MARX. Intro [Giannotti]

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MARX. Introdução ao Capital [Giannotti]

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  • CONSIDERAES SOBRE OMTODO1

    Jos Arthur Giannotti

    IO primeiro volume dO capital Crtica da economia polticafoi publicado em 1867, na Alemanha. Embora seu autor, KarlMarx, j tivesse emigrado para Londres em 1850, ele con-tinuava a manter profundas relaes com os alemes e oslderes dos movimentos operrios que participavam das poltic-as revolucionrias espalhadas por toda a Europa.

    O capital no foi escrito com intenes meramente tericas,no se propunha a elaborar uma nova viso dos acontecimen-tos econmicos nem aspirava ser mais uma notvel publicaodo mercado editorial: o que a obra pretendia era criticar ummodo de produo da riqueza essencialmente ancorado nomercado, isto , na troca de produtos sob a forma mercantil.Como possvel que uma troca que equalize produtos possasistematicamente produzir excedente econmico? Criar tantoriqueza como pobreza? Em sua anlise, Marx pretende mostrarque esse excedente provm da diferena entre o valor da forade trabalho e o valor que o trabalhador cria ao p-la em movi-mento. Espera, assim, provar cientificamente a especificidadeda explorao do trabalho pelo capital, inserida num modo deproduo que leva ao extremo o tradicional conflito de classesque marca toda a histria. No limite, esse conflito no teriacondies de ser superado?

  • No entanto, se o livro desde logo arma poltica, no porisso que foge dos padres mais rigorosos que regem as pub-licaes universitrias. O fato de nem sempre ter sido bemacolhido pelos pensadores acadmicos no quer dizer que suacomposio e seus passos analticos deixem de seguir uma met-odologia rigorosa e cuidadosamente traada, buscando umanova interpretao que pudesse pr em xeque o pensamentoestabelecido.

    Essa inteno crtica j se evidencia no subttulo da obra. Aeconomia poltica foi o primeiro esboo daquela cincia quehoje conhecemos sob o nome de economia. Como veremos,haver uma ruptura de paradigma entre essa forma antiga e anova, que a disciplina assume no sculo XX. Tal cincia nasceestudando como se constri e se mantm a riqueza das naes,como se desenvolvem o comrcio, o crdito, o juro, o sistemabancrio, o imposto, o Estado e assim por diante. Lembremosque o Estado, como formao poltica separada da totalidadeda plis, somente se configura de modo pleno no Ocidente apartir do Renascimento. De certo modo, a economia poltica a primeira forma de pensar as relaes de produo, o metabol-ismo do homem com a natureza retomando a linguagem fa-vorita do jovem Marx que as desliga de intervenes polticasdiretas. Note-se que o Estado sempre esteve presente no desen-volvimento capitalista, mas o mercado, principalmente na suafase adulta, recusa essa interferncia acreditando ser maiseficaz do que qualquer interveno pblica.

    Nos meados do sculo XIX, observa o prprio Marx, a novacincia se apresentava como um bom raciocnio formal: aproduo a universalidade, a distribuio e a troca, a particu-laridade, e o consumo, a singularidade na qual o todo se uni-fica2. Encadeamento superficial, porque deixa de lado ahistria. Esse comentrio aparece numa famosa introduo de

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  • 1857, que acompanharia o livro Contribuio crtica da eco-nomia poltica, o qual pretendia estudar parte o mtodo danova cincia inspirando-se na lgica hegeliana, cujo debate es-tava aceso entre os alemes, mas deixou de ser publicado porcausa de sua complexidade. Paradoxalmente, porm, tornou-seum dos textos clssicos da dialtica materialista. Somente veio luz, de forma definitiva, na coletnea de escritos inditos con-hecida como Grundrisse der Kritik der politischen konomie[Esboos da crtica da economia poltica]. Ao l-lo, desde logopercebemos que Marx critica seus pares no apenas porquedesenvolvem teorias incompatveis com os dados empricos,mas sobretudo porque aceitam uma viso errnea da naturezado prprio fenmeno econmico, tomando como real o queno passa de iluso criada pelo prprio capital.

    Vamos tentar mostrar os primeiros passos dessa crtica denatureza lgica e ontolgica, que, por ser a mais radical, muitasvezes tem sido deixada de lado. Por sua complexidade, porcerto exigir do leitor um esforo suplementar.

    IIO estudo da produo, distribuio, troca e consumo segue emgeral as linhas de um raciocnio correto, mas deixa de lado antima conexo das atividades elencadas3. Em particular ignorao lado histrico da produo, cuja forma varia ao longo dotempo conforme se moldam seus meios. Alm do mais, se a es-trutura das atividades econmicas depende de seu tempo, no por isso que elas seguem uma evoluo linear. Depois daquebra do comunismo primitivo, os sistemas produtivos se ar-ticularam em modos conforme se configurou a propriedade dosmeios de produo. Somente no capitalismo todos os seusfatores assumem a forma de mercadoria, o que logo desafia opensamento: como um sistema nessas condies, quando as

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  • partes so trocadas por seus valores, pode gerar um excedenteeconmico? A mercadoria no se confunde com um objeto detroca tribal, situao em que, por exemplo, um saco de alimen-tos no pode ser trocado por uma canoa, embora esta possa sertrocada por uma mulher. Nem se confunde com o escambo.Suas primeiras formas se encontram nas trocas regulares e pordinheiro entre comunidades separadas. Uma anlise dos fen-menos econmicos deve capturar as diferentes formas dessastrocas de um ponto de vista histrico.

    Ao dotar os conceitos de historicidade, Marx atenta para asdiferentes vias de suas particularizaes, assim como para asdiversas maneiras pelas quais o universal e o particular se rela-cionam. Se no h produo em geral, tambm no h igual-mente produo universal. A produo sempre um ramo par-ticular da produo por exemplo, agricultura, pecuria, man-ufatura etc. ou uma totalidade. Mas a economia poltica no tecnologia.4 Essa observao muito importante para com-preender o sentido da totalidade tal como pensada por Marx.J lembramos que uma das origens de seu pensamento foi a di-altica do idealismo absoluto. sintomtico que durante aredao do primeiro livro dO capital ele tenha relido a Cinciada lgica de Hegel. O vocabulrio e a inspirao desse livro,que funde lgica e ontologia, provocam nos comentadores deMarx as maiores dores de cabea e os maiores desatinos.

    Para Hegel, um conceito geral, como mesa, no apenas oque um olhar captura como propriedades comuns de vriasmesas. Tambm no se particulariza somando determinaes,propriedades predicveis (mesa de escrever, mesa de comer...).O conceito fruta, por exemplo, no o conjunto das pro-priedades inscritas em geral nas frutas. O conceito hegeliano jtraz em si o princpio de sua diferenciao. Nada tem a vercom o fregus que, ao comprar frutas, recusa laranjas, peras e

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  • figos, porque no encontra em cada coisa a universalidade queas engloba.

    Este exemplo a relao entre o gnero da fruta e suasespcies assemelha-se relao da produo em geral e suasparticularizaes. Os gneros vivos passam a existir mobiliz-ando duas foras contrapostas, o masculino e o feminino, quegeram indivduos igualmente polarizados. No acontece omesmo com a produo que se realiza na agricultura, na pecu-ria, na indstria, cada uma negando a outra de tal modo quese separam na medida em que conformam a unidade geral? Ummodo de produo como um todo (produo, distribuio,troca e consumo) no tem suas partes ligadas por essa mesmanegatividade produtora? E o mesmo no acontece com os di-versos atos de produzir que se diferenciam desde que possamser igualizados por um padro tecnolgico comum que se ex-pressa no valor? Por sua vez, no forma uma estrutura dotadade temporalidade prpria?

    Mas se, ao criticar a economia poltica positiva, tal como seconfigurava at o sculo XIX, Marx se inspira na dialticahegeliana, no por isso que aceita mergulhar nos mares doidealismo. Seria muito estranho que um materialista pudesseacreditar que tudo o que venha ser manifestao do EspritoAbsoluto. Marx, que tinha formao de jurista, tambm passarapela crtica que os neo-hegelianos de esquerda haviam feito aseu mestre. O desafio era dar peso ao real quando a dialticatudo reduz ao discurso do Esprito.

    IIINo posfcio dos Grundrisse, Marx explicita sua concepo deconcreto, o qual, insiste, seria a sntese de vrias determin-aes, isto , de propriedades atribudas a algo posto comosujeito de predicaes. No por isso que o real resultaria do

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  • pensamento como se brotasse do crebro, mas o pensar, pormeio de suas representaes, que isola na totalidade do real as-pectos que essa prpria totalidade diferenciou. O conceito de-ve, pois, nascer do prprio jogo do real acompanhado pelo ol-har do cientista. A mais simples categoria econmica, o valorde troca, pressupe a populao, uma populao produzindoem determinadas condies, e tambm certos tipos de famlias,comunidades ou Estados. O erro dos lgicos formais e dos eco-nomistas duplo. Primeiro, fazer do valor de troca uma pro-priedade de um objeto trocvel em qualquer situao histrica,deixando de diferenciar a troca de presentes entre certas etniasindgenas, a troca de indivduos por dinheiro num mercado deescravos e assim por diante. Aqui cabe investigar como o valorde troca de cada um desses produtos est ligado ao todo doprocesso produtivo. preciso, em contrapartida, sublinhar quesomente no modo capitalista de produo todos os seus in-sumos esto sob a forma de mercadoria. Mas isso somente setorna possvel, do ponto de vista da formao histrica, quandoaparece no mercado uma fora de trabalho desligada dequalquer outro vnculo social. No entanto, do ponto de vistaformal, cada objeto conformado para ser mercadoria postoem comparao com qualquer outro que venha ao mercado embusca de uma medida interna de trocabilidade. Numa situaode mercado, os valores de um escravo trazido de Angola e deoutro trazido da China podem ser traduzidos na mesma moeda,mas todo o processo de captur-los e transport-los pressionapara que eles tenham medidas diferentes. No o que tende aacontecer num modo de produo em que todos os insumosprovenham da forma da mercadoria.

    Nesse sistema, o valor de uso do produto fica bloqueadoenquanto estiver no circuito das trocas, e seu valor de trocapassa a ser expresso nos termos de qualquer outro produto que

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  • costuma aparecer no mercado. O valor de uso de um p de al-face que produzo para a venda precisa se exprimir numa certaquantidade de valor correspondente a cada um dos objetos quecomparecem ao mercado. Todos os produtos se tornam, assim,comparveis. Note-se que essa abstrao que captura a determ-inao valor de troca feita pelo prprio processo de troca opensamento apenas recolhe a distino feita. Alm do mais,esse valor, assim constitudo, contradiz a existncia do valor deuso no qual se assenta. O valor de troca depende do valor deuso, mas o nega, bloqueia seu exerccio, coloca-o entreparnteses. Para chegar at o consumo, a fruta deixa de sercomida para se consumir como objeto de troca, objeto cujaproduo foi financiada em vista de sua comercializao.

    Para Marx, embora o concreto, o real oposto aopensamento humano, se apresente como sntese de determin-aes, estas no so aspectos que os observadores encontrari-am na realidade sensvel para serem, em seguida, alinhavadosnuma coisa pensada. Por todos os lados assistimos a relaesde troca, mas o cientista precisa levar em conta que essa re-lao depende de produtores que vivem e operam segundo cer-tos costumes, nos quais os indivduos, sempre socializados, es-to ligados a famlias e a outras unidades sociais. Sabemos queantigamente as relaes de troca mercantil apareciam entre ascomunidades, quando essas relaes sociais deixavam de oper-ar. Somente no capitalismo que elas fazem parte do sistemacomo um todo e se do em sua pureza formal.

    Ao introduzir a categoria de modo de produo, Marxrompe definitivamente com o paradigma seguido pelos eco-nomistas de sua poca. Se a economia poltica pretendiaestudar como se gera a riqueza social, acreditava-se que eladeveria comear estudando o ato produtivo mais simples, o atode trabalho. Mas o homem um ser eminentemente histrico e

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  • social, cada totalidade produtiva situa o ato de trabalho numlugar muito determinado. Esse um princpio de que Marx noabre mo. Desse modo, imaginar que o processo produtivopudesse se fundar no ato individual de trabalho equivale a con-siderar a atividade de Robinson Cruso, isolado em sua ilha,como a matriz da produo de riqueza social. Mas o prprioCruso no trabalha segundo moldes que ele aprendeu naInglaterra de seu tempo? No podemos, pois, perder de vistaque o ato de trabalho se integra na totalidade do processoprodutivo segundo a trama das outras determinaes primrias:distribuio, troca e consumo. A trama categorial define a total-idade do processo. Ademais, como veremos, nem todo ato detrabalho numa empresa vem a ser socialmente produtivo doponto de vista da criao de valor.

    IVA riqueza das sociedades onde reina o modo de produocapitalista aparece como uma enorme coleo de mercadori-as, e a mercadoria singular como sua forma elementar. Nossainvestigao comea, por isso, com a anlise da mercadoria.a

    Essa a primeira frase dO capital. Note-se o carter histricoda anlise, que supe o conceito de modo de produo. Mas aforma deixa de lado toda a histria de sua gnese. No sodiferentes as condies em que o sistema capitalista se instalana Europa, nos Estados Unidos e nos pases perifricos, muitosdos quais, alis, retomaram a escravido? No necessrio dis-tinguir assim o movimento das categorias que se repem a simesmas e as condies histricas nas quais vm a ser? Essa du-alidade no afeta a prpria concepo de histria esboada porMarx?

    Cabe ento ter o cuidado de no confundir os dois tipos dedeterminao. Os aspectos formais no so vazios, mas sim

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  • aqueles que se reproduzem no ciclo produtivo. Insistimos queno processo capitalista de produo todos os insumos j apare-cem sob a forma de mercadoria, sua conjuno resulta naproduo de uma quantidade de mercadorias. Da ser ne-cessrio explicar essa categoria antes de perguntar como nasceo excedente. Cabe, ento, elucidar como se forma o valor. Noprimeiro captulo do livro, Marx segue os passos da inter-pretao do valor elaborada por David Ricardo, que, no livroPrincpios de economia poltica e tributao, pensa a mercador-ia no cruzamento de dois fatores: o valor de uso e o valor detroca. Mas a projeta no jogo dialtico das determinaeshegelianas.

    Um dado valor de uso de 10 bananas, por exemplo, se rela-ciona no mercado com 2 ps de alface, com 100 gramas de pde caf, com 1/x de um casaco, com 1/y de uma casa e assimpor diante. O primeiro passo consiste em tomar uma quan-tidade de valor de uso e relacion-la representativamente aqualquer outro objeto que venha ao mercado numa quantidadedeterminada. O segundo, indicar que entre essas quantidadespercola um igual, que passa a ser denominado valor. Qual suamedida? Visto que o trabalho o que essas quantidades de ob-jetos possuem em comum, essa projeo coloca o valor comouma quantidade de trabalho abstrato (porque indiferente s pe-culiaridades do ato produtivo), morto (porque inscrito no objetotrocvel) e socialmente necessrio (porque o consumo mostraro que necessita a sociedade como um todo). Note-se que no o observador o responsvel pela abstrao, mas o prprio pro-cesso de troca em sua generalidade. Nessas condies, o din-heiro representa essa espcie de valor, que se reproduz a simesmo no fim de cada ciclo. Cabe ainda observar que, no fun-cionamento da mercadoria, tal como ocorre em outros modos

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  • de produo, importa apenas o que est sendo reposto peloprprio sistema.

    No fundo, Marx segue os passos de David Ricardo, mastendo em vista uma objeo crucial, somente formulada em Te-orias da mais-valia. Esse texto haveria de compor o quarto livrodO capital, publicado postumamente, e reuniria os estudos dasteorias econmicas mais relevantes de seu tempo. A objeo a seguinte: ele e seus discpulos no percebem que todas asmercadorias, enquanto valores de troca, constituem apenas ex-presses relativas do tempo do trabalho social, sendo que suarelatividade no reside na relao em que se trocam mutua-mente, mas na relao de todas com o trabalho social comosua substncia5. Como bom empirista ingls, Ricardo consid-era que os valores de troca se relacionam uns com os outros ese esgotam nessa relao, no precisando encontrar um funda-mento. No leva em considerao que o relacionamentosomente se mantm num plano social se possuir uma ncoracomum, a substncia valor, como algo que se esconde em cadauma de suas determinaes singulares.

    Na filosofia clssica, a substncia o fundo que recebe to-das as predicaes, as determinaes, que as ampara e as pre-serva das invases de seus outros. a garantia da mesmidadeduma coisa, seja ela qual for. Hegel formula esse conceito desubstncia de um modo muito especial. No pargrafo 151 dapequena lgica que inicia a Enciclopdia das cinciasfilosficas em compndio, rompendo com a tradio, ele definesubstncia como uma relao que totaliza os acidentes nosquais ela se revela por sua negatividade absoluta, isto , que adistingue de tudo o que outro. A substncia da ma no aquela energia permanente que irrompe em cada flor da macie-ira para transform-la numa fruta especfica, mas aquilo que fazcom que esse fruto seja o que foi, o que e o que sempre ser.

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  • o processo de demarcar o que na ma especificamenterevelado pelo dizer da palavra fruta, revelando que ela res-ulta de uma flor particular, que recebe um plen especial, difer-ente de todos os outros seres vivos, vindo a ser em si e para sina medida em que exclui, nega, qualquer diferena de modoradical. No o que precisamente acontece com o valor? Ele a mesmidade de todos os valores de troca que como tais estonegando, impedindo, em particular, que se exeram os valoresde uso correspondentes. Uma mesmidade, porm, que valecomo tal porque renega qualquer outra determinao que noest sendo reposta pelo ciclo produtivo.

    Essa crtica tem enorme importncia. Muito se fala sobre ofetichismo da mercadoria, mas em geral no se leva em contaem que condies ele pode ser pensado e aceito como umfenmeno social. O fetichismo da mercadoria no uma de-terminao indutiva, nem uma hiptese a ser verificada empir-icamente. Por certo se percebe que a mercadoria opera no mer-cado como se fosse dotada de energia prpria. A anlisecientfica de Ricardo mostra que ela medida pelo tempo detrabalho morto, abstrato, socialmente necessrio suaproduo. como se, numa sociedade, durante um ano, todasas horas de trabalho, desenvolvidas segundo um mesmo padrotecnolgico, fossem somadas e repartidas entre os produtos queos membros dessa sociedade consumiriam de fato. Essa massaconfere medida de valor a cada produto e faz com que esteparea resultar daquela. Marx salienta a exterioridade que essamedida necessita assumir diante de cada coisa produzida. Elano neutra, funciona como se a fruta fosse responsvel pelaidentidade de cada ma, de cada pera, como se a medidaconstitusse o mensurado:

    A igualdade dos trabalhos humanos assume a forma material daigual objetividade de valor dos produtos do trabalho; a medida do

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  • dispndio de fora humana de trabalho por meio de sua duraoassume a forma da grandeza de valor dos produtos do trabalho; fi-nalmente, as relaes entre os produtores, nas quais se efetivamaquelas determinaes sociais de seu trabalho, assumem a formade uma relao social entre os produtos do trabalho.b

    A igualdade dos atos, a medida das foras gastas e a sociab-ilidade de tais atos aparecem como se fossem meras pro-priedades dos objetos postos em ao, amarrados como estopelo jogo formal das mercadorias, encontrando suas medidasnum equivalente que deixa de ser uma delas. O valor umasubstncia, mas uma substncia enganosa. A dialtica hegeli-ana captura a aparncia reificada das relaes capitalistas, masno por isso que tais relaes so de fato para sempre o queparecem. Esse engano, porm, permite que o trabalho com-parea na produo como coisa vendvel, a fora de trabalho,independente da individualidade de cada trabalhador. Para ostrabalhadores, o primeiro passo propriamente poltico contraessa reificao consiste em colocar em questo as condiessociais em que operam.

    Por certo a crtica marxiana no se exerce apenas do pontode vista mais amplo da lgica dialtica. Em muitos momentosMarx raciocina como um economista, examina e critica o fun-cionamento dos mercados. Isso lhe assegura um lugar dedestaque entre os fundadores da nova cincia. Mas levar emconta somente essa dimenso de sua crtica deixar de ladoseu projeto maior: a crtica da sociedade burguesa capaz de en-riquecer o movimento revolucionrio contra o capital. Examinacomo as formas de dominao e as relaes desiguais oper-antes no mercado de trabalho dependem da reificao das re-laes sociais, cuja base o fetichismo da mercadoria, mas secompletam nas formas mais desenvolvidas do capital.

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  • VO capital mais do que uma relao mercantil. Se a mercador-ia individual a forma elementar do produto obtido segundo omodo de produo capitalista, preciso dar mais um passoformal no entanto, historicamente determinado para que ocapital revele seu segredo. Uma anlise meramente histricano basta. Marx mostrar como o desenvolvimento do comr-cio provocou o acmulo de riqueza monetria, o que permitiua compra de uma nova mercadoria, a fora de trabalho, que seencontrava no mercado por causa da falncia do sistema deproduo feudal. Isso pelo menos na Europa. O servo fugiapara a cidade e l no se vendia como escravo, mas como tra-balhador a ser pago pelo tempo de trabalho que passava paraas mos do comprador.

    No entanto, essa condio histrica no explica a origemdo excedente que o sistema necessita e comea a produzir.Durante as aventuras martimas, o lucro provinha da diferenaentre o preo do material comprado num pas distante e suavenda perto do consumo. O modo de produo capitalista,porm, circular, visto que todos os seus insumos j devem es-tar sob a forma mercantil, todos devem provir de diversas re-laes de compra e venda. Se ele, de fato, instala a escravaturado negro na sua periferia, sobretudo nas Amricas, s se com-pleta realmente criando um capital total quando a destri nosculo XIX. Mas se conforma a circularidade de um sistemaprodutor de mercadorias por meio de mercadorias, de ondebrotaria o excedente sem o qual esse sistema no funciona? So-mente se num dado momento desse circuito a objetidade deum valor particular, o fetiche de ele ser uma coisa expressa emdinheiro, se quebra para se mostrar como atividade criadora.Obviamente essa mercadoria a fora de trabalho. Como issose processa formalmente?

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  • A troca formal entre as mercadorias mediadas pelo dinheiro(M-D-M) poderia continuar indefinidamente. Mas M agora uma contradio entre valor de uso e valor. O que Marx en-tende por ela? Muitas vezes em seus textos no h uma divisorgida entre contrariedade e contradio, e na lgica hegelianaa primeira naturalmente se desenvolve na segunda, pois ambasfazem parte do devir da ideia.

    Na linguagem corrente costumamos dizer que branco epreto so contrrios j que se colocam opostamente no sis-tema das cores, dando lugar, contudo, a cores intermediriasentre elas. Mas branco e no branco so contraditrios,porque, um sendo, o outro no pode existir de modo algum.Mas essas oposies so por excelncia vlidas no plano dasproposies, pois nelas que a questo da existncia aparece.No plano da linguagem fcil distinguir contrariedade de con-tradio: duas proposies contrrias (Toda ma azul eToda ma no azul) tm sentido, embora sejam falsas. Masduas proposies contraditrias (Alguma ma vermelha eNenhuma ma vermelha), se uma verdadeira, a outra ne-cessariamente falsa. como se a falsidade de uma corroesseintegralmente a verdade da outra. Hegel pretende encontrar noreal essa negao integralmente corrosiva, mas para isso toda anatureza passa a ser considerada como alienao do logos, darazo universal. No jogo de suas oposies, a prpria naturezase transformaria em esprito, que, por conservar em seu seio osdois momentos anteriores, o logos e a natureza, se mostra entocomo Esprito Absoluto. Essa trindade do real completo rep-resentada pelo cristianismo no mistrio da unidade do Pai, doFilho e do Esprito Santo.

    Na lgica hegeliana tais diferenas vo se adensando atformar uma contradio que se resolve constituindo-se numatotalidade superior. A contradio se superaria guardando os

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  • elementos anteriores modificados. a famosa Aufhebung.Mesmo do ponto de vista idealista, isto , de que todo o real logos, esprito, a soluo hegeliana no deixa de levantar prob-lemas. F. W. Schelling, que na juventude foi amigo ntimo deHegel e na velhice se tornou seu mais ferrenho adversrio,sempre sustentou que uma contradio nunca se resolveria semdeixar restos. Por certo ambos no advogam a mesma noo danegatividade.

    Obviamente a dialtica marxiana no poderia almejar umescopo to vasto. Continua buscando no concreto uma negat-ividade capaz de transformar as oposies, em particular aslutas de classe, numa contradio em que um dos termos fossecapaz de sobrepujar o outro e, por fim, aniquil-lo por com-pleto, ainda que conservasse o contedo das partes. Esse osentido mais profundo da revoluo. O capital no estuda ahistria da luta de classes, mas procura deslindar as articu-laes do modo de produo capitalista como um todo. Seuobjetivo, seu projeto, conduzir as diversas categorias geradaspelo desenvolvimento do comando do capital sobre o trabalhoat aquela contradio mxima entre o capital social total e otrabalhador geral. Essa desenharia o campo de batalha em queos adversrios, reduzidos s expresses mais simples, poderiamenfrentar o combate final em que eles mesmos perderiam suaidentidade e fechariam o processo de conformao do ser hu-mano, que, por ser a histria da servido, se abriria comohistria da liberdade.

    Marx afirma que toda histria a histria da luta de classes.No contexto de seu pensamento maduro essa tese encontraguarida na crise do sistema capitalista e espera que a crtica daeconomia poltica confirme suas teses de juventude. Ao capitaltotal corresponderia o proletrio total (o proletariado organiz-ado em classe revolucionria), mas o desenho dessa figura

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  • depende do funcionamento da alienao, principalmentequando ela se desenvolve nas figuras mais complexas do capit-al e do prprio trabalho. Em sua forma plena, o capital semostra um processo autnomo no qual ele mesmo gera natural-mente lucro; a terra, renda; e o trabalho, salrio. Numa das p-ginas mais belas do Livro III dO capital, a alienao da mer-cadoria assume a forma de uma lei natural. Do investimentobrota o lucro do mesmo modo que o cogumelo brota da terrafresca. Adquire tal autonomia que o dinheiro investido numbanco produz juros muitas vezes sem relacionamento diretocom o funcionamento da economia como um todo. A crise dosistema financeiro atual que o diga. A relao direta entre tra-balho e salrio encobre o fato de que esse trabalho deve entrarno sistema como mercadoria e que somente produtivo de val-or sob o comando do capital, na medida em que produz maisvalor. Desse modo, o trabalho do capitalista e de todos os ser-vios no so produtivos desse ponto de vista, a despeito deserem indispensveis. A mesma aula produtiva de valor ao serproferida numa escola particular que visa o lucro, mas deixa deo ser quando ministrada numa escola pblica.

    S podemos apontar essas linhas em que se assenta a crticamarxista da sociedade capitalista. Mas convm retomar algunsproblemas levantados pelo prprio desdobramento das formascategoriais. No plano do pensamento meramente abstrato f-cil passar do modo de produo simples de mercadoria (M-D-M-D...) para o modo de produo capitalista. Basta cortar a se-quncia e comear pelo dinheiro (D-M-D...). Mas o processomudou completamente de sentido. O proprietrio de D no um entesourador, mas algum que acumula dinheiro parainvesti-lo em busca de lucro. Sempre tendo um sistema legal aseu lado. A sequncia se mostra ento como (D-M-D-M-D...)em que cada representa um delta, um acrscimo ao dinheiro

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  • investido, ou melhor, do capital. De onde surge esse delta? Osfisiocratas achavam que a diferena nasceria da produo agr-cola, e o prprio Marx, na juventude, acompanhou aqueles queviam o mais-valor mbolo do processo brotando do prpriocomrcio. A teoria do valor de Ricardo lhe permitiu explicar adiferena entre o capital investido e o capital recebido comofruto do exerccio da fora de trabalho. Em termos muito gerais,podemos dizer que, tendo o capitalista comprado essa forapor seu valor, vale dizer, pela quantidade de trabalho abstratosocialmente necessria para sua produo e reproduo, cria ascondies do excedente, ao deixar que o trabalho morto (o val-or da fora da mercadoria fora de trabalho) se transforme emtrabalho vivo. A atividade do trabalhador se faz sob o comandodo capital segundo suas leis, e o produto lhe pertence de jure.O mais-valor, ou mais-valia, resulta, pois, da transformao dovalor de uma mercadoria que vem a ser pago depois que seuvalor de uso, sob o comando do capital, recria o antigo valorde troca como uma substncia capaz de aumentar por simesma.

    Note-se que, no plano formal, categorial, a criao do ex-cedente fica na dependncia de que a mercadoria-trabalho semantenha reificada como fetiche. No plano histrico, porm,esse crescimento aparentemente automtico depende da acu-mulao de riqueza capaz de comprar fora de trabalho livrenum mercado que, na Europa, se cria com a crise do sistemafeudal. Mas essa soluo terica tem resultados polticos ex-traordinrios. Engels e seus companheiros diro que Marxdescobriu a lei da explorao capitalista, pondo assim a nu anatureza econmica e poltica da explorao da classe trabal-hadora. E todo o movimento operrio aos poucos foi sendoconquistado por essa ideia.

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  • Na verdade essa prova terica no basta para alimentar umapoltica que no esteja associada a uma situao de crise. Emcondies normais, a venda e compra da fora de trabalho sed como um intercmbio justo e juridicamente perfeito emparticular nas condies de subemprego. Alm do mais, a meraconscincia de que o sistema capitalista produz tanto granderiqueza como a mais triste misria no cria por si s movimen-tos revolucionrios. Da a importncia da crise do prprio cap-ital, a disfuno e disjuno do sistema para gerar condiespolticas capazes de afetar o funcionamento da produo capit-alista. sintomtico que os tericos da revoluo sempre ten-ham sublinhado a necessidade de lideranas que proviessem defora da classe operria. No essa uma das teses de Lenin?

    Mesmo do ponto de vista poltico, entretanto, preciso teruma viso panormica do modo de produo capitalista paraque se compreenda o sentido pleno de sua contradio. RosaLuxemburgo costumava salientar, em suas lutas contra o lenin-ismo, que os lderes marxistas se contentavam em ler apenas oLivro I dO capital, deixando de lado as formas mais refinadasda reificao. Se este livro, na verdade, junta captulos maisformais com outros de mera investigao histrica, terminaestudando a lei geral da acumulao capitalista sem adentrar-senas condies de suas crises. O Livro II analisa o processo decirculao do capital e o terceiro que faz o balano completodo processo. Neste se examinam as relaes da mercadoria edo dinheiro, a transformao do dinheiro em capital, aproduo do mais-valor absoluto assim como do mais-valor re-lativo, a transformao do valor em salrio e outros momentosformais muito mais prximos da experincia concreta de quemvive as grandezas e as misrias do mundo capitalista. Mas nose fecha numa teoria da revoluo. A poltica marxista foi con-struda na base de outros textos de Marx e de Engels, e, como

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  • sempre foi posta a servio da revoluo, no estranho quevrios autores reclamem da ausncia de uma anlise mais com-pleta do jogo poltico como tal. E nesse campo as divergnciasse multiplicam.

    Marx s publicou o Livro I dO capital. Ao falecer, em1883, deixou uma fabulosa quantidade de material, que passoua ser trabalhada por Engels; em 1885, este publicou o Livro II e,em 1894, o Livro III. nesse ltimo que as condies da crisedo sistema deveriam eclodir, pois na sua totalidade que ascontrariedades bsicas se conformariam em contradiesprodutivas. J no Livro I Marx havia mostrado que a constitu-io do valor da mercadoria depende de que todos os agentesterminem tendo acesso aos progressos tecnolgicos que poten-cializam a produtividade do trabalho. Somente assim possvelque se crie uma nica medida do trabalho abstrato socialmentenecessrio, operando em qualquer ramo produtivo. Sem essepressuposto, os mercados no tenderiam a se unificar, o alin-havo dos diferentes capitais explodiria em direes diversas;por sua vez, o movimento proletrio perderia sua dimensounificadora internacional.

    No Livro III, Max introduz a noo de mais-valor relativo,aquele excedente de que o capitalista se apropria antes queseus concorrentes consigam ter acesso a novas tecnologias.Conforme se desenvolve, o capital se associa ao desenvolvi-mento tecnolgico e transformao das cincias em forasprodutivas. Somente mantendo o pressuposto de que no finaldo processo todos os capitalistas teriam acesso s inovaestecnolgicas que se cria a tendncia a uma reduo da taxade lucro. Essa tendncia seria o ponto nevrlgico em que ex-plodiria a contradio. Marx sempre apostou nesse pressuposto,mas o captulo em que trabalha tal questo descobre tantosfatores que freiam essa tendncia que nem todos os intrpretes

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  • chegam a uma concluso definitiva. At que ponto o mais-valorrelativo comea a emperrar a reposio do sistema?

    O prprio Marx logo toma conscincia dessas foras dis-solventes. J nos Grundrisse escreve:

    medida que a grande indstria se desenvolve, a criao dariqueza efetiva passa a depender menos do tempo de trabalho e doquantum de trabalho empregado que do poder dos agentes postosem movimento durante o tempo de trabalho, poder que sua po-derosa efetividade , por sua vez, no tem nenhuma relao com otempo de trabalho imediato que custa sua produo, mas que de-pende, ao contrrio, do nvel geral da cincia e do progresso datecnologia, ou da aplicao dessa cincia produo.6

    Depois de mais de 150 anos dessa observao, depois darevoluo da informtica, depois que a prpria cincia se trans-forma em fora produtiva, que efeito pode ter o desenvolvi-mento das cincias na conformao unificadora do capital?

    At mesmo a noo de propriedade privada passa a ser cor-roda. Conforme o sistema se torna mais complexo, as categori-as fundamentais comeam a fibrilar. E o monoplio se con-centra e mantm relaes ambguas com o Estado:

    Reproduz uma nova aristocracia financeira, nova espcie de para-sitas na figura de projetistas, fundadores e meros diretores nom-inais, fraudadores e mentirosos no que respeita aos empreendi-mentos, despesas de comrcio com aes. a produo privada,sem o controle da propriedade privada.7

    Estaria o prprio desenvolvimento do capital colocando emxeque suas bases primordiais, isto , a homogeneidade do tra-balho abstrato socialmente necessrio responsvel pela determ-inao do valor, de um lado, e a prpria noo de propriedadeprivada, de outro? A crise do sistema depende da ecloso de

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  • um ncleo contraditrio ou vai se alinhavando aos poucos pelafibrilao de suas categorias principais? No um dos mo-mentos em que se coloca o dilema reforma ou revoluo?

    O capital, este livro extraordinrio que ajudou a desenhar oespectro do comunismo que rondou a Europa at o final dosculo XX, que at hoje nos ajuda a ver a pujana da economiade mercado e os desastres de sua atuao, a fora que emprestaao desenvolvimento da tecnocincia e as aberraes de umasociedade consumista, tambm no nos convida a repensar suaproblemtica pela raiz?

    VIA partir de 1917, com a vitria da Revoluo Russa e a derrotados outros processos revolucionrios europeus, e do momentoque o internacionalismo dos movimentos proletrios se subor-dinou poltica da Terceira Internacional, em que a UnioSovitica tinha absoluta hegemonia, as obras de Marx e de En-gels foram reunidas num sistema fechado. As idas e vindas deum pensamento vivo e desafiador pouco a pouco tenderam adar lugar a uma viso de mundo esclerosada. Enquanto durou aUnio Sovitica, o marxismo foi ensinado como ideologia ofi-cial e a economia planificada pelo comit central apresentadacomo se fosse bom exemplo de uma economia sem mercado.Isso durou at que a Unio Sovitica se desintegrasse e os out-ros sistemas socialistas passassem a incorporar formas deproduo mercantil. Ainda hoje se ouve o mote socialismo oubarbrie, mas a palavra socialismo a empregada nasacepes mais diversas. Voltar aos textos de Marx no oprimeiro passo de quem pretende repensar essas questes?

    O capital foi publicado em 1867. Mas j em 1871 StanleyJevon publica Theory of Political Economy, montando uma ex-plicao do valor levando em conta as preferncias pessoais

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  • pelo uso dos objetos. Nessa mesma dcada, Carl Menger eLon Walras aperfeioam um novo equipamento conceitual,que termina por ser aceito pela maioria dos economistas. Aeconomia passa a funcionar apoiando-se num paradigma difer-ente do que aquele em que se apoiava a economia poltica. Osnovos economistas, alm dos custos de produo, passam tam-bm a considerar graus de demanda e de satisfao moral doconsumo, construindo instrumentos matemticos capazes demedir o valor marginal. Um turista perdido no deserto pagarmuito mais por um copo de gua do que o cidado que o com-pra num bar. Essas diferenas marginais podem ser tabeladasou expressas por curvas de preferncia. Nasce assim a eco-nomia marginalista que rompe inteiramente com a clssica eco-nomia poltica. Rompimento considervel, pois coloca nocentro do processo o agente racional sempre capaz de escolheros meios para atingir seus fins, otimizando suas satisfaes. Ohomo economicus substitui o trabalhador isolado de John StuartMill ou o homem social de Marx.

    Desse ponto de vista Marx seria considerado apenas um dosprecursores da cincia econmica. Mas ele prprio, junto comEngels, j se empenhara em combater outras interpretaes docapital e do projeto revolucionrio. Pierre-Joseph Proudhon foieleito o adversrio mais perigoso e Mikhail Bakunin, o polticomais deletrio. Por fim, a Revoluo Russa de 1917 assume ateoria marxista como parmetro de uma economia que preten-dia substituir os mecanismos de mercado por uma adminis-trao racional operada pelo Comit Central. Desde a, pelomenos em tese, na teoria econmica passaram a se enfrentarcomunistas, social-democratas e liberais. A derrocada da UnioSovitica alterou esse quadro. O paradigma do valor trabalhoquase desapareceu do pensamento econmico. At mesmodoutrinas que se inspiravam em Marx no o conservaram. o

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  • caso da teoria crtica, tambm conhecida por Escola de Frank-furt, na qual se destacam Theodor Adorno, Max Horkheimer,Walter Benjamin e Jrgen Habermas.

    Seja como for, se a cincia econmica hoje em dia sealicera em outros paradigmas e nada impede que se volte aoantigo, embora seja difcil uma virada to espetacular , nuncaa obra de Marx perdeu seu interesse e sua relevncia, a des-peito das idas e vindas das modas atuais do pensar. Como ex-plicar essa permanncia? Parece-me que isso ocorre porque ela mais do que um texto cientfico. Ao salientar a especificidadedas relaes fetichizadas do capital, a anlise retoma a antigaquesto do ser social e de sua historicidade. Mesmo um investi-gador do porte de Martin Heidegger um dos maiores de nossosculo, embora tenha se deixado encantar pelo nazismo nodeixa de incluir Marx entre os grandes filsofos do sculo XIXque contriburam para a compreenso do sentido da histria.

    No entanto, a questo hoje em dia mais do que terica. Agrande crise pela qual estamos passando coloca na pauta a ali-enao do capital, em particular do capital financeiro, e a ne-cessidade de alguma regulamentao internacional dos merca-dos. No fim das contas, que futuro queremos ter? possvelcolocar essa questo sem levar em conta as anlises deste livrochamado O capital?

    Janeiro de 2013

    Jos Arthur Giannotti professor emrito do departamento de Filosofia daUSP e coordenador da rea de Filosofia e Poltica do Centro Brasileiro deAnlise e Planejamento (Cebrap).

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