 

medievais de vida. As obras dos renascentistas italianos e a de Lutero 

foram os projetos de vida do homem moderno e contemporâneo. Só as  

filosofias do Sócrates platônico e a de Nietzsche parecem constituir 

exceções a essa regra; só nelas se vêem as obras exercendo uma influência imediata sobre a vida - e a tal ponto, que é sobre os próprios autores

 

dessas obras que as influências começam a se fazer sentir.

O caso do Sócrates platônico é sui generis. Não se tem, em toda a 

história da cultura, notícia de um outro exemplo de união espiritual tão 

profunda. Não se tem notícia da existência de um discípulo que tenha 

tido a estatura do mestre e que, ao mesmo tempo, tenha afastado 

qualquer veleidade de sublinhar tal posição marcando diferenças. Não 

se tem notícia de um discípulo que se tenha tornado grande e mesmo 

admirável, não em virtude de progressos ou aperfeiçoamentos realizados na obra do mestre, mas em razão mesmo da fidelidade, da escrupulosa exatidão com que foram assimilados seus ensinamentos. Platão é 

muito mais do que um discípulo. É muito mais do que uma testemunha, 

do que um companheiro de pesquisa, é também protagonista do drama

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que testemunha. É muito mais do que um intérprete de Sócrates, é 

também um intérprete de si mesmo. Platão interpretara a morte de 

Sócrates como um símbolo do conflito que surgira entre a autoridade 

do Estado e a autonomia do indivíduo. Mas interpretou também sua 

própria renúncia à vida e à carreira política como uma segunda morte 

a que era condenado e que o levava a transferir, para a intimidade da 

vida do indivíduo, todos aqueles elementos que faziam parte da vida 

exterior das comunidades.

Há, portanto, no caso do Sócrates platônico, uma influência visível e imediata da obra sobre a vida. A morte de Sócrates, que fez, sem  

dúvida, parte de sua obra, de seu projeto de vida - o projeto do indivíduo 

de afirmar sua autonomia em face do Estado -, representa também o 

momento culminante dessa obra. Essa morte exerceu sobre a vida de 

Platão uma influência decisiva; uma influência a tal ponto determinante, que seus contornos como que se reproduziram na renúncia platônica à

 

vida política. Os  Diálogos  de Platão, a  República,  As Leis  não são 

simplesmente uma rememoração, um registro da passagem de Sócrates 

pelo mundo: são também um monumento para que sua morte jamais 

seja esquecida, para que jamais se perca de vista que, somente através 

dela, o futuro poderá fazer sentido.

No caso de Nietzsche temos um fenômeno idêntico. Sua filosofia 

naturalmente não resulta da união espiritual profunda realizada por 

dois indivíduos. Por isso a influência da obra sobre a vida tem logicamente, no seu caso, um sentido diferente daquele que ocorre no caso 

do Sócrates platônico. A influência da obra sobre a vida, neste último, começa com a morte de Sócrates; ela começa, no caso de Nietzsche, já

 

nos tempos de sua juventude. A partir de então, toda a sua vida foi repetidamente influenciada por um projeto que já exprimia o essencial 

de sua obra. O leitor provavelmente estranhará que estejamos aqui identificando projeto com obra - habituado que está a ver na obra a

 

execução de um projeto. Mas o projeto de vida, tal como o estávamos  

considerando aqui, não é um projeto que aguarda sua execução, mas um 

projeto que já foi executado - por conseguinte, no sentido mais rigoroso 

da palavra, uma obra. Quando Sócrates se recusou a reconhecer a justiça 

do Estado e, ao mesmo tempo, aceitou a imposição que lhe foi feita de beber a cicuta (poderia ter-se evadido, como queriam os amigos), não 

concebeu simplesmente um projeto de vida - executou-o plenamente, 

oferecendo assim, a Platão, a obra que deveria transformá-lo. Quando 

Nietzsche, depois de escrever  A Origem da Tragédia,  recusou-se a

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aceitar a justiça da comunidade científica a que pertencia, quando, ao 

mesmo tempo, aceitou o opróbrio que caíra sobre ele (poderia ter 

tentado se defender, ao invés de deixar que só o fizesse um amigo), já 

tinha realizado uma obra, pois já havia vivido aquele momento como sua 

proposta explosiva, a conseqüência inevitável de um empreendimento a 

que não pudera se furtar. A Origem da Tragédia constituiu, para Nietzs- che, sua morte no mundo acadêmico. Esse livro, que correspondia 

praticamente a um suicídio (como o ato de Sócrates bebendo a cicuta), representava também uma obra, uma vitória, uma conquista que traria 

consequências larguíssimas à sua vida futura. Sócrates, quando bebeu a 

cicuta, sabia que havia, entre seus discípulos, um que se chamava Platão. Nietzsche, quando aceitou o opróbrio da comunidade científica a que 

pertencia, não ignorava que a esse opróbrio correspondia a esperança 

de uma aurora gloriosa. Era preciso morrer para uns para renascer para 

outros - fórmula socrática que Nietzsche assimilou. É curioso, é paradoxal que a mais formidável, a mais violenta, a mais iconoclástica das 

críticas que, ao longo dos séculos, a legenda de Sócrates tenha sofrido,  

tenha sido apresentada por quem mais de perto, e como que instintivamente, seguia seus passos, repetia seus gestos e adotava, com solicitude, 

seus modelos. Repudiando Sócrates, Nietzsche fazia a primeira grande 

interpretação de si mesmo. Imitava Sócrates, que repudiara os deuses 

da mitologia e da cosmologia grega, como se adivinhasse que ele próprio 

iria se tornar o centro de uma nova cultura. No caso de Nietzsche, é 

difícil prever-se o que o futuro poderá reservar-lhe. Mas nenhum outro 

pensador do século passado ou do presente tem, como Nietzsche, a chance de ganhar uma legenda que possa se comparar à de Sócrates -  

uma legenda que, como nos diz Ernst Bertram,

sobe lentamente ao céu estrelado da Memória humana; que parece hab itarsucessivamen-

te cada uma das constelações místicas do zodíaco, cada uma das doze grandes “ Moradas

do Céu”, como se ela tivesse nascido nessa constelação, como se ela aí se sentisse

verdadeiramen te em casa; e que, quando possui um poder de revolução sobre si mesma

de tal intensidade que os homens a qualificam de eterna, ascende por gravitações

sucessivas em direção ao pólo; tão alto que, como uma constelação setentrional, nunca

mais desce abaixo da linha de horizonte da nossa memória.

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3. A UNIDADE DAS VIRTUDES 

E A CORAGEM ESPIRITUAL

Quando o Sócrates platônico, antes de ir com Hipócrates encontrar 

Protágoras, tenta saber quais são as razões do jovem amigo para desejar 

tanto esse encontro, verifica, pouco a pouco, que elas são vagas e 

inconsistentes. Hipócrates quer beneficiar-se dos ensinamentos de Pro

tágoras, mas não sabe exatamente o que ele ensina. Quando, mais tarde, 

os dois chegam à presença do sofista, Sócrates repete sua questão: 

Hipócrates deseja passar algum tempo na companhia de Protágoras, 

mas gostaria de saber antes o que resultaria dessa convivência. Dirigindo-se a Hipócrates, Protágoras responde: “Depois de cada dia que 

passar na minha companhia você se tornará melhor”. Mas Sócrates  

pergunta ainda: “Se tornará melhor em quê?”

O diálogo em que estão narrados esses fatos forma com o Górgias 

e o Meno o tripé em que repousa a majestosa estrutura do pensamento 

socrático-platónico. O problema de que se ocupam é o de saber se a 

virtude pode ser ensinada. Ensinar a virtude é, sem dúvida, a mais nobre 

tarefa que possa existir, e ninguém mais do que Sócrates está consciente 

desse fato, quando interpela Protágoras. Há, entretanto, em torno dessa 

tarefa, um certo número de dúvidas. O que vem a ser a virtude? Existe

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uma só ou várias virtudes? É ela ou são elas transmissíveis pelo conhecimento? - Hipócrates queria entregar-se aos cuidados de Protágoras,

 

sem conhecer que resposta haveria para essas perguntas. E agora 

Sócrates, em seu benefício, questiona o sofista, não tanto para mostrar 

ao amigo os riscos que corre, quanto para desimpedir o terreno, criando 

condições favoráveis para a execução daquela nobre tarefa.

Ensinar a virtude. No período feudal da Grécia, não se fazia distinção entre virtude política e virtude individual, e essa virtude indiferenciada era transmitida, seja por via hereditária, seja por meio de exemplos

 

colhidos nas relações próximas com as quais convivia o aristocrata. 

Quando se estabeleceu a democracia, essa forma de transmissão da 

virtude desapareceu, surgindo, então, a necessidade de se criar uma 

nova forma que a substituísse. Os sofistas se apresentaram para suprir 

essa necessidade. A virtude, segundo eles, podia ser ensinada. Mas já 

então a virtude feudal se havia diferenciado em virtude política e em 

virtude individual. Sócrates, no seu confronto com Protágoras, apresenta argumentos de grande força para provar que a virtude política não 

pode ser ensinada. Na realidade, essa não era sua última palavra sobre 

o assunto. Sócrates acreditava, no fundo, que a virtude em geral pudesse 

ser ensinada, mas não na forma preconizada pelos sofistas. Somente  

depois de estabelecer que a virtude individual podia ser ensinada, 

acreditava Sócrates ser possível reconhecer que a virtude política também pudesse ser ensinada. Mas qual era o porquê dessa crença? - Sem 

dúvida, não passara despercebido a Sócrates que a diferenciação entre 

virtude política e virtude individual era uma das causas do obscurecimento que havia sofrido a compreensão do que fosse a virtude. A

 

democracia fora a causa dessa diferenciação e era, portanto, também a 

causa desse obscurecimento. Quando todos os homens são iguais, não 

há ninguém que possa assumir a posição de educador da sua sociedade. 

Existe a dificuldade de princípio causada pela igualdade e a dificuldade 

de fato causada pelo obscurecimento. Nessas condições, o aparecimento de uma classe como a dos sofistas era, por assim dizer, inevitável. Os 

sofistas se apresentavam como educadores da sociedade como um todo. 

Mas, na realidade, o que ocorria era que eles pensavam na educação, não como um esforço a realizar-se para a sociedade como um todo, mas 

como uma ação a exercer-se unicamente sobre seus líderes e a exercer- 

se sobre eles encarados, não como homens comuns, mas como líderes 

que desejavam adquirir os meios mais eficazes para chegar ao poder.

74 MARIO VIEIRA DE MELLO

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Assim se forma a diferenciação entre a virtude política e a virtude 

individual. A educação, para os líderes, não visa desenvolver virtudes 

idividuais, mas virtudes capazes de dotar um homem de poder sobre 

as massas. Paralelamente a esse desenvolvimento, um outro fenômeno 

ocorria. A educação da época feudal dos gregos era regulada pelo 

princípio da  arelé, da excelência. Mas agora, nos tempos democráticos, o princípio que regula a educação deixa de ser a  areté para se tornar o 

princípio do prazer. Tanto a virtude política quanto a virtude individual passam a ser reguladas pelo princípio do prazer. A sofística e a retórica,

 

principais instrumentos nessa determinação da virtude política, utilizam 

o princípio do prazer para chegar a seus objetivos. O líder, a ser formado 

pela nova educação, deve aprender sobretudo os métodos de proporcionar prazer às massas. Sua sabedoria e sua eloqüência devem lisonjear 

as massas, acenando para aquilo que lhes agrada mais. E a virtude 

individual igualmente deve ser regulada pelo princípio do prazer.

É por isso que Sócrates fingiu admitir esse princípio, quando procurou demonstrar que a virtude individual pelo menos podia ser ensinada. Essa demonstração era necessária como uma primeira etapa para

 

o seu objetivo final, que era provar que não só a virtude individual como 

também a virtude política podiam ser ensinadas - objetivo que foi atingido, quando Sócrates abandonou o princípio do prazer para recuperar o princípio da  aretc,  da excelência, como norma reguladora de

 

uma educação que visasse a virtude integral.

Sócrates, assim, abandonando o princípio do prazer, recuperou a 

noção dos tempos feudais da Grécia, da  areté,  da excelência, como 

norma reguladora de uma educação que visava a criação de uma virtude 

integrada. Mas essa virtude naturalmente não era a mesma da época 

feudal, pois era obtida através de um processo que tinha, como ponto 

de partida, a virtude individual, produto da diferenciação operada na 

época democrática. A virtude individual, que serviu de ponto de partida 

para esse processo de recuperação socrática, foi a coragem. Foi analisando a coragem, que Sócrates conseguiu refutar a perspectiva do 

princípio do prazer, ao mesmo tempo que provava que a virtude podia  

scr ênsinada. Uma vez conseguido isso, não lhe restava senão consolidar 

essa refutação do princípio do prazer e substituí-lo definitivamente pelo 

princípio da  areté, da excelência. Sócrates, com isso, recuperava totalmente a visão de uma virtude integrada, embora essa visão apresentasse, agora, o caráter não mais de uma realidade objetiva passada, mas o de

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um projeto de realidade, objetiva naturalmente, mas não mais que um 

projeto que contemplasse o futuro.

A coragem teve, pois, na obra de Sócrates, um papel essencial. Foi 

ela que permitiu ao filósofo enfrentar o princípio do prazer e mostrar 

como ele era insuficiente como norma reguladora das ações humanas. 

Se, como pensa o homem comum, prazer e bem são a mesma coisa, 

ninguém preferirá o que é menos bom, isto é, o que é menos prazeroso. 

O que se pensa ser uma deficiência moral - ser dominado pelo prazer, 

isto é, pelo que é bom - é, na verdade, algo diverso. Se o homem comum 

prefere o que é menos bom, isto é, o que é menos prazeroso, não é, 

segundo o hedonista, em virtude de uma deficiência moral, mas sim de 

um erro de julgamento. Ele assim o faz, porque se engana sobre a 

quantidade de prazer envolvido. O engano é cometido involuntariamen

te - pois, afirma Sócrates, com seu famoso paradoxo: “Ninguém erra 

voluntariamente”. Ninguém deseja voluntariamente o menos bom. Nin

guém deseja voluntariamente o mal. Até aqui, o princípio do prazer 

parece ser inatacável. A possibilidade de enganar-se sobre a quantidade 

de prazer obtida não priva esse princípio de sua função reguladora das 

ações humanas. Cabe-nos apenas evitar tais enganos. Mas o problema 

da coragem coloca-nos diante de uma opção fundamental. Trata-se não 

de escolher entre um prazer maior ou menor, mas de enfrentar um 

perigo que o homem comum teme. Trata-se, na realidade, de enfrentar 

um mal. Esse enfrentamento é de uma certa maneira um desejo, pois o 

mal poderia ser evitado, se não o desejássemos. Mas o que vemos, então? 

O homem corajoso avança em direção ao mal, ele o deseja voluntaria

mente.

Quando chegamos a esse ponto, assistimos ao colapso do princípio do prazer. Se esse princípio continuasse vigente, o homem corajoso 

deveria agir como o covarde, pois todos os dois seriam incapazes de 

avançarem direção ao que é terrível, isto é, desejando o mal. A diferença 

entre eles é que o covarde é regido pelo princípio do prazer, enquanto  

o corajoso é regido pelo princípio da  areté,  da excelência. Um teme a 

morte, o outro teme a desonra, o aviltamento, a perda da excelência. Um 

teme a morte em virtude de sua ignorância do princípio da areté, o outro 

teme a desonra, porque despreza o princípio do prazer.Vemos assim a importância do problema da coragem para Sócrates. 

Não só foi ele o meio eficaz de destruir a credibilidade do princípio do  

prazer, como norma reguladora das ações humanas, como se torna no 

 Protágoras, o que é fato sabido, o instrumento principal na legitimação

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da equação virtude = conhecimento e, por conseguinte, da convicção 

de que a virtude pode ser ensinada. E há mais ainda. A concepção da  

virtude coragem adquire, ao mesmo tempo, com Sócrates, um caráter 

mais profundo, mais espiritual do que o que havia sido o seu, anterior

mente. Antes, a coragem havia sido uma mera qualidade física ou, 

quando muito, uma disposição moral para enfrentar perigos que decor

riam da fidelidade a certos princípios. Agora, a coragem mostrava 

também ter uma qualidade espiritual, na medida em que contribuía mais 

que qualquer outra virtude para restabelecer a vigência do princípio de 

 areté como norma reguladora das ações humanas. O princípio de  areté 

não era um princípio qualquer. Era a fonte de todos os impulsos que 

contribuíam para a formação da personalidade ética do homem. Era, 

portanto, essencialmente um princípio criador. Sem o ideal da  areté, 

qualquer concepção de um processo educacional se perdia no vago, no 

informe, no vazio. A coragem socrática, que recuperou esse ideal, 

revelou-se, assim, extremamente criativa, espiritual. E não é só no plano 

teórico que devemos realçar sua importância - a vida de Sócrates, o 

desafio que representou face à realidade adversa do Estado, as ameaças 

e os avisos que a circundaram e finalmente a morte que a coroou são outros tantos elementos que devemos associar a essa biografia privile

giada.

Quando se examina com cuidado a obra de Nietzsche, chega-se à 

conclusão de que a primeira condição requerida para sua abordagem 

eficaz e proveitosa consiste em considerá-la essencialmente sob o pris

ma da coragem. Coragem sim, mas não a coragem física, a coragem que 

é necessária simplesmente para viver; não a coragem moral, que se confunde facilmente com a coragem física e nada mais é do que o 

destemor das consequências físicas de nossas atitudes morais (a cora

gem de um Lutero, por exemplo, na Dieta de Worms); mas a coragem  

espiritual - coragem difícil de ser definida, porque ela é, no sentido mais 

rigoroso da palavra, uma qualidade, uma virtude nova. Na realidade, 

uma tal caracterização é, e ao mesmo tempo não é, uma verdade plena. 

Sê-lo-á, se julgarmos que, depois de mais de dois mil anos de um eclipse  

lotai, essa virtude teria o direito de apresentar-se outra vez como uma 

qualidade nova. Nietzsche, para representar para si mesmo a virtude 

nova que sentia dentro de si, invocou as famosas palavras de Turenne: 

“Treme, Carcaça, mas tremerias muito mais se soubesses aonde vou te 

levar”. Mas se tivesse podido evocar, numa só frase, a personalidade e

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I

a missão de Sócrates, teria coberto de maneira muito mais completa o 

conjunto de problemas que essa virtude encerrava.

Nietzsche, com efeito, tinha diante de si problemas que, num outro registro, lembram fortemente os problemas que havia enfrentado Sócra

tes. Era natural que situaçõe,s parecidas suscitassem o aparecimento de 

meios, de instrumentos, de virtudes semelhantes para resolvê-las. Sócra

tes vivera num período de crise, de decadência; decadência de uma 

ordem social, cultural e política que não podia mais ser recuperada, mas 

que continha elementos capazes de contribuir para a edificação de um 

futuro melhor. Nietzsche viveu num período de crise, de decadência; a 

decadência de uma ordem social, cultural e política que também não podia ser recuperada, mas que continha igualmente germes de um 

grande futuro. O passado que inspirava Sócrates era um passado próxi

mo, um passado que podia oferecer vivas esperanças de um aproveita

mento em grande escala; o passado que inspirava Nietzsche era um 

passado remoto, tão remoto, que o próprio Sócrates, incluído nesse 

passado, podia por momentos parecer um elemento inaproveitável, uma 

força incapaz de contribuir para a edificação do futuro que antevia 

Nietzsche. Mas podia dar essa impressão por momentos apenas. Havia, 

entre as duas situações, a de Sócrates e a de Nietzsche, uma tal seme

lhança, havia, entre as faculdades que essas situações suscitavam, um tal 

parentesco, que distorções ocasionais que pudessem obscurecê-lo eram 

logo corrigidas de modo que o fato fundamental, a identidade dos dois  

destinos ficasse solidamente restabelecida.

Como na filosofia de Sócrates, na filosofia de Nietzsche a virtude 

da coragem desempenha um papel essencial. O grande inimigo que 

Sócrates tivera que enfrentar fora o princípio do prazer, que represen

tara, para o filósofo ateniense, o principal obstáculo ao seu empenho de 

fazer reviver o princípio da are té. O grande inimigo de Nietzsche fora 

tudo o que se opusera a seu ideal de grandeza, versão moderna do 

princípio da  areté  - o princípio do prazer em primeiro lugar, mas 

também suas manifestações mais recentes: a indiferença pelo dioni

síaco da comunidade científica a que pertencia e o histrionismo não 

só da comunidade wagneriana que o acolhera, como também do 

mundo da arte e da cultura do seu tempo. A coragem de Sócrates  

fora necessária para fazer reviver uma antiga tradição dos helenos.  

A de Nietzsche seria para fazer reviver um princípio que se afirmara 

claramente na literatura trágica dos gregos.

7»  MARIO VIEIRA DE MELLO

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Para enfrentar tais inimigos, era preciso, antes de mais nada, ter a 

coragem da solidão. Sócrates foi, mais do que tudo e apesar das suas 

conversas e discussões, um solitário. Sua ignorância, sua ironia, seu  

demônio o isolavam do resto do mundo. Sócrates era, na sua época, um 

exemplar humano absolutamente original, suigeneris, que não dispunha 

de meios de entrar em comunicação direta com seus semelhantes. Assim 

também era Nietzsche. Sócrates sabia que sua solidão, seu isolamento 

do resto da comunidade eram vistos com suspeição e terminariam por 

indiciá-lo como um criminoso. Nietzsche também sabia que sua solidão, 

seu isolamento do resto da humanidade eram vistos com suspeição e 

terminariam por indiciá-lo como um ser anormal. A comunidade ate

niense não podia admitir que um dos seus membros não participasse, 

não estivesse solidário com seus propósitos e ideais. Assumir sua soli

dão, assumir seu isolamento era, portanto, já por si mesmo um ato de 

coragem. Mas Sócrates não se contentara com isso. Paradoxalmente, ele 

como que divulgava seu isolamento, fazia todo mundo sentir a realidade 

de sua solidão. Seu eterno questionamento não podia senão produzir o 

efeito de tornar evidente sua inconformidade com as idéias e com as 

opiniões da comunidade em que vivia. Dir-se-ia que Sócrates, toda a sua 

vida, procurou levar a um desenlace o conflito potencial que existia entre 

o seu modo de ser e o modo de ser da comunidade ateniense.

Nietzsche também era assim. Apesar das amizades e do devotamen- 

to de alguns seres; apesar das inúmeras cartas e do desejo de um 

discípulo, Nietzsche foi tanto quanto Sócrates um ser solitário. As etapas 

do caminho que o levam a uma completa solidão são, entretanto, mais 

visíveis do que as que levaram Sócrates pelo mesmo caminho. Primeiro 

a ruptura com a comunidade científica a que pertencia; em seguida a 

ruptura com o círculo wagneriano; abandono dos sonhos de uma vida 

de estudos em comum com Lou Salomé e com Paul Rée; ruptura com  

o grande público após a publicação do  Zaratiistra\  solidão final em 

cidades e lugarejos escolhidos segundo critérios de conveniência mera

mente física.

Essa solidão era, ao mesmo tempo, procurada e sofrida. Isso parece 

tornar a coragem de Nietzsche menor do que a de Sócrates. Mas o fato 

de não termos, no que diz respeito aos problemas da solidão, conhecimento de qualquer expressão de amargura por parte do ateniense não 

torna maior sua coragem. Sócrates não precisou procurar a solidão; ela 

como que veio a seu encontro, e sua coragem consistiu mais em aceitá-la 

como um fato natural. Nietzsche, ao contrário, precisou procurar a sua

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e certamente o fez com mais afã do que Sócrates - e a esse maior afã 

correspondia naturalmente um abalo emocional maior, quando encon

trava o que procurava. Sócrates como que foi se acostumando pouco a 

pouco a viver na solidão. Nietzsche não fugia das consequências inevitáveis da sua procura que foram, primeiro, os abalos emocionais causa

dos; em seguida, o ritmo vertiginoso de um pensamento totalmente 

isolado; e final e tragicamente a loucura.

Mas não é naturalmente do ponto de vista puramente biográfico 

que a coragem constitui um traço comum nas obras desses dois filósofos.  

Já vimos o papel importante que a virtude da coragem desempenhou na 

refutação e recuperação socráticas, respectivamente do princípio do 

prazer e do princípio da arcté como normas reguladoras da educação e 

da cultura. Vimos também como, para definir o tipo de coragem que 

reclama para a compreensão dos nossos tempos, Nietzsche utiliza as 

famosas palavras com que Turenne apostrofa o próprio corpo em plena 

ação militar. Essa é uma coragem que Nietzsche espera de nós e, ao 

mesmo tempo, sente dentro de si. Por que é ela tão necessária? Que 

perigo estamos correndo? Essa nossa ignorância revela o tipo de cora

gem que Nietzsche está proclamando - uma coragem que não é só 

bravura, mas também inteligência. Q fato de que desconhecemos o tipo 

de perigo que corremos mostra que nos falta não somente coragem para 

enfrentá-lo como inteligência para compreender qual seja sua natureza.

A coragem que Nietzsche nos propõe nada tem a ver com a coragem 

que é do nosso conhecimento habitual. A coragem de Sócrates também 

nada tinha a ver com a coragem de Protágoras. Essa era o resultado de 

uma atividade instintiva. Aquela era o resultado do conhecimento do 

que deve ser e do que não deve ser evitado. A coragem que é do 

conhecimento habitual do homem contemporâneo é também o resulta

do de uma atividade instintiva. Mas como nos mostra a frase de Turenne 

que Nietzsche utiliza como epígrafe do Livro V da Gaia Ciência,  a 

coragem do filósofo é o resultado de uma aliança entre heroísmo e 

veracidade, entre bravura e inteligência. Assim como a nova concepção 

de coragem intuída por Sócrates permitia-lhe refutar o princípio do 

prazer e substituí-lo pelo princípio da  arcté,  a nova concepção de 

coragem intuída por Nietzsche permitia-lhe rejeitar o ideal de felicidade e substituí-lo pelo ideal de grandeza.

Que significa essa aliança entre inteligência e bravura? - Significa 

naturalmente a mesma coisa que significava para Sócrates. Significa que 

inteligência é bravura e que bravura é inteligência. (Em termos socráti-

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cos: que coragem é sabedoria e que sabedoria é coragem.) É essa 

extraordinária aliança que faz de Nietzsche uma figura ímpar dos tempos modernos. Nenhum pensador dos últimos séculos teve, como ele, o 

poder de combinar e de fundir, numa faculdade única, essas duas 

aptidões da alma humana. E por isso nenhum foi, como ele, capaz de 

desafiar e confundir a experiência, a perspicácia, o poder de análise, a 

variedade de perspectivas da crítica contemporânea; nenhum tampouco 

tem demonstrado uma tal capacidade de se manter sempre próximo de 

nós sem se deixar distanciar, como seria natural com o correr dos anos.  Lá se vão mais de cem anos desde que seu primeiro livro apareceu, e

 

suas idéias se discutem hoje como se apenas ontem tivessem sido 

divulgadas. Em torno de sua obra, avolumam-se paixões, inibições, correspondências, desencontros, idiossincrasias e afinidades. Nenhuma

 

aquisição definitiva, nenhum resíduo permanente parece, entretanto, resultar desse pulular de impressões contraditórias. Não existe, na 

época atual, unanimidade em torno de sua figura; e saber se essa 

unanimidade poderá algum dia existir já é, hoje, talvez uma questão com 

seu interesse próprio. Contrariamente a Kant, contrariamente a Des

cartes - muito discutidos ao serem publicados, totalmente incorporados ao patrimônio espiritual da humanidade, uma vez que lhes foi dado um 

tempo razoável para que se realizasse essa incorporação -, Nietzsche 

ainda hoje continua a ser objeto de uma perplexidade, que se traduz por 

vezes em diatribes, que se manifesta também através de adesões entusiastas e que não se ausenta nem mesmo quando há o  parti pris  de 

examinar sua obra com frieza e objetividade. A impressão de estranheza 

que produziu sobre seus contemporâneos parece ser, ainda hoje, um dos 

efeitos inescapáveis de uma incursão em sua obra.

Se procurarmos agora uma explicação para a situação que descrevemos, encontraremos logo um primeiro fato que parece irrecusável: a

 

violência do contraste entre a qualidade espiritual de Nietzsche e a 

qualidade do espírito da época em que viveu. Se tivesse vivido em outras épocas, Nietzsche, caso não tivesse sucumbido à loucura, certamente

 

teria sido, como o foi Sócrates, condenado à morte. O conflito que 

irresistivelmente se formou entre seu modo de ser e a realidade do 

mundo que o envolvia só poderia cessar com a derrocada de um dos dois 

elementos conflitantes: ou o mundo se transformava, e vencia Nietzsche, 

ou triunfava o mundo, e Nietzsche seria eliminado. Exatamente como 

no caso de Sócrates.

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Com uma variedade de nuanças que vão da mais irrestrita admira

ção a uma aprovação um tanto morna e das mais prudentes restrições à 

mais arrogante censura, diz-se de Nietzsche que é, ora o campeão do 

individualismo, ora o doutrinador do fascismo. Ora só se vêem nele 

estímulos e vastas descobertas, ora só taras, desequilíbrios e deficiên

cias. Os detectores dessas taras e deficiências empregariam melhor seu 

tempo procurando detectar os desequilíbrios e as taras do século em 

que viveu Nietzsche e, por extensão, a morbidez e as deficiências da 

época em que vivemos. Veriam, então, que nenhum pensador moderno 

ou contemporâneo seria comparável a Nietzsche na detecção dessas 

taras e desequilíbrios - nenhum sobretudo que fosse comparável na 

lucidez e na coragem com que essa operação foi realizada.

De uma certa maneira, parece inconcebível que possamos viver no 

mundo de hoje como se, ao redor de nós, tudo fosse normal e razoável. 

Parece inexplicável que não despertemos da letargia em que vivemos e  

que não nos ponhamos a correr pelas ruas gritando e imprecando contra 

tudo o que nos cerca. Entretanto, essa é a realidade. Vivemos como se 

estivéssemos no melhor dos mundos. De vez em quando, uma catástrofe, 

uma tragédia, um acontecimento insólito nos faz sentir que o mundo é 

governado de modo absurdo e irresponsável. Mas esse sentimento não 

nos ocupa muito tempo. Logo voltamos à rotina da insensibilidade e 

fazemos tudo para esquecer que vivemos num contexto de crise e de  

decadência.

E sobretudo por isso que a figura de Nietzsche é contestada. Se 

vivemos num mundo que nos parece normal, não será difícil duvidar da 

grandeza do nosso filósofo. Para isso, basta pensar que os valores do  

homem contemporâneo - alvo de sua crítica devastadora - não estão essencialmente comprometidos. Basta pensar que esses valores, de uma 

•certa maneira, poderiam ser recuperáveis, reavaliados por processos 

não tão violentos - o que parece inaceitável é pensar que tais valores 

estejam seriamente ameaçados.

Há, evidentemente, na biografia de Nietzsche, elementos que po

dem ser explorados por quem esteja à procura de índices negativos. Sua 

experiência da amizade - Proust caracteristicamente considerou que se 

baseava num equívoco; sua experiência do amor - que é por vezes 

descrita com uma comiseração importuna como se Nietzsche precisasse 

de alguma indulgência para ter seu comportamento emocional justifica

do perante a posteridade; sua doença - que explica, segundo alguns, 

seus excessos, suas injustiças, seus furores; e finalmente o obscurecimen-

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to de sua inteligência - que restará sempre como um último argumento 

para quem não se quer deixar convencer pelas suas intuições fulguran

tes: todos esses elementos são muitas vezes enfatizados com um objetivo 

único - fazer esquecer o contexto dentro do qual se situa a obra de 

Nietzsche, um contexto de crise e de decadência. Dir-se-ia, ao ouvir as 

palavras candentes de indignação de uma certa crítica de Nietzsche, que 

a época em que viveu era feliz e próspera, que a ciência, as artes, a 

cultura haviam chegado ao seu máximo de expressão e de realização; 

que a vida nunca fora tão harmoniosa, a fé dos homens tão profunda, 

seus talentos tão úteis e diversos; e que era uma lástima que uma voz 

insólita, discordante e ilegítima viesse perturbar os acordes harmonio

sos de uma civilização em ascensão com a denúncia de males que não 

existiam, que ninguém via e não podia ver, porque eram frutos de uma 

imaginação superexcitada e trabalhada por um processo doentio que 

deveria forçosamente levá-la à loucura.

A verdade é que, ao acusarmos Nietzsche, estamos, de um certo 

modo, procurando nos inocentar. O mundo não vai tão mal quanto  

pensa o filósofo, dizemos com nossos botões, a prova somos nós mesmos, 

pessoas boas e dignas, que se sentem bem neste mundo. Fala, nesses momentos, a voz da nossa covardia. Falta-nos coragem para acompa

nhar o filósofo na sua perigosa aventura. Falta-nos lucidez para com

preender que é esse um perigo que precisamos enfrentar. Assusta-nos 

a radicalidade do pensamento de Nietzsche. Assusta-nos a perspectiva 

da necessidade de um exame de consciência do qual resultariam conse

quências que não somos capazes de prever. Não estamos preparados 

para modificar nossa vida. Não estamos preparados para trazer à luz da 

consciência aquilo que sentimos instintivamente, isto é, que as coisas 

não vão bem, que existe dentro de nós um mal qualquer que nos está 

roendo as entranhas. Por isso nos deixamos levar pelas palavras super

ficiais de homens, covardes como nós, que pretendem ter descoberto a 

natureza desse mal. Homens que, por covardia, procuram se iludir e 

iludir os outros e por isso se esquivam a qualquer exame mais completo, 

evitando fazer penetrar mais fundo o bisturi da análise. Curiosamente 

ouvimos falar muito na crise que ameaça nosso mundo, embora, ao 

mesmo tempo, se proceda de modo sistemático a fim de que nunca se 

desvende a verdadeira face dessa crise. Impacientes com a inutilidade 

da retórica, ouvimos discursos anunciarem que a humanidade está 

prestes a cair num abismo e que só está retida pelas arestas já rachadas 

dos últimos penhascos. A imagem pode ser assustadora, mas são mais

 NIETZSCHE: O SÓCRA TES DE NOSSOS TEM TOS 8.1

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do que ridículos os métodos que propõem nossos retóricos para salvar 

a humanidade dessa queda fatal e iminente. Há uma desproporção 

imensa entre esses riscos e perigos e a organização de socorro que nos  

está sendo enviada. Hoje em dia, somos marxistas, liberais, freudianos, 

marcusianos, ecologistas, pacifistas, democratas, socialistas - e por quê? 

- Porque sentimos instintivamente que as coisas não vão bem, e não 

temos coragem de procurar o mal lá onde ele verdadeiramente se 

encontra.

Esses disfarces e pretextos têm talvez uma origem mais profunda. 

Talvez não se trate apenas do fato de procurar o mal no lugar errado.  

Nossa vida em geral sugere amiúde a impressão de que vivemos parali

sados pelo medo. Quando nos falam em coragem, nossa primeira reação 

é pensar que se trata de uma virtude ultrapassada. Não vivemos num 

mundo diferente, em que a grande novidade é o enorme desenvolvimen

to tecnológico a que chegamos? Neste mundo, que significação poderá 

ter uma virtude como a coragem? No plano físico, pelo menos, a 

coragem é uma virtude ultrapassada pelo desenvolvimento tecnológico. 

A ação corajosa de um indivíduo, de um soldado, por exemplo, se 

nulifica diante de máquinas de guerra infernais, diante da simples 

pressão de um dedo contra um botão capaz de provocar a mais espan

tosa explosão.

Essa é nossa primeira reação. Obedecemos aí, indubitavelmente, a 

uma lógica. Mas, ao fazê-lo, não nos perguntamos se não seria essa uma 

lógica de declínio e de decadência; não nos perguntamos se não existiria, 

por acaso, uma outra lógica, uma lógica de renovação e de recuperação.  

Uma lógica em que a coragem não fosse vista como uma virtude ultra

passada. Uma lógica que compreendesse os benefícios resultantes de uma aliança da bravura com a veracidade.

Não, não chegamos a fazer essa pergunta. O exemplo de Turenne 

está diante de nós, registrado pela história, mas passamos por ele sem  

compreender a mensagem que nos traz. E, entretanto, um exemplo mais 

vivo, mais próximo de nós do que a lição de Sócrates, mais distante e 

que exige, para sua compreensão, estudos aprofundados e uma certa 

capacidade de imaginação histórica. O exemplo de Turenne está diante 

de nós. E só Nietzsche, entre todos os modernos, foi capaz de captar o 

que ele tinha a nos dizer. Nietzsche toma Turenne como modelo, porque 

acredita numa lógica de renovação. Nietzsche acredita, porque a sente  

dentro de si, na força desse instinto que impulsionou Turenne. Acredita  

numa coragem feita não apenas de heroísmo, mas também de ciência;

 M MARIO VIEIRA DE MELLO

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numa coragem de quem sabia que o perigo não estava somente ali, a seu 

lado, mas bem mais longe, bem mais adiante; numa coragem de quem  

sabia, de quem conhecia o verdadeiro perigo; numa coragem que era 

bravura, mas era também intuição, compreensão do que era o perigo. Nietzschc toma Turcrnc como modelo para si, porque pensa que só da 

aliança desses dois instintos - a vocação para o heroísmo e a paixão pela 

verdade - poderia resultar a nova figura do filósofo que a crise de nossos 

tempos está a reclamar.

Nietzschc viveu numa época em que a influência do medo longe 

estava de ter chegado ao paroxismo de nossos dias. Seus primeiros  

sintomas se haviam, entretanto, manifestado no pessimismo de filósofos 

e de artistas, na procura de um mundo irreal, que fizesse esquecer a 

atualidade presente, numa domesticação e castração da cultura que 

evitasse seus impulsos mais fortes, na secularização do cristianismo de  

modo a reter suas promessas amenas e eliminar suas exigências mais 

rigorosas, na simulação de gestos fortes e atitudes enérgicas que pudes

sem preservar a imagem de um passado vigoroso e perdido. () medo  

agia assim, preventivamente, na esperança de que tais cuidados preser

vassem a humanidade de maiores perigos. Mas explodiu de repente a Primeira Ciuerra Mundial. Surgiu a necessidade de fabricar armas, 

instrumentos de destruição cada vez mais aperfeiçoados, cada vez mais 

destrutivos. A Primeira Cirande Ciuerra e logo depois a Segunda trans

formariam o mundo no paraíso da tecnologia. Só uma guerra contra 

outro planeta justificaria o aparecimento de uma tal profusão de armas. 

Chegamos ao momento em que se poderia, com a simples pressão de 

um dedo contra um botão, provocar a mais terrível explosão. Já então o 

medo, que crescera em relação direta ao desenvolvimento tecnológico, paralisava a vida de um modo geral. Num mundo tal como o nosso, que  

vive paralisado pelo medo, parece uma ironia cruel falar numa filosofia 

da coragem; num mundo que, apavorado pelos fantasmas criados por si 

mesmo, empilha febrilmente arma atômica sobre arma atômica, arma

zenando insensatamente um poder de destruição inverossímil; num 

mundo onde o terrorismo - doença das sociedades falidas - vai-se 

alastrando assustadoramente, transformando, num pesadelo sinistro, 

nosso futuro imediato; num mundo finalmente em que, como nos desenhos animados que excitam e obsedam a imaginação infantil, cresce, a 

olhos vistos, o vulto desmesurado, o espectro colossal do furor e da 

violência: que sentido tem, neste mundo, uma virtude como a coragem? 

- Nele o razoável seria pregar, aconselhar, receitar, como qualidade

 NIE TZSCHE: O SÓCRA TES DE NOSSOS TEM TOS S5

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obrigatória, a tendência oposta. Cultivar o medo. Cultivar o medo, 

porque ele significa a prudência elementar sem a qual não se chegará 

muito longe. Fazer todas as concessões, se somos estadistas e se não 

possuímos meios físicos de impor nossa vontade. Libertar presos, criminosos, embora não ignoremos que com isso só contribuímos para que se 

torne maior a criminalidade. Demitir ministros, gabinetes inteiros, renunciar às altas posições que se ocupa, se essa é a vontade dos criminosos. Entregar a receita do país inteira para salvar a vida de inocentes. Se

 

somos simples cidadãos, mostrar-nos cuidadosos ao extremo, porque 

essa é a maneira de sobrevivermos. Seria de bom alvitre pesar com  

atenção todas as palavras que dissermos para prevenir qualquer ofensa 

que possa causar a sensibilidade dos vizinhos. Uma vingança inesperada 

pode nos atingir. Nunca sair de casa sem olhar antes pelas janelas, de 

um lado e de outro, para vermos bem se não há alguém na rua que 

constitua uma ameaça. Tomar mesmo precauções maiores. Não seria 

demais comprar armas, revólveres, carabinas, metralhadoras, segundo 

a importância do patrimônio que se tiver a defender. O patrimônio 

mínimo é naturalmente a vida. Mas já para esse mínimo se precisa de 

medo, de muito medo, se quisermos realmente conservá-lo.

Como já dissemos, essa é a lógica do declínio e da decadência. É a 

lógica que faz objeções a uma filosofia da coragem. É a lógica dos que 

se pretendem inteligentes, lúcidos, realistas, e rejeitam, com um muxoxo 

de desprezo, uma figura como Nietzsche. Mas, no mundo envolto numa 

crise de que tantos se queixam, já se indagaram alguma vez se não é 

 justamente essa inteligência, essa lucidez, esse realismo que estão provocando a crise de que a justo título tanto se lamentam? Que fariam tais 

pessoas, se lhes fosse dito que precisamente essa inteligência, essa 

lucidez, esse realismo não são inteligentes, não são lúcidos, não são 

realistas porque lhes falta um ingrediente que seria o único capaz de 

legitimá-los? Que fariam elas, se lhes fosse dito que foi Nietzsche, e 

nenhum outro, quem mostrou, de modo insuperável, que sem esse 

ingrediente, sem a virtude da coragem, a inteligência não é mais do que  

um equívoco, a lucidez mais do que uma ilusão, o realismo mais do que 

um mal-entendido? Na verdade, Nietzsche mostrou isso, não elaboran

do teorias, mas exercendo-se em todo tipo de práticas - na prática de 

sua experiência humana, na prática psicológica do bisturi da análise. Quem reconhecer o que não paJerá deixar de ser reconhecido, isto é, que Nietzsche é um dos maiores psicólogos de todos os tempos - e quem 

não o fizer será por sua própria conta e risco -, reconhecerá também

Sft  MARIO VIEIRA DE MELLO

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que, se suas análises têm uma força irrecusável, é porque o metal do 

bisturi que usa é forjado com uma liga de inteligência e de coragem. Se 

lhe faltasse coragem, Nietzsche teria sido um psicólogo medíocre. Se lhe 

faltasse coragem, Nietzsche teria sido um homem pouco lúcido. O mistério de Nietzsche consiste em que sua lucidez - que é como um sol 

ardente que quase nos ofusca - resulta diretamente da aliança que 

mantinha com a coragem. Era esse também o mistério de Sócrates - que 

era um grande estadista, que podia ensinar a virtude, porque seu 

demônio lhe dizia ser a sabedoria inseparável da coragem.

Assim, quando rejeitamos com um muxoxo a filosofia de Nietzsche, por ser uma filosofia da coragem, estamos caindo no ridículo de rejeitar 

um tipo de inteligência maior em nome de um tipo de inteligência 

menor. É como se preferíssemos, em princípio, a um cão de raça, um 

vira-lata qualquer. Na verdade, estamos com isso rejeitando uma coisa 

que não só não conhecemos, como também não temos meios de conhecer, apesar de toda a nossa inteligência. O que nos pode sacudir aqui,  neste momento, e nos preparar para uma visão mais justa do problema 

é o sentimento do ridículo. Se há coisa de que nos orgulhemos é 

certamente nossa lucidez, nossa clarividência, nossa racionalidade. Não 

temos vergonha de ter medo. O que outros chamariam de covardia nós 

chamamos simplesmente de prudência. Não nos parece que se trate aqui de um vício, mas de uma virtude. A coragem é uma virtude que julgamos

 

pertencer a um mundo primitivo, de qualquer modo um mundo pré-tecnológico, para nós irremediavelmente perdido. Não temos nostalgia 

desses tempos. O mundo de hoje, a era tecnológica exige uma única 

virtude, um único instinto: uma completa lucidez! E se essa lucidez nos 

aconselha à prudência, à moderação ou mesmo ao medo, nada mais nos 

resta a fazer senão escutar e seguir a sabedoria do conselho.

Dizemos isso com orgulho, certos de que nossos argumentos são 

irrespondíveis. Dizemos isso com a arrogância de um Protágoras. Mas 

se nos defrontarmos de repente com um novo Sócrates e imitarmos o  

sofista, não fugindo ao debate, poderemos, como ele, evitar que o 

sentimento do ridículo nos domine finalmente? - Protágoras interrompeu a discussão, quando sentiu que era esse o desenlace que o ameaçava

 

- mas não sem antes reconhecer, um tanto contrafeito, o valor da argumentação socrática. E nós, o que faríamos? - Interromper simples

mente a discussão não nos evitaria o ridículo. Como não havíamos nem 

mesmo compreendido o tipo de coragem que estávamos procurando 

refutar, ficaria claro que nos encontrávamos desde o início derrotados.

 NIETZSCHE: O SÓCRA TES DE NOSSOS TEMPOS 87 

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Prosseguir na discussão, tentar mostrar que, com nossa lucidez, com 

nossa prudência, com nossa covardia, conseguiríamos talvez obter re

sultados bem concretos, uma paz, uma harmonia que fosse a base de 

edificações futuras, seria a melhor maneira de mostrar como essa lucidez era insensata, como essa prudência era leviana, como essa covardia 

era um sentimento desprezível. Caminharíamos irresistivelmente para a 

apoteose do ridículo. Só nos restaria, pois, fazer como Protágoras: 

interromper a discussão, mas não sem antes reconhecer o valor da 

argumentação de Nietzsche; interromper a discussão, mas já agora para 

reconsiderar, para reexaminar, para reavaliar de que modo a obra de 

Nietzsche pode exercer, sobre nossos preconceitos, uma ação transfor

madora - essa seria, ao que nos parece, a única maneira de evitar que 

- se abatesse sobre nós o sentimento do ridículo.

Por que pensa Nietzsche que, sem a coragem, não se descobre a 

verdade? Não é essa a contrapartida da posição socrática segundo a 

qual, sem a verdade, não se manifesta a coragem? - Coragem e verdade, 

coragem e sabedoria, virtude e sabedoria - temos aqui a equação que 

 justifica a convicção socrática de que a virtude pode ser ensinada. Não 

é essa também uma convicção nietzschiana? Quando refletimos sobre 

essa questão, vemos claramente como essa identidade de pontos de vista 

é mais importante, mais essencial, mais definitiva do que as divergências  

entre os dois filósofos que  A Origem da Tragédia  se empenhou em 

sublinhar. Nietzsche poderia considerar Sócrates um decadente do 

ponto de vista dionisíaco que naquele livro adotava. Mas do ponto de 

vista do ensinamento da virtude, que, tanto para si quanto para Sócrates, 

era a questão essencial, a identidade entre os dois não poderia ser mais 

completa.

O ensinamento da virtude, para esses dois filósofos separados por 

mais de dois milênios, não poderia, entretanto, apresentar-se sob a 

mesma forma. Sócrates naturalmente pensava que a virtude poderia ser 

ensinada, se fosse recuperada e transmitida. Nietzsche, entretanto, via 

o problema de maneira mais complexa. Julgava impossível recuperar 

uma virtude que existira num passado tão remoto. O princípio da  areté 

ainda vivia no espírito de Sócrates e, embora não vivesse mais na vida 

real de cada indivíduo, vivia na memória coletiva da comunidade ateniense. O ideal de grandeza vivia no espírito de Nietzsche, mas não vivia 

nem na vida real dos indivíduos nem na memória coletiva do mundo em 

que vivia. Escolhendo entre o prazer e a excelência, Sócrates tivera 

alguma chance de ser seguido por alguns poucos na escolha de sua

88 MARIO VIEIRA DE MELLO

.

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preferência. A prova disso fora Platão e sua Academia. Escolhendo 

entre a felicidade e a grandeza, Nietzsche não tinha a menor chance de 

ser seguido por quem quer que fosse na escolha que fizera. O mundo 

em que vivia já havia escolhido, por unanimidade, o ideal da felicidade. 

Para ensinar sua virtude, Nietzsche, por conseguinte, não dispunha das 

facilidades de que dispusera Sócrates. Não encontrara um contexto que 

abrigasse os vestígios do antigo esplendor da  areté, vestígios que pudes

sem ser aproveitados para uma recomposição e para um novo modelo.  

Não encontrara uma receptividade determinada por uma sensibilidade 

um tanto adormecida, mas ainda viva e capaz de reagir positivamente à 

evocação dos esplendores de um passado de triunfos e glórias. Não  

encontrara nada disso. A receptividade para um ideal de grandeza, tal 

como o concebera seu espírito, era, no mundo em que vivia, absoluta

mente nula. Nesse mundo, só o ideal da felicidade era aceito e com

preendido.

Sócrates, indubitavelmente, possuía algumas alavancas para re

construir seu modelo de virtude. Sua vida de perguntas e de questiona

mentos, sua argumentação e sua dialética mostram bem que essa 

reconstrução tinha alguns pontos de apoio no mundo real. As respostas 

que obtinha eram como tijolos atirados para o alto sob o impulso da 

alavanca que usava Sócrates no afã da construção. Nietzsche não tinha 

nada disso. E por isso seu modelo de virtude parece ser tirado de si 

mesmo. Figuras históricas eram por vezes utilizadas para exemplificar 

esse ou aquele modelo que Nietzsche desejava estudar. Mas essas 

figuras já não representavam o mundo real, o mundo em que o filósofo 

estava inserido. Ora, a virtude, para ser o que é, tem forçosamente que  

manter uma relação direta com o mundo real. Nietzsche corria, pois, o 

risco de condenar suas virtudes a uma existência de fantasmas, se não 

lhe ocorresse, num clarão intuitivo verdadeiramente genial, a idéia de 

fazer da sua própria vida o solo real onde pudessem caminhar as virtudes 

que estudava. Não se tratava de tirar de si mesmo os modelos de virtude. 

Tratava-se de procurar, no mundo exterior, fora de si, tal como fizera  

Sócrates, elementos para sua construção. Como, porém, esse mundo 

não lhe era contemporâneo, não era o mundo de sua convivência, 

ficava-lhe faltando uma certa densidade, a densidade da vida real. 

Nietzsche oferecia-se então, oferecia seu corpo, oferecia seus sentimen

tos, oferecia enfim todo o seu Ser físico, moral e espiritual, como campo 

de experiência, onde esses elementos fantasmáticos, trazidos de um 

outro mundo, pudessem se implantar, experimentar uma vivência, se

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consubstanciar. Essa foi a forma de Nietzsche perseguir seu ideal de 

grandeza, transmitindo-lhe uma realidade que de outro modo não 

poderia ser obtida. Sócrates, com suas questões-alavancas, transmitiu 

realidade a seu ideal de excelência. Nietzsche, fazendo de seu Ser físico, 

moral e espiritual o campo de experiências de elementos de um mundo  

que não era o seu, transmitiu realidade a seu ideal de grandeza. O que 

é importante sublinhar é que esses elementos, mesmo quando viviam 

dentro de Nietzsche, pertenciam a um mundo que não era o seu. A  

filosofia de Nietzsche é mal compreendida, quando não se percebe a 

importância deste fato fundamental - quando se pensa que a obra de 

Nietzsche espelha apenas o dinamismo de um processo que se desen

volve unicamente no interior de sua subjetividade.Sem coragem não se descobre a verdade. E a dádiva de si mesmo,  

que encontramos em Nietzsche, ilustra, da maneira mais comovente, o 

bem fundado dessa afirmação. A verdade não se acha facilmente. Entre 

nós mesmos e a verdade existe um caminho semeado de perigos. É  

preciso ter grandeza para querer percorrê-lo. Dir-se-ia que dragões 

sequestraram a verdade. Dragões ciumentos, que a impedem de se 

tornar atuante e visível. Dragões que naturalmente não são de carne e 

osso, mas que nem por isso constituem ficções poéticas ou imagens sem 

qualquer eficácia. São entes que incidem sobre nossa vida real de modo 

inequívoco. São fantasmas que nos perseguem, que nos paralisam, que 

transformam o curso de nossa existência concreta. E que agem assim, 

desse modo abusivo, porque nos falta coragem para expulsá-los da nossa 

vida real.

O Deus morto é um desses fantasmas. Quando era vivo, não aparecia como um dragão. Participava da nossa vida como um fator positivo. Enriquecia nossa experiência humana. Dava a nosso Ser uma maior

 

plenitude. Fazia da nossa atividade uma dinâmica mais produtiva.

Agora que está morto, transformou-se num fantasma que nos intimida, que nos persegue, que nos paralisa a vontade. Temos medo de  

quê, se é um fantasma? Se não é mais capaz de nos fulminar com os raios 

de sua cólera? Não o sabemos nós mesmos. Mas o medo que nasce 

dentro de nós é maior do que o causado pela antiga justiça divina. T alvez, 

quem saiba, tenha havido um engano (assim fala esse medo). Talvez nem 

tenha morrido. Saindo à rua, tínhamos ouvido notícias de sua morte. 

Mas voltando para casa, havíamos decidido não transmitir aos nossos a 

informação terrível. Nada havíamos feito para que se alterasse a rotina 

doméstica. Havíamos continuado a viver como se nada de importante

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houvesse ocorrido. Pensávamos assim contornar o problema. Mas de 

noite, quando não tínhamos insônia, sonhos estranhos nos visitavam.

Ele” vinha ao nosso quarto perguntar o que pretendíamos; que significava nosso mutismo, nosso silêncio - era, por acaso, nossa intenção 

continuar dissimulando e mentindo? Que fraqueza, que falta de coragem mostrávamos! Dava-nos um prazo, alguns dias, para que contássemos ao mundo inteiro o que se passara. E queria ver seu próprio túmulo 

visitado todos os dias e coberto de flores sempre renovadas.

Agora que está morto, Deus transformou-se para nós num dragão,  num dragão que nos sequestra a verdade. Não por culpa sua - que culpa

 

poderia ter um Deus que está morto? - Por culpa nossa, por culpa da 

nossa fraqueza. Quem sabe não ressuscitaria se fôssemos mais corajosos? Mas nós, com nosso medo, alimentamos o dragão. Se as coisas 

continuarem assim, virá o dia em que teremos esquecido que Deus havia 

morrido ou mesmo que tenha algum dia existido. Será também o dia em 

que teremos esquecido que nossa maior distinção havia sido o amor à 

verdade.

Houve tempo em que a Beleza era tida como o esplendor da Verdade. Assim pensaram homens que viveram em épocas felizes. Mas 

com o correr dos séculos essa noção confiante foi-se transformando, foi-se reduzindo, foi-se limitando, a Beleza passou a ser simplesmente

 

a expressão da Verdade. E não parou aí; prosseguiu nesse processo de  

descaracterização, tornou-se indiferente à verdade. Finalmente, para 

nós, para os homens de nossos dias, a Beleza se apresenta exatamente 

como o oposto da Verdade - exatamente como um dragão, um dragão 

que nos seqüestra a verdade. Metade anjo, metade demônio - aparência que toma para nos enganar -, ela nos desfigura totalmente a Verdade. 

Sua ambiguidade e seu mistério representam, para nós, um desafio que 

cresce sempre na razão direta da fraqueza ou da covardia que mostramos diante da sua natureza enigmática. Só enfrentando esse enigma com 

uma coragem heróica e clarividente, seremos capazes de vencer o 

desafio.Va  Beleza é uma coisa terrível e assustadora^ confessa Dimítri; 

em Os  Irmãos Karamazov de Dostoiévski. E ainda: “É uma coisa não 

apenas terrível mas também misteriosa - é o diabo em luta contra Deus, 

e o campo de batalha é o coração dos homens”. Dimítri pensa que, se o 

coração for fraco, apenas trevas resultarão dessa luta, mas que, se for 

forte e clarividente, resultará da luta a irradiação de luz a que damos o 

nome de verdade. Dimítri é pessimista e pensa que a maioria dos 

homens não dispõe dessa coragem e termina sempre nas trevas, em

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Sodoma, só conseguindo cultivar o ideal da Madona, o ideal do coraçao 

forte e clarividente, nos jovens anos da inocência.

O Bem é ainda um outro dragão, figura monstruosa de camaleão, 

em contínua transformação. Nunca sabemos como ele realmente é. Sua 

especialidade são essas metamorfoses incessantes, esse desejo insaciá

vel de camuflar a verdade. Num dado momento, sua cor nos sugere que  

ele é uma coisa, mas logo se modifica e assume cor totalmente diversa.  

Essas mudanças constantes o tornam suspeito, o privam de “credibili

dade”. “E terrível não ver no Bem nada de bom”, diz-nos Gógol, 

deprimido e assustado com o sentido negativo de uma tal constatação. 

Mas nossa covardia continua inalterável diante desse terceiro fantasma, 

diante desse novo dragão que não só nos ameaça, como se diverte em 

frustrar nossos esforços no sentido de captar sua verdade. Desse modo, 

ela continua seqüestrada, e nossa fraqueza nos faz aceitar as imperti

nências do camaleão, as artimanhas que emprega para burlar nossas 

tentativas de um maior entendimento e a arrogância despudorada com 

que interfere na trama cotidiana de nossa vida real.

Sem coragem não se descobre a verdade. Fica assim justificada uma 

filosofia da coragem. Mas Nietzsche não queria apenas descobrir a verdade, queria também ensinar a virtude. Nietzsche, como Sócrates, 

era um grande educador. Como Sócrates, queria tornar os homens 

melhores; melhores não no sentido de mais capazes ou mais bondosos,  

mas no sentido de maiores, de dotados de dimensões interiores mais 

avantajadas. Exatamente como Sócrates. O ideal de grandeza nie- 

tzschiano é a versão moderna do ideal da areté do filósofo ateniense - é 

um ideal de excelência tal como o podia elaborar o espírito do homem 

moderno. Suas bases dionisíacas projetavam-no no mundo moderno, salvando-o da característica de ser um projeto antiquado. Mesmo o 

cristianismo podia ser absorvido por ele, como nos mostra a última, a 

mais trágica das mensagens de Nietzsche: Dionísio em face do Crucifi

cado. A moral cristã era uma catástrofe, mas uma catástrofe que preci

sava ser assimilada, uma catástrofe com a qual deveríamos entreter 

eternamente um diálogo.  Écrasez l’infâme,  sim, mas manter sempre 

Dionísio em face do Crucificado.

Acontece, entretanto, que ensinar a virtude - esse ideal de grandeza 

- não se faz sem a posse de talentos inexcedíveis. Talentos tais como a 

habilidade de mostrar os aspectos contraditórios de uma mesma atitude, 

de um mesmo princípio, de uma mesma opção. Talentos que implicam 

um poder extraordinário de evocar novas perspectivas, poder que tem,

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como ingredientes, não só uma imaginação prodigiosa, como também 

uma avassaladora intimidade com os refolhos mais escondidos e mais 

bem protegidos da realidade.

Não há dúvida de que Nietzsche possuía essas qualidades. E as 

lições que nos deixou estão preservadas em páginas gloriosas, que nos 

falam com uma voz tão vibrante que quase podemos sentir a presença  

física de quem as articulou. É essa a marca inconfundível de todo 

educador. Não só o que ele fala, mas toda um atmosfera espiritual é 

evocada e transmitida no curso de suas lições. O que ele nos diz não nos 

convence apenas - incorpora-se a nós como algo que passa a fazer parte 

da nossa substância - como algo de que já não podemos mais nos 

apartar. Nos  Diálogos  de Platão, a presença física de Sócrates se faz 

sentir. Já a forma literária, nesses Diálogos, aponta para essa presença. O que é espantoso, nos textos de Nietzsche, é que toda uma atmosfera

 

espiritual de debate, de comunicação de idéias, de transmissão de 

convicções e de presença de mestre e discípulo seja evocada pelo  

simples poder de sugestão, pela magia inexplicável do verbo, das pausas, 

das reticências e das hesitações. Na época em que a solidão ainda não 

o dominara, Nietzsche era tido como um  causeur admirável. O período 

durante o qual exerceu o magistério oficial foi marcado por sucessos 

impressionantes, tendo-se em vista sua pouca idade. Nietzsche era, ao 

que parece, um professor soberbo. Isso naturalmente num período em 

que relativamente pouco de seu tinha a transmitir. Essa disposição 

maravilhosa, que não encontrara até então um objeto, só pôde assim 

revelar-se de um modo incompleto, num momento ainda imaturo, que 

conduziria, mas não conduzira ainda, a uma afirmação ampla e plena. Era o momento em que seus textos seriam talvez um tanto pesados, e 

em que seu talento expressivo afirmava-se mais através de uma expressão facial, da entonação da voz, da sutileza dos gestos, das vibrações do

 

olhar. Quando cessou o magistério oficial, quando a solidão se instalou, todos esses elementos de expressão perderam naturalmente seu campo 

de aplicação e se recolheram forçadamente na expectativa melancólica 

de um período longo de hibernação. Mas a expectativa era falsa. Eles 

reapareceram logo depois, transformados, metamorfoseados, como 

agentes invisíveis e, ao mesmo tempo, presentes em um dos estilos mais 

comunicativos, mais expressivos, mais vivazes de que se tem notícia em 

toda a história da literatura - um estilo brilhante, fulgurante, capaz de 

aliciar o mais indiferente dos leitores que, por desfastio, tenha uma vez

 NIETZSCHE: O SÓCRA TES DE NOSSOS TEMPOS 13

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procurado passar momentos perdidos folheando distraidamente algum 

livro seu.

Todos esses elementos do estilo de Nietzsche traem de modo 

inequívoco sua vocação de educador. Platão naturalmente escolheu a 

forma literária do diálogo, porque também era essa sua vocação. Mas  

Platão tinha estímulos para optar por essa forma literária, pois dispunha 

de ouvintes, discípulos e pessoas de sua convivência para tomar como 

modelos; dispunha inclusive para a figura central do educador de uma 

personalidade que conhecia na intimidade e que era muito mais que um 

modelo, que era sua mais funda inspiração. Nietzsche era constrangido 

a ser Platão e Sócrates ao mesmo tempo. A forma literária que era 

obrigado a escolher não podia delinear os contornos reais, as presenças 

físicas do educador ou de seus discípulos, apenas podia sugerir presenças invisíveis. Seus gestos, a expressão do olhar, a ênfase sonora das 

palavras, tudo isso, que havia sido fator de sucesso no período de seu  

magistério oficial, tudo isso devia passar agora através de um estilo que 

pressupunha a existência de um educador disposto a dialogar com sua 

audiêpcia. O educador e os discípulos estavam ausentes conforme a 

letra, mas encontravam-se presentes, invisíveis, em virtude da força 

inigualável de um estilo que parecia ter nascido, não no confinamento 

de um gabinete, mas nos espaços livres de um horizonte aberto.\É  

conhecido o hábito que tinha Nietzsche de fazer longas caminhadas. Um 

contemporâneo seu, que tivesse conseguido segui-lo disfarçado, teria 

talvez podido captar palavras perdidas no espaço que a aragem trazia e 

que eram certamente fragmentos de um diálogo que o filósofo mantinha 

com um interlocutor invisível. Essas palavras seriam eventualmente recolhidas no ato. Isso, entretanto, só aconteceria se o diálogo se tor

nasse mais vivo.\Nietzsche, que nessas caminhadas carregava sempre 

consigo uma sacola com cadernos e livros, se deteria então diante do 

primeiro banco ou diante do primeiro parapeito encontrado. Tinha 

medo, provavelmente, de perder, de deixar fugir da memória a atmosfera especial, a temperatura, o ritmo das palavras que haviam sido

 

trocadas. Debruçado sobre a amurada ou curvado sobre o banco que 

lhe servia de mesa, anotava o essencial do que havia ocorrido. Outras 

vezes, a caminhada terminava sem interrupções e então era, no hotel ou 

na pensão do momento, que fazia o registro dos diálogos sustentados ao 

ar livre, na orla marítima de Rappalo, de Santa Margarida, ou em alguma 

vereda suíça, como Platão o fizera talvez em Atenas dois milênios atrás,

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fixando por escrito as conversas e discussões que tivera com os compa

nheiros durante passeios noturnos ao longo dos cais do Pireu.

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4. A COMUNICAÇÃO INDIRETA, AS INTERPRETAÇÕES E AS MÁSCARAS

Kierkegaard foi um dos pensadores que com mais acuidade refletiu 

sobre as formas possíveis de comunicação entre os homens. Não só sua 

obra como também sua vida foi afetada por esse tipo de reflexão. Kierkegaard acreditava que viera ao mundo para pregar a mensagem 

de Cristo - pregar essa mensagem, entretanto, a um mundo que já se 

considerava cristão. Como comunicar a verdade a quem já se considera 

possuidor dessa verdade? - Tal foi o grande problema que se apresentou 

à consideração do filósofo dinamarquês. Vamos aqui tentar descrever 

sucintamente como procurou resolvê-lo.Há, segundo Kierkegaard, duas formas possíveis de comunicação 

entre os homens: uma direta e outra indireta. Na forma direta, exprime- se tudo o que se sabe, tudo o que se sente, tudo o que se pensa. E uma

 

forma de comunicação franca, aberta, inocente, a comunicação que 

poderia haver entre os anjos, sem culpa, sem remorso, sem reticências. Na forma de comunicação indireta, entretanto, um elemento demoníaco 

intervém. Não se exprime tudo o que se sabe, tudo o que se sente, tudo 

o que se pensa. Procura-se mesmo enganar, disfarçar, dissimular uma 

parte do que se pensa. Trata-se certamente de uma forma de comunicação que não é inocente, mas a culpa que nela possa existir deve ser

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corajosamente assumida por quem quer comunicar um certo tipo de 

verdade. Sem essa forma, o tipo de verdade que temos em vista jamais 

poderia ser transmitido.

Expliquemo-nos melhor, ajudados por Kierkegaard. Existe uma 

imensa diferença, uma diferença dialética entre os dois casos seguintes: 

1. o caso de um homem que é ignorante e precisa receber uma certa 

instrução - ele pode ser comparado a um vaso vazio que precisa ser 

enchido ou a uma folha de papel em branco sobre a qual algo deverá ser 

escrito; 2. o caso de um homem que é vítima de uma ilusão - que precisa, 

em primeiro lugar, ser desembaraçado dessa ilusão. Da mesma forma, 

existe uma enorme diferença entre se escrever numa folha de papel em branco ou se revelar, através da aplicação de um fluido cáustico, um 

texto que estava escondido por baixo de um outro de produção mais 

recente. Supondo-se então que uma determinada pessoa seja vítima de 

uma ilusão e que seja nosso empenho comunicar-lhe a verdade, nossa 

primeira tarefa, quando bem compreendida, seria remover essa ilusão 

- se não começarmos por enganá-la, seremos levados a pensar em nossa 

tarefa em termos de uma comunicação direta. Entretanto, a comunica

ção direta pressupõe o fato de que o recipiente seja capaz de aceitá-la sem obstáculos-o que aqui justamente não acontece. A ilusão se levanta 

como uma barreira, impedindo que a comunicação se realize. Conse- 

qüentemente, se quisermos levar avante nosso projeto, precisaremos, 

antes de mais nada, aplicar o fluido cáustico - esse fluido que, dialeti- 

camente falando, consiste em inicialmente negar a verdade da comuni

cação a ser tentada e, com a negação, caracterizar o engano.

Essas concepções de Kierkegaard tiveram uma influência decisiva 

sobre sua vida concreta. Kierkegaard era um escritor que queria divul

gar a mensagem de Cristo. Seu primeiro cuidado foi, por isso, enganar 

seu público, o público de Copenhague, então uma pequena comunidade 

em que sua figura era bem conhecida. Kierkegaard teve a primeira e 

angustiante ocasião de fazer isso no seu relacionamento com Regina 

Olsen, uma adolescente de catorze anos, por quem se apaixonou quando 

tinha vinte e quatro anos. O jovem apaixonado resolveu esperar três 

anos, e só quando perdeu o pai e se tornou herdeiro de uma pequena  

fortuna é que se decidiu a empreender a conquista da moça com o fito 

de esposá-la; passou então a usar de todos os talentos e de todos os  

recursos que tinha a seu dispor para chegar a esse fim - e Regina, dentro 

em pouco, estava também totalmente apaixonada. Mas então Kierke-

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gaard já adquirira consciência do isolamento, da solidão a que o conde

nava seu destino espiritual. Ficaram noivos embora Kierkegaard 

entretivesse as maiores dúvidas sobre o compromisso que tomava. 

Decidiu, depois de muitas lutas interiores, romper o noivado. A moça, 

desesperada, sem compreender o que se passava, fez o possível e o  

impossível para evitar o rompimento. Foi então que Kierkegaard, sem 

deixar por um momento de amá-la como nos primeiros tempos, passou 

a representar junto à noiva o papel de rufião. Hamlet, para apartar de 

si o sentimento de Ofélia, se finge de louco. Kierkegaard, para apartar 

de si o sentimento de Regina, passou a agir como um dom-juan pouco 

escrupuloso.

Para completar suas táticas, Kierkegaard publicou sob pseudônimo 

um livro intitulado Ou Isso ou Aquilo,  do qual uma das partes se 

apresentava sob a rubrica “O Jornal do Sedutor”. Não só Regina, mas 

todo o público de Copenhague, que conhecia suficientemente o autor 

para enganar-se com o pseudônimo usado, ficou profundamente cho

cado com essa publicação. Regina, como era natural, sentiu-se profun

damente atingida pela maneira leviana, desrespeitosa, quase demoníaca 

com que havia sido tratado, no livro, seu caso de amor. Mas havia ainda  

nele outros elementos qúe não diziam respeito a Regina, mas que eram 

também profundamente desconcertantes, despropositados para um pú

blico que conhecia bem o autor e sua vocação de escritor religioso. Havia 

ali expresso um estetismo irresponsável, um farisaísmo ético medíocre, 

a sofisticação de um egoísmo insensato, a glorificação de uma sedução 

demoníaca. A reputação de Kierkegaard, no que dizia respeito à serie

dade, à firmeza de convicções e mesmo à honestidade de caráter, sofreu 

nessa ocasião um certo abalo. Ele procurava acentuar ainda mais a 

impressão de leviandade e de irresponsabilidade que aquela publicação 

causara, aparecendo, por brevíssimos momentos, nos lugares mais fre- 

qüentados da cidade, nos restaurantes mais procurados, nos teatros, nos 

cafés, nas ruas, mas unicamente nas ocasiões em que era certo que fosse 

visto pelo maior número possível de pessoas. Cumprido o ritual, voltava 

rápido para casa, para sua mesa de trabalho, onde o esperava um labor 

insano, uma atividade por assim dizer vertiginosa, responsável por uma 

produção literária de uma vastidão e de uma riqueza que seus contemporâneos, mais tarde, tiveram condições de avaliar.

Os pseudônimos que usava para seus trabalhos estéticos, embora 

não enganassem ninguém (pelo menos em Copenhague), eram uma

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marca que queria ver bem assinalada de seu descomprometimento com 

relação às idéias expressas nesses trabalhos. Eles descreviam experi

mentos praticados por um especialista em maiêutica, não experiências 

vivenciadas por uma personalidade imaginária ou real. Era por isso que não havia, nessas descrições, a mistura do bem e do mal, da sombra e 

do sol, a incoerência, as hesitações, as dúvidas que fazem parte da vida. 

Eram experimentos que revelavam a coerência profunda, as consequên

cias últimas das diferentes opções que se apresentavam num drama de 

personagens transformadas em símbolos.

Tais táticas naturalmente se referiam unicamente ao comportamen

to exterior do filósofo. Eram táticas que visavam dar, do escritor de 

vocação religiosa que ele era, uma idéia totalmente enganosa; e essa mistificação praticada com método era aquela primeira tarefa a que nos 

referimos acima, a tarefa de remover as ilusões de quem não está 

preparado para receber a verdade através de uma comunicação direta. 

Qual era a verdade que urgia antes de mais nada comunicar? - Era 

naturalmente sua total impossibilidade de casar com Regina - impossi

bilidade não física, mas espiritual e moral. Qual era a ilusão que pertur

bava Regina, que perturbava os outros, que os impedia de assimilar essa 

verdade? Era naturalmente a crença de que Kierkegaard podia tornar 

Regina feliz. Nosso filósofo, humanamente falando, não tinha meios de  

fazê-los ver que isso era totalmente impossível (não esqueçamos que ele 

a amava). Só havia um recurso - era enganá-los. Passando por rufião, 

enganando Regina, enganando o seu meio, Kierkegaard conseguia afi

nal transmitir a verdade sobre as perspectivas de seu casamento.

Quando ficou encerrado o período dos trabalhos estéticos, e Kier

kegaard sentiu que passara a necessidade de enganar para abrir caminho 

à verdade - quando renunciou aos pseudônimos, ao descomprometi

mento e passou a falar em seu próprio nome, compiometido e sem 

intenção de enganar-, ainda assim conservou sua tática de comunicação 

indireta - não enganava, mas disfarçava, dissimulava. Em suas batalhas 

em defesa do cristianismo, nunca dizia: “Sou um verdadeiro cristão (o 

que era verdade), os outros é que não são cristãos”. Sua atitude era a 

seguinte:

Sei em que consiste o cristianismo - minhas deficiências como cristão reconheço

 plenamente mas sei em que consiste o cristianismo. E sa ber o que é o cristianismo

 parece-me ser do interesse de todo mundo, cris tãos e não cristãos, seja para ace itá -lo ou

 para rejeitá-lo. Por isso nunca ataquei alguém por não ser cris tão, nunca o condenei por

tal motivo.

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A tática comumente usada, para trabalhar em favor do cristianismo, tem sido, ao longo da história, a de empregar todos os meios imagináveis

 

para atrair a seu seio o maior número possível de gente e, se possível, a 

humanidade inteira - mas sem muitos escrúpulos para verificar se foi realmente ao cristianismo que todas essas pessoas aliciadas se associa

ram. A tática de Kierkegaard é bem diferente, é, a bem dizer, oposta.  Consiste em empregar todos os meios para tornar perfeitamente claras

 

quais são verdadeiramente as exigências do cristianismo - mesmo que 

isso dissuada todo mundo de adotá-lo e mesmo que leve todo mundo a 

renunciar à sua própria condição de cristão (em cujo caso deveria se 

sentir obrigado a admitir o fato abertamente). Por outro lado, é sua 

tática também, ao invés de procurar dar a impressão, por mais superficial que seja, de que existem dificuldades no cristianismo que justificam

 

sua apologia, caso queiramos induzir pessoas a abraçá-lo - ao invés de 

procurar dar essa impressão, é sua tática representá-lo, ao contrário, como uma coisa tão inacessível, o que na verdade ele é, que uma

 

apologia se tornaria necessária não para justificá-lo, e sim para justificarmo-nos nós mesmos, caso tenhamos a pretensão de tê-lo adotado; e, nessas circunstâncias, a apologia redundaria necessariamente num re

conhecimento contrito de que devemos agradecer a Deus o fato de 

podermos nos considerar cristãos.

Veja bem o leitor como, ainda aqui, embora sem enganos ou 

embustes, funciona a comunicação indireta. A vocação de Kierkegaard 

é pregar a mensagem de Cristo. Mas como os homens a quem deve ser 

dirigida essa mensagem vivem sob a ilusão de que já são cristãos, a 

primeira tarefa do filósofo é remover essa ilusão. Como fazê-lo? - A 

ilusão existe, porque os homens em questão têm do cristianismo uma 

idéia apoucada, amesquinhada e não julgam favor especial ou privilégio 

serem recebidos em seu seio. A primeira coisa a fazer é então, como já 

dissemos, remover essa ilusão, fazê-los compreender o favor altíssimo 

que representa poderem ser eles incluídos nas fileiras do cristianismo.  Esse favor altíssimo só nos sobrevém quando compreendemos que as 

exigências do cristianismo são enormes e quando, uma vez pelo menos, nos chega o desânimo de podermos algum dia nos elevar ao nível em 

que se encontram elas.

É por isso que Kierkegaard relutava em se considerar um verdadeiro cristão. Diante das enormes dificuldades que envolviam a condição

 

de ser cristão, ele hesitava. Outros podiam levianamente lançar-se na 

afirmação de que eram cristãos. Ele resistia. Não julgava temerariamen-

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te os outros, não condenava, não negava que fossem cristãos; mas se 

reservava o direito de pensar que, quanto a si mesmo, estava muito longe 

de realizar as condições de vida do verdadeiro cristão. Essa era sua 

mensagem, sua pregação do Cristo; através dela, tinha a esperança de 

que as verdadeiras exigências do cristianismo pudessem finalmente ser 

ouvidas e talvez seguidas, praticadas.

Foi desse modo que Kierkegaard resolveu o problema de sua 

vocação religiosa de escritor. Como comunicar a verdade a quem já se 

considerava possuidor dessa verdade? - Sabemos, agora, qual foi sua 

resposta. Se havia necessidade de comunicar a verdade, era porque 

quem julgava possuí-la vivia sob uma ilusão. Como era possível removê- 

la? - Proclamando o Cristo, confessando o Cristo? - Essa proclamação, 

essa confissão encontrariam a barreira da ilusão. Para removê-la, era 

necessário lançar mão de uma maiêutica que tivesse, como pressuposto, 

a idéia de que o cristianismo é um bem que a humanidade poderia 

eventualmente possuir - um bem que não é apoucado, amesquinhado, 

mas um bem supremo - e que tivesse como finalidade fazer aflorar à 

consciência dos homens as enormes responsabilidades de quem dese

 jasse apropriar-se desse bem.

Numa entrada do seu  Diário de 1847,  Kierkegaard diz que os 

homens podiam fazer o que quisessem com sua pessoa, insultá-lo, 

invejá-lo, não mais o lerem, matá-lo - mas não poderiam jamais negar 

que a idéia, que regrava a sua vida, representava um pensamento original 

e a concepção mais original existente na língua dinamarquesa - a idéia 

de que o cristianismo exigia uma maiêutica e de que tinha compreendido 

sua essência e a arte sutil de praticá-la.

Estamos, agora, de posse de todos os elementos necessários para compreender o desmesurado interesse que tinha Kierkegaard pela 

personalidade de Sócrates. Sua carreira de escritor iniciou-se, na ver

dade, não com o seu Ou Isso ou Aquilo, mas com a apresentação de uma 

dissertação acadêmica: O Conceito de Ironia, com Referência Constante 

 a Sócrates.  Esse trabalho, submetido a julgamento em obediência às 

práticas exigidas para a obtenção de um diploma de Master of Arts, a 3 

de junho de 1841, foi formalmente aceito no dia 16 do mês seguinte, por 

uma comissão presidida por F. C. Sibbern, decano da Faculdade de 

Filosofia de Copenhague. A defesa oral ocorreu a 29 do mês de setem

bro. Apesar de as normas acadêmicas exigirem que fosse feita em latim 

e mesmo tendo durado mais de sete horas, os jornais noticiaram que o 

debate havia atraído “uma audiência excepcionalmente numerosa”.

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É certamente correta a afirmação de Lee M. Capei, tradutor para 

o inglês e introdutor dessa obra de Kierkegaard, de que o estudo de 

Platão, feito pelo filósofo dinamarquês, resultou numa teoria sobre a 

comunicação indireta, definida por Capei ceme um recurso literário destinado a reproduza a experiência da conversação socrática. Foi 

indubitavelmente a necessidade de encontrar uma maiêutica capaz de 

fazer aflorar, à consciência dos homens, a idéia de que o cristianismo 

não é um bem apoucado e sim um bem supremo que todos eles poderiam 

possuir - foi certamente essa necessidade que o levou a uma reflexão 

profunda sobre a natureza da ironia socrática. A dissertação acadêmica, 

que foi o primeiro livro escrito por Kierkegaard, apresenta uma curiosa 

analogia com o primeiro livro publicado por Nietzsche. Nas duas obras, Sócrates é a figura central; foram as duas recebidas pelos meios acadê

micos com um misto de aprovação e de censura - a aprovação, no caso 

de Nietzsche, representada apenas pelos artigos de Rohde; a censura, no caso de Kierkegaard, em termos não tão rigorosos. O fato, entretanto,

 

é que a razão dessacensura residia nos retratos, nada ortodoxos, que 

haviam sido-feitos da figura de Sócrates. O de Nietzsche causou escândalo - era inadmissível a tentativa de marcá-lo com o estigma da 

decadência. Mas o de Kierkegaard também era censurado, pela exibição do picante, da malícia, da mordacidade, pelo excesso de sarcasmo e de 

galhofa e, de um modo geral, “pelo mau gosto que não era de se esperar 

da parte de quem demonstrava ter uma cultura”.

A verdade é que os dois retratos de Sócrates apresentavam distorções importantes. E a reação dos meios acadêmicos a que foram apresentados era compreensível. Mas, do ponto de vista da economia do

 

crescimento interno que ocorria em cada um dos dois jovens filósofos, os retratos correspondiam a uma realidade - a realidade determinada 

pela mais necessária e pela mais rigorosa das leis que presidem à 

formação das grandes personalidades: o projeto de uma obra e o 

pressentimento de uma vocação. É verdade também que o retrato de 

Nietzsche foi muitas vezes retocado, ao passo que o de Kierkegaard 

permaneceu sempre o mesmo. Mas o ponto de partida foi idêntico. 

Sócrates significou, para cada um deles, um arranque inicial, uma 

promessa de viagens enriquecedoras por espaços espirituais desconhecidos, a instalação de uma problemática que se abria sobre vastos 

horizontes. O problema socrático, em Nietzsche, estava ligado a Dioní- 

sio e a sua contrafação moderna, Wagner. Em Kierkegaard, estava 

ligado a Cristo e a sua contrafação moderna, Hegel.

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Qual era a posição de Hegel? - Ele pretendia encontrar um sentido 

afirmativo, uma positividade na declaração de Sócrates de que o Estado 

melhor e mais feliz é aquele em que todos os cidadãos se entendem e  

obedecem às leis. Mas Kierkegaard pretende que Sócrates seja pura 

negatividade, lembra que a razão pela qual o Sócrates citado por Hegel 

parece oferecer algo positivo reside num equívoco - Hegel não percebe 

que Sócrates reconhece essa positividade antes de ser Sócrates, isto é, 

antes de entrar no seu processo de negação infinita: o que acontece é 

que o Sócrates de Hegel, inicialmente, sem qualquer movimento pró

prio, concede, reconhece de imediato a existência de um mundo social

mente estabelecido; esse mundo não correspondia a uma positividade 

que sucedesse a uma negação absoluta, mas era uma positividade que a 

precedia. A declaração de Sócrates representava assim um movimento 

fingido, não um autêntico movimento socrático. Kierkegaard conclui 

que a discussão, em torno dessa declaração, não podia decidir sobre a 

questão da positividade de Sócrates.

Toda a argumentação do livro está alicerçada sobre esta convicção. 

Sócrates é pura negatividade, negatividade absoluta e infinita, e tal 

negatividade, dirigida à realidade histórica, é a essência da ironia. A  

ironia dos românticos, de Schlegel, de Solger, de Tieck, por exemplo,  

não é a verdadeira ironia, porque é uma ironia dirigida a uma realidade 

fabricada por ela própria, dirigida não à realidade histórica, mas a uma 

história transformada em mito, poesia, saga, conto de fadas. A ironia do 

Sócrates a de Hegel, por sua vez, não é a verdadeira, não é negação  

absoluta, infinita; a positividade lhe é necessária.

Alguns comentadores pretendem que a dissertação utiliza ironica

mente uma linguagem e uma conceituação hegeliana. Confesso que essa 

interpretação me parece algo artificiosa. Kierkegaard, então um jovem 

estudante de filosofia e de teologia, não tinha ainda aprofundado seus 

estudos hegelianos. Era por isso natural que esse seu primeiro trabalho 

traísse uma dependência do aspecto formal do pensamento de Hegel. 

Mas era claro que, sob essa dependência formal, já apontavam os  

motivos que o levavam a uma discordância real. De qualquer maneira, 

essa suposta ironia formal não foi complementada na dissertação por 

uma ironia substancial. E com a maior seriedade que nela Kierkegaard 

examina os argumentos de Hegel, empenhando-se sempre em apresen

tar suas próprias razões com a consideração e com o respeito que eram 

esperados de um crítico da obra do grande mestre. A discussão da 

opinião de Hegel sobre a declaração de Sócrates, a respeito do Estado

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melhor e mais feliz - referida acima mostra-nos bem o tom mantido 

por Kierkegaard nessa sua polêmica com o filósofo de Stuttgart.

Causa, portanto, uma certa surpresa constatar, como já o fizemos, 

o tipo de reação que a dissertação despertou no meio acadêmico de 

Copenhague. A mordacidade, a malícia, o sarcasmo poderiam talvez ser 

notados nas referências de Kierkegaard aos representantes de Hegel 

naquela cidade, mas nunca nas observações feitas a propósito do pró

prio Hegel. Foi só cinco anos mais tarde, no Postscriptum, que o filósofo 

de Stuttgart foi objeto de uma declarada ironia. Mas já então a obra de 

Hegel havia sido bem assimilada, e a dependência formal de Kierke

gaard se tinha esfumado. Vou aqui transcrever um trecho do Postscrip

 tum, que me parece representativo de sua ironia e que dá uma boa idéia 

de sua maneira de reagir ao pensamento de Hegel:

Se Hegel tivesse publicado sua Lógica sob o título de  Pen sa m en to Puro,  sem

indicação de autoria, ou data de publicação, sem prefácio ou notas ou autocontradições

didáticas, sem explicações confusas a respeito de coisas que poderiam se explicar por si

 próprias; se tivesse publicado isso como uma espécie de analogia aos fenômenos da

natureza, aos sons po r exemplo que a lenda popular diz serem ouvidos na ilha de Ceilão,

como se fossem os m ovimentos imanentes do pe nsamento puro ele próp rio - esse atoteria sido verdadeiramente pra ticado no esp írito de um filósofo grego. Se um grego tivesse

concebido a mesma idéia, isso é o que ele teria feito. A reprodução do co nteúdo na forma

é essencial para todo trabalho artístico que envolve esses dois elementos; e é particular

mente importante que se evitem referências a um determinado con teúdo em forma que

não apresente esse grau de adequação. Mas a  L óg ic a   como se oferece agora com seu

amontoado de notas produz a estranha impressão que teria experimentado um homem

a quem fosse entregue uma carta que se anunciasse ter vindo do céu, embora estivesse

acom panhada de um .mata-borrão e revelasse assim claramente a sua origem m undana.

Deixar-se levar nessa  L ógic a   a uma polêmica com tal ou qual pessoa portadora de um

nome, o ferecer sugestões pa ra a orientação d o leitor e coisas congêneres, é trair o fato

de que existe um pensador que pensa o pensamento puro, um pensad or cuja palavra se

mistura aos movimentos imanentes do pensamento puro e que pode mesmo falar com

ou tro pensador, estabe lecendo desse modo relações com ele. Mas se existe um pen sado r

que pen sa o pensamen to puro, todo o a parato crítico da dialética grega, bem como toda

a polícia de segurança da dialética existencial vão querer imediatamente agarrá-lo e

retê-lo pela aba do casaco, não para conquistar um novo discípulo mas com o simples

intuito de investigar qual seria seu relacionamento com o pensamento puro. No mesmo

instante toda ilusão se dissipará. Imaginem Sócrates conversando com Hegel. Apenas

com o auxílio das misteriosas notas ele desarmaria a guarda de Hegel; e não estandoacostum ado a ser engrolado com protelações sob o pretexto de que tudo se tom ará claro

no fim e suportando mal mesmo um discurso que durasse cinco minutos, para não falar

de um desenvolvimento ininterrup to que se estendesse por dezessete volumes impressos,

Sócrates daria então uma violenta brecada nessa verbiagem apenas para divertir-se com

a cara de espanto que faria Hegel.

 NIETZSCHE: O SOCRA TES DE NOSSOS TEMPOS 105

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Será preciso ser um hegeliano empedernido para não sorrir diante 

da ironia profunda dessas palavras. Confesso que, ao tê-las pela primeira vez diante dos olhos, fiz mais do que sorrir - é verdade que não sou 

um hegeliano -, fui obrigado a interromper minha leitura para dar largas, com uma boa risada, a um sentimento de profunda participação.  A publicação da Lógica sem indicação de autoria ou data de publicação, sem prefácio ou notas, sem explicações de qualquer espécie, como se 

fosse um simples fenômeno da natureza; a imagem do homem recebendo uma carta do céu acompanhada de um mata-borrão; a idéia de um 

ser humano atrelado aos movimentos imanentes do pensamento puro, talvez arrastado por ele - tudo isso me parecia de uma comicidade 

irresistível. Kierkegaard foi o primeiro e talvez o único filósofo (depois de Sócrates) que me fez rir como se pode rir diante da representação  

de uma comédia - fartamente, abundantemente, com o prazer profundo 

derivado de uma experiência ocorrida no mais íntimo do ser. É possível  

que alguém que conheça Hegél melhor do que eu (o que em alguns casos 

quer dizer alguém que renunciou à sua consciência crítica diante de uma 

obra de dimensões agigantadas) - ou alguém que conheça pouco Hegel seja insensível ao que me fez rir. Experiências não se discutem. Seria 

aliás de um otimismo um tanto inocente pensar que, no nosso século  racional e científico, uma filosofia pudesse ser desmontada pelo riso. Mas foi talvez o que aconteceu comigo. E consolo-me pensando que se 

em nossos tempos o gnosticismo de Hegel tem sido estigmatizado como 

uma deformação, como uma contrafação do cristianismo derivada das 

influências gnósticas do Evangelho de São João - se em nossos tempos 

a  Lógica  de Hegel pôde ser caracterizada como o documento mais 

representativo dessa deformação e contrafação - opinião justificada 

pelas próprias palavras de Hegel ao apresentar a sua  Lógica  -, se em 

nossos tempos tudo isso ocorreu, atrevo-me a pensar que o riso de 

Kierkegaard teve talvez alguma parte nesse desenvolvimento; atrevo-me 

a pensar que sem esse riso não se teria talvez encontrado a trilha, a 

senda, o caminho capaz de nos levar ao ponto em que é possível ver o 

que há de não filosófico na filosofia de Hegel.

Comparemos, por exemplo, o que diz Kierkegaard sobre a  Lógica 

de Hegel com o que afirma Eric Voegelin no Volume IV de sua obra  

monumental Ordem e História, publicada em 1974.

Os movimentos gnósticos modernos derivam mais das influências gnósticas no

Evangelho de São João do que de outras variedades psicodramáticas de cores mais vivas.

Fundamento essa asserção citando o documento que considero mais representativo da

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deformação da consciência característica desses movimentos gnósticos e que consiste na

apresen tação que faz Hegel de sua ciência da lógica: “A lógica deve ser concebida como

o Sistema da razão pura, como o reino do pensamento puro. Este reino é o da verdade

tai como ela existe, em si e por si, sem máscara nem véus. E possfvel po rtan to d izer que

seu conteúdo é uma representação de Deus tal como ele é na sua essência eterna,

anteriorm ente à criação da natureza e de qualque r espirito finito”.

E Voegelin arremata:.

 No começo era a Sabedoria ; no começo era a Torá; no começo era a Palavra; no

começo era Hegel com sua  L óg ic a . Com a transformação e a deformação egofânica do

Símbolo em Sistema e a apresentação feita da própria consciência do pen sado r como a

Palavra Divina do Começo nos encontramos no centro da luta da dogmática ideológicaque ocupa a cena pública com seu criminoso grotesco.

Voegelin parece ver também o lado cômico de Hegel, mas o que  

mais o impressiona naturalmente é seu lado nefasto, perverso. E com

preensível que, tendo nascido quase que um século depois de Kierke- 

gaard, tenha podido apreciar melhor as consequências funestas do  

gnosticismo de Hegel, que tenha podido, entre outras coisas, apreciar 

as consequências da posição gnóstica que Marx herdou de Hegel. Mas isso é outra história. O que nos interessa aqui é mostrar como foram as  

armas socráticas e não qualquer tipo de argumentação baseada nos 

recursos do pensamento lógico, que tornaram Kierkegaard apto a com

bater a contrafação daquilo que para si representava um projeto da vida 

- foi a ironia socrática que lhe deu forças para desacreditar, pelo menos 

perante si mesmo, o gnosticismo de Hegel e assim preservar, em toda a 

sua elevação e pureza, a única definição que podia aceitar do cristianis

mo.() gnosticismo, tanto o antigo quanto o moderno e contemporâneo, 

deriva na realidade da consciência escatológica criada no período pro

fético e apocalíptico da história israelita, consciência nascida da neces

sidade de evasão do mundo cosmológico, sentido como uma prisão, ao 

mesmo tempo que do mundo pragmático, histórico, sentido como irre

mediavelmente perdido. A deformação gnóstica derivada dessa cons

ciência escatológica se inspirou no projeto de, através de uma ação  

apoiada pelo conhecimento, fazer voltar à transcendência espiritual e divina o espírito do homem, que vivia alienado no cosmos ou no mundo  

pragmático e histórico. Historicamente, o gnosticismo resultou da inte

ração da expansão imperial dos persas, de Alexandre e seus sucessores 

e de uma contração da consciência do divino no homem. Na história

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pragmática, o gnosticismo resultou de seis séculos de expansão imperial 

e da destruição de civilizações. O impacto destruidor das conquistas 

sobre as formas tradicionais de existência foi abrupto; e, ao caráter 

abrupto do impacto, não correspondeu uma resposta espiritual que 

restabelecesse o equilíbrio com igual rapidez. A autoridade divina dos 

velhos símbolos foi prejudicada, quando as sociedades, cuja ordem real 

exprimiam, perderam sua independência política, ao passo que a nova 

ordem imperial, inicialmente pelo menos, possuía não uma autoridade 

espiritual, mas uma simples autoridade de poder. Assim a vida intelec

tual e espiritual dos povos sujeitos a esses acontecimentos foi alienada 

da realidade da existência humana política e socialmente ordenada. A 

sociedade e o cosmos dos quais eles faziam parte foram sentidos e 

vividos como esferas de desordem, e a esfera de ordem, na realidade da 

existência humana, passou a ser restrita e limitada à área da existência 

pessoal ordenada em direção à transcendência divina.

Esse confmamento da ordem divina na esfera da existência pessoal 

não constituiu, entretanto, uma diferenciação de consciência, que pres

supunha não um tal confmamento, mas á criação de um novo símbolo 

da ordem, pessoal e social, na existência humana. Ao contrário, o que 

ocorreu foi que o antigo símbolo foi deformado, primeiro porque os 

deuses específicos das civilizações particulares destruídas se mostravam 

incapazes de exprimir a ordem pessoal e social da humanidade, que vivia 

agora numa sociedade imperial; e segundo porque a experiência da 

diferenciação de consciência, que daria origem ao símbolo de uma 

espiritualidade baseada numa humanidade vivendo dentro de um impé

rio universal mas pessoal e socialmente ordenada, não ocorreu. A 

consciência deformada procurou, então, encontrar símbolos que expri

missem uma experiência que não havia ocorrido. E os símbolos que 

encontrou naturalmente não eram os verdadeiros símbolos, os quais 

exprimem, sempre de uma maneira indireta, uma experiência realmente 

ocorrida - eram falsos símbolos que exprimiam diretamente uma expe

riência fictícia.

Essas indicações que acabo de dar e que foram extraídas do já 

citado livro de Voegelin me parecem necessárias para fazer o leitor 

entender a razão pela qual os símbolos usados pelos gnósticos apresentam forçosamente um caráter gratuito. São símbolos falsos, porque não 

exprimem indiretamente, como todo símbolo deve exprimir, uma expe

riência de ordem efetiva, como, por exemplo, o mito do Demiurgo, no 

Timeu de Platão, mas que querem, ao contrário, exprimir diretamente

1 00 MARIO VIEIRA DE MELLO

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algo que não representa uma experiência de ordem efetiva. Philo de 

Alexandria, por exemplo, não foi um gnóstico, mas utilizou falsos sím

bolos, que exprimiam diretamente algo que não experimentou. Para ele, 

a história da criação da Gênese não representa um simbolismo mítico 

que dependa da diferenciação mosaica e profética da consciência da 

transcendência, e sim uma filosofia da natureza sem qualquer relação 

com essa diferenciação e interessada apenas na representação do co

meço do mundo. Quando as duas simbolizações, a da transcendência e 

a do começo do mundo, deixam de estar relacionadas a partir da 

experiência da transcendência - como foi o caso de Philo - , e a centra- 

lidade da consciência do homem é interpretada a partir da simbolização 

do começo do mundo, a deformação gnóstica já se encontra presente. 

O símbolo, que dependia de uma experiência efetiva expressa indireta

mente, se faz independente e quer exprimir agora diretamente algo que 

não se experimentou. Philo realizou em parte esse movimento, mas 

somente em parte e por isso não pode ser caracterizado como um 

gnóstico. Mas não há dúvida de que, fazendo de Moisés um filósofo, 

contribuiu poderosamente para o aparecimento do gnosticismo.

O gnosticismo utiliza, pois, falsos símbolos, que pretendem exprimir 

diretamente experiências que não ocorreram. Essa definição é como 

que o negativo daquilo que se poderia dizer de Kierkegaard. Kierke- 

gaard procura exprimir indiretamente as únicas experiências que o 

interessam, as experiências que realmente ocorreram. Por isso o seu 

existencialismo pode de uma certa maneira ser interpretado como um 

antignosticismo radical; dir-se-ia que foi inspirado por ele - inspirado 

ironicamente, está claro, inspirado para projetar-se na afirmação do 

contrário. A noção de que a idéia existencial de Kierkegaard é uma idéia 

essencialmente irônica não tem sido objeto de qualquer atenção; entre

tanto, é uma noção que me parece merecer um exame. A idéia de que 

o pensamento possa existir sem “uma existência” encerra realmente 

algo de cômico. A dedução de Descartes “penso, logo existo”, o famoso 

 cogito cartesiano, como que produziu, sobre as nossas faculdades críti

cas, uma espécie de paralisia; e vários séculos precisaram passar para 

que pudéssemos nos perguntar se a existência do pensador era idêntica 

à existência do pensamento. Foi preciso que surgisse alguém não desprovido de uma certa petulância, de uma certa irreverência mesmo para 

ter a coragem de perguntar ao pensador se ele existia. Não era fácil 

conduzir a conversa. O pensador podia ser um homem com toda a 

aparência de uma boa saúde, de faces coradas, de sólido corpo - era

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delicado perguntar se ele existia. As dificuldades eram muitas; era 

preciso explicar que não se tratava de existência física, essa era evidente, clamava por todos os poros - não de uma existência mental, a existência 

mental no sentido de Descartes, do “penso, logo existo”, essa era uma 

história que já conhecíamos - tratava-se de existência mental, no sentido 

de que se o pensador, quando pensa, está preocupado com sua própria 

existência, não a esquece um só minuto, tem como objetivo dar-lhe 

assistência, não abandoná-la, existir no pensamento, não se exilar da 

existência.

Esse diálogo difícil poderia se prolongar indefinidamente. Por mais tranquilizadoras que fossem as respostas, sentia-se que faltava ainda

 

algo, o interrogatório não chegava a uma conclusão satisfatória. Tentávamos mais uma pergunta: quando o pensador pensa em si, na sua 

existência, está excluindo as idéias? A prática da vida não exclui a teoria? 

As respostas persistem em manter o seu caráter inconclusivo. Faltava 

qualquer coisa que se recusava a aparecer. Mas de repente a simples 

inversão do  cogito surge como uma solução possível; e se disséssemos-  

“eu existo, logo penso”? Heureca! É possível, quando se é um ser 

humano, existir sem pensar? - Um homem pode pensar sem existir, isto 

é, esquecendo de si mesmo - mas, a menos que seja um gaiato, um 

palhaço, uma personagem cômica, não pode existir sem pensar.

E aqui nos vemos de novo confrontando o problema da comicidade 

ou da ironia que a revela. Sempre que pensarmos na relação entre o 

pensamento e a existência, seja privilegiando o pensamento, seja privilegiando a existência, encontraremos a possibilidade do cômico. Bergson, no seu ensaio sobre o riso, nos diz que “un personnage comique est 

généralement comique dans l’exacte mesure où il s’ignore lui-même. Comme s’il usait à rebours de l’anneau de (iyger, il se rend invisible à 

lui-même en devenant visible à tout le monde”. E mais adiante: “U est  

comique de se laisser distraire de soi-même”.

O primeiro ponto sobre o quai Bergson deseja chamar a atenção é  

o de que não há nada de cômico fora do domínio propriamente humano. 

Uma paisagem pode ser bela, graciosa, sublime, insignificante ou feia; 

 jamais será ridícula. Podemos rir de um animal, mas será unicamente 

porque surpreendemos nele uma atitude ou uma expressão humana. 

Podemos rir de um chapéu; mas o que nos faz rir nele não é o feltro ou 

a palha, mas a forma que lhe foi dada pelo homem, o capricho humano 

que inspirou o modelo. Como um fato tão importante na sua simplicidade não prendeu mais a atenção dos filósofos? Vários dentre eles têm

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definido o homem como um animal que sabe rir. Teriam podido defini-  

lo como um animal que faz rir porque, se algum outro animal ou algum 

objeto inanimado o consegue, é unicamente pela semelhança com o 

homem ou pelo uso que dele o homem faz.

Um segundo ponto abordado por Bergson é que, para compreen

der o riso, é preciso recolocá-lo no seu meio natural, que é a sociedade; 

é necessário, sobretudo, determinar sua função útil, que é uma função  

social. O riso deverá responder a certas exigências da vida em comum. 

Deve ter uma significação social.

No que se refere ao cômico das palavras, Bergson pensa que a 

função do riso é castigar os costumes, fazer uma correção. Não temos 

dificuldade em adotar essa abordagem, mas cremos que é importante 

assinalar, nesse tipo de comicidade, o fato de que o riso é uma forma de  

comunicação entre os homens, uma forma de comunicação que já 

conhecemos, de que já falamos, uma forma de comunicação que visa 

transmitir mensagens de uma maneira indireta. As palavras que provo

cam o riso não são palavras que nos informem de alguma coisa ou que 

nos instruam; são palavras que não ambicionam provar qualquer coisa, 

nem defender ou refutar uma tese - são simplesmente palavras que 

suscitam um estado de espírito que nos predispõe à incredulidade. Um 

pensador que conseguir, através desse método, criar um tal estado de 

espírito a respeito da obra de um seu opositor terá talvez avançado muito 

mais, no sentido de uma refutação dessa obra, do que se tivesse diligen

ciado em encontrar argumentos e em armazenar provas para invalidá-la. 

O riso teria aqui uma função essencial. Ele nos restituiria a liberdade  

que a reputação e o prestígio do pensador criticado nos haviam roubado. 

Ele nos comunicaria talvez novas forças para recomeçar, numa outra 

base, um esforço de compreensão. Ele “limparia” a área de nossa  

investigação para um novo exame mais exigente, mais rigoroso.

O cômico, diz-nos Bergson ainda, resulta do mecanismo rígido que 

surpreendemos uma vez ou outra, como um intruso, na continuidade 

viva das coisas humanas; ele é como que uma distração da vida. Quanto 

mais profunda é a distração, mais alta é a comicidade. E cômico se deixar 

distrair de si mesmo. O cômico dos acontecimentos pode se definir 

como uma distração das coisas, da mesma forma que o cômico dum 

caráter individual deriva sempre de uma certa distração fundamental da 

pessoa. Mas a distração das coisas é excepcional. Seus efeitos são 

ligeiros. E ela é, em todo caso, incorrigível, de forma que não produz  

efeito algum a gente rir-se dela. A idéia de criar uma arte em função

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dela, o vaudeville, não viria ao espírito de ninguém, se o riso não fosse 

um prazer e se a humanidade não aproveitasse a menor ocasião para 

provocá-lo.

A distração das pessoas é, porém, diferente. É uma distração mais 

profunda. Quanto mais profunda é a distração, mais alta é a comicidade. 

E profundamente cômico se deixar distrair de si mesmo. Aqui o abuso 

que se faz do riso, no caso da distração das coisas (no vaudeville), é talvez 

compensado por uma certa desatenção, por um certo desaproveitamento das fontes do cômico que nos estão sendo oferecidas.

Vejamos Hegel, por exemplo. Não temos aqui o caso de alguém que, 

em virtude de uma espécie de “distração histórico-mundial”, esqueceu- 

se de que é um ser humano? Não, naturalmente, que tenha esquecido o 

significado do ser humano em geral - isso os filósofos especulativos não 

esquecem nunca -, mas esquecido do que significa o fato de que você, 

ele e eu somos seres humanos, cada um por si mesmo. De esquecimento 

em esquecimento, de distração em distração, ele chegou aos resultados 

mais surpreendentes. Em primeiro lugar, sua incomparável descoberta, 

a introdução do movimento na lógica - depois de anunciá-la, Hegel 

esqueceu-se de mostrar em que parte da lógica o movimento se tinha 

aninhado. Era, de qualquer modo, uma grande distração fazer do  

movimento uma coisa fundamental numa esfera onde o movimento é 

impensável; e era uma distração ainda maior fazer o movimento explicar 

a lógica, quando a lógica não consegue explicar o movimento.

Outra distração de Hegel diz respeito ao Sistema. O Sistema, diz 

ele, começa com o imediato, isto é, sem nenhum pressuposto, absolutamente; o começo do Sistema é um começo absoluto. Mas como começa

 

o Sistema com o imediato? Imediatamente? Hegel esqueceu de fazer essa pergunta. Esqueceu de pensar que o Sistema não poderia surgir 

antes da existência e que por isso era forçosamente ex post facto, isto é, não começava imediatarnente  com o imediato, o que só a existência

 

poderia fazer, embora, em outro sentido, se possa dizer que a existência 

não começou com o imediato, porque o imediato não é nunca tal, mas 

é transcendido tão cedo apareça. O começo que inicia com o imediato 

é, pois, atingido através de um processo de reflexão. Hegel distraiu-se 

tanto que chegou a esquecer que nenhum sistema lógico pode gabar-se de ter um começo absoluto, porque tal começo, como o ser puro, é uma 

pura quimera.

E curioso que essas coisas todas, essas pequenas distrações e a 

distração maior, que foi, no caso de Hegel, o esquecimento de si mesmo,

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só tenham parecido cômicas ao pensador dinamarquês. Isso prova, creio 

eu, o que disse antes sobre o abuso do riso no caso do vaudeville  e a 

parcimônia com que se utiliza o riso no caso da distração das pessoas.  

Um único filósofo capaz de rir no meio de uma multidão de basbaques 

e admiradores! É verdade que esse filósofo foi também o único que, em 

sua época, avaliou, com total consciência e clareza, a significação e a 

importância de uma figura como a de Sócrates. Foi o único que compreendeu, através de Sócrates, a significação profunda do fenômeno da 

ironia. Foi o único que assimilou, em profundidade, a lição de Sócrates. 

Nietzsche, que apareceu em cena um pouco mais tarde, fez o mesmo,  mas não de modo totalmente consciente. Sua problemática dividia-lhe 

a personalidade epi duas partes: uma mais superficial, mais epidérmica, 

que era anti-socrática; e outra mais profunda, a parte verdadeiramente 

criadora, que reproduzia, no registro da desconfiança, da suspeita, às 

vezes mesmo do sarcasmo, o método da ironia que a dialética socrática  

inventara.

A ironia socrática era bem o modelo em que se pautara Kierke-  

gaard. O filósofo ateniense tivera diante de si homens como os cristãos 

de Kierkegaard, a quem era necessário pregar o cristianismo, isto é, não 

homens totalmente ignorantes e que precisavam receber uma certa 

instrução - não homens que podiam ser comparados a um vaso vazio, 

que precisa ser enchido, ou a uma folha de papel em branco, sobre a 

qual algo deverá ser escrito; tivera diante de si homens comparáveis a 

textos que estavam escondidos sob outros textos mais recentes e que só 

poderiam ser revelados pela aplicação de um fluido cáustico. Eram, ém 

suma, homens que, como os cristãos de Kierkegaard, eram vítimas de  

uma ilusão e que precisavam, em primeiro lugar, ser desembaraçados  

dela. Sócrates, em princípio, queria comunicar a verdade aos homens. 

Se eles fossem livres de ilusões, se fossem como uma folha de papel em 

branco, o que deveria fazer era começar poí comunicar diretamente a 

verdade. Essa comunicação tem como pressuposto que a capacidade do 

recipiente de acolhê-la esteja perfeitamente intacta. Mas vimos que aqui 

não é o caso. Uma ilusão perturba, impede essa perfeita acolhida. Quer 

dizer: é preciso, em primeiro lugar, aplicar ao texto escondido o fluido 

cáustico. Esse fluido, em termos de comunicação da verdade, significa 

negatividade, e negatividade, entendida em nosso contexto, significa 

dissimulação ou disfarce.

E o que significa, nessa fase da nossa discussão, dissimular? -  

Significa não começar diretamente com a matéria que se quer comuni

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car, mas começar aceitando as ilusões do próximo, do interlocutor,  como moeda legítima. É o que Sócrates fazia. É o que Kierkegaard  

aprendeu a fazer com Sócrates. É o método da comunicação indireta. 

E o método que Nietzsche aplicará mais tarde, com uma diferença - tornando mais dramático, mais intenso, mais emocionalmente envolven

te o jogo com a ilusão a ser vencida - , fundindo o metal frio da ironia no 

cadinho incandescente, onde borbulham as paixões.

Mais do que o estado precário de sua saúde, o fato que incompatibilizou Nietzsche com a vida acadêmica foi o ataque desabrido que

 

empreendeu contra a veneranda figura de Sócrates. É verdade que, depois, a deterioração de suas condições físicas determinou de forma 

imperiosa seu afastamento do magistério. Mas é probabilidade extremamente remota a suposição de que, sem sua enfermidade, Nietzsche

 

teria continuado a participar das atividades e dos interesses do mundo  

acadêmico. Em A Origem da Tragédia, Sócrates é apresentado como um 

“decadente”, o “primeiro decadente”, o homem que destruiu, que 

arruinou com seu racionalismo, com seu otimismo, com sua atitude 

teórica, a seiva vigorosa, o ímpeto dionisíaco, o sentimento pessimista e 

trágico da cultura grega dos séculos que o precederam. Este foi o 

verdadeiro motivo do sentimento de escândalo que experimentou por 

exemplo Wilamowitz. Este scholar,  que veio a se tornar mais tarde o 

“papa” da scholarship clássica na Alemanha, escreveu dois artigos com' 

o propósito bem definido de declarar Nietzsche persona non grata  no 

mundo acadêmico e não só isso - com o propósito de obter também, 

entre os seus colegas, o maior número possível de adesões a essa 

declaração. Wilamowitz foi, ao que parece, movido igualmente por 

outras razões de ordem pessoal menos admiráveis - o essencial é que 

tinha nas suas mãos um bom motivo e que dele se valeu com a energia  

que lhe inspirava a jovem crença no valor e no respeito devido à 

disciplina que abraçara.

De um autor que inicia sua nova carreira de pensador independente, de explorador e franco-atirador no mundo da cultura, a partir de uma

 

atitude tão radical, de uma crítica tão ousada, o que se poderia esperar era que essa atitude radical, essa crítica ousada fossem determinantes 

para o resto da sua existência. Nietzsche, o crítico de Sócrates, o 

primeiro pensador de grande envergadura a repudiar, em todo o curso 

da história ocidental, os ensinamentos do grande mestre, deveria forço-

114 MARIO VIEIRA DE MELLO

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samente fazer refletir, na sua obra subsequente, as conseqüências de um 

tal repúdio. Na sua natureza, deveria existir forçosamente um traço 

profundo, um traço que o fizera não vacilar diante da radicalidade  

daquela atitude, um traço eminentemente anti-socrático. Esse traço 

explicaria a origem e o sentido último de sua obra.

As explicações, com efeito, não se fizeram esperar. Nietzsche era 

um ser dionisíaco, amante da música, e Sócrates era um apolíneo,  

indiferente à música. Sócrates era ainda menos que um apolíneo (que 

preserva um contato com suas raízes dionisíacas), era um teórico, um 

racionalista, uma alma devorada pela obsessão da verdade. Nietzsche, 

ao contrário, era um artista que ousava ter, nas suas relações com a 

verdade, liberdades que Sócrates jamais se permitiria.

Todas essas explicações e muitas outras não chegavam, entretanto, 

a dissimular um fato que foi se tornando cada vez mais visível para todos 

os estudiosos que se debruçavam sobre a obra nietzschiana - a presença 

nela, obsessiva, embora invisível, daquele homem, daquele mestre que 

Nietzsche começara por repudiar. Ernst Bertram foi talvez o primeiro 

- em todo caso foi o mais penetrante - dos críticos que tiveram uma 

sensibilidade para esse fenômeno. Mas Bertram foi uma vítima do seu 

próprio romantismo, que procurou projetar na personalidade estudada. 

A presença invisível de Sócrates, na obra de Nietzsche, ele a atribui a 

uma atitude nostálgica. Nietzsche teria a melancolia de não poder ser 

como Sócrates. Bertram acumula, no capítulo do seu ensaio sobre 

Nietzsche dedicado a Sócrates, um número impressionante de citações, 

que provam pelo menos a freqüência com que a visão do ateniense  

aparecia ao espírito do alemão; mas a questão de saber se essas frequen

tes visões eram frutos da nostalgia ou de uma concentração contínua sobre um modelo - um modelo que tinha o sentido de uma força viva e 

atuante -, essa questão Bertram deixou informulada.

Bertram teve, sem dúvida alguma, o mérito de tornar suficientemen

te claro o fato de que o problema Sócrates, na obra de Nietzsche, é muito 

mais complexo do que se poderia pensar numa primeira impressão. Os 

fatos que mais calavam no nosso espírito, quando ainda estávamos sob 

uma tal impressão, eram o caráter dionisíaco da natureza de Nietzsche  

e seu envolvimento com a música. Sua primeira esperança de uma 

regeneração da cultura, através dos efeitos produzidos por obras de arte 

e em particular por uma criação musical, se situava bem nas antípodas 

do ideal de um Sócrates - de um Sócrates antiartista e antimusical. 

Sócrates parecera ser seu inimigo natural. E essa imagem de contornos

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hem firmes e nítidos parecera constituir uma viga mestra do edifício do 

seu pensamento, embora houvesse aqui e ali uma observação, um reparo  

que podia prejudicar a transparência da imagem que se tinha formado.Essa primeira abordagem de Nietzsche lembra uma abordagem de 

Platão que não é incomum. Platão, como se sabe, expulsou os poetas de 

sua  República.  Tanto bastou, para que se pensasse e se dissesse que 

Platão era inimigo da poesia - essa é uma opinião que encontra ainda 

hoje uma larga audiência. Ora, se Platão expulsou os poetas de sua 

 República, ele o fez num espírito de competição, em virtude do desejo  

que tinha de assumir o papel que antes era atribuído aos poetas. Homero 

havia sido o educador da Grécia, e todos os poetas que o tinham 

sucedido haviam contribuído para essa grande obra da educação dos 

helenos. Quando Platão surge, já a filosofia, por intermédio de Sócrates, 

se apresentava com a intenção de ser a continuadora dessa grande obra. 

A filosofia baseava sua pretensão no fato de ser uma força educacional  

mais consciente, mais organizada, mais concentrada, mais deliberada, 

no fato de ser uma força que produzia efeitos educacionais elevados a 

uma potência superior. A filosofia não era inimiga, mas continuadora, 

uma competidora substituta da obra dos grandes poetas. Essa era pelo 

menos sua ambição, que pressupunha naturalmente alguma crítica, uma 

crítica severa mesmo, mas sobretudo uma relação respeitosa com aquela 

função, com aquela tradição - uma admiração, uma veneração por 

aquela força, cujas funções queria agora assumir. Afinal de contas, a 

influência que queria suplantar era a influência que modelara a Grécia. 

Havia sido o elemento mais essencial na gestação dessa cultura grega 

que o mundo inteiro admirava. O fato de Platão ter expulsado os poetas 

de sua  República,  longe, pois, de trair uma natureza avessa à poesia, 

revelava, ao contrário, sua natureza de grande poeta metamorfoseado 

em filósofo. Essa é, aliás, a informação que nos transmite a tradição; e 

é também a impressão que produz o conjunto de suas obras; trata-se,  

portanto, de uma miopia singularmente curiosa procurar ver em Platão 

um inimigo da poesia e julgar desnecessário explicar como, em tal caso, 

poderiam florescer os dons que lhe permitiram escrever seus mais belos 

 Diálogos.

Com relação a Nietzsche, o mesmo fenômeno ocorre. Nietzsche 

expulsou Sócrates de sua  República, e por isso logo se disse que Nietzs

che era inimigo de Sócrates. Mas as razões dessa expulsão foram as 

mesmas que moveram Platão. Sócrates havia sido o grande educador do 

Ocidente. Nietzsche se apresentava como um competidor, um continua-

l lh MARIO VIEIRA DE MELLO

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dor, um substituto do grande ateniense. Era essa sua ambição, que 

pressupunha naturalmente emulação, admiração, veneração por aquela 

tradição, aquela força, aquela função que queria agora assumir. Afinal 

de contas, Sócrates havia sido o mestre de todo o Ocidente, o principal responsável por uma cultura que se havia imposto ao mundo inteiro. 

Nietzsche tinha suficientemente senso histórico para compreender que 

sua ambição envolvia enormes responsabilidades. A expulsão de Sócra

tes de sua República dava, a quem a compreendesse, a medida exata da 

ambição nietzschiana. Essa expulsão não podia, portanto, ser explicada 

por motivos mesquinhamente temperamentais. Não se tratava do fato 

de ter Nietzsche uma natureza avessa ao espírito socrático; seus motivos 

tinham a ver fundamentalmente com uma imposição histórica e revelavam, ao contrário, uma natureza essencialmente socrática. Essa é, aliás, 

a impressão que produz o conjunto das obras de Nietzsche; e certamente 

trata-se aqjji também de uma miopia singular procurar ver em Nietzsche 

um inimigo de Sócrates e julgar desnecessário explicar como, em tal 

caso, puderam florescer os dons que lhe permitiram escrever seus 

aforismos mais admiráveis.

Quando, em A Origem da Tragédia, Nietzsche nos descreve Sócrates 

como uma “natureza completamente anormal em quem a sabedoria 

instintiva não intervém senão para entravar, combater o entendimento 

consciente”; quando diz que “enquanto nos outros homens, no que diz 

respeito à gênese da produtividade, o instinto é precisamente a força 

positiva, criadora, e a razão consciente desempenha uma função crítica, 

desestimulante, em Sócrates o instinto se revela crítico e a razão criado

ra - verdadeira monstruosidade perfectum”; quando declara que “se 

constata nisso uma monstruosa falta de toda disposição natural ao 

misticismo” - quando focaliza, no Ecce Homo, os elementos que cons

tituem sua inteligência do socratismo: “Sócrates reconhecido pela pri

meira vez” (em  A Origem da Tragédia)  “como o instrumento da 

decomposição grega, como o tipo do decadente” - quando faz tudo isso, 

Nietzsche está na verdade formulando uma crítica e uma crítica severa.  

Mas é curioso que na própria Origem, no parágrafo que precede ime

diatamente sua denúncia radical, Nietzsche pergunte a si mesmo, como 

que assustado com a blasfêmia que pronunciaria logo a seguir:

Quem é este homem que sozinho ousa renegar a própria essência do helenismo;

que sozinho ousa se subs tituira Hom ero, a Píndaro, a Esquilo, substituir Fídias e Péricles,

suplantar a Pitonisa e Dionísio, e que como o abismo mais insondável e o cume mais alto

está certo de antem ão de nossa admiração e nosso culto? Oue força sobren atural ousa

 NIETZSCHE: O SOCRA TES DE NOSSOS TEMPOS 117

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 pensar t er o direi to de deixar se perder na poeira aquele filtro encantado? Quem é este

semideus contra o qual o coro invisível dos mais nobres entre os seres humanos se vê

reduzido a protestar Desgraça! Desgraça! Este mundo de beleza tu o derrubaste com

teu braço possante; ele cai, se desmorona!

Essa é a primeira, mas não é a única manifestação de veneração e 

de respeito que a legenda de Sócrates provoca em Nietzsche. Muitas  

outras e mais incisivas nos mostram como não há nele apenas assombro  

diante do fenômeno socrático, mas também interesse, curiosidade, de

sejo de uma maior compreensão que permita uma emulação mais 

perfeita. Não é por nostalgia que, no Ecce Homo, Nietzsche, o psicólogo 

incomparável, nos diz que, em Schopenhauer educador e em  Richard  

Wagner em Bayreuth, quis abordar coisa totalmente diversa da psicolo

gia;

um problema de educação sem igual, uma nova concepção da disciplina de si, da defesa

de si mesmo, indo até a dureza, um caminho para a grandeza e para missões que

interessam a história universal, tudo coisas que precisavam ser expressas pela primeira

vez.

Nietzsche, o psicólogo, o conhecedor da alma humana, se mostra 

então desinteressado pelo conhecimento que não visa a educação do 

homem - tal como o Sócrates que nesses momentos procurava emular. 

Não era por nostalgia que Nietzsche procurava desde sua juventude uma 

forma de atividade capaz de metamorfosear o ser humano. O que  

Sócrates fizera a seu modo cumpria fazer agora de modo diverso. 

Sócrates escolhera a dialética; Nietzsche pensara a princípio que a arte, 

a arte trágica, o drama musical de Wagner podiam realizar o milagre. 

“Quando imagino”, diz em uma carta escrita a Erwin Rohde, logo após  

o grande concerto wagneriano de Mannheim em 1871, “quando imagino 

somente algumas centenas de homens, na próxima geração, experimen

tando pela música o que eu mesmo experimento, sinto nascer em mim 

a esperança de que surja deles uma civilização absolutamente nova!” A 

idéia volta nas Considerações que tratam “Da Utilidade e dos Inconve

nientes da História”:

Suponha alguém persuad ido de que bastam cem homens, não mais do que isso, mas

 produtivos, educados e agindo com um espírito novo pa ra expulsar da Alemanha a falsa

cultura que justamente no momento está na moda; que força lhe daria saber que a

civilização do R enascimento emergiu deste modo, sobre os ombros de uma centena de

homens formada em coorte.

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Fala aqui o educador socrático, o homem impaciente para quem 

tarda o momento de entrar em ação, não o pensador nostálgico que  

evoca possibilidades irremediavelmente perdidas. Se tivermos disso 

alguma dúvida, leiamos um pouco mais adiante, no mesmo livro: “Fechem ao redor de si o cercado de uma vasta e grande esperança [...] 

Modelem em vocês mesmos uma imagem à qual corresponda o futuro 

e esqueçam essa superstição de que vocês são Epígonos  Bertram, 

que levantou a hipótese da nostalgia, cita essas palavras que deveriam 

tê-lo feito refletir melhor. Leiamos ainda:

Alimentem suas almas com Plutarco e ousem crer em vocês mesmos ao acreditar

em seus heróis. Com uma centena de homens educados de uma maneira tão poucomoderna, isto é, amadurecidos e acostumados ao heroísmo, pode-se agora reduzir ao

silêncio para sempre toda essa falsa cultura espalhafatosa de nosso tempo.

A idéia de uma Academia de Cavaleiros da Ordem do Templo, 

platônicos, de uma Ordem dos Cavaleiros do Templo da Verdade, de  

um monasticismo da arte, duma loja maçónica daqueles que foram 

batizados pela música, de uma Academia de Adeptos do Grande Ho

mem - todos esses projetos se formam no espírito de Nietzsche no seu primeiro período, revelando a força de sua inspiração socrática. Por 

vezes a Academia adquire um caráter tradicional, outras vezes um 

caráter revolucionário, extravagante - mas invariavelmente permanece 

a idéia de uma comunidade destinada a servir de alavanca para a 

civilização que deverá surgir.

Mas até agora só temos falado do primeiro período da carreira 

intelectual de Nietzsche, do livro A Origem da Tragédia  e de todo o 

mundo de experiências e de idéias que se organizou em torno dele. Com a experiência representada pela ruptura com Wagner, uma nova pers

pectiva se abre do ponto de vista das relações que já existiam entre  

Nietzsche e Sócrates. O racionalismo, o intelectualismo que até então  

haviam constituído a objeção fundamental de Nietzsche ao grande 

ateniense passaram a ser revalorizados na personalidade de Voltaire. O 

que acontecera? - Nietzsche perdera sua fé no poder regenerador da 

arte. Seu retorno a Sócrates se faz então de maneira gradual e quase 

inconsciente. Nietzsche escreve seu  Humano, âemasiadamente Huma no: Um Livro para os Espíritos Livres.  Esboçado durante a estação de 

inverno em Sorrento (1876-1877), o livro não seria publicado, diz Nietzs

che, em começos de 1878, se a proximidade do dia 30 de maio não tivesse 

suscitado nele o mais vivo desejo de oferecer a tempo uma homenagem

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pessoal a um dos maiores liberadores do espírito humano. O livro, um 

monólogo, foi dedicado à memória de Voltaire, por ocasião do centési

mo aniversário de sua morte, em 30 de maio de 1778.

Nietzsche perdera sua fé no poder regenerador da arte. Perdera a 

fé no poder liberador da música. E na ânsia de encontrar um novo  

caminho capaz de levar o homem à liberdade, voltava-se para a perso

nalidade que, mais do que qualquer outra, fizera da razão sua bandeira  

e sua glória.

E curioso lembrar que, justamente nesse curto momento de encon

tro com o filósofo do Século das Luzes, Sócrates tenha sofrido seu 

primeiro e talvez único eclipse no firmamento de Nietzsche, eclipse 

causado aparentemente pelo aparecimento do novo planeta; esse fato 

não ocorrera no momento mais longo do encontro com Wagner, o que 

teria parecido mais compreensível - curiosamente, o que se produzira 

havia sido apenas, como já mostramos, uma visibilidade menor do 

ateniense. No Humano, demasiadamente Humano, entretanto, as refe

rências a Sócrates que encontramos são todas, com duas ou três exce

ções, pouco significativas, de um teor negativo. E essas exceções, o 

acordo registrado com opiniões socráticas ou com opiniões sobre Sócrates, dizem respeito a questões de tal modo conhecidas ou banais que 

se diria ter sido a intenção de Nietzsche sublinhar que só em relação a 

tais questões um acordo com Sócrates seria possível. Quando se trata 

de assuntos que têm para ele uma significação maior, Nietzsche se 

mostra então mais do que nunca irreconciliável. Sócrates, por exemplo,  

era a “pedra” jogada nas engrenagens da máquina em movimento 

acelerado da cultura grega, acidente que a fizera quebrar; era mestre 

em determinados assuntos e por isso mesmo se tornara ignorante na 

maior parte dos outros; era o marido de Xantipa, obrigado por ela a 

viver fora de uma casa que lhe era hostil, reduzido a viver nas ruas onde 

pudesse palrar e flanar; isso havia feito dele o maior dialético das ruas 

de Atenas, o que não o privara do desejo de se comparar a uma mosca 

que um deus teria colocado no pescoço daquela bela égua Atenas, para 

deixá-la intranqüila; Sócrates era certamente o homem em quem Nietzs

che pensava quando dizia que a ironia só se justifica como meio peda

gógico aplicado por um mestre nas relações que tem com seus discípulos 

- que em outras ocasiões ela era apenas falta de compostura, vulgarida

de d’alma, que corrompia o caráter de quem se habituava a ela e dava 

origem, pouco a pouco, a uma qualidade de alegria maligna. A ausência  

deliberada do nome de Sócrates nessas considerações levantava natu-

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ralmente a dúvida sobre se seria ele o mestre através de quem se  

 justificaria a ironia ou se não estaria ele ao contrário incluído na censura 

da vulgaridade d’alma manifestada “em outras ocasiões”; essa suspeita 

se reforçava com outra referência à ironia em que Sócrates é mencionado, sem que se saiba se e a propósito do aspecto negativo ou do aspecto 

positivo da ironia - e com ainda uma outra, em que só o aspecto negativo 

é mencionado; Sócrates finalmente, confia-nos Nietzsche, havia sido 

muito bem retratado - não por Platão, que dele fizera uma caricatura, 

mas por Xenofonte, que dele nos transmitira uma imagem verdadeira

mente fiel, exatamente tão inteligente quanto era o modelo - frase de uma 

malícia que revela uma hostilidade incontrolável.

Foi somente dois anos mais tarde, no texto do Viajante e sua Sombra, 

que as referências de Nietzsche a Sócrates passaram a ter um sentido  

mais positivo. Merece um comentário essa incompatibilidade total que 

se manifestou entre Voltaire e Sócrates quando, entre Wagner e Sócra

tes, se manifestara apenas uma incompatibilidade parcial. O curto 

eclipse da figura de Sócrates, no período voltairiano, não ocorreria se 

não tivesse havido, ao mesmo tempo, um eclipse do projeto educacional 

no espírito de Nietzsche - e não há naturalmente prova mais evidente 

da solidariedade que havia nele entre a figura de Sócrates e esse projeto.

Educado [diz Nietzsche nesse período desabusado] todo homem é, pelas circuns

tâncias, pela sociedade, pelos parentes, irmãos e irmãs, pelos acontecim entos do tempo,

do lugar: mas tudo isso é uma educação feita ao acaso, muito apropriada a dar de muitas

maneiras ao ser humano uma formação infeliz. Ora a humanidade no seu conjunto não

conseguiu ainda ultrapassar essa educação feita ao acaso: en travada que foi po r esta idéia

metafísica (que em botou mesmo o espírito agudo dum Lessing) de que Deus se respon

sabilizou pela educação dos homens e de que somos incapazes de compreender suas

intenções. Daqui po r diante a educação deverá se pro po r fins ecumênicos e excluir o acaso

mesmo no destino dos povos: - tarefa tão grande que uma espécie ab solutamen te nova

de educadores, uma organização nova de médicos, professores, padres, naturalistas,

artistas da antiga civilização...

Nietzsche não termina seu pensamento, mas é evidente que fala 

aqui a voz do desânimo.

A extraordinária precariedade de todas as formas do ensino [diz-nos ele ainda maisadiante) que faz que cada adulto de nossos tempos tenha o sentimento de que seu único

educador foi o acaso - a versatilidade dos m étodos e dos fins da educação se explicam

 pelo fa to de que atualm ente tanto as forças civilizadores mais antigas quanto as mais

recentes querem numa assembléia pop ular tumultuosa ser ouvidas mais que com preen

didas e demonstrar a todo preço, por seus clamores, que elas existem ainda   ou que  já

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existem.  Os pobres professores e educadores ficaram a princípio estonteados pela gritaria

^sens ata, depois reduzidos ao silêncio e finalmente atoleimados, suportando essas coisas

com a mesma resignação que revelam ao transm itir tudo aos alunos. Eles próprios não

são educados; como poderiam educar? Eles próprios não são troncos verdes e vigorosos,que cresceram sem desvios: quem q uiser se apo iar neles deverá se torcer e se curvar a fim

de toma r igualmente uma atitude contorcida e contrafeita.

Aqui o pensamento inconcluso do aforismo precedentemente cita

do é novamente abandonado - a tarefa de uma educação nova é tão 

grande que é melhor esquecê-la. Nietzsche fixa seus olhos somente  

sobre a miséria da educação de seu tempo, faltam-lhe forças para 

retomar seu grande projeto.

Por mais estranho que isso pareça à nossa época [diz ele ainda uma vez], já houve

 poetas e artistas cuja alma estava acima das paixões, de suas convulsões e de seus êxtases

e que por isso se deleitavam com assuntos claros e nítidos, caracteres dignos, intrigas e

desenlaces delicados. Se por um lado os grandes artistas de hoje são na sua maioria

capazes de dar livre curso à vontade e por isso mesmo, em certas circunstâncias, capazes

de liberar a vida, por outro lado, os outros, os de antigamente sabiam disciplinar a

vontade, metamorfosear o animal, ser criadores do homem e, em suma, ser escultores

que executavam a tarefa de m odificar e aperfeiçoar as formas de vida - enquan to hoje a

glória dos contemporâneos é procurada na rejeição das imposições, nos grilhões que se

 partem, na destruição . Os gregos antigos pediam ao poeta que fosse o educador dos

adultos; mas que vergonha sen tiria hoje um poeta a quem fosse pedido isso, a ele que não

foi um bom professor de si mesmo e que não sabe por isso fazer de sua pessoa um bom

 poem a, uma bela ob ra. O que ele é, na melhor das hipóteses, não passa de uma certa

forma de escombros de um templo, atraentes e inquietantes, mas também, com isso, de

uma caverna de apetites, recob erta como uma ruína, de flores, plantas cheias de espinhos,

ervas venenosas, caverna povoada e dom inada p or serpentes, vermes, aranhas e pássaros

- objeto de uma meditação entristecida que pergunta p or que se faz necessário que os

seres mais nobres e os mais preciosos se desenvolvam pa ra tomarem -se logo uma ruína,sem conhece r nem o passado nem o fu turo da perfeição.

Não pode haver expressão mais desolada de uma situação criada 

pela educação “feita ao acaso”. Mas dois anos depois da publicação do 

 Humano, demasiadamente Humano, encontraremos no texto do Viajan

 te e sua Sombra um luar de esperança. Nietzsche começa a entrever “o  

lado perigoso da filosofia das luzes”. Citemos ainda esse aforismo, que 

nos parece essencial para a compreensão do que se passa, neste momento preciso, no espírito de Nietzsche.

E um conjunto de traços quase dementes, histriónicos, bestialmente cruéis, volup

tuosos e sobretudo duma sentimentalidade sempre pronta a se embriagar de si mesma

que constitui o fundo propriam ente revolucionário e que a ntes da Revolução se tinham

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encarnado na pessoa e no gênio de Rousseau: ora, o indivíduo que esses traços definem

encon trou meios ainda de com um entusiasmo perverso colocara filosofia das luzes sobre

sua cabeça fanática; e ela começou a brilhar como que transfigurada por esse halo, essas

mesmas luzes que no fundo lhe eram tão estranhas, e que agindo por si próprias teriam

 podido como um raio bri lhante atravessar tranquilamente as nuvens durante muito

tempo e se contentando em refoimar apenas os indivíduos poderiam depois reformar,

em bora lentamente, os costumes e as instituições dos povos. Mas agora, associada a um

fenômeno violento e brutal, a filosofia das luzes se fez ela própria violenta e brutal. O

 perigo que ela representa se tornou quase maior que o elemento útil de emancipação e

esclarecimento que ela introduziu no vasto movimento revolucionário. Quem com preen

der isso saberá também de que confusão trata-se agora de arrancá-la e de que sujeira

 purif icá-la a fim de que possa  con tinuar cm seguid a p o r si m esm a  a obra das luzes e de,

esmagando o germe da Revolução já acontecida, fazer como se ela não tivesse ocorrido.

Nietzsche começa aqui a se emancipar da sedução voltairiana, do 

sortilégio da filosofia das luzes. Não estaria ele já em condições de voltar 

ao seu velho projeto educacional e por isso mesmo de ceder, como 

antigamente, à irresistível atração que exercia sobre ele o fenômeno 

socrático? É na verdade o que vemos concretizado nesse mesmo texto 

do Viajante e sua Sombra,  no aforismo “Missionários divinos”, que 

reconhece em Sócrates, sem reticências maiores, uma atitude corajosa 

de liberdade em virtude da qual o missionário se coloca no mesmo nível de Deus. Logo em seguida, Nietzsche ainda prevê que, se tudo andar 

bem, tempo virá em que, para o aperfeiçoamento da moral e da razão, se preferirá recorrer às  Memórias  de Sócrates antes que à Bíblia. “Sócrates”, diz Nietzsche, “tem sobre o fundador do cristianismo a 

vantagem do sorriso que torna mais leve sua gravidade e a vantagem 

dessa sabedoria um tanto travessa que constitui no homem seu melhor 

estado de espírito.”

No prefácio de 1886 do primeiro volume do Humano, demasiada

 mente Humano,  Nietzsche reconhece que .inventou, num dia em que 

tinha netessidade disso, “os espíritos livres” aos quais é dedicado o livro; isso era um embuste, mas quem poderia lhe dizer que grau de falsidade 

lhe seria necessário para continuar a se permitir o luxo de sua veracidade 

própria? Esses espíritos livres, Nietzsche não duvidava que a Europa os 

tivesse um dia no futuro, ele já os via chegar, já previa seus contornos: 

deveriam, em primeiro lugar, passar por um grande acontecimento, uma grande libertação - um grande abalo, um rompimento, um dilaceramen- to -, a alma que experimenta isso não compreende o que se passa. E um 

elã, um impulso que comanda e que a submete a uma ordem - uma 

vontade que desperta de partir não sabe para onde, a qualquer preço;

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uma curiosidade que se inflama em todos os sentidos, veemente, peri

gosa, um desejo de mundos virgens. “Antes morrer que viver aqui”, diz  

a voz imperiosa e sedutora; e este aqui é tudo quanto havia amado até 

então! Esse desejo absurdo, insólito, faz da alma que o experimenta um ser solitário, doentio, cada vez mais doentio à medida que esse desejo 

vai se intensificando na afirmação de suas exigências. Mas de doença  

em doença, o caminho para quem o segue leva a uma saúde transbor- 

dante, que chega mesmo a fazer da doença um meio e uma isca para o  

conhecimento; leva também àquela liberdade de espírito, amadurecida, 

que dá ao espírito o privilégio de viver a título de experiência.

Um passo a mais nessa cura, graças às súbitas luzes de uma saúde, 

por assim dizer, ainda vulcânica, ainda instável, e o espírito livre, cada vez mais livre, começa a adivinhar o enigma do grande acontecimento, 

da grande libertação, até lá obscuro, problemático, intangível. Até agora 

não havia ousado perguntar:

Mas por que esse isolamento? Por que essa renúncia a tudo o que se venera, por

que essa dureza, essa suspeita, esse ódio de minhas próprias virtudes? - a pa rtir desse

instante ele ousa formular a questão e ouve já qualqu er coisa como uma resposta: era

 preciso qu e te to rnasses senhor de ti próprio, senhor tam bém de tuas próprias v irtudes.Eram elas que te dominavam antes; mas agora não lhes será permitido senão ser

instrumentos ao lado de teus outros instrumentos.

Tal é a resposta que dá o espírito livre à questão do grande aconte

cimento, da grande libertação. E ao conhecê-la, ele compreende que o 

que lhe aconteceu deve acontecer a todo homem através de quem uma 

missão deve se realizar.

Nesse magistral esboço que nos oferece de sua evolução espiritual, Nietzsche liga o problema dos espíritos livres ao problema da missão 

que lhes era destinada. Não fica claro se “para ele” a consciência da 

missão vem antes, durante ou depois da aquisição da liberdade. Fica 

apenas claro que “para os outros” a missão deve se configurar depois  

da liberdade. Nietzsche nos diz que o estágio a que pertence o Humano, 

 demasiadamente Humano,  na evolução que acaba de descrever, não 

seria segredo para o psicólogo ou para o adivinhador. Curiosa enume

ração: como se os poderes de um e de outro representassem forças idênticas. Penso por vezes que Nietzsche inconscientemente preferiria 

que a questão permanecesse em segredo: pois logo após tê-la formula

do, ele se põe a perguntar, com uma certa volubilidade, se no mundo de 

hoje existem psicólogos.

124 MARIO VIEIRA DE MELLO

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Mas voltemos agora ao problema das relações entre Sócrates e 

Wagner e entre Sócrates e Voltaire, no pensamento de Nietzsche. E 

evidente que fora a consciência de uma missão que levara Nietzsche a 

idealizar a figura de Wagner e a repudiar a figura de Sócrates. O 

problema dos espíritos livres existia naquela época como que embutido 

na consciência de uma missão. Wagner ia regenerar a cultura, ia libertar 

os homens do espírito realista, otimista e teórico que a ciência criara. A 

Origem da Tragédia  era um grito de revolta contra o espírito estreito, 

acanhado, mesquinho da vida acadêmica de sua época. Era, além disso, 

o livro que fazia de um erudito um filósofo - um livro que lhe abria novos 

espaços, criava um mundo de liberdade para quem até então se sentira 

obrigado ao respeito pelos textos, pelos métodos de pesquisa convencionais, pela observância das regras de interpretação filológica. Pode-se 

mesmo dizer que o mérito maior desse livro reside justamente no fato 

de ter introduzido uma maior liberdade na maneira de se interpretar o 

mundo antigo. Não se trata de um trabalho de scholarship clássico. Mas 

contém uma boa quantidade de material que somente um scholar pode

ria conhecer; e pressupõe um certo número de coisas conhecidas de que 

só um scholar teria noção. Só poderia, por conseguinte, ter sido escrito 

por quem, independentemente do que pretendesse ser, fosse um scholar 

autêntico. E se havia um grupo de leitores a quem parecesse se dirigir 

de modo mais direto, ele só poderia ser composto de scholars  simpati

zantes ou pelo menos de espírito aberto.

Acontece, entretanto, que esse não era o único aspecto da questão. 

Ao lado dele havia um outro mais inquietante. Nunca se tinha visto um 

 scholar  denunciar com um vigor maior, de sua cátedra, o socratismo 

como heresia, o socratismo de que a ciência e a  scholarship  eram as 

expressões mais legítimas; nunca se praticara também tão fielmente o 

que se pregava, desrespeitando as normas mais óbvias da prosa acadê

mica e dando o curso mais pleno ao exercício de outras virtudes menos 

socráticas. E se, apesar de tudo, o livro representava uma contribuição 

significativa para a apreciação das realidades culturais e espirituais do 

mundo antigo, deixava no espírito do leitor uma pergunta, uma questão: 

como separar, como distinguir, nesse livro, o aspecto positivo do aspecto 

polêmico, perturbador, talvez negativo?Apesar de Wilamowitz ter exercido uma influência considerável na 

 scholarship grega das épocas subseqüentes, Eduard Fraenkel - um dos 

mais importantes  scholars  do nosso século e discípulo ele próprio de 

Wilamowitz - sugeriu que o fator mais poderoso a influir nas diferenças

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de perspectiva entre a geração de Wilamowitz e a sua havia sido exata

mente a influência de Nietzsche. Diz ele: “A Origem da Tragédia  foi a 

principal fonte dessa influência e é um livro que continua a merecer  

ainda hoje a atenção de todos os estudiosos sérios da Antiguidade”. Essa 

é também a opinião de M. S. Silk e de J. P. Stern; o primeiro, um 

especialista da literatura clássica dos gregos; o segundo, um especialista 

da literatura alemã (que publicou também um livro sobre Nietzsche).  

Esses doissc/to/a/s, trabalhando juntos, elaboraram um estudo sobre A  

Origem da Tragédia - Nietzsche on Tragcdy (1981) - que é a coisa mais 

completa e mais profunda que já surgiu até o presente momento sobre 

o assunto. A conclusão a que chegaram coincide com o que dissemos 

acima. A consciência de uma missão existia no filósofo desde o início e 

não prejudicara a contribuição do filólogo. Mas o propósito de uma 

maior liberdade, embora menos aparente, era tariibém profundamente 

real. Esse propósito ficou talvez um tanto na sombra, porque até pouco  

tempo se pensava que havia talvez, no Nietzsche filólogo, ao lado de 

intuições profundas, uma certa tendência ao diletantismo. As críticas de 

Wilamowitz tiveram um efeito que custou a morrer. Hoje, entretanto, 

vemos com a maior nitidez que, desde o início, a consciência de uma 

missão e a aspiração a uma maior liberdade eram, em Nietzsche, coisas 

tão intimamente associadas quanto sua consciência filológica e sua 

vocação de filósofo. A aspiração à liberdade não tinha, no começo, a 

forma de um grande abalo, de um rompimento, de um dilaceramento -  

não era uma vontade de partir não se sabe para onde, a qualquer preço, 

um desejo de mundos virgens -, não era uma voz que dizia “Antes 

morrer que viver aqui”, mesmo sabendo que este aqui era tudo quanto 

se havia amado até então. Não, essa era uma aspiração à liberdade que 

se dissociara da consciência de uma missão. A aspiração à liberdade de 

 A Origem da Tragédia  ainda estava embutida na consciência de uma 

missão, e era por isso que o livro fora o veículo de uma denúncia que,  

de tão radical, parecia estranha e descabida num scholar.

No Humano, demasiadamente Humano, a consciência de uma nova 

missão como que se apaga. Nietzsche dedica o livro a Voltaire, aos 

espíritos livres, mas, como ele próprio confessa no prefácio de 1886, isso 

havia sido um embuste. Decepcionado com Wagner, tendo abandonado 

Sócrates, Nietzsche se sente de tal modo isolado que é levado a inventar 

um fantasma que pudesse lhe servir de companhia - “Voltaire, o espírito 

livre”. Data de então seu uso de ilusões, de máscaras para “preservar 

sua veracidade”. Com Schopenhauer, com Wagner, sua relação havia

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sido equivocada, mas não simulada, não consistira na criação de um ser 

fictício. Durante seu entusiasmo por Schopenhauer ou por Wagner, sua 

consciência de uma missão era viva; e ilusões, se haviam, não eram 

deliberadas; a aspiração à liberdade, embora dissimulada, também 

estava presente. Mas sua homenagem a Voltaire era um embuste; a 

consciência de uma missão se apagara, e a aspiração à liberdade, por 

conseguinte, não encontrava meios de se exprimir através de um projeto 

em que se manifestasse.

Como explicar então os ares misteriosos de Nietzsche, a questão 

sobre o estágio de evolução a que correspondia o Humano, demasiada

 mente Humano, a suposição de que esse estágio não seria um segredo  

para o psicólogo ou para o adivinho? Nietzsche parece crer ter encon

trado um caminho para dar corpo e realidade à sua aspiração à liberda

de. A homenagem a Voltaire e aos espíritos livres é um embuste incapaz 

de dar a essa aspiração um cumprimento efetivo; esses espíritos livres 

não existem, mas Nietzsche seria o último a negar que eles pudessem 

algum dia existir; ele já os vê chegar e talvez mesmo possa apressar sua  

chegada descrevendo por antecipação sob que estrela ele os vê nascer; 

é o embuste então que põe Nietzsche no caminho do grande aconteci

mento, da grande libertação, do sentimento de abalo, de rompimento, 

de dilaceração, no caminho do impulso, da vontade de partir para não 

sabia onde, do desejo de morrer ao invés de ficar aqui, mesmo que esse 

aqui fosse tudo quanto se tinha amado antes, desse desejo insólito capaz 

de levar finalmente àquela liberdade que dá ao espírito o privilégio de 

viver a título de experiência. Quando Nietzsche chega a esse estágio, sua 

aspiração à liberdade já tem um cumprimento efetivo. E tudo bem 

considerado, foi o embuste que conduziu a aspiração a esse feliz desenlace.

E a consciência de uma missão? - Estava evidentemente apagada 

na hora do embuste. Mas logo que este começa a produzir seus efeitos,  

logo que a aspiração à liberdade começa a ter seu cumprimento efetivo, 

a consciência de uma missão desperta do seu estado letárgico. A figura 

de Sócrates começa de novo a adquirir um certo relevo. No livro Aurora: 

 Pensamentos sobre os Preconceitos Morais,  que foi escrito logo depois 

de Humano, demasiadamente Humano, Nietzsche declara que “o ceticismo de Sócrates a propósito de todo o conhecimento moral continua 

a ser sempre o acontecimento fundamental - não tem ficado esquecido” 

(fragmentos póstumos). Sócrates aqui se levanta no firmamento de 

Nietzsche como um astro que brilha depois de um eclipse em que

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extremo rigor com que são interpretadas as consequências da moral 

cristã. Para compreender essa situação, o ódio cristão do Eu a que 

recorre, por exemplo, Bertram, não tem força explicativa. O ódio cristão  

do Eu só tem sentido dentro de um contexto cristão. O cristão cujo ódio 

contra si mesmo levasse ao anticristianismo seria como o homem que 

procurasse remover o tapete sobre o qual ele próprio estivesse sentado.

Não, a peculiaridade do anticristianismo de Nietzsche se explica 

pelo fato de estar a imagem de Cristo, no seu espírito, intimamente 

associada à problemática de Sócrates. Existe a possibilidade de conce

ber-se um cristianismo cético, uma moral cristã renovada pelo ceticis

mo? Essa é uma pergunta que, na obra de Nietzsche, encontra resposta, 

uma resposta provisória, apenas em A Gaia Ciência. Neste livro, Nietzs

che nos fala do ceticismo moral no cristianismo - um ceticismo “que já 

existia com relação à atitude das grandes figuras virtuosas da Antigui

dade - esses homens populares imbuídos de sua perfeição que caminha

vam com pose de toureiros” - e nos fala também dos progressos desse 

mesmo ceticismo que, diante dos livros cristãos, tem o mesmo sentimen

to de superioridade que os cristãos possuíam com relação aos antigos. 

Mas a resposta definitiva a uma tal pergunta ficou ainda por ser dada. 

A indagação, entretanto, havia sido feita com a nitidez necessária para 

que não se confundisse o anticristianismo de Nietzsche com as outras 

formas de irreligiosidade a que nos referimos acima. A resposta defini

tiva deixou de ser dada, mas Nietzsche nos surpreende, no final do Ecce 

 Homo, com aquela imagem de Dionísio em face do Crucificado - seria 

essa a expressão de um cristianismo socrático? A obra de Nietzsche é 

uma obra truncada, uma obra inacabada, um torso que nos dá apenas 

uma idéia incerta do que seria o corpo inteiro. Mas de uma coisa  

podemos ter certeza: esse torso estava sendo esculpido no mais puro 

estilo socrático.

A partir de Aurora, Sócrates é um astro que não mais desaparece 

do firmamento de Nietzsche. O seu questionamento, a sua dialética 

tomam, na obra nietzschiana, a forma de uma suspeita universal, uma 

suspeita que se estende sobre todas as coisas. Uma suspeita engendra 

outra suspeita. Tudo o que até hoje foi considerado bom, verdadeiro,  

 justo, é submetido a uma dúvida, dúvida muito mais radical do que a 

dúvida cartesiana. Não há, para ela, como existe para Descartes, um 

desenlace, uma primeira certeza que, como um porto seguro, abrigue o 

veleiro batido pelas tempestades da travessia perigosa e incerta. Como 

tudo é dúvida, a realidade desaparece, permanece a aparência apenas.

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Mas a aparência não engana. Sabe-se que a aparência é aparência, que 

é apenas uma máscara. E o mundo se dissolveria num jogo de sombras  

e de ilusões, se o questionamento socrático, se a dialética socrática e se 

a suspeita nietzschiana não tivessem sido motivadas por um impulso 

moral, pela visão de um objetivo real, pela antecipação das idéias, das 

realidades platônicas, no caso de Sócrates, e, no caso de Nietzsche, pela 

esperança de uma máscara que fosse divina, verdadeira, objetiva, real e 

não histriónica, produto espúrio de uma simples aparência.

Entretanto, não havia outro meio de chegar à divindade senão pelo 

emprego das máscaras histriónicas. Era o método que Nietzsche já 

empregara inconscientemente, mas de que agora se apropriava para um 

uso totalmente consciente. O seu Sócrates “fanático do conhecimento 

moral” fora a primeira das máscaras que empregara na sua prática 

inconsciente do estilo socrático de pesquisa, o estilo de comunicação 

indireta. O Schopenhauer educador e expressão de uma cultura forte e 

pessimista fora a segunda dessas máscaras. Wagner, o regenerador da 

cultura alemã, uma terceira. Voltaire, o patrono dos espíritos livres, 

havia sido a quarta. E Sócrates, de novo, “fanático do ceticismo moral”, 

havia sido a quinta, que fechara essa série e abrira um novo ciclo de 

máscaras histriónicas, que exprimiam agora não mais as ilusões de 

Nietzsche, ilusões inconscientemente entretidas, mas ficções delibera- 

damente elaboradas por ele e que faziam parte do vasto mundo de 

possibilidades, em que se comprazia com uma liberdade novamente 

adquirida e que lhe dava o privilégio de poder experimentar com a vida.

A máscara histriónica era para Nietzsche uma imposição do mundo 

em que vivia. Quando se vive cercado de histriões, não há outra maneira 

de comunicação humana. A máscara histriónica é uma forma de comunicação indireta que permite lançar pontes para formas de existência 

ainda não contaminadas pelo histrionismo. Essa é a sua esperança e a 

sua justificação. Quem pretender dar combate à cidadela do histrionis

mo sem nela se insinuar primeiro, de modo cauteloso e clandestino,  

quem pretender enfrentá-la de fora, num afrontamento de forças primi

tivo, verá, em pouco tempo, que uma nova cidadela muito mais irresis

tível e envolvente surgirá do solo, como que por um milagre, para 

enclausurá-lo em seu espaço próprio.Kierkegaard utilizava o método da comunicação indireta para re

mover ilusões. Utilizava a ironia, o riso, para arrancar da distração de si 

mesmo quem esquecera que a existência do pensamento era diferente 

da existência do pensador. Nietzsche utilizava o método de comunica

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ção indireta para entreter ilusões. Essas ilusões lhe permitem experimen

 tar com a vida, transformar a vida de modo que passe de sujeito a objeto 

de experiência. Será essa talvez a única maneira de lutar contra o 

histrionismo. Quando a vida é sujeito de experiência, a experiência como 

que já está condicionada pelas realidades do sujeito - a experiência será 

histriónica se o sujeito é histriónico, o que é quase sempre o caso. Mas 

quando a vida é objeto de uma experiência, o sujeito que experimenta  

pode determinar o condicionamento da experiência, ele está livre, com 

uma liberdade divina, para escolher as condições em que a experiência  

vai se realizar, o propósito a que vai obedecer, os perigos que deve evitar. 

Só há um pressuposto para essa liberdade absoluta: o experimentador 

deve ser um psicólogo consumado, um mestre insuperável na arte de ler 

e de interpretar o coração dos homens. Sem isso, ele não será capaz de 

criar uma ilusão que tenha força de convencimento, que nos dê a 

impressão de que é um ser real com quem se pode falar e não um 

fantasma, uma simples aparência histriónica. Sem isso, ele não será 

capaz de nos dar a impressão de que está presente, quando está ausente 

dos seus textos, e de que está ausente, quando está presente. A psicolo

gia é o grande instrumento nietzschiano para executar seus projetos de 

comunicação indireta. Muito mais do que uma ciência, ela é para ele 

uma arte. Com a psicologia, ele não descobre verdades, produz ilusões. 

Mas essas ilusões são meios infalíveis de se chegar à verdade. A psico

logia, em Nietzsche, atingiu esse grau supremo de integração de todos 

os seus elementos, grau supremo em que a verdade se anuncia não tanto 

pelo fato de corresponder a uma realidade, mas sobretudo pela vontade 

de correspondência que desperta, pelo poder de atração que exerce, 

iluminando, transfigurando o mundo, numa forma de relacionamento 

em que ilusão e realidade se entrelaçam, cada uma se alimentando da 

outra, cada uma dando e recebendo da outra aquela força sem a qual 

não existem nem verdade nem realidade.

A utilização das máscaras pressupõe naturalmente uma auto-inter

pretação de quem as usa. Ao interpretar Sócrates como fanático do  

conhecimento moral, otimista e teórico, Nietzsche, na realidade, estava 

se auto-interpretando como o campeão da vida instintiva e dionisíaca, 

musical e poética. Ao interpretar o pessimismo de Schopenhauer como 

uma manifestação de força e de virilidade e o drama musical de Wagner 

como um renascimento da arte trágica dos gregos, Nietzsche estava se 

auto-interpretando como o anunciador de um novo tipo de cultura, 

como um profeta, como um filósofo que tinha rompido os quadros do

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conhecimento científico, filológico da Antiguidade clássica e da cultura 

histórica de seu tempo, animado que estava de um novo espírito que 

enriquecia o presente como a união fecunda do passado e do futuro. Ao 

interpretar Voltaire como o patrono dos “espíritos livres”, Nietzsche se 

auto-interpretava como o viajante em busca de liberdade, que se dispõe 

a fazer a grande despedida, a despedida de tudo o que lhe era mais caro, 

do lugar que mais amava, para partir, sem saber para onde, para regiões 

inóspitas e desconhecidas. E finalmente, ao interpretar Sócrates como 

o fanático do ceticismo moral, Nietzsche teve uma sensação de. Aurora, 

a revelação de novos horizontes, sensação que o fez conceber, de uma 

maneira inteiramente outra, sua missão, sua tarefa, seu dever. O que lhe 

cabia agora era enfrentar as imensas dificuldades de um trabalho sub

terrâneo, um trabalho a ser executado nas condições mais precárias: o 

que lhe incumbia agora era solapar os alicerces, as bases do mundo em 

que vivera enclausurado, solapar a velha confiança sobre a qual esse 

mundo fora construído, a velha confiança na moral.

A partir desse momento, a obra de Nietzsche, como um rio cauda

loso que encontra seu leito, prossegue em seu curso agitado, tumultuoso, 

mas invariável e contínuo. Nietzsche se auto-interpretava agora como 

um ser subterrâneo, solapador. Fundara sua escola, a “escola da suspei

ta”; e essa sua atividade destruidora, no subsolo das regiões onde se 

articulam as idéias, não deixa de ter um efeito negativo sobre sua saúde.  

Depois de solapar a velha confiança na moral, muitas outras coisas  

perdem também sua validez: o filósofo já não pode mais ser considerado  

um ser privilegiado, cujas idéias independem de seus humores, de suas 

condições físicas, psicológicas e vitais. A veracidade de um filósofo tem 

algo a ver com seu estado de saúde, com a doença que o domina ou com 

o grande sofrimento que o libera. A verdade não é mais confiável,  

quando se lhe retira o véu que a cobria. “Aviso aos filósofos”, exclama  

então Nietzsche: “Dever-se-ia honrar melhor o pudor com o qual a 

natureza se dissimula por trás dos enigmas e das incertezas coloridas”. 

Em outras palavras: dever-se-ia honrar no filósofo o pudor da vontade 

de saúde, tanto quanto o orgulho da vontade de veracidade.

O trabalho subterrâneo continua. A inspiração socrática o anima. 

E apesar dos riscos dessa atividade de solapa que lhe solapa também a 

saúde, Nietzsche consegue afinal recuperar as suas forças, a confiança 

na vida, a alegria, um sentimento mais delicado das coisas e uma 

coragem ainda maior para enfrentar novos perigos. A Gaia Ciência,  o 

ceticismo moral de Sócrates dão agora origem a frutos saborosos.

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Biblioteca Universitária 

 ________UFSC

Quando o insensato grita na praça pública: “Deus está morto! E fomos 

nós que o matamos!”, todo mundo se cala e o olha sem o compreender.  O insensato se cala também, mas retoma logo em seguida seu discurso, 

depois de lançar ao solo sua lanterna: “Cheguei cedo demais, meu 

tempo não veio ainda”. O silêncio da multidão não mais o desconcerta, 

explica para si mesmo que “o acontecimento formidável está viajando e 

vem vindo; não chegou ainda ao ouvido dos homens. É preciso tempo 

ao raio e ao trovão, é preciso tempo à luz dos astros, é preciso tempo às 

ações para que seus efeitos sejam vistos e ouvidos”.

Aqui vemos como a confiança de Nietzsche já não é mais abalada 

pelo silêncio que o envolve. É a Gaia Ciência. Pouco adiante no livro, a 

imagem de Sócrates morrendo lhe dá a oportunidade de dizer que 

“admiro a coragem e a sabedoria de Sócrates em tudo o que ele dizia e 

não dizia” - e isso é quase uma confissão de amor. Só um homem 

plenamente reconciliado com a vida poderia se exprimir dessa maneira. Não devemos nos esquecer de que, no seu primeiro período, a grande 

objeção de Nietzsche a Sócrates era seu otimismo teórico, sua crença 

de poder, através da razão, da ciência, reengendrar a cultura. Na sua 

fase mais racionalista, voltairiana, Nietzsche não fora nem pessimista 

nem otimista. Mas depois do grande abalo, da grande libertação, na 

escolha do caminho que o levava a se despedir de tudo aquilo que amava, 

de tudo aquilo que lhe era mais caro - houvera nele um morrtento de 

confusão, em que doença e pessimismo pareciam provir da mesma 

origem. Agora, depois dessa experiência terrível, em que tudo ao redor 

de si parecera vacilar, Nietzsche recobrava seu equilíbrio, sentia que 

podia de novo ter confiança na vida. E a fisionomia de Sócrates, para 

ele, também mudava. Fora um engano pensar que Sócrates era um 

otimista. Sócrates soubera bem dissimular seu pessimismo. O pessimismo que dissimulava a ponto de parecer otimismo tornava-o próximo, inesperadamente próximo, de Nietzsche; tão próximo que parecia estar 

prestes a operar o grande milagre, a grande transformação: arrancar 

Nietzsche, com mão firme e persuasiva, de sua maior solidão.

É nesse estado de euforia que surge a concepção do  Zaratustra. A 

sabedoria de Nietzsche começa a incomodá-lo, ele se sente como a 

abelha que acumulou mel em demasia, tem necessidade de ver mãos 

estendidas para ele para que possa distribuir o que possui. Aparentemente, a influência de Sócrates parece ter chegado aqui a seu ponto  

máximo. Nietzsche pensa que, como Sócrates, poderá ter discípulos. A 

idéia de encontrar um discípulo, um ser humano sobre quem possa agir

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diretamente, começa a exercer sobre ele uma poderosa influência. As 

circunstâncias de sua vida exterior vieram ao encontro dessa disposição 

íntima, para a qual tinham concorrido todos os fatos da evolução do seu  

espírito tal como a viemos descrevendo. Nietzsche conhece, em Roma, 

Lou Salomé, hóspede como ele de Malvida von Meysenburg.

Do nosso ponto de vista - que é o da influência que Sócrates teve 

sobre Nietzsche -, a história do relacionamento do filósofo com Lou 

Salomé tem uma grande importância. E possível que, de outros pontos 

de vista, ela tenha menos. Mas, se quisermos saber por que transforma

ções passou a inspiração mestra da vida de Nietzsche - a inspiração 

socrática - durante o período desse relacionamento, deveremos sem 

sombra de dúvida fazer uma pausa para examinar com o maior cuidado 

em que consistiu essa experiência.

A idéia do  Zaratustra,  como já dissemos acima, foi concebida sob 

os melhores auspícios. Infelizmente, em abril de 1S82, quando já estava 

escrita a Caia Ciência, que se compunha então de apenas quatro livros, 

Nietzsche encontrou, em Roma, Lou Salomé. O filósofo estava predis

posto para o encontro de um ser humano que quisesse ser seu discípulo, 

como, nos tempos de seu professorado, estivera predisposto para encontrar um ser humano que quisesse ser seu mestre. O relacionamento 

de Nietzsche com Lou Salomé reproduz exatamente o mesmo tipo de 

experiência que o filósofo tivera com Wagner, com uma única diferença 

- num caso ele era o discípulo, no outro era o mestre. Nos dois casos, a 

aparência foi tida por realidade, a máscara histriónica por máscara do 

divino. Nietzsche, sempre sob a influência de Sócrates, se auto-interpre- 

tou como discípulo no primeiro caso, como mestre no segundo. E agora 

que ele já tinha elaborado seu método de comunicação indireta, agora que as últimas objeções ao otimismo de Sócrates tinham desaparecido, 

tudo levava a crer que tivesse chegado ao ápice daquela sua evolução,  

no sentido de uma sempre maior identificação com o destino do ate

niense: pois agora não se apresentava até mesmo a oportunidade, feliz 

entre todas, de acompanhá-lo nas suas menores circunstâncias, na ação 

direta sobre um ser humano que se revelara especialmente apto a 

assimilar seus ensinamentos?

O Zaratustra poderia ter sido enriquecido por essa bela experiência. 

Mas as coisas tomaram um rumo diferente. O relacionamento com Lou 

não proporcionou a Nietzsche uma experiência de mestre; ao contrário, 

repetiu-se a decepção que lhe causara o relacionamento com Wagner -  

e, em termos tão semelhantes, embora num registro diferente, que o

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che (inclusive a de que sua filosofia deve ser procurada não na obra por 

ele publicada - um simples hors d ’oeuvre - e sim nos escritos póstumos), 

parece, apesar disso, ter tido uma predileção especial pelo  Zaratustra, 

que se julga em condições de explicar. Mas suas explicações tornaram 

o livro ainda mais incompreensível. Não é que as idéias expressas nessa 

obra sejam obscuras; a objeção que se lhe pode fazer é, ao contrário, o 

excesso de clareza, a forma importunamente direta com que são trata

dos os problemas. O que falta ao livro não é a clareza, é força de  

persuasão. As opiniões  de Zaratustra nos são transmitidas em fórmulas 

acabadas, sem que tenhamos tido a possibilidade de penetrar na intimi

dade dos sentimentos e das experiências que levaram o profeta a essas 

fórmulas. Quem leu as outras obras do filósofo ou acompanhou de muito 

perto sua evolução espiritual, compreenderá melhor o livro, mas essa 

compreensão não insuflará, na concepção do  Zaratustra, um maior 

sopro de vida. Zaratustra é uma personagem com quem não temos o 

menor contato. E, aliás, muito menos um personagem que uma paródia, 

uma paródia que corresponde não a uma experiência, mas a uma 

frustração, e que, por isso mesmo, é muito menos um símbolo que um 

esquema. Zaratustra é o caminho do super-homem, diz-nos Nietzsche. 

Mas ele nos parece mais ser o super-homem, não a experiência do 

super-homem, mas sim um esquema destituído de vivência. O caminho 

é justamente o que falta ao livro, o caminho, isto é, o percurso, as etapas 

que precisariam ser vencidas para se chegar a uma tal vivência - o 

caminho socrático.

Foi assim que, no momento em que Nietzsche parecia aproximar-se 

mais da experiência socrática, o recuo se tornou mais sensível. Imagine- 

se um Sócrates destituído de ironia, revelando suas convicções mais 

íntimas, pregando artigos de fé em praça pública, dirigindo-se a coleti

vidades. Em vão se procurará no  Zaratustra  uma idéia expressa de 

maneira indireta. As imagens de que está sobrecarregado o estilo do 

livro apontam diretamente para o sentido que devem exprimir. Toda 

poesia associada a tais imagens parece incapaz de nos atrair a um círculo 

mágico de emoções, sentimentos e vivências. Reconhecemos a beleza, a 

 justeza das imagens, mas não nos deixamos envolver por elas. Uma 

sensação inexplicável de estranheza, de distância, de alheamento para

lisa qualquer movimento em direção ao mundo que essas imagens  

pretendem evocar - a um mundo que está muito claramente definido 

para que tenha o dom de nos sensibilizar.

136 MARIO VIEIRA DE MELLO

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O que ocorreu então? No momento em que Nietzsche mais parecia  

estar se aproximando de Sócrates, um abismo se abriu entre os dois. O 

uue garantia a proximidade de Sócrates era, para Nietzsche, o uso das 

máscaras. Mas Nietzsche, no  Zaratustra,  escolheu a paródia, não a 

imitação cômica e burlesca, mas a analogia sem humor, a analogia com 

uma intenção de malícia, que não chegou a se concretizar. A paródia 

cômica seria um equivalente da máscara e manteria Nietzsche na pro

ximidade de Sócrates. Mas ele escolheu a paródia sem comicidade, onde 

o riso só era lembrado nas exortações de Zaratustra: “Aprendei a rir”. 

Ora, o uso da paródia grave implica um procedimento totalmente 

diverso daquele que é empregado no uso das másearas. A máscara 

dissimula a verdade ou cria uma ilusão para remover outra ilusão, a 

paródia cômica ataca indiretamente a ilusão, provocando o riso. Mas a 

paródia sem comicidade corre frequentemente o riseo de não deixar 

suficientemente claro que está tentando estabeleeer uma analogia. A 

paródia sem comicidade é uma forma de comunicação direta, principal

mente por isto: não consegue tornar visível e presente a realidade de 

que pretende ser a expressão indireta; o que era meio torna-se fim; e o 

mundo que nos apresenta fica assim privado de qualquer transparência, 

como se fosse ele, e não um outro, que devesse constituir o objeto do 

nosso maior interesse.

Como se vê, nada poderia ser mais anti-socrático. R. J. Hollinrake, 

no seu livro Nietzsche, Wagner e a Filosofia do Pessimismo, faz-nos ver, 

em seus mínimos detalhes, a fidelidade com que Nietzsche, no seu 

 Zaratustra,  parodiou não só o  Anel dos Nibelungos  como também o 

 Purfisal   de Wagner. Mas quantos anos se passaram sem que fosse 

sentida a analogia! E mesmo agora, quando devemos nos render à 

evidência dos fatos, a importância do livro não parece aumentar. Hol

linrake mostra-nos também como a idéia do Eterno Retorno surge como 

uma réplica e como uma paródia ao pessimismo cristão-budista de 

Wagner e Schopenhauer. Essa idéia, que tem sido apresentada como 

um mito, é o melhor exemplo que se pode oferecer da ineficácia da 

paródia sem riso, quando o intuito que se tem é o de remover a ilusão 

de um mundo que tem um sentido e uma finalidade. Nietzsche, como já 

mostramos, viera se reaproximando de Sócrates com uma compreensão 

cada vez mais clara do problema do pessimismo. O seu aforismo “Só

crates morrendo”, no final do Livro IV da Gaia Ciência,  nos faz ver 

como, já naquela época, não existia mais, para ele, uma incompatibili

dade qualquer entre os dois pólos fundamentais de sua problemática -

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o pessimismo e o otimismo. É possível que, na primeira visão do  Zara- 

 tiistra, ele tenha julgado viável fundir numa só imagem esses dois pólos, 

conservando-se na companhia do ateniense. Mas interveio então a 

experiência de Lou Salomé. A jovem russa lhe fizera lembrar, de uma maneira vivíssima, sua experiência com Wagner, reabrira chagas que só 

lentamente iam se cicatrizando. Reagindo a Lou, foi sobre Wagner que 

se concentraram suas baterias .Zaratustra se transformou numa paródia 

à obra de Wagner. E o Eterno Retorno, tema principal desse livro, passou a exprimir, num estilo descarnado, esquemático, de paródia sem

 

comicidade, aquela visão tão cara a Nietzsche e que se exprimira de 

modo tão convincente na sua interpretação da época trágica dos gregos, 

na sua rejeição de um Sócrates otimista e na sua reaproximação do 

“Sócrates morrendo”, na véspera do passo equivocado que daria mergulhando na concepção do  Zaratustra.

Tem-se procurado explicar o Eterno Retorno de mil maneiras 

diferentes. As explicações mais benévolas o definem como um princípio 

disciplinar, um dogma a que não se deve atribuir o valor da verdade.  Separa-se assim a “norma”, o “princípio disciplinar”, da verdade que  

lhe deveria ser inerente. Mas não é isso justamente a negação de todo o esforço nietzschiano, que é um esforço socrático, no sentido de unir 

norma e verdade, conhecimento e virtude? Quando Nietzsche ataca as idéias morais, em nome da veracidade, da probidade intelectual, não

 

está ele querendo encontrar idéias morais que sejam também verazes? 

Quando denuncia o instinto plebeu de tudo querer saber - quando o 

próprio das naturezas aristocráticas é ter confiança em instintos não  

analisados -, não está ele querendo encontrar idéias morais que já 

tenham dentro de si a garantia, o selo, a autoridade conferida por uma inata veracidade? Essas duas atitudes, que seriam contraditórias em 

qualquer outro pensador mas que, em Nietzsche, se completam de modo 

essencial, só se justificam pelo socratismo - como um esforço para 

consolidar a idéia de virtude através da reflexão e do conhecimento - e 

para intensificar a força da inteligência reflexiva e do conhecimento 

através de um contato com essa idéia de virtude assim consolidada. Toda 

a obra de Nietzsche pode ser representada como um movimento de  

oscilação entre esse dois pólos - a moral e a verdade pólos naturalmente nem sempre visíveis, mas sempre atuantes por baixo dos mil disfarces, dissimulações, divagações mesmo que constituem, nessa obra

 

multiforme, os processos obrigatórios sugeridos pelo método de comunicação indireta.

13S MARIO VIEIRA DE MELLO

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E o que vemos com o mito do Eterno Retorno? - Um princípio 

disciplinar, sem força disciplinadora. Um mito sem força comunicativa; 

uma idéia que a ciência repudia com escárnio; um tema que representa 

verdadeirametne o fulcro do pensamento de Nietzsche, mas que, em 

virtude do método de comunicação direta pelo qual foi transmitido, jaz 

diante de nós como um cadáver, vítima de incompreensões e de uma 

rejeição desdenhosa.

E uma coisa, pelo menos temerária, permitir-se alguém impugnar 

com seu veto uma obra já consagrada como o  Zaratustra. A rejeição é 

tanto mais atrevida por ser o próprio Nietzsche - cuja grandeza nem de 

longe se pretende desconhecer - quem nos afirma que é esse o seu livro 

mais extraordinário, uma dádiva única com que a humanidade se enri

queceu. O enorme sucesso que teve o livro, logo em seguida ao colapso 

de Nietzsche, parece ser também um argumento irrespondível. Não só 

críticos, poetas, escritores e intelectuais eminentes, mas também o 

grande público, passando por políticos, jornalistas e governantes, se 

deteve diante daquilo que consideravam uma reivindicação da natureza, 

com admiração e respeito. O brilho da forma, a maestria incomparável  

do estilo desafiavam qualquer comparação. E, entretanto, um sentimento de frustração, a consciência de uma incapacidade de chegar até o  

livro, de incorporá-lo à nossa vivência, de senti-lo como um elemento 

nosso, devidamente assimilado e apropriado, não deixou nunca de 

acompanhar quantos se debruçavam sobre ele num esforço superlativo 

de absorver-lhe o conteúdo. O princípio disciplinador, longe de nos 

disciplinar, levantava uma barreira que impedia qualquer contato real 

de Nietzsche com seus leitores. O silêncio que cercara o livro, durante 

a vida consciente do autor e que tanto o amargurara, havia sido substituído por um sucesso ruidoso depois do seu colapso; mas nem por isso  

desapareciam as barreiras que dificultavam de modo implacável o 

acesso à realidade mais íntima do filósofo. Entretanto, quem ainda hoje 

ousa duvidar da justeza da opinião de Nietzsche sobre o próprio livro, 

e mesmo quem se atreve a duvidar da justeza de qualquer opinião 

favorável, mas menos exaltada sobre ele, deverá encontrar um apoio 

firme onde escudar-se - pois avassaladora é a influência de um renome 

que foi criado a partir de uma mistura estranha de elementos espúrios, 

pitorescos, sensacionalistas, mas também reflexivos, genuínos e verazes.

O que me dá coragem de afirmar que o  Zaratustra  é um livro que 

não conseguiu realizar os objetivos a que se tinha proposto, um livro de  

um certo modo  raté,  é sem sombra de dúvida o exemplo de Sócrates.

 NIETZSCHE: O SOCRATES DE NOSSOS TEMPOS 139

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Salomé, a frustração da expectativa de ter um discípulo, um ser humano 

sobre quem pudesse agir diretamente; a reabertura de chagas mal 

cicatrizadas. Lembremo-nos de que a ruptura com Wagner causara um 

efeito análogo: Nietzsche se afastara de Sócrates, embora não tivesse 

tido então o impulso de abandonar o método da comunicação indireta. 

Hollinrake, no seu livro sobre Nietzsche, nos diz que, “de acordo com 

certas alusões feitas em carta por Ida Overbeck, Lou recebia por vezes 

uma parcela do crédito pelo  Zaratiistra”.  Cita também um trecho da 

carta de Kõselitz a Hofmiller, de 10 de novembro de 1896: “O fato de  

ter sido Lou quem alçou Nietzsche a tais alturas himalaias faz dela um 

objeto de reverência”. Finalmente o próprio Nietzsche, em Ecce Homo, 

reconhece que a idéia do Zaraluslra surgiu na mesma época que o Hino 

 à Vida (para coro misto e orquestra), cujo texto era composição de Lou.

Na nossa óptica, entretanto, Lou deveria antes receber, pelo fato 

de sua associação com o Zaratustra, uma parcela, e mesmo uma grande 

parcela, de descrédito (se não houvesse ainda outras razões para desa

creditá-la). Devia ser objeto não de reverencia mas de censura. Lou nos 

parece ter representado, na vida de Nietzsche, um elemento totalmente 

negativo, tão negativo quanto o elemento representado pela irmã do filósofo, Elisabeth Forster. Embora se possa dizer que a experiência de 

Lou tenha sido, para Nietzsehe, como que uma repetição da experiência 

de Wagner, não há dúvida de que essa semelhança só em parte pode ser 

 justificada. Wagner contribuiu de modo poderoso para a evolução e 

para o amadurecimento das idéias do filósofo, apesar de tudo o que  

possa ter havido de negativo na influência que exerceu; ao passo que em 

Lou só o aspecto negativo pode ser apreciado. O seu livro sobre Nietzs

che reflete aspectos curiosos de sua personalidade presunçosa e egocêntrica; mas é na desorientação em que deixou Nietzsche durante a 

elaboração do  Zaratustra  que encontraremos a verdadeira razão para 

considerar perniciosa sua brusca irrupção na vida do filósofo.

Em junho de 1887, apareceu em Leipzig, na Editora Fritzsch, uma 

segunda edição da Gaia Ciência, em que surgia, pela primeira vez, um 

quinto livro adicionado aos quatro já publicados na primeira edição. 

Intitulava-se esse quinto livro: Nós, Homens Destemidos, e tinha como 

epígrafe a célebre frase de Turenne: “Treme, Carcaça, mas tremerias 

muito mais se soubesses aonde vou te levar”. Com esse quinto livro da  

Gaia Ciência,  estamos de volta ao Nietzsche a que já nos tínhamos 

habituado, ao Nietzsche da comunicação indireta. Nietzsche se dá 

finalmente conta de que a verdade não existe sem a coragem necessária

 NIETZSCHE: O SÓCRA TES DE NOSSOS TEMPOS 141

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para se chegar até ela. Já indicamos, num capítulo anterior, a significa

ção que tanto Sócrates quanto Nietzsche atribuem ao problema da 

coragem. Aqui nos cabe unicamente mostrar como esse problema está 

ligado à questão da comunicação indireta. Tomando consciência de que 

sua filosofia é uma filosofia da coragem e de que a coragem que tem em 

vista é uma coragem “clarividente”, Nietzsche retoma a tradição socrá

tica, no que ela tem de mais puro, e é assim levado a adotar insensivel

mente os procedimentos que essa tradição legitima e que eram os 

mesmos que, desde o início de sua carreira, havia inconscientemente 

escolhido. O Eterno Retorno não é mais uma idéia que ocupe longa

mente seu espírito. De vez em quando, a lembrança do  Zaratustra  lhe 

volta à memória. Mas o que se pensa ser sua idéia central já deixou de 

ter uma força atuante. Nietzsche tem consciência de que há muitos 

perigos que o aguardam, ameaças desconhecidas que exigirão de si não 

só a coragem de enfrentá-las, como também a coragem de procurá-las. 

E é nesse estado de espírito que retoma sua interrompida caminhada 

socrática.

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5. A CRÍTICA DA DECADÊNCIA

Sócrates viveu durante um momento da história grega em que todas 

as energias espirituais daquele grande povo se concentravam para dar 

o passo que lhes asseguraria a imortalidade, embora os conduzisse  

também, sem possibilidade de retorno, a uma situação de desastre e de 

catástrofe. O que caracterizou esse momento crucial para a história de 

toda a humanidade foi a simultaneidade de uma percepção aguda das 

riquezas do passado e de uma obediência humilde aos imperativos do  

futuro. Sem uma sensibilidade extrema a esse duplo apelo, a Grécia não teria elaborado uma cultura clássica - teria certamente perdido sua 

forma histórica, sem preservá-la para a posteridade, mas teria talvez 

podido participar de modo mais ativo nas grandes formações de poder, 

que disputavam entre si uma posição de primazia no novo mundo que 

então se desenhava.O que fez da cultura clássica dos gregos uma realização imperecível

 

foi então uma fidelidade entranhada a um passado que lhe era caro e a 

consciência viva e imperiosa de que, para ser preservado, esse passado 

deveria ser violentado através da aliança com forças que lhe eram 

contrárias e para as quais pareciam estar reservadas as promessas do 

futuro. Essas forças naturalmente eram constituídas pelo avanço irre

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sistível do espírito racional a que os filósofos jónicos tinham dado início. 

Elas invadiam todos os aspectos da atividade humana, quer na vida 

privada, quer na vida púbüca. Representavam, na realidade, um elemen

to corrosivo, que minava lenta mas seguramente os alicerces de um 

passado glorioso.

O gênio de Sócrates consistiu em transformar esse elemento corro

sivo num fermento que consolidasse a massa que se desfazia, descobrin

do virtudes aglutinadoras naquilo que até então havia exercido apenas 

uma ação desagregadora. Havia, pois, nas suas atividades, um duplo  

aspecto: em primeiro lugar, Sócrates se apresentava como o aliado das 

forças que violentavam um passado glorioso - era, por conseguinte, um 

decadente; em segundo lugar, afirmava-se como o prestidigitador, como 

o mágico capaz de transformar essas forças subversivas em algo afirma

tivo - e era por isso um precursor, um fundador, o mestre de uma 

humanidade nova. Nietzsche não estava assim totalmente destituído de 

razão ao vê-lo, em A Origem da Tragédia, como um decadente - e esse 

 julgamento, que pareceu a homens como Wilamowitz tão absurdo, 

imbuído que estava de uma fé racionalista, privada de nuanças, parece- 

nos hoje possuir um valor indiscutível, pois abre-nos o caminho para 

uma compreensão mais cuidadosa do que tenha sido realmente o fenô

meno socrático. Se por outro lado Nietzsche parece desconhecer o fato 

de que Sócrates, com seu racionalismo, preservou uma cultura que de  

outro modo teria provavelmente desaparecido - uma cultura que de 

outro modo não o teria atingido - , se Nietzsche parece desconhecer esse 

fato, para nós tão evidente, a única explicação plausível é a circunstância  

de ter sido ele inconscientemente um rival de Sócrates - de ter tido ele 

inconscientemente a ambição de encontrar meios mais adequados e 

mais eficazes para preservar aquele passado glorioso de que Sócrates 

foi o primeiro a se ocupar.

Quando Nietzsche reconhecia que era um decadente, mas um 

decadente que se sabia decadente e que era capaz de superar sua 

decadência, é impossível que ele não se tivesse sentido atuado pelo  

espírito de Sócrates. As duas situações são tão semelhantes que se diria 

estarmos diante de um fenômeno de reencarnação. Sócrates se consi

dera um estadista que vive num Estado decadente, incapaz de regenerar 

o Estado dentro do qual vive; considera que não deve participar da vida 

desse Estado, porque, se o fizesse, seria perseguido, condenado e 

executado; não se isola, não se aliena, não se separa da comunidade a 

que pertence, porque é através dessa comunidade que sua vida tem

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sentido - e é no seu passado glorioso que vai procurar inspiração. Qual 

é, em suma, seu  statusl   Sócrates teria sido um estadista, embora não 

exercesse sua vocação? Teria tido razão em julgar decadente o Estado 

em que vivia? Em pensar que conhecia os meios de regenerá-lo? Em 

acreditar que seria perseguido e condenado, se optasse por uma parti

cipação na vida política desse Estado? Em decidir que, apesar de tudo, 

só através da comunidade a que pertencia poderia sua vida ter sentido?

Essas perguntas teriam uma resposta negativa, se a vida de Sócrates 

não tivesse tido o fim que teve. Sócrates não teria tido razão em se julgar 

um estadista, se tivesse cedido à injunção de Críton de se evadir da 

prisão; em julgar decadente o Estado em que vivia, se tivesse considerado a fatalidade que o atingia simplesmente um erro, um engano  

 judiciário; em pensar que conhecia os meios de regenerá-lo, se tivesse 

concebido e levado a efeito a idéia de participar da vida política de 

Atenas.

Acontece, porém, que Sócrates se tinha preservado de tais equívo

cos. As respostas, então, se tornavam afirmativas. Sócrates tinha tido 

razão de se considerar um estadista, embora não tivesse exercido sua 

vocação, porque, nas circunstâncias históricas em que se encontrava, a 

única maneira de exercer a vocação de estadista era não a exercendo -  

resposta esdrúxula, paradoxal, mas afirmativa; razão de considerar 

decadente o Estado em que vivia porque ele não preenchia as funções  

que lhe cabiam - e essas funções Sócrates era capaz de dizer quais eram 

exatamente; razão de se considerar incapaz de regenerar o Estado pelos 

métodos habituais de participação na vida política - seu método de 

exercer a vocação de estadista, não a exercendo, equivalia realmente a 

uma certa incapacidade, uma incapacidade, entretanto, que necessitava 

ser qualificada; razão em pensar que seria perseguido e condenado, se 

participasse da vida política do país, porque teria sido então levado a 

fazer coisas que contrariariam a maneira habitual de se conceber essa 

participação; e, finalmente, razão em pensar que, apesar de tudo, só  

através da comunidade a que pertencia, sua vida poderia ter sentido -  

embora só num passado glorioso fosse possível colher inspiração.

Vejamos agora o que poderíamos dizer de Nietzsche. Ele se consi

derava um filósofo que vivia numa cultura decadente; que era incapaz 

de regenerar pela filosofia essa cultura (queria, primeiro, regenerá-la 

pela música, depois por um não exercício da filosofia manifestado por 

mil formas diversas - renúncia, exílio da filosofia; trabalho de solapa nos 

alicerces das convicções filosóficas, morais, culturais, nos alicerces de

 NIETZSCHE: O SÓCRATES DE NOSSOS TEMPOS 145

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tudo aquilo que mais amava, de tudo aquilo que lhe era mais caro); 

considerava que não podia participar da vida da cultura que lhe era 

contemporânea, porque, se o fizesse, seria corrompido, empobrecido, 

destruído; não se isolava, não se alienava, não se separava da comunidade intelectual a que pertencia (intemporal, supra-histórica), porque 

só através dela a vida poderia ter sentido - que só nela poderia colher 

inspiração. Qual era, em suma, seu status? Seria um filósofo, embora não 

exercesse a filosofia? Teria tido razão em julgar decadente a cultura em 

que vivia? Em pensar que conhecia os meios de regenerá-la? Em 

acreditar que seria corrompido, diminuído, destruído, se participasse 

da vida da cultura em que estava inserido? Em imaginar que só na 

comunidade intelectual a que pertencia (intemporal, supra-histórica) 

poderia colher inspiração?

Essas perguntas teriam também uma resposta negativa, se a vida de 

Nietzsche não tivesse tido o fim que teve. Nietzsche não teria tido razão 

de se considerar um filósofo, se não tivesse previsto que pagaria com a 

perda de sua consciência a ousadia dos imensos perigos a que se 

expunha; razão de pensar que a cultura do seu tempo era decadente, se 

tivesse recuado amedrontado diante da fatalidade que o esperava; razão 

tampouco de acreditar que conhecia os meios de regenerá-la se tivesse 

decidido participar da vida dessa cultura decadente.

Acontece, porém, que a vida de Nietzsche teve o desfecho que  

sabemos. As respostas se tornam, então, afirmativas. Nietzsche tinha 

tido razão de se considerar um filósofo, embora não exercesse a filosofia, 

porque, nas circunstâncias históricas em que se encontrava, a única 

maneira de exercer a vocação de filósofo era não a exercendo - resposta esdrúxula, paradoxal, mas afirmativa; razão em considerar decadente a 

cultura em que vivia, porque ela não preenchia as funções que lhe 

cabiam - e essas funções Nietzsche era capaz de dizer quais eram 

exatamente; razão de se considerar incapaz de regenerar a cultura pelos  

métodos habituais que empregava a filosofia - seu método de exercer a 

vocação de filósofo, não a exercendo, equivale realmente a uma certa 

incapacidade, incapacidade, entretanto, que necessitava ser qualifica

da; razão em pensar que seria corrompido, diminuído, destruído, se 

participasse da vida da cultura que lhe era contemporânea - as tentativas 

que fizera o tinham levado ao descrédito, no mundo acadêmico, à 

abominação no círculo wagneriano, às intrigas e a uma situação perversa 

na infeliz experiência com Lou; e, finalmente, razão de pensar que só na

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comunidade intelectual a que pertencia (intemporal, supra-histórica) 

poderia colher inspiração.

Mas as analogias entre esses dois destinos, o de Sócrates e o de  

Nietzsche, não terminam aí. A nota trágica que marcou o fim desses dois 

homens não foi, na expressão que usam cautelosamente os produtores 

de filmes cinematográficos, “uma mera coincidência”. Havia razões 

fortes para que esses dois homens, cujos destinos apresentavam tantas 

semelhanças, chegassem ao termo de suas vidas conscientes de modo 

igualmente trágico. A serenidade de Sócrates, o equilíbrio em que se 

mantém até o último instante de sua existência, nos faz esquecer um 

pouco o sentido real do drama que Platão nos deixa entrever - na 

verdade, o que está acontecendo é nada mais nada menos do que o 

seguinte: um homem, na força de seus dotes intelectuais e de seu impulso 

criador, vê subitamente cortada sua carreira por uma denúncia absurda, 

por uma condenação leviana, por uma injustiça sem igual. Sua obra 

ainda não está terminada. Não há indícios de que essa obra, que ele não 

teve o cuidado de preservar por escrito, possa sobreviver. Se havia em 

Sócrates, do que não temos o direito de duvidar, uma consciência viva 

e clara do que significava sua vida, sua pessoa, não é evidente que, aos 

seus olhos, assumia um caráter violento de tragédia a necessidade brutal 

de dar por terminada uma tarefa cujo fim ainda não se tinha entrevisto? 

Esse caráter de tragédia se acentuava mais ainda pelo fato de depender 

de Sócrates que as coisas terminassem daquele modo. Dependia dele o 

sentido de sua obra, que não podia ser prejudicada por uma fraqueza 

de última hora. A situação, na realidade, comportava os elementos  

clássicos que constituem normalmente os ingredientes de uma tragédia: 

de um lado a necessidade brutal do fim, o corte violento que paralisava 

um impulso generoso que se projetava longe; do outro a possibilidade 

de evitar esse fim, de evitar esse corte, caso Sócrates aceitasse a dimi

nuição, a destituição de relegar sua obra, a significação de sua vida e de 

seu esforço, a um plano secundário.

O fim de Sócrates foi trágico não porque tivesse sido envolvido num 

tumulto violento de sentimentos e paixões: foi trágico por ter sido a 

expressão trágica de um destino. Sem sua morte injusta e consciente

mente aceita, sua obra e sua vida não teriam tido o sentido que posteriormente vieram a ter. Foi para preservar esse sentido que Sócrates 

declinou a possibilidade que lhe era oferecida de fugir da prisão. Mas o 

preço que teve que pagar em troca de uma tal preservação era muito 

alto - não era apenas sua vida mas a dúvida sobre o acolhimento dessa

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obra cujo sentido era tão precioso. Os objetivos que o levavam a aceitar 

a própria morte podiam ser tragicamente atingidos pelos efeitos mes

mos dessa morte.O fim trágico da vida consciente de Nietzsche verificou-se em

 

condições estranhamente semelhantes. Não houve serenidade no seu 

caso - houve euforia. Mas a catástrofe, o colapso, o mergulho súbito no 

abismo negro da inconsciência parece ter dependido tanto de uma 

decisão de sua vítima quanto a morte de Sócrates dependeu de sua 

decisão de esvaziar a taça da cicuta. Anos antes de seu colapso, Nietzsche havia citado Turenne para exprimir seu sentimento de que esco

lhera um caminho extremamente perigoso, um caminho que só percorreria quem tivesse uma extrema coragem. A expressão que saiu 

da pena de Nietzsche - “viver perigosamente” - transformou-se, entretanto, numa máxima que se popularizou tanto que passou a ser empregada não só por quem nunca tinha lido Nietzsche, como também por 

quem nunca tinha ouvido sequer falar em seu nome. Nosso Guimarães 

Rosa a emprega no seu romance Grande Sertão: Veredas. E aí, como em 

outras ocasiões em que ela faz parte do uso corrente do povo, o que se 

quer significar é um certo prazer do risco, quase uma maneira esportiva de conceber a vida, quando o esporte inclui um certo elemento de risco, 

como a corrida de automóveis, caçadas na África, acrobacias aéreas etc., etc.

Temos aqui um exemplo típico de como o pensamento de Nietzsche pode ser desvirtuado. Nunca passou pela sua cabeça que o perigo

 

pudesse ser utilizado como um condimento, como um ingrediente destinado a intensificar e a multiplicar as sensações de prazer que possam  

amenizar nossa existência. Nunca passou pela sua cabeça de um modo 

geral que o perigo pudesse ser instrumentalizado. Não era o resultado 

de uma escolha, de uma preferência, de uma decisão cujo objetivo fosse 

promover uma vida mais movimentada, mais variada, mais cheia de 

emoções. Era, ao contrário, a conseqüência de uma decisão, de uma 

preferência, de uma escolha - trágica - , a escolha de si mesmo e de sua 

missão, uma missão mais do que espinhosa, de uma dificuldade indescritível, de uma exigência sem limites, uma missão que poderia levá-lo

 

aos piores infernos, às desgraças mais inenarráveis e não apenas a 

simples perigos e males de vulto circunscrito. Nietzsche sabia que  

escolhera uma missão que abrigava em seu bojo essas consequências 

pavorosas. E sabia também que, para bem cumpri-la, precisava não 

somente enfrentar o perigo, fosse ele qual fosse, como também provo-

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A questão se resume, então, em saber como interpretar os últimos 

clarões da inteligência de Nietzsche. Quem vê neles os primeiros sinais  

de uma loucura emergente está apenas ampliando o entendimento 

segundo o qual todo o território da vida de Nietzsche, mesmo aquelas 

partes que coincidiam com sua vida consciente, sempre tinham estado  

ameaçadas por erupções vulcânicas da loucura. Essa é, na verdade, uma 

interpretação que hoje tem dificuldade de encontrar adeptos. Mas 

quem não a aceita - e realmente não vejo como se possa aceitá-la - deve 

indagar com toda a seriedade se o fim da vida consciente de Nietzsche 

representa verdadeiramente um desfecho clinicamente inevitável: se foi 

o resultado de uma evolução de sua natureza psicossomática totalmente 

independente da sua problemática filosófica. Se a resposta for afirma

tiva, não haverá fim para o assombro provocado pelo fato de ter podido  

o homem de quem se diz ter sido, em vida, vítima de uma doença que 

devia levá-lo à loucura, de ter podido esse homem, depois de morto, se 

transformar, em menos de um século, no ponto de referência obrigatório 

para tudo o que nossa época produziu de grande. Se, entretanto, a 

resposta for negativa, os últimos textos publicados por Nietzsche deve

rão merecer de nossa parte uma atenção redobrada: pois eles represen

tam uma última mensagem da parte de quem se sabe condenado não 

por atavismo psicossomático, mas por um destino - um destino de que 

só encontraremos uma equivalência na legenda de Sócrates. Vista re

trospectivamente, afigura-se-nos que a vida de Nietzsche devia terminar 

necessariamente da maneira por que o fez, não por razões de atavismo 

psicossomático, mas por razões de destino - exatamente como se nos 

afigura a vida de Sócrates, vista retrospectivamente, como devendo 

necessariamente terminar da maneira por que o fez, isto é, pela ação da 

cicuta.

Senão, vejamos. Que destinos poderiam ter dois homens que pro

clamaram um a falência do Estado, outro á falência da cultura do seu  

tempo? Se o diagnóstico fosse falso, a condenação, num caso, e a 

loucura, no outro, não teriam ocorrido. Um Estado justo não condenaria 

um Sócrates equivocado. Uma cultura não falida não imporia uma 

solidão de efeitos devastadores sobre a consciência de um Nietzsche 

equivocado e envolto em perplexidades - seu ritmo saudável prevalece

ria finalmente e traria essa consciência de volta a uma situação de 

equilíbrio e de normalidade. Mas o problema foi que, tanto num caso 

como no outro, o diagnóstico era verdadeiro. Sócrates não se equivocara 

e por isso devia morrer bebendo a cicuta. Nietzsche igualmente em

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porâneos. Sua sabedoria, declara, reside em sua oposição à época em 

que vivia - e já vimos como se sentia próximo de Sócrates nesse parti

cular. A segunda questão - “Por que sou tão perspicaz?” - é respondida 

de modo igualmente socrático: “Nunca propus questões quando era 

inoportuno propô-las”. De novo vem à nossa lembrança aApologia onde 

Sócrates declara seu desinteresse pelas especulações filosóficas dos 

primeiros filósofos que procuravam uma explicação para a constituição 

física do universo. A filosofia ensaia seus primeiros passos na estrada  

real do conhecimento, limitando suas perguntas a umas poucas questões 

sobre a natureza ética do homem. Limitação e concentração - fórmula 

de Sócrates que Nietzsche adota com entusiasmo: “Por que escrevo 

livros tão bons?”, pergunta Nietzsche finalmente. A resposta aqui é 

surpreendente: “Porque são livros da espécie mais altiva e refinada; são 

livros que podem atingir o máximo a que é possível se chegar na vida, 

isto é, o cinismo; para assimilar esses livros é necessário se ter ao mesmo 

tempo dedos sutis e punhos valorosos”. Kaufmann nos traz à memória  

aquela sabedoria socrática cheia de facécias e malícia que constitui o 

melhor estado d’alma (O Viajante e sua Sombra, parágrafo 86). Lem

bra-nos também o encontro do homem superior com os cínicos ( Para 

 além do Bem e do Mal, parágrafo 26), com os cínicos que reconhecem 

em si mesmos o animal simplesmente, a vulgaridade, mas que possuem 

também bastante espírito para serem levados a falar, diante de testemu

nhas, de si próprios e de seus semelhantes. O cinismo, diz-nos então 

Nietzsche, é a única forma sob a qual almas pouco elevadas se aproxi

mam da sinceridade; e o homem superior deve abrir seus ouvidos a todas 

as nuanças do cinismo e se julgar feliz de poder ouvir as bufonarias sem  

pudor ou as digressões científicas do sátiro. Existe mesmo um caso “em 

que o encanto se mistura à repulsa, por exemplo, quando por um 

capricho da natureza o gênio é concedido a um desses sátiros, um desses 

monos indiscretos”. Em O Crepúsculo dos ídolos,  lembra-nos ainda 

Kaufmann, Sócrates é chamado de bufão; o  Alcibíades  de Platão o 

chama de sátiro. Parece, pois, em vista do exposto, que no Ecce Homo 

Nietzsche se recorda de um daqueles casos “em que o encanto se 

mistura à repulsa, por exemplo, quando por um capricho da natureza o 

gênio é concedido a um desses sátiros indiscretos”. Recorda-se de 

Sócrates, sem dúvida, e atribui à influência salutar de suas indiscrições 

a qualidade excepcional dos livros que escrevera.

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Kaufmann menciona um último exemplo, a nosso ver o mais decisi

vo, para evidenciar o relacionamento íntimo entre Sócrates e Nietzsche.

P a r a d a r u m a i d é i a d o p s i c ó l o g o q u e s o u [ d iz - n o s N i e t z s c h e n o Ecce Homo],  e x t r a í   

d e  Para além do Bem e do Mal   u m a c u r i o s a d e s c r i ç ã o p s ic o l ó g ic a ; p r o i b o , e n t r e t a n t o , 

q u a l q u e r c o n je c tu r a so b r e q u e m e u e s t e ja d e s c r ev e n d o : “ O g ê n i o d o c o r a ç ã o t a l c o m o o 

p o s s u i e s s e g r a n d e M i st e r io s o , e s s e d e u s t e n t a d o r , e s s e h i p n o t iz a d o r d e r a t o s d a s c o n s

c i ê n c ia s , c u ja v o z s a b e i n v ad i r a té o s s u b t e r r â n e o s d a s a l m a s , q u e n ã o d i z u m a p a la v r a , 

n ã o l an ç a u m o l h a r o n d e a s e d u ç ã o n ã o e s te ja e s c o n d i d a , e q u e te m a a r te - é u m d e s e u s 

g r a n d e s l a n c e s - d e s a b e r p a r e ce r n ã o t al q u al e l e é m a s ta l q u al é p r e c i so s e r p ar a t o m a r 

m a i s d e p e n d e n t e s d e s e u s p a s s o s a q u e l e s q u e o s e g u e m e p a ra o b r i g á -l o s a s e c o m p r im i r 

m a i s e s t r e it a m e n t e a s e u r e d o r p a r a e s c o l tá - l o d u m a m a n e i r a se m p r e m a i s f e r v o r o s a e 

p e r f e i ta [...] O g ê n i o d o c o r a ç ã o q u e f a z a s p e s s o a s s e c a l a r e m , o s b a r u l h e n t o s e v a i d o s o s 

o b e d e c e r e m , q u e d á u m p o l im e n t o à s a lm a s g r o s se ir a s e u m n o v o d e s e j o , a v o n t a d e d e 

t e r e m u m a p e l e l is a c o m o u m e s p e l h o p a r a r e f le t ir o c é u p r o f u n d o [ ...] O g ê n i o d o c o r a ç ã o  

q u e e n s i n a a m ã o s i n á b e i s e i m p a c i e n t e s o t a t o e a m o d e r a ç ã o , q u e a d i v in h a o l u g a r d o s  

t e so u r o s e s c o n d i d o s , a g o t a d e b o n d a d e e d e d e li ca d e z a s o b o g e l o e s p e s s o e f o s c o , o g ê n i o  

d o c o r a ç ã o , v a r a m á g i c a q u e r e v e l a o m e n o r g r ã o d e o u r o e n t e r r a d o n a l a m a e n a a r e i a 

[...] O g ê n i o d o c o r a ç ã o q u e n i n g u é m t o c a r ia s e m s e e n r i q u e c e r , n ã o q u e s e f iq u e 

e s m a g a d o p o r b e n s p r o v e n i e n t e s d e o u t r e m m a s p e l o c o n tr á r io m a is r ic o n a s u a p ró p r ia 

s u b s t â n c ia , m a i s o r ig in a l d o q u e a n t e s p e r a n t e si m e s m o , d e s b l o q u e a d o , t r a n s p a r e n t e , 

s u r p r e e n d i d o c o m o q u e p o r u m v e n t o d e d e g e l o , m a i s in c e r to t a lv e z , m a is d e l ic a d o , m a is 

f rá g il , m a i s f a ti g a d o , m a s c h e i o d e e s p e r a n ç a s a in d a s e m n o m e , c h e i o d e n o v o s d e s e j o s e 

d e n o v a s te n d ê n c i a s , c h e i o s d e n o v o s c o n t r a d e s e j o s e d e n o v a s c o n t r a t e n d ê n c i a s

Antes de fazer essa autocitação, Nietzsche nos proíbe de qualquer  

conjectura sobre quem ele está descrevendo - mas no Para além do Bem 

e do Mal, donde a citação é tirada, ele nos diz que

a q u e l e d e q u e h á p o u c o fa la v a n ã o é s e n ã o o d e u s D i o n í si o , e s se p o d e r o s o d e u s , e q u í v o c o 

e t e n t a d o r , a q u e m , c o m o s e s a b e , o f e r e c i m i n h a s p r i m í c ia s , c o m r e s p e i t o e m i st é r i o - 

t e n d o s i d o o ú l ti m o , a o q u e l h e p a r e c ia , q u e l h e t i v e s se o f e r e c i d o q u a l q u e r c o i sa : p o i s n ã o  

e n c o n t r e i e n t ã o n i n g u é m q u e c o m p r e e n d e s s e o q u e h a v ia fe i to .

E Nietzsche acrescenta:

D e s d e e n t ã o a p r e n d i m u i to , m u i ta s c o is a s s o b r e a f i lo s o f ia d e s s e d e u s e a s r e p it o , 

d e b o c a a b o c a - e u o ú lt im o d i sc íp u l o e o ú l tim o in i cia d o d o s m i st é ri o s d o d e u s D i o n í si o . 

E p o d e r i a e u e n f im o u s a r c o m e ç a r , m e u s a m ig o s , a v o s f a ze r se n t ir u m p o u c o o g o s t o , 

t a n t o q u a n t o m e é p e r m i ti d o , d e s s a f il o s o fi a ? E m v o z b a ix a , e s t á c la r o - p o r q u e s e t ra ta  

a q u i d e n ã o p o u c a s c o i s a s s e c r e t a s, n o v a s , e s tr a n h a s , m a r a v i lh o s a s e i n q u i e t a n t e s. J á o  

f a to d e D i o n í s io s e r u m f i ló s o f o e d e p o r t a n t o o s d e u s e s ta m b é m s e o c u p a r e m d e f il o so f ia ,  

m e p a r e c e u m a n o v i d a d e q u e n ã o d e ix a d e s e r p e r i g o sa e q u e t a lv e z d e s p e r te a d e s c o n

f ia n ç a , s o b r e t u d o e n t r e o s f il ó s o f o s .

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Em  Ecce Homo, Nietzsche nos proíbe de conjecturar sobre quem 

possa ser o gênio do coração, mas é taxativo sobre o fato de que ele,  Nietzsche, é um discípulo do filósofo Dionísio (no prefácio) - não se 

trata, nesse caso, de falar em voz baixa. Em Para além do Bem e do Mal  

é somente em voz baixa que Nietzsche transmite um pouco da filosofia 

de Dionísio, mas é taxativo ao afirmar que é a Dionísio que está se 

referindo quando está descrevendo o gênio do coração. Dir-se-ia que, em Para além do Bem e do Mal, é a contragosto que Nietzsche admite 

que Dionísio possa ser filosófico, isto é, socrático e que, em Ecce Homo, 

é a contragosto que admite que Sócrates possa ser dionisíaco. Não é 

curiosa essa inversão de termos quando se verifica que existe uma 

reticência em face de uma tal identificação? - Sabemos ainda que, em 

 A Gaia Ciência, Sócrates é descrito como um hipnotizador de ratos das consciências - não é curioso também que a mesma descrição seja feita,

 

uma vez referindo-se a Sócrates, outra a Dionísio? - Não é mais curioso 

ainda que, na segunda vez, Nietzsche nos proíba de fazer uma conjectura 

que não era difícil de entreter? Kaufmann está, pois, plenamente autorizado a tirar a conclusão a que essa comparação de textos nos conduz: na fase final do pensamento de Nietzsche, Dionísio e Sócrates parecem

 

identificados. E essa é uma conclusão que só não é plenamente satisfatória porque deixa ainda aberta a questão de saber a partir de que  

momento essa identificação se operou ou mesmo a questão de saber se 

a possibilidade dessa identificação não poderia ser estendida aos primeiros tempos da vida intelectual do filósofo, a título, pelo menos, de 

uma necessidade que fora, em virtude da experiência wagneriana, estranha, inexplicavelmente desatendida.

Sócrates identificado com Dionísio! Quanto caminho percorrido desde que Sócrates havia sido identificado como o demônio que apare

cera para se opor a Dionísio - o demônio que falava pela boca de 

Eurípides e que expulsava Dionísio do mundo trágico numa espécie de 

suicídio! Quanto caminho percorrido desde que Sócrates tinha sido 

identificado como um otimista, como uma natureza essencialmente 

antiartística, incapaz de compreender o valor do pessimismo, sua necessidade para quem interpreta o mundo de um ponto de vista fundamen

talmente estético! Quanto caminho percorrido desde que Sócrates tinha sido identificado como o homem teórico, fanático da moral e do saber, 

nem dionisíaco, nem apolíneo - meramente socrático!

É curioso que, ao combater o instinto dionisíaco, o demônio socrático tenha combatido, ao mesmo tempo, o instinto apolíneo - num

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rancor sem limites por todo tipo de arte. É curioso que o instinto 

socrático se tenha substituído ao instinto apolíneo para formar com o 

dionisíaco um novo tipo de tensão - não mais um jogo de coordenadas 

submetidas a um mesmo fim, mas uma simples oposição franca e declarada. Mas o mais curioso em tudo isso é a evolução que acabamos de 

estudar do instinto socrático em direção a Dionísio: de uma oposição 

inflexível e intransigente para uma identificação quase amorosa. Estariam agora no EcceHomo, o último livro de Nietzsche, eliminados todos 

os conflitos, superadas todas as oposições? Não era Sócrates, em  A 

Origem da Tragédia, o grande inimigo de Dionísio? As últimas palavras 

do  Ecce Homo, entretanto, as últimas mensagens que recebemos do 

filósofo nos deixam ver que no seu espírito havia ainda um último 

conflito, um último problema - Dionísio em face do Crucificado. O que 

aconteceu então? Não temos o direito de supor que Dionísio, uma vez 

identificado com Sócrates, vai agora permitir a Nietzsche sua última 

oposição, sua palavra final sobre as tensões espirituais que desde sempre 

haviam percorrido sua obra? Sócrates, em face do Crucificado, poderia 

bem ser o desfecho desse drama, cujo primeiro ato nos mostrava o 

conflito do dionisíaco com o apolíneo - um drama cuja ação começava 

quando uma parte da história do herói já se desenrolara -, a parte que 

se referia às primeiras preocupações espirituais do adolescente, sua 

formação religiosa, seu cristianismo pietista, suas primeiras indagações 

sobre o valor da fé que lhe havia sido incutida.Em Ecce Homo Nietzsche nos dá algumas indicações sobre essa sua 

primeira formação - mas essas indicações não podem ser recebidas sem 

reservas. São suas palavras:

D e u s , im o r t a li d a d e d a a l m a , r e d e n ç ã o , li b e r ta ç ã o , s ã o i d é i a s à s q u a i s j a m a i s c o n s a

g r e i n e m m i n h a a te n ç ã o , n e m m e u t em p o , m e s m o n a m i n h a p rim e i r a j u v e n t u d e - t a lv e z 

n ã o t e n h a s i d o e u b a s t a n t e i n fa n t il p a r a f a z ê -l o ? - N ã o c o n s i g o v e r n o a t e ís m o u m  

res u l t ado , um acont ec i m ent o : em m i m e l e cons t i t u i um i ns t i n t o nat ura l [ . . . ] Ex i s t e um a 

q u e s t ã o b e m m a i s in t e r e ss a n t e d a q ua l a “s a lv a ç ã o d o s h o m e n s ” d e p e n d e m u i to m a is d o 

q u e d e t o d a s a s cu r i o s id a d e s d o s t e ó l o g o s : a q u e s t ã o d a a l im e n t a ç ã o .

Paul Valadier no seu livro Nietzsche, l’Athée de rigueur, faz também 

essas reservas e pergunta, com muita pertinência, se não estamos aqui diante de uma brincadeira de mau gosto. Decidiu que não, pois com a 

leitura exaustiva da parte do livro em que se encontra essa passagem  

(“Por que Sei Tantas Coisas”), evidenciam-se a tenacidade e a coerência 

com que é tratada a brincadeira. Concluiu, entretanto, que, mesmo não

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nossas entranhas que podemos dizer que somos verdadeiramente cris

tãos. A doutrina cristã fundamental do cristianismo exprime as verdades 

profundas do coração humano - não é senão o símbolo delas”. Esse 

texto, tirado de uma autobiografia da juventude, nos mostra bem, de 

uma parte, a exigência da adesão a uma fé que diz respeito ao que o 

homem tem de mais íntimo em si mesmo, rejeitando, pois, a tentação de 

uma religião de práticas cultuais ou de conformismo moral e, de outra 

parte, o rigor de uma renúncia total a si mesmo, no abandono da graça. 

Compreende-se, à luz de um tal texto, que Nietzsche tenha podido dizer 

mais tarde, em 1888, já separado do cristianismo: “O cristianismo 

admite que o homem não saiba, não possa saber o que é bom, o que é 

mau, para ele: ele crê em Deus que é o único a saber” (O Crepúsculo 

 dos ídolos, Perambulações Inatuais,  parágrafo 5). Essa interioridade, 

onde o crente lê (crê ler) a vontade de Deus sobre ele, é, aliás, a um tal  

ponto a verdadeira morada da fé que não somente a adesão intelectual 

a um sistema de crenças parece suspeita, como também a referência a 

uma revelação histórica cede o passo ao sentimento atualizado de Deus. 

Esse é o motivo pelo qual, na passagem autobiográfica há pouco citada, 

o jovem Friedrich pôde ver no cristianismo, talvez já não sem uma 

nuança crítica, uma expressão “simbólica” do coração humano. Só a fé, 

com efeito, salva, não uma personagem histórica exterior e estranha ao 

crente. O que se relaciona com a expressão histórica ou dogmática 

simboliza as verdades do coração humano: quer dizer, essa expressão 

tende a se suprimir em benefício duma experiência através da qual ela  

adquire um sentido, experiência que, em definitivo, pode prescindir da 

expressão para se fazer verdadeira.

A idéia de que Nietzsche conheceu apenas um cristianismo moral 

e cultual deve, pois, ser afastada. Conheceu realmente uma religião que 

envolvia o indivíduo numa experiência religiosa “sentida”. Mas vê-se 

bem como, sobre a base de uma tal experiência, as solicitações da crítica 

exegética liberal encontravam um terreno favorável. Se as Sagradas 

Escrituras são mitos através dos quais as disciplinas exprimiram os 

sentimentos do crente, se a atitude autêntica do crente deve justamente  

rejeitar esses mitos para restaurar a adesão interior a Deus, se Jesus, ele próprio, aparece menos como um fundador da religião ou como aquele 

por meio de quem se pode chegar à salvação, do que como aquele que 

se entregou sem reservas ao sentimento do Reino presente, convidando 

cada um a aderir a um tal sentimento - se tudo isso é verdade, torna-se

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inevitável que, em junho de 1865, o jovem Friedrich escreva à sua irmã 

Elisabeth o seguinte:

S e t i v é s s e m o s a c r e d i t a d o , d e s d e n o s s a j u v e n t u d e , q u e a s a lv a ç ã o d a a l m a d e p e n d i a 

d e u m o u t r o q u e n ã o J e s u s , d e M a o m e t , p o r e x e m p l o , n ã o é c e r t o q u e t e r ía m o s p a rt ic i

p a d o d a s m e s m a s b e n d i ç õ e s ? C e r t a m e n t e s ó a f é sa lv a , n ã o a o b je t iv i d a d e q u e s e e n c o n t r a 

p o r t r á s d e la .

Nietzsche, então, pensa já nos “crentes que recorrem a suas expe

riências interiores para de lá concluírem com a infalibilidade de sua fé”. 

Afirma que “toda fé verdadeira não engana, traz o que o crente espera 

encontrar nela, mas não apresenta a menor base para a justificação de uma verdade objetiva”. E diz finalmente, numa carta a seu amigo Cari 

von Gersdorff, em 1867: “A verdade habita raramente lá onde se 

constrói um templo para ela e onde se ordenam os padres”.

Temos, então, aqui o rápido esboço elaborado por Valadier do  

processo que conduz Nietzsche ao ateísmo; separada de uma referência 

histórica ou intelectual, a experiência da fé tende a perder pouco a 

pouco seu conteúdo, na medida em que o crente começa a se perguntar 

se, nessa experiência íntima, ele não estaria talvez fazendo uma experiência de si mesmo. Uma vez feita essa pergunta, o caminho está aberto 

para uma aventura pessoal. A experiência íntima do cristianismo come

ça a se tornar insatisfatória, porque antecipa uma resposta que parece  

antes dever ser o resultado da experiência constituída pela aventura 

pessoal; e, nessa aventura, Nietzsche compreende agora que deve lan

çar-se, embora ignore tudo sobre aonde ela deverá levá-lo. A partir de 

um tal momento, essa é sua única certeza, certeza que tem, como pano  

de fundo, uma total ignorância do caminho a ser percorrido e do seu 

ponto de chegada.

O novo sentido da vida, Nietzsche o descreve numa carta dirigida a 

seu amigo Gersdorff em 1870: “Nosso combate se encontra ainda diante 

de nós - eis por que devemos viver”. Nietzsche, ao recusar a resposta 

antecipada do cristianismo quanto ao sentido do mundo e da vida, se  

aventurara na experiência pessoal de negar todo e qualquer sentido a 

esse mundo. Compreende-se, então, facilmente qual foi seu entusiasmo 

ao deparar por acaso, numa livraria, com a obra de Schopenhauer. Esse 

autor era justamente o primeiro filósofo dos tempos modernos que 

ousava perguntar se a existência teria um sentido. Se a resposta fosse 

negativa, então se confirmavam as razões que haviam levado Nietzsche 

a abandonar o cristianismo. Ç uma nova problemática, a questão de

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saber como poderia o homem se orientar num mundo a que faltasse 

completamente o sentido, passava a constituir para Nietzsche a grande 

preocupação. Cedo verifica que o pessimismo de Schopenhauer não o 

satisfaz. Schopenhauer se deixa vencer pelo peso de sua própria desco

berta e termina criando para si o mesmo tipo de ilusão que havia criado 

o cristianismo ao inventar um sentido para a vida. Nietzsche aceita o fato 

de que a falta de sentido do mundo deva conduzir ao pessimismo - mas 

não a um pessimismo de resignação, não a um pessimismo de fraqueza 

e de derrrota. A compreensão que já tem de sua missão, de sua tarefa,  

não lhe permite aceitar uma tal conclusão. A falta de sentido do mundo, 

ao invés de provocar desfalecimento e desânimo, deveria, ao contrário, 

estimular ainda mais a energia e a coragem de quem teve a força de 

encarar essa verdade - deveria suscitar não um pessimismo de derrota 

e de fraqueza, mas um pessimismo de força e de coragem.

Uma vez chegado a esse ponto, ficam estabelecidas e articuladas, 

para nós, as principais coordenadas da obra de Nietzsche. Daí em 

diante, o que vamos ver é um desdobramento dessas coordenadas nas 

diferentes experiências que enriquecem a vida do filósofo. A experiência 

com Wagner, na sua estrutura esquemática, se resume assim numa confrontação entre um pessimismo de força e um pessimismo de fraque

za, tal como a experiência com Schopenhauer. Depois da ruptura com 

Wagner, Nietzsche se aplica com uma profundidade verdadeiramente 

abismal a definir, no contexto da experiência de colocar sob suspeita os 

valores mais consagrados e veneráveis, sua concepção de um pessimis

mo de força e de coragem.

Mas desse relacionamento, entre um pessimismo de força e de 

coragem e a desconfiança e a suspeita de tudo o que era sagrado e 

venerável, resultava o estabelecimento de uma equação - a coragem 

pessimista crescia na proporção direta do conhecimento do mundo, na 

verdade, na proporção direta do conhecimento de sua falta de sentido 

-, podia-se mesmo dizer que a coragem pessimista era igual ao conhe

cimento do mundo, na verdade, de sua falta de sentido. Ora, era essa  

uma equação que lembrava demais uma equação histórica, a equação 

socrática segundo a qual a coragem era igual ao conhecimento ou, em 

termos mais genéricos, aquela segundo a qual a virtude era igual ao 

conhecimento. Era impossível que Nietzsche, ao amadurecer suas 

idéias, não se desse conta da proximidade em que se encontrava da 

posição socrática. Esse amadurecimento o levava inclusive a encontrar 

- como Sócrates o fizera através de suas dúvidas - , a descortinar, através

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de sua “escola de suspeita”, coisas, senão sagradas, pelo menos, venerá

veis, de que já não podia suspeitar. O próprio cristianismo que fora 

abandonado, vítima da suspeita inicial, era agora percebido como tendo, de um certo modo, contribuído para a formação do ímpeto de suspeita 

que o havia derrubado. Leiamos, na sua íntegra, o aforismo 122 do Livro 

III da Gaia Ciência, intitulado “O Ceticismo Moral do Cristianismo” e 

 já referido em outro capítulo:

O c r is ti a n is m o t a m b é m c o n tr ib u i u d e m o d o c o n s id e r á v e l pa r a a p r o p a g a ç ã o d a s 

lu z e s : e l e e n s i n o u o c e t i c is m o m o r a l d u m a m a n e i r a m u i to p e n e t r a n t e e e fi c a z , à fo r ç a d e 

acus ar , de i rr it ar, m a s com u m a pac i ênc i a e um a s u t il eza in f a t igáve i s ; des t ru i u em cada 

h o m e m p a r t ic u l a r a c r en ç a e m s u a s v ir t u d e s p r ó p r i as ; fe z d e s a p a r e c e r p a r a s e m p r e e s s a s  

g r a n d e s fig u r a s v i r tu o s a s q u e a b u n d a v a m n a A n t i g u id a d e - e s s e s h o m e n s p o p u l a r e s  

i m b u í d o s d e s u a p r ó p r i a p e r f e i ç ã o q u e p a s s e a v a m p e l a s ru a s c o m a t i t u d e s d e t o u r e ir o .  

Q u a n d o n ó s , fo r m a d o s p e l a e s c o l a c r is tã d o c e t i c is m o , l e m o s h o j e o s e s c r i to s m o r a i s d o s 

a n t ig o s , ta is c o m o o s d e S ê n e c a e d e E p í te t o , n ã o d e i x a m o s d e e x p e r i m e n t a r u m a 

s u p e r io r i d a d e m o m e n t â n e a e n o s s e n t im o s c h e i o s d e c o m p r e e n s ã o e d e in t u i ç õ e s s e c r e

ta s; a o l ê - l o s t e m o s o s e n t im e n t o d e e s t a r o u v i n d o u m a c r i an ç a fa l a r d i a n t e d e u m a n c i ã o 

o u d e e s t a r o u v in d o u m a jo v e m e b e la e n t u si a st a d ia n t e d e L a R o c h e f o u c a u ld ; s a b e m o s 

m e l h o r , n ó s o u t r o s , d e q u e a v ir t u d e é f e it a ! M a s , p a r a t e r m i n a r , e s s e m e s m o c e t ic i s m o 

n ó s o e x e r c e m o s i g u a lm e n t e so b r e t o d o s o s e s t a d o s e p r o c e s s o s r e l ig i o so s , ta is c o m o o 

p e c a d o , o r e m o r s o , a c re n ç a , a s a n t if ic a ç ã o , e d e i x a m o s o v e r m e c o r r o e r t a n t o q u e a g o r a ,  

l e n d o q u a l q u e r l iv r o c r i st ã o , s e n t i m o s a m e s m a s u p e r i o r i d a d e , a m e s m a p e r s p i c á c ia s u tis : 

s a b e m o s m e l h o r ig u a l m e n t e d e q u e s ã o f e i to s o s s e n t i m e n t o s r e li g io s o s ! E é m a i s d o q u e  

t e m p o d e c o n h e c ê - lo s b e m e d e d e s c r e v ê -l o s c o r r e t a m e n t e p o r q u e o s h o m e n s d e f é , d a 

v e l h a c re n ç a , e l e s ta m b é m v ã o d e s a p a r e c e r - s a l v e m o s a o m e n o s a im a g e m d e l e s e 

ta m b é m o t ip o c o m o o b j e t o d e c o n h e c im e n t o !

Não temos aqui o próprio cristianismo recrutado para colaborar na 

obra de solapa a que se dedica o pessimismo viril, o pessimismo de força, 

o pessimismo de coragem de Nietzsche? Na verdade, podemos observar 

no pessimismo de Nietzsche uma evolução que vai do pessimismo viril 

encontrado na época trágica da cultura grega, passando pelo pessimis

mo de força em contraposição ao pessimismo de fraqueza de Schope-  

nhauer e de Wagner, pelo pessimismo de coragem do ser subterrâneo, 

do solapador da velha confiança na moral do Aurora, pelo pessimismo 

de força presumidamente inspirado na noção do Eterno Retorno, até chegar ao êmulo de Turenne, no Livro V da Gaia Ciência, que proclama 

um novo tipo de coragem. Quando se chega a esse último estágio, a 

coragem que estava implícita no pessimismo do primeiro e o pessimismo 

que está implícito no último estágio não são apenas demolidores, des

trutores das crenças nas coisas veneráveis do passado; eles são também

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capazes de discernir, entre essas coisas, algo que pode servir para 

construções futuras. O caso mais claro desse aproveitamento de coisas 

do passado é naturalmente a recuperação de Sócrates. Mas acabamos  

de ver que o próprio cristianismo, de cujo abandono resultara toda a 

grande aventura de uma recusa cada vez mais acentuada das tradições  

do passado, era agora novamente contemplado de uma maneira clara

mente positiva, como se realmente não nos fosse possível desvencilhar-  

mo-nos dele com um gesto radical e definitivo, como se, no seio de 

nossas maiores veleidades de independência, existisse sempre uma 

amarra, uma cadeia, que nos prendesse a esse passado insubstituível.

A recuperação de Sócrates naturalmente era muito mais acentuada, 

muito mais visível do que a do cristianismo. E por isso somos insensivel

mente levados a pensar se a recuperação do primeiro não poderia ser  

considerada uma preparação para o advento maior de uma recuperação 

do segundo. Temos já tido sob exame o caso de Sòren Kierkegaard. Para 

ele a experiência socrática fora uma etapa indispensável para sua plena 

identificação com o cristianismo. Por que a mesma coisa não teria 

podido acontecer a Nietzsche? - Os sinais que encontramos na fase final 

de sua vida consciente falam sugestivamente, senão claramente, nesse 

sentido: a crescente simpatia com que a figura de Sócrates é considera

da, a progressiva tendência a salientar em Sócrates o elemento dionisía

co, a misteriosa identificação de Sócrates e Dionísio. Chega-se  

finalmente ao ponto em que, nas suas últimas palavras publicadas, 

Dionísio é colocado face a face com o Crucificado, como, no começo de 

sua carreira intelectual, Dionísio havia sido colocado face a face com 

Apoio, o deus do sonho e da individualidade. Acontece, entretanto, que 

Dionísio agora já tinha sido identificado com Sócrates. Não sabemos por 

que motivo Nietzsche preferia não colocar Sócrates face a face com o 

Crucificado. Mas, depois do que já dissemos sobre “o gênio do cora

ção”, não é justo que nos ocorra esse pensamento? - Não teríamos aqui, 

numa expressão extremamente simplificada, numa mensagem por assim 

dizer telegráfica, um programa que Nietzsche não teve tempo de cum

prir, mas que Kierkegaard levou a termo, tendo iniciado sua execução 

ainda nos primeiros anos de súa juventude, sem passar pelas experiên

cias, esperanças e decepções que dilaceraram e atormentaram a vida de Nietzsche?

Jesus é um dos poucos nomes que nos legou a história que nem uma 

só vez se tornou o alvo das flechas venenosas da crítica nietzschiana.  

Contrastando com a violência, com a brutalidade mesmo dos golpes

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Dionísio face a face com o Crucificado. Sócrates face a face com o 

Jesus suprajudaico, o Jesus que não procurou a Cruz, mas apenas o 

Reino de Deus. Sócrates face a face com o Jesus que queria arrancar 

seu povo do pesadelo de uma maldição histórica, inaugurando um novo 

Reino, uma nova era, em que Israel venceria seus inimigos não pela força 

das armas, mas pela superior consciência de uma realidade anunciada, 

esperada e agora prestes a se confirmar - tal não podería ter sido a 

conclusão final de uma obra que foi interrompida e que, mais do que 

qualquer outra, foi vítima de interpretações tendenciosas por parte 

tanto daqueles que a estimavam quanto daqueles que não a apreciavam?

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6. O NIILISMO

A filosofia começa verdadeiramente quando os dois elementos que 

haviam até então atraído a atenção dos pensadores - a realidade física 

do universo e as virtudes dos seres humanos - travaram a primeira 

batalha decisiva de que resultou o amálgama íntimo desses dois elemen

tos transfigurados no mito do Ser divino do Bem, mito que era um 

símbolo construído em função da experiência da fusão desses dois 

elementos. Essa aliança entre o Ser que representava a objetividade do 

mundo e o Valor atribuído às ações humanas, ou derivado delas, não 

constituía uma união interpares. Era a partir de uma primazia do Valor 

que se realizara o amálgama. Platão naturalmente foi o promotor dessa 

primeira união, que não se desfez com a intervenção de Aristóteles; 

entretanto, o preço que o estagirita precisou pagar, para que não se  

desintegrasse a união, foi inverter a ordem da primazia e fazer do Ser o 

elemento hegemônico.

A inversão da ordem de primazia teve como conseqüência imprimir 

um caráter artificial ao símbolo criado por Platão. O Bem divino de 

Platão era um mito que simbolizava uma experiência realmente ocorrida 

de ascensão dialética; o Bem supremo de Aristóteles foi apenas um 

conceito que não correspondia a uma experiência de valor e que só

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podia funcionar como uma alegoria do Ser - pois, como já procuramos 

mostrar, um símbolo para se constituir não pode prescindir da ocorrência da experiência que é sua função exprimir.

Com o cristianismo, um novo símbolo surge na cena da história, o 

símbolo do Cristo crucificado. Mas esse era um símbolo que exprimia 

apenas uma experiência de valor e que era, portanto, de uma certa 

maneira, incompleto. Quando a experiência cristã se transformou numa 

experiência greco-cristã e o símbolo do Cristo crucificado, que carecia 

de uma complementação, relacionou-se com o amálgama artificial representado pelo conceito aristotélico do Bem supremo (que era apenas 

uma alegoria do Ser) - quando o símbolo do Cristo crucificado relacio

nou-se desse modo, verificou-se que uma verdadeira fusão se tornava 

difícil, porque ficava indecisa a questão da primazia do Valor ou do Ser.

A experiência greco-cristã não teve, assim, uma simbolização que 

lhe garantisse uma certa estabilidade. Por vezes era a experiência do Ser 

que predominava, por vezes a experiência do Valor. Mas, durante 

séculos, nenhuma das duas foi excluída do campo cultural em que se 

exerciam essas tensões. Foi unicamente com o aparecimento de Lutero 

que a experiência greco-cristã, orientando-se no sentido de uma maior 

interioridade, construiu uma nova simbolização, forjada a partir de uma 

experiência exclusiva do Valor. A  so lafide de Lutero significou, então, que apenas o valor da graça divina podia contar e que qualquer consideração de natureza objetiva, obras, culto, normas de conduta - tudo 

enfim que diz respeito à existência de um mundo situado fora do mundo 

subjetivo do crente, do homem de fé, deixa de ter significação para ele.

É, por conseguinte, a partir de Lutero que uma filosofia do Valor, 

exclusiva de qualquer consideração sobre o Ser, se impõe aos espíritos. 

Heidegger vê, nesse fenômeno, a extrema ocultação do Ser, invertendo 

de modo extremamente curioso o sentido da ocorrência que consistiu 

precisamente no fato de ter sido o Valor, durante alguns séculos, ocultado pela prevalência do Ser. Quando Nietzsche aparece em cena, é justamente o fato de ter todo o sentido das coisas refluído para o 

domínio do Valor - abandonando o domínio do Ser, do mundo objetivo, 

da realidade física totalmente destituída do sen tido-, é justamente esse 

fato que vai determinar a problemática filosófica. Pessimismo versus 

otimismo é atitude filosófica que só pode existir num contexto em que 

o Ser do mundo está dissociado do seu Valor de modo que o homem 

que confronta esse mundo tem a possibilidade de reagir dessa ou 

daquela maneira diante de tal mundo destituído de sentido. O otimista

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é o indivíduo que é tal coisa porque não percebe que o mundo é 

desprovido de sentido. Só o homem que vive num contexto em que Ser 

e Valor estão soldados na mais íntima das ligas pode situar-se acima do 

pessimismo e do otimismo - pois o Valor que encontra no mundo não se distingue da experiência que tem da existência das coisas. Essa fusão 

de Ser e Valor é letra morta para nós que vivemos no mundo de hoje.  

Nossa cultura está gravemente ameaçada, porque não consegue encon

trar um sentido para o mundo dentro do qual se constituiu. Paira sobre  

nossas cabeças a ameaça gravíssima do niilismo. Já no século passado, 

a consciência desse perigo preocupava espíritos como os de Dostoiévski 

e de Nietzsche e determinava a problemática em torno da existência de  

Deus, que esses dois grandes pensadores melhor do que ninguém desenvolveram e levaram às suas diversas conseqüências.

A entrada da Rússia, no século passado, como um dos protagonistas 

principais da cultura do Ocidente é um fenômeno a que não se tem dado 

a atenção que merece. No dizer de Nikolai Berdiaev, em seu livro sobre 

Dostoiévski, os russos naquela época se consideravam “apocalípticos” 

ou niilistas, entendendo-se por isso que não suportavam um clima 

psíquico medíocre, já que tinham um temperamento que os levava 

irresistivelmente para posições extremas. Apocaliptismo, niilismo, tendência aos excessos, uma necessidade de levar as coisas aos seus úl

timos limites os impeliam para tais extremos. A estrutura da alma russa 

diferia profundamente nesse particular da estrutura da alma francesa 

ou alemã; o alemão era um crítico ou um místico, o francês, um cético  

ou um dogmático. Ao lado deles, o russo era o mais incapacitado para 

elaborar uma cultura, para encontrar seu caminho histórico. Um tal 

povo jamais poderia ser feliz na sua história. Os extremos a que chega

ram, o extremo da religião ou o extremo do ateísmo, apocaliptismo ou 

niilismo, os induziam a destruir igualmente a cultura e a história cuja 

posição se situa justamente no meio do caminho. E se o russo se  

revoltava contra essa cultura e essa história, se suprimia todos os valores 

e fazia tábua rasa de tudo, era difícil discernir se agia como niilista ou 

como apocalíptico, persuadido que estava de que o mundo desaparece

ria numa grande apoteose religiosa. “O niilismo apareceu entre nós”, 

escreveu Dostoiévski no seu Diário, “porque nós somos todos niilistas.”

Berdiaev vê nessa disposição da alma russa a explicação para o fato 

de ser ela tão refratária a uma disciplina espiritual. O russo, segundo 

ele, é mais facilmente um santo que um homem honesto. A honestidade 

é uma espécie de meio-termo moral, uma virtude burguesa que não

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interessa a extremistas convencidos de que o mundo vai acabar. Essa 

era naturalmente uma característica fatal para o povo russo, porque os 

santos são raros e um grande número de pessoas são predispostas à 

desonestidade. Se de um lado alguns poucos atingem um plano extremamente elevado de espiritualidade, do outro a maioria fica muito 

abaixo da média cultivada dos outros povos. Daí o contraste, na Rússia 

do século passado, entre uma elite que atingiu um nível espiritual dos 

mais elevados e a massa analfabeta. Não existia, naquela época, cultura 

média na Rússia, nem mesmo tradições culturais. Nesse particular, 

quase todos os russos eram niilistas. Por quê? - Porque a cultura não 

resolve os problemas finais, a evasão fora do processo terrestre - ao 

contrário, ela consolida o meio social humano. Para o russo absorvido 

pela solução das questões metafísicas, por Deus, pela imortalidade ou 

pela organização da humanidade segundo um estatuto novo, assim como 

para o ateu, o socialista ou o anarquista - para todos eles, a cultura 

representava um obstáculo atravessado contra o movimento impetuoso 

que os transportava para um desenlace.

Tal é o perfil que Berdiaev nos traça de seu país no século passado. 

E é por isso compreensível que a literatura russa daquela época despertasse, no Ocidente, um tão grande interesse. Não começava também a 

despertar na Europa civilizada, amadurecida na sua cultura, o sentimen

to de que seu mundo de valores, laboriosamente construído, principiava 

a se desmoronar? O sentimento de que começavam a ser corroídas as 

bases metafísicas desse mundo, a confiança no Ser que lhe dava susten

tação e energia? Feuerbach, com sua noção de que era o homem e não 

Deus que constituía a razão de ser do mundo; Schopenhauer, com seu 

pessimismo; Nietzsche, com sua visão do Insensato proclamando a 

morte de Deus: não tínhamos já aqui todos os elementos para com

preender, de uma maneira íntima e profunda, o alcance e a procedência 

do niilismo declarado numa nação que até aquele momento se mantive

ra alheia aos problemas espirituais da comunidade européia? O niilismo 

dos russos era uma conseqüência de sua consciência apocalíptica. A 

cultura, para eles, era um estorvo, um atraso, uma perda de tempo.  

Queriam chegar logo ao fim dos tempos, ao limiar da nova era, do novo 

mundo. Por isso todas as comodidades, todas as facilidades, todos os 

artifícios que o homem europeu havia laboriosamente construído eram, 

para eles, letra morta. Antiguidade clássica, Renascimento, todos esses 

belos períodos em que a humanidade se havia comprazido e em que, 

pela memória, continuava ainda a se comprazer, nada significavam para

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eles. O sentimento da iminência de uma grande transformação, de uma 

transfiguração do mundo os absorvia tão completamente que tudo o 

mais, ao lado disso, se dissolvia em insignificâncias. Niilistas eram, 

portanto, não porque tivessem muito que destruir ou rejeitar; niilistas eram porque tudo o que existia perdera, para eles, qualquer significação 

- e mesmo a existência bruta, desprovida de atrativos, de uma sociedade 

malformada como a deles, constituía já algo excessivo, algo que repre

sentava uma presença importuna para essas consciências, distendidas 

pelo esforço de alcançar o momento de glória, que antecipavam na sua 

visão apocalíptica.

O niilismo na Europa tinha evidentemente um caráter diferente. Ele 

era mais destrutivo que o niilismo russo, porque tinha mais coisas para 

destruir. Não se originava de uma consciência apocalíptica, porque fora 

 justamente o lento amadurecimento de uma cultura que determinara na 

Europa a extinção de uma consciência apocalíptica. A Igreja de Roma, 

ao estreitar cada vez mais fortemente seus laços com a filosofia e a  

cultura gregas, terminara por lançar no mais completo esquecimento a 

expectativa de uma segunda vinda do Redentor. O niilismo europeu 

tinha, pois, idéias pouco claras sobre o que o mundo poderia vir a ser. 

Embora tivessem surgido, nessa época, teorias sobre como deveriam ser 

o homem e a sociedade do futuro - teorias que justificavam uma 

destruição pelo menos parcial da estrutura do presente -, não se confi

gurara a visão de um apocalipse verdadeiro, isto é, de uma transfigura

ção total do universo que abolisse, por completo, todo e qualquer 

elemento que fizesse parte dessa estrutura.

O niilismo na Europa foi, assim, marcado por uma espécie de 

meio-termo, por uma ausência de extremismos, que os niilistas russos não poderiam ver senão com pouco apreço (apesar de a doutrina 

comunista no Ocidente ser considerada, por muita gente, uma doutrina 

extremista). Esse niilismo foi, como outros produtos da cultura do 

Ocidente, marcado por um estigma de mediocridade burguesa que fazia 

do revolucionário europeu um indivíduo tímido quando comparado 

com um verdadeiro anarquista russo. O futuro era considerado, pelo 

niilista europeu, de uma maneira essencialmente reativa, não uma rea

lidade de que se pudesse ter uma visão direta mas uma conseqüência, um pretexto, digamos mesmo um meio de justificar a ação destrutiva do 

presente. Tudo era feito tendo em vista  the baby to be bom  - mas as 

características desse baby, os traços de sua fisionomia, eram totalmente 

indiscerníveis.

 N1ETZSCHE: O SÓCRA TES DE NOSSOS TEMPOS 169

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Pode-se assim dizer que todas as formas de utopia que surgiram no 

Ocidente entre o século XVIII e o século XX - a utopia liberal, a 

positivista, a socialista, a nazista e a marxista - foram formas de niilismo 

mitigado, um niilismo que se contentava em destruir alguns elementos 

do presente, mas que tinha idéias muito vagas sobre o que deveria ser o 

futuro. Chamou-se a isso espírito revolucionário. O niilismo verdadeiro, 

o niilismo disposto a tudo destruir porque tinha uma visão claríssima do 

futuro, não chegou nunca a se implantar na Europa, porque parece  

existir uma relação direta entre o fato da existência de uma cultura e a 

impossibilidade de se ter do futuro uma clara visão apocalíptica. A  

existência de uma cultura determina não apenas uma grande dependên

cia do passado como também uma limitação quanto ao número e tipo 

de possibilidades que o presente é capaz de projetar para o futuro. 

Destruir uma cultura, solapar suas raízes que têm por vezes a profundi

dade de milênios, em nome de um futuro não claramente entrevisto, 

seria obra de insensatez que o homem, em todo o percurso de sua 

existência histórica, jamais teve a ousadia de fazer. A Revolução Russa, 

como sabemos, foi inspirada num niilismo derivado de uma consciência 

apocalíptica que justamente tinha pouco ou nada para destruir. E só uma 

sociologia cega, totalmente esquecida de seus pressupostos culturais, 

pôde ver nela um passo à frente, um estágio mais avançado no processo  

de evolução social que a Revolução Francesa havia inaugurado.

Tudo isso que dissemos, entretanto, não significa que o niilismo, 

pelo fato de ter tido na Europa um desempenho mitigado, não possa 

mais tarde constituir para ela uma grave ameaça. Comparado com o 

niilismo radical na Rússia do século XIX, o atual niilismo europeu  

apresenta a desvantagem de não ter uma clara visão do futuro e de, por 

conseguinte, ser levado a destruir irracionalmente o presente em nome 

de expectativas e valores que não foram suficientemente examinados e 

aprofundados. O fator de moderação, o “meio-termo” que, de um modo 

geral, funciona como um elemento de boa medida e equilíbrio, aqui tem, 

ao contrário, um efeito desastroso. Quando as expectativas e os valores 

desejados são mal examinados, a avaliação do presente, tido como 

obstáculo, não pode deixar de ser também defeituosa. Do niilismo 

apocalíptico dos russos do século XIX, não se poderia dizer que a 

avaliação do presente fosse defeituosa. Eles tinham a mais clara cons

ciência e a mais lúcida inteligência de que tudo o que representasse 

cultura, idéias, estruturas, instituições e filosofias constituíam um estor

vo no caminho que os levaria ao limiar da nova era. Não havia modos de

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se enganar. A questão era saber apenas o que encontrariam: se Deus ou 

o Vazio. Era essa uma aposta que estavam dispostos a fazer e em torno 

da qual organizavam suas vidas.Já o niilismo europeu estava longe de ter essa nitidez de linhas e 

propósitos. Não havia uma experiência em que nada havia a perder e  

tudo a ganhar. O que havia eram compromissos desastrosos, remendos 

insatisfatórios, recuos tardios quando se verificava que as avaliações não 

haviam sido boas e que faltavam lucidez e inteligência na apreciação dos 

fatos. Esses erros, evidentemente, significavam o sacrifício inútil de 

multidões de vítimas inocentes. Significavam o aviltamento, o empobre

cimento de uma cultura que se pretendera sanear. Significavam a desorientação, a perplexidade daqueles que, cegamente, se haviam 

deixado entusiasmar e que tinham agora os olhos descerrados para os 

resultados lamentáveis daquilo que havia sido o objeto de seu entusias

mo. Significavam, muitas vezes, um endurecimento contra todo tipo de 

aspiração a um mundo melhor que induzia à crença de que só o 

aviltamento e o empobrecimento da cultura resultariam de qualquer 

esforço de renovação e de transformação da sociedade.

Entre todos os niilistas mitigados da Europa, Nietzsche surge como 

o mais radical. Sua radicalidade não chega ao ponto extremo do niilismo  

apocalíptico da Rússia do século XIX, porque Nietzsche, naturalmente, 

é um dos produtos mais preciosos de uma cultura que tem atrás de si 

milênios de um elaborado desenvolvimento. Nietzsche não quer destruir 

essa cultura, nem em parte, nem na sua totalidade. Mas ele quer 

prescindir dela, pelo menos por um tempo, ser um apátrida da cultura, 

ficar desmunido do passaporte por ela conferido, ser o viajor errante 

que tem como único documento seu passe de viagem. A cultura para ele 

também era um estorvo, um obstáculo, como era para o niilista apoca

líptico, com a única diferença de que seu objetivo não era chegar de um 

só impeto ao limiar de uma nova era, mas viajar, abandonar todas as 

moradas confortáveis que, por um momento, seduziam seu corpo e seu  

espírito cansados, continuar por tempo indefinido o seu caminho em 

demanda de novos horizontes.

Nietzsche é assim, num certo sentido, mais destrutivo do que seus 

congêneres europeus e, num outro sentido, menos destrutivo. Seu nii

lismo é mais abrangente do que o niilismo, por exemplo, da utopia 

liberal, da positivista, da socialista, da nazista e mesmo mais abrangente 

do que o da utopia marxista, que não rejeita a cultura, pelo menos sob 

forma de ideologia. Mas é menos agressivo do que todas as outras

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formas de niilismo mitigado, porque não consiste numa eliminação pura 

e simples desta ou daquela parte da cultura, como acontece com a utopia 

liberal, que elimina a disciplina da vontade; com a positivista, que  

elimina a metafísica; com a socialista, que elimina a autonomia do 

indivíduo; com a nazista, que elimina a autonomia do espírito, e com a 

marxista, que elimina a espiritualidade. Não, o niilismo nietzschiano 

considera a cultura e a história entraves, obstáculos não a um movimento 

impetuoso que se lance em direção ao limiar de uma nova era onde não 

existiriam mais nem história nem cultura (como o niilismo apocalíptico 

dos russos), mas a um movimento menos apocalíptico de reformulação 

total dessa cultura, sobre bases absolutamente novas e até um certo 

ponto ignoradas.

Já em 1873, no seu ensaio “sobre a verdade e a mentira num sentido 

extramoral”, Nietzsche assim se exprimia:

N u m c a n t o q u a l q u e r a f a s ta d o d o u n i v e r so p e r d i d o n o c i n t i la m e n t o d e i n u m e r á v e is  

s i st e m a s s o l a r e s e x is ti u u m a v e z u m a s t r o s o b r e o q u a l a n im a i s a s t u c i o s o s i n v e n ta r a m o  

c o n h e c i m e n t o . F o i o m i n u t o m a i s a rr o g a n t e e m a i s m e n t i r o s o d a h i s tó r i a u n iv e r sa l; n ã o  

d u r o u e n t r e ta n t o s e n ã o u m m o m e n t o . H o u v e a lg u n s p o u c o s s u s p ir o s d a n a tu r e z a e l o g o  

o a s t r o s e c o n g e l o u e o s a n i m a i s a s t u c i o s o s m o r r e r a m . - A s s im a l g u é m p o d e r i a in v e n t a r 

u m a f á b u l a e e n t r e t a n t o e s t a r ia a i n d a m u i t o , l o n g e d e t e r i lu s t r a d o q u ã o d i g n a d e 

c o m i se r a ç ã o e r a a e x c e ç ã o , p a s s a g e ir a c o m o u m a s o m b r a f u g it iv a - q u ã o d e s t i tu í d a d e 

f in a l id a d e e d e s e n t i d o e r a a e x c e ç ã o q u e c o n s t it u í a o i n t e l e c t o h u m a n o n a n a t u r e z a . 

H o u v e e t e r n i d a d e s d u r a n t e a s q u a i s e l e n ã o e x i st iu ; e q u a n d o t i v e r d e s a p a r e c i d o d e n o v o 

s e r á c o m o s e n a d a t iv e s s e o c o r r id o . P o r q u e n ã o e x i s te p a r a o i n t e l e c t o u m a m i s s ã o m a i s 

v a s t a q u e s e p r o l o n g a r i a a l é m d a v id a h u m a n a .

Já em 1873, portanto, as bases do niilismo de Nietzsche estavam 

assentadas. Se a existência do intelecto humano é coisa efêmera, que 

desaparece como um grão de poeira perdido nas eternidades, como 

quando ainda não existia ou como quando não existir mais - se o sentido 

que o intelecto humano atribui às coisas e ao mundo deverá também 

desaparecer, perdido nessas eternidades, não está longe o dia em que 

se tirará a conclusão de que a existência efêmera de um mundo dotado 

de sentido equivale praticamente à sua inexistência.

Em 1878, quando Nietzsche publicou o seu  Humano, demasiada- 

 mente Humano,  a conclusão já estava tirada. No primeiro livro dessa 

obra, Dos Princípios e Fins, Nietzsche nos mostra como as verdades que 

o homem procura atribuir ao mundo são todas falsas e ilusórias, inau

guradas apenas para assegurar a existência da raça humana no nosso 

planeta.

172 MARIO VIEIRA DE MELLO

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O e s p í r it o d e c i ê n c ia [ d iz - n o s e le ] é f o r te n o d e t a l h e , m a s n ã o n o t o d o . O s d o m í n io s  

d i st in t o s d a c iê n c ia - o s m e n o r e s - s ã o t r a ta d o s d e m o d o p u r a m e n t e o b j e ti v o , m a s a s 

c i ê n c i a s m a i o r e s , u n i v er s a is , s e c o n s i d e r a d a s u m t o d o , f a z e m a o c o n t r á r io s u b i r a o s l á b i o s 

a q u e s t ã o , id e a l s e m d ú v id a : f a z e r i s so p o r q u ê ? c o m q u e u t i li d a d e ? [ ...] A t é o p r e s e n t e 

n ã o h o u v e a i nd a u m f il ó s o f o n a s m ã o s d e q u e m a f il o so f ia n ã o t e n h a s e t o m a d o u m a 

e s p é c i e d e a p o l o g ia d o c o n h e c i m e n t o [ e n ã o u m c o n h e c i m e n t o ve r d a d e ir o , a c r e sc e n t a

r í a m o s n ó s ].

A essência do problema é, pois, que o mundo é destituído de sentido 

e que os filósofos e as religiões inventam fábulas para encobrir essa 

situação. Nietzsche não se contenta com a generalidade dessa afirma

ção. Estuda um por um todos os meios de que o homem se utiliza para 

cobrir o mundo da rede de interpretações e de explicações que possa 

torná-lo mais favorável, mais habitável para o ser humano. Estuda os 

meios de que lança mão o homem para descobrir verdades que sejam 

úteis à vida humana, que possam assegurar-lhe mais proteção, mais 

tranquilidade, mais confiança no futuro. Verifica que a grande desco

berta realizada pelo homem foi simplesmente compreender que, atri

buindo a essas verdades úteis, necessárias à vida, um caráter absoluto, 

independente, estaria transformando o mundo que é destituído de 

sentido numa morada adequada ao homem, num lugar em que o homem 

se sentiria à vontade, num mundo, enfim, dotado de sentido.

Mas abandonemos, por enquanto, as análises de Nietzsche que 

mostram o homem empenhado em mobiliar o mundo para transformá- 

lo numa morada aprazível e confortável. Concentremo-nos sobre seu 

niilismo, que consiste precisamente nisto: o mundo é totalmente indife

rente ao homem. Não há como encontrar no mundo vestígios de uma 

intenção, seja ela qual for, com relação ao homem. “O homem e o 

mundo”, diz-nos Nietzsche. Que pretensão se revela nessa simples 

partícula, nessa conjunção! Não há uma medida comum entre uma coisa 

e outra. E a única decisão que o homem pode tomar é a de encontrar  

em si mesmo um sentido, um objetivo, uma finalidade de que o universo 

como um todo é absolutamente privado.

Esses são os limites do niilismo de Nietzsche. Não nega que o 

homem possa criar para si mesmo um sentido, um objetivo, uma finalidade. O que nega é que exista, anteriormente a qualquer intervenção 

humana, um sentido prefixado para o mundo em sua totalidade. Mas 

sua negação, que a primeira vista pode parecer de pouco alcance, 

equivale, na verdade, a um terremoto de violência suficiente para fazer 

desmoronar as estruturas do mundo em que o homem se habituou a

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viver. A humanidade não crê num sentido, num valor que não tenha suas raízes no Ser, na objetividade do mundo. Se o sentido está só em mim e

 

não nas coisas, e não no mundo - reflete habitualmente o homem -, então esse sentido não existe. Mas não é terrível viver dentro de um

 

mundo sem sentido? - Toda a problemática do pessimismo e do otimismo que ocupou tanto o espírito do jovem Nietzsche deriva dessa pergunta. Os gregos da época trágica eram pessimistas, segundo o jovem

 

filólogo, porque pressentiam a realidade terrível de um mundo sem 

sentido. Dionísio era o deus que lhes dava uma medida exata do mundo 

em que viviam, era o deus que os punha em contato com a realidade  

terrível desse mundo, realidade perigosa, destrutiva, mas irrecusável. 

Apoio, entretanto, era o deus que os salvava através do sonho das belas 

formas e aparências.Depois da ruptura com Wagner e de um período extremamente

 

difícil de sofrimentos físicos e espirituais, a pergunta se apresenta de  

novo para Nietzsche, em toda a sua intratabilidade: diante do caráter 

terrível de um mundo totalmente destituído de sentido, e privado dos 

benefícios do sonho apolíneo, que novo sonho poderá salvar o homem? 

- Nietzsche responde depois de um período de pausa e reflexão, de um 

período em que submete a questão do pessimismo a um novo exame e 

em que conclui que pessimismo e otimismo são palavras que perderam 

o crédito, já que o mundo não é bom nem mau -, Nietzsche responde:  

o que pode salvar o homem é a “gaia ciência”. Nietzsche nos diz num 

texto memorável:

T a l v e z o r is o t a m b é m t e n h a u m f u tu r o a su a f r e n t e . T a l v e z o r i so p o s s a s e r u m d ia 

o a l i a d o d a s a b e d o r i a e n ã o h a j a o u t r o sa b e r q u e o d a G a i a C i ê n c ia ! [ ...] N ã o s e e n c o n t r o u 

a i n d a a lg u é m q u e s a i b a d iv e r t ir - se c o m e s s e s p r o m o t o r e s , e s s e b e n f e i t o r e s d a h u m a n i d a

d e q u e s ã o t ã o c e l e b r a d o s ! E s s e s h o m e n s q u e n o s d i z e m : s i m , v a l e a p e n a v i v e r ! S i m , 

s o m o s d i g n o s d e v i v e r ! e n o s t o m a m i n t e r e s s a n t e s p o r u m b r e v e p e r í o d o a t é q u e 

n o v a m e n t e o r i s o , a r a z ã o e a n a t u r e z a r e t o m e m s e u s d i r e i t o s e a a r t i f i c i a l m e n t e 

i m a g i n a d a t r a g é d i a n ã o s e t r a n s f o r m e m a i s u m a v e z n a e t e r n a c o m é d i a d a e x i st ê n c i a . É  

p r e c i s o q u e o n d a s e m a is o n d a s d e h i la r id a d e a p a r e ç am p a ra s u b m e r g i r m e s m o a q u e le  

q u e é o m a i o r e n t r e e s s e s tr á g ic o s .

Negar o sentido do mundo é destruir as raízes ontológicas do Valor. 

Não é só o mundo físico mas também o mundo moral, o mundo religioso, o mundo social que a violência do abalo sísmico destrói.

D e u s e s tá m o r t o ! - n ã o e ra e le q u e m c o m u n i ca v a a o m u n d o s e u s e n t id o ? C o m e l e  

d e s a p a r e c e m t o d a s a s e s tr u t u r a s m o r a is , in t e l e c tu a i s , s o c i a i s - o e f e i t o é r e a l m e n t e o d e

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u m v i o le n t o t e r r e m o t o . O p r o b l e m a e n t r e t a n t o é q u e n ã o p e r c e b í a m o s o g r o t e s c o i m e n s o 

q u e e x i s te n o f a t o d e p e n s a r q u e o m u n d o f o i f e i to p a r a n ó s , q u e f o i o r g a n i z a d o e m n o s s a 

in t e n ç ã o . N ã o p e r c e b í a m o s c o m o é c ô m i co p e n s a r q u e h a v ia u m a p r o v i d ê n c i a a s e o c u p a r 

d e n ó s - a p r o d u z ir á g u a p a ra m a t a r n o s s a se d e , a r p a r a q u e p u d é s s e m o s r e sp ir a r, um S o l 

p a r a n o s e s q u e n t a r . E s s a i d é ia d e q u e h a v ia a l g u é m q u e c u i d a v a d e n ó s e s ta v a e c o n t in u a 

a e s ta r d e t al m o d o e n tr a n h a d a n o n o s s o s e r q u e n ã o p e r d í a m o s a o c a s i ã o d e h o n r a r e 

p r e s t ig i a r a q u e l e s q u e d e u m a m a n e ir a o u d e o u t r a n o s d e s s e m a i m p r e s s ã o d e e s t a r 

c o l a b o r a n d o n e s s a g r a n d e o b r a d e a s s is t ê n c ia à s u t il id a d e s v á r i a s q u e e s t ã o li g a d a s a o 

e x is ti r d o h o m e m . N e s s a s o c a s iõ e s d e r e c o n h e c im e n t o p ú b l ic o d e b e n f e it o r ia s n o s  

t o r n á v a m o s s o l e n e s e g r a ve s; e c o m o e r a m t a m b é m o c a s i õ e s e m q u e e x a lt á va m o s as  

v i r tu d e s q u e h a v i a m s i d o c a p a z e s d e p r o m o v e r t a i s b e n f e it o r i a s , o t a l e n t o , a i n t e li g ê n c ia , 

o s a b e r - r e a li za v a -s e n a t u r a lm e n te , se m o m e n o r e s fo r ç o , a f u s ã o d o s a b e r e d a g ra v id a d e . 

N ã o e r a p o ss ív e l te r d o m u n d o u m c o n h e c i m e n t o a d e q u a d o s e n ã o a tr a v é s d e u m s a b e r 

grave . N a f i l o s o f ia , na t eo l og i a , nas c i ênc i as em gera l , o r i so era pro i b i do . A h i s t ór ia do 

m u n d o e r a u m d r a m a , p o r v e z e s u m a t r a g é d i a . F ic a v a t o t a lm e n t e e x c l u íd a a p o s s i b i li d a d e  

d e s e e n c a r a r a e x i st ê n c i a c o m o u m a c o m é d i a .

Nietzsche encontrava assim um sucedâneo para o sonho apolíneo 

da época trágica dos gregos. Pessimismo e otimismo eram palavras que 

haviam perdido o crédito. A realidade do mundo era terrível porque era 

destituída de sentido - mas o sentido grave que se havia querido 

emprestar ao mundo era cômico, e a primeira coisa que um espírito livre, recentemente emancipado dessa gravidade, podia fazer era rir-se dela  

e do sentido a que estava ligada.

Neste ponto, torna-se necessária uma pausa e indispensável um 

retorno ao problema que levanta o Zaratustra. No novo prefácio escrito 

para a segunda edição de 1886 de A Gaia Ciência, edição que continha 

um novo livro, Nietzsche solicita:

m a s q u e m p u d c r q u e m e p e r d o e d e u m p o u c o d e l o u cu r a , d e e x u b e r â n c ia , d e g a ia c iê n c ia  

- p o r e x e m p l o , u m p u n h a d o d e c a n ç õ e s n as q u a i s u m p o e t a e s c a rn e c e d e to d o s o s p o e t a s 

d e m o d o d i fi c il m e n t e p e r d o á v e l.

E acrescenta:

A h ! n ã o é s o m e n t e c o m r e s p e it o a o s p o e t a s e s e u s b e l o s se n t i m e n t o s l ír ic o s q u e e s t e 

r e s s u s c it a d o s e n t e o d e s e j o d e e x e r c e r s u a m a l íc ia : q u e m s a b e q u e g ê n e r o d e v í ti m a 

e s c o lh e r á , q u e m o n s t r o d e a s s u n t o p a r ó d i c o o e x c it ar á d e n t r o e m p o u c o ?  Incipit t ragéd i a 

e s t á e s c r it o n o f im d e s t e li v ro d e u m a d e s e n v o l t u r a i n q u i e ta n t e - q u e s e f aç a a t e n ç ã o ! 

A l g o d e e s s e n c i a l m e n t e s i n i st r o e p e r v e r s o s e p r e p ar a :  Incipit  p a r ó d i a , d i s s o n ã o h á a 

m e n o r d ú v i da .

 NIETZSCHE: O SÓCRATES DE NOSSOS TEMPOS 175

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A alusão ao  Zaratustra  não podia ser mais clara. Hollinrake tem 

carradas de razão em utilizar essa citação como apoio de sua tese 

segundo a qual o  Zaratustra seria uma paródia das obras de Wagner. A 

“vítima”, o “monstro” de assunto paródico não poderia ser senão o 

grande compositor musical. O resultado do exercício de sua malícia não 

podia ser senão o  Zaratustra que Nietzsche terminara pouco antes de 

escrever aquele prefácio. A intenção de Nietzsche havia sido evidente

mente fazer do  Zaratustra  uma obra que transpirasse humor, alegria, 

leveza de coração, espontaneidade no riso, prazer de dança e de movi

mentos harmoniosos, toda uma sinfonia que exprimisse o máximo de 

euforia humana em face de um mundo que havia sido compreendido no 

mais íntimo de seu âmago, isto é, o máximo de euforia humana em face 

de um mundo que se sabia ser totalmente destituído de sentido. A 

paródia parecera, a Nietzsche, ser a melhor maneira de exprimir essa  

veia cômica que já então era inseparável, para ele, da gaia ciência. E  

Wagner, naturalmente, que havia representado a grande paixão de sua 

vida, o grande sentido que o mundo, em certa hora, lhe parecera ter -  

Wagner se apresentava inelutavelmente como o objeto preferido sobre 

o qual teria Nietzsche o desejo de exercer sua malícia, sua veia cômica.

Haverá naturalmente quem discorde da interpretação de Hollinra

ke; e haverá também quem não possa aceitar o fato de que o  Zaratustra 

seja o resultado de um momento em que falhou, na vida de Nietzsche, 

a inspiração socrática. Mas o argumento de que se trata de um grande 

livro, que não pode ser reduzido aos estreitos limites de uma paródia -  

e nem tampouco explicado pela falha de uma inspiração, fosse ela qual 

fosse -, esse argumento, se desassistido por outras razões, impressiona 

pouco. Não se trata aqui de negar a beleza de muitas passagens do livro 

e não só da beleza como da profundidade de alguns dos conceitos 

emitidos. Trata-se de avaliar o sentido geral do livro, sua significação  

como um todo e não aspectos isolados. O que acontece com o  Zaratustra 

é que, ao lê-lo, nosso espírito não está em condições de ligar essa ou 

aquela sugestão que nele encontramos ao mundo de idéias, que é o 

nosso; não está em condições de fazê-lo, pois qualquer sugestão, qual

quer pronunciamento que lá esteja se encontra forçosamente ligado a 

uma personagem central que, em princípio, deveria estar definida dessa 

ou daquela maneira, mas que, na realidade, não o está; de modo que  

permanecemos numa oscilação estéril entre uma personagem central 

não bem delineada e seus pronunciamentos, que nada mais representa

vam do que idéias abstratas, sem qualquer vínculo com uma personali

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dade bem-estruturada e definida - oscilação estéril que inviabiliza nossa 

contribuição pessoal capaz, eventualmente, de se transformar em sim

patia e em comunhão de sentimentos e idéias.A intenção inicial de Nietzsche, como já dissemos, havia sido pro

vavelmente fazer do Zaratustra uma obra que transpirasse alegria, leveza 

de coração, riso espontâneo - a prova decisiva de que o objetivo do livro 

não foi alcançado é que, em momento nenhum, Nietzsche consegue 

fazer rir o leitor; em momento nenhum consegue tornar mais leve seu 

coração; em momento nenhum comunica ao leitor qualquer alegria. 

Sócrates nos faz sorrir quando alega ter uma memória demasiadamente 

fraca para poder acompanhar as longas dissertações de Protágoras. 

Kierkegaard nos faz sorrir quando imagina os livros de Hegel sem data, 

sem título, sem indicação de procedência. Mas Nietzsche, com seu 

 Zaratustra,  apesar de falar em alegria, em risos, em passos alados e 

movimentos de dança, apesar da exortação de Zaratustra - “Aprendei 

a rir!” -, apesar de tudo isso, Nietzsche só consegue nos transmitir, 

através de todo o livro, a sensação, talvez, de um riso sarcástico que não 

nos conquista e que, pelo contrário, só produz o efeito de criar entre  

Nietzsche e nós um abismo de incomunicabilidade e de estranhamento.

Se Nietzsche tivesse conseguido nos transmitir a sensação de jovia

lidade, de euforia que são os estados de alma exaltados no livro, ele teria 

realmente conseguido realizar a obra que pensava, ainda nos últimos 

dias de sua vida consciente, ter de fato escrito. Se não conseguiu nos 

transmitir a sensação de tais estados de alma foi porque efetivamente  

não podia, por mais esforços que fizesse para sentir dentro de si as 

emoções correspondentes. Nietzsche é um escritor genial, um dos maio

res que já houve, e não se pode conceber que ele tenha experimentado  

dificuldades em passar para o papel aquilo que lhe ia na alma. A única 

explicação que se pode encontrar para o caráter insatisfatório do Zara

 tustra é o fato de uma paralisia das emoções que o impediu de transfor

mar em vivência aquilo que naquele momento constituía o seu credo: a 

gaia ciência. Esse era já o seu credo antes da experiência com Lou e era 

o credo que teoricamente deveria permanecer até o fim de sua vida 

consciente - mas a experiência com Lou havia sido amarga, havia lhe 

roubado a possibilidade de transpor para a literatura um estado de alma 

que não era capaz de vivenciar. Depois da decepção que se seguira às 

esperanças, aos belos momentos, à sensação de um encontro com a 

discípula perfeita; depois da decepção que se seguira à expectativa de 

uma vida em comum em que os poderes de Eros e da filosofia se

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conjugassem como nos tempos de Sócrates - depois de tudo isso era 

difícil encarar a falta de sentido das coisas com jovialidade. É claro que 

esse foi um período de grande depressão para Nietzsche, como atesta sua correspondência e como não podia deixar de ser. Foi durante esse  

período que foi escrita a maior parte do  Zaratustra.  É estranho que 

muito se tenha falado sobre esse livro, mas pouco se tenha dito sobre o 

contraste existente entre o estado de espírito do autor no momento em  

que o escrevia e a profissão de fé, os sentimentos, os estados de alma 

que procurava exprimir.

A consequência de tudo o que acabamos de descrever foi que o 

niilismo de Nietzsche, mitigado como já dissemos, num certo sentido  

menos destrutivo que as utopias do mundo moderno - pois via no riso, 

na alegria, um anteparo, uma restrição ao ímpeto niilista - a conseqüên- cia foi que, em virtude de sua incapacidade de transmitir, pelas razões 

que apontamos, a sensação do cômico e da alegria, esse niilismo tornou- 

se algo de profundamente radical e, de um certo modo, incompreensível. O super-homem é uma expressão que rola de boca em boca, como uma 

moeda falsa, extremamente bem-cunhada, rolaria de mãos em mãos até 

que se descobrisse que era apenas um metal que circulava ilegalmente. 

O aspecto construtivo da obra de Nietzsche não parece, pois, se encontrar no  Zaratustra  como muita gente tem o ar de pensar - encontra-se 

 justamente naquela parte de seus trabalhos que aparentemente é apenas 

crítica e corrosiva. Antes de Elisabeth Fórster com suas manipulações 

de texto, falsificação de cartas etc., etc., criar uma imagem totalmente  

falsa do irmão, já o  Zaratustra havia contribuído para estabelecer, em 

torno de Nietzsche, uma zona de silêncio que perdurou até o colapso que o vitimou. O Nietzsche das máscaras, da comunicação indireta, da 

inspiração socrática ficou durante vários anos submergido pela interpretação zaratustriana de sua obra, que o livro, de um certo modo, e a

 

insistência da irmã, sobretudo, fizeram prevalecer. Na verdade, é justamente nesse Nietzsche das máscaras, da comunicação indireta, da inspiração socrática que parece encontrar-se o aspecto construtivo de sua 

obra. Seria, assim, preciso inverter a ordem que a opinião geral estabe

lece para a avaliação dessa obra se quiséssemos ter uma noção mais correta das coisas. O que parecia ser corrosivo e crítico é, na realidade, 

o que contém a boa semente já germinando para o futuro; e o que 

parecia ser uma mensagem, um descerrar de cortinas, uma revelação de 

horizontes novos, é de fato a semente caída em terreno calcinado e que,  por falta de água, já começa a murchar.

17S MARIO VIEIRA DE MELLO

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E depois do Zaratustra? Que anteparo poderia Nietzsche encontrar 

para o seu ímpeto niilista já que o riso, a comédia, a alegria eram estados 

dr alma que ninguém se podia forçar a ter, que não se podia improvisar, 

que não dependiam de nossa vontade, que não se submetiam ao nosso 

comando? O Livro V da Gaia Ciência, publicado depois do Zaratustra, 

se abre tendo como epígrafe a frase célebre de Turenne. Isso é para nós 

um aviso. Já podemos ter uma idéia do que virá depois. Agora o 

anteparo de Nietzsche para o seu niilismo é pura e simplesmente a 

coragem. Desse momento em diante, a filosofia de Nietzsche vai se 

desenvolver como uma filosofia da coragem, uma filosofia que faz da 

coragem não apenas uma virtude física, não apenas uma virtude moral, 

mas uma virtude espiritual porque é através dela, através da sua infati

gável procura, através da sua vocação para o conhecimento e também 

através do seu grandioso heroísmo que o mundo, arrasado por uma 

suspeita universal, pôde começar a se recompor e, partindo de uma falta 

absoluta de sentido, se orientar para algo que pareça com uma estrutura 

organizada ou um esboço de intenções.

Já indicamos anteriormente qual é, de um modo geral, a significação 

da coragem na obra de Nietzsche. Aqui o que nos interessa é fixar sua 

significação no que diz respeito ao problema do niilismo. Os efeitos da 

percepção por parte do homem, da falta de sentido do universo, podem 

ser neutralizados por um simples ato de coragem? Esgota-se o sentido 

deste ato com essa simples neutralização? Essa era a questão que  

parecia preocupar Nietzsche a partir do Livro V da Gaia Ciência. Aonde 

quer Nietzsche levar sua “Carcaça”, seu corpo e seu espírito, uma vez 

que, com a percepção da falta de sentido do mundo, ele parece já ter 

atingido o máximo do perigo? Que idéia pior que essa seria necessário 

fazer seu espírito suportar? O que Nietzsche parece agora pôr em 

dúvida é a própria validade de sua suspeita universal. Não seria ela 

também uma ilusão, uma ilusão a mais a ser removida, um contentamen

to que se procurava, uma satisfação de poder dizer não ao universo 

inteiro? Se seu espírito podia suportar a idéia da falta de sentido do 

universo, poderia ele suportar também a idéia de que essa suposta falta 

de sentido era uma inverdade que derivava do mesmo instinto que criara 

a fábula de um universo pleno de sentido? - Era para esses abismos de 

perplexidade que conduzia Nietzsche agora seu espírito. Quanto mais 

fundo fazia penetrar o bisturi da análise, mais descobria o filósofo a 

inseparabilidade dos dois aspectos que podem ter as coisas, o negativo 

e o positivo. Nietzsche descobre então a origem da má consciência. Ela

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não é uma consequência do castigo que a sociedade impõe ao criminoso. 

Esse castigo, pelo contrário, endurece o culpado, torna-o mais decidido 

na sua intenção criminosa. Nietzsche descobre a má consciência como 

o estado mórbido em que caiu o homem quando sofreu a transformação 

mais radical de que já se teve notícia - quando, semi-animal, acostuma

do à vida selvagem e à guerra, às correrias e aventuras, viu-se de repente 

obrigado a renunciar a todos os seus instintos - quando a sociedade 

procurou domesticá-lo, transformá-lo num ser pacífico e inofensivo. 

Quando isso sucedeu, aqueles instintos, sob a enorme força repressiva 

da sociedade, voltaram-se para dentro, criando o que se chama a 

interiorização do homem - e assim se desenvolveu o que mais tarde veio 

a se chamar de alma.

Nietzsche descreve, assim, como apareceu no mundo a mais peri

gosa de todas as doenças, o homem doente de si mesmo, conseqüência  

de um divórcio violento com o passado animal, de um salto para novas 

condições de existência, de uma declaração de guerra contra os antigos 

instintos, que constituíam antes sua força e seu caráter temível. Não 

parece haver dúvida de que se trata de um grande perigo, de uma 

situação de alto risco - a condição do homem doente de si mesmo. Mas 

Nietzsche acrescenta que

o f a t o d e u n ia a lm a a n i m a l e n tr a r d e n t r o d e si m e s m a d e u a o m u n d o u m e l e m e n t o tü o 

n o v o , tü o p r o f u n d o , tü o i n a u d i to , tã o e n i g m á t i c o , t ã o r i co e m c o n t r a d i ç õ e s e e m p r o m e s

s a s d e f u tu r o q u e o a s p e c t o d o m u n d o m u d o u r e a l m e n t e . E m v e r d a d e fa lt av a m e s p e c t a

d o r e s d i v in o s p ar a sa b o r e a r o d r a m a q u e e n t ã o c o m e ç o u e c u j o fi m n ã o s e p o d e a in d a 

p r e v e r , d r a m a d e m a s i a d a m e n t e d e l ic a d o , m a r a v i lh o s o e a n t i n ô m i c o p a ra q u e c a r eç a d e 

s ig n i f ic a ç ã o n o p la n e t a . D e s d e e n t ã o o h o m e m v e i o a s e r u m d o s f e i to s m a i s f e li z e s da  

c ria n ça g r a n d e d e H e r á c li to q u e t e m p o r n o m e Z e u s o u A z a r e d e s p e rt a e m s e u f a vo r  

i n t e r e s s e , a n s i o s a e x p e c t a t iv a , e sp e r a n ç a s e q u a s e c e r t e z a s , c o m o s e a n u n c i a ss e a lg u m a 

c o i sa , c o m o s e o h o m e m n ã o f o s s e u m fi m m a s a p e n a s u m a e ta p a , u m i n c id e n t e , u m a 

t rans i ção , um a p rom es s a [ ...] .

Nessa mesma ordem de idéias Nietzsche nos explica que, na casta 

sacerdotal,

t u d o s e t o r n a m a is p e r i g o s o , n ã o s ó a d i a lé t ic a e a te r a p ê u t i ca , m a s t a m b é m o o r g u l h o , a 

v i ngança , a pers pec t iva , o am or , a am bi ção , a v ir t ude e a doen ça .

E também que

é j u s t o c o n s i g n a r q u e é n o s e i o d e s t a c la s s e e s s e n c i a lm e n t e p e r i g o s a d e h o m e n s q u e o 

h o m e m c o m e ç a a s e r um  animal interessante e a a d q u i r ir u m a a l m a p r o f u n d a e m a l d o s a ,

 ISO MARIO VIEIRA DE MELLO

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q u e l h e a s s e g u r a a su p r e m a c ia s o b r e o r e i n o a n i m a l . [...] S ó u m p o v o d e s a c e r d o t e s c o m o 

o s j u d e u s p o d e r ia t e r s e v in g a d o d o s s e u s d o m i n a d o r e s , o s n o b r e s , c o m u m a v i n g a n ç a 

es s en c i a l m en t e e s p i r it ua l . Com um a l óg i ca f orm i dáve l a ti raram p or t erra a ar i s tocrá t i ca 

e q u a ç ã o d o s v a l o r e s b o m , n o b r e , p o d e r o s o , f o r m o s o , f e l i z , a m a d o d e D e u s e c o m o 

e n c a r n i ç a m e n t o d o ó d i o a f ir m a ra m : s ó o s d e s g r a ça d o s s ã o b o n s ; o s p o b r e s , o s i m p o t e n

t e s, o s p e q u e n o s s ã o o s b o n s ; o s q u e s o f r em , o s n e c e s s it a d o s , o s e n f e r m o s s ã o o s p ie d o s o s ,  

s ã o o s b e n d i t o s d e D e u s . [...] O q u e é m a i s c u r i o s o e n t r e t a n t o é q u e d o t r o n c o d a á r v o r e 

d a v in g a ç a e d o ó d i o - d o ó d i o j u d a ic o , d o ó d i o m a i s p r o fu n d o e m a i s su b l im e q u e o  

m u n d o já c o n h e c e r a , d o ó d i o c r i a d o r d o i d e a l, d o ó d i o tr a n s m u t a d o r d e v a lo r e s , d o ó d i o 

s e m s e m e l h a n t e n a te r ra - , d o t r o n c o d e s t e ó d i o t e n h a s a í d o u m a c o i s a i n c o m p a r á v e l, um 

a m o r n o v o , a m a i s p r o fu n d a e a m a i s s u b l im e f o r m a d o a m o r .

Nietzsche descobriu todas essas coisas. Como perseguir então uma 

só linha de raciocínio, ficar apenas com um lado das coisas e desprezar 

o outro? Tudo o que o mundo continha no seu bojo parecia ter ao mesmo 

tempo um valor positivo e outro negativo (e nisso residia sua falta de 

sentido), o bem tanto quanto o mal, e muitas vezes mesmo no bem 

parecia prevalecer o aspecto negativo e no mal o aspecto positivo. Essa 

perspectiva colocava a noção de falta de sentido do mundo numa 

situação especial. Havia um sentido dissimulado, um sentido escondido 

a ser captado, um enigma a ser decifrado através da falta de sentido que 

tanto nos havia perturbado.

Chegando a esse ponto, Nietzsche tinha então se transportado para 

um mundo inteiramente novo, um mundo não mais falto de sentido mas 

enigmático. Um mundo em que era possível dizer não e sim à mesma 

coisa. Um mundo em que a verdade que parecia ter sido banida reaparecia, embora sob forma enigmática. Um mundo em que a verdade 

existia, embora parecesse estar seqüestrada. Seqüestrada por quem? 

Sequestrada por seres que a deformavam, que a assimilavam à sua 

própria substância monstruosa, seqiiestradores que eram dragões. Que 

devia fazer o homem que se obstinasse em persegui-la? A pergunta 

certamente não estava bem formulada. O que se deveria indagar seria 

antes: como deve ser o homem que insiste eih persegui-la? - É aqui que 

se encontra então, naturalmente, a explicação para a nova atitude, para  

a nova solução que Nietzsche descobre para o seu niilismo mitigado. O 

mundo não é totalmente destituído de sentido, existe um sentido oculto, 

enigmático, quase inacessível, que não é impossível descobrir; mas, para 

fazê-lo, o homem precisa desenvolver dentro de si mesmo uma coragem 

que poderia ser um fenômeno novo em nosso planeta - uma coragem 

que não se contenta em enfrentar o perigo presente, mas que se lança

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com a consciência de uma necessidade inelutável em direção ao perigo  

que pressente.

Já nos referimos anteriormente à interpretação que Bertram faz do 

Sócrates nietzschiano - um produto de sua nostalgia. Bertram considera 

também que Nietzsche é um cristão que se ignora: “Quem foi um cristão 

mais apaixonado e mais heroicamente asceta, mais desesperado do que 

Nietzsche?”, pergunta ele no capítulo intitulado “O Cavaleiro, a Morte 

e o Diabo” do seu belo livro. Esse tipo de interpretação nos mostra qual 

foi a tendência geral do pensamento de Bertram ao escrever o seu  

ensaio: ela consiste em atribuir à natureza própria de Nietzsche a 

ambigüidade, a oscilação contínua entre um sim e um não que julga 

possível registrar de maneira permanente através de toda a obra do 

filósofo.

Jaspers também, que trata Nietzsche no seu ensaio como um pre

cursor da “filosofia da existência”, diz interessar-se não pela filosofia de 

Nietzsche mas pelo seu “filosofar”. Com isso quer dizer naturalmente 

que o seu interesse estava não no que o filósofo pudesse ser ou pensar, 

mas naquilo que pudesse vir a ser ou pensar, depois de superado aquilo 

que era ou que pensava antes. Esse processo de superação, entretanto, concebido como um fim em si era incapaz de oferecer um conteúdo e 

se reduzia finalmente a uma autodilaceração contínua e sem objetivo. 

Kaufmann tem perfeitamente razão em dizer, no seu ensaio sobre  

Nietzsche, que o resultado das análises de Jaspers não diferem essen

cialmente das realizadas por Bertram, embora não pareça ter razão 

quando afirma que Jaspers foi influenciado por Bertram ou pelas idéias 

do círculo de Stefan George, a que Bertram pertencia. Bertram atribui 

o fato de Nietzsche poder dizer, constantemente, e, ao mesmo tempo, sim e não a uma mesma coisa, a um traço de sua natureza, ambígua,  

romântica, dividida, traço que confere à sua filosofia um caráter todo  

especial e que lhe empresta uma auréola de legenda. Jaspers vê uma 

semelhança entre a mobilidade do pensamento de Nietzsche e a mobi

lidade da realidade da existência.

Nós que viemos lentamente acompanhando a problemática do 

filósofo e que vimos, como ponto de partida do seu niilismo, o pessimis

mo da época trágica dos gregos, em que a proteção contra o sentimento 

dionisíaco do destino como realidade trágica era dada pelo otimismo  

do sonho apolíneo, das belas formas e harmoniosas aparências - nós que 

vimos como seu niilismo evoluiu para uma visão em que pessimismo e  

otimismo não mais se opunham um ao outro porque ambos haviam

182 MARIO VIEIRA DE MELLO

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perdido qualquer sentido; em seguida como evoluiu ainda para uma 

outra perspectiva, em que o esforço dos benfeitores da humanidade 

para dar um sentido ao mundo era objeto de riso e de chacota; e 

finalmente para a visão de um mundo enigmático, em que as coisas pareciam não só possuir um sentido mas também o seu contrário e por 

isso exigir de quem as considerasse uma dose super-humana de coragem 

- nós que viemos acompanhando lentamente essa evolução temos ra

zões para acreditar que a ambigüidade do filósofo seja inerente não à 

sua natureza mas à sua problemática. Nietzsche não dizia ao mesmo  

tempo sim e não às mesmas coisas no período de seu pessimismo trágico; 

não dizia sim e não no seu período racionalista; não dizia sim e não no 

tempo da gaia ciência, do riso e da paródia; começou a fazê-lo unicamente na fase final de sua vida consciente, quando as linhas mais 

divergentes da sua evolução espiritual, extraordinariamente complexa, 

pareceram subitamente mudar de rumo para convergir em direção a um 

ponto real de trágica inevitabilidade. O sim e o não a que se referem 

Bertram e Jaspers não são simultâneos, porque só nessa última fase se 

apresentam desse modo. Nas outras fases, o sim, quando é pronunciado, 

pode ser acompanhado de um não, mas de um não que se apresenta 

como um eco remoto, distante, como uma sombra sem forças para 

competir com a realidade forte e viva do sim afirmado; quando o não é  

pronunciado, pode ser acompanhado de um sim mas de um sim igual

mente fraco e inerme. Só quem pretende recusar a Nietzsche o direito  

de evoluir, de passar por um certo número de fases em que os problemas 

se reagrupam de uma maneira cada vez diferente, só quem acredita que 

a verdade sobre Nietzsche pode ser captada através de um só retrato e  

despreza a sabedoria e a prudência dos que o examinam através de uma 

série de retratos em diferentes atitudes - só quem tenta sintetizar, num 

só momento, experiências que ocorreram em momentos e situações 

diversas pode achar Nietzsche contraditório, interessado unicamente 

em lutar contra si mesmo e em manter, com respeito a todos os valores, 

uma relação de ódio amoroso inextricável. Não há dúvida de que, se  

tomarmos afirmações do começo e do fim da vida consciente do filósofo 

e se as compararmos entre si, encontraremos contradições. Não há 

dúvida de que Nietzsche muito lutou contra si mesmo para conquistar 

uma liberdade desejada. E não há dúvida de que, a partir de um certo 

momento, ele se deu conta de que o mundo, como o Hermes Bifronte, 

representava um enigma que requeria talvez, para que pudesse ser

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decifrado, uma certa ambigüidade senão uma duplicidade. Mas o que 

esse enigma exigia mais do que tudo era coragem. A ambigüidade, quan

do não é fruto de um devaneio romântico, fruto da vontade de estar ao  

mesmo tempo gozando as delícias de duas posições antagônicas - o que 

é possível somente quando não há compromissos nem enraizamento 

numa posição ou na outra -, a ambigüidade, quando tem os pés pousa

dos na terra, não é causa de deleite mas de sofrimento e angústia. 

Quando, depois de sua ruptura com Wagner, Nietzsche se exilara, 

partira em viagem rumo ao desconhecido, abandonando tudo aquilo 

que mais amava, tudo aquilo que lhe era mais caro, o longo período de 

afastamento, de isolamento lhe permitira adquirir novas luzes sobre uma 

porção de coisas, cuja visão ficara sem dúvida prejudicada pela proxi

midade em que delas anteriormente se achava. Agora que estava de  

volta da longa viagem, não se arrependia de tê-la feito. Não via mais as 

coisas da mesma maneira, mas, ao mesmo tempo, não podia dizer que 

houvesse renegado completamente o passado. Tinham ainda um lugar 

na sua vida as coisas que tanto amara, as coisas que lhe haviam sido tão 

caras. Mas não havia dúvida de que voltara da longa viagem com um 

novo amor, com um novo desejo - ou melhor dito: voltava com a intenção 

de amar os velhos amores de uma outra maneira, com mais inteireza, 

com mais força, com mais lucidez e, sobretudo, com mais coragem. Essa 

nova maneira podia inclusive dar a impressão de uma ruptura - não 

havia mal em causar tal impressão - e talvez essa nova maneira de amar 

equivalesse realmente a uma ruptura. Tudo isso contribuía para dar à 

nova situação um caráter extremamente explosivo - mas ainda aqui a 

explosão parecia constituir uma ocorrência necessária. O mundo era 

enigmático, e esse enigma, como um cofre-forte de aço blindado, talvez 

só se abrisse para nós se tivéssemos a coragem de explodi-lo. Era fácil 

renegar o passado em nome de um futuro novo, desejado. Era fácil 

celebrar o passado e suas façanhas, contar-lhe os méritos e as virtudes 

e esperar que o futuro nada mais fosse do que uma continuação de tais  

façanhas. Mas é uma tarefa ingente, sobre-humana, impossível, procu

rar dialogar com esse Hermes Bifronte, o mundo enigmático que exige 

que as promessas do futuro coexistam com as virtudes do passado. Em 

 A Genealogia da Moral, Nietzsche nos mostra como foi o sacerdote que 

transformou o homem num “animal interessante”. E nos mostra tam

bém como foi a “má consciência”, o sentimento do pecado que trans

formou a alma animal numa alma humana, rica de virtualidades, num 

mundo interior cheio de promessas, de pressentimentos de coisas divi-

184 MARIO VIEIRA DE MELLO

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nas. Como ficar com o “animal interessante” e esquecer o sacerdote,  

como ficar com as promessas e esquecer a má consciência? Nietzsche  

era um psicólogo demasiadamente fino para compreender a dificuldade 

que havia em dissociar estados psíquicos que vivem num fusionamento 

interior incessante e intenso. A coragem que devia cultivar tinha justa

mente sua aplicação no fato de ser necessário afrontar o perigo de 

conservar o “sacerdote” para preservar o “animal interessante”, afron

tar o perigo de conservar a “má consciência” para preservar as “pro

messas do mundo interior”. Não eram esses perigos que assumiam 

proporções gigantescas? Não eram verdadeiramente dragões? A neces

sidade de conviver com esses dragões coexistia com o imperativo de um 

futuro inocente, sem culpabilidade, sem ódios, vinganças ou ressentimentos, um futuro helénico, um futuro dionisíaco. O conflito era violen

to demais, a tensão quase insuportável, Nietzsche sentia de modo cada 

vez mais forte, cada vez mais urgente, a necessidade de um mediador. 

Nesse momento em que resolve, num último assomo de coragem, pro

curar nas mais recônditas cavernas os perigos monstruosos, no momento 

em que resolve encetar a descrição mais cruelmente minuciosa de tudo 

aquilo que era mortalmente perigoso conservar, a maneira de fazer sua 

descrição revela que quem corre o maior perigo é ele próprio. Sua 

filosofia a golpes de martelo pretende destruir apenas as partes do  

passado que podem ser destruídas sem perigo. Mas era possível realizar 

essa operação delicada sem fazer partir contra si próprio algum golpe 

maldirecionado? Nietzsche atinge com violência aspectos do passado 

que talvez tivesse querido preservar. O dogma cristão é um amontoado  

de mentiras, de falsidades, uma doutrina que envenenara a vida ao  

negá-la e que conduzia o homem ao niilismo. O homem moderno mente 

quando se diz cristão, não tem respeito pelo ideal ascético, que considera ultrapassado, nem pelo fim que lhe propunha esse ideal - autopu- 

nir-se, expiar a própria culpa: chega assim, por vias transversas, àquele  

niilismo que era a expressão mais autêntica e mais direta da negação da 

vida peculiar ao cristianismo, e contra a qual, apesar de tudo, o ideal  

ascético durante muito tempo o havia protegido. Agora também uma 

nova acusação feita contra o cristianismo era a de que ele “nos frustrara 

da colheita da cultura antiga”.

Nietzsche parece, com isso, voltar com um novo alento ao seu velho 

entusiasmo pelo passado grego. Mas esse é um novo entusiasmo não 

dissociado de suas preocupações com o cristianismo. Retoma seus 

velhos hábitos de filólogo, interpreta o cristianismo utilizando os méto

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dos que usava outrora para investigar o passado helénico. E, na sua 

urgência de se valer de um mediador, reencontra naturalmente a figura 

do velho Sócrates, já identificado com Dionísio, que poderá aliviá-lo 

agora de sua tensão, repartido que está entre dois mundos - Sócrates 

que, em virtude de sua extraordinária ubiqüidade, poderá servir de elo, 

de ligação entre o mundo grego e o mundo cristão, que agora parecem 

disputar entre si as lealdades do filósofo. Não se tem já comparado 

Sócrates ao Cristo, as duas vidas dedicadas exclusivamente ao propósito 

de tornar melhor o homem, as duas mortes violentas causadas pela  

devoção ao culto da verdade? O Ecce Homo, o último livro publicado 

por Nietzsche, como Kaufmann bem observou, parece ter sido inspirado 

na Apologia de Sócrates. Não vamos repetir aqui o que já dissemos. Mas 

tudo leva a crer que assim como Nietzsche insensivelmente foi se 

reappoximando de Sócrates, depois de tê-lo rejeitado na sua juventude, 

assim também não seria absurdo imaginar que Nietzsche pudesse rea- 

proximar-se do Cristo depois de ter passado pela experiência de uma 

identificação com Sócrates. Ao lado do cristianismo socrático de um 

Kierkegaard, poderia então talvez existir também um socratismo cristão 

de origem nietzschiana que insuflasse um novo ânimo, uma nova ener

gia, um novo espírito no cristianismo anêmico, fantasmagórico, inope

rante de nossa época decadente.

Bertram, com sua interpretação de uma ambigüidade essencial em 

Nietzsche, consideraria arbitrário que se visse emergir, no final da 

evolução de Nietzsche, uma influência preponderante do mestre de 

Platão. Seria tão justo - diria talvez ele - fazer a evolução de Nietzsche 

girar em torno da figura de Sócrates quanto em torno do cristianismo.  

Mas já vimos que a ambigüidade de Nietzsche não deriva de sua 

natureza e sim da sua problemática: e o que esta nos mostra é uma 

crescente recuperação do prestígio de Sócrates e um não menos pro

gressivo ardor na luta, no combate ao cristianismo. Ainda assim não 

poderíamos dizer que Sócrates tivesse definitivamente conquistado o 

terreno abandonado pelo cristianismo. O padre jesuíta de quem já nos 

ocupamos e que dedicou dois livros, profundamente competentes e 

apreciativos, à obra de quem se tornara o mais violento crítico da religião 

que professava - Paul Valadier - terminou um deles, intitulado Nietzs

 che e a Crítica do Cristianismo, do seguinte modo:

O c r i st ia n i s m o t e m t id o c e r t a m e n t e u m a c o n s c i ê n c i a p a r t ic u l a r m e n t e viv a d a n e c e s

s id a d e d e p r o n u n c i a r o “ s im ” e n v o l t o n o “ n ã o ” e i ss o a ta l p o n t o q u e o “ n ã o ” t e r m i n o u 

p o r c o r r o e r t o d a a f i r m a ç ã o . M a s i n v e r s a m e n t e a p e r s p e c t i v a a b e r t a p o r N i e t z s c h e , n o

186 MARIO VIEIRA DE MELLO

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q u e t e m d e t e m í v e l e d e t r á g ic o , n ã o c o r r e o r i sc o d e c o n f in a r a li b e r d a d e e m s e u s 

p r o t e s t o s , e m c o n s e q i iê n c i a d o f a to d e n ã o l e v ar s u f ic i e n te m e n t e e m c o n t a a s c o n d i ç õ e s  

d e s u a c r i a t iv i d a d e ? A t a r ef a f il o s ó f ic a p o r e x c e l ê n c ia n ã o c o n s i st ir i a e m a ju d a r p a c i e n

t e m e n t e o h o m e m a s e a b rir à a f ir m a ç ã o n a c o n v i c çã o d e q u e o “ s im ” , s e m p r e l im it a d o , 

c o r r e se m p r e o r is co d e s e d e ix a r p e r v e r t e r p e l o “ n ã o ” ? Q u e N i e t z s c h e n o s t e n h a 

l e m b r a d o q u e h o j e n u m c e r t o se n t i d o , e m t o d o s o s n ív e is d o r e a l, n ã o h a ja q u e s t ã o m a is 

im p o r t a n t e , c o n s t it u i a n o s s o s o l h o s s u a c o n t r i b u i ç ã o e s s e n c i a l à c r ia ç ã o d e u m m u n d o 

d e l i b e r d a d e .

\

 NIETZSCHE: O SÓC.RA TES DE NOSSOS TEMPOS 187 

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7. A MEDICINA E A ÉTICA

Werner Jaeger, na sua Paidéia, nos fala do respeito de Sócrates pela 

medicina, que era uma das maiores forças intelectuais de sua época. Esse é um ponto que não podemos deixar de lado se quisermos ter uma

 

compreensão exata da posição de Sócrates na filosofia antiga e uma 

noção de sua atitude antropocêntrica. Seu uso de exemplos médicos é 

mais do que freqüente - e não constituía uma prática arbitrária; tais 

exemplos se ajustavam a seu modo de conceber sua própria personali

dade, a seu ethos, a toda a sua vida. Sócrates era realmente um médico. 

Xenofonte chega a dizer que Sócrates se preocupava tanto com a saúde 

física de seus amigos quanto com suas boas condições espirituais. Mas 

ele era sobretudo, sabemos todos, um médico da alma.O respeito de Sócrates pela medicina não se explica apenas pelo  

prestígio que tinha na sua época a ciência médic^. O fato de ser ela uma 

das forças que lideravam o movimento cultural em que toda a Grécia se 

encontrava envolvida - o fato de ser seu prestígio ainda mais abrilhan

tado pela sua associação com a ciência jónica que representava então o 

que havia de mais avançado na cultura helénica -, essas circunstâncias 

por si sós não explicariam a atitude respeitosa de Sócrates. Afinal de 

contas, Sócrates tivera a coragem de romper com a tradição jónica e não

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poupara críticas às especulações cosmológicas dos representantes dessa 

tradição. Um outro fator contribuía para que a ciência médica, apesar 

de associada a uma ciência que abertamente criticava, retivesse sua 

estima e seu respeito - e esse fator não era outro que o interesse da 

ciência médica pelo corpo humano.

Sócrates parece se revelar, assim, como uma das mais legítimas 

expressões da sabedoria popular helénica traduzida pela máxima mens 

 sana in corpore sano.  Essa máxima com que nos defrontamos ainda 

adolescentes, ao folhear enciclopédias com imagens de estatuária grega 

e que esquecemos, anos mais tarde, quando mergulhamos nos proble

mas da modernidade, retém assim um aroma de candura e de ingenuidade que nos envolve todas as vezes que, por uma razão ou outra, 

relembramos aqueles tempos em que procurávamos dar alguma forma 

a nossas aspirações e entusiasmos.

A cultura moderna se interessa pouco por esse tipo de preocupa

ção. O princípio expresso na máxima mens sana in corpore sano,  que 

tinha indubitavelmente uma grande importância na vida dos helenos, 

reflete a seu ver uma situação de fato, não uma situação de direito, e 

pode, por conseguinte, ser ignorado apesar de todo o grande respeito e 

consideração que nos mereça a cultura grega. Para a situação de fato  

em que se encontravam os gregos, o princípio podia constituir uma 

verdade; para nós que vivemos uma outra experiência e que evoluímos 

no sentido de uma maior complexidade, o princípio já não pode mais 

apresentar qualquer validade. O homem moderno está convencido de 

que é perfeitamente possível ter-se uma mente completamente sã num 

corpo vítima de graves doenças.

O que é curioso é que uma tal convicção que permeia tudo o que  

pensamos e sentimos com respeito à nossa própria cultura, nós a trans

ferimos inconscientemente ao passado helénico, quando o estudamos 

com o objetivo de assimilar aqueles elementos que julgamos poder nos 

oferecer algum interesse. Não queremos ser regulados por um princípio 

que nos parece incapaz de se aplicar à rica complexidade em que 

vivemos, mas julgamos que/umo princípio, derivado dessa situação mais 

complexa, pode perfeitamente regular a vida tal como foi vivida num 

passado mais simples e, de um certo modo, mais ingênuo.

Quando estudamos Sócrates, por exemplo, descobrimos que foi ele  

quem estabeleceu as bases do que constitui hoje nossa moralidade. Foi 

ele o primeiro homem que declarou livre todo aquele capaz de, com sua 

razão, reprimir o ímpeto de suas próprias paixões. Isso implica, de um

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certo modo, Uma oposição entre a razão e as paixões do homem; e isso,  

por sua vez, implica uma certa adversidade entre a razão que constituiria 

então a parte espiritual do homem e as paixões que, sendo instintos, representariam então a parte corporal do homem.

Não estamos então justificados em achar que Sócrates já pensava, 

como nós, que, de um certo modo, era um homem moderno? Kant, 

quando estabelece seu imperativo categórico, a máxima que devemos 

seguir porque está livre de qualquer impureza empírica, a vontade pura 

enfim - não está ele repetindo o gesto socrático, que consiste em opor 

a uma racionalidade pura o empirismo da paixão e dos instintos?

Dessa maneira, julgamos possível estabelecer uma continuidade 

entre o passado clássico da Grécia e o nosso período moderno. A mens 

 sana in corpore sano é uma máxima que podemos encontrar nos livros 

sobre cultura física, com ilustrações de estatuária grega, ou nas enciclo

pédias, mas que, na realidade, não tem nenhum relevo dentro da pro

blemática da cultura moderna. Os problemas do espírito, para nós, são 

realmente diferentes dos problemas do corpo. Essa era uma intuição a 

que os próprios gregos haviam acedido, pelo menos na fase madura de  

sua evolução cultural.

Um fato permanece, entretanto: Sócrates não só tinha um grande 

respeito pela medicina como imitava seus métodos de pesquisa ao 

debruçar-se sobre a alma humana. Isso significava, naturalmente, que 

entre a alma do homem e o seu corpo alguma analogia haveria de 

encontrar. E não apenas isso. Se os mesmos métodos eram utilizados, 

isso não podia acontecer senão em virtude do fato de serem aplicados 

a realidades cujas naturezas não se encontravam em oposição. Quando 

Sócrates procurava definir os contornos da Virtude, fazia exatamente 

como o médico que procurava definir os contornos da saúde. A virtude 

máxima, a identificação com a idéia do Bem, vislumbrada através de 

uma análise das diferentes partes da Virtude, representava o estado 

ideal da alma. A saúde, vislumbrada através da análise dos diferentes 

comportamentos fisiológicos, representava o>estado ideal do corpo. O 

ideal da  areté,  da excelência, que dominava de modo irresistível o 

panorama da vida e da cultura grega, consistia, evidentemente, na união 

desses dois ideais. E inimaginável pensar-se que houvesse qualquer 

oposição ou desunião entre eles. Quando Sócrates falava no domínio da 

razão sobre as paixões, sobre os instintos, estava pensando não numa 

atividade repressiva, tirânica, que ignorasse os direitos e as reivindica

ções próprias das realidades sobre as quais exercesse seu domínio;

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pensava antes num trabalho de coordenação e sobretudo de ordenação. Não eram instruções que o espírito deveria enviar ao corpo num dado

 

momento para que atacasse a si próprio dentro de uma área em que era 

autônomo. Era uma sabedoria transmitida ao corpo através de um longo 

processo, sabedoria que o corpo assimilava não só através de ensinamentos mas também através de sua própria participação no trabalho de 

coordenação e de ordenação em que o espírito estava empenhado. Assim, a ginástica e a música, tanto quanto a matemática e a dialética, faziam parte integrante do programa socrático de domínio pela razão

 

das paixões e dos instintos.

As virtudes todas que Sócrates analisa seriam, no espírito de um grego, inconcebíveis se não estivessem enraizadas num estado corporal 

de sarúde. Como poderiam eles imaginar a coragem sem saúde, a prudência, a temperança, a justiça, a sabedoria sem saúde? A famosa noção 

de Sócrates “conhecimento é virtude” implicitamente continha a noção 

“conhecimento é saúde”, que só não era explicitada porque se julgava 

desnecessário fazê-loí Aristóteles, que parece ter-se escandalizado com 

a noçãb de que “conhecimepto é virtude”, se escandalizaria talvez ainda 

mais com a noção de que “conhecimento é saúde”. Mas Aristóteles 

 justamente quis fázer dó conhecimento algo separado do corpo e por 

isso distinguiu dois tipos de sabedoria, uma filosófica e outra prática. A 

sabedoria filosófica' para ele, era a representante autêntica do espírito. 

A sabedoria prática não era propriamente uma representante do corpo, representava também o espírito, somente naquele aspecto em que ele  

se encontrava inelutavelmente ligado ao corpo - e esse aspecto do 

espírito, essa forma de conhecimento, não pareciam constituir para 

Aristóteles objetos merecedores de interesse filosófico mais acentuado.Aristóteles é, assim, tanto quanto o cristianismo, responsável pela

 

oposição ou pelo menos pela indiferença, pela falta de solidariedade, entre o corpo e o espírito que passou a predominar no mundo ocidental depois do colapso da Grécia. É certamente um fato interessante a 

registrar, essa curiosa coincidência histórica que fez com que uma 

religião com um forte conteúdo ético como o cristianismo encontrasse 

uma filosofia de conteúdo ético tão moderado como a aristotélica para 

formar uma aliança que se prolongaria durante tantos séculos. Isso vale 

mesmo no que diz respeito à aliança do cristianismo com a filosofia 

neoplatônica, pois essa filosofia não era senão um platonismo aristote- 

lizado. Quando pensamos nas estátuas mais antigas da Catedral de 

Chartres e as comparamos com o que poderia ser o ideal do sábio

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porizações. Kant, para evitar que o espírito fosse contaminado pelo 

corpo, para garantir que a soberania universal e absoluta do espírito 

ficasse afirmada face ao relativismo e à particularidade do corpo - para fazer do espírito um a priori, algo que tivesse absoluta precedência em 

tudo o que dissesse respeito à natureza humana, fora levado a concebê- 

lo de modo puramente formal, já que a forma, sempre a mesma e capaz 

de uma total independência, apresentava todas as características e 

atributos que a natureza do espírito exigia.

Entretanto, o atentado que isso representava contra a realidade do 

corpo provocava reações. Kant conseguiu, sem dúvida alguma, lançar 

luzes importantes sobre aspectos da natureza do espírito que até então 

não haviam sido bem examinados - e em particular sobre a questão de 

sua autonomia mas o atentado ao corpo era um fato que não podia 

ser ignorado. Entre outros, Max Scheler, um dos discípulos de Edmund 

Husserl, procurou atenuar o caráter negativo da concepção kantiana. 

Afirmou que o apriorismo ético de Kant, sua noção de um espírito 

independente, livre, soberano, era perfeitamente justa, mas que seu 

formalismo era inaceitável. Na sua opinião, o apriorismo não estava 

necessariamente ligado ao formalismo - o espírito soberano, independente e livre não era uma mera forma. Julgava mesmo possível a 

existência de um espírito que fosse soberano e livre, que fosse apriorís- 

tico, mas não temesse o contato com o corpo, com a materialidade dos 

instintos e das paixões - em outras palavras, julgava possível a existência 

de um apriorismo ético que fosse não-formal mas material.

Dir-se-ia, assim, numa primeira impressão, que havia esperanças 

de que os direitos do corpo fossem restabelecidos. Mas essa impressão 

não resistia a um exame mais aprofundado. Scheler era um discípulo de  

Husserl, o fundador da fenomenologia, um tipo de filosofia que “reduz 

fenomenologicamente”, que põe entre parênteses a existência para 

poder examinar cientificamente os fenômenos que ocorrem na cons

ciência humana. Ora, tais fenômenos não fazem parte apenas da vida 

espiritual do homem mas também da sua vida corporal. A fenomenolo- 

gia, por conseguinte, põe entre parênteses não só a existência da vida 

espiritual mas também a existência da vida corporal. Tanto a existência 

do espírito quanto a do corpo ficavam em nossa consciência como que 

interditadas, por algum tempo pelo menos, e o processo de recuperação 

daquilo que havia sido interditado, a chamada “constituição fenomeno- 

lógica”, era uma promessa cujo cumprimento parecia transferido para 

uma data indefinida.

194 MARIO VIEIRA DE MELLO

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A ética material de Scheler, por conseguinte, só ilusoriamente nos 

restitui o corpo. A existência das emoções, das paixões, dos instintos, 

que deveria conferir materialidade a essa nova ética apriorística, tinha 

por princípio sido interditada na consciência do analista dos problemas 

éticos. As emoções podiam ser analisadas na sua qualidade de “essên

cias” como se estivéssemos analisando fantasmas; era impossível dar 

densidade real a uma emoção que não estivesse particularizada numa 

experiência corporal determinada. Podemos ver um bom exemplo de 

como isso se passa quando Scheler, no seu  Homem do Ressentimento, 

opõe ao amor cristão tal como Nietzsche o analisa, visando um tipo 

psicológico historicamente determinado, o amor cristão tal como ele é, 

cm si mesmo, um gênero de abstração que fala do amor, desconsideran

do a realidade concreta de quem o vive, isto é, ignorando o corpo e a 

alma particular dé quem o experimenta.

A ética de Kant representava um atentado ao corpo; mas pelo  

menos ela reconhecia sua existência - o próprio atentado era um 

reconhecimento. A ética de Scheler se exime dessa falta, mas o faz 

cometendo uma falta ainda maior - procedendo como se o corpo de fato 

não existisse. Com Scheler e seu continuador - Nicolai Hartmann -,  

chegamos ao ponto extremo de um processo de desencarnação do 

espírito e do ético, processo que, partindo da intensa solidariedade e 

identificação helénicas com o corpo, passa pelo estágio aristotélico de 

duplicidade - um espírito que tinha um pé no céu e outro na terra - ,  

depois por outro, kantiano, de oposição - em que o espírito declara 

abertamente guerra ao corpo -, para chegar finalmente à posição de 

Scheler e de Hartmann em que o espírito não só não é solidário com o 

corpo, não só não o reconhece como uma realidade paralela ou antagô

nica, como também não quer ter mais com ele qualquer trato, expulsan

do-o de seus domínios, como se fosse possível criar um mundo espiritual 

totalmente isento de corporalidade.

Nenhum filósofo, nos tempos modernos, se preocupou tanto quanto 

Nietzsche com o problema da saúde. E isso é dizer pouco: nenhum 

filósofo como ele se preocupou realmente com o problema da saúde. 

Isso se deve naturalmente ao fato de que a filosofia moderna nunca se  

interessou pelo corpo humano; e também ao fato de que, monopolizan

do o espírito, se julgasse já possuidora de todos os recursos necessários 

para realizar sua tarefa - difícil e cheia de surpresas -, que consistia em 

tornar acessível e transparente o santuário da verdade.

 NIETZSCHE: O SOCRA TES DE NOSSOS TEMPOS 195

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Nietzsche é assim, no mundo moderno, o único filósofo que, neste 

particular, pode ser comparado a Sócrates: o único que fez da saúde um 

objetivo filosófico; o único que poderia dizer com Sócrates: conheci

mento é saúde. Evidentemente a comparação só pode ser feita depois 

de afastarmos do nosso caminho as condições e as circunstâncias que 

envolveram a vida de cada um dos dois filósofos: Sócrates foi um homem 

que não teve maiores problemas de doença (ao que sabemos, pelo  

menos) e que identificou saúde e virtude por um ato inconsciente, largamente determinado pelo clima espiritual da época em que vivia; Nietzsche, ao contrário, foi um homem que, a partir de um certo 

momento, justamente quando iniciava sua carreira filosófica, passou a 

ser atormentado por crises periódicas de uma doença que desde então 

nunca mais o abandonou e que, antes de levá-lo à morte, o fulminou com 

uma paralisia que o privou das luzes da razão.

Acresce, além disso, o fato de que a noção - saúde é conhecimento 

- não era algo que estivesse no consenso das opiniões que integravam a 

atmosfera espiritual do tempo em que 'ãvia. Não podia, portanto, resultar de um ato inconsciente do seu espírito, não podia constituir uma 

pressuposição tacitamente aceita pela sua organização mental Nietzsche era uma voz isolada no que dizia respeito a essa questão como o era 

também, naturalmente, no que dizia respeito a tantas outras. Estimulada 

pelo próprio fato das crises freqüentes da doença que o acometiam, sua 

reflexão filosófica o levava a uma tal noção. O estado de saúde em que 

se via depois de vencida uma crise lhe mostrava que com ele havia 

adquirido uma nova consciência, uma nova possibilidade de divisar 

verdades - não era isso uma prova de que saúde era conhecimento, 

como pressupunha Sócrates? Mas deixemos a palavra com o filósofo:

Estou perfeitamente consciente de todas as vantagens que as variações infinitas de

minha saúde me dão sobre qualqu er representante grosseiro do espírito. Um filósofo que

atravessou e nâo cessa de atravessar vários estados de saúde conheceu outros tantos tipos

de filosofia: ele é levado forçosamente a transfigurar cada um desses estados na forma e

no horizonte mais espirituais - uma arte de transfiguração, eis o que é a filosofia. Não

nos cabe, a nós, filósofos, sepa rar a alma do corpo, como faz o povo, e menos ainda separar

a alma do espírito.

A filosofia se reaproxima da medicina. O filósofo é visto de novo 

como um médico da alma. É conquistando a saúde que ele descortina 

novos horizontes espirituais. E essa reaproximação é tanto mais necessária quanto o homem é agora visto como um “animal doente”. E curioso

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que Karl Jaspers, ao estudar o problema da doença em Nie-tzsche, tenha 

considerado apenas seu caso particular e tenha refletido de modo tão 

perfunctório sobre a interpretação geral do homem que encontramos 

em  A Genealogia da Moral.  Entretanto, Jaspers foi, entre todos os 

analistas de Nietzsche, aquele que parece ter-se debruçado com mais 

clarividência sobre a questão de sua doença. Suas conclusões foram no 

sentido de que era preciso abandonar a alternativa colocada pelo homem da rua de que ou Nietzsche era doente ou tinha uma significação 

mundial - para admitir que as duas coisas eram possíveis ao mesmo 

tempo. Jaspers assinala a intervenção na evolução espiritual de Nietzsche a partir de 1880, de um “fator biológico”, de caráter indefinível e  

que não parecia fazer parte integrante dos ingredientes espirituais 

normalmente compreendidos naquela evolução. O filósofo do existencialismo se recusa a identificar esse fator biológico como um fenômeno

 

mórbido. E afirma que sua intervenção não prejudica em nada o valor 

da criação espiritual de Nietzsche, da mesma forma que um copo de  

vinho ou de cerveja não prejudicaria o valor da eloquência de um orador, que, sem ele, não teria talvez tido o mesmo brilho ao pronunciar seu 

discurso. Quanto à loucura, Jaspers declara que até o dia 27 de dezembro de 1888, isto é, doze dias antes do colapso nas ruas de Turim,

 

nenhum sinal de loucura era discernível nos escritos que nos foram 

deixados. Tal é o depoimento desse filósofo competente que tinha 

também uma experiência de psiquiatra.

Muito bem. Por que, então, refletiu Jaspers de modo tão descuidado sobre a interpretação de Nietzsche segundo a qual o homem era um 

“animal doente”? É claro que essa interpretação não está dissociada da 

interpretação que Nietzsche faz da sua doença particular: Jaspers não 

parece levar a sério as reflexões de Nietzsche sobre o “animal doente”. Não parece levar a sério sua condição de médico da alma. Talvez sua 

própria condição de psiquiatra, de médico dos tempos modernos, o 

tenha incapacitado para apreciar, nos seus justos termos, a possibilidade 

de um filósofo vir a ser um médico da alma.-

 A Genealogia da Moral,  entretanto, onde surge a concepção do 

“animal doente”, é um dos grandes livros de Nietzsche. É lá que está 

descrita a maneira pela qual Nietzsche concebe o aparecimento da “má 

consciência”. Era preciso transformar o homem, um animal selvagem, guerreiro, cruel, sanguinário, num ser que pudesse conviver com seus 

semelhantes sem uma rapina e sem uma destruição constante e recíproca. Era preciso orientar esses instintos selvagens do homem num sentido

 NIETZSCHE: O SÓCRATES DE NOSSOS TEMPOS 197 

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que permitisse a conservação da espécie. A organização social, o Estado, por meio do castigo, criaram barreiras formidáveis para se defender

 

contra essa rapinagem, conseguindo, assim, que todos os instintos do selvagem, livre e vagabundo, se voltassem contra si mesmos. A ira, a 

crueldade, a necessidade de perseguir, tudo isso se dirigia contra o 

possuidor de tais instintos: e tal foi a origem da má consciência. Então 

surgiu no mundo a maior, a mais perigosa de todas as doenças, o homem  

doente de si mesmo; mas, ao mesmo tempo, o fato de entrar uma alma 

animal dentro de si mesma deu ao mundo um elemento tão novo, tão 

profundo, tão inaudito, tão enigmático, tão rico em contradições e em 

promessas do futuro que o aspecto do mundo mudou realmente. A má consciência deu à alma do homem uma profundidade que até então 

havia sido ignorada.

Essa era a situação com que se defrontava Nietzsche, o médico da 

alma. Podia sua doença particular servir-lhe de intermediário para a 

descoberta do procedimento capaz de arrancar o “animal doente” ao  

seu estado mórbido? - Essa é uma questão que, segundo meu conhecimento, nunca foi formulada. Fala-se muito da doença de Nietzsche, da

 

importância de sua influência sobre a obra do Filósofo, sobre suas 

descobertas - mas isso é apenas repetir, com palavras nem sempre tão 

adequadas, o que ele próprio revela de si mesmo. A questão precisamente é esta: é possível estabelecer-se alguma relação, algum laço

 

íntimo entre a doença do indivíduo Nietzsche de um lado - suas dores 

de cabeça, seu reumatismo, suas dores de estômago, seus vômitos, a 

depressão geral que o mantinha preso ao leito muitos dias - e do outro 

sua condição de homem que, como os demais, era um “animal doente”? 

O ano de 1879, de acordo com suas cartas, foi o pior de sua vida, do 

ponto de vista de sua doença particular: Nietzsche contou cento e 

dezoito dias de crises graves, excluídas as mais ligeiras. Foi o ano em 

que abandonou seu professorado por causa da doença e começou sua 

existência de viagens (maio de 1879). Em fevereiro de 1880, Nietzsche 

volta do sul da Europa, começa novos trabalhos que foram a base do seu 

livro Aurora. Inicia então um desenvolvimento espiritual, como que um 

renascimento de sua reflexão, uma nova consciência de sua tarefa; essa 

mudança pode ser acompanhada de agosto de 1880 até julho-agosto de 

1881 e se prolonga até os estados de inspiração dos anos de 1882 e 1883.

É em 1880 que se situa a intervenção no desenvolvimento espiritual de Nietzsche daquilo que Jaspers chamou de fator biológico. Jaspers

 

descreve para nós o resultado dessa intervenção:

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uma mudança que atinge Nietzsche mais profundam ente do que nunca antes em sua vida;

a mudança aparece não somente no conteúdo do seu pensamento mas também na forma

do que está sendo vivido. Nietzsche mergulha por assim dizer numa atmosfera nova; o

que ele diz assume outro tom. Esse estado de alma que penetra tudo é algo que sinalalgum, símbolo algum deixava prever antes de 1880.

Esqueçamos Jaspers um momento e pensemos na situação de 

Nietzsche naquele ano terrível de 1879. Crise após crise, numa sucessão 

que tomou praticamente uma terça parte do ano. Quando venceu todas 

essas crises, quando recuperou sua saúde, Nietzsche se sentiu um outro 

homem. Ele assim descreve aquela época no prefácio de 1886 à segunda 

edição de Gaia Ciência:

 para term inar , a fim de que o essencial não deixe de ser expresso: volta-se de tais abismos,

de tais graves depressões, como também da depressão de graves suspeitas, volta-se disso

tudo ressuscitado, com uma pele nova mais sensível, mais maliciosa, com um gosto mais

refinado da alegria, com um paladar mais delicado para todas as coisas boas, com os

sentidos mais alegres, com uma segunda e mais perigosa inocência na alegria, não só mais

ingênua como cem vezes mais refinada do que era antes.

Não temos aqui a sensação exata de que Nietzsche, ao vencer as terríveis crises de sua doença particular nesse ano de 1879, venceu 

também a crise permanente de sua condição humana de “animal doen

te”? O fator biológico de que fala Jaspers não é justamente constituído 

por essa vitória sobre o “animal doente”? Nietzsche certamente não 

atribuiria uma tão grande importância à sua doença como fator de 

desenvolvimento espiritual, se a função dessa doença consistisse apenas 

em dar-lhe a oportunidade de exercer contra ela, do fundo do seu  

desespero, sua vontade de afirmação da vida, sua aprovação irrestrita 

de tudo o que a existência lhe oferecia. O texto que acabamos de citar 

nos mostra que em 1880 Nietzsche, ao recuperar sua saúde particular, 

recupera também o que chamava de “a grande saúde”, isto é, a saúde 

que lhe restituía não só o bem-estar físico mas a inocência, a alegria, a 

ingenuidade e um refinamento cem vezes maior do que o que conhecera 

antes. Nietzsche não era apenas o homem estóico capaz de aceitar o 

castigo do sofrimento sem alterar sua boa opinião sobre a vida: ele era 

também o filósofo que sabia utilizar o sofrimento para encontrar as 

razões de ter essa boa opinião sobre a vida - um filósofo em quem o 

sofrimento revelava novas perspectivas, novos pontos de interrogação, 

uma nova felicidade mesmo em face dos enigmas que a vida nos propõe. 

Não era por um orgulho último de desesperado que o sofredor Nietzs-

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che se declarava o adepto mais entusiasmado da vida; ele realmente 

parecia ter encontrado o caminho capaz de conduzi-lo a panoramas 

onde a vida revelasse o que nela havia de mais exaltante, de mais digno  de ser amado. Esse caminho havia sido o do sofrimento causado pelas 

crises da doença que o afligia; e o panorama parecia ser o que se  

desvendara a seus olhos depois de vencida a crise permanente que 

resultava da sua condição humana de “animal doente”.

Não é mera coincidência o fato de que o prefácio da segunda edição 

da Gaia Ciência termine como termina. Citemos ainda estas palavras de 

Nietzsche, tão úteis para fazer compreender o que se passava então no 

seu espírito:

Aviso aos filósofos! Dever-se-ia honrar melhor o pudor com o qual a natureza se

dissimula po r trás de enigmas e de incertezas coloridas. Talvez seu nom e, para falar grego,

fosse Baúbo? [...] Oh! esses gregos! Eles sabiam como viver: o que exige uma maneira

corajosa de se de ter na superfície, no exterior, na epiderme, na adoração da aparência,

na crença às formas, aos sons, às palavras, a todo o Olimpo na sua aparência! Esses gregos

eram superficiais po r profundeza! E não é exatamente a isso que voltamos, nós, espíritos

amantes do risco a todo preço, que escalamos o mais alto e mais perigoso cume do

 pensamento contemporâneo e que do alto inspecionamos os horizontes, nós que desta

altura lançamos um o lhar para baixo? Não é po r isso que somos - gregos? Ado radores

das formas, dos sons, das palavras? E por conseguinte artistas?

Como não ver nessas palavras o resultado da vitória sobre o “animal 

doente”, ela própria resultado da vitória sobre as crises da doença 

particular de Nietzsche? O homem “animal doente” que criara a pro

fundidade, o mundo interior da alma humana através de sua “má 

consciência” era visto “lá de cima do cume do pensamento contempo

râneo” como o fundo de um abismo sobre o qual se debruçavam agora 

os espíritos amantes do risco a todo preço que compreendiam então a 

sabedoria dos gregos - a necessidade de ser superficial por profundeza.

O que Jaspers considera um “fator biológico” parece ser, portanto, 

um autêntico ingrediente do desenvolvimento espiritual de Nietzsche. 

O preconceito manifestado por Jaspers nesse particular é o preconceito 

inerente à mentalidade moderna no que diz respeito às relações entre 

o corpo e o espírito do homem. O corpo é um aspecto da vida humana 

com o qual a filosofia não tem que se preocupar. Entre a filosofia e a 

medicina, entre a ética e a medicina, não há nenhuma relação digna de  

interesse. Nietzsche foi o primeiro e o único pensador dos tempos 

modernos que ousou examinar os diversos sistemas filosóficos do ponto 

de vista dos sintomas de vida que eles revelavam. Foi o primeiro e o

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Essa vontade fraca naturalmente procurava uma causa, um responsável por esse niilismo. Se por princípio não se supunha estar a responsabilidade no homem, onde ela poderia então ser encontrada? É aí que

 

se manifestava a dependência em que Schopenhauer ainda se encontrava com relação à atitude cristã: seu pessimismo ainda era uma forma de

 

cristianismo - se a vontade individual por princípio não era culpada, a 

vontade geral, a essência das coisas, deveria então ser a grande culpada. E, se a essência das coisas era culpada, cabia só ao homem, ao indivíduo,

 

redimi-la pelo sofrimento e pela aceitação lúcida e ascética de seu 

próprio nada. “O que é isso senão um cristianismo invertido?”, pergunta 

então Nietzsche ao final de sua experiência schopenhaueriana, no Hu

 mano, demasiadamente Humano.

As virtualidades da experiência cristã de Nietzsche só ficam assim 

exauridas quando se consuma nele a experiência de Schopenhauer e, por extensão, a de Wagner. Só então os frutos mais amargos do cristianismo se tornam visíveis. O estado do “animal doente” como que se 

agrava. E também a época em que as crises da doença de Nietzsche se 

sucedem, terríveis e numerosas. As diferenças de ordem doutrinária, cujo registro era inevitável quando a perspectiva era a do puro espírito 

- o que separa um Schopenhauer de um Agostinho, de um Pascal, de 

um Tomás de Aquino -, tais diferenças se confundem e perdem sua 

significação quando a óptica que se utiliza não exclui o corpo e aquilo a 

que se visa é estabelecer um diagnóstico de saúde ou de doença.

“Com o cruzar de espadas” das duas remessas, a do Parsifal  para 

Nietzsche e a do  Humano, demasiadamente Humano  para Wagner, consuma-se a experiência cristã de Nietzsche. E curioso que Jaspers 

tenha sentido a necessidade de apelar para um fator biológico para explicar a mudança de tom, de atmosfera, de atitudes de Nietzsche a 

partir de 1880 e que não lhe tenha bastado o simples fato da consumação, em Nietzsche, da experiência cristã. Tratava-se, entretanto, de um abalo

 

de repercussões inauditas que, no mínimo, poderia causar uma mudança de tom e de atmosfera. O que parece ter acontecido é que a fase inicial

 

do desenvolvimento espiritual de Nietzsche não foi bem compreendida. 

Não se percebeu que a preferência do jovem filólogo pela época trágica 

dos gregos era uma preferência nórdica, luterana, de um certo modo cristã; que a rejeição do otimismo socrático era um movimento instintivo 

destinado a preservar as fontes puras de um sentido dramático da 

existência, inicialmente comunicado pelo cristianismo; e finalmente que 

era a originalidade dessa fusão de helenismo e de cristianismo que

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permitia a aplicação posterior do produto assim obtido a uma obra 

moderna como era a de Wagner, uma obra marcada por tantos estigmas 

da modernidade e inclusive por uma forma final de cristianismo em 

pleno declínio.O reencontro de Nietzsche com a Grécia depois de vencida a 

grande crise, a crise permanente do “animal doente”, foi, como já 

dissemos, cautelosa e cheia de reticências. Ainda aqui a Grécia não ficou 

isolada na sua pureza, mas o cristianismo continuava visível num horizonte longínquo. Havia, entretanto, uma diferença. Antes a mistura de

 

helenismo e cristianismo era inconsciente, não desejada e resultava de 

uma assimilação incompleta dos elementos que assim se integravam. Agora o cristianismo havia sido perfeitamente assimilado e mesmo 

exaurido, e a Grécia amadurecia em virtude de um movimento que 

adotava o itinerário seguido por Sócrates. A fusão dos dois elementos 

era agora menos que um fato, era um desejo, uma intenção, um objetivo; mas, ao mesmo tempo, a consciência da necessidade dessa fusão era

 

maior e o esforço para realizá-la, mais intenso - donde resultava então 

a situação de tensão absolutamente formidável indicada pela expressão 

telegráfica com que Nietzsche se despediu de nós: Dionísio em face do Crucificado.

No fim da minha adolescência, antes de completar os vinte anos, 

precisei escrever uma tese para tornar-me membro de uma agremiação 

estudantil de cultura. O tema que escolhi foi o problema das relações  

entre Nietzsche e Wagner. O leitor pode imaginar o que pude escrever 

no verdor dos meus anos, com a inexperiência e a ignorância desse belo 

momento da minha vida. Já havia lido uma grande parte da obra de 

Nietzsche e tinha também percorrido alguns textos que examinavam 

essa obra cuja fama já corria o mundo inteiro. Como a maior parte dos 

meus colegas, tinha da filosofia uma concepção acadêmica e considerava Jacques Maritain, Étienne Gilson, Descartes, Kant e Bergson entre 

os modernos, Aristóteles e um Platão aristotelizado entre os antigos, os 

verdadeiros representantes de uma forma de pensar que meu entusiasmo juvenil procurava assimilar.

A descoberta de A Origem da Tragédia  e o subsequente interesse 

pelos demais livros de Nietzsche causaram-me um choque cuja comple^ 

xidade não me julgo capaz de exprimir. Ali estava um autor que me 

inspirava, por quem sentia uma fascinação crescente e que, entretanto, 

contrariava todo o sentido da organização que sentia dever dar ao meu 

espírito - um programa que laboriosamente estava procurando execu-

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encontrara ainda sua forma justa de expressão - uma verdade de cujo 

conteúdo eu mesmo não sabia como me apropriar. Mas de uma coisa  

eu tinha consciência: a situação de Nietzsche naquela época (há muito 

mais de cinqüenta anos!) era a de um  outlaw. O mundo acadêmico, o 

mundo filosófico propriamente dito, não o tolerava. Seu nome era 

lembrado e, por vezes, mesmo exaltado nos meios literários, no mundo 

dessa literatura semifilosófica que, no nosso século, ganhou tanta im

portância. Sua obra jazia inerme como um gigante desacordado sobre 

o qual corriam pigmeus que o saqueavam, roubando-lhe ora essa ora 

aquela peça entre as muitas que o ornamentavam; não surgia ninguém 

de sua estatura com competência para despertá-lo e colocá-lo novamente em condições de agir sobre o futuro. E a razão disso me parecia ser  

 justamente essa questão que eu ainda não tinha podido resolver: para o 

gosto de nossos contemporâneos, Nietzsche insistia demais sobre o 

problema fisiológico. Ninguém queria ser questionado e muito menos 

refutado em razão de realidades que eram colhidas no mundo da 

fisiologia. A decadência era um problema que não podia ser resolvido  

por uma questão de doença ou de saúde. O preconceito, profundamente 

arraigado na alma do homem moderno, de que o corpo e o espírito são 

realidades distintas - preconceito que, depois de Nietzsche, só foi 

abalado por Freud, mas de um ponto de vista estritamente médico e 

científico - , um tal preconceito continuava a prevalecer nas altas esferas 

em que são discutidos os problemas da filosofia. Considerava-se agora, 

depois de Freud, que a alma humana estivesse estreitamente relaciona

da com o corpo, mas o espírito propriamente dito, essa realidade que  

representa uma instância superior da alma, o espírito, na verdade, não 

parecia ter com o corpo o menor comércio. Tal era a atitude do mundo acadêmico, tal era a maneira pela qual se concebia que os problemas  

filosóficos devessem ser abordados. Em tal mundo, que lugar poderia 

haver para Nietzsche?

Mas cinqüenta anos se passaram sobre essa época que evocamos. 

Com relação a Nietzsche, mudou profundamente a atitude do mundo 

acadêmico. A morte da irmã do filósofo, Elisabeth, e a reabertura dos 

Arquivos Nietzsche muito contribuíram para isso. Nietzsche é hoje 

considerado pelo mundo filosófico uma das grandes forças intelectuais 

de nossos dias. Apesar de já ter morrido (pelo menos espiritualmente) 

há praticamente um século, seu nome é menção obrigatória na pena de 

todo homem com alguma aspiração à grande cultura. Mas o problema 

da fisiologia persiste. Procura-se ainda, por meio de mil subterfúgios,

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dissimular o fato de que Nietzsche é um médico da alma, o fato de que 

Nietzsche tem uma compreensão médica da alma, da mesma forma que 

Sócrates também a tinha. Mesmo os analistas que levam um pouco mais 

longe as.aproximações entre Sócrates e Nietzsche hesitam diante desse 

passo fundamental, desse passo que nos faz ver que, se corpo e alma não 

são realidades distintas, então não há por que separar da atividade ética 

a atividade médica. Talvez o que nos impeça de realizar um tal passo 

seja tudo o que persiste ainda em nós de resquícios do cristianismo. Com 

toda a nossa falta de fé, com todo o nosso profundo desinteresse pelo  

fenômeno religioso, somos um pouco como Schopenhauer, que se jul

gava emancipado da fé cristã, mas que, na verdade, adotava um cristia

nismo invertido. Não somos pessimistas, mas somos hiperespiritualistas, 

acreditamos num espírito que não precisa do corpo. Isso é ainda cris

tianismo. E um cristianismo totalmente fantasmático, o Deus morto que 

nos visita nas nossas noites atribuladas, que nos coloca numa situação 

de servil dependência (já que não temos o corpo, que venham alucina

ções para orientar nossa conduta).

O que Nietzsche nos propõe é que façamos a liquidação dessa 

experiência cristã inacabada. O que nos propõe é que façamos como 

ele, que levemos à sua última consumação essa experiência que está a 

nos paralisar a vontade, sem virtude para nos oferecer qualquer estímu

lo, mas com força suficiente para nos deter em qualquer arrancada que 

tenhamos a veleidade de tentar em direção ao futuro. Só há uma maneira 

de fazer tal liquidação, de realizar tal consumação: é fazendo de novo o 

corpo colaborar com o espírito. Essa colaboração naturalmente não 

significa nenhuma subordinação de qualquer uma dessas duas partes. E 

estritamente uma interdependência. Foi assim que Sócrates concebeu 

sua equação - virtude é conhecimento; conhecimento é virtude, que, 

como já vimos, não explicita mas pressupõe uma noção que talvez 

escandalizasse Aristóteles e que certamente escandalizaria o mundo 

moderno - saúde é conhecimento; conhecimento é saúde.

Numa fase adiantada de sua evolução espiritual, Nietzsche, como  

 já dissemos, reaproximou-se da Grécia com cuidados e reticências. Fez 

elogios ao culto grego do corpo, à superficialidade grega, mas por um 

só motivo - os gregos se faziam superficiais porque eram profundos. Nós 

também deveríamos nos reaproximar do corpo, com cuidados e reticên

cias. Deveríamos nos entregar ao corpo, à superficialidade do corpo, 

mas por um só motivo - porque queremos ser profundos! Essa é uma 

lição extremamente difícil de aprender e que faria com que muitos

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aprendizes se perdessem, seduzidos por facilidades. Só um contato 

profundo, persistente, corajoso, leal e devotado com a experiência de 

Nietzsche tornaria essa lição verdadeiramente frutuosa. Uma das objeções mais freqüentemente levantadas contra Nietzsche é a de que ele é 

um autor perigoso. Quem caminha pela sua estrada pode facilmente ser 

vítima de ciladas. E isso é verdade. Mas até nesse ponto Nietzsche nos 

lembra o destino de Sócrates. Uma das acusações que foram lançadas 

contra o ateniense era a de que ele corrompia a juventude. E isso 

provavelmente também era verdade. Sócrates não corrompeu Platão, 

não corrompeu Xenofonte, certamente não corrompeu muitos outros. 

Mas podemos estar seguros de que, voltando para casa com o coração 

pesado de incertezas, depois de ter passado horas com o filósofo, não 

terá havido alguns de seus ouvintes ou de seus interlocutores, não terá 

havido quem sentisse que um abismo se abrira, que uma vertigem o 

tomava ao compreender que talvez nunca mais encontrasse a tranqüli- 

dade de uma vida não examinada, o conforto de princípios que não 

haviam sido questionados, a segurança de atitudes tomadas em virtude 

de uma simples imitação? - A decisão que tomasse, uma vez passada a 

vertigem, determinaria o seu destino; e se a tranquilidade, o conforto e a 

segurança voltassem a indicar maior peso no fiel da balança, sem dúvida 

Sócrates, de um certo modo, poderia estar associado às ações de um 

corrupto - de um corrupto como Alcibíades, por exemplo, que tinha 

assimilado a forma mas não o espírito do questionamento de Sócrates -,  

da mesma forma por que Nietzsche, de certo modo, estaria associado às 

ações de quem decidisse entregar-se, sem os seus motivos, à superficia

lidade do corpo. Essa era, inclusive, uma das razões pelas quais Nietzs

che acreditava que não havia senão uma maneira de viver: “vivendo 

perigosamente”.

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8. O DESTINO TRÁGICO - AS ALTERNATIVAS

A melhor maneira de compreender o destino de um grande homem 

é examinar quais seriam sua alternativas. É tentando penetrar no segredo de suas decisões que chegamos a ver, desenhados perante nossos 

olhos, os contornos de sua natureza como que impostos por uma lei  superior. Não se trata apenas de saber se há alguma razão forte para a

 

decisão tomada - trata-se de saber se haveria, por acaso, alguma outra 

decisão que pudesse ser tomada.

Quando pensamos no caso de Sócrates, essa questão se apresenta 

em toda a sua inexorabilidade. O seu gesto final, a ação de tomar a cicuta 

constituía parte essencial do seu destino? O que aconteceria a Sócrates 

se, no último momento, cedendo à pressão dos amigos, consentisse em 

fugir da prisão e exilar-se numa cidade distante de Atenas? Sua legenda, 

com um ligeiro retoque, descrevendo a fuga em lugar da ação da cicuta, 

continuaria a exercer sobre nós, sobre a imensa posteridade que essa  

legenda formou, a mesma ação decisiva?Procuremos desconstruir o todo resultante da experiência vivida

 

pelos protagonistas da história. Sócrates vivo, exilado numa cidade 

distante de Atenas, o que teria podido suceder a Platão? - Teria 

provavelmente acompanhado seu mestre. Mas o monumento que jun-

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tos, Sócrates e ele, estavam edificando, se teria desmoronado. Sem a 

morte trágica de Sócrates, Platão não teria recebido o choque que o 

fez compreender que o Estado em que vivia era irrecuperável; sem  

ela, não teria se capacitado da necessidade de recolher as ruínas de um Estado em plena decomposição para, com elas, reconstruir um 

novo Estado, de caráter ideal, um Estado que vivesse no interior da 

alma humana e que fosse, portanto, capaz de sobreviver às duras 

contingências da realidade histórica; sem ela, todas as riquezas que os 

gregos haviam acumulado durante séculos de experiência histórica, política, moral, filosófica e científica - riquezas que se haviam concentrado numa estrutura única, a Cidade-Estado ateniense-, sem ela, todas 

essas riquezas não teriam provavelmente sido preservadas.Teve Sócrates, no momento crucial da decisão, a percepção de tudo 

o que poderia acontecer, se se recusasse a tomar a cicuta? Teve ele a 

percepção de tudo o que iria acontecer, se se decidisse a tomá-la? É 

essa uma especulação que se pode pensar não ter razão de ser. Mas o 

destino de um grande homem é regido por leis misteriosas. Tudo o que  

ele faz leva a marca desse destino. E é justamente uma tal marca que 

nos impede de pensar que suas decisões sejam tomadas sem uma 

intuição do futuro, já que o futuro, para ele, está ligado a um presente a que só ele tem acesso, pois é vivido como uma antecipação de coisas  

que só ele vê.

De qualquer maneira, no diálogo Críton  Sócrates se imagina na 

iminência de ceder à pressão do amigo e de se ver subitamente interpelado pelas leis e pelo governo de Atenas. Eles lhe perguntam:

O que está fazendo, Sócrates? Vai tentar nos de rrubar com um gesto seu - a nós,

as leis, o Estado inteiro, tanto quanto isso está a seu alcance? Imagina que um Estado

 possa subsistir e não se r derrubado quando as decisões de suas leis não são executadas e

são mesmo espezinhadas por indivíduos?

Sócrates se imagina ainda ponderando: “O Estado ofendeu-me e 

condenou-me injustamente” - mas as leis voltam a interpelá-lo.

Mas foi isso o que combinamos? Ou você não devia se conformar com a sentença

do Estado?, responde Sócrates, que reclamação tem você contra nós que justifique suatentativa de nos destruir, a nós e ao Estado? Em prime iro lugar não é a nós que você deve

sua existência? Seu pai casou-se com sua mãe com a nossa ajuda e gerou você. Tem alguma

objeção contra as leis que regulam entre nós a instituição do casamento? Ou contra as

leis que regulam a alimentação e a educação das crianças e das quais você também retirou

 proveito?

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impacto diferente, mais amortecido, como uma opção interessante, privilegiada, mas não com a força de uma necessidade irrecusável.

Por outro lado, Sócrates não quis nos confiar sua previsão do que aconteceria se tomasse a cicuta. Não sabemos se tinha alguma idéia do 

que fariam seus discípulos depois de sua morte. Nas suas duas despedidas, aos juízes na Apologia e a Críton antes de sua morte, Sócrates se

 

refere a Deus. Aos juízes ele diz: “A hora da partida chegou, e cada um 

de nós deve tomar seu caminho - eu para morrer, vocês para viverem. O que é melhor só Deus pode saber”. E para Críton: “Deixe-me agora,

 

Críton, para que eu possa cumprir a vontade de Deus e segui-lo para 

onde Ele me leva”.A vontade de Deus, a sabedoria de Deus! Não é comovente ver 

Sócrates, cuja existência fora dedicada ao único esforço de construir um 

mundo onde o homem pudesse ser justo, tornar-se vítima da injustiça 

dos homens e se despedir da vida confiando na vontade e na sabedoria 

de Deus - isto é, confiando na justiça de Deus? - É comovente, mas é 

também exaltante, pois essa confiança se justificou. Deus se incumbiu 

de reparar o mal que os homens lhe haviam infligido, fazendo com que 

a essência do que havia sido sua vida não se perdesse, mas ficasse 

preservada por um fenômeno que é um caso único na história, o fenômeno que se chama Platão. Sócrates, exilado e trânsfuga, ao se despedir

 

de Platão na hora da morte, lhe teria talvez pedido que cumprisse sua 

vontade. Na prisão, antes de tomar a cicuta, despedia-se da vida a fim 

de cumprir a vontade de Deus. São dois tipos de morte que podem 

parecer semelhantes, mas que diferença havia entre eles! - No primeiro 

havia um consolo, a esperança de que pedaços da sua vida se conservas

sem na memória do amigo. Era difícil, na hora da morte, formular uma 

vontade que contivesse tudo aquilo que representava a essência de sua 

vida. Era difícil transmitir de homem para homem uma essência que 

superasse o poder das palavras. Mas no segundo, como as coisas mudavam! Não era sua vontade que seria cumprida, era a vontade de Deus;

 

era a vontade de Deus que Sócrates queria cumprir e que seria cumprida 

de um modo que, apesar de toda a sua imensa confiança, Sócrates não 

teria ousado esperar - pela preservação miraculosa de tudo aquilo que 

representava a essência de sua vida.

Não há nessa opção de Sócrates pela cicuta uma confirmação 

espetacular do ensinamento bíblico “se a semente não morre”? Sócrates 

aceita a morte e em virtude mesmo dessa aceitação como que ressuscita, transfigurado, reencarnado, na pessoa de Platão. Não há em toda a

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história um outro exemplo de fenômeno igual. Platão é muito mais do 

que um discípulo. Platão não tem do discípulo nem a timidez, a deferência excessiva que leva à subserviência, nem a vontade de liberdade, 

de independência de julgamento que leva ao desrespeito e à presunção. 

Platão parece ter querido agir como se a existência de Sócrates tivesse 

sido apenas um ensaio e como se sua verdadeira existência estivesse 

sendo vivida nas páginas dos livros que escreveu. Sua obra - fruto de 

amor e devoção filiais - é a mais bem sucedida tentativa conhecida, feita 

no sentido de dar relevo e eficácia à ação de um homem provido apenas 

das armas da lucidez e da coragem para construir sua legenda - que se 

fosse privada dos frutos dessa devoção e desse amor poderia se perder 

ou se apagar completamente na memória dos homens. Para alguém 

fazer isso é preciso ser mais do que um simples discípulo. E preciso ter 

renunciado à própria personalidade para constituir um espaço vazio que 

a personalidade do mestre possa ocupar. É preciso poder imitar o gesto 

do mestre, seguindo o ensinamento bíblico, embora de modo invisível - 

morrendo para si mesmo - na esperança de que dessa morte resulte a 

germinação de um rebento novo. Para fazer isso é preciso ser muito mais do que um simples discípulo. E foi exatamente o que Platão mostrou  

que era. Fala-se da sua relação para com Sócrates como da relação de 

um discípulo para com seu mestre, porque se trata de um caso único na 

história, e a linguagem não forjou a palavra que seria necessária para 

exprimi-lo e caracterizá-lo; usa-se uma expressão que é apropriada para 

casos mais ou menos análogos, expressão que está longe de explicitar 

toda a riqueza contida no fenômeno que estamos contemplando.

Duas mortes, uma visível, física, carnal, outra invisível, psíquica, espiritual - e o resultado foi a germinação de algo extraordinário, de 

algo que nasceu sob o signo da imortalidade e que ficou conhecido na 

história sob o nome de filosofia socrático-platónica. Levados pelo destino, Sócrates e Platão precisaram convidar a morte a antecipar o 

trabalho da natureza-e quando ressuscitaram eram uma só pessoa, uma 

pessoa a quem estavam assegurados todos os direitos, todos os privilégios, toda a glória da imortalidade.

Tudo isso naturalmente Sócrates não poderia prever. Entretanto 

não hesitou um momento. Agiu como se tudo houvesse previsto. Agiu 

como se tivesse conhecimento de causa de todas as conseqüências que 

adviriam da decisão que tomara. As razões que deu a Críton para não 

aceitar sua oferta eram lógicas e coerentes. Mas não haveria por trás 

delas, escondido, um grão de loucura? O diálogo com as leis era algo

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que um homem normal, em sã consciência, promoveria? - Havia uma 

outra alternativa que ainda não consideramos e que dependia não da 

vontade de Sócrates de confiar num amigo ou da vontade de Sócrates 

de confiar em Deus - a alternativa de um temor seu de que a vontade 

de Deus lhe fosse adversa e que, ao invés de reparar a injustiça dos 

homens, quisesse agravá-la, transformando assim sua morte numa razão 

adicional para a infâmia de que queriam cobri-lo. Essa era uma alter

nativa em que certamente havia pensado, mas que não confiou a Críton 

porque lhe daria outras razões para insistir sobre o projeto de fuga. Não  

era uma alternativa possível? E se depois de sua morte os discípulos, 

apavorados com o risco de uma amizade infamante, renegassem seu 

nome? E se depois de sua morte decidissem abjurar solenemente em 

praça pública todos os ensinamentos que dele haviam colhido? E se se 

dispersassem procurando formas de vida que lhes permitissem ficar 

esquecidos, após algum tempo, e confundidos com todos os outros que 

só vagamente haviam ouvido falar em seu nome. Uma condenação à 

morte podia se transformar numa coisa infamante. Bastava que as razões 

da sentença, já por si mesma injusta, fossem ainda mais adulteradas num 

processo de divulgação tendencioso e perverso.

Se Sócrates tivesse querido confiar a Críton o que imaginamos 

poderiam também ter sido seus sentimentos, o amigo certamente lhe 

teria respondido: “Mas é claro! Qualquer homem sensato pensaria o 

mesmo! Só um louco se entregaria de pés e mãos amarrados para ser 

vítima e joguete de uma tão grande injustiça!” Sócrates, entretanto, 

preferiu se calar. Sentia provavelmente que não tinha razões para 

argumentar contra a indignação que provocaria no amigo se se decidisse 

a falar. Sim, provavelmente ele era louco. Seria difícil fazer alguém compreender por que se recusava a fugir (seria difícil sobretudo fazê-lo 

em se tratando de nós, homens modernos). Havia indubitavelmente um 

grão de loucura escondido nos refolhos de um espírito tão lúcido, e era 

por causa desse grão de loucura que Sócrates escolhia a cicuta. Confiava 

na vontade de Deus. Confiava sem nenhuma razão, contra todas as 

razões, mais mesmo que Jesus, que na loucura da Cruz, no último  

momento, perguntou a seu Deus: “Senhor, por que me abandonastes?”

A melhor maneira de compreender o destino de um grande homem 

é examinar quais seriam suas alternativas. Examinamos as alternativas 

de Sócrates. E a conclusão a que forçosamente chegamos é a de que ele 

queria morrer como tinha morrido, que precisava morrer como tinha 

morrido. Qualquer outro tipo de desenlace teria prejudicado sua obra.

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Há certos objetivos que nunca são atingidos se não se arrisca, se não se 

recorre a um grão qualquer de loucura para que isso aconteça. E preciso 

arriscar, ignorar a voz da razão, os conselhos do bom senso e da 

prudência, confiar na vontade impenetrável de Deus para cumprir um 

destino. Muito antes de ser acusado, Sócrates já havia recebido avisos, 

premonições da sorte que o aguardava. Era, sem dúvida, a voz do bom 

senso que com grande antecipação lhe falava. Mas Sócrates continuara 

na rota que de há muito tempo vinha seguindo. Agora, no fim da jornada, 

a voz do bom senso talvez lhe tivesse falado de novo. Mas então, ainda 

menos disposto a ouvi-la, Sócrates prosseguia, rumo à loucura. O que  

daí resultou todos nós sabemos - todos nós somos - pois todos nós, 

homens que vieram ao mundo depois da morte de Sócrates, somos o 

resultado de sua loucura.

O problema do destino de Nietzsche é singularmente complexo. 

Teve ele um fim que compromete sua obra, um fim que não foi um 

coroamento mas um desastre, um fim que revelou uma fraqueza que lhe era inerente? Se considerarmos que o fim de Sócrates, sua morte trágica, 

foi na realidade um triunfo, deveríamos achar que o fim trágico de  

Nietzsche, sua loucura, foi uma catástrofe? Os analistas de Nietzsche 

têm tratado do problema de sua loucura de maneiras muito diversas. Há 

os entusiastas que preferem ignorá-lo. Há os que consideram esse fim 

extremamente significativo. Há os que o registram sem atribuir-lhe 

maior importância. E há finalmente os que procuram verificar se é 

possível discernir algum laço de valor positivo entre essa tragédia, de repercussões tão claramente negativas, e a significação mundial da obra 

a que está associada.

Comecemos pelos entusiastas. Há naturalmente muita gente que 

pensa que genialidade e loucura são duas coisas extremamente próximas 

uma da outra e que Nietzsche não seria o único exemplo dessa proximi

dade que nos ofereceria a história da cultura - citemos apenas os nomes 

de Hõlderlin, Van Gogh, Strindberg e Kleist para nos convencer dessa  

verdade. A questão seria então se concentrar sobre aqueles aspectos da 

obra ameaçada pelas nuvens da loucura que se conservaram sãos. Fazer 

o que muitos de nós fazemos, por exemplo, quando vamos ao Museu 

Van Gogh, nos detemos extasiados diante das telas do seu período são 

e passamos algo compungidos pelos trabalhos da última fase em que a

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>111

1*1

Jill

desorganização mental do artista se manifesta de maneira tão implacá

vel.

O lado negativo dessa atitude reside evidentemente no fato de que 

se engloba assim num caso único o que na realidade apresenta grandes 

diferenças individuais. A loucura de cada uma dessas personalidades 

que citamos oferece particularidades próprias e tem que ser considera

da isoladamente. Todas essas personalidades naturalmente manifesta

ram sinais de gênio e sintomas de loucura, mas em cada uma delas a 

relação entre gênio e loucura tomou um aspecto diferente - e pode-se 

mesmo duvidar que em todos os casos seja possível estabelecer uma 

relação qualquer entre uma coisa e outra.Vemos assim que a atitude dos entusiastas os leva facilmente a um 

impasse. Não é fácil desconsiderar, no exame do destino de um gênio  

vítima da loucura, o fator negativo que essa doença representa. Cedo ou 

tarde o problema se voltará contra os entusiastas a fim de exigir deles 

uma solução, e o que farão dependerá do maior ou menor esforço 

empreendido para penetrar mais profundamente no sentido da obra 

pela qual sentem tanto entusiasmo.

Numa atitude oposta à que acabamos de considerar estão os que 

consideram o fim trágico de Nietzsche extremamente significativo. São 

analistas cuja tendência última seria invalidar a obra de Nietzsche pelo 

fato de ter sido ela, segundo pensam, desmentida pelos seus últimos 

acordes - tendência não completamente explicitada muitas vezes pelo 

receio, pela timidez e talvez pela covardia que impedem esses analistas 

de se pronunciarem diretamente contra uma reputação, contra uma 

glória que, apesar dos esforços feitos para denegri-la, não faz senão 

crescer.

Em primeiro lugar Paul Julius Mõbius. Ele descobriu que alguns 

tios e tias de Nietzsche haviam sido doentes mentais; uma tia se teria 

suicidado, outra teria ficado louca. Um tio que em 1901 tinha sessenta 

e oito anos teve uma crise de demência. Além disso o pai, que morrera 

de um amolecimento cerebral, moléstia não hereditária e só declarada 

quatro anos após o nascimento de Friedrich, havia já tido, antes de sua 

doença, “crises de nervos” segundo confidências da mãe de Nietzsche. 

Na sua volumosa patografia de Nietzsche, aparecida entre 1902 e 1904, 

Mõbius diagnostica finalmente uma paralisia progressiva, conseqüência 

de uma infecção sifilítica. Esse diagnóstico de uma moléstia que havia 

sido contraída contradizia naturalmente as pesquisas anteriores que 

pressupunham a crença na existência de uma doença de caráter heredi-

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tário. Möbius foi mesmo levado a fazer uma análise crítico-literária da 

obra de Nietzsche chegando à seguinte conclusão: “Se nela podemos  

encontrar algumas pérolas, dispensemo-nos de pensar que o conjunto 

faria um belo colar. Fiquem desconfiados porque este homem é um 

doente mental”. Esse diagnóstico de Möbius foi compartilhado por 

muitos neurologistas, vários dos quais profissionais de grande compe

tência e honestidade. E como as de Möbius, suas digressões de ordem 

literária, campo em que a competência deles todos era discutível, con

venceram também muita gente com a propensão a se assustar com os 

simples títulos das obras de Nietzsche.

Ainda assim seria preciso considerar com circunspeção o diagnós

tico de Möbius. Ele se baseia em depoimentos sobre a vida de Nietzsche 

no período de seus estudos em Leipzig. Ora isso estabeleceria um 

período de vinte a vinte e dois anos entre a infecção e a manifestação 

aguda de paralisia, o que parece constituir um caso extremamente 

atípico para o período de incubação da doença (sem falar no período 

de onze anos entre essa manifestação e a morte). Outros depoimentos 

no sentido de que Nietzsche teria contraído a infecção em 1873 ou 

mesmo mais tarde na Itália ou no sul da França são meras hipóteses que  

de forma alguma foram testadas. Seria, pois, da mais elementar prudên

cia renunciar a um pronunciamento definitivo sobre o assunto e subs

crever a opinião emitida por Curt Paul Janz, na sua excelente biografia 

do filósofo:

 Nenhuma interpre tação médica, por mais escrupu losa e penetrante que fosse,

 poderia definitivamente ultrapassar o estágio de hipóteses ta teantes, pois hoje é impos

sível reconstituir um diagnóstico que o estado da ciência em 1880-1890 não permitia

estabelecer e sem o qual nenhum julgamento é cientificamente defensável.

Mas Curt Janz pensa que, por mais divergentes que tenham sido os 

resultados das pesquisas realizadas desde Mõbius em 1902 a Lange 

Eichbaum em 1961, há um ponto sobre o qual todos os pesquisadores 

estão de acordo: é que houve uma transformação radical, uma metamor

fose na natureza de Nietzsche entre os anos de 1879 e 1881.

Já examinamos o problema dessa metamorfose quando discutimos 

a hipótese de Karl Jaspers de um “fator biológico”. A questão se 

resumiria em saber se foi mesmo um fator biológico ou um acontecimen

to situado num plano puramente espiritual. Os depoimentos que cita 

Curt Janz do amigo de Nietzsche Erwin Rohde (uma atmosfera de uma 

estranheza indiscutível, como se ele viesse de uma região que ninguém

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habita), de Paul Deussen e do teólogo Kaftan, nenhuma contribuição 

podem oferecer a esse respeito. Um homem visitado por uma experiên

cia espiritual de uma grande intensidade agirá do mesmo modo estranho 

que poderá ser observado em outro homem dominado pelos efeitos de 

uma perturbação mental.

A hipótese de Karl Jaspers de um fator biológico leva-nos para a 

terceira categoria que já mencionamos, a de analistas que aceitam a 

possibilidade de um elemento extra-espiritual exercendo uma influência 

sobre o espírito de Nietzsche, sem que isso lhes pareça constituir um 

aspecto negativo. Houve mesmo quem pensasse que a sífilis, embora a 

prazo longo destruísse necessariamente o organismo, pudesse, em fases 

intermediárias, determinar reações bioquímicas que fossem estimulan

tes e espiritualmente positivas. Para tais analistas, a loucura de Nietzs

che não teria um efeito retroativo, invalidando obra tão significativa -  

essa obra teria sido, ao contrário, socorrida pela pequena ajuda de 

certas reações bioquímicas, como, por exemplo, o orador citado por 

Jaspers, que necessita de um copo de vinho para abrilhantar seu discur

so. Precisamos, entretanto, pôr em relevo o fato de que Jaspers se nega 

categoricamente a caracterizar seu fator biológico como um fenômeno 

patológico. Essa distinção é importante, porque, vinda de um filósofo 

que era ao mesmo tempo um psiquiatra, transmite uma grande autori

dade a quem deseja analisar a evolução de Nietzsche sem se deixar 

influenciar pelas opiniões correntes da medicina contemporânea, tão 

ligeira em endossar teorias que proclamam a interdependência nem 

sempre bem compreendida da alma e do corpo - sem se deixar influen

ciar tampouco pelas opiniões correntes da filosofia contemporânea, tão 

ligeira em endossar teorias que proclamam a completa separação do 

corpo e do espírito. Transmite também uma grande autoridade a quem 

procura analisar a evolução de Nietzsche a partir de uma concepção que 

se baseia não no empirismo factual da ciência contemporânea mas no 

empirismo racional da ciência socrática - não no empirismo que vê na 

alma humana uma totalidade de fatos que podem ser relacionados 

causalmente aos fatos da vida física mas no empirismo que vê na alma 

uma totalidade de forças que podem ser avaliadas da mesma maneira, 

por que podem ser avaliadas as forças que constituem a realidade do 

organismo físico.

Esse empirismo racional representa naturalmente uma atitude que 

pressupõe a convicção de que existe uma relação causal entre o valor 

do corpo e o valor do espírito mas não uma relação causal entre os

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acontecimentos do corpo, concebidos como fatos, e os acontecimentos 

do espírito que só podem ser concebidos como valores. Quando estes 

acontecimentos se produzem, têm seu próprio valor, que se pode relacionar com um valor do corpo. Mas precisamos aqui insistir sobre este

 

ponto: não existem acontecimentos do espírito destituídos de valor, não 

existem acontecimentos do espírito que sejam simples fatos. E há, pelo 

contrário, acontecimentos do corpo que nada mais são do que meros 

fatos: a digestão, a respiração, o sono não são valores, são meros 

processos do corpo. O que se poderiam considerar valores do corpo  

seriam uma boa digestão que permitiria uma assimilação perfeita dos 

alimentos, uma boa respiração que permitiria uma melhor resistência, 

inclusive na corrida e na marcha, um bom sono que permitiria uma 

melhor reparação das fadigas da jornada de trabalho. Ou inversamente 

se poderia considerar um desvalor uma má digestão, uma má respiração 

ou um mau sono. Existe, entretanto, na órbita do corpo, além desses  

valores e desvalores, o simples fato, o processo em si mesmo, e isso é 

uma coisa que não existe no mundo do espírito. Não existem acontecimentos espirituais que não sejam nem bons nem maus. Ou eles são uma

 

coisa ou são outra. Não existem no mundo do espírito fatos, processos  

no sentido em que essas palavras são empregadas com relação ao corpo. É por isso que o empirismo factual da ciência moderna, excludente

 

como é de qualquer noção de valor, se equivoca quando procura 

estabelecer uma relação causal entre os acontecimentos do espírito -  

que quer se queira ou não devem sempre ser concebidos como valores 

- e os acontecimentos do corpo - que não podem ser concebidos, se não 

como simples fatos, como simples processos.

Tudo se explica, afinal de contas, pela atitude que toma a filosofia 

moderna e contemporânea com respeito ao problema da relação entre 

o corpo e o espírito. Para ela essas duas realidades vivem separadas. Mas, quando a filosofia se deixa invadir pela ciência, ela admite que haja 

um relacionamento entre o corpo e o espírito; só que, impregnada pela 

mentalidade da ciência, ela reduz o espírito a uma realidade muito mais 

restrita do que a que efetivamente possui e o priva de seu atributo 

principal, que é sua cidadania no mundo dos valores. O espírito assim 

reduzido pode então parecer estar relacionado causalmente com fatos 

e processos que não estão habitualmente associados a valores. Mas o 

que houve foi um simulacro do que pode eventualmente ocorrer. Para 

corrigir o erro da filosofia contemporânea, que desconhece qualquer 

tipo de relação entre o corpo e o espírito, a ciência, tomando o seu lugar,

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restabelece a relação, mas não sem antes desfigurar o corpo, reduzindo-o a uma série de fatos e processos não associados a valores e

 

pretendendo transformar o espírito em algo que é diretamente contrário 

à sua natureza, isto é, algo destituído de valor e destituído, portanto, daquilo que constitui propriamente sua essência.

O relacionamento real que existe entre o corpo e o espírito, de que 

a ciência contemporânea não nos oferece senão um simulacro, é um 

relacionamento entre valores: os valores do corpo e os valores do 

espírito. Foi isso que Sócrates entreviu quando se inspirou na medicina 

do seu tempo para construir sua ética. Foi isso que Nietzsche não se 

cansou de proclamar quando passava em revista as idéias do seu tempo 

e de outras épocas. Quando, em 1873, estava preparando seu ensaio que 

acabou tendo o título de Da Utilidade e dos Inconvenientes da História 

 para a Vida, Nietzsche escreveu a seu amigo Gersdorff que o título do 

ensaio poderia ser: O Filósofo como Médico da Civilização. É curioso 

que um homem que procurou restabelecer nos seus direitos a velha 

tradição socrática de uma relação correta entre o corpo e o espírito seja 

objeto de uma tentativa no sentido de desacreditá-lo - em nome precisamente de uma concepção errônea dessa relação por ele justamente 

condenada. Seu interesse em saber a que valores vitais correspondiam 

certas idéias era a manifestação mais evidente de que, como Sócrates,  ele não aceitava um espírito separado do corpo, de que percebia claramente que tipo de relação havia entre essas duas coisas e de que  

compreendia que essa relação só podia ser uma relação entre valores. 

Não é curioso então que se queira agora, depois do colapso na incons

ciência, unir seu corpo a seu espírito, transformando um fato físico, a 

doença, num estímulo para o espírito, isto é, num valor surgido não se 

sabe de onde e que transmite a um espírito necessitado sua carga  

positiva? - É verdade que Jaspers não fala em doença ou em doença 

diagnosticável, mas em fator biológico. Mas isso é apenas a prudência 

do cientista. - O fato é que Jaspers acredita na possibilidade de um fator 

físico, factual, agir sobre a estrutura valorativa do mundo espiritual de 

Nietzsche. E há naturalmente os outros que acreditam nos benefícios 

para o espírito das reações bioquímicas da sífilis. Tudo isso é muito 

absurdo e mostra que, se a obra de Nietzsche se torna suspeita em razão 

de sua associação à loucura do filósofo, nós também poderíamos nos 

tornar suspeitos em virtude da associação de nossas idéias às nossas 

próprias loucuras. É evidentemente uma loucura pensar que podemos 

viver prescindindo do mundo dos valores (como querem Heidegger e

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seus adeptos). E não é também esse o sentido mais profundo da tentativa 

a que hoje assistimos de construir nossas vidas sobre bases puramente 

científicas e tecnológicas? No mundo enlouquecido em que vivemos, homens como Nietzsche, que acreditam em valores, deverão passar por 

loucos mesmo sem a inter/enção da medicina. Às vezes chego mesmo a 

pensar que o que convence o mundo da realidade de uma loucura 

inerente às idéias de Nietzsche não é propriamente o colapso que o 

vitimou, mas as próprias concepções que elaborou. Afinal de contas, em 

que consistiu a loucura de Nietzsche? - Numa paralisia súbita e geral de suas funções cerebrais1. É isso que chamamos de loucura? Encon

tramos, nas atitudes de Nietzsche durante o período posterior a 1888, algo da extravagância, do pitoresco, do tragicômico geralmente associado à maior parte das manifestações da loucura? Com a única exceção 

das breves cenas de Turim e da viagem de volta à Suíça, o que vimos foi apenas um súbito desmoronamento das forças do espírito. A sensação  

de loucura para um certo tipo de leitores parece, pois, ter sido transmitida mais pela petulância, pelo inusitado, pela enorme ousadia que 

circulavam em seus livros; esses leitores, quando souberam que Nietzs

che morrera louco, se sentiram provavelmente mais seguros - ou se sabiam antes de procurar seus livros, interessaram-se por eles provavelmente na expectativa de encontrar algo pitoresco, algo extravagante ou 

mesmo tragicômico-, expectativa evidentemente que dependente como 

era do preconceito que a originara não podia senão ser confirmada.

O que digo agora não tem naturalmente o valor de um argumento.  É uma impressão confiada en passant e que visa apenas mostrar que a 

loucura é uma noção pouco precisa. Hamlet finge-se de louco tendo em 

vista um objetivo. No momento em que ia atingi-lo deixa de fazê-lo, talvez por ter enlouquecido. Pronuncia palavras que prejudicam a 

apuração do crime do rei na cena do teatro no teatro. Poupa o criminoso 

que tinha a intenção de matar e mata um outro, que era inocente. O 

resto do drama é uma conseqüência desse seu descontrole. A pergunta 

que se impõe é, portanto, a seguinte: é Hamlet um homem louco que 

tem momentos de sanidade ou é ele um homem são que tem momentos 

de loucura? Shakespeare não nos fornece a resposta; mas deixa entrever, penso eu, que ela dependerá de nosso ponto de vista. Podemos 

pensar o que expusemos acima ou então que a idéia de fingir-se de louco

1. O diagnóstico de Mõbius de uma paralisia progressiva induz a pensar num processo

gradativo de loucura.

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é em si mesma uma loucura. Por isso, na hora de atingir o seu propósito, Hamlet recupera seu espírito e poupa o homem que pretendia matar. 

Procura depois arrancar da mãe o segredo que, por sua própria culpa, não arrancara do tio; e pressentindo um movimento por trás de uma 

cortina atravessa com sua espada o corpo invisível de quem o escutava. Onde está a loucura? - Na relação de Nietzsche com o mundo moderno, tudo depende também do nosso ponto de vista: se considerarmos que o 

mundo moderno e contemporâneo é um exemplo de equilíbrio, de 

moderação, de liberdade, de espiritualidade, de integridade, de autenticidade, de vigor e de criatividade - então há fortes razões para se 

pensar que Nietzsche era de fato um louco. Mas, se considerarmos, ao  contrário, que esse mundo é um exemplo de desequilíbrio, de extravagância, de escravidão, de materialismo, de desonestidade, de dissimulação, de debilidade e de pasmaceira - então deveremos pensar que 

Nietzsche é justamente o homem que poderia contribuir para o saneamento desses males. Ora, um homem que é capaz disso é tudo, menos 

louco. A doença que o vitimou deverá talvez ser considerada conseqüên- cia e não causa do que foi sua vida e sua obra - consequência, notemos 

bem, entre outras coisas, de uma loucura a que teve que se opor. É possível mesmo que sua loucura tenha sido o resultado de um contágio  

- não de um contágio sifilítico mas de um contágio com a loucura do 

mundo. Parece ter sido de qualquer maneira uma conseqüência; esse é 

um ponto de vista que convém não esquecer.

Que dose de verdade um espírito suporta, que dose ousa suportar? - tal tem sido

 para mim cada vez mais o cri tério ve rdadeiro para julgar o seu valor. O erro não é cegueira,

o erro é covardia.

Este pronunciamento socrático, que Nietzsche faz no prefácio do 

 Ecce Homo, deveria absolvê-lo da suspeita de ter sido vítima involuntá

 ria  das trevas que dentro em pouco o envolveriam. Nietzsche ousou  

suportar uma dose de verdade que ultrapassava seus limites. O trecho 

das últimas páginas do Ecce Homo que citaremos a seguir não pode ser lido sem um estranho confrangimento d’alma de tal modo ele nos parece 

inatacável quanto à sua essência e, entretanto, extremamente problemático pela impossibilidade de ser visto como a descrição de um “papel” 

no drama da história que um indivíduo, um ser humano, possa atribuir 

a si próprio:

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Meu destino quis que eu fosse o primeiro homem honesto, quis que eu me sentisse

em contradição com milhares de anos. Fui eu o primeiro homem que descobriu umamentira na mentira, sentindo-a com meu olfato. Meu gênio está no meu nariz. Eu

contradigo como jama is se o fez e sou entre tanto o con trário de um espírito negador. Souum po rtad or de boas novas como nunca houve ou tro igual, conheço obrigações de umaaltura de que não se tinha tido idéia até hoje; e não é senão a pa rtir de mim que a esperança

 pode recomeçar. Com tudo isso sou necessariamente também o homem da fatalidade.Porque quan do a verdade e ntr ar em luta com a mentira milenar, veremos abalos inauditosna história do mundo, sismos dilacerarão a terra, as montanhas e os vales se deslocarãoe não se terá podido imaginar nada semelhante. A idéia de política será então completamente absorvida pela luta dos espíritos, e todas as combinações dos poderes da velhasociedade explodirão no ar, construídas como todas são sobre a mentira: haverá guerrastais como a terra não terá nunca visto antes. É a partir de mim que a grande política

começará na terra.

Quem lê esse texto, sem nunca ter lido antes algo de Nietzsche,  pensará certamente que se trata de um insensato. É inconcebível que um homem possa pensar tais coisas de si mesmo. O mundo está cheio de loucos que julgam ser Jesus, Napoleão, César e outras figuras de  significação mundial. O que parece ser diferente em Nietzsche é apenas  que ele nos oferece uma imagem de grandeza forjada por si próprio e não emprestada à história. Assim pensa quem nunca havia lido Nietzsche antes de percorrer o trecho do  Ecce Homo  que citamos. E acrescentaremos, se quisermos continuar ouvindo a voz da realidade: e curiosamente também muita gente que já o havia feito.

Dissemos curiosamente porque quem estudou cuidadosamente a obra de Nietzsche, quem leu todos os seus livros várias vezes e os  comparou, quem meditou profundamente sobre esses textos - quem fez 

todo esse esforço, com um espírito atento e despreconcebido, terá dificuldade em subscrever a opinião de que o trecho citado por nós contém indícios de loucura. E não é só isso. Julgará mesmo, colocando- se na pele de Nietzsche, que ele não poderia pensar outra coisa de si mesmo. Tal era o abismo a que o levara sua missão, sua vocação, seu  destino. Nietzsche era obrigado a pensar sobre si mesmo aquilo que pensava e essa era uma dose de verdade que ele, como qualquer um de  nós, não poderia suportar. A diferença entre ele e nós é que, se procu

rássemos fazê-lo, seria por vaidade, para não falar de megalomania -  motivo pelo qual seríamos a justo título considerados loucos. Nietzsche, entretanto, era obrigado a fazê-lo porque, se não o fizesse, a intenção de sua obra não teria sido convenientemente avaliada. Jaspers, que procura ajuizar essa obra com um máximo de objetividade e de sinceridade, revela as limitações de sua integração numa sociedade burguesa

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quando procura separar os efeitos positivos da obra nietzschiana da falta 

de compostura, da diminuição de tato, da ausência de espírito de 

autocrítica e dos impulsos sentimentais desproporcionados. Falta de espírito de autocrítica em Nietzsche! Não foi justamente esse senso de 

autocrítica que, por um processo inexorável, o levou à loucura? Se fosse 

louco ou doente antes do colapso, consideraí-se o centro do mundo não 

lhe causaria o menor problema. Não seria essa uma idéia que não 

pudesse suportar. Não seria uma dose de verdade que ultrapassasse os 

limites do valor de seu espírito. A falta de respeito com que Jaspers 

separa os diversos aspectos da obra de Nietzsche, ignorando as articu

lações naturais desse organismo vivo, corresponde bem à lógica científica com que está comprometido. O que deve ter aumentado  

consideravelmente, na última fase da vida de Nietzsche, foi justamente 

seu senso de autocrítica - pois foi ele que foi tornando cada vez mais 

insustentável a posição do homem que não queria renunciar a ser  

filósofo.

O confrangimento d’alma que sentimos ao ler a passagem que 

estamos discutindo, Nietzsche deve tê-lo sentido igualmente no ato de 

escrevê-la. Mas que podia fazer? Não estava livre como nós, para retê-la 

ou abandoná-la. Devia retê-la, porque ela fazia parte de sua missão, de 

sua vocação, de seu destino. Era uma daquelas verdades cuja dose 

violenta devia ousar suportar. Ao longo de sua vida, havia ousado 

suportar muitas outras verdades: as verdades que representavam o 

sacrifício de Sócrates, do cristianismo, do sentido do mundo, de seu 

entusiasmo por Schopenhauer e do seu amor por Wagner; mas agora, 

quase no final de sua vida consciente, uma ousadia ainda maior lhe era 

exigida; deveria ousar o sacrifício dos últimos laços que o prendiam ao 

mundo em que nascera - devia compreender sua vida como uma cbn- 

tfadição com milhares de anos. Havia alguém que pudesse resistir aos 

efeitos dessa colossal ousadia? - A mim me parece que só por um 

milagre poderia escapar incólume o homem que tentasse viver uma tal 

experiência - sobretudo quando sabemos que as palavras que a descre

veram, como tudo o que saía da pena de Nietzsche, eram palavras 

arrancadas de seu sangue, das suas mais íntimas fibras.

Nesse sentido não deixaria de ser instrutivo refletir sobre o fato de  

que tanto Nietzsche quanto Heidegger poderiam tornar-se objeto da 

mesma suspeita de loucura, já que os dois estavam convencidos de que  

se encontravam numa posição especialíssima - em contradição com 

milhares de anos. Ambos desenvolveram suas idéias a partir de uma

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crítica radical da cultura clássica, de uma crítica radical da tradição 

socrático-platónica - fonte de inspiração respeitada e venerada por todo 

homem que se considera membro integrante da nossa cultura ocidental. 

Nietzsche denunciou a decadência socrática, mas o fez dialeticamente, 

sabendo que ele próprio era um filho de Sócrates, que o sangue socrático 

corria em suas veias e que as propostas que poderia fazer para um futuro 

melhor não seriam senão propostas socráticas. A denúncia de Heideg- 

ger, entretanto, teve um caráter mais claro, peremptório, foi a denúncia  

de um erro insofismável, de um equívoco completo, feita de um ponto 

de vista supostamente científico - a ciência filológica do filósofo - e 

pretendendo assim assumir, com a irrefutabilidade da ciência, a posição 

de árbitro da história. Nietzsche colocou-se dialeticamente favorável a 

uma opção que não pulverizava realmente a opção que fora preterida. 

Heidegger, ao contrário, colocava-se num ponto de vista pretensamente 

científico e, com a utilização de sua suposta ciência filológica, era levado 

a uma posição megalomaníaca de absoluta independência com relação 

a todo o passado cultural do homem do Ocidente.

Com seu tom dogmático e professoral, Heidegger fez então afirma

ções que tornaram modestos, por comparação, os mais arrogantes 

pronunciamentos de Nietzsche. A seu ver, durante todo o período que 

vai do aparecimento de Platão ao aparecimento de Nietzsche, o “ser” 

esteve esquecido, isto é, “oculto”. Havia sido preciso que surgisse 

Heidegger e a perfeição de sua técnica analítico-filosófico-científica 

para que se começasse a ter uma noção do que fosse o “ser”, uma noção 

por conseguinte do que fosse a “verdade”. Não se tratava de uma nova  

interpretação, como a de Nietzsche, mas de uma revelação da “verdade 

do ser”. Toda cultura do homem ocidental se tinha desenvolvido sob o 

signo do “esquecimento do ser” e havia sido preciso que Heidegger nos 

advertisse disso para que a cruel verdade aflorasse à nossa consciência. 

Poderia haver demonstração maior de megalomania? As últimas mani

festações de Nietzsche, não só as que já citamos mas outras ainda que 

podemos também encontrar no  Ecce Homo  e que citaremos a seguir, 

são sem dúvida arrogantes, são mesmo mais do que isso - mas não se 

apresentam envoltas no clima frio, dogmático e professoral que é carac

terístico do filósofo de O Ser e o Tempo. Essas manifestações revelam 

mais do que arrogância porque, como tudo mais que vem de Nietzsche,  

têm um caráter dialético. Nietzsche diz no Ecce Homo “[...] Eu conheço 

meu destino. Um dia virá em que a lembrança de um acontecimento 

formidável estará ligada a meu nome, a lembrança de uma crise única

 NIETZSCHE: O SÓCRATESDE NOSSOS TEMPOS   225

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na história do planeta”, mas diz também que “[...] não desejaria trans

formar-me num santo, preferia ser considerado um bufão [...] E que 

talvez mesmo fosse um bufão”. Diz ainda, como já vimos, que o destino 

quis que ele fosse “o primeiro homem honesto e que se sentisse em 

contradição com milhares de anos”; mas diz também que “meus livros 

por vezes atingem o máximo a que se possa chegar neste mundo - ao 

cinismo”. A arrogância e a autocrítica exacerbada faziam, pois, igual

mente, parte do clima de exaltação em que Nietzsche vivenciava seus  

últimos problemas - faziam parte do conteúdo desses problemas. 

Nietzsche tinha perfeita consciência dessa sua arrogância e, de uma 

certa maneira, era o primeiro a sofrer do choque que causava; ela era 

mais que arrogância - era também a coragem que o levava a pensar de 

si mesmo algo extremamente destrutivo: aquela dose de verdade que 

ninguém poderia suportar.

Heidegger não dizia, agia como se soubesse estar em contradição  

com milhares de anos - mas nos seus gestos ou nas suas palavras, era 

impossível encontrar qualquer indicação de que achasse essa situação 

pelo menos anormal. Sua arrogância estava longe de ter uma consciência 

nítida de si própria e estava ainda mais longe de ser a primeira a sofrer do choque que causava. Aliás essa arrogância não parece ter produzido, 

como a de Nietzsche, qualquer abalo sobre uma parte apreciável do seu 

público. E nunca houve a menor suspeita de que houvesse em Heidegger 

algum desequilíbrio. Sua megalomania, escudada na sua pretensa ciên

cia, foi sempre aceita, explicada e discutida como se se tratasse de uma  

excitante inovação filosófica merecedora da mais cuidadosa atenção. 

Mas a monotonia do refrão continuamente utilizado por Heidegger -  

“o esquecimento do ser” -, a pouco imaginativa uniformidade e esterilidade da denúncia contra tudo o que de mais interessante e nobre 

produziu a cultura do Ocidente - tudo isso são manifestações que dão 

o que pensar. Que diríamos se soubéssemos, por exemplo, que a filologia 

de Heidegger foi repudiada frontalmente por um dos mais eminentes 

filólogos  zscholars clássicos deste século, Paul Friedlander, com muito 

maior pertinência do que a de Nietzsche o havia sido pelo jovem e 

inexperiente Wilamowitz? - Não teríamos então alguma razão de sus

peitar que haveria uma certa insanidade em se querer construir, a partir 

de um erro filológico, uma interpretação tão negativa da cultura do 

Ocidente?

No calor da discussão passamos insensivelmente da terceira para a 

quarta categoria dos analistas de Nietzsche que trataram do problema

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de sua loucura. É nela que preferimos nos inserir para ver se nos é 

possível discernir algum laço de valor positivo entre essa tragédia, de  

repercussões tão negativas, e a significação mundial da obra a que está 

associada. Vemos assim como a tendência à classificação é quase sempre vencida pela complexidade dos problemas. Já exprimimos nossa 

convicção de que a doença que determinou o colapso de Nietzsche 

parece ter sido conseqüência e não causa das idéias que agitavam o 

espírito do filósofo. Isso não significa naturalmente que nunca tenha 

existido o famoso fator biológico de Jaspers. O que não me parece ter 

existido é um fator biológico que produzisse efeitos na evolução espiri

tual de Nietzsche; os efeitos se existiram se verificaram, a meu ver, no 

seu organismo físico. E só se tornaram visíveis com o colapso final. Houve, portanto, creio eu, dois fatores que agiram concomitantemente

 

no sentido da paralisia súbita e geral: uma doença que tinha seu período 

de incubação, que teve um período de incubação atípico, pois foi muito 

mais longa do que seria normal e que, por conseguinte, poderia ter tido 

um período de incubação ainda maior; e uma aventura espiritual, que 

consistia numa experimentação perigosa e que causava uma tensão no 

sistema nervoso de tal natureza que não poderia deixar de ter conse- 

qüências de ordem corporal. É, portanto, extremamente provável que 

essa tensão tenha agravado a precariedade das condições físicas de 

Nietzsche e tenha muito naturalmente diminuído o período de incubação de sua doença. Note-se que, depois do colapso, Nietzsche ainda 

viveu onze anos e que finalmente morreu não da doença mas de uma 

pneumonia que contraiu. Pode-se assim pensar que, uma vez cessada a 

influência do agente espiritual, desacelerou-se o ritmo da doença de  

modo extremamente significativo. O período que separa o colapso do 

aparecimento do fator biológico de Jaspers é de nove anos - é de onze 

o que separa o mesmo colapso da morte, que, ainda assim, não foi causada pela doença.

Não parece então ser fruto da fantasia pretender que o mergulho 

de Nietzsche nas trevas da inconsciência constituiu um ato filosófico da 

mesma natureza que o gesto de Sócrates bebendo a cicuta.. Nietzsche 

precisava ousar a dose de verdade que seu espírito não poderia suportar, 

para coroar, para autenticar, para legitimar sua obra. Essa ousadia que 

o levou ao desastre era insensatez do ponto de vista humano mas 

sabedoria do ponto de vista de uma realidade mais alta. Sócrates 

chamou-a de realidade divina; tinha morrido da maneira pela qual tinha  

querido morrer, o que também era uma insensatez do ponto de vista

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humano - qualquer outro tipo de desenlace teria prejudicado sua obra. 

Certos objetivos nunca serão atingidos se não se arrisca, se não se  

recorre a um grão qualquer de loucura. Sócrates sabia que era preciso 

arriscar, ignorar a voz da razão, os conselhos do bom senso e da 

prudência, confiar na vontade impenetrável de Deus para cumprir seu 

destino.

E Nietzsche? Em nome de que realidade lançou-se nas trevas? -  

Realidade divina, sim, mas que Deus era esse que o recebia nos braços? 

Dionísio? Sócrates? O Crucificado? - Todos os três eram deuses que 

morriam e ressuscitavam. Nietzsche esperava talvez ter o mesmo desti

no. Mas antes de tê-lo, ele provavelmente já se sentia mui próximo, quase 

idêntico a Sócrates-Dionísio, ao médico-filósofo, ao filósofo da comu

nicação indireta, ao descobridor da coragem do espírito, ao crítico da 

decadência. Procuramos mostrar, neste livro, como a vida e a obra 

desses dois homens se recobrem em muitos pontos; mas é no desenlace  

final que eles revelam sua verdadeira identidade como se o mesmo  

motivo devesse destruir um e outro para que se soubesse ter havido nos 

ideais vividos por eles mais do que uma simples semelhança - uma 

completa igualdade.

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9. NIETZSCHE E SUA DOENÇA

Agora que Friedrich Nietzsche se tornou um autor academicamen

te respeitável, é tempo talvez de se iniciar com relação à sua obra e sua 

personalidade uma forma de investigação “mais filosófica” sobre sua 

doença - o que se havia feito até recentemente tinha sido procurar 

destruir, em razão de preconceitos e  parti pris,  uma reputação que, 

apesar de tudo, ia consolidando-se. O momento parece maduro para 

que empreendamos uma investigação filosófica sobre a verdadeira na

tureza de sua doença, tentando atender de modo mais sutil a complexi

dade do problema e evitando os escolhos de uma perspectiva científica 

em torno das causas de sua pretensa loucura.

De qualquer maneira, estamos hoje longe das convicções de um 

Paul Möbius, que, no começo do século, mobilizou (sem intenção de  

trocadilho) seus conhecimentos médicos e científicos para estabelecer 

a existência de uma relação causal entre a doença de Nietzsche e a sua 

obra. Möbius começou suas pesquisas interessando-se pelo fator here

ditário que parecia lhe abrir um campo fértil em descobertas: o pai do 

filósofo, Karl Ludwig Nietzsche, morrera jovem, aos trinta e oito anos 

de idade, de uma convulsão da qual resultara um amolecimento cere

bral; alguns irmãos e irmãs da viúva Nietzsche haviam sido doentes

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mentais - uma irmã se teria suicidado, outra teria enlouquecido; um 

irmão fora acometido de um acesso de loucura aos sessenta e oito anos 

de idade. A mãe de Nietzsche havia mesmo especificado que uma de 

suas irmãs morrera num sanatório. Tudo levava a crer que, com esses 

dados, Möbius já teria reunido um número suficiente de elementos para 

estabelecer em bases firmes sua tese sobre a relação entre a doença de 

Nietzsche e sua obra.

Entretanto, da parte da família do filósofo, surgiam protestos indig

nados. Dizia-se que a viúva Nietzsche, por ocasião da morte do marido, 

havia declarado peremptoriamente que, durante sua vida, nunca se 

notara o menor indício, o menor traço de um sintoma de loucura, que 

suas crises haviam sempre tido uma origem nervosa e que sua morte fora 

determinada por causas exclusivamente físicas. Diante das suposições 

de Möbius, Elisabeth, a irmã do filósofo, reagiu com mais violência 

ainda, tornando-se até uma inimiga do médico e cientista. A loucura de 

Nietzsche, afirmava de modo extremamente enfático, devia ser atribuída 

não só ao uso de remédios, narcóticos e drogas que o irmão utilizava 

para aliviar suas violentas dores de cabeça e de estômago como também 

aos excessos de trabalho, ao esforço enorme exigido de um corpo 

enfraquecido pelas crises sucessivas de uma doença que não lhe dava 

tréguas.

Segundo Elisabeth, as hipóteses de Möbius fundavam-se todas 

sobre um grande equívoco - nunca ouvira falar de doença mental entre 

os seus, embora fosse verdade que, pelo lado Oehler da família, houves

se algo de original e que alguns de seus membros fossem predispostos  

à melancolia. Supunha-se também que a morte de seu pai houvesse sido 

ocasionada por uma queda. A obstinação de Möbius de encontrar, 

mesmo durante o período da vida consciente do irmão, traços de 

loucura, só podia ser atribuída à extrema aversão que sentia por suas 

idéias.

Möbius, entretanto, não desistia. Sem abandonar completamente a 

tese da hereditariedade, resolvia agora explorar outro filão. Havia 

rumores de que Nietzsche, nos seus tempos de estudante em Leipzig, 

havia se submetido a um tratamento anti-sifilítico. O dossiê médico do 

sanatório de lena, onde Nietzsche esteve internado em 1889, registrava, em virtude de uma indicação dada talvez por ele próprio, uma infecção 

sifilítica no ano de 1866. Muitos anos mais tarde, em 1961, Lange 

Eichbaum, reputado médico e cientista, endossa também essa versão 

dos fatos, depois de ter declarado haver um célebre neurólogo berlinen-

230 MARIO VIEIRA DE MELLO

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se afirmado que Nietzsche, nos seus tempos de estudante, contraíra 

sífilis, tendo em conseqüência se submetido a um tratamento com dois 

médicos de Leipzig.

Mõbius não era um filósofo; as idéias de Nietzsche obviamente o 

chocavam e, como não tinha competência para analisá-las de um ponto 

de vista filosófico, valia-se de sua autoridade médica e científica para 

lançar sobre elas sua condenação exasperada. Nos meios médicos e 

científicos, naturalmente sua opinião fazia escola, e até a década de 

sessenta havia médicos e cientistas que observavam a linha de investiga

ção de Mõbius, no que dizia respeito às experiências sexuais de Nietzs

che (e suas conseqüências). Elas não se limitavam agora às visitas 

noturnas de Leipzig, mas tinham também, como teatro, a própria Basi

léia, onde Nietzsche exercera o seu professorado, e as cidades do litoral 

mediterrâneo, Gênova e Nice.

Do meu conhecimento, o primeiro homem de ciência que se insur

giu contra essas teorias foi Karl Jaspers. Mas Jaspers não era apenas um 

cientista, era também um filósofo. Antes de descortinar os amplos 

horizontes da filosofia, já adquirira uma sólida competência e reputação 

no campo da psicologia e da psiquiatria, de forma que suas opiniões não refletiam apenas a clássica oposição entre o cientista e o filósofo mas 

um julgamento que não podia ser atribuído à visão excessivamente  

idealista e “metafísica” de um filósofo que não tinha os pés plantados 

na realidade.

Jaspers negou terminantemente que, até poucos dias antes da crise 

de Turim - quando o filósofo subitamente perdeu contato com a reali

dade -, se tivesse manifestado em Nietzsche qualquer indício de um 

distúrbio mental sério. Negou também que se pudesse estabelecer a existência de uma relação causal entre um fator físico e determinada  

manifestação do espírito. Um orador, exemplificou ele, não deixa de ser 

brilhante, eloquente ou inteligente quando se sabe que, para vencer um 

certo retraimento ou inibição, necessita tomar um copo de cerveja ou 

de vinho antes de iniciar o seu discurso. Seria, acrescenta ainda, até 

possível imaginar que a sífilis, na fase inicial de seu processo, funcionas

se como um estímulo, como um agente capaz de intensificar o esforço e 

o rendimento de uma atividade espiritual, se não se soubesse que, nas 

fases posteriores do seu desenvolvimento, ela corrompe o organismo e 

destrói as partes mais vitais da cerebração humana. De qualquer manei

ra, era inconcebível pensar que a obra de Nietzsche tivesse devido o que 

quer que fosse a um fator de ordem patológica.

 NIETZSCHE: O SÓCRA TES DE NOSSOS TEMPOS 231

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O que Jaspers acreditava ter podido detectar na vida do filósofo, 

no começo da década de oitenta, haviam sido sinais de uma modificação 

na sua estrutura psicológica, modificação, Jaspers fazia questão de 

enfatizar, que resultava não da intervenção de um fator de ordem 

patológica mas daquilo que, na falta de uma caracterização mais precisa, 

limitava-se a chamar de “fator biológico”. Uma espécie de exaltação, 

uma euforia e um otimismo que não pareciam se justificar, era a nova 

nota que parecia predominar agora na atmosfera espiritual do filósofo 

- e sem ter uma explicação seja médica, seja filosófica, para esse novo 

estado de coisas, Jaspers limitou-se a fazer o registro da nova condição, 

sem dúvida com a intenção de, dessa forma, levantar uma barreira, uma 

resistência ao diagnóstico com que se pretendia destruir a validade e a 

importância das idéias nietzschianas.

Embora Jaspers seja merecedor de nossa grande admiração, entre 

outras coisas pela coragem com que se levantou contra as opiniões dos 

meios médico-científicos de que era oriundo, cabe aqui estranhar que, 

tendo ele dedicado uma tão grande e perceptiva atenção ao problema  

da doença de Nietzsche, não tenha conseguido obter senão resultados 

negativos no que diz respeito à explicação para o enigma que procurava 

desvendar - a questão de saber se Nietzsche era simplesmente um 

homem doente ou se era alguém que tinha uma significação universal. 

Na sua opinião, Nietzsche era as duas coisas ao mesmo tempo - mas isso 

não resolvia o enigma, que consistia no fato de Nietzsche ter uma 

significação universal justamente em virtude do fato de ser um homem 

doente.

O que se pode observar na análise de Jaspers é que, tendo ele 

examinado com olhos tão perceptivos o caso clínico do indivíduo Nietzs

che, não teve sua atenção voltada para o fato de que, na obra de 

Nietzsche, não apenas o indivíduo Nietzsche mas o homem, o ser 

humano de uma maneira absolutamente geral, é caracterizado como um 

“animal doente” - o que aliás o torna, sempre de acordo com a concep

ção nietzschiana, um “animal interessante”. - Interessante por quê? - 

Interessante, faz-nos entender Nietzsche, porque, a partir de um certo 

período da história, passou a exercer sua violência, sua ferocidade, sua crueldade não mais contra vítimas e inimigos como fizera anteriormente 

mas contra si mesmo. Interessante, porque essa ferocidade, essa violên

cia, essa crueldade não terminava em destruição e morte, mas, pelo 

contrário, criava, abria no homem espaços interiores extraordinários e

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culminava produzindo a mais bela flor de que a humanidade pudesse se 

orgulhar - o amor cristão.Tudo isso, segundo Nietzsche, estava ligado ao fato de ser o homem

 

um animal doente. Era a doença que transformava sua humanidade em 

algo de extraordinariamente valioso - sem sua alma, capaz da mais desapiedada autodilaceração, capaz dos mais ferozes, dos mais sanguinários ataques contra si mesma, o homem seria um animal desinteressante - possuiria uma alma que conhecesse talvez as emoções da 

simpatia, da solidariedade, da comunhão com a realidade cósmica mas 

 jamais o amor cristão - o amor que leva ao sacrifício, o amor que redime, 

o amor que transfigura e cria um novo reino. Era a doença que levava o homem a criar dentro de si mesmo vastos espaços interiores nos quais 

novos fatos, novos fenômenos, uma nova realidade eram milagrosamente produzidos, dando ao mundo um novo sentido, um novo valor, uma

 

nova configuração.É em A Genealogia da Moral, obra escrita depois de se ter verifica

do, segundo Jaspers, a intervenção do famoso “fator biológico”, que se 

encontram as extraordinárias análises em que Nietzsche faz derivar o 

fenômeno da consciência no homem de um fenômeno anterior que 

caracterizou como “má consciência”. Pouco se tem refletido sobre essa 

origem que a intuição histórica dc Nietzsche julgou discernir e que 

parecerá digna de toda a atenção para quem se disponha a estudar com 

a profundidade necessária a história de Israel. Foi somente quando um 

povo renunciou a seus instintos predatórios, que o fazia lançar-se contra 

o inimigo na fúria de destruir-lhe as entranhas, foi somente quando 

renunciando a essa luta insana fez com que esses mesmos instintos se 

voltassem contra si mesmo, foi somente então que surgiu na história do 

homem a “má consciência” e então, como consequência, a consciência 

e a aurora do amor cristão. Voltando-se contra si mesmo, o homem se  

reconhece como pecador e atribui a si próprio a responsabilidade de 

todos os males que lhe advenham. Mas ao mesmo tempo que se atormentava numa luta contra si próprio, levada a efeito com a mesma fúria

 

com que anteriormente havia lutado contra seus adversários, algo de 

maravilhoso se criava dentro de si, um mundo novo se formava ante seus 

olhos maravilhados, um mundo de que até então nunca tivera a menor 

percepção - o mundo da consciência, o mundo da alma que surgia como 

uma flor inesperada do seio dessas lutas sangrentas travadas dentro de 

si, naquele espaço interior que se havia formado.

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 A Genealogia da Moral   é um dos mais belos livros de Nietzsche  

porque une a profunda, a genial intuição do psicólogo à mais extraordi

nária elevação espiritual do filósofo. Nietzsche descreve, nessas páginas 

absolutamente incomparáveis, como de uma atmosfera de ódio e ressentimento pôde nascer a mais pura, a mais bela flor - o amor cristão; como da selvageria dos instintos em luta contra si mesmos puderam

 

surgir as mais sublimes manifestações do espírito; e como é superficial  

pensar que a luz da consciência é um fenômeno cuja aparição na história 

do homem se deu sem combates terríveis, sem lutas sangrentas em que 

o inimigo era o próprio combatente que nelas estava empenhado.

É essa concepção do homem dotado de uma consciência cujas origens não têm o caráter selvagem, feroz, violento que lhe atribui 

Nietzsche - é essa concepção de uma consciência que não foi antes uma 

“má consciência”, que não precisou ter sido uma má consciência, que 

surgiu inexpücavelmente como uma luz que se acende, o que nos induz 

a pensar que a saúde é o estado normal dos homens e que a doença é 

uma exceção. Quando Nietzsche nos diz que o homem é um animal doente, o que ele nos está querendo sugerir é que foi a doença que nos 

liberou do estado animal, do estado em que o animal normalmente é saudável. É o fato de ser o homem um animal doente que faz dele um 

animal interessante - isto é, um animal que não é mais um animal. Essa 

transformação é provocada pela doença - é ela diretamente responsável pela abertura de novos e vastos espaços interiores no homem, nos quais

 

novos fatos, novos fenômenos, uma nova realidade são milagrosamente 

produzidos, dando ao mundo um novo sentido, um novo valor, uma nova 

configuração.

Mas essa intuição do caráter essencialmente doentio da natureza 

humana, Nietzsche só a teve depois que se exauriu completamente sua 

experiência do cristianismo. Contrariamente ao que ele próprio diz no 

seu Ecce Homo, Nietzsche viveu profunda e intensamente a experiência 

cristã. Paul Valadier, nos seus dois belos livros sobre o filósofo, nos dá 

disso provas que me parecem superlativamente convincentes. E foi 

somente quando essa experiência se exauriu - fato que coincidiu com a 

ruptura de sua amizade com Richard Wagner-, foi somente então que 

se iniciou o processo de sua reflexão sobre o que bem poderia caracterizar a essência do homem.

O jovem que abraçou os estudos de filologia clássica era um espírito 

profundamente marcado pela experiência cristã. E a profunda renovação que esse jovem realizou, já ocupante de uma cadeira de filologia na

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Universidade de Basiléia, foi ela também fortemente inspirada por essa 

experiência. A descoberta do espírito “dionisíaco” não teria sido possí- 

el para Nietzsche se ele não tivesse vivido com a maior intensidade o drama da paixão de Cristo. Os compêndios de história da filosofia 

assinalam muitas vezes, mas quase sempre superficialmente, o fato de  

que há alguma semelhança entre a doutrina cristã e certas correntes  

místicas da religiosidade helénica dos séculos imediatamente anteriores 

ao advento de nossa era. Dionísio é um deus que morre e que renasce,  

um deus que perde a individualidade, envolvido no entusiasmo e na 

paixão de uma tortura triunfante, traços comuns das crenças religiosas 

dos povos que viviam ainda sob a forte impressão de suas experiências 

agrícolas de semeadura de grãos e de colheita de cereais e de frutos. A 

cultura grega, na sua totalidade e nos seus diversos elementos derivados 

dos períodos arcaico, clássico e helenístico, exerceu, como se sabe, uma 

grande influência sobre o cristianismo, mas as contingências históricas 

fizeram com que fosse a filosofia, e não a religiosidade daqueles tempos, 

que, em Roma e em Constantinopla, a exercesse de maneira definitiva. 

O cristianismo, triunfando em Roma, cedo se latinizou. O aspecto da 

cultura grega que podia naturalmente interessá-lo era a filosofia, já que 

a religiosidade grega não representava para ele uma contribuição im

portante. Mas justamente essa sua estreita aliança com a filosofia e o 

desdém que votava à religiosidade grega fez com que as gerações 

posteriores se tornassem incapacitadas para avaliar na sua justa medida 

a importância do elemento dionisíaco nas religiões em geral. Enquanto 

o cristianismo da Rússia, desvinculado de Roma e da filosofia, conser

vava no seu bojo aquele elemento do cristianismo que tinha um caráter 

dionisíaco - a consciência messiânica e escatológica -, o cristianismo do 

Ocidente e de Constantinopla se orientava para uma concepção da 

Grécia cada vez mais apolínea, o elemento dionisíaco era cada vez mais 

esquecido, a idéia do milênio ia sendo abandonada e a salvação da 

humanidade era tida como já realizada. Essa preponderância do ele

mento apolíneo era naturalmente determinada pela influência da filo

sofia grega que, com a exceção do que ocorria na Rússia, cada vez mais 

ocupava espaços no mundo espiritual que se desenvolvia à sombra do 

cristianismo.

A interpretação dada por Nietzsche ao fenômeno grego tinha, como 

base essencial, uma experiência sua do cristianismo independentemente 

das contingências históricas que o haviam vinculado à filosofia - era a 

experiência de um cristianismo de tradição fideísta em que era dada

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uma ênfase especial à experiência religiosa interior, psicológica e afetivamente sentida, experiência aliada a um rigorismo moral exterior que

 

era a barragem necessária ao sentimento religioso transbordante. Note- 

se que era uma experiência íntima transbordante, contida por uma 

barreira exterior e não por uma sublimação ou transfiguração através 

de uma outra experiência íntima contraposta, ou seja, uma experiência 

apolínea. Era um cristianismo, diria Nietzsche, que se incorporava a nós, passando a fazer parte de nossas entranhas, e que era um símbolo das  

verdades profundas do coração humano.Foi esse cristianismo dionisíaco que permitiu a Nietzsche ver o

 

período trágico da cultura grega emergir da consciência de um fundo 

terrível da existência em que os instintos do homem ainda eram selvagens, em que o homem não era ainda um “animal doente”, um “animal

 

interessante”. Na Grécia essa selvageria dos instintos havia sido contida 

pelo sonho apolíneo, diferentemente do que acontecera em Israel, com 

seu sentimento de culpa. O homem moderno e contemporâneo, que é 

uma síntese dessas duas culturas, encontra assim, numa tradição anterior a elas, fundada numa concepção selvagem, terrível da existência, o 

fundo comum em que mergulha a verdade do seu ser. Nietzsche, ao descobrir o espírito dionisíaco do período trágico dos gregos, estava 

descobrindo as verdadeiras raízes da cultura em que se desenvolveu e 

se constituiu a alma do homem do Ocidente. Quando, no Ecce Homo, 

ele disse se encontrar em contradição com milhares de anos, estava 

dizendo uma coisa que decorria necessariamente de tudo o que havia 

dito antes em A Origem da Tragédia  e em A Genealogia da Moral.  É 

curioso que mesmo um intérprete do porte de Karl Jaspers não tenha 

compreendido isso.Nietzsche descobriu Schopenhauer e se relacionou com Wagner

 

 justamente depois de ter compreendido ser sua experiência interior do 

Cristo uma experiência interior de si mesmo, isto é, quando o vigor do 

seu sentimento cristão apresentava sérios sinais de desgaste. A intensidade do sentimento cristão, através do qual o crente se percebe unido

 

interiormente ao Cristo, começava a pensar Nietzsche, só dependia de 

si próprio. O filósofo era assim levado a perguntar a si mesmo se idêntico 

sentimento não ocorreria com relação a Maomet se o crente tivesse 

nascido num meio não cristão mas maometano. Schopenhauer atraía-o 

 justamente naquela fase em que começava a sentir a possibilidade de 

liberar-se do cristianismo - poderia talvez ser seu mestre porque o 

dispensava da necessidade de se sentir culpado. Segundo Schope-

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nhauer, a culpa residia não no ser humano mas na Vontade Universal, 

caprichosa e arbitrária. Havia também uma certa semelhança entre essa 

Vontade Universal e o deus dionisíaco, que nos arrancava da nossa 

individualidade e nos levava através de transportes exuberantes a uma 

embriaguez em que se confundiam êxtase sublime e destruição insensata 

- outra razão para o interesse de Nietzsche, recém-saído do seu cristia

nismo dionisíaco. Mas Nietzsche acabou por reconhecer que Schope- 

nhauer, apesar dessas concepções que pareciam tão próximas do 

espírito dionisíaco e da religiosidade grega, não se libertara em absoluto 

do cristianismo - o que propunha era simplesmente um cristianismo 

invertido: a culpa persistia, só que agora era transferida do homem para 

a divindade.

O fato de Wagner ser um admirador de Schopenhauer havia sido, 

no começo de suas relações com Nietzsche, um grande incentivo para 

que se estabelecesse entre eles uma firme amizade. Mas agora que 

Nietzsche vivia um período de dúvidas e de hesitações com relação à 

obra musical do amigo, aquela admiração se transformava num real 

empecilho. Wagner também não se libertara do cristianismo, apesar de 

seu Siegfried e de seu paganismo germânico; e a criação de seu Parsifal, um herói cujo gesto mais expressivo se realizava no final do drama com  

sua prosternação diante da Cruz, revelava sem a menor possibilidade 

de dúvida o verdadeiro teor das emoções que o inspiravam.

Ao receber de Wagner o libreto do Parsifal, Nietzsche, como única 

resposta, enviou ao amigo, que, com isso o deixava de ser, um exemplar 

do seu Humano, demasiadamente Humano, acabado de sair da impres

são. Era esse um livro para os espíritos livres, dedicado à memória de 

Voltaire em comemoração do aniversário de sua morte ocorrida em 30 

de maio de 1778. A troca de correspondência, feita naquele exato 

momento, soou no espaço - observava então Nietzsche - como um 

tilintar de espadas que se cruzavam em duelo. Nietzsche rompia assim 

os últimos laços que o prendiam ainda à experiência cristã dos tempos 

de sua infância, de sua adolescência e de sua primeira juventude e 

ingressava agora num mundo novo, totalmente estranho, que se abria 

diante dele e do seu desejo de uma liberdade ilimitada, capaz das mais 

atrevidas provocações e mesmo dos mais claros sacrilégios.

Corresponde precisamente esse episódio ao período em que 

Nietzsche mais sofreu com suas violentas dores de cabeça, de estômago 

e prostração em geral. Ele mesmo nos diz que, durante o começo do ano 

de 1879, havia tido cento e oitenta e nove crises graves e que não estava

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levando em conta as crises mais ligeiras; ora, o começo de 1879 foi o 

período que sucedeu imediatamente a publicação do  Humano, dema

 siadamente Humano e ao seu rompimento com Wagner - foi, portanto, o ano em que se tinham rompido ou se estavam rompendo os últimos 

laços que o ligavam ao cristianismo. Falou-se, a respeito desse período 

de crises tão graves, dos efeitos psiconeuróticos resultantes da ruptura 

com Wagner, mas o que parece ter passado completamente despercebido é que essa ruptura com Wagner era, ao mesmo tempo, uma ruptura

 

mais profunda com o cristianismo, uma ruptura bem mais grave do que 

tudo o quanto eventuais manifestações anticristãs anteriores tivessem 

podido representar.Esse é, a meu ver, o momento, o ponto de confluência em que se

 

reúnem os dois tipos de doença que configuraram a vida e a obra do 

filósofo: de um lado, a doença do indivíduo Nietzsche condicionada, sem 

dúvida, por um sistema nervoso frágil, por uma atividade cerebral 

certamente excessiva em face da fragilidade de um tal sistema e por um 

rigor disciplinar talvez não o mais condizente com a natureza excepcional que se submetia a uma tal disciplina; do outro, a doença do homem,

 

do ser humano em geral, que Nietzsche em tal momento identificaria 

como a contribuição específica do judaísmo e do cristianismo. É fora de 

qualquer dúvida que Nietzsche se considerou privilegiado por ter podido, através de seus sofrimentos e de sua doença individual, adquirir uma 

óptica em virtude da qual o homem se revelava aos seus olhos como um 

“animal doente”, um animal que deixava de ser animal justamente 

através do fato de se ter tornado um animal doente. A idéia de que a 

vida do espírito tem sua origem na doença, ao invés de desvalorizá-la 

aos seus olhos, fazia-o, ao contrário, valorizar a doença como contribuição essencial na vida do homem. Isso certamente não queria dizer que

 

a doença devesse ser cultivada por si própria; o grande objetivo continuava a ser a saúde, como sempre havia sido na vida de qualquer animal - mas para o homem, esse “animal doente”, o objetivo principal não era 

a saúde, que podia inclusive fazê-lo decair na escala dos seres, mas a 

“grande saúde”, que é aquela que é obtida a partir da consciência de 

que, para o homem, o estado normal é, não a saúde, mas a doença.Esse é o motivo pelo qual acredito que não se possa dizer que  

Nietzsche tenha, no final de sua vida, rompido inteiramente com o 

cristianismo. O cristianismo, a seu ver, era uma interpretação da vida 

que trazia no seu bojo muitos elementos negativos - mas era uma 

interpretação que transformara em ser humano uma criatura que era

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antes um animal uma interpretação em que o fato interpretado é 

menos importante que a interpretação que o transfigura - uma interpretação que se substituía ao fato. Esse animal doente é também um ser 

alado, natureza que se apresenta agora como uma espécie sui generis, 

que criou dentro de si mesma uma consciência capaz de gerar coisas 

maravilhosas e cuja obrigação é, a partir do seu novo estatuto, aspirar à 

saúde, à grande saúde, sem destruir dentro de si essas coisas maravilhosas que sua doença constitutiva lhe proporcionou. Diríamos assim que

 

o problema do cristianismo para Nietzsche não ficou inteiramente 

resolvido - pôr de lado o cristianismo seria impossível porque seria pôr 

de lado o próprio homem; aceitá-lo, com seus antigos vícios, com seus 

muitos elementos negativos, seria igualmente impensável agora que 

sabemos nele distinguir o joio do trigo. Nietzsche sacrifica seu espírito 

no altar desse dilema excruciante.Essa seria então a explicação filosófica para a doença de Nietzsche,

 

o que se convencionou chamar de sua loucura. Nietzsche teria tido a 

ousadia de levar a um ponto de exacerbação insuportável as contradições inerentes ao dilema que havia dilacerado sua vida. A dose de

 

verdade que seu espírito havia ousado suportar havia sido uma super- 

dose que o havia fulminado. Desde então, uma vez aceita essa explicação, a doença final de Nietzsche deixa de ser um terrível acidente de

 

percurso, uma lamentável infelicidade para se transformar num acontecimento mundial, num ato filosófico inspirado no mais puro espírito da 

tragédia, como o ato de Sócrates ao esvaziar a taça de cicuta que lhe 

havia sido apresentada.

Mas nem todo mundo acredita na palavra do filósofo. É por isso 

gratificante saber que, mesmo no campo da psicologia e da psiquiatria, 

uma voz pelo menos se tenha levantado para apoiar as interpretações  

do filósofo. Louis Corman, criador de um método de análise psicológica 

que permite deduzir das feições do rosto humano os traços principais 

de seu caráter - um método que desenvolveu baseado nas pesquisas de 

Claude Sigaud, médico de Lyon, descobridor no começo do século da 

lei que rege a relação das formas corporais com o temperamento - a lei da dilatação-retração -, Louis Corman, dizíamos, conseguiu, em 1937,

 

dar ao conhecimento das relações entre aquelas formas e o caráter a 

base científica que lhe faltava até então. E para bem caracterizar essa  

nova ciência, deu-lhe o nome de morphopsychologie.

Foi esse homem profundamente envolvido em questões de psicologia e de psiquiatria quem no seu livro intitulado Nietzsche, Psicólogo da

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 Profundidade - publicado em 1982 - afirmou categoricamente que, ao 

contrário do que dizem seus detratores, não foi a loucura que condicio

nou a obra e o método de pesquisa de Nietzsche, que, inversamente, foi sua pesquisa, levada além dos limites que podia suportar um homem, a 

responsável pelo desfecho trágico de uma crise que pareceu ao mundo 

inteiro ser uma crise de loucura.

Essa conclusão a que chegou Louis Corman não foi derivada de um 

qualquer trabalho de elaboração intelectual ou filosófica, de uma qual

quer intuição que tivesse penetrado mais intimamente que os cientistas 

nas regiões profundas do pensamento nietzschiano. Corman utiliza os 

dados empíricos que sua profissão médica e sua atividade científica lhe 

proporcionam a cada passo. Em primeiro lugar, contesta o diagnóstico  

de paralisia progressiva que havia sido feito por Möbius e vários outros  

médicos e biógrafos; autoriza-o a isso sua experiência da moléstia a que 

consagrou vários anos de estudo dos quais resultou uma tese sobre a 

constituição física dos paralíticos gerais. .Segundo Corman, a doença 

tem esse nome porque, ligada a graves lesões do cérebro de origem 

sifilítica, ela determina uma paralisia de todas as funções cerebrais, 

evoluindo de maneira progressiva, em alguns anos, para um estado 

terminal de decadência geral. Verifica-se, em especial, que a lesão do 

cérebro se manifesta por um estado de demência que altera gravemente 

a memória, o julgamento, a atividade ideativa, da mesma forma que o 

controle de si próprio. Disso resulta principalmente que a imaginação 

do doente perde seus freios e se afunda num delírio, especialmente no 

delírio de grandeza.

Os primeiros médicos que trataram de Nietzsche, diz-nos Corman, 

ficaram impressionados pela sua megalomania delirante e, como naque

la época esse era considerado o sintoma mais característico da paralisia 

geral, não hesitaram, baseados nesse único sintoma, proferir seu diag

nóstico. Ora, diz-nos Corman, isso só seria válido se o delírio de Nietzs

che carregasse consigo a marca da loucura, isto é, se ele fosse incoerente 

e absurdo em virtude de um déficit grave da memória e do julgamento. 

Corman nos afirmou que tal não é o caso no que diz respeito a Nietzsche. 

Todos (ou quase todos - exceção Paul Möbius e E. F. Podach) os 

comentadores têm enfatizado o fato de que o último livro do filósofo -  

 Ecce Honro - escrito imediatamente antes da crise de Turim, embora 

tenha as marcas de uma afirmação megalomaníaca de si mesmo, não 

deixa de traduzir um pensamento vigoroso e escrito num estilo cuja

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perfeição não permite supor o menor enfraquecimento das faculdades 

mentais.

Além disso, continua Corman, Nietzsche não apresentava nenhum 

dos outros sinais habituais da paralisia geral. Ele não tinha dificuldade  

de andar, e sua palavra estava intacta, ao passo que um dos principais 

sintomas da doença é a dificuldade de articular as palavras - a dysathrria. 

Segundo Corman, quando o micróbio da sífilis chega a criar no cérebro 

lesões graves, isso redunda automaticamente numa falta de sensibilida

de no sistema de defesa do organismo, que se deixa então invadir sem 

resistência pelo agente patológico. Essa falta de sensibilidade é agrava

da pela demência, e por isso para o médico é um sintoma importante da 

paralisia geral a falta de sensibilidade dos centros nervosos, por exem

plo, o fato de o doente não reagir à ação de uma pressão. Além disso, a 

hipossensibilidade se acompanha sempre de uma grande euforia antes 

e durante a evolução mórbida. Nietzsche, entretanto, apresentava inva

riavelmente durante os exames médicos uma hiperestesia geral e foi 

durante toda a sua vida um disfórico, um hipocondríaco, vítima de um 

mal-estar contínuo. Seria, pois, surpreendente que a lesão sifilítica - se 

existisse realmente - nunca tivesse sido sentida por ele e tivesse podido, 

sem desfechar um só golpe, atingir o cérebro.

A conclusão de Corman, que julga a infecção sifilítica atribuída a 

Nietzsche mais do que duvidosa, é que Nietzsche não sofria de uma 

paralisia geral mas de uma psicose esquizofrênica, doença não demen- 

 cial  mas provocada por uma ruptura existencial com a realidade, com  

uma introversão total com refúgio e bloqueio do pensamento no ser 

interior, sem que mais nada desse pensamento possa se manifestar 

externamente.Compreende-se assim, termina Corman, que se possa considerar a 

perda de consciência de Nietzsche o desfecho quase que natural da 

tensão nervosa extrema na qual ele vivia e dúma introversão que exaltava 

cada vez mais a vida interior profunda em prejuízo de uma adaptação à 

vida exterior.

Está claro que a contribuição de Louis Corman para o esclareci

mento da questão relativa à doença de Nietzsche oferece um interesse 

apenas relativo. A glória do filósofo despontou muito antes que se 

chegasse a uma qualquer conclusão sobre os aspectos mais difíceis desse 

complicado problema. Apesar dos argumentos médicos e psiquiátricos 

do mundo da ciência, Nietzsche já havia sido consagrado por homens 

como Stefan George, Friedrich Gundolf, Ernst Bertram, Charles An-

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dler, Karl Jaspers, Robert Musil, Thomas Mann e muitos outros, de 

reputação universal. Se há um autor de quem se possa dizer que domi

nou de modo constante a atmosfera espiritual de nosso século, esse 

autor terá sido certamente Friedrich Nietzsche. Pareceria, por conse

guinte, uma coisa de somenos estarmos agora nos rejubilando com o fato 

de haver um psiquiatra, um especialista da moléstia da qual se dizia  

haver sido ele vítima, surgido agora com um depoimento em que é  

contestada a validade do diagnóstico que sua doença havia ocasionado.

Entretanto, a explicação filosófica que procuramos ter para a doen

ça de Nietzsche não interessará senão a filósofos. Para o homem da rua 

colocado diante da alternativa de Jaspers - ou Nietzsche é um homem 

doente ou tem uma significação universal a tendência mais forte é 

obviamente optar pela primeira parte da alternativa. Quando, além 

disso, chega a seu conhecimento que um certo número de psiquiatras 

não só não tiveram dúvidas sobre a loucura do filósofo mas descobri- 

ram-lhe mesmo uma origem sifilítica, o depoimento de um homem de 

ciência como Louis Corman adquire o aspecto de um ato reparador e 

necessário. Sobretudo o que há de mais importante nesse depoimento,  

e que é indispensável ressaltar aqui, é que Corman afirma categoricamente, com toda a sua autoridade de médico e psiquiatra, que, mesmo 

depois da crise de Turim, Nietzsche não sofria de uma moléstia demen- 

cial.

Mas nosso intuito não é defender Nietzsche de seus detratores. Se 

puséssemos de um lado os nomes dos que o consagraram e de outro os 

dos que o denegriram, a imensa superioridade intelectual dos primeiros 

sobre os segundos seria de tal natureza que já estaria resolvido o 

problema de defendê-lo contra quem quer que fosse. A doença final de 

Nietzsche tem para nós um interesse próprio, pois parece-nos ser o 

resultado insofismável de um ato espiritual perfeitamente compreensí

vel. Assim como Sócrates, ao esvaziar a taça de cicuta que lhe foi  

apresentada na prisão, realizou um ato espiritual que não se poderia 

desconhecer, já que teria podido facilmente se evadir como haviam 

planejado seus amigos - assim também Nietzsche, ousando pensar o que 

nenhum ser humano teria estrutura mental para pensar, ousando se 

considerar em contradição com milhares de anos sem que nem por um 

 momento perdesse a consciência da enomüdade que uma tal cofivicção 

encerrava, caminhou realmente além de todos os limites que são indis

pensáveis para se preservar a integridade do ser humano. O que é nesse  

caso importante ressaltar é que uma tal manifestação vinda de Nietzsche

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não era propriamente um sintoma de megalomania, porque resultava 

de uma avaliação não totalmente subjetiva do que havia sido sua obra. Tudo o que Nietzsche havia escrito nos seus livros anteriores só teria  

sentido - e as consagrações sucessivas que marcaram o crescimento de 

sua reputação confirmavam que o tinha - se se admitisse finalmente que 

o pensamento de Nietzsche estava efetivamente em contradição com 

milhares de anos. Tratava-se, portanto, de uma verdade diante da qual 

era difícil recuar. Que Nietzsche não o tenha feito demonstra não 

fraqueza, vaidade megalomaníaca de quem perdeu o sentido da realidade; demonstra, a meu ver, a coragem suprema de ousar pensar uma  

verdade que não poderia deixar de ser pensada, embora com a conse- qüência de que esse pensamento, ao se concretizar, se destruísse, provocando uma perda de contato com a realidade que nunca mais se 

recuperaria. É óbvio que uma tal perda foi efeito e não causa da 

pretendida manifestação megalomaníaca. Antes e durante o momento 

em que pensou uma tal verdade, Nietzsche estava seguramente de posse 

de uma das consciências mais lúcidas, mais penetrantes, mais sutis que 

é possível encontrar no ser humano. Tudo o que ele nos diz, nesse livro 

extraordinário que é o Ecce Homo, só um grande psicólogo, um genial 

psicólogo seria capaz de produzir. Ecce Homo talvez seja o livro que nos 

induz mais facilmente a ver em Nietzsche o maior psicólogo de todos os 

tempos. Entretanto, é nele que seus detratores pretendem encontrar 

indícios certos de loucura. Que houve, posteriormente à publicação do 

livro, em Nietzsche, uma perda de contato com a realidade todos nós 

sabemos; mas a perda foi posterior e não anterior à publicação do livro, e é essa diferença de tempo que separa os detratores de Nietzsche  

daqueles que, como eu, vêem na tragédia dessa perda o resultado de um ato espiritual dos mais legítimos e, por todos os títulos, admirável.

Sócrates bebeu a cicuta, Nietzsche ousou pensar o que nenhum ser 

humano suportaria ter pensado: dois atos espirituais da mais elevada 

significação, mas que a posteridade teve e continua a ter alguma dificuldade em apreciar no seu justo valor. Vê-se em geral em Sócrates um 

herói da inteligência e do caráter que aceitou com serenidade a sentença 

de morte que lhe havia sido imposta. Mas Sócrates não era apenas um 

herói da inteligência e do caráter; era sobretudo um gênio que tinha uma 

obra a realizar e que foi colhido de surpresa por uma condenação à 

morte, antes de ter podido realizá-la inteiramente. Sua atitude diante 

de uma tal condenação era tudo o que lhe restava como meios para dar 

a sua obra o desfecho que a completasse. Decidisse ele aceder ao desejo

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dos amigos e se evadir da prisão e estaria assim preservando a possibi

lidade de continuar sua obra longe de Atenas, com todos os riscos que 

a nova situação comportava. Resolvesse ele cumprir a sentença que lhe 

era imposta e sua obra chegaria a seu termo naquela prisão, no momento 

em que bebesse a cicuta. Por que alternativa se inclinava ele naqueles 

momentos cruciais que precederam sua morte? Certamente era grande 

a tentação de continuar sua obra longe de Atenas, com os recursos que 

lhe seria possível angariar. Mas a idéia de sua fuga não o seduzia-via-se 

fugindo, disfarçado com uma pele de cabra, como era costume de seus 

contemporâneos que fugiam para o exílio, e sentia o ridículo da situação; 

imaginava-se num outro lugar que Atenas, apontado como um criminoso que desrespeitara as leis de sua cidade; sentia claramente, e o dizia 

para que a posteridade o soubesse, que sua fuga permitiria talvez que  

se prolongasse por mais algum tempo sua existência física, mas causaria 

certamente um dano irreparável à sua existência espiritual. Decidido a 

morrer, restou-lhe o consolo de que, com a sua morte, dava à sua obra 

um acabamento glorioso, embora persistisse, para transformar em tra

gédia o seu dilema, o temor de que, sem ele, seus discípulos o renegas

sem e sua obra, estigmatizada por uma condenação à morte que todo 

mundo aprovava, fosse finalmente esquecida.

Tal é a razão pela qual o ato de Sócrates de esvaziar a taça de cicuta 

que lhe havia sido apresentada deve ser considerado um ato espiritual  

da maior significação, um ato no mínimo da mesma importância do que  

todos os outros de sua existência tão rica deles e tão pródiga. Foi um ato 

que certamente contribuiu em máxima parte para a imensa repercussão 

que teve sua obra. Com Nietzsche, naturalmente, temos ainda necessi

dade de um maior recuo para avaliar a repercussão que poderá ter sua 

obra, uma vez que fique bem conscientizado entre os seus inúmeros 

admiradores o fato de que Nietzsche não foi vítima da sua chamada  

loucura, mas o principal agente que a provocou. Foi ele quem, de posse 

da mais lúcida, da mais penetrante das consciências de que pode ser 

dotado o ser humano, determinou e produziu os atos que deveriam 

levá-lo à inconsciência, ao estado de alheamento do mundo em que ficou 

até morrer, não por um desejo suspeito de se perder nele, mas por um 

respeito intransigente pela verdade que lhe cabia investigar. Nietzsche 

sabia perfeitamente e o disse com todas as letras que “era da espécie  

dessas máquinas que podem explodir”. Sabia que, nas suas indagações 

sobre o que seria a verdade, estava sendo levado para caminhos infini

tamente perigosos e que conduziam à perdição. Mas prosseguia na sua

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caminhada. Não teve o instinto de se poupar, de agir com mais prudên

cia, de guardar uma distância da esfinge devoradora que insistia em 

questionar. Seu corpo, sua alma, seu ser inteiro eram usados como um 

campo de experiências que até então nunca tinham sido feitas. Tratava- se de realizar a experiência de um cristão sadio, de uma alma que não 

fosse o produto da doença, de um homem que fosse homem e se sentisse 

ao mesmo tempo inocente, não mais culpado. Era uma experiência em 

que as contradições se exacerbavam a um tal ponto, se transformavam 

num conteúdo de tal modo explosivo que não havia frasco que pudesse 

encerrá-lo. Era preciso imitar os gregos que se mostravam “superficiais  

porque eram profundos”. Imitar o sacerdote que fizera do homem um 

“animal interessante” e detestar o sentimento de culpa que criara entre 

os homens o ódio e o ressentimento. Era necessário se amar a causa e 

detestar o efeito a que ele estava fatalmente ligado por um laço indes

trutível. O que representava uma necessidade absolutamente vital e mais 

do que isso espiritual revelava-se uma total impossibilidade do ponto de 

vista racional. Nietzsche estava longe de ser um irracionalista como 

pretendem tantos comentaristas superficiais. Não existe na sua obra 

nenhuma afirmação que nos sugira ter ele o gesto fácil para repudiar os  

imperativos da razão. O que há de fascinante em sua obra é justamente 

que, mesmo nos momentos mais críticos em que nos mostra os desca

minhos a que nos pode levar a faculdade racional, seu pensamento é de 

uma clareza, de uma transparência e de uma tal persuasão que não 

hesitamos em atribuir-lhe as características da mais intacta racionalida

de. Nietzsche nunca fala do instinto ou da razão como se fossem 

entidades autônomas que se afrontassem numa luta sem tréguas, inde

pendentemente da situação particular em que cada uma dessas facul

dades pudessse se encontrar - o que é o hábito inveterado de um grande 

número de filósofos. Para ele não existe o “instinto em si” como também 

não existe a “razão em si”. No cômputo geral de sua obra, a impressão  

que fica é de uma consciência luminosa, penetrante, sutil, capaz de dar 

forma e realidade aos movimentos mais obscuros, mais caóticos das 

profundas regiões da alma, próximas dos estados corporais. Se isso é ser 

irracional, Nietzsche certamente o era. Mas o irracionalismo sempre foi 

definido como a atitude que nega à razão o poder de penetrar nas 

regiões profundas do ser humano - e o racionalismo que resta, quando 

Nietzsche é descartado, fica sendo então o racionalismo da superficia

lidade, da obviedade, das regras simplificadoras, o racionalismo que, na 

verdade, não está longe de ser uma cegueira espiritual.

 NIETZSCHE: O SOCRA TES DE NOSSOS TEMPOS 245

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Nietzsche, como acabamos de dizer, não desdenha os imperativos 

da razão. E é por isso que o dilema que o desafiou devia vitimá-lo. Mas, 

nesse episódio absolutamente decisivo de sua carreira espiritual, a 

lucidez, a razão totalmente transparente que o habitava não protagoni

zou sozinha esse último ato da tragédia - a coragem do filósofo a 

acompanhava, o destemor tão bem expresso e representado pelas pala

vras magníficas que brotaram do coração intrépido de um marechal  

francês, pouco antes de se lançar na refrega de uma batalha decisiva: 

“Treme, carcaça, mas tremerias mais ainda se soubesses aonde vou te 

levar”.

246 MARIO VIEIRA DE MELLO

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Faguet, Émile, 36

Farias, V ictor, 40

Fedorov, Nicolai, 29

Feuerbach, Ludwig, 168Fidias, 117

Fink, Eugen, 43

Förster, Elisabeth, 30, 31, 36-38, 43, 65,

141,159,178, 205, 230

Fouillée, Alfred, 32, 35

Fraenkel, Eduard, 125

Freud, Sigmund, 35, 205Friedlander, Paul, 226

Gaultier, Jules, 36

George, Stefan, 32-35,37,38,182, 241

Gersdorff, Carl von, 159, 220

Gide, André , 45

Goebbels, 40

Gilson, Étienne, 203

Goethe, Wolfgang, 34, 49, 63, 64,68,128,152

Gogh, Van, 215

Gógol, Nikolai, 92

Gorki, Máximo, 29Gren ier, Jean, 43

Groethuysen, Bernard, 36

Guérin, Michel, 43

Guilherme, imperador, 37Gundolf, Ernst, 32,34

Gundolf, Friedrich, 34,241

Halévy, Daniel, 27 n. 1-2, 36

Hartmann, Nicolai, 195

Meckel, Karl, 36

Hegel, Friedrich, 103-107, 112-177

Heidegger, Martin, 19, 20, 38, 40-43, 52,67, 69, 135, 220,224-226

Heller, Erich, 39

Heráclito, 180

Herm es, 183,184

Hildebran dt, Kurt, 32, 34

Hipocrates, 73,74

Hitler, Adolf, 38,40,42, 43, 65, 66Hofmiller, 141

Hölderlin, Friedrich, 215

Hollinrake, R. J., 44,137,141 ,176

Hom ero, 70,117

Husserl, Edmund, 194

Jacobsen , 39

Jaeger, Werner, 189

Janz, Curt Paul, 43,217

Jaspers, Karl, 36,37,52,182,183,197-200,

202, 217, 218, 220, 223, 224, 227, 231-233, 236, 242

Kaftan, 218

Kant, Immanuel, 81,191,193-195,203Kantorowicz, 32

Kaufmann, Sarah , 43

Kaufmann, Walter, 33,37,44,52,152-155,

182,186

Kierkegaard, Sören, 27-29,47,49, 97-107,109,113,130,162,177,186

Klages, Ludwig, 32, 36

Kleist, Heinrich von, 215

Klossowsky, 43

Köselitz, Heinrich, 141

Lasserre, Pierre, 36

Lessing, 121

Liechtenberger, 35

Lukács, Gyögy, 38

Lunacharski, Anatoli, 29

Lutero, M artinho, 33,77,166

Mann, Thom as, 36,242

Maomet, 159, 236

Maritain, Jacques,203

Marx, Karl, 43, 107,128

Merejkövski, Dim itri S., 29

Meysenburg, Malvida von, 25,134

Möbius, Paul J., 35, 216, 217, 221 n. 1,229-231, 240

Moises, 109

Morel, Georges, 43

Muckle, Friedrich, 36

Mueller, August, 36

Musil, Robert, 45,242

Mussolini, Benito, 37,38,65

24S MARIO VIEIRA DE MELLO

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 Napo leäo , 152, 223

 Nietzsche, Karl Ludwig, 229

 Nordau, Max, 29

Obenauer, Karl Justus, 36

Oehler, Richard, 35

Olsen Regina 98-100

Schopenhauer, Arthur, 25, 35, 55, 62, 65,

66,118,126,127,130,131,135,159-161,

168, 201, 202, 206, 224, 236, 237

Sêneca, 161

Shakespeare, William, 34,49 ,152,221

Shestov, 29

Sibbern, F. G , 102