Marta Morais Da Costa. - Literatura - Leitura e Aprendizagem

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  • 2. edio2009

    Marta Morais da Costa

    Literatura, Leiturae Aprendizagem

  • 2006-2009 IESDE Brasil S.A. proibida a reproduo, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autoriza-o por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.

    Capa: IESDE Brasil S.A.

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    Todos os direitos reservados.

    CIP-BRASIL. CATALOGAO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    C8712. ed.

    Costa, Marta Morais da, 1945-Literatura, leitura e aprendizagem / Marta Morais da Costa. 2. ed. Curitiba,

    PR : IESDE Brasil S.A., 2009. 260 p.

    Inclui bibliografiaISBN 978-85-387-0650-2

    1. Leitura Estudo e ensino. 2. Literatura infanto-juvenil. 3. Aprendizagem. 4. Professores Formao. I. Ttulo.

    09-1722 CDD: 028.9CDU: 028.5

  • Doutora e Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de So Paulo. Pro-fessora Snior da Universidade Federal do Paran (UFPR). Parecerista de revistas especializadas e consultora na rea de literatura infantil. Palestrante e professo-ra de cursos de educao continuada. Membro do Comit de Editorao da Se-cretaria de Cultura do Estado do Paran. Membro da Ctedra Unesco de Leitura da Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

    Marta Morais da Costa

  • Sumrio

    Leitura, literatura e aprendizagem ..................................... 11

    A concepo escolar da leitura............................................ 23

    O professor-leitor ..................................................................... 33

    A formao do leitor ................................................................ 45

    Leitura e compreenso ........................................................... 59

    Tpicos gerais sobre leitura ................................................................................................... 61

    Tpicos especficos sobre leitura ......................................................................................... 63

    Anlise para a compreenso ................................................................................................. 65

    Macroprocessos ......................................................................................................................... 67

    Leitura e responsabilidade social ....................................... 77

    A contao de histrias .......................................................... 87

  • A ilustrao do livro infantil ................................................101

    A importncia dasilustraes no livro para crianas ..................................................101

    As diferentes funesda ilustrao no livro infantil ....................................................103

    Funes da ilustrao ............................................................................................................104

    A imagem em outros suportes ...........................................................................................107

    Por uma pedagogia do olhar ..............................................................................................109

    O jornal em sala de aula .......................................................117

    Histria da literatura infantil...............................................127

    A literatura infantil no Brasil ...............................................139

    Poesia e msica .......................................................................149

    Tipologia dos textos literrios: as narrativas da tradio ......................................................163

    Contos de encantamento ....................................................175

  • Outras formas de narrativa .................................................187

    O trabalho com a poesia infantil .......................................199

    Algumas caractersticas da poesia infantil .....................................................................199

    A importncia da poesia infantil ........................................................................................201

    Comentrios sobre algunspoemas da literatura infantil brasileira .......................202

    Sugestes de atividades com poemas na escola.........................................................207

    A biblioteca escolar ...............................................................217

    A avaliao dos projetos de formao de leitores ...... 229

    Gabarito .....................................................................................239

    Referncias ................................................................................249

    Anotaes .................................................................................259

  • Apresentao

    A linguagem, que permite ao ser humano expressar-se e comunicar-se, ajuda a moldar a cultura, as relaes sociais e registrar a histria. Para que ela possa cumprir plenamente essas aes, necessita intercmbio constante enquanto se consumam as relaes mantidas por sujeitos competentes em sua recepo e produo.Sujeitos dotados de linguagem esto continuamente agindo na produo de textos e em sua leitura. Para que a interao se torne cada vez mais eficaz e signifi-cativa, a escola assumiu a responsabilidade pela preparao e qualificao desses falantes-escritores-ouvintes-leitores.A literatura tem sido ao longo da histria um texto que serve de parmetro para avaliar o estado de leitura de uma pessoa, por ser um texto que usa os recursos da lngua de maneira potencializada, isto , alm do uso cotidiano para comuni-cao e informao. Principalmente, porque procura concentrar muitos sentidos em uma s frase, criando nveis de conotao. Por isso, conhecer os textos, saber compreender o que dizem em suas vrias camadas de sentido e, sobretudo, trans-form-los em ao e atitudes, constituem efeitos benficos da boa literatura.A escola tem os instrumentos, os profissionais competentes e a misso de tornar efetivos esses propsitos da literatura. No entanto, no tem cumprido a conten-to essa incumbncia. Por esta razo, a educao continuada mostra-se cada vez mais necessria para qualificar os professores, que qualificaro seus alunos.Este livro pretende servir de auxlio nesse trabalho. Ele trata de questes que se relacionam s trs reas de conhecimento: a leitura, a literatura e a aprendiza-gem. Na rea da leitura, h vrias aulas tratando desde os aspectos da compreen-so lingstica at a leitura de textos de outras linguagens no verbais. Tambm estuda a literatura infantil, desde a origem desse gnero at a tipologia dos textos literrios. No que respeita aprendizagem, em todas as aulas h a preocupao com o fazer docente. So muitas as orientaes e sugestes de projetos e ativi-dades, para que a escola e o professor possam promover o encontro dos alunos com a leitura e a literatura.Assim, acreditamos estar contribuindo para um pas com mais leitores e com mais intenso esprito crtico e criativo.

    Marta Morais da Costa

  • ObjetivosDiscutir o valor da leitura para a sociedade. Expor modos de enten-

    der o ato de ler como criao de sentidos e como crescimento pesso-al. Averiguar os modos como a linguagem se organiza no texto e os modos de ler a denotao e a conotao.

    So muitas as questes que afetam o tema da leitura num pas de edu-cao problemtica, como o Brasil. Os professores, encarregados da for-mao de leitores, atividade que atravessa todos os nveis da escolaridade, trabalham sob o peso dessas muitas perguntas, algumas de resposta in-completa, outras, ainda sem resposta.

    Quando falamos que a formao do leitor atravessa todos os nveis do sistema escolar brasileiro, estamos responsabilizando todos os agentes envolvidos com a escola, desde o ajudante de cozinha, o faxineiro, a se-cretria, a supervisora, a direo, os estudantes e todos os docentes, in-dependentemente de sua formao do professor de Portugus ao de Matemtica, do professor de Artes ao de Educao Fsica.

    Pensando nesse envolvimento de todo o corpo escolar, com a promo-o da leitura, que chegamos a uma primeira abordagem, de ordem re-flexiva: que funes so atribudas leitura pelas pessoas quando pensam nessa matria?

    Experimente indagar a colegas, parentes, vizinhos, aos pais de seus alunos e aos estudantes: para que serve a leitura? As respostas daro a voc um melhor panorama das expectativas que a sociedade alimenta a respeito do assunto. Com esses dados, voc poder organizar melhor sua atuao docente e prever problemas no encaminhamento da formao do aluno-leitor.

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    Voc receber como resposta desde a crena de que a leitura instrui, infor-ma, leva ao conhecimento, at aquelas de ordem prtica, como, por exemplo, a leitura me torna independente, pois posso saber das coisas sem precisar do auxlio de outros, ou a leitura me permite sair da situao de pobreza, porque posso conseguir um trabalho melhor, ou, ainda, a leitura me d segurana, ou permite que eu me relacione melhor com os outros. Provavelmente, nenhuma resposta trar um valor negativo, descartvel, de repulsa leitura. As pessoas podem alegar que ela difcil, chata, demorada, mas jamais acusaro seus pro-fessores de lhes terem ensinado o suprfluo quando foram alfabetizados; isto , quando foram, mesmo que minimamente, credenciados para ler.

    Desde que ns, professores, passamos a ter certeza do valor que a leitura re-presenta para os mais diversos sujeitos receptores, investir na boa qualidade da formao dos leitores apenas uma consequncia. Ento, vamos avaliar, neste mdulo, os diferentes aspectos da leitura para que, conhecendo o campo de atuao profissional, possamos desenvolver melhor, e com melhores frutos, o trabalho docente.

    Segundo Clia Abicalil Belmiro (apud EVANGELISTA et al., 1999, p. 121-122), possvel resumir um pensamento sobre as funes e o papel do leitor como

    [...] a leitura ser mediadora das relaes entre o aluno e o mundo e, a partir dela, ele poder interferir na realidade e reconstru-la. Dessa forma, a ideia de ferramenta, como objeto que permite agir sobre o mundo, transportada para a leitura como instrumento, recurso para a expresso e, como tal, basta dominar seu cdigo j que sua tcnica superada pela perspectiva da leitura como um modo de organizar e constituir o conhecimento, estando a servio, pois, da construo de um mundo de referncias que do sentido existncia humana. A atividade de leitura posta como um ato poltico.

    Dessa forma, fica clara qual a funo que o leitor pode e deve assumir na relao com o conhecimento: na medida mesma em que o leitor suposto pelo autor interfere no ato de produzir textos, o ato de leitura envolve um conjunto de histrias de leituras do texto e do leitor, apontando para o ineditismo de sentidos renovados.

    Por muito tempo, a funo do leitor reduzia-se a interpretar uma suposta vontade, expressa pelo autor no texto sob anlise. Era muito frequente na escola a pergunta: O que o autor quis dizer neste texto? Hoje, as teorias da recepo de textos deslocam a importncia do papel exercido pelo sentido e significado do texto para o receptor, isto , o leitor. Considera-se que um livro fechado no existe, no tem vida. Quem lhe d fora e sobrevivncia a leitura, ao prati-cada por um leitor. Dessa forma, o leitor deixa de ocupar um papel secundrio, subordinado vontade do autor e/ou do texto, para ocupar o papel principal de fonte de sentidos. Um texto que no pode ser compreendido, tambm no existe. E as palavras de um texto vo recebendo os sentidos que um leitor, mo-

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    tivado por elas, lhes atribui. Mais ainda, os estudos recentes de Lingustica e da Anlise do Discurso afirmam que os significados das palavras so flutuantes e variveis. Dependem do contexto cultural e pessoal, das palavras que compem o restante do texto, da experincia de vida e leitura do leitor e assim por diante. O resultado que o sentido flutua e, ao ler, o sujeito leitor projeta, sobre a ma-terialidade das palavras, significados que se alteram de leitor para leitor nem sempre com muita diferena, mas sempre com nuances, com pequenas distin-es, frutos da individualidade de cada leitor.

    Essa nova posio terica vem alterar substancialmente o trabalho escolar com a leitura, que passa a valorizar muito mais a fora e a capacidade do leitor de construir sentidos diferenciados para os textos que l.

    Experimente ler o mesmo texto em situaes diferentes de sala de aula. Ou em momentos diferentes do ano. Ou em anos diferentes. O texto ser o mesmo, mas as interpretaes de um mesmo leitor sero, fatalmente, diferentes. Esse simples teste comprova a mobilidade dos sentidos e a vitalidade dos textos. Vi-talidade, porque h uma renovao permanente na leitura de textos, o que de-termina a dinamicidade no processo de leitura e a impossibilidade de declarar que uma interpretao definitiva e/ou fechada.

    Diz Eni Orlandi (1996, p. 9) que [...] a linguagem sempre passvel de equ-voco. [...] os sentidos no se fecham, no so evidentes, embora paream ser. Podemos entender, pois, que qualquer texto tem um sentido em aberto. Cabe ao leitor selecionar os sentidos, a partir de sua experincia com as palavras, e montar um conjunto coerente que produza a interpretao que satisfaa aos objetivos colocados no incio da leitura.

    diferente buscar um sentido quando se obrigado a extrair do texto pala-vras isoladas (adjetivos, por exemplo) ou quando o aluno procura responder a perguntas de respostas bvias como: Quantos porquinhos o Lobo Mau comeu? Por que a histria se intitula O Gato de Botas? E assim por diante.

    Cabe ao professor promover diferentes, instigantes e polmicas perguntas, sobre diferentes perspectivas do texto, para que os alunos possam exercitar sua capacidade de compreenso.

    Cumpre lembrar, ainda, que o professor deve ter clareza quanto concepo de texto que o leva a perguntas e a exerccios de leitura. ngela Kleiman (2000, p. 17-23) destaca cinco delas:

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    1.) O texto como conjunto de elementos gramaticais

    Neste caso, o professor utiliza o texto para desenvolver uma srie de ativida-des gramaticais, analisando, para isso, a lngua enquanto um conjunto de clas-ses e funes gramaticais, frases e oraes. H um isolamento do texto, uma fragmentao e um desvio de funo, uma vez que a compreenso dos sentidos gerais, da viso de mundo expressa e, consequentemente, de uma leitura signi-ficativa para o aluno ficam perdidas.

    Embora o livro didtico se sirva com frequncia dessa concepo, ela contri-bui para o desinteresse e o desestmulo do leitor para a leitura, pois um texto muito mais do que um conjunto de fatos gramaticais. Ele visa comunicar ideias, provocar efeitos no leitor, registrar acontecimentos ou pensamentos.

    2.) O texto como repositrio de mensagens e informaes

    ngela Kleiman critica uma concepo muito frequente no trabalho com a leitura. Essa crtica, a de que o texto um depsito de informaes, veiculadas pelas palavras. O trabalho do leitor seria buscar o sentido das palavras, uma a uma, para chegar cumulativamente mensagem.

    Tanto a pergunta Qual a mensagem do texto? quanto a ordem Vamos ler palavra por palavra para depois interpretar so questes equivocadas do ponto de vista terico. Essa atitude tem tudo para produzir um leitor passivo e acomodado. Melhor ainda, um leitor insatisfeito, porque se descobre incapaz de chegar ao todo da significao do texto, porque somente consegue trabalhar com partes e fragmentos.

    A autora adverte:

    Parte constitutiva do ensino de leitura consiste em conscientizar o aluno da intencionalidade do autor, refletida na escolha das palavras. Substituir aquela palavra escolhida pelo autor por um sinnimo, que mais ou menos mantm o sentido original tencionado, vai contra essa conscientizao. (KLEIMAN, 2000, p. 20)

    Por isso, evite sair falando em minha leitura, porque minha leitura, sem antes promover a compreenso do texto autoral.

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    3.) A leitura como decodificao

    ngela Kleiman descreve essa atividade como uma srie de automatismos de identificao e pareamento das palavras do texto com as palavras idnti-cas, numa pergunta ou comentrio. Para atingir o cumprimento dessa tarefa, o aluno deve, por exemplo, responder a uma pergunta sobre alguma informao do texto; o leitor somente precisa de um passar de olhos pelo texto, procu-ra de trechos que repitam o material j decodificado da pergunta. Essa ativi-dade em nada modifica a viso de mundo do aluno, sendo, portanto, pobre e desestimulante.

    A solicitao de sinnimos e antnimos descontextualizados representa bem a imagem desvalorizada do texto. Ela apenas um dicionrio, isto , a listagem de palavras sem concatenao, sem coeso.

    A linguagem no funciona dessa maneira isolada: ela associativa, uma rede de sentidos. Erra, mais ainda, o professor ao deixar de investigar com maior pro-fundidade o pensamento expresso no texto. Em lugar desse questionamento, o professor transfere ao aluno a capacidade de opinar: sem que o estudante tenha sequer compreendido o texto, j est o professor a perguntar-lhe a opinio, o posicionamento crtico, a concordncia ou discordncia com o autor.

    4.) A leitura como avaliao

    Igualmente negativa a atitude de transformar a leitura, principalmente aquela em voz alta, em forma de avaliao de compreenso ou, mesmo, da per-feita ou imperfeita evoluo na dico das palavras. Outra finalidade, a de avaliar se o aluno realmente leu silenciosamente o texto indicado, por meio de uma prova ou questionrio, fica muito distante da boa inteno de formar o leitor, de incentivar a leitura. Resumos, relatrios e preenchimentos de fichas repre-sentam uma reduo da atividade a uma avaliao desmotivadora, diz ngela Kleiman (2000, p. 23).

    A leitura medida por pginas, realizada sem objetivos, para atender ordem do professor ou cobrana, age negativamente sobre o aluno e impede que o texto seja significativo para ele, para sua aprendizagem, para sua vida.

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    5.) A integrao numa concepo autoritria de leitura

    As quatro funes criadas pela escola para justificar o trabalho com a leitura produzem enganos srios. Em primeiro lugar, a crena de que h apenas uma maneira de abordar o texto e somente uma interpretao. Em segundo, a de que o texto se reduz ao conhecimento do vocabulrio. Em terceiro, a de que o professor produz uma leitura autorizada, isto , a nica verdadeira.

    O importante, segundo Kleiman (2000), ter em mente que qualquer texto, oral ou escrito, tem uma intencionalidade. Visa informar, persuadir, influenciar o interlocutor e somente o far na medida em que o leitor possa interagir com ele, confrontando os objetivos e intenes do autor com as suas prprias.

    Podemos concluir, com Maria Bernadete Abaurre (et al., 1998, p. 10), que:

    Se o objetivo do trabalho com a leitura de textos a constituio de leitores com uma gama variada de habilidades de leitura, de leitores capazes de ler para informar; para estudar e entender o ponto de vista de um autor; para compar-lo com o de outros autores; para buscar e construir novos conhecimentos; para fruir, apreciar e refletir sobre o contedo, a estrutura textual ou os recursos de linguagem utilizados; para relacionar o texto lido com outros; para criticar aspectos do texto ou da realidade que retrata etc., o aluno deve ser exposto a textos reais (e no artificialmente construdos para enfatizarem um problema de ordem gramatical ou temtico).

    Texto complementar

    O processo de leitura(COSSON, 2006, p. 28-41)

    Alberto Manguel, em Uma Histria da Leitura (1996), chama a ateno para o fato de que a leitura no est restrita s letras impressas em uma pgina de papel. Os astrlogos leem as estrelas para prever o futuro dos homens. O msico l as partituras para executar a sonata. A me l no rosto do beb a dor ou o prazer. O mdico l a doena na descrio dos sintomas do paciente. O agricultor l o cu para prevenir-se da chuva. O amante l nos olhos da amada a traio. Em todos esses gestos est a leitura, ou, como diz o autor, todos eles compartilham com os leitores de livros a arte de decifrar e traduzir signos. Essa expanso do significado da leitura encontra paralelo no extraordinrio interesse que ela tem despertado em diversas reas. Hoje temos no apenas

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    uma histria da leitura, como tambm uma sociologia da leitura, uma antro-pologia da leitura e uma psicologia da leitura, alm das reas que tradicional-mente se ocupavam do tema como a pedagogia, a lingustica e os estudiosos da literatura e da linguagem em geral. O campo da leitura se expandiu de tal maneira que no se pode mais ter a pretenso de conhecer todas as suas ramificaes.

    De modo didtico, tomando-se a leitura como um fenmeno simultanea-mente cognitivo e social, pode-se reunir as diferentes teorias sobre a leitura em trs grandes grupos, conforme a sntese feita por Vilson J. Leffa, em Pers-pectivas no Estudo da Leitura: texto, leitor e interao social (1999). O primei-ro grupo est centrado no texto. Nesse caso, ler um processo de extrao do sentido que est no texto. Essa extrao passa necessariamente por dois nveis: o nvel das letras e palavras, que esto na superfcie do texto, e o nvel do significado, que o contedo do texto. Quando se consegue realizar essa extrao, fez-se a leitura. As dificuldades da leitura esto ligadas aos proble-mas da extrao, ou seja, a ausncia de habilidade do leitor em decifrar letras e palavras, que o impede de passar de um nvel a outro ou ao grau de trans-parncia do texto. a leitura entendida como um processo de decodificao, por isso a nfase est centrada sobre o cdigo expresso do texto. O domnio do cdigo a condio bsica para a efetivao da leitura, j que feita a de-codificao o leitor ter apreendido o contedo do texto. Os crticos dessas teorias, chamadas ascendentes porque partem do texto para o leitor e das letras para o significado do texto, argumentam que elas esto equivocadas na nfase que do ao processamento linear da leitura. Ler bem mais do que seguir uma linha de letras e palavras. Tambm no se restringe a uma decodi-ficao, nem depende apenas do texto.

    O segundo grupo toma o leitor como centro da leitura. So as teorias de abordagem descendentes que a definem como o ato de atribuir sentido ao texto, ou seja, partem do leitor para o texto. Desse modo, ler depende mais do leitor do que do texto. o leitor que elabora e testa hipteses sobre o que est no texto. ele que cria estratgias para dizer o texto com base naquilo que j sabe sobre o texto e o mundo. Por isso, a leitura depende mais daquilo que o leitor est interessado em buscar no texto do que nas palavras que esto ali escritas. Tambm mais importante do que o conhecimento do cdigo do-minar as convenes da escrita. So elas que permitem ao leitor manipular os textos, inclusive prevendo o sentido deles. O deslocamento de foco do texto para o leitor positivo porque chama a ateno para o ato de ler, mas se perde

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    quando no considera seus resultados. Essa a crtica principal que se faz a esse grupo de teorias da leitura. Ao privilegiar o leitor no processo da leitura, essas teorias terminam por ignorar que o sentido atribudo ao texto no um gesto arbitrrio, mas sim uma construo social. Alm disso, se as antecipa-es que o leitor faz ao ler os textos so importantes, elas podem igualmente lev-lo a ignorar o significado do texto, lendo apenas aquilo que deseja ler.

    As teorias consideradas conciliatrias so aquelas que compem o terceiro grupo. Para elas, o leitor to importante quanto o texto, sendo a leitura o re-sultado de uma interao; trata-se, pois, do dilogo entre autor e leitor media-do pelo texto, que construdo por ambos nesse processo de interao. O ato de ler, mesmo realizado individualmente, torna-se uma atividade social. O sig-nificado deixa de ser uma questo que diz respeito apenas ao leitor e ao texto para ser controlado pela sociedade. A leitura o resultado de uma srie de convenes que uma comunidade estabelece para a comunicao entre seus membros e fora dela. Aprender a ler mais do que adquirir uma habilidade, e ser leitor vai alm de possuir um hbito ou atividade regular. Aprender a ler e ser leitor so prticas sociais que medeiam e transformam as relaes huma-nas. Certamente por entender que essas teorias, que tambm subscrevemos em nossa reflexo, incorporam as duas anteriores, Leffa no traz as crticas que elas tm sofrido. Todavia, no difcil perceber que quando tomamos a leitura como prtica social, corremos o risco de perder a individualidade de cada leitura, o que nos leva de volta ao texto.

    Na verdade, esses trs modos de compreender a leitura devem ser pensa-dos como um processo linear. A primeira etapa, que vamos chamar de ante-cipao, consiste nas vrias operaes que o leitor realiza antes de penetrar no texto propriamente dito. Nesse caso, so relevantes tanto os objetivos da leitura, que levam o leitor a adotar posturas diferenciadas ante o texto no lemos da mesma maneira um poema e uma receita de bolo quanto os ele-mentos que compem a materialidade do texto, como a capam, o ttulo, o nmero de pginas, entre outros. A leitura comea nessa antecipao que fazemos do que diz o texto. A segunda etapa a decifrao. Entramos no texto atravs das letras e das palavras. Quanto maior a nossa familiaridade e o domnio delas, mais fcil a decifrao. Um leitor iniciante despender um tempo considervel na decifrao e ela se configurar como uma mura-lha praticamente intransponvel para aqueles que no foram alfabetizados. Um leitor maduro decifra o texto com tal fluidez que muitas vezes ignora palavras escritas de modo errado e no se detm se desconhece o sentido

    Literatura, Leitura e Aprendizagem

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    preciso de uma palavra, pois a recupera no contexto. Alis, usualmente nem percebe a decifrao como uma etapa do processo da leitura. Denominamos a terceira etapa de interpretao. Embora a interpretao seja com frequn-cia tomada como sinnimo de leitura, aqui queremos restringir seu sentido s relaes estabelecidas pelo leitor quando processa o texto. O centro desse processamento so as inferncias que levam o leitor a entretecer as palavras com o conhecimento que tem do mundo. Por meio da interpretao, o leitor negocia o sentido do texto, em um dilogo que envolve autor, leitor e comu-nidade. A interpretao depende, assim, do que escreveu o autor, do que leu o leitor e das convenes que regulam a leitura em uma determinada socie-dade. Interpretar dialogar com o texto tendo como limite o contexto. Esse contexto de mo dupla: tanto aquele dado pelo texto quanto o dado pelo leitor; um e outro precisam convergir para que a leitura adquira sentido. Essa convergncia d-se pelas referncias cultura na qual se localizam o autor e o leitor, assim como por fora das constries que a comunidade do leitor impe ao ato de ler. O contexto , pois, simultaneamente aquilo que est no texto, que vem com ele, e aquilo que uma comunidade de leitores julga como prprio da leitura.

    Dica de estudo.

    O site traz informaes e artigos sobre aspectos diversos da leitura, clas-sificados por assunto no menu. importante, tambm, como indicador para projetos de pesquisa na rea da leitura. Entrevistas completam as in-formaes sobre a importncia do livro e da leitura.

    Atividades1. Faa um levantamento das funes da leitura em sua experincia pessoal.

    Procure estabelecer quais os critrios que cada uma delas segue e exemplifi-que com livros lidos.

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    2. Observe o modo como voc leu este texto: compreendeu-o todo? No que voc encontrou maior dificuldade? Essa observao faz com que voc reflita sobre a questo de seu modo de ler e da importncia dessa atividade cumu-lativa. Escreva um pequeno texto a respeito.

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  • ObjetivosRefletir sobre o modo como a escola tem letrado seus alunos e de-

    monstrar as possibilidades de transformao que o trabalho pedaggico pode trazer para o processo de aprender a ler e de continuar sendo leitor.

    A aprendizagem da lngua portuguesa escrita responsabilidade atri-buda pela sociedade escola, que vem cumprindo esse papel, em es-pecial aps o Iluminismo (sculo XVIII), perodo em que nasce a escola burguesa que herdamos e que continua at hoje. Com maior ou menor eficcia, a escola tem alfabetizado o povo brasileiro: ficam fora das estats-ticas os atuais 8% de analfabetos absolutos e as crianas alfabetizadas em casa pela famlia.

    A atuao da escola na formao de leitores de primeiras letras pode resultar acrscimo significativo de valores humanos, sociais, econmicos, cientficos, filosficos, sociolgicos, psquicos, artsticos e tantos outros. A iniciao da criana nas habilidades de leitura abre-lhe portas ao conhe-cimento. A competncia de leitura, adquirida nas trocas que, enquanto leitor, ela realiza, aperfeioa-se ao longo da vida e pode mant-la conec-tada toda produo do pensar, agir e criar, realizada pela humanidade e registrada em formato de textos escritos. A fora dessa aprendizagem constri conscincia e atitudes eficazes ao longo da vida.

    Por essas razes, a necessidade de realizar uma alfabetizao eficaz tor-na-se imperativo educacional, do qual a escola no pode fugir. So inme-ras as circunstncias que interferem no cumprimento desse objetivo, mas alguns cuidados podem facilitar a aprendizagem e auxiliar a formao de leitores competentes.

    O conceito de alfabetizao ampliou-se de mera capacidade de firmar ou de ler uma mensagem simples para leitura de novo material e recopi-lao de novas informaes a partir de um material, conforme Resnick e Resnick (apud COLOMER; CAMPS, 2002, p. 16).

    A concepo escolar da leitura

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    Na atualidade, h um novo conceito relativo formao inicial do leitor e que se denomina letramento, termo que, segundo Magda Soares trata no apenas da aquisio das habilidades de leitura e escrita, mas diz respeito apropriao da escrita e das prticas sociais a ela relacionadas, nos vrios textos que circulam no cotidiano da vida social (SOARES, 1999, p. 32).

    A criana j traz para o ambiente escolar a conscincia da importncia do desempenho lingustico oral, para a obteno de uma melhor comunicao e in-terao com os demais membros da comunidade em que se insere. Portanto, j conhece algumas regras bsicas da linguagem, que a constituem como sujeito e como participante de relaes com outros sujeitos. J domina intuitivamente uma srie de normas e procedimentos lingusticos que a auxiliaro a penetrar no reino das palavras em sua representao escrita.

    O professor sabe que:

    A lngua, produto do trabalho de sujeitos scio-histrico-culturalmente marcados, [guarda] as marcas da histria da sua constituio, visveis nas variedades lingusticas que convivem no espao (variedades marcadas pela classe/grupo social, pela origem regional, pelo contato maior ou menor com a escrita, pela prpria subjetividade) e que se sucedem no tempo (variedades diacrnicas, marcas da variao da linguagem na linha do tempo, e que se pode encontrar convivendo no mesmo espao, quando, por exemplo, se compara a linguagem usada pelas geraes mais velhas com a linguagem dos jovens). (ABAURRE et al., 1998, p. 8)

    nessa diversidade e mobilidade da lngua, em que a criana j se encontra inserida, que se dar sua iniciao na representao escrita que, segundo os au-tores, representa a linguagem sem ser dela transcrio. Isto , embora esteja ligada ao oral, a escrita apresenta-se com leis prprias que devem ser exercidas e exercitadas para que a aprendizagem se concretize.

    Alm do mais, o falante de uma modalidade de lngua, seja ela qual for, tanto ser mais competente quanto mais habilidoso em distinguir onde, quando e de que maneira poder servir-se dessa ou de outra qualquer modalidade. A capa-cidade de adequao condio inerente ao falante inteligente e eficaz. A alfa-betizao levar em conta, portanto, a variedade da lngua oral e escrita como princpio bsico de aprendizagem e desempenho.

    Assim como para aprender a produzir textos, a criana deve dominar o cdigo da escrita, ter o que dizer, ter razes para dizer, e ter claro um interlocu-tor (ABAURRE, 1998, p. 22), ainda segundo os autores do artigo anteriormente citado, a leitura de textos escritos por outros tem determinaes semelhantes.

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    A leitura no pode ser cartilhesca, isto , exercida sobre textos construdos com a finalidade de servir de apoio a atividades e exerccios de lngua, que tem uma construo fragmentada, de frases sem coerncia e sem sentido, constru-das como narrativas primrias, que nada dizem ao imaginrio infantil, nem res-pondem s expectativas desse pblico.

    muito frequente o professor de Sries Iniciais servir-se de textos alheios, utilizando os livros didticos. Sobre eles, recai a crtica da padronizao e da fa-cilitao, uma vez que so criados e executados para atender crianas-padro, sem levar em conta as diferenas individuais, sociais e regionais. Tambm por demais conhecida a padronizao das informaes e exerccios, muitas vezes sem o devido apoio terico, numa predileo por jogos e brincadeiras que deixam em segundo plano a aprendizagem mais sistemtica e cientfica.

    Essa concepo ldica transfere-se para os textos paradidticos, em especial, para a produo denominada literatura infantil. Isto , na maioria, textos ficcio-nais e poticos, com destinatrio evidente e definido: a criana. Em consequn-cia, esses textos assumem um tom cartilhesco de textos curtos, paradidticos, com muita ilustrao redundante e explicativa, personagens estereotipados, co-micidade rasteira, em total desacordo com a potencial curiosidade e desejo de renovao, inerentes ao modo de ser infantil.

    Essa perspectiva restritiva da leitura literria perturbada, ainda, pela limita-o prpria do sistema escolar porque

    [...] a escola uma instituio em que o fluxo das tarefas e das aes ordenado atravs de procedimentos formalizados de ensino e de organizao dos alunos em categorias (idade, grau, srie, tipo de problema etc.) que determinam um tratamento escolar especfico (horrios, natureza e volume de trabalho, lugares de trabalho, saberes a aprender, competncias a adquirir. Modos de ensinar e de aprender, processos de avaliao e de seleo etc.). a esse inevitvel processo ordenao de tarefas e aes, procedimentos formalizados de ensino, tratamento peculiar dos saberes pela seleo, e consequente excluso de contedos, pela ordenao e sequenciao desses contedos, pelo modo de ensinar e de fazer aprender esses contedos a esse processo que se chama escolarizao, processo inevitvel, porque da essncia mesma da escola, o processo que a institui e a constitui. (SOARES, 1999, p. 21)

    Se, por um lado, a escolarizao da Literatura Infantil rouba-lhe o carter contestador e libertrio, prprio da literatura, por outro, a escola mostra-se o ambiente de trabalho propcio para o desenvolvimento de competncias de lei-tura, que vo desde o texto mais simples (cartilhesco) at o mais complexo, o literrio e o cientfico.

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    A presena da literatura entre as tarefas da escola produz um contnuo ques-tionamento a respeito de estratgias para levar os alunos aos textos, sobre tc-nicas de leitura, diversidade dos textos escritos e desenvolvimento de estreitas relaes de curiosidade, desempenho e satisfao, no que se refere literatura. Atualmente, os professores se preocupam em descobrir modos de incentivar a leitura, muito alm das tcnicas de alfabetizao, uma vez que buscam criar uma nova viso do trabalho com os textos.

    Jean Foucambert (1998, p. 12) localiza o problema da sociedade contempo-rnea mais no iletramento, do que no analfabetismo, uma vez que, pelo menos nos pases industrializados, h um avano na escolaridade universalizada, mas um crescimento assustador nos ndices de analfabetismo funcional, isto , na perda, em poucos anos, da capacidade do leitor/escritor de fazer at mesmo uma simples correspondncia entre o oral e o escrito.

    Essa situao define-se como iletramento, isto , a incultura da escrita o desconhecimento tanto do que ela produz e transforma, como dos meios de ter acesso a ela e dela participar(FOUCAMBERT, 1998, p. 13).

    Os ndices de analfabetismo funcional tm crescido rapidamente no Brasil. Fatores diversos podem ser apontados, desde a formao deficiente no perodo escolar, a baixa escolaridade, o desinteresse pela leitura na sociedade (causado sobretudo pelo desprestgio da escrita e do magistrio) a concorrncia entre a leitura e todos os meios de comunicao de massa, a onipresena do computa-dor, a desvinculao criada entre o diploma e o sucesso em diversas carreiras, a criao artificial de dolos semialfabetizados, o preo do papel e dos insumos necessrios impresso, que encarecem demasiadamente o livro, polticas equi-vocadas de incentivo leitura e muitos outros.

    Continua Foucambert (1999, p. 55), buscando explicar o porqu do iletra-mento disseminado na sociedade:

    O que se faz aos indivduos criana ou adulto, operrio ou professor, analfabeto ou alfabetizado gil para que eles sejam to resignados com que as coisas continuem como esto, to persuadidos de que elas no poderiam ser diferentes, de que no h nada por compreender, nada por mudar, nada por criar de diferente, nada por buscar do outro lado do espelho para que o mundo se transforme? O ato da leitura, diz Robert Escarpit, sua motivao quase sempre uma insatisfao, um desequilbrio provocado por causas inerentes natureza humana (brevidade, fragilidade da existncia) pelo confronto entre indivduos (amor, dio, piedade) ou pelas estruturas sociais (opresso, misria, medo do futuro, tdio). Em suma, ele um recurso contra o absurdo da condio humana.

    Literatura, Leitura e Aprendizagem

  • A concepo escolar da leitura

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    Essa explicao, que se baseia numa interpretao socioideolgica da leitura, faz sobressair a importncia da atuao do professor para auxiliar a criao de uma sociedade diferente e menos resignada. Desloca o foco de um trabalho de formao do leitor de esquemas de alfabetizao para exerccios e vivncias de letramento.

    Muito tem-se falado, na educao contempornea, da necessidade de fazer interagir as diferentes reas do conhecimento. Esse processo, denominado inter-disciplinaridade, vem sendo defendido pelos mais importantes educadores do sculo (Paulo Freire, Vygotsky, Emlia Ferrero, Ivani Fazenda). Tem determinado comportamentos e atividades ao longo dos ltimos anos, envolvendo todos os parceiros do sistema na busca por melhorar e aperfeioar o conhecimento e as prticas educativas. Mas, o solo epistemolgico comum a todos esses conheci-mentos encontra-se na leitura, o que a configura numa prtica transdisciplinar, que mantm unidas e coesas todas as cincias e todo o sistema que delas trata, em especial o escolar.

    Segundo Celani (1998, p. 133), podemos definir assim a postura transdisci-plinar:

    Novos espaos de conhecimento so gerados, passando-se, assim, da interao das disciplinas interao dos conceitos e, da, interao das metodologias. A transdisciplinaridade realiza-se em uma problemtica transversal, atravs e alm e dissolve-se em seu objeto.

    Dessa forma, a transdisciplinaridade converteu-se no fio que enlaa e d so-lidez ao conhecimento. No importa qual o suporte que a veicula (o livro, o hi-pertexto, os textos culturais no verbais), a leitura entendida enquanto uma atividade de construo de sentido (hermenutica, portanto).

    A Histria, a Filosofia, a Arquitetura, a Informtica, a Medicina, a Psicologia, a Educao, a Literatura, a Administrao, a Gesto de Negcios, o Direito, enfim, todos os campos do saber, dos mais informatizados aos mais estreitamente de-pendentes da tecnologia do livro, todos eles tm na leitura a forma de aprender a refletir e conhecer. Esto, portanto, indissoluvelmente ligados pela interpreta-o e pelo atuante papel do leitor. Da que a leitura se converte numa disciplina nova, que atravessa todas as demais, uma transdisciplina, um novo campo do saber cientfico.

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    A prtica da leitura(POSSENTI, 2006, p. 91-93)

    Antes de qualquer sugesto metodolgica, preciso conceituar leitura dentro do quadro esboado at aqui, sem trair a concepo de linguagem que subjaz a essas consideraes iniciais.

    Para Marisa Lajolo (1982ab, p. 59), Ler no decifrar, como num jogo de adivinhaes, o sentido de um texto. , a partir do texto, ser capaz de atribuir-lhe significado, conseguir relacion-lo a todos os outros textos significativos para cada um, reconhecer nele o tipo de leitura que seu autor pretendia e, dono da prpria vontade, entregar-se a esta leitura, ou rebelar-se contra ela, propondo outra no prevista.

    Creio no trair a autora citada se disser que a leitura um processo de interlocuo entre leitor/autor mediado pelo texto. Encontro com o autor, au-sente, que se d pela sua palavra escrita. Como o leitor, nesse processo, no passivo, mas agente que busca significaes, o sentido de um texto no jamais interrompido, j que ele se produz nas situaes dialgicas ilimitadas que constituem suas leituras possveis (AUTHIER-REVUZ, 1982, p. 104).

    O autor, instncia discursiva de que emana o texto, se mostra e se dilui nas lei-turas de seu texto: deu-lhe uma significao, imaginou seus interlocutores, mas no domina sozinho o processo de leitura de seu leitor, pois este, por sua vez, reconstri o texto na sua leitura, atribuindo-lhe a sua (do leitor) significao.

    por isso que se pode falar em leituras possveis e por isso tambm que se pode falar em leitor maduro e a maturidade de que se fala aqui no aquela garantida constitucionalmente aos maiores de idade. a maturida-de de leitor, construda ao longo da intimidade com muitos e muitos textos. Leitor maduro aquele para quem cada nova leitura desloca e altera o signifi-cado de tudo o que ele j leu, tornando mais profunda sua compreenso dos livros, das gentes e da vida (LAJOLO, 1982, p. 53).

    Como coadunar essa concepo de leitura com atividades de sala de aula, sem cair no processo de simulao de leituras?

    Texto complementar

    Literatura, Leitura e Aprendizagem

  • A concepo escolar da leitura

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    No me parece que a resposta seja simples. Se fosse assim, no haveria razo para tantos encontros de professores, tantos textos que tematizam a prpria leitura. Qualquer que seja a resposta, no entanto, estar lastreada numa concepo de linguagem, j que toda a metodologia de ensino articula uma opo poltica que envolve uma teoria de compreenso e interpreta-o da realidade com os mecanismos utilizados na sala de aula (conforme Fischer, 1976). No nosso caso, como compreendermos e interpretarmos o fe-nmeno linguagem embasar a resposta ao problema.

    desnecessrio dizer que este texto no pretende dar a resposta, mas uma resposta. E a leitura desta, para sermos coerentes com a concepo de leitura recm-delineada, se transformar em respostas. Por mais que eu fuja da res-posta que quero dar, fazendo uma citao ali, alertando o leitor para o desne-cessrio dizer, mas dizendo, no posso fugir de dar uma resposta, sob pena de estar simulando, agora, a produo de um texto tornando-o redao escolar.

    Marilena Chau, em conferncia proferida no Primeiro Frum da Educao Paulista (10 a 12 de agosto de 1983), utilizou excelente imagem: o dilogo do aprendiz de natao com a gua, no com o professor, que dever ser apenas mediador desse dilogo aprendiz-gua. Na leitura, o dilogo do aluno com o texto. O professor, mera testemunha desse dilogo, tambm leitor, e sua leitura uma das leituras possveis.

    Leitores, como nos colocamos ante o texto? Longe de querer estabelecer uma tipologia de vivncias de leituras, gostaria de recuperar da nossa experi-ncia concreta de leitores as seguintes possveis posturas ante o texto:

    a leitura busca de informaes;

    a leitura estudo do texto;

    a leitura do texto pretexto;

    a leitura fruio do texto.

    Diante de qualquer texto, qualquer uma dessas relaes de interlocuo com o texto/autor possvel. Mais do que o texto definir suas leituras poss-veis, so os mltiplos tipos de relaes que com eles ns, leitores, mantivemos e mantemos, que o definem.1

    1 Marisa Lajolo, em O que Literatura, defende o ponto de vista de que literatura o que as instituies sociais, na histria, disseram que lite-ratura. Foram, pois, leituras que a definiram. Eni Orlandi (Histrias das leituras, comunicao apresentada no XXVI Seminrio de Gel, Unimep, 1983) exemplifica a mesma questo a partir de textos religiosos do snscrito, hoje lidos como poemas. Opera com o conceito de leitura privile-giada para mostrar que a leitura de alguns leitores imposta como a nica leitura.

  • 30

    Dica de estudoConsulte o resultado da pesquisa Retratos da leitura no Brasil, que pode se encontrado no site . Nele voc obter no apenas os dados sobre a pesquisa e seus resultados, como tambm estudos que analisam esses resultados. Nele voc poder comprovar como a leitura tem importncia histrica, social e pessoal e o quanto a escola o espao privilegiado para formar leitores.

    Atividades1. Considere as diferentes disciplinas que voc j estudou em sua vida estudan-

    til e analise se elas dispensaram a leitura ou no. Escreva um texto sobre esse resultado.

    Literatura, Leitura e Aprendizagem

  • A concepo escolar da leitura

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    2. Que critrios voc deve usar para considerar uma pessoa iletrada?

  • ObjetivosQuestionar a formao do professor como leitor e provocar uma re-

    flexo sobre a necessidade de mudanas metodolgicas no trabalho com a formao de leitores crianas.

    Para que possamos pensar na leitura em sentido amplo, no devemos desconsiderar a formao do professor, um dos principais agentes de for-mao de leitores. Por essa razo, preciso avaliar os fundamentos, conhe-cimentos e objetivos que servem de parmetros para o trabalho docente e que, portanto, precisam estar em sua formao.

    A Educao pressupe dois parceiros fundamentais e que, necessaria-mente, devem interagir: o professor e o aluno. No trabalho de formao do leitor, consideram-se sempre as bases tericas que fundamentam a ati-vidade docente.

    Entre elas, podemos considerar a noo de letramento que, segundo ngela Kleiman e Magda Soares (apud GUEDES PINTO, 2002, p. 32), pode ser definido como um conjunto de prticas sociais, das quais a escrita parte integrante e necessria, sendo utilizada para atingir algum fim es-pecfico. Ou seja, o conceito de letramento est relacionado aos usos da escrita em um determinado contexto social, envolvendo, consequente-mente, tambm, a prtica da leitura.

    Considerando as leis normativas estabelecidas pela Lei de Diretrizes e Bases (LDB), de 1996, e pelos Parmetros Curriculares Nacionais (PCN), entende-se a importncia conferida leitura enquanto instrumento indis-pensvel para o acesso e a aquisio dos mais diferentes conhecimentos, pertencentes aos mais diversos campos do saber humano. H, por isso, um argumento de ordem legal e outro de ordem conceitual a indicarem a importncia da leitura no sistema escolar. Portanto, eles se convertem, tambm, em pilares da formao docente.

    O professor-leitor

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    Deve ser acrescentada a esses dois pontos uma tendncia da historiografia contempornea, que privilegia os depoimentos e histrias pessoais, dentro de toda a sistemtica terica da Nova Histria, da Escola dos Annales.1 Direcionados para a educao, os estudos de Antnio Nvoa, sobre a vida de professores de Portugal, editado em 1995, abriu caminho para vrios outros livros com depoi-mentos de histrias pessoais de leitura de docentes de muitos pases.

    Estudos empricos mais recentes, que tomam como objeto de anlise a memria, a histria de vida dos sujeitos e agentes da educao, envolvidos no processo educativo, tm assumido nos meios de estudo acadmico um carter de grande importncia e destaque, uma vez que demonstram que a realizao deste tipo de pesquisa oferece a possibilidade de preencher as lacunas deixadas pelos trabalhos voltados, apenas, para os aspectos relacionados ao sistema educacional e sua expanso, sem fazer referncia aos professores e demais profissionais do ensino. (GUEDES PINTO, 2002, p. 41)

    Portanto, a noo de letramento, o aparato legal e as histrias pessoais de lei-tura constituem a base de teorias que autorizam a pensar a leitura como um ato indispensvel para o conhecimento da educao e da formao dos professores.

    Podemos verificar no Brasil alguns resultados positivos de estudos a respeito da prtica de leitura que, ao optarem pela perspectiva de se trabalhar com as falas dos professores e suas histrias de vida, fortaleceram a imagem pblica desses sujeitos, quando fizeram ouvir suas vozes, suas concepes de mundo e seus percursos, atravs da escuta e do registro de suas narrativas (GUEDES PINTO, 2002, p. 41).

    A pesquisadora Ana Maria Guedes Pinto recolheu um interessante depoi-mento de uma professora-alfabetizadora que bem resume a histria de leitura de muitos professores brasileiros.

    [Professora] Eu no me lembro dos meus pais lerem alguma coisa pr mim, no. No, meus pais, acho que no. Ele, meu pai, brincava muito comigo. , aquela brincadeira balana caixo, n ? Essas coisas ele brincava demais. , minha me... no me lembro assim de minha me brincar com a gente assim, nem tanto. Mais era meu pai. Mas de leitura, no. Acho que leitura, nem um pouco. Me lembro assim de jornal. Aos domingos tinha, mas no me lembro se ele mostrava alguma coisa. Acho que, no sei. Eu acredito que a parte de alfabetizao era mais a escola. Eles deixavam essa parte pr escola mesmo, no tinha incentivo em casa.

    1 A denominada Escola dos Annales teve com o suporte a revista francesa Annales (Anais) para divulgar suas ideias e modo de interpretar a reali-dade. Dos ensaios divulgados pela revista surgiu um modo de construir o discurso histrico, denominada Nova Histria, que tem como princpio a valorizao dos fatos midos do cotidiano, as pessoas comuns, um olhar sobre a vida diria das comunidades, deixando de lado as figuras mais proeminentes, como grandes guerreiros, reis e altas autoridades.

    Literatura, Leitura e Aprendizagem

  • O professor-leitor

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    Eu [a pesquisadora] Nem Bblia, nada?

    P Sempre teve, sempre teve.

    Eu Ento, por que eu t perguntando leitura, ...

    P Geral, t. Sempre teve Bblia em casa [...]

    Eu Ento eles liam?

    P Liam, liam.

    Eu Ento, por que justamente a que eu t...

    P Ah! T! Eu t entendendo [...] No, isso tem. Isso sempre teve. Meu pai sempre leu jornal, , minha me a Bblia, livro mais, assim, religioso [...] Desde pequena. Isso eu me lembro, bastante [...]

    Eu Voc falou que na sua casa tinha muita msica?

    P Tinha. Minha me sempre cantou muito. Msica de igreja, ou msica, qualquer msica assim que a gente tem, que eu lembre, n, de artista. Gostava de escutar aquelas rdios, que tem at hoje, n? AM. Ento isso tem, sempre teve sim. Muitos discos...

    Eu Vocs acompanhavam, s vezes? Que s vezes tinha escrito.

    P Tem isso, aqueles folhetos, tem, tem, tem.

    Eu Aqueles livretos. Pra d um exemplinho.

    P Isso, tinha, lia. Sempre tivemos.

    Eu E isso era comum?

    P Comum, comum. Mesmo na escola eu era, eu sempre participava de teatro. At me lembro no pr, que teve a histria de D. Batatinha e suas filhas e eu era D. Batatinha. E eu sempre, assim, me destacava nessas coisas porque eu sempre gostei de decorar as coisas, de ler, jogral. Essas coisas, sempre eu tava no meio. Eu sempre gostei disso. (GUEDES PINTO, 2002, p. 146-147)

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    Ressalte-se, nesse depoimento, como a prpria professora-depoente des-conhece que a leitura, de que tratam as questes da pesquisadora, se refere a qualquer tipo de escrito (jornal, Bblia, folhetos, dramaturgia) e no apenas literatura de fico. medida que a conversa se desenvolve, o conceito de leitura vai sendo esclarecido, e a professora acrescenta mais informaes, alterando a fala inicial de que no havia leitura em casa de seus pais.

    As informaes da professora do conta de uma formao deficitria no am-biente domstico, o que acaba influindo em sua formao docente, pois o reper-trio construdo ao longo da vida indica os percursos de leitura e no pode ser descartado, passando a integrar um modo de ler e preferncias pessoais (temas, estilos, tipos de textos) alm de indicar as lacunas que exigiro preenchimento. Se a formao profissional, em nvel de graduao, contiver e exigir requisitos especficos no campo da leitura como disciplinas, atividades que exijam e mul-tipliquem leituras, teorias atualizadas e adequadas, aplicaes justas e criativas haver condies do professor resgatar e aperfeioar sua histria de leitura e qualificar-se para um bom desempenho profissional.

    Cumpre lembrar, nas palavras de Ezequiel Teodoro da Silva (1996, p. 60), a advertncia contida na obra Magistrio e Mediocridade:

    Faculdades de beira de estrada, cursos aligeirados, ausncia ou precariedade de experincia prtica em salas de aula, diluio do domnio da matria etc., so ndices que revelam a pobreza intelectual do professor. Igual a ninhadas de coelho, o pas v nascer faculdades de Letras e Pedagogia por todos os cantos, atendendo na forma de cursos vagos, em finais de semana. distribuio farta de diplomas segue-se, em momento posterior, a fragilidade do ensino no mbito das escolas de 1. e 2. graus [hoje, Ensino Fundamental e Mdio]. Veja-se o absurdo da situao: o magistrio coloca-se como um dos nicos lugares onde quem no sabe e no tem competncia ainda se estabelece!

    Convm no esquecer que um professor aviltado pelo salrio e por nenhuma perspectiva de aperfeioamento dificilmente se torna um bom profissional. O entusiasmo inicial da carreira extingue-se, desaparece com o tempo, em resulta-do de um trabalho mal recompensado e mal desenvolvido.

    Mas nem tudo so espinhos na profisso. Sabemos da dedicao e da per-sistncia do professor e de seu papel imprescindvel no desenvolvimento das inteligncias, na transmisso do saber acumulado ao longo dos sculos pela hu-manidade, na formao do pensamento crtico, na experimentao de compor-tamentos de cidadania.

    Para que este papel se cumpra, essencial a aprendizagem da leitura, a des-coberta de sua utilidade, a prtica do intercmbio constante com os textos. E, para que este trabalho possa realizar-se em sua plenitude, estar sempre presen-

    Literatura, Leitura e Aprendizagem

  • O professor-leitor

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    te a histria pessoal do professor-leitor. O conhecimento dessa histria permite que o professor possa lidar, com maior segurana, com a orientao e a forma-o de outros leitores. Por mais simples e lacunar que o incio da vida de leitor do docente tenha sido, ela deixou marcas indelveis que estaro presentes em seu trabalho na escola.

    Convm lembrar que a leitura tem um poder conscientizador, que possibilita ao homem descobrir as suas representaes do mundo. Consequentemente, este processo faz com que o homem, dialeticamente, direcione-se para determinados fatos e relaes contidos na realidade circundante e tome distncia desses, a fim de refletir sobre eles, question-los e transform-los, quando necessrio. Entre os diversos tipos de textos existentes, o texto literrio o que d conta da totalidade social, pois, mesmo representando o particular, atinge uma significao mais ampla. A linguagem literria extrai dos processos histrico-poltico-sociais uma viso da existncia humana, havendo uma identificao com outros homens de tempos e lugares diversos. (BETENCOURT, 2000, p. 24)

    Dada a importncia da presena da leitura literria na vida do leitor, convm que o professor tenha, em relao sua prpria formao, o cuidado de continu-ar, pela vida profissional afora, a realizar a leitura constante da literatura. Mesmo que lacunas possam ter existido no incio da sua vida de leitor, nunca tarde para se retomar um comportamento saudvel para a inteligncia e para a cultura.

    A prtica docente deve estar orientada para dois tipos de atendimento, no que se refere formao de leitores: a preocupao com o aluno e, portanto, a seleo de textos adequados sua idade e s funes da leitura na vida escolar e pessoal e a preocupao com o prprio professor, uma vez que nunca se completa nossa formao de leitores. Ao longo da vida, estamos sendo sempre motivados a descobrir novos e outros textos que a cultura, ininterruptamente, vai criando.

    A preocupao com sua prpria formao de leitor leva o professor ao melhor conhecimento do que a histria dos livros, da leitura, dos novos produtos exis-tentes no mercado, apura o gosto pessoal e d maior segurana ao trabalho de formao de leitores infantis e juvenis.

    No se pode permanecer na justificativa de que, se nossas primeiras leituras foram deficientes e lacunares, nada mais pode recuper-las ou corrigi-las. Feliz-mente, em nosso intercmbio com os livros, sempre possvel corrigir, retomar, completar. H, portanto, um caminho de livros, textos e leituras sempre aberto atuao do professor.

    Podemos recorrer novamente perspectiva de anlise de Maria de Ftima Betencourt (2000, p. 25):

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    Em virtude das deficincias, observadas no curso de magistrio e no curso superior, o professor acaba apoiando-se no livro didtico, com todas as suas falhas, para trabalhar com leitura. Constata-se, assim, um problema: os professores esto passando para seus alunos uma concepo muito limitada do processo de leitura.

    Uma outra questo que no pode ser esquecida diz respeito figura do professor que no gosta de ler, por causa de lacunas na sua prpria formao escolar. Em funo disso, as metodologias utilizadas nas aulas de leitura com as crianas e os adolescentes acabam sendo a repetio do que ele conheceu como aula de leitura, pois no h conhecimento das teorias da leitura, nem a inteno de se formar leitores crticos e maduros.

    Essa advertncia sobre como transferimos aos alunos nossas prprias defi-cincias, e alimentamos, com isso, um crculo vicioso de leitura, bastaria para mover os professores a procurarem novos caminhos de aperfeioamento pesso-al, para que no fossem repetidos, nos mais novos, os mesmos defeitos do pas-sado. Como a histria do homem e dos textos move-se continuadamente, como a realidade nos presenteia com dias novos e manhs de esperana, no se pode permanecer, acomodadamente, no mesmo patamar de aprendizagem.

    Cabe, portanto, ao professor que trabalha com textos e leituras, promover o progresso constante de seus alunos, juntamente com a evoluo pessoal de leituras e conhecimentos.

    Texto complementar

    Sntese da pesquisa(GUEDES-PINTO, 2002, p. 246-247)

    Vivendo este processo de pesquisa, as professoras nos mostraram a riqueza e a multiplicidade de prticas que vivenciaram e, por outro lado, o quanto a instituio escolar as tolheu na liberdade de ler, o quanto o prazer do texto foi roubado com as prticas de controle e de sua didatizao. Demonstraram tambm como, apesar das prticas de controle, conseguiram subverter as regras, reinventado as leituras, apropriando-se dos textos de formas particula-res. Mesmo vivendo em um ambiente controlado, traaram seus percursos, sin-gulares e heterogneos, por meio da movimentao no interior desse espao, criando nele formas de resistncia, constituindo-se assim leitoras plurais.

    Literatura, Leitura e Aprendizagem

  • O professor-leitor

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    A partir da perspectiva de reflexo seguida neste trabalho, um incio de conversa, que comece pelas experincias anteriores de cada um, que no se baseie em escalas prvias de valores, talvez possa abrir: meios para que se construa um vnculo que possibilite mais trocas. E ser por meio dessas trocas que poderemos formar professoras que se reconheam e se autorizem leito-ras. Sem o dispositivo de uma hierarquia categorizadora, a leitura dos livros de escritores consagrados, como Machado de Assis ou Guimares Rosa, sero to fundamentais e valorizados quanto a leitura dos almanaques e os romances aucarados, pois o que estar em foco so a convivncia e o contato com os mais diferentes estilos de textos possveis, buscando sempre a ampliao de repertrios. Importar estar em sintonia com a professora-leitora, tendo como referncia sua vida e seus interesses, tendo como horizonte a pluralidade de prticas. Magnani (1997) fala sobre o descompasso de anseios e expectativas entre os cursos dados na escola e os alunos, que trazia obstculos para se construir um gosto pela leitura:

    Os textos de leitura que abriam as lies eram excertos dos mais conceituados e primorosos escritores brasileiros e portugueses e objetivavam dar a ns espcimes da boa linguagem e exemplos comprobatrios da gramtica, assim como deveriam ser meio posto ao nosso alcance para disciplinar a linguagem e atingir a forma ideal da expresso oral e escrita. Preferia minhas leituras livres, aquelas da escola pareciam cafonas e antigas. Tnhamos de ler Rui Barbosa, Carlos de Laet, C. Castelo Branco e outros, enquanto sentamos o sangue fresco da juventude ferver. Que caminho tortuoso aquele necessrio para ser escritor... Mas como era paciente e compreensivo nosso professor. Agora vejo! (p. 159-160)

    As narrativas das professoras aqui registradas demonstraram o quanto importante, para pensarmos a formao de leitores, a assuno da diversida-de da vivncia de leituras. Evidenciaram tambm que os critrios balizadores de leitura, existentes nos cursos de formao e nas escolas, atuam reprimindo e desqualificando certas prticas, valorizando outras, na busca de uma ho-mogeneizao dos sentidos, procurando organizar e racionalizar a multiplici-dade dos percursos da leitura. Fraisse et al. (1997, p. 8), ao definirem o papel da critica literria, explicitam sua funo reguladora no mundo dos leitores e dos livros, instaurando, por esse modo, um padro: a critica literria apreende leituras e leitores, colocando-se como leitura de excelncia apta a introduzir ordem na diversidade dos gneros e das prticas.

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    Dica de estudoAssista ao documentrio A Janela da Alma.

    Informaes tcnicas:

    Pas de Origem: Brasil

    Gnero: Documentrio

    Classificao etria: Livre

    Tempo de Durao: 73 minutos

    Estdio/Distrib.: Europa Filmes

    Direo: Joo Jardim / Walter Carvalho

    Trata-se de um documentrio que ensina a olhar de diferentes perspec-tivas o passado e o presente e ensina tambm a ler a histria, a realida-de, as diferenas pessoais e a excluso. excelente para abrir a mente em relao a modos diferentes de encarar as dificuldades da vida e da aprendizagem.

    Atividades1. Redija um depoimento de sua histria pessoal de leitura.

    Literatura, Leitura e Aprendizagem

  • O professor-leitor

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    2. Saliente as suas experincias pessoais de sucesso com a leitura. Escreva um texto em que seja provado que elas podem dar bom resultado ainda hoje.

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    3. Enumere e analise a metodologia de leitura que voc teve enquanto aluno(a) e a que voc repete ou inova com seus alunos.

    Literatura, Leitura e Aprendizagem

  • O professor-leitor

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  • ObjetivoDefinir as caractersticas das linguagens e o trabalho que um indiv-

    duo deve realizar para se tornar um leitor crtico.

    Quando comea a formao do leitor? Ler interpretar. Sabemos que, antes mesmo de ver a luz do dia, o feto j reage aos estmulos do exterior, interpretando as reaes maternas. Essas reaes, mesmo que ainda no verbais (ela se concretiza em risos, choros e expresses de satisfao) j demonstram o surgimento da capacidade de interpretar e de que ela uma competncia de aprendizagem contnua.

    Essa realidade deve-se ao fato de que a natureza, os homens e a so-ciedade se constituem textos codificados, cumpre ao sujeito ir decifran-do, isto , lendo-os e interpretando-os, na medida em que vive. Desde os fenmenos naturais (a chuva, o sol, o frio, a noite, por exemplo) at as convenes sociais (como os rituais de amizade, acasalamento, poder e a linguagem) tudo passa pela interpretao. So signos, isto , representa-es que significam algo para algum. Para Eliana Yunes (2002, p. 97), essa capacidade e ofcio de ler sinais e linguagens do mundo, exceo dos escritos, caracterizam o ledor. Portanto, ler e interpretar tornam-se sinni-mos, luz das teorias da linguagem e da hermenutica.

    Maria Helena Martins (1985, p. 31) sintetiza as teorias da leitura em dois grandes grupos:

    como decodificao mecnica de signos lingusticos, por meio de aprendizado es-tabelecido a partir do condicionamento estmulo-resposta (perspectiva behavio-rista cognitivo-sociolgica);

    como processo de compreenso abrangente, cuja dinmica envolve componentes sensoriais, emocionais, intelectuais, fisiolgicos, neurolgicos, bem como culturais, econmicos e polticos (perspectiva congnitivo-sociolgica).

    No percurso de significao do mundo, o sujeito vai percorrendo etapas. H vrias denominaes e concepes dessas etapas. Uma delas, j apresentada, a que prev ao menos duas: o ledor e o leitor, conforme

    A formao do leitor

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    se considere o mundo e os escritos. Outra trata de trs diferentes camadas, no necessariamente excludentes: a leitura sensorial apoiada nos sentidos: o ver, o ouvir etc. a leitura emocional o poder que os textos tm de despertar emoes e sentimentos, incitando a fantasia e o inconsciente e a leitura racional a capacidade de produzir e apreciar a linguagem, em especial a artstica (MARTINS, 1985, p. 37-81). Outros tratam do analfabetismo, o analfabetismo funcional ou secundrio, o leitor crtico, o leitor expert e o leitor erudito (FOUCAMBERT, 1998, p. 59-94).

    Para compreender como se atinge, ou no, um determinado estgio de lei-tura, cumpre pensar nas caractersticas e estratgias que definem um leitor na sociedade em que vivemos.

    Na busca do texto prazeroso, fica evidenciada a oposio entre ele e a leitura obrigatria, ou aquela realizada apenas visando a avaliao. Defendida por uma pedagogia que se coloca como um novo paradigma no ensino, caracterizado pela valorizao da subjetividade e a iniciativa pessoal, alm da preservao da histria pessoal de vida, o trabalho com a leitura na escola tem procurado colo-car a criana em contato direto, sempre que possvel, sem mediaes, com os objetos de leitura. Salas de leitura, horrios especiais, a revitalizao das biblio-tecas e atividades de incentivo tm proporcionado uma relao menos ansio-sa e mais produtiva com os livros, nos espaos privados e pblicos. As livrarias que mantm uma seo de livros infantis criaram um ambiente adequado a essa faixa etria: cadeiras, mesas, cores, almofadas, gndolas com apelos especiais, liberdade de escolha e leitura fazem parte do acolhimento ao leitor-criana, pro-porcionando-lhe um espao de bem-estar.

    Todas essas iniciativas, visando a educao, ou seja, voltadas para o incenti-vo ao consumo, tm conseguido melhorar o desempenho e a competncia em leitura, principalmente literria. Apesar desse panorama otimista, Ana Maria Ma-chado (1999, p. 74-75) alerta:

    [...] edita-se cada vez mais, as editoras despejam livros na praa sem parar, as livrarias enchem suas prateleiras, o pblico compra. Vai tudo bem, no? Uma sociedade cheia de livros [...]

    Mas de que livros? Ainda recentemente, um artigo do crtico Wilson Martins chamava a ateno para o aspecto descartvel do livro considerado apenas como mercadoria, livro efmero, de vida cada vez mais curta. Os jornais e revistas somente comentam as novidades, as livrarias apenas compram os ltimos lanamentos, somente exibem o que est sendo comentado. Por pouco tempo, porque logo vem outra leva, como numa padaria, em que, assim que uma nova fornada de pes comea a cheirar, ningum mais quer levar o pozinho da fornada anterior. E as editoras, por sua vez, acabam recorrendo ao expediente das padarias: vrias fornadas sucessivas de pes cheirosos e convidativos [...].

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    Da mesma forma, o livro, de embalagem bonita e atraente, esconde muitas vezes a pobreza, a vulgaridade e a mesmice do texto que divulga.

    Na histria da escrita, nunca se publicou tanto como no sculo passado. Mesmo agora, com a entrada vitoriosa dos computadores na vida moderna, a escrita e a leitura continuam sendo aes indispensveis. No entanto, no cresce na mesma proporo o nmero de leitores crticos, com proficincia em textos complexos, conforme o define Ana Maria Machado (1999, p. 137): E quando fa-lamos em leitor, no estamos nos referindo a quem se limita a decodificar ma-nuais ou a mascar chicletes do esprito, que ocupam, mas no trazem alimento algum. Tem razo a escritora: quando concebemos um leitor crtico, no esta-mos falando de quantidade de leituras, mas da condio de interpretar textos complexos e estabelecer relaes entre eles, com profundidade e abrangncia.

    A associao entre divertimento, entretenimento, prazer e livros para con-sumo extremamente danosa formao continuada do leitor. Quanto j no ouvimos de preferncias por livros, que so balizadas pelo nmero de pginas, o colorido e quantidade das ilustraes, o enredo repetitivo, o final feliz, muita narrativa e nenhuma poesia e outros fatores relacionados sensao de leitura prazerosa?

    H, entretanto, outro ngulo pelo qual se pode entender essa busca exclusiva do prazer na leitura. o que est relacionado com a cultura de nosso tempo: he-donista, egocntrica, sensorial, imediatista, descompromissada. Nela, o prazer um fim em si mesmo. A leitura desvincula-se de tempo e espao que no sejam o aqui e o agora. Tudo converge para uma satisfao momentnea, que desco-nhece vnculos e diferenas.

    preciso divulgar a noo de que leitura trabalho, atividade, interven-o do leitor no texto produtivo:

    [...] leio bem, quando no desprezo o texto, quando sei perceber o jogo que ele me est propondo e diante dele tomo uma atitude digna: ou abandon-lo, porque a partida no me interessa, ou aceit-lo e, a, jogar com tudo o que sei. [...] Exemplo de texto ruim: o que deseja explicar tudo, texto tagarela, que despreza a inteligncia do leitor. Texto frgido, que no quer ser seduzido. Texto que no deixa o leitor inventar, exercer sua funo de coautor. (CARNEIRO, 2001, p. 44)

    Ler questionar o mundo e ser questionado por ele, numa definio bastan-te feliz de Jean Foucambert. Est nessa troca, entre o sujeito e tudo o que est fora dele, o ncleo mais essencial da leitura enquanto ato social, no apenas enquanto aprendizagem de um cdigo. Por isso, ler encontrar algumas respos-tas para os problemas da vida, descobrir que o mundo e o homem podem ser

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    diferentes. E, por isso, estar apto a mudanas, equipado a realizar uma trajetria de desafios ao historicamente estabelecido. ter a capacidade de propor uto-pias, de persegui-las.

    Ler reconhecer-se. Toda vez que percebemos a identificao do leitor com situaes, sentimentos e personagens, vivenciamos o poder de expressar o ser humano, que o texto literrio, por natureza, contm. por isso que o leitor ali-menta seu imaginrio ao interagir com as construes literrias, inventadas a partir do real.

    O livro em sala de aula e no importa o estgio de estudos em que o edu-cando se encontra um ato de comunicao em que a interao entre o su-jeito autor e o leitor permite descobrir e criar sentidos para os signos textuais. E no se trata apenas de signos verbais escritos, mas de uma gama variada de linguagens que atraem o leitor e solicitam, como sereias encantadas, uma deci-frao. Por isso, ao ler, exercitamos todos os sentidos. A leitura exige empenho, atuao, persistncia, vitria sobre desafios. E um dos maiores o de ultrapassar a ignorncia, no apenas do alfabeto, mas de tudo o que est oculto, alm de nossa compreenso. Assim, ler conhecer. No apenas no sentido de acumular informaes, mas de integrar-se realidade do mundo e da interioridade.

    E qual a realidade da leitura na escola? Como se d a formao do leitor na instituio criada para cumprir funo, socialmente, to essencial?

    Numa ciranda perversa, o leitor formado pela escola (muitas vezes, no o ) somente l o que lhe cai aleatoriamente s mos e, por vezes, de qualidade inferior, mas, ao ler, ele se acredita um leitor competente (e assim tambm o considera a sociedade). Ao deixar a sala de aula, a falta de exerccio da leitura de textos verbais reconverte-o situao de quase analfabeto o denominado analfabeto funcional e, muito mais tragicamente, em um leitor que sabe, mas no l, parafraseando Mario Quintana.

    Pesquisas entre alunos e egressos do sistema escolar tm demonstrado que a maior dificuldade que os leitores encontram ao se defrontarem com um texto interpret-lo, quando no, simplesmente, entender o que dizem as palavras ali escritas. Conclui-se facilmente que a sala de aula tem sido apenas uma alfabeti-zadora, isto , capaz de dar a conhecer s crianas a correspondncia entre o som e a letra. As infinitas possibilidades semnticas das combinaes entre o univer-so e a palavra ficam relegadas ao autodidatismo, ou ao desconhecimento total.

    Literatura, Leitura e Aprendizagem

  • A formao do leitor

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    de se pensar que os promotores desse trabalho escolar os profissionais docentes sejam eles prprios considerados leitores. Pesquisas comprovam, igualmente, que o professor-leitor crtico raridade. Podem ser invocadas as mais variadas razes falta de salrio digno, tempo escasso, desinformao, la-cunas na formao profissional mas a verdade que a constatao da falncia do sistema de ensino no Brasil passa, sem dvida, pela nenhuma familiaridade com o livro, que no seja aquele de ligao direta com a profisso e, mesmo assim, de forma eventual. Ler as obras relacionadas com o exerccio profissional no constitui um leitor. Ser leitor pressupe sempre a capacidade de desempe-nhar-se bem em mltiplas escritas e a competncia de ler entrelinhas.

    No entender e no ser capaz de interpretar o que l equivalem a constatar no leitor o atrofiamento de sua qualidade humana de atribuir sentidos, cada vez mais complexos, aos signos da realidade. impor limites sua relao com o mundo. conden-lo a assumir os valores de outrem, ditados oralmente com o poder da voz. incorporar a histria dos outros como se fosse a sua prpria. Enfim, alienar o indivduo de si mesmo.

    Por compreender o alcance poltico entendido como participao do sujei-to na polis, no governo de sua cidadania que se tem, ao longo dos sculos, no Brasil, realizado intensa campanha para a rarefao da leitura, como pude-ram constatar Marisa Lajolo e Regina Zilberman. O analfabetismo e a pssima constituio do leitor so responsveis poderosos pela situao de desigualda-de social e pelo pior ndice mundial de qualidade de vida, que o Brasil, vergo-nhosamente, conquistou. Porm, a porcentagem elevada de analfabetismo no Nordeste em algumas regies chega a 51% por si s no explica a misria. O Sul e o Sudeste, com ndices prximos a zero, no apresentam quadro social mais animador. O que confirma que alfabetizar nem sempre produz indivdu-os capazes de lidar com os textos da realidade. Urge proceder a um trabalho de leiturizao, no dizer do educador francs Jean Foucambert. Capacitar lei-tores a atuarem como produtores de sentidos, aptos a estabelecerem dilogos produtivos com os textos, neles fazendo atuar concordncias e diferenas, sem perder de vista que a linguagem aponta sempre para o sujeito e para o mundo. E, principalmente, ligados indissoluvelmente leitura, que passa a integrar suas necessidades dirias.

    A leitura no tem o poder de intervir diretamente na crise social do pas. O livro no enfrenta, de igual para igual, as decises polticas e governamentais.

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    Suas mudanas processam-se internamente, dependem exclusivamente da re-lao entre os sujeitos constitutivos do ato de ler autor e leitor, intermediados pelo texto. Buscam afirmar o indivduo em sua constituio psquica, intelectu-al e emocional, e ela que o far agir. Assim fortalecido, poder lutar por suas ideias e seus direitos.

    A escola, mesmo que realize um trabalho competente de formao, no conseguir consolidar o leitor sem o respaldo da sociedade que a sustenta. Na contramo da histria, hoje, so as crianas que leem ou contam histrias aos adultos. A famlia, embora se posicione a favor, no l e interfere negativamen-te no trabalho de formao do leitor, ao privilegiar formas de lazer que, pensa ela, trazem maior prazer do que a leitura. Na verdade, somos todos responsveis pela leitura como somos responsveis pelo pas.

    Ler as linguagens da realidade e, especialmente, ler os livros, implica o resga-te da cidadania, uma vez que conscientizam o leitor do poder de ele tambm criar sentidos para os textos que se apresentam, a cada passo do cotidiano. Acordar esse poder transforma o casulo em borboleta. Temos assistido com fre-quncia s mudanas operadas no comportamento de leitores, ao se descobri-rem capazes de atuar em mo dupla na leitura, recebendo e dando sentidos histria individual e histria do outro. A reao , por vezes, comparvel a uma iluminao interior.

    A amplitude do alcance social e individual da literatura completa-se com o prazer interior despertado pelo contato com a beleza da criao artstica. Cabe, porm, perguntar, sem preconceitos e sem argumentos falsos, como a escola tem patrocinado o encontro do leitor com essa revelao.

    Convm conhecer o depoimento de Eliane Marta Teixeira Lopes (2005) a esse respeito:

    Gosto de ler. Mas, se pensarmos que todos os gestos e todos os poucos movimentos que esto presentes na hora da leitura, e mais o imobilismo a que ela nos sujeita, fadigam-nos, fazem-nos doer as costas, a nuca, o dorso, os quadris, os olhos, por vezes entorpecem-nos as mos... ento, de onde vem o gosto? Haveria prazer no ato de ler? De qual prazer se fala, quando se fala no prazer da leitura?

    Sou uma leitora antiga. Isto quer dizer que leio h muito tempo, desde quando sobre mim se aplicou a mxima sentena pedaggica, definidora de destinos, ela aprendeu a ler. Assim foi sentenciado, quando as primeiras palavras que me entraram pelos olhos e me saram pela boca, quase simultaneamente h especialistas que sabem o que se passa entre um momento e outro foram: Olhem para mim. Eu me chamo Lili. Eu comi muito doce. Eu gosto tanto de doce! Vocs gostam de doce? Declamo isso, sem me importar se era mesmo assim que estava no cartaz minha frente e na cartilha s minhas mos. Somente muito tempo depois, apelidaram-me Lili; mesmo assim, aprendi a ler e at ganho a vida com isso, hoje.

    Literatura, Leitura e Aprendizagem

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    Apesar da escola, a criana tornou-se leitora e at escritora. Mas quantos dos alunos daquela sala de aula puderam alcanar o mesmo sucesso? Ser que o trabalho de formao do leitor deve ficar restrito a sucesso to mesquinho?

    E Eliane Lopes (2005) continua:

    Tenho c tambm meus prprios prazeres com o texto, com o livro, com o autor. Que variaram ao longo desse muito tempo. Que foram denominados de diferentes maneiras, que se expressaram de diferentes maneiras. No sem luta, sem briga. Desse amor tambm se pode falar de sua resistncia. Ouvimos vozes, quando lemos, que no so somente as do texto que lemos para ns mesmos, sotto-voce. Ouvimos as vozes dos que nos ensinaram a ler, e, menos que a de todos, a da primeira professora. Aquele ato fundante de puro amor. Depois vieram os constrangimentos, mas vieram tambm as astcias no que existe curso de leitura dinmica! Nessa briga, no interior dessa polifonia, conseguimos, finalmente, sustentar a nota daquela leitura, para tornar-nos o leitor, a leitora, daquele autor. Como uma mulher torna-se a mulher de um homem.

    Da resistncia criamos a sua residncia. O livro, o texto, o autor habita em ns e passamos a habit-lo. No disse Mario Quintana, no mais belo e mais curto poema sobre o amor, que Amar mudar a alma de casa?

    Mas, para quem no domina o alfabeto, a imagem permite manter o con-tato com o mundo e com a produo de sentidos. Seria, entretanto, minimizar o poder da imagem, tom-la apenas no sentido informativo e preenchedor de lacunas culturais. A linguagem visual, tal como a verbal, possui sua estrutura pr-pria, que a constitui como um todo orgnico, capaz de servir de instrumento de transmisso da herana cultural e de criao artstica.

    H, porm, na relao texto-imagem limites permanentes: nem a palavra consegue substituir a imagem, por mais que tente descrev-la, nem a imagem capaz de reproduzir a sonoridade da palavra e a multiplicidade de sentidos que ela capaz de evocar. Mas, respeitando as respectivas idiossincrasias, texto e imagem podem somar-se e ampliar os sentidos das mensagens.

    A associao entre o prazer, o ldico e o riso, na formao do leitor, merece ser acrescida de uma reflexo sobre a leitura como um ato coletivo e democrti-co, como expe o poeta Fernando Paixo (2006):

    No esqueamos que a prtica de ler em sala de aula, ao lado de ser uma prtica individual, constitui-se boa parte das vezes, tambm, numa tarefa coletiva. Seja pelo confronto de opinies, pelos diferentes nveis de ateno despertados, ou seja ainda pelo gosto diferenciado de cada leitor, a oportunidade de discusso e confrontao permite a cada um o seu posicionamento em relao ao texto. [...] A exposio em grupo, onde a argumentao personalizada, constitui muitas vezes a primeira experincia que temos, ao nvel de cidadania. No seria exagerado, pois, afirmar que esse exerccio refora concretamente a ideia de uma democracia da leitura na sala de aula.

    Ao meu ver, ao lado da exigncia social, para que todos tenham acesso mnimo ao ato de ler, esta democracia coloca-se como um imperativo individual para que cada um, no ato de

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    ler, possa experimentar a vivncia de sua prpria subjetividade. O importante aqui que no haja uma confuso entre liberdade de interpretao e esta democracia da leitura. Ao invs de promover o achismo como expresso de autonomia do sujeito, esta democracia deve trabalhar com uma diversidade que permita a cada leitor trabalhar, interiormente, a sua inocncia e seu esprito crtico.

    A literatura, nesse sentido, constitui um campo privilegiado para a refrao do conhecimento de si prprio e do mundo que perseguido pelos indivduos. Paulo Freire j nos ensinou o quanto a alfabetizao constitui um fato que estimula, pela aquisio da linguagem, a emancipao do sujeito em sua relao ativa com o mundo. Na verdade, porm, esta emancipao apenas comea com a alfabetizao.

    Os caminhos posteriores, no interior da linguagem e das leituras realizadas, que possibilitaro os contornos de uma efetiva transformao.

    Quando o professor assume a compreenso das interfaces da leitura e aplica estratgias para que os alunos consigam perceb-la, a atuao docente em sala de aula resulta na construo de projetos sedimentados e progressivos de leitura.

    O investimento na formao do leitor capacita os indivduos a melhor en-tenderem as relaes humanas e a rede social, favorecendo maior respeito e a esperana num futuro mais digno e humano.

    Texto complementar

    Os primeiros passos na constituio de leitores autnomos: a formao do professor

    (BURLAMAQUE, 2006, p. 84-86)

    Na medida em que a escola, na figura do professor, comece a resgatar a dimenso ldica e prazerosa da leitura, atravs de diferentes modalidades e da diversidade dos gneros e dos suportes multimidiais de leitura, passando a apresentar formas criativas de promoo da leitura a criao ou dinami-zao de bibliotecas e salas de leituras nas escolas ela estar incorporando, enfim, a leitura como uma prtica social. Essa mudana implica expandir seus domnios e associ-la a diferentes formas de insero do indivduo na socie-dade, uma vez que ler mais do que decifrar o cdigo de uma lngua. O letra-

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    mento supe, conforme reitera Magda Soares (1998, p. 18-25), uma forma de insero social do indivduo de acordo com o uso competente que ele pode fazer da leitura e da escrita.

    Roger Chartier, em debate com Pierre Bourdieu, referenda o espao escolar como campo frtil para a leitura, afirmando:

    Entre as leis sociais que modelam a necessidade ou a capacidade de leitura, as da escola esto entre as mais importantes, o que coloca o problema, ao mesmo tempo histrico e contemporneo, do lugar da aprendizagem escolar numa aprendizagem da leitura, nos dois sentidos da palavra, isto , a aprendizagem da decifrao e do saber ler em seu nvel elementar e, de outro lado, esta outra coisa de que falamos, a capacidade de uma leitura mais hbil que pode se apropriar de diferentes textos. (CHARTIER; BOURDIEU, 1997, p. 240)

    A escola, como instituio encarregada da educao formal, na figura do professor, infelizmente, ainda seleciona histrias para ensinar virtudes supos-tamente indispensveis aos indivduos, a saber: a obedincia, a bondade, a humildade, a solidariedade, a coragem, o amor, a persistncia. O uso e o abuso dessa literatura edificante e modeladora seguem critrios meramente esco-lares, com a inteno de despertar no aluno qualidades que favoream seu rendimento, sua conduta e sua capacidade de adequar-se ao modelo escolar. Esse tipo de leitura muito mais pedaggico do que literrio.

    Urge abolir a leitura desse tipo de texto no universo escolar, assim como rever seu carter de obrigatoriedade. preciso proporcionar um contato pra-zeroso entre leitores e diferentes materiais de leitura, sobretudo num pas onde o acesso ao livro ainda precrio. Assim, a escola, alm de desenvolver a competncia leitora de seus alunos, emancipa-os, levando-os a resgatar as palavras e as situaes de seu mundo cotidiano e a sair da passividade instau-rada pela leitura no espao escolar.

    Dicas de estudoUma boa dica sobre leitura e formao de leitores o filme O Clube de Leitura de Jane Austen.

    Ficha tcnica:

    Ttulo Original: The Jane Austen Book Club

    Gnero: Drama

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    Tempo de durao: 105 minutos

    Ano de lanamento (EUA): 2007

    Estdio: John Calley Productions / Mockingbird Pictures

    Distribuio: Sony Pictures Classics

    Direo: Robin Swicord

    O filme tem como assunto as mudanas que podem ocorrer nas relaes pessoais e afetivas de um grupo de cinco mulheres e um homem durante encontros para ler e comentar os livros da autora inglesa Jane Austen.

    Consulte tambm o site . L voc vai encontrar notcias, artigos e textos de opinio sobre leitura e formao do leitor.

    Atividades1. Analise a forma como voc l e com que textos (considere a leitura sensorial,

    emotiva e racional). Explique os resultados.

    Literatura, Leitura e Aprendizagem

  • A formao do leitor

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    2. Baseado(a) em sua experincia, descubra que tipos de texto favorecem a lei-tura cidad e que tipos de texto facilitam o autoconhecimento. Analise essas diferenas, estabelecendo um rol de caractersticas de um tipo e de outro.

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    3. Em seu entender, por que, ao longo da histria da humanidade, governos e autoridades buscaram destruir livros?

    Literatura, Leitura e Aprendizagem

  • A formao do leitor

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  • ObjetivoEstudar os diferentes tpicos que definem e caracterizam o ato de

    ler. Analisar os processos que um leitor realiza ao ler e como eles com-pem o que se denomina a compreenso do texto.

    Uma das descobertas recentes das pesquisas sobre leitura no Brasil pode ser constatada nos resultados do ndice Nacional de Alfabetismo Funcional (INAF), realizado pela primeira vez em 2001. A pesquisa foi uma iniciativa do Instituto Paulo Montenegro Ao Social do Ibope e da ONG Ao Educativa. Por meio dela pde-se verificar a situao da leitura no Brasil. Foram entrevistadas duas mil pessoas de 15 a 64 anos, em todo o territrio brasileiro.

    Para medir esse nvel foram estabelecidos trs nveis.

    O nvel 1 de alfabetismo corresponde capacidade de localizar informaes explcitas em textos muito curtos, cuja configurao auxilia o reconhecimento do contedo solicitado. Por exemplo, identificar o ttulo da revista utilizada na testagem ou, num anncio, localizar a data em que se inicia uma campanha de vacinao ou a idade a partir da qual a vacina pode ser tomada gratuitamente. (RIBEIRO, 2003, p. 16)

    Pertencem a esse nvel 31% dos participantes da pesquisa. Isso signifi-ca que, entre dez pessoas entrevistadas, trs das que foram alfabetizadas s conseguem um desempenho mnimo, precrio de utilizao do texto, ligada mais descoberta da informao evidente no texto.

    O nvel 2 de alfabetismo corresponde quelas pessoas que conseguem localizar informaes em textos curtos. Por exemplo, numa carta reclamando de um defeito na geladeira comprada, identificam qual o defeito apresentado pela geladeira. Conseguem tambm localizar informaes em textos de extenso mdia, mesmo que a