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UFPR/SCHLA
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE
O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
Ensaios em comemoração aos 15 anos de Crítica Marxista
Org. Sérgio Braga, Pedro Leão da Costa Neto, Marcos Vinícius Pansardi e Adriano Codato.
Curitiba-PR
1ª Edição
Coletânea de textos apresentados no evento realizado em Curitiba
em Homenagem aos 15 anos da revista CRÍTICA MARXISTA.
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SISTEMA DE BIBLIOTECAS
BIBLIOTECA CENTRALCOORDENAÇÃO DE PROCESSOS TÉCNICOS
Ficha catalográfica
Universidade Federal do Paraná. Setor de Ciências Humanas, U58 Letras e Artes. Marxismo & Ciências Humanas : leituras sobre o Capita- lismo num contexto de crise: ensaios em comemoração aos 15 anos de Crítica Marxista / Org. Sérgio Braga... [et al.]. -- Curitiba, 2011. 161p.
Vários autores Coletânea de textos apresentados no evento realizado em
Curitiba em homenagem aos 15 anos da revista Crítica Mar- xista.
Inclui referências e notas ISBN - 978-85-99229-08-8
1.Capitalismo. 2. Ciências Sociais – Coletânea. 3. Mar- xismo – Discursos, ensaios, conferências. 4. 15 anos de Críti-
ca Marxista. I. Braga, Sérgio. II. Título.
CDD 22.ed. 335.4 Samira Elias Simões CRB-9/ 755
Capa
Diagramação
Gustav [email protected]
Marti [email protected]
SCHLA/UFPR,2011
Sumário
Pág.
Apresentação (Os organizadores) _______________________________ 5
Caio Navarro de Toledo: Desafios e problemas de uma publicação marxista no Brasil: Crítica Marxista faz 15 anos._________________
7
Armando Boito & Luiz Eduardo Motta: Karl Marx no Brasil.________ 17
João Quartim de Moraes: O marxismo e os impasses do capitalismo contemporâneo. ___________________________________________
27
Isabel Loureiro: A recepção de Rosa Luxemburgo no Brasil._______ 43
Robespierre de Oliveira: A teoria crítica como teoria da mudança social: o marxismo de Marcuse. ______________________________
59
Anita Helena Schlesener: Gramsci e a cultura de seu tempo: observações sobre arte e literatura.____________________________
71
Marcos Vinícius Pansardi: Gramsci e as Relações Internacionais: hegemonia, dependência e imperialismo. ______________________
85
Francisco Paulo Cipolla: A evolução da teoria da crise em Marx. ____ 101
Claus Germer: As tendências de longo prazo da economia capitalista e a transição para o socialismo. ______________________________
117
Sérgio Braga: Nicos Poulantzas, as elites e a sociologia política norte-americana. __________________________________________
139
Adriano Codato: Política, ciência e ideologia: sobre o "teoricismo" de Nicos Poulantzas. ______________________________________
165
Pedro Leão da Costa Neto: Notas introdutórias sobre o desenvolvimento do marxismo no Leste Europeu.______________
175
Ligia Regina Klein: A luta pelas leis fabris do século XIX e a definição das idades do trabalho: um estudo sobre a constituição das noções de infância e adolescência. ________________________
185
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
5
Apresentação
(Os organizadores)
Os textos que constam desta publicação resultaram de
trabalhos que foram apresentados no evento Marxismo e Ciências
Humanas: leituras sobre o capitalismo num contexto de crise,
realizado em Curitiba em novembro de 2009 e destinado a
comemorar os 15 anos de lançamento da revista CRÍTICA
MARXISTA. Mais do que uma efeméride, o evento destinava-se a
debater com um público mais amplo do que aquele estritamente
universitário algumas questões teóricas importantes abordadas por
esta revista ─ e podemos dizer pelo marxismo de uma maneira
geral ─ ao longo de sua existência. Além disso, buscava-se ao
mesmo tempo ilustrar a vocação interdisciplinar e pluridimensional
desta perspectiva de análise, que desde suas origens transitou por
diversas disciplinas tais como a filosofia, a economia, a sociologia
política, e mesmo a crítica literária e cultural, dentre outras formas
de produção teórica no campo das ciências humanas.
Tudo isso explica algumas das características dos artigos
contidos na presente coletânea: a) em primeiro lugar, seu tom
didático e não-academicista, na medida em que resultaram de
debates e intervenções dos quais tomaram parte não apenas
pesquisadores universitários, mas também uma audiência externa
aos muros acadêmicos e interessada em tomar contato com
algumas das contribuições gerais da problemática teórica marxista;
b) em segundo lugar, sua natureza interdisciplinar, abrangendo
desde testemunhos e tentativas de auto-análise dos editores da
revista sobre a trajetória da publicação ao longo dos anos, até
ensaios nos campos da história do pensamento político, filosofia,
economia, teoria política, relações internacionais e sociologia da
educação; c) por fim, sua perspectiva crítica já que praticamente
todos os artigos reunidos nesta publicação trazem embutidos
dentro de si uma dimensão “normativa” que busca refletir sobre
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
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horizontes históricos situados para além dos sistemas sociais
capitalistas realmente existentes no mundo contemporâneo.
Tendo em vista esses fatores, a expectativa dos
organizadores é a de que a presente coletânea cumpra de
maneira satisfatória os objetivos não apenas de prestar uma
homenagem ao esforço militante dos editores de CRÍTICA
MARXISTA por terem mantido regularmente uma publicação do
gênero ao longo de todos estes anos e em condições muitas vezes
adversas, mas também o de ilustrar para um público não
estritamente especializado o vigor de um tipo específico de leitura
teórico-política da realidade social moderna cujas potencialidades
e desdobramentos teóricos e empíricos estão longe de terem se
esgotado.
Sérgio Braga
Pedro Leão da Costa Neto
Marcus Vinícius Pansardi
Adriano Codato
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
7
Desafios e problemas de uma
publicação marxista no Brasil: Crítica
Marxista faz 15 anosF
1
Caio Navarro de Toledo (Unicamp)2
ORIGENS: BREVE HISTÓRICO
Dezessete anos atrás alguns professores e pesquisadores, na
sua maioria da Unicamp, reuniram-se para discutir a possibilidade
de criação de uma revista marxista. Nessa conjuntura histórica, a
celebração do fim do socialismo e a hegemonia da doutrina
neoliberal tornavam este projeto um enorme desafio intelectual e
político. Duas formulações – amplamente difundidas pela mídia em
todo o mundo – sintetizavam o contexto ideológico do período: 1)
o triunfo da democracia liberal teria decretado o “fim da história” e
das ideologias (Francis Fukuyama) e 2) “não existiria mais
alternativa ao capitalismo” [tal como a expressão inglesa “There is
no alternative” (Tina) buscava exemplificar].
Os tempos, pois, se configuravam difíceis para os socialistas
e marxistas.
Desde 1992, diversos encontros se sucederam visando definir
o projeto editorial da publicação (seus objetivos, conteúdo,
periodicidade etc.) bem como a busca de uma editora comercial
que aceitasse publicar uma revista... de esquerda e marxista.
Faço uma breve uma digressão de natureza “sociológica”:
o que explicava a presença majoritária de acadêmicos da
Unicamp na discussão desse projeto editorial? Como explicar a
presença de apenas um professor da USP nestes encontros?
1 O texto que se segue orientou a intervenção do autor na abertura do Congresso “Marxismo e Ciências
Humanas”. Como foi esclarecido no início da sessão, as formulações aqui desenvolvidas são da estrita
responsabilidade do autor; ou seja, não expressam elas, necessariamente, o pensamento do conjunto do comitê editorial da revista Crítica Marxista.
2 Caio Navarro de Toledo é professor colaborador do IFCH/Unicamp.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
8
Descartando a hipótese do sectarismo por parte dos
docentes da Unicamp, a razão parece ser simples: nos anos 1980 e
1990 a teoria marxista deixou de ser uma referência relevante para
a reflexão e a pesquisa dos professores da USP, ao contrário do que
tinha ocorrido nos anos 1960 e 1970. Embora nestes anos a teoria
marxista nunca tivesse sido dominante no interior dos
Departamentos de Filosofia, Ciências Sociais e História da USP, era
inegável que seus docentes não eram indiferentes ao marxismo. O
contexto político e ideológico dos dois períodos – governo Jango e
a resistência à ditadura – certamente foi decisivo para explicar o
interesse pela teoria marxista. Como também observou Roberto
Schwartz, embora a direita tenha sido politicamente vitoriosa em
1964, durante a ditadura, a hegemonia no plano cultural e no
debate das idéias não deixava ser de esquerda.
Assim, se a obra de Marx não era regularmente ministrada
nas disciplinas de graduação da USP, não era, porém, ignorada por
seus docentes. Ignoradas eram, sim, as obras de Engels, Lênin, Rosa
bem como as de outros clássicos do marxismo.
Sabe-se que a obra decisiva de Marx, O capital, foi objeto
de um famoso grupo de estudos na USP; segundo alguns, este
Seminário teve duas edições. Na primeira, de fins dos anos 1950 até
início dos anos 1960, estavam professores que alcançariam
notoriedade nas décadas seguintes: FHC, José Arthur Giannotti,
Paul Singer, Fernando Novais, Octavio Ianni, Francisco Weffort e
outros; na sua 2ª. edição – segundo um artigo de E. Sader –,
estavam presentes jovens assistentes e pesquisadores; entre eles,
João Quartim, Roberto Schwartz, Ruy Fausto, Emília Viotti, Sérgio
Ferro, Michel Löwy, Emir Sader, Lourdes Sola e outros.
Se, de fato, ocorreram as duas edições do grupo sobre O
Capital, verifica-se que a 1ª. edição teve um caráter
eminentemente acadêmico (em uma palavra, a obra de Marx
interessava basicamente pelo seu caráter metodológico),
enquanto a segunda edição estava mais interessada pela
dimensão política do marxismo. Isto se evidenciaria pelo título da
revista criada em fins dos anos 1960: Teoria e Prática, editada por
Rui Fausto, Roberto Schwartz, M. Löwy e S. Ferro.
Nos anos 1980 e 1990, contudo, a teoria marxista deixaria de
estar presente nas cogitações dos filósofos e cientistas sociais da
USP. A rigor, hoje na USP, é possível contar na palma da mão o
número de professores que se reivindica marxista. Nos anos 1990, na
Unicamp, particularmente no IFCH, o marxismo era uma referência
importante e obrigatória nas aulas, na reflexão e nos trabalhos de
vários de seus docentes. Isto explicaria que, nos meios acadêmicos
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
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dos anos 1990, uma publicação de orientação marxista apenas
poderia surgir das iniciativas de alguns docentes da Unicamp.
Assim, com a colaboração de dois colegas de
universidades federais e um da USP, alguns professores da Unicamp
formularam um projeto editorial que navegaria na contracorrente
de duas intensas celebrações: a de mais uma morte do marxismo e
a do avanço do capitalismo neoliberal em todo o mundo. Um
projeto editorial – consubstanciado num Manifesto de fundação –
foi formulado e amplamente difundido nos meios acadêmicos de
todo o país. A enorme receptividade e o entusiasmo provocados
pelo documento convenceram-nos definitivamente do acerto de
nossa iniciativa intelectual e política. Impunha-se, pois, criar uma
revista que reafirmasse a relevância e a atualidade da teoria
marxista.
Citemos as palavras iniciais do texto fundador da revista pois
elas esclareciam o contexto intelectual e ideológico em que surgia
a revista e seus principais objetivos:
“Nenhuma teoria teve a sua morte tantas
vezes anunciada como o marxismo. O último desses anúncios fúnebres afirma que o marxismo teria sido superado na medida em que os trabalhadores repudiaram seus livros, suas teorias e seus símbolos. No Leste da Europa e na antiga URSS, não restariam hoje senão os escombros do socialismo e do marxismo (...)
Contra essa velha impostura reativada com a virulência que as atuais circunstâncias propiciam à reação internacional, é sempre tempo de relembrar que o marxismo continua sendo o instrumento teórico decisivo e insubstituível para a análise e transformação da realidade social contemporânea”.
CRIAÇÃO E OBJETIVOS DA REVISTA
Em 1994, foi lançado o primeiro no. de CRÍTICA MARXISTA. A
expressão crítica no nome não foi uma decisão arbitrária, pois
buscava identificar o projeto intelectual da revista. Por meio desta
noção, desejávamos afirmar que a teoria marxista é uma obra de
natureza eminentemente crítica; crítica da economia política,
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
10
crítica da filosofia idealista, crítica da ideologia burguesa, crítica do
Estado burguês e da ordem capitalista.
Ressalve-se, contudo, que esta abrangente crítica não
estaria fundada em bases idealistas ou voluntaristas; para os
editores da revista, o materialismo histórico é o fundamento teórico
decisivo e insubstituível para a análise, o conhecimento e a
transformação da realidade social contemporânea. Para nós, a
teoria marxista – que não se confunde com um receituário para a
superação de todas as mazelas e contradições do capitalismo –
dispõe de recursos analíticos que contribuem para o
enfrentamento dos difíceis e complexos desafios intelectuais e
políticos de nosso tempo; seus recursos autocríticos igualmente são
decisivos para a sua própria renovação conceitual e teórica. Para
nós, as teses e os conceitos desenvolvidos nas diferentes vertentes e
tradições do marxismo têm sido fecundos instrumentos de pesquisa
nos diferentes campos da reflexão teórica – na economia política,
nas ciências sociais, na filosofia e na cultura.
Desde o inicio, nosso projeto editorial definiu, pois, como seu
objetivo central o desenvolvimento e o aprofundamento da teoria
marxista. Embora a revista publique artigos e debates sobre
questões de ordem conjuntural, nossa “vocação” ou prioridade
maior é a de buscar contribuir para a discussão teórica do
marxismo no país. Afirmar a importância da dimensão teórica não
significa, no entanto, refugiar-se no terreno da pura abstração
conceitual ou no do mero teoricismo. Embora reconheçamos que
o trabalho teórico tenha uma relativa autonomia, também
concebemos que, freqüentemente, na prática social, teoria e
política estão indissociadas. Esta dimensão do marxismo clássico –
ignorada pelo chamado marxismo ocidental – ocupa um lugar
importante no conjunto de nossas convicções básicas.
Neste sentido, o parágrafo final de nosso Manifesto deve ser
lembrado pois, em certa medida, sintetiza o projeto editorial e
político da revista:
“Propugnar a validade teórica do
marxismo nunca será um ato gratuito e sem conseqüências. Significa reafirmar (...) a possibilidade histórica da revolução, do fim da exploração capitalista e da emancipação dos trabalhadores”.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
11
Ao contrário daqueles que se orientam por outras teorias
sociais, os marxistas afirmam que estão inteiramente envolvidos
com os conflitos sociais e políticos fundamentais de seu tempo. Não
havendo espaço para a neutralidade axiológica, cabe aos
marxistas identificar quais as opções políticas que, no presente,
melhor contribuem para o aprofundamento da luta anticapitalista
na direção do socialismo.
Como publicação de esquerda e marxista, CM não se
posiciona ou se identifica com as correntes existentes dentro do
espectro partidário no Brasil e no plano internacional. Pela natureza
de nosso trabalho intelectual, a revista não se posiciona sobre
questões conjunturais. Nosso engajamento se expressa
concretamente pelas questões discutidas e assuntos examinados
nas edições da revista. Neste sentido, o posicionamento da revista
se revela pelo fato de que nela colaboram e escrevem apenas
autores que se orientam pela teoria marxista e têm o socialismo
como horizonte político. O ecletismo teórico não tem espaço em
CM.
Embora a revista não se posicione sobre questões
conjunturais, no entanto, em determinadas circunstâncias muito
particulares, poderemos tomar determinadas iniciativas editoriais
na luta político-ideológica em curso no plano nacional ou
internacional. A este respeito, podemos citar duas iniciativas da
revista neste ano de 2009: a denúncia do massacre contra o povo
palestino (janeiro) e a defesa da liberdade para Cesare Battisti
(outubro).
O TRABALHO EDITORIAL: ESPECIFICIDADE, LIMITAÇÕES E
DESAFIOS
De forma sintética, pode-se afirmar que CM é uma revista
que privilegia a pesquisa e o debate teórico pois partimos do
pressuposto de que a obra marxista tem lacunas, dificuldades e
problemas internos que exigem desenvolvimentos e
aprofundamentos conceituais. Por outro lado, reconhecendo que,
na atualidade, são várias as correntes teóricas que se reivindicam
marxistas, entendemos que, na medida do possível, esta realidade
deveria se refletir na composição do comitê e no trabalho editorial
da revista.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
12
Dispensável dizer que o caráter plural da revista impõe que
a democracia interna seja uma efetiva realidade no modo de
funcionamento do comitê de redação e na produção editorial da
revista. Tais características distinguem CM das demais publicações
marxistas. Ou seja, o caráter teórico de sua produção, o pluralismo,
a democracia interna e a autonomia político-partidária são
virtudes do trabalho editorial da revista; tais características a
singularizam no conjunto das publicações marxistas e de esquerda,
ontem e hoje no Brasil.
Quando examinamos os projetos editoriais das demais
publicações marxistas existentes no país, evidencia-se a
especificidade da intervenção intelectual de CM. Valendo-se da
memória – não de uma pesquisa sistemática sobre o assunto –, diria
que poucas publicações, no passado e no presente, privilegiaram,
de forma sistemática, a obra teórica de Marx, os distintos aspectos
da teoria marxista, o debate teórico em torno da luta pelo
socialismo bem como as diferentes concepções ou vertentes do
marxismo contemporâneo.
ESTUDOS SOCIAIS, vinculada ao PCB e publicada do final
dos anos 1950 até o golpe de 1964, talvez tivesse, pelo seu caráter
inovador e crítico, alguma semelhança com nosso projeto; mas,
certamente seus vínculos partidários não deixavam de limitar sua
independência política e restringir o debate teórico interno. TEORIA
E PRÁTICA, citada anteriormente, na sua curta trajetória (apenas 3
nos. publicados), esteve voltada para a questão teórica, mas seus
fortes vínculos com a tendência de esquerda Política Operária
certamente comprometiam sua independência política. TEMAS DE
CIÊNCIAS HUMANAS, nos anos 1970, também privilegiou a reflexão
teórica, mas a orientação fortemente lukacsiana restringia o
debate dentro do marxismo. O mesmo poderia ser dito da revista
ENSAIO dirigida por José Chasin nos anos 1980 e 1990 e, mais
recentemente, editada por seus disciplinados discípulos: a obra de
Lukács da maturidade (a Ontologia do ser social) e os trabalhos de
Istvan Meszaros são referências obrigatórias dos textos que ali foram
publicados.
Igualmente de forma esquemática, mas sem que isso
implique uma análise arbitrária, tomemos as publicações que hoje,
entre nós, se reivindicam marxistas. Começando com a mais
antiga: editada há 23 anos, NOVOS RUMOS é uma publicação do
Instituto Astrojildo Pereira; originalmente vinculada a intelectuais do
antigo PCB, a revista, a rigor, não deixa de manter vínculos com
esta linhagem política e intelectual. Embora publique ensaios sobre
o marxismo têm eles, contudo, um caráter de divulgação teórica.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
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MARGEM ESQUERDA é uma verdadeira sucedânea da revista
Praga. Embora publique ensaios marxistas, como informa seu
subtítulo, ME não tem como eixo o debate sistemático sobre a
teoria marxista e as suas diferentes vertentes teóricas. Tal como seu
extenso Conselho editorial, constituído de acadêmicos que têm
distantes vínculos com o marxismo, ME publica, com freqüência,
textos de autores de esquerda, mas que não assumem o marxismo
como orientação teórica central. O estilo ensaístico, como a
própria revista reconhece, predomina na produção editorial de ME.
Por sua vez, OUTUBRO é uma publicação cuja produção e
conselho editoriais estão comprometidos com o pensamento
socialista; nas palavras de seus editores: “Outubro é uma
ferramenta de discussão e de formação teórico-política daqueles
sujeitos sociais comprometidos com a atualização do pensamento
socialista”. Ainda na autodefinição da revista, “suas principais
características são a ênfase na reflexão crítica e inovadora acerca
de problemáticas atuais, o pluralismo no campo da pesquisa e
uma abertura às diferentes vertentes do marxismo”. Criada em
1998, verifica-se que, nos últimos anos, amplia-se a participação na
revista de autores que não se vinculam aos quadros da IV
Internacional; mas, em contrapartida, sua reduzida Secretaria de
Redação não deixa de revelar a presença majoritária de
acadêmicos que se orientam por esta vertente do socialismo. Lutas
Sociais, publicação oficial de um programa de pós-graduação da
PUC-SP, é reconhecidamente uma atuante publicação de
esquerda e na qual colaboram acadêmicos marxistas; no entanto,
em virtude de seu vínculo institucional, não se define como uma
revista marxista.
Longe desta avaliação está um juízo de valor sobre as
revistas aqui nomeadas. O que buscamos ressaltar é a
especificidade ou particularidade do projeto editorial de CM
quando comparado com o das demais publicações marxistas,
ontem e hoje, existentes no país. Acredito que todas estas
publicações – desde que se empenhem com rigor e seriedade
intelectual na discussão e pesquisa sobre o materialismo histórico –
podem desempenhar um papel importante na elaboração e no
desenvolvimento do pensamento crítico e transformador no Brasil.
Que floresçam mais publicações de esquerda e marxistas de
qualidade nos meios acadêmicos e – principalmente – fora deles!
Por outro lado, é de se desejar que os editores de revistas marxistas
e de esquerda saibam criar formas de cooperação e de relações
que permitam difundir ainda mais o pensamento marxista e
socialista no Brasil.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
14
CM completa 15 anos. Isso não deixa de ser uma conquista
tendo em vista o caráter efêmero das publicações de esquerda e
marxistas no Brasil e em todo o mundo. Para chegar até aqui
dificuldades internas e externas foram superadas. Em alguns
momentos, divergências e conflitos no interior da editoria
dificultaram o funcionamento da revista. Igualmente dificuldades
externas existiram: por exemplo, até o presente, cinco foram as
editoras que abrigaram nosso projeto editorial. De forma
humorada, diria que nossos editores respeitam-nos
intelectualmente, mas nem sempre nos tratam bem...
Nesta avaliação de nossa trajetória não podemos também
deixar de reconhecer importantes limitações.
Uma importante limitação de nosso trabalho editorial é a de
que atuamos privilegiadamente nos meios acadêmicos pois aqui
estão nossos leitores, apoiadores e colaboradores. As tiragens da
revista – como das demais publicações universitárias – não
ultrapassam 1.500 exemplares. Certamente raros são os dirigentes e
militantes dos movimentos sociais e das forças políticas de
esquerda que leem a revista. Daí nosso desafio: o de buscar
permanentemente responder, de forma criativa, às necessidades
políticas e intelectuais dos militantes dos movimentos sociais e
políticos transformadores, hoje atuantes no Brasil. O risco do
teoricismo se espreita quando não levamos devidamente a sério
este desafio político e intelectual.
Quando afirmei acima que nossos editores nem sempre nos
“tratam bem” pretendia dizer o seguinte: a produção de cada no.
da revista praticamente depende apenas dos membros do comitê
editorial; as editoras comerciais não colocam seus recursos técnicos
e seu pessoal à nossa disposição pois não assumem a revista como
parte de seu projeto editorial. Não divulgam nem distribuem a
revista de forma ampla e eficiente. Por sua vez, os membros do
comitê produzem CM paralelamente às suas atividades docentes e
de pesquisa; isso significa que não podemos dedicar tempo
integral à revista.
Do ponto de vista editorial, um problema recorrente é o de
manter a qualidade da revista; se temos condições de publicar
traduções de textos de bom nível de revistas estrangeiras, são
reduzidos os trabalhos qualificados e originais que chegam à
editoria. Em certa medida é o domínio da cultura produtivista e o
“império” do curriculum Lattes, hoje presentes na universidade
brasileira, que explicam a produção de textos pouco qualificados
e, por vezes, de natureza quase escolar.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
15
Por outro lado, forçoso é reconhecer que nos meios
acadêmicos o marxismo cada vez mais deixa de conferir prestígio e
notoriedade àqueles que se orientam teoricamente por ele.
Pesquisas orientadas pelo marxismo não gozam de maior simpatia
e acolhimento por parte de agências financiadoras; centros de
estudos marxistas são mantidos sem maiores recursos em algumas
universidades; nas reuniões da Anpocs a presença de trabalhos
que discutem a teoria marxista é amplamente minoritária. Os
marxistas têm dificuldades para publicar seus textos – ou seja, livros
e ensaios em periódicos especializados. Quando têm seus livros
editados, raramente são eles resenhados; dispensável dizer que os
autores marxistas e socialistas não são convidados pela mídia
burguesa a divulgar e debater seus trabalhos etc. Tome-se o
exemplo de nossa revista: apesar de seus 15 anos de existência, CM
é, praticamente, uma ficção para a mídia burguesa.
Não obstante as limitações, as dificuldades e as
adversidades, creio que temos motivos para comemorar estes 15
anos de existência. Não apenas resistimos num contexto ideológico
e político adverso à existência de publicações marxistas e de
esquerda; por seu trabalho editorial efetivo – artigos, ensaios,
produção de dossiês e debates, entrevistas etc. –, CM conquistou
um lugar privilegiado na cultura política da esquerda brasileira.
Nossa revista é, hoje, uma importante referência para todos
acadêmicos e intelectuais que, no Brasil, se reconhecem no
campo do marxismo crítico e revolucionário.
Por último, um Congresso como o que aqui se realiza na
UFPr – possível em virtude da iniciativa colaboradores da revista – é
uma prova efetiva da relevância, vitalidade e pertinência do
trabalho editorial desenvolvido por CRÍTICA MARXISTA.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
17
Karl Marx no Brasil
Armando Boito (Unicamp)3 & Luiz Eduardo Motta (UFRJ)4
É crescente o interesse pela obra de Karl Marx no Brasil
atual. Essa tendência está perfeitamente integrada à nova vaga
de interesse pela obra do fundador do materialismo histórico em
escala internacional. Porém, a recepção da obra de Marx no Brasil
está marcada, evidentemente, pelas características da formação
social brasileira, pelas suas tradições intelectuais e pela conjuntura
teórica e ideológica do Brasil das décadas de 1990 e 2000.
A nova vaga internacional de interesse pela obra de Karl
Marx teve início na segunda metade da década de 1990, quando
o modelo capitalista neoliberal começou a apresentar fortes sinais
de desgaste. Alguns acontecimentos representativos desse
desgaste foram, na Europa, a greve geral que paralisou a França
durante os meses de novembro e dezembro de 1995, dando início
a uma nova fase da luta social na França que redundaria na vitória
do Partido Socialista nas eleições gerais de 1997, e, na América
Latina, a posse de Hugo Chávez na Presidência da Venezuela em
1999. No meio-tempo, em 1998, foram realizados, em diversos
países, encontros em comemoração aos 150 anos da publicação
do Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels. Numa época
em que se tinha proclamado, mais uma vez, a morte do marxismo,
a presença massiva de ativistas políticos e de intelectuais nesses
encontros surpreendeu os seus próprios organizadores.
ENCONTROS, CENTROS E ASSOCIAÇÕES
No Brasil, além dos diversos encontros comemorativos dos
150 anos do Manifesto Comunista, tivemos, em 2001, grandes
3 Professor de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Editor da revista Crítica Marxista.
4 Professor de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
18
eventos, em diversas cidades do país, em comemoração aos 130
anos da Comuna de Paris de 1871. Esses encontros já exibiam uma
das características da atual fase de interesse pela obra de Marx no
Brasil: de um lado, a aproximação entre ativistas políticos e
intelectuais no trabalho de recuperação do marxismo, porém, de
outro lado, a clara predominância do grupo intelectual e a
dependência desse trabalho de recuperação frente às instituições
culturais do Estado capitalista, principalmente as universidades.
Essa característica de origem estará presente na formação de
inúmeros centros de pesquisa marxista que foram organizados em
diversas universidades do país, nas revistas e nas demais
publicações que surgiram a partir da década de 1990, nos diversos
encontros científicos e culturais regulares que contam com a
participação majoritária de marxistas e na intervenção institucional
e organizada dos sociólogos, cientistas políticos, filósofos,
economistas e historiadores marxistas nas principais associações
científicas brasileiras.
Em 1996, foi criado o Centro de Estudos Marxistas (Cemarx)
na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Depois dessa
iniciativa pioneira, vários centros semelhantes foram criados em
diversas universidades públicas do Brasil. Hoje, existem centros
semelhantes na Universidade Federal Fluminense, na Universidade
Estadual do Sudoeste da Bahia, em universidades do Rio grande do
Sul e outras. O Cemarx realizou em 1999 na Unicamp o I Colóquio
Internacional Marx e Engels. Desde então, esse colóquio bienal tem
sido realizado regularmente, reunindo em cada uma de suas
edições centenas de pesquisadores de todo o Brasil. Na década
de 2000, foram surgindo encontros marxistas nacionais ou regionais
regulares, anuais ou bienais, e especializados tematicamente,
como, por exemplo, o encontro dos pesquisadores marxistas em
educação, o encontro dos pesquisadores de movimentos sociais
na América Latina da Universidade Estadual de Londrina, Paraná, o
encontro dos pesquisadores do trabalho na Universidade Estadual
Paulista de Marília, o colóquio Marx e Engels da Universidade de
São Paulo e outros. Esses e outros encontros reúnem, se somados,
milhares de pesquisadores anualmente ou bienalmente. Outro fato
a ser destacado nessa nova vaga de recuperação dos estudos
marxistas é a intervenção dos pesquisadores marxistas nas grandes
associações nacionais de sociólogos, de historiadores, de filósofos e
de economistas ─ Anpocs, Anpuh, Anpof, SEP. Essas associações
passaram a contar na sua estrutura organizativa com grupos de
trabalho formados por pesquisadores marxistas dedicados a
estudar o marxismo em suas respectivas áreas.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
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AS REVISTAS DE ONTEM E DE HOJE
No que respeita às publicações, façamos, inicialmente,
para efeito de comparação, uma remissão às gerações de revistas
e periódicos marxistas que precederam a geração atual. Tivemos
no Brasil algumas revistas ligadas ao Partido Comunista Brasileiro
que foram publicadas antes do golpe de Estado de 1964, como a
revista Problemas, Brasiliense e Estudos Sociais. Como marco inicial
da divulgação do marxismo não oficial, em geral de autores
identificados na corrente denominada de marxismo ocidental,
tivemos a Revista Civilização Brasileira criada por Enio Silveira (dono
da editora Civilização Brasileira e membro do Partido Comunista
Brasileiro) e Moacir Félix publicada entre os anos 1965 e 1968. Nela
foram divulgados os trabalhos de Lukács, Adam Schaff, Jean Paul
Sartre, Herbert Marcuse, Antonio Gramsci, Louis Althusser, além de
intelectuais brasileiros identificados com a teoria marxista ou
próximos desse campo como Nelson Werneck Sodré, José Arthur
Giannotti, Fernando Henrique Cardoso e Theotônio dos Santos. A
revista apesar de sua grande tiragem (10000 exemplares) não
sobreviveu ao fechamento do regime militar, que ampliou seus
poderes discricionários a partir de 1969. Outras revistas posteriores,
como as revistas Princípios e Novos Rumos, essas vinculadas
organicamente a partidos marxistas como o Partido Comunista do
Brasil (PC do B) e o Partido Comunista Brasileiro (PCB),
respectivamente, continuam sendo publicadas. Já a revista Teoria
& Política, lançada em 1980 por intelectuais de tendência marxista-
leninista, deixou de ser publicada nos anos 1990, assim como a
Presença, esta criada por intelectuais oriundos do PCB e afinados
com a perspectiva eurocomunista. Essas revistas de origem
partidária são publicações que, embora contem com a
participação ativa de intelectuais ligados às universidades, se
mantêm, principalmente, graças ao apoio da organização ou do
grupo político a que pertencem.
Com a nova geração de revistas marxistas, dos anos 1990 e
2000, passa-se algo distinto: elas são vinculadas a grupos de
intelectuais que trabalham e atuam, fundamentalmente, nas
universidades públicas do país. A publicação pioneira dessa nova
geração foi criada pelo mesmo grupo de intelectuais marxistas que
fundara o Cemarx da Unicamp ─ trata-se da publicação semestral
Crítica Marxista cujo primeiro número foi lançado em 1994. Os
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
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intelectuais que a criaram eram, na sua maioria, professores da
Unicamp e não se encontravam organizados em partidos políticos.
Ao longo dos anos que se sucederam, foram surgindo outras
publicações: Outubro, Margem Esquerda, História e Luta de Classes,
Marxismo Vivo, Novos Temas e outras 45.
Pode ser de interesse arrolar os nomes dos intelectuais
fundadores de algumas dessas publicações, pois eles são alguns
dos intelectuais marxistas que participam ativamente dessa fase de
recuperação do marxismo no Brasil. O Comitê Editorial que fundou
a revista Crítica Marxista em 1994 era integrado por Armando Boito,
Caio Navarro de Toledo, Celso Frederico, Décio Saes, João Quartim
de Moraes, João Roberto Martins Filho, Juarez Guimarães, Marcio
Naves, Ricardo Antunes e Sérgio Lessa. A revista Outubro,
publicação também semestral, foi lançada em 1998 e a sua
Comissão de Redação era formada por Álvaro Bianchi, Conrobert
Costa Neto, Edmundo Fernandes Dias, Elisa Guimarães, Flavio Lyra,
Hector Benoit e Marcio Naves. Margem Esquerda foi lançada em
2003 com o seu Comitê de Redação integrado por: Afrânio
Cattani, Conrobert Costa Neto, Celso Frederico, Jesus Ranieri,
Marcelo Ridenti, Marcio Naves, Maria Lúcia Barroco, Maria Quartim
de Moraes, Maria Orlanda Pinassi, Ricardo Antunes, Ricardo Musse,
Sedi Hirano. Essas três revistas, além de serem vinculadas,
fundamentalmente, ao meio universitário, têm o seu núcleo
dirigente localizado na cidade de São Paulo. Já História e Luta de
Classes é uma publicação marxista de jovens historiadores
animada, principalmente, por um grupo do Estado do Rio de
Janeiro. Foi criada em 2004 e tinha a sua Comissão Editorial
formada por Carla Silva, Enrique Padros, Florence Carboni,
Francisco Domingues, Gilberto Calil, Marcelo Badaró, Mario Maestri,
Theo Piñeiro e Virgínia Fontes. A revista Praga, que como já
afirmamos deixou de ser publicada, trazia na sua Comissão
Executiva Carlos Machado, Cilaine Cunha, Fernando Haddad,
Francisco Alambert, Isabel Maria Loureiro, Leda Paulani, Ricardo
Musse e Rubens Machado Jr.
Essas revistas agregam intelectuais marxistas filiados a
correntes marxistas, ou próximas do marxismo, bastante diversas,
correntes cujas obras de referência pertencem a Antonio Gramsci,
George Lukács, Louis Althusser, Escola de Frankfurt, E. P. Thompson e
outros. As revistas apresentam algumas características particulares
5 Duas outras revistas marxistas importantes, a revista Práxis, editada por um coletivo de intelectuais nacionalmente organizado, e Praga, próxima ao grupo de marxistas oriundos da FFLCH da
Universidade de São Paulo, surgiram na década de 1990, mas já deixaram de ser publicadas.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
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─ umas privilegiam os textos teóricos ou de análise estrutural da
economia e da sociedade capitalista, como é o caso de Crítica
Marxista, enquanto outras são mais abertas a temas da conjuntura,
como são os casos de Margem Esquerda e Outubro. Em todas elas,
contudo, podemos destacar duas características importantes.
Primeiro, como já afirmamos, a dependência frente ao aparelho
universitário do Estado brasileiro. Os intelectuais que organizam
essas revistas são, na sua quase totalidade, professores universitários
e o público leitor dessas publicações é, também,
fundamentalmente, o público universitário. Isso é verdadeiro
mesmo para revistas como Outubro, que tem vínculos com o
Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados (PSTU), e a Novos
Temas, que é vinculada indiretamente ao Partido Comunista
Brasileiro (PCB). Em segundo lugar, essas publicações trazem pouca
coisa sobre a obra de Marx. Predominam a análise da sociedade
capitalista, da conjuntura e, quando se trata de teoria,
predominam análises da obra de teóricos marxistas, como Gramsci
e Lukács, e de temas e polêmicas referentes aos diferentes
marxismos do século XX e dos debates que dividiram essas
correntes. Essas duas características marcam a nova vaga de
estudos marxistas no Brasil: dependência frente ao aparelho
universitário e foco do trabalho teórico, não na obra de Marx, mas
sim nas correntes marxistas do século XX.
Pelas razões apontadas, essa nova fase de valorização do
marxismo difere da fase anterior de estudos marxistas no Brasil. De
fato, nas décadas de 1930, 1940 e seguintes, quando a divulgação
da obra de Marx ganhou força no Brasil e quando a produção dos
marxistas brasileiros se tornou mais significativa, boa parte dessa
produção dava-se nos aparelhos culturais vinculados ao Partido
Comunista Brasileiro, não nas universidades. Podemos afirmar que o
marxismo só chegou à universidade quando, no final da década
de 1950, passou a se reunir o conhecido grupo de estudos de O
Capital, coordenado por José Arthur Giannotti na USP. Além de
correr em grande medida fora da universidade, a produção
teórica marxista era focada na obra do próprio Marx. No que
tange às análises históricas, econômicas e sociais, essa foi a fase
em que os marxistas brasileiros, também diferentemente daquilo
que predomina nas pesquisas marxistas atuais, dedicaram-se à
análise da natureza da sociedade brasileira – escravista? feudal?
capitalista? – e do processo de revolução burguesa no Brasil.
Destacaram-se nessa época os trabalhos de Caio Prado Jr., Nelson
Werneck Sodré, Florestan Fernandes, Luiz Pereira, Jacob Gorender,
Roberto Schwartz, José Arthur Giannotti, Ruy Fausto e muitos outros.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
22
PUBLICAÇÃO DE OBRAS DE MARX E SOBRE MARX
Voltemos ao período atual. A edição de obras de Marx
também ganhou um novo alento no Brasil. Esse ponto merece um
pequeno retrospecto histórico para informar o leitor.
A edição das obras de Marx e de Engels no Brasil é
deficiente, tanto no que respeita à quantidade de obras
publicadas quanto no que respeita à qualidade das traduções.
Obras importantes desses autores ainda não foram traduzidas ou só
o foram muito recentemente e muitas dessas edições se valeram
de outras traduções e não das obras originais. Consideremos, como
exemplos, a história das edições brasileiras de O Capital, a obra
magna de Marx, e a história das edições de O Manifesto do Partido
Comunista, texto de formação de gerações de militantes
comunistas em todo o mundo. Apenas em 1944, O Capital
apareceu no mercado editorial brasileiro na forma de uma edição
resumida, acompanhada de um estudo de Gabriel Deville –
Edições Cultura, São Paulo. A primeira edição completa de O
Capital e traduzida diretamente do alemão veio à luz apenas no
ano de 1960 graças à iniciativa da editora Civilização Brasileira do
Rio de Janeiro. Em 1986, a editora Abril lançou uma nova tradução
da obra maior de Karl Marx. Quanto ao Manifesto do Partido
Comunista, a sua primeira edição surgiu, salvo engano, apenas em
1945, pela Editora Horizonte da cidade do Rio de Janeiro. Esse texto
teve, no mesmo ano, uma edição publicada pelas Edições
Populares com introdução histórica de D. Riazanov e numerosos
documentos apendiculares, inéditos, inclusive os Estatutos da Liga
dos Comunistas e um estudo crítico comparativo das I, II e III
Internacionais. Depois disso, o Manifesto voltou a aparecer nas
Obras Escolhidas de Karl Marx e de F. Engels, publicadas pela
Editora Vitória, do Rio de Janeiro (José Nilo Tavares 1983: pp. 121-
123). A partir da década de 1970 e, principalmente nas décadas
de 1990 e 2000, o Manifesto teve inúmeras novas edições.
Hoje, duas editoras que têm dado destaque para
publicação de textos de Marx nos seus catálogos são as editoras
Boitempo e Expressão Popular. A Boitempo tem privilegiado a obra
de juventude de Marx (Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, A
Questão Judaica, A Sagrada Família, Manuscritos Econômicos-
Filosóficos), ou de seus escritos da segunda metade dos anos
1840(Ideologia Alemã, Miséria da Filosofia, Manifesto Comunista). A
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
23
Expressão Popular não se detém em nenhuma fase específica da
obra de Marx, publicando desde a Questão Judaica e o Manifesto
Comunista (numa edição popular) até As Lutas de Classe na
França, O 18 Brumário de Luís Bonaparte, Trabalho assalariado e
capital, Salário, preço e lucro, Contribuição à crítica da economia
política.
Nesses últimos 15 anos de revitalização do marxismo no
Brasil, foram publicados aproximadamente trinta livros que trataram
diretamente da obra de Marx, em grande parte resultados de
pesquisas universitárias, e, em destaque, oriundos das faculdades
de filosofia. Destacam-se dentre essas publicações os livros de
Francisco Teixeira, Pensando com Marx: uma leitura crítico-
comentada de O Capital (1995), Carlos Henrique Escobar, Marx,
filósofo da potência (1996), Jorge Grespan, O negativo do Capital.
O conceito de crise na crítica de Marx à economia política (1998),
Marcio Bilharinho Naves, Marx – ciência e revolução(2000), Jesus
Raniere, A câmara escura. Alienação e estranhamento em Marx
(2001), Ruy Fausto, Marx: Lógica &Política - Tomo III (Investigação
para uma reenstituição do sentido da dialética(2002), Celso
Frederico,O jovem Marx:1843-1844 - As origens da ontologia do ser
social(2009), Jose Chasin, Marx:estatuto ontológico e resolução
metodológica (2009), Hector Benoit/Jadir Antunes, Crise: o
movimento dialético do conceito de crise em O capital de Marx
(2009), e a coletânea organizada por Armando Boito, Caio Navarro
de Toledo, Jesus Raniere e Patrícia Tropia A obra teórica de Marx –
atualidade, problemas e interpretações (2000), que publicou os
trabalhos apresentados no I Colóquio Marx-Engels de 1999. Apesar
de não tratar principalmente da obra de Marx, mas do marxismo
no Brasil, merece destaque a obra coletiva História do Marxismo no
Brasil. Esse trabalho, publicado em seis volumes, reuniu dezenas de
autores sob a coordenação de João Quartim de Moraes, Daniel
Aarão Reis, Marcos Del Roio e Marcelo Ridenti. Também a
republicação das obras de autores marxistas como Caio Prado Jr.,
Nelson Werneck Sodré e Florestan Fernandes tem sido uma marca
no campo editorial nesse contexto de revitalização do marxismo.
UMA QUESTÃO PARA ENCERRAR
O crescimento do marxismo no interior do aparelho
universitário pode ser explicado pela situação atual e recente da
sociedade brasileira. O Brasil possui um aparelho universitário
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
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grande, com centenas de cursos de pós-graduação financiados
pelo Estado e que reúne dezenas de milhares de professores,
pesquisadores e estudantes. Muitos desses universitários são de
origem popular. Mas, o Brasil não possui uma forte tradição de
organização partidária de massa da classe operária. O PCB
aproximou-se dessa característica nas décadas de 1940 e 1950,
mas, logo, foi jogado na clandestinidade. O Partido dos
Trabalhadores (PT) também se aproximou do perfil de um partido
operário de massa, mas, desde seu nascimento, sua tendência
majoritária foi indiferente ou mesmo hostil ao marxismo. Um tema
importante a ser analisado seria verificar o quanto a inserção
universitária influi nas características da fase atual de recuperação
do marxismo no Brasil.
Alguns títulos publicados no Brasil nos últimos quinze anos
sobre a obra de Karl Marx:
BENOIT, Alcides Hector e ANTUNES, Jader. Crise: o movimento
dialético do conceito de crise em O capital de Marx. São
Paulo: Tykhe, 2009.
BOITO, Armando; TOLEDO Caio Navarro de; RANIERE Jesus; TROPIA,
Patrícia (orgs.), A obra teórica de Marx – atualidade,
problemas e interpretações.São Paulo, Editora Xamã, 2000.
CHASIN Jose. Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica.
São Paulo, Boitempo, 2009.
COUTINHO, Mauricio Chalfin. Marx: Notas sobre a Teoria do Capital.
São Paulo: Hucitec, 1997.
ESCOBAR, Carlos Henrique, Marx trágico: o marxismo de Marx. Rio
de Janeiro Ed. Taurus, 1993.
________________________, Marx, filósofo da potência. Rio de Janeiro,
Editora Taurus, 1996.
FAUSTO, Ruy, Marx: Lógica &Política - Tomo III (Investigação para
uma reconstituição do sentido da dialética). São Paulo:
Editora 34, 2002.
FREDERICO, Celso, O jovem Marx: 1843-1844 – as origens da
ontologia do ser social. São Paulo, Ed. Expressão Popular,
2009.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
25
________________ e TEIXEIRA, Francisco José Soares. Marx no século
XXI. São Paulo: Cortez, 2008.
GIANNOTTI, José Arthur, Certa herança marxista. São Paulo, Cia.
das Letras, 2002.
GRESPAN, Jorge, O negativo do capital. O conceito de crise na
crítica de Marx à economia política. São Paulo: HUCITEC,
1998.
MELO, Fernando Jader de Magalhães, 10 Lições Sobre Marx. Rio de
Janeiro, Vozes, 2009.
MELLO, Alex Fiúza de. Marx e a globalização. São Paulo, Boitempo,
1999.
MORAES, João Quartim; DEL ROIO, Marcos; REIS, Daniel Aarão;
RIDENTI, Marcelo. História do Marxismo no Brasil. Campinas,
Editora da Unicamp, 2007, 3a edição.
NAVES, Marcio Bilharinho. Marx – ciência e revolução. São
Paulo/Campinas, Ed. Moderna/Editora da Unicamp, 2000.
PAULA, João Antonio de Paula, O ensaio geral – Marx e a crítica da
economia política (1857-1858). Belo Horizonte, Ed. Autêntica,
2010.
POGREBINSCHI, Thamy. O enigma do político. Marx contra a
política moderna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
RANIERI, Jose. A câmara escura. Alienação e estranhamento em
Marx. São Paulo: Boitempo editorial, 2001.
ROMERO, Daniel, Marx e a técnica: um estudo dos manuscritos de
1861-1863. São Paulo, Ed. Expressão Popular, 2005.
SADER, Emir. Estado e política em Marx. São Paulo: Cortez, 1993.
SAMPAIO, Benedicto Arthur/ FREDERICO, Celso, Dialética e
materialismo - Marx entre Hegel e Feurbach. Rio de Janeiro:
Editora: UFRJ, 2006.
TAVARES, José Nilo, Marx, o socialismo e o Brasil. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1983.
TEIXEIRA, Francisco José Soares. Pensando com Marx: uma leitura
crítico-comentada de O Capital. São Paulo: Ensaio, 1995.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
27
O marxismo e os impasses do
capitalismo contemporâneo
João Quartim Moraes6
Explicito liminarmente a hipótese em que se apóia a
presente intervenção: sem a atualização teórica empreendida por
Lênin a partir de 1916, o marxismo não explicaria o curso histórico
do século XX. Corremos o risco de perturbar os leitores talmúdicos
do Capital e de outros textos fundadores. Mas dirigimo-nos a quem
está interessado em analisar e pensar e não em repetir liturgias.
Que entender por impasses do capitalismo
contemporâneo? À esquerda, não faltam os que, embora
reconhecendo os aspectos perversos da nova ordem liberal-
imperial, aceitam caracterizá-la como "globalização". Imaginam
com isso estar sendo lúcidos e modernos. Talvez a mais séria
tentativa, entre nós, de conferir ao termo globalização um estatuto
teórico foi a empreendida em Poder e dinheiro, obra coletiva
publicada em 1997 (FIORI; TAVARES, M, 1997). Já na Apresentação,
não assinada, deparamo-nos com o argumento de que a despeito
de “sua visível imprecisão conceitual[...] poucas palavras possuem
tamanha força política neste final de século XX” (FIORI; TAVARES, M,
1997: 7).Sem dúvida, é preciso levar em conta o valor de troca das
palavras, tal como elas circulam no senso-comum. Mas para
analisá-las em vez de adotá-las sem crítica. Globalização, por sua
intrínseca ambigüidade e suas conotações falaciosamente
“positivas”, engana muitos. Para ficarmos em nosso país, a
economia colonial brasileira surgiu sob domínio português,
cultivando uma planta asiática (a cana de açúcar) com escravos
trazidos em escala crescente da África, sob controle do capital
6 João Quartim de Moraes é professor titular aposentado do departamento de Filosofia da Unicamp e
membro do Conselho Editorial da revista Crítica Marxista.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
28
mercantil europeu. É possível maior globalização do que essa, que
remonta ao século XVI?
O argumento de que também o termo imperialismo,
quando surgiu, em meados do século XIX, pertencia ao “jargão
jornalístico”, tornando-se, porém, “depois da obra clássica de John
Hobson”, “peça teórica essencial da economia política do século
XX” (FIORI; TAVARES, M, 1997: 7), esquece uma diferença, que não
é pequena,entre os dois termos. Imperialismo não engana
ninguém. É domínio baseado na força. Claro que seus partidários
assumidos, como o célebre Disraeli, atribuíam-lhe missão civilizatória
(Bush e a OTAN não inventaram nada). Assim como os europeus
aniquilaram as sociedades autóctones do Novo Mundo para
catequizá-las (“a good indian is a dead indian”, diria mais tarde o
general Custer), o Pentágono e a OTAN, ditando o argumento da
força no mundo “globalizado”, arrasam países rebeldes por motivos
“humanitários”, para “libertar o Kuait”, impedir “uma limpeza étnica
no Kosovo”, “combater o terrorismo internacional”, implantar o que
eles chamam “democracy”7 etc.
Que não basta invocar a força de uma idéia para levar a
sério, ainda que parcialmente, sua pretensão de objetividade,
comprova-o o apoio maciço que recebeu na Alemanha
"civilizada" a idéia hitleriana da superioridade racial dos povos
"arianos".A idéia de "globalização", até por não se apoiar em
doutrinas intrinsecamente odiosas como o nazismo, difundiu-se com
mais facilidade. O termo serve para ocultar não somente a
permanência, mas também a furibunda exacerbação da opressão
imperialista numa situação internacional caracterizada não mais
pelo predomínio do confronto entre o bloco soviético e o
"Ocidente" e sim pelo predomínio do bloco das grandes potências
capitalistas sob hegemonia estadunidense, cujo braço militar é a
OTAN.
É essa a maior mistificação da ideologia da "globalização":
sugerir que o imperialismo foi ultrapassado e que, com a
derrubada do muro de Berlim, hoje viveríamos num mundo sem
muros nem fronteiras. Com aquele muro, porém caíram apenas as
barreiras estatais que separavam o bloco da OTAN do bloco
soviético. Dois outros muros, muito mais cruéis e mortíferos do que o
7 Na periferia do imperialismo, quando o povo ouve um gringo do Pentágono cacarejar “democracy, democracy”, vai logo correndo se entocar, porque os mísseis costumam vir logo atrás. Em torno de 500
mil crianças morreram de fome no Iraque, antes da invasão e ocupação por tropas do império norte-
americano, por conta do embargo econômico contra aquele país. Madeleine Albright, secretária de Estado do governo de Clinton, quando perguntada sobre o fato respondeu “que é um preço que
pagamos pela democracia”.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
29
de Berlim, foram respectivamente construídos pelos imperialistas
estadunidenses e por seus sócios facho-sionistas.
A construção do muro do México foi decidida pelo então
presidente Clinton, em julho 1994, no âmbito do plano intitulado
"prevention through deterrence", que colocou a fronteira entre os
dois países, do Pacífico ao Atlântico, sob forte e implacável
vigilância policial. Alguns meses antes, em 4 de janeiro de 1994, o
presidente mexicano Carlos Salinas, saqueador contumaz dos
fundos públicos, tinha assinado com Clinton o tratado que instituía
o “Acordo de livre comércio da América do Norte” (NAFTA em
inglês), cuja lógica consistia na colaboração entre os tubarões e as
sardinhas. Ironia patética, mas funcional: para os capitalistas, total
liberdade de investir onde os lucros são maiores, mas para os
trabalhadores mexicanos, que ganhavam menos de 5 dólares
numa jornada de trabalho de 9 horas, um grande muro para
impedi-los de trabalhar nos Estados-Unidos, onde poderiam ganhar
5 dólares por hora. Naquele momento, cerca de 8 milhões de
"chicanos", dos quais uns 3 milhões em situação ilegal, tinham
conseguidochegar ao outro lado da fronteira, indo somar-se aos 12
milhões de mexicanos de origem nascidos nos Estados-Unidos.
“Latinos" demais, querendo ganhar salários de «primeiro mundo».
O muro da Palestina, cuja edificação começou em 2002,
por ordem do então primeiro ministro israelense, Ariel Sharon (um
dos mais consumados genocidas de nossa época) foi condenado
pelo Tribunal Internacional de Justiça de Haia, em 2004, porque
corta terras ocupadas ilegalmente e isola cerca de 450.000
palestinos. Infelizmente, graças ao apoio irrestrito da Casa Branca e
do Pentágono, Israel ignora cinicamente as condenações que o
atingem e continua a recorrer impunemente ao terrorismo de
Estado.
Há quem, diante da evidente proliferação de muros e de
fronteiras que discriminam sobretudo os pobres da periferia, fale em
globalização imperialista ou em imperialismo globalizado8. Mas isso
só serve para confundir ainda mais a terminologia. Tampouco
ajuda a esclarecer a especificidade do capitalismo
contemporâneo constatar, como fez J. L. Fiori em Poder e dinheiro,
que “a idéia de globalização reina inconteste no discurso das elites
mundiais” e que, portanto, não é provável que sua força “se deva
apenas à capacidade de falsificação e de convencimento dos
8Noções superficiais ou totalmente abstratas como estas prestam-se aos mais diversos usos ideológicos.
Muitos franceses, com cosmético patriotismo léxico, preferemdizer “mondialisation”, para não usar o “globalization” made in USA. Mas a diferença semântica entre um mundo globalizado e um globo
mundializado é a mesma que entre seis e meia dúzia.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
30
meios de comunicação”. Segundo ele, com efeito, o termo opera
uma “inversão ideológica” que, “como tal realiza uma inversão da
própria realidade, desvelando e ocultando ao mesmo tempo
aspectos do mundo contemporâneo que são parcialmente reais”9.
Para não dispersar o argumento, deixemos de lado essa curiosa
categoria de realidade parcial e admitamos que a expressão
“elites mundiais” equivale àquilo que o marxista estadunidense
James O’Connor, menos nebulosamente, designa por “classe
dominante internacional”10. Mas de qual realidade a
“globalization” seria a expressão invertida? O que ela desvela e o
que ela oculta e mistifica?
Já tínhamos adiantado acima que ela camufla o
imperialismo de nosso tempo: sustentar que os interesses nacionais
estariam ultrapassados, é excelente maneira de servir os interesses
nacionais dos Estados Unidos. O que ela desvela é muito pouco:
inflexões no capitalismo internacional que resultam, no essencial,
de decisões impostas pelo imperialismo estadunidense ao sabor de
seus próprios interesses nacionais. Assim, em 1979, Paul Volcker, que
acabara de assumir o comando do Federal Reserve, não tendo
obtido apoio de seus sócios do FMI para fortalecer o dólar (cuja
taxa de inflação se aproximava de 15% ao ano), tomou
unilateralmente a decisão de elevar brusca e brutalmente a taxa
de juros, para atrair os dólares que estavam “flutuando” nas mãos
dos especuladores do mundo inteiro. Esta medida desencadeou
tremendo efeito recessivo, que se propagou por todo o sistema
capitalista internacional e, ainda mais duramente pela periferia,
provocando na América Latina, com a chamada “crise da dívida
externa”, duas décadas de retrocesso econômico. Ao influxo do
estímulo cumulativo da hiperbólica elevação da taxa de juros
estadunidenses e da “desregulamentação” neoliberal11 do
mercado de capitais, massas crescentes de capital-dinheiro,
guiadas pela rentabilidade das aplicações ponderada pela “taxa
de risco”, autonomizaram-se em “mercados financeiros” a cujas
oscilações ficariam subordinadas a riqueza e, sobretudo a miséria
da grande maioria da humanidade. Tal é a origem da
impropriamente chamada globalização financeira.
9 J. L. Fiori, “Globalização, hegemonia, império”, (FIORI; TAVARES, M, 1997: 88).
10 Analisamos mais adiante as teses de O’Connor sobre a teoria do imperialismo.
11O prefixo neo justifica-se plenamente para designar esse liberalismo reacionário, que contrariamente
ao velho liberalismo do século XIX, que se opôs também aos privilégios aristocráticos e ao obscurantismo eclesiástico, combate numa só frente contra as conquistas democráticas da classe
operária e dos trabalhadores assalariados em geral.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
31
Impropriamente: desde que, no final do século XIX, a
concentração da produção encontrou sua forma jurídica
adequada nas sociedades por ações, consolidou-se a separação
entre a propriedade do capital e o comando do processo
produtivo, transformado em administração de capital alheio. A
possibilidade de negociar ações nas Bolsas, ao lado dos demais
papéis em circulação (obrigações, títulos do Estado etc.)
aprofundou essa separação, que no início do século XX já havia
assumido as dimensões assinaladas por Lênin, que compreendendo
a importância das análises do inglês Hobson e do marxista alemão
Hilferding (mais tarde assassinado pelos nazistas), já discernira a
lógica objetiva que conduzia à ditadura planetária do capital
financeiro:
“O imperialismo é uma imensa
acumulação de capital-dinheiro num pequeno número de países[...]. Daí o extraordinário desenvolvimento da classe ou, mais exatamente, da camada dos que vivem de rendas financeiras (rentiers)[...], totalmente alheios à participação numa empresa qualquer e cuja profissão é a ociosidade. A exportação de capitais, uma das bases econômicas essenciais do imperialismo[...] confere uma chancela de parasitismo ao conjunto do país vivendo da exploração do trabalho de alguns países e colônias d’além-mar”12.
A expansão do parasitismo financeiro foi contida, por um
longo período, pela correlação internacional de forças instaurada
pela revolução socialista de outubro 1917 e mais ainda pelo
equilíbrio político-estratégico resultante da vitória soviética sobre o
nazismo, que permitiu à classe operária dos Estados capitalistas
conquistar os direitos sociais consubstanciados no chamado
“Welfare State”. Mas em 1979, mesmo ano em que Paul Volcker
chamou os dólares de volta para Wall Street oferecendo juros
altíssimos, a política econômica preconizada por Hayek e consortes
da “escola de Chicago” (já aplicada experimentalmente no Chile,
sob a bota de Pinochet, pelos "Chicago-boys"), foi posta em
aplicação na Inglaterra pela ultra-reacionária Margaret Thatcher,
que assumiu fria e explicitamente a “obra” de destruição do
12 (LÉNINE, 1960: 290). No capítulo VIII de Imperialismo, estágio superior do capitalismo: “O
parasitismo e a putrefação do capitalismo”.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
32
“Welfare State”, promovendo o retrocesso à situação social da
“Belle Époque”. Logo em seguida, em 1980, quando o macartista R.
Reagan chegou à presidência do Império estadunidense, a "nova
economia" se impôs no centro hegemônico do capitalismo
internacional (Nos Estados Unidos, é verdade, havia menos a
demolir: o “sonho americano” de ficar mais rico que o vizinho
nunca abrira espaço para amplas conquistas sociais dos
trabalhadores).
A derrocada soviética de 1989-1991 facilitou novos ataques
ao “Welfare State” e a “desregulamentação” generalizada dos
movimentos do capital especulativo abriu caminho para a
proliferação (aliás “alavancagem”) de títulos cada vez mais
fictícios nas mãos dos sedentos morcegos da especulação
financeira, sugando seu quinhão de juros na massa da mais-valia13.
Entrementes, tendo domado a inflação e reanimado o
dólar, o Federal Reserve foi gradualmente baixando os juros, de
modo a reanimar a carcomida economia estadunidense: ao longo
dos anos 1990, amparado pelo êxito da contra-revolução
capitalista em curso, ocorreu um novo ciclo de expansão dos
negócios, interrompido no início de 2001, mas retomado em 2002.
Da fórmula desse novo surto faziam parte (a) o crescimento
econômico acelerado de países da Ásia oriental, sobretudo da
China, mas também da Índia e do Vietnã; (b) a acumulação de
um colossal déficit externo estadunidense, “financiado” pelo poder
de imprimir dólares; (c) o endividamento dos consumidores
estadunidenses, alimentado pela especulação no mercado de
ações e dos negócios imobiliários.
O baile dos vampiros durou até 2008, quando a
desmesurada “bolha” dos “créditos podres” conduziu Wall Street à
bancarrota. O apelo aos fundos públicos para atenuar os efeitos
dessa grande bancarrota nos põe diante das questões decisivas
sobre o novo curso do capitalismo internacional. Sem dúvida, Bush
e consortes só violaram seu fundamentalismo mercadológico
porque foram forçados pelos fatos. Mas ao violarem as leis do
mercado para salvar o mercado, eles demonstraram na prática
que, contrariamente ao credo do catecismo neoliberal, o
13 Vale notar que a primeira grande “desregulamentação” remonta à ruptura dos acordos de Bretton
Woods, no início dos anos 1970, que levou os países capitalistas dominantes a adotar o regime de câmbio flutuante. A principal conseqüência foi a busca de instrumentos financeiros suscetíveis de
contrabalançar mudanças na taxa de câmbio e em outras variáveis afetando o cálculo de rentabilidade
do “big business”. Daí o surgimento dos “derivativos financeiros”: instrumentos de negociação para liquidação futura cujos preços são determinados em relação a ativos financeiros (geralmente
negociados no mercado à vista), ditos ativos subjacentes, dos quais eles "derivam".
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
33
movimento do capital não tende à auto-regulação e sim à crise e
ao bloqueio das forças produtivas.
Sintomaticamente, o termo globalization, a despeito de sua
“tamanha força política”, foi engavetado pelos ideólogos do
“paradigma neoliberal”, que em sua estulta e míope euforia os
ideólogos tinham erigido em “fim da história”. Quanto aos que na
esquerda levaram o termo a sério, seria bom que oferecessem
argumentos mais consistentes do que os de J. L. Fiori. Até que o
façam, fica a pergunta: como uma tão grotesca impostura
ideológica logrou obter tanto êxito? O marxismo oferece o princípio
de explicação: as idéias dominantes são, normalmente e
sobretudo em períodos de refluxo das esperanças revolucionárias,
como ainda é o atual, as idéias das classes dominantes.
Nossa tese fundamental sobre o capitalismo
contemporâneo se desdobra, pois em três proposições: (a) ele só
pode ser compreendido a partir da teoria do imperialismo; (b) esta
deve ser atualizada; (c) o termo globalization é um contrabando
ideológico neoliberal que apenas mistifica a questão. A proposição
(c) terá ficado clara. As duas primeiras exigem um comentário.
(a) A determinação básica principal dessa fórmula está
expressa no título da obra célebre de Lênin, Imperialismo,estágio
superior do capitalismo. Lembremos rapidamente as teses que a
fundamentam. São cinco as principais transformações do modo
capitalista de produção chegado à maturidade em escala
internacional: (1) concentração do processo produtivo, gerando os
monopólios; (2) predomínio do capital bancário sobre o industrial,
formando a oligarquia financeira; (3) predomínio da exportação de
capitais sobre a de mercadorias; (4) divisão econômica do planeta
entre os trustes; (5) conclusão da divisão territorial do planeta entre
as grandes potências imperialistas.
Há uma grande audácia teórica nesta síntese. Imperialismo
é um termo ausente do vocabulário de Marx e de Engels: os
processos que o configuraram só se tornaram plenamente claros
no final do século XIX. Marx emprega o termo Império num sentido
inteiramente diferente, próximo ao etimológico: o termo latino
imperium designa o poder político oriundo da força das armas (o
grande Bonaparte e o espertalhão que se dizia seu sobrinho).
Também o termo colonialismo não figura no vocabulário dos dois
grandes fundadores do materialismo histórico. James O’Connor
notou a esse propósito que além do breve capítulo final do livro I,
são muito raras as referências do Capital à economia do
colonialismo (O’CONNOR, 1970: 107). Na verdade, o “breve
capítulo” trinta e três não trata do colonialismo, mas como indica
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
34
seu título, da “teoria moderna da colonização”. Na nota que
acompanha o título, Marx esclarece: “Tratamos aqui de colônias
reais, solos virgens colonizados por imigrantes livres. Os Estados
Unidos são ainda, falando economicamente, apenas uma colônia
da Europa. Também pertencem a essa categoria velhas
plantações como aquelas em que a abolição da escravidão
alterou as condições anteriores. Acrescenta no corpo do texto que
há colônia “quando a maior parte do solo é ainda propriedade
pública, e cada um que nele se estabelece pode por causa disso
tornar parte dele sua propriedade privada e seu meio individual de
produção, sem impedir os que vêm depois nela se estabelece de
efetuar a mesma operação”.
Com efeito, nos Estados Unidos, cujo território não foi, como
entre nós, monopolizado por donatárias e sesmarias, o acesso à
terra estava aberto, em princípio, a todos os colonos. A
abundância de terras tomadas aos índios favorecia a constituição
de uma larga classe de camponeses independentes. As
companhias de comércio e os grandes proprietários criaram toda
sorte de dificuldades à expansão dessa classe nascente, sem lograr
entretanto atrofiá-la. Daí a insistência de ideólogos como Edward
Wakefield, em meados do século XIX, para que na Austrália e
outras colônias de Sua Majestade britânica se cobrassem altos
preços para as concessões de terra de maneira a delas excluir os
colonos pobres, obrigando-os assim a trabalhar para os capitalistas.
Comentando ironicamente em O Capital as desditas de um certo
Mr. Peel (que levou consigo da Inglaterra para Swan River, na Nova
Holanda, víveres e meios de produção no valor de 50.000 libras
esterlinas), referidas "em tom patético" por Wakefield, Marx
constata que o economista inglês "descobriu nas colônias que a
posse de dinheiro, de meios de subsistência, de máquinas e de
outros meios de produção não torna um homem de modo algum
um capitalista, salvo se dispuser de um complemento preciso, o
assalariado, um outro homem, enfim, forçado a se vender
voluntariamente" e portanto que "em vez de ser uma coisa, o
capital é uma relação social entre pessoas da classe operária".
Com efeito, os 3.000 indivíduos dessa classe, que Mr. Peel também
transportara para o Novo Mundo , desapareceram sem se
despedir, deixando-o "sem sequer um doméstico para fazer-lhe a
cama ou buscar água no riacho". O meticuloso empreendedor
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
35
colonial esquecera-se apenas de levar em suas bagagens "as
relações de produção inglesas"14.
(b) Num estudo publicado em 1970, James O’Connor
ponderou que as objeções dirigidas à teoria do imperialismo, tal
como desenvolvida por Lênin, bem como a Hobson (em quem o
grande marxista russo se apoiou criticamente), assim como as
visões alternativas que foram propostas, “constituem menos uma
nova teoria do que um catálogo de fatos históricos não
inteiramente consistentes com as teorias anteriores” (O’CONNOR,
1970: 111). O que, evidentemente, não excluía a necessidade de
atualizá-la. Para tanto, cumpria identificar, dentre os fatos históricos
posteriores à síntese de Lênin, aqueles que configuravam novas
características a serem integradas na teoria do imperialismo,
distinguindo-os dos fatos novos que afetaram as características
enunciadas em Imperialismo, estágio superior do capitalismo, sem,
contudo modificar-lhes o conteúdo essencial.
Nesta perspectiva, O’Connor propôs uma síntese, também
em cinco características, como fizera Lênin, do “imperialismo
contemporâneo”: (a) prosseguimento da concentração e
centralização do capital e a integração da economia capitalista
mundial nas estruturas das gigantescas corporações multinacionais
de base estadunidense [...] e a aceleração da mudança
tecnológica sob os auspícios destas corporações; (b) abandono do
“livre” mercado internacional [...]; (c) participação ativa do capital
estatal no investimento internacional; subsídios e garantias ao
investimento privado [...]; (d) consolidação de uma classe
dominante internacional constituída na base da propriedade e
controle das corporações multinacionais e o concomitante declínio
das rivalidades nacionais promovido pelas elites nacionais nos
países capitalistas avançados e internacionalização do mercado
mundial de capitais pelo Banco Mundial e outras agências da
classe dominante internacional; (e) intensificação de todas estas
tendências provocada pela ameaça do sistema socialista mundial
sobre o sistema capitalista mundial (O’CONNOR, 1970: 121).
14O Capital, livro I, capítulo XXXIII, "A teoria moderna da colonização". Citamos a partir da primeira edição em inglês, de 1887, Capital Book One: The Process of Production of Capital Moscow. A
tradução de Samuel Moore and Edward Aveling foi revista por Engels, o que lhe confere o status de
texto original. A obra foi reeditada na USSR em 1954 (Moscou, Progress Publishers). Versão Online: Marx/Engels Internet Archive (marxists.org) 1995, 1999. Consultamos também a tradução de M.
Rubel, Karl Marx, Oeuvres, I, Paris, Bibiothèque de la Pléiade, 1965, p.1226. Quanto ao fundo, não se
pode desejar elucidação mais límpida do próprio conceito de relações de produção. O texto de Wakefield citado por Marx é England and America. A comparison of the social and political state of
both nations, 2 volumes, Londres, 1833, vol.II, p.33.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
36
Relativamente ao momento histórico da teoria de Lênin, a
grande mudança concerne à hegemonia estadunidense.
O’Connor apenas registrou o que se tornara evidente desde 1947,
com o início da “guerra fria”: as potências imperialistas européias
abrigaram-se sob a tutela estadunidense, adocicada pelos dólares
do Plano Marshall. No plano interno as conquistas sindicais da
classe operária contrabalançaram pela legislação trabalhista, pelo
direito aos serviços públicos de qualidade na saúde, na educação,
nos transportes coletivos,etc. os efeitos mais perversamente anti-
sociais da lógica do lucro. Enquanto perdurou a “ameaça do
sistema socialista mundial”, o capitalismo absorveu as terapias
reformistas para corrigir as "falhas do mercado" pela
regulamentação social.
Teria a super-potência estadunidense confirmado a
tendência ao “ultra-imperialismo” apontada por Kautski em Neue
Zeitde 30-4-1915:
“Não poderia a política imperialista atual ser substituída por outra nova, ultra-imperialista, que em vez da luta entre os capitais financeiros nacionais entre si, estabelecesse a exploração comum do mundo todo pelo capital financeiro unido internacionalmente? Esta nova fase do capitalismo, de todo modo, é concebível. É realizável? Não existem ainda as premissas indispensáveis para decidir a questão” (Apud. LÉNINE, 1960: 316-7).
Lênin criticou Kautski longamente em Imperialismo, estágio
superior do capitalismo, sustentando que as alianças inter-
imperialistas são sempre tréguas, porque “para o imperialismo é
substancial a rivalidade de grandes potências em sua aspiração à
hegemonia” (LÉNINE, 1960: 290). Esta tese valeu até o final da II
grande guerra imperialista. A partir de 1947, perante o poderio do
comunismo soviético, o capitalismo europeu uniu-se num bloco
imperialista sob hegemonia ianque.
A síntese de O’Connor envelheceu. Em parte por causa de
seus pontos fracos, em parte pelas conseqüências da ruptura, em
favor do bloco capitalista, do equilíbrio estratégico EUA/URSS, que
reforçou o cartel político-militar do bloco agrupado na OTAN. Sobre
as funestas conseqüências da derrocada da URSS,
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
37
acrescentaremos apenas que não por acaso o sucesso do termo
globalization remonta aos escombros do bloco soviético. Esse é seu
sentido mais forte: o brado de vitória da contra-revolução
capitalista.
A tese mais discutível de O’Connor é a alegada
“consolidação de uma classe dominante internacional”. Seu
pressuposto implícito é a atrofia da função de articulação e de
condensação da dominação de classe exercida pelos Estados
nacionais. Como se Wall Street fosse possível sem o Pentágono...
Quanto a sua síntese, o principal defeito é não ter levado em conta
as revoluções de libertação nacional vitoriosas na Ásia e na África
a partir de 1949, quando triunfou a grande revolução nacional-
popular chinesa, dirigida pelo Partido comunista. Essas vitórias dos
povos coloniais permitiram a nacionalização das riquezas naturais
até então pilhadas pelo imperialismo, repondo assim em questão a
divisão econômica do planeta entre os trustes e a divisão territorial
do planeta entre as grandes potências imperialistas, quarto e
quinto traços constitutivos da síntese elaborada por Lênin. O
desastre de 1989-1991 abriu a via para um novo surto de agressões
coloniais, mas num contexto histórico em que a China se tinha
tornado uma grande potência econômica.
A grande diferença social no capitalismo contemporâneo
está no nível dos salários. Nos países imperialistas dominantes, o
salário mínimo mensal gira em torno de mil e duzentos dólares
(Estados Unidos), de mil euros (Europa ocidental) e de valores
equivalentes no Japão. Explica-se assim porque dezenas de
milhões de proletários da periferia tenham sido induzidos a buscar
trabalho nesses países onde se concentra a riqueza produzida no
mundo todo. Durante o quarto de século que seguiu o da longa
expansão do capitalismo estadunidense e oeste-europeu (este
estimulado pelos dólares do Plano Marshall), as prósperas
burguesias desses países dominantes sugaram o sangue e o suor
dos trabalhadores imigrantes.
O primeiro sinal evidente de que estavam vindo tempos
mais difíceis foi a crise monetária internacional de 1971, provocada
pela incapacidade dos Estados Unidos em garantir a
convertibilidade do dólar, isto é, de trocá-lo por seu equivalente
legal em ouro. Coube a R. Nixon, em 1973, reconhecer essa
impossibilidade, “passando o calote” (para retomar expressão dos
neoliberais, os quais evidentemente só a aplicam para os países
escorchados pelo imperialismo) no resto do mundo. Desmantelava-
se assim o sistema dito do "padrão de troca-ouro" ("gold standard
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
38
exchange")15. Se fosse preciso desmentir a falácia da
"globalização", bastaria considerar que a moeda "global" do
capitalismo entrou em colapso naquele ano, que marcou o
encerramento de um ciclo longo de mais de três décadas de
expansão do capitalismo internacional16. Pouco tempo depois,
concluía-se a gloriosa luta de libertação nacional do Vietnã. Os
valentões do Pentágono abandonaram em debandada a terra em
que tinham cometido abjetos e odiosos crimes de guerra. A
hegemonia estadunidense descia a seu ponto mais baixo, no plano
econômico como no militar e, conseqüentemente, no político.
Durante o retrocesso econômico que se estendeu até o
início dos anos 90, as burguesias do mundo inteiro, seguindo o
exemplo anglo-estadunidense, assumiram o "programa máximo" da
reação neoliberal, notadamente: (a) resolver a "crise fiscal" dos
Estados capitalistas reduzindo os gastos públicos, as prestações
sociais, os serviços de interesse coletivo e as funções estatais que os
asseguravam; (b) suprimir tanto quanto possível, os direitos sociais
dos trabalhadores, para poder reduzir os impostos pagos pelos
capitalistas, aumentando-lhes os lucros; (c) privatizar empresas
estatais, arrecadando fundos para o Tesouro e propiciando belos
negócios aos investidores privados; (d) "enxugar" empregos em
todos os setores de atividade.
Essa frenética campanha neoliberal foi responsável pelo
desemprego crônico de dezenas de milhões de trabalhadores, que
atingiu prioritariamente os mais fracos e vulneráveis (turcos na
Alemanha, maghrebinos e negros na França etc.). A mão de obra
estrangeira foi empurrada para fora, como laranjas já espremidas.
O muro do México é apenas o exemplo mais sórdido e detestável
das novas barreiras policiais que foram sendo erguidas, à medida
que o "enxugamento" neoliberal reduzia drasticamente a oferta de
empregos, mesmo os mais penosos e insalubres. Essa é a causa do
15 Adotado no final da I Grande Guerra e desativado a partir de 1929, pela longa e catastrófica
depressão que seguiu o estouro da Bolsa de Nova Iorque, o "gold standard exchange" foi reativado em 1944, na famosa conferência de Bretton Woods. Nesta segunda versão, o dólar, dinheiro do Estado
capitalista tornado incontrastavelmente hegemônico, foi erigido em moeda mundial, mais exatamente,
em moeda-padrão das trocas internacionais, mediante sua equivalência fixa com o ouro. A base do sistema de Bretton Woods, com efeito, era a paridade legal do dólar com o ouro, a saber, 35 dólares= 1
onça troy= 31,1 gramas de ouro fino. O valor de um dólar correspondia, pois a 35
1,310,888 gramas
de ouro fino.
16 O ciclo ascendente do capitalismo estadunidense, após a grande depressão dos anos 30, iniciou-se,
com efeito, em 1940-1941: as guerras engendram o pleno emprego e a produção maciça de meios de destruição (Na lógica da valorização do capital, não faz diferença produzir coca-cola ou bomba
atômica).
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
39
surto virulento de xenofobia e racismo na Europa ocidental, que
contaminou aqueles setores do sindicalismo que, para defender o
emprego (o deles), trocaram a luta de classes pela caça ao
imigrante. Outra não é a origem da proliferação tentacular do
neofascismo, do racismo e do neonazismo em toda a Europa.
Enquanto se alternavam, sem alternativa de fundo, políticas
neoliberais agressivas da direita e frustradas tentativas social-
democratas para executar moderadamente a mesma política de
redução dos “custos sociais” da valorização do capital em escala
mundial, aventureiros truculentos, de ambições sombrias,
prosperavam nos meios burgueses e plebeus mais afetados pelo
desemprego e pela deterioração social. Na Itália, a direita
democrata-cristã, corroída por dentro, tratou de compensar seu
desgaste político aderindo à “Forza Italia”, nome futebolístico de
um improvisado “bloco histórico” reacionário juntando, sob o
comando de Berlusconi, vulgar aventureiro e milionário corrupto,
diversos agrupamentos de extrema-direita, inclusive o neofascismo
explícito.
Aprimorar Marx é difícil. Não nos parece que a noção de
super-exploração, lançada por doutrinários da “dependência” e
do “sub-imperialismo”, ofereça uma explicação consistente para a
grande diferença entre o nível dos salários dos países dominantes e
o dos países dominados. Os argumentos em que eles se apóiam
simplesmente passam por cima da diferença entre preço e valor. A
queda do preço da força de trabalho abaixo de seu valor é
fenômeno geral no capitalismo, principalmente através do
aumento da intensidade do trabalho ou da complexidade das
aptidões exigidas do trabalhador (quadros técnicos, engenheiros
etc.), sem aumento correspondente do salário. É só consultar
publicações sindicais ou de partidos marxistas europeus para
constatar constantes denúncias da intensificação do ritmo do
trabalho nas fábricas. Na França, a denúncia das “cadences
infernales” nas linhas de montagem é recorrente.
O nervo dessa questão está na determinação dos bens que
integram o valor dos meios de consumo considerados necessários.
Essa necessidade é cultural e historicamente determinada: como
lembrava Marx, o operário inglês bebe cerveja, o francês vinho. No
auge do "capitalismo de bem-estar", ao longo do terceiro quarto
do século XX, a maioria dos trabalhadores da Europa mais próspera
tinha pleno acesso à medicina e escola pública, a uma boa rede
de transportes coletivos, além das férias e dos apetrechos
domésticos produzidos em larga escala, da geladeira à TV. Tudo
isso integra o valor da força de trabalho.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
40
Quando a derrocada do bloco soviético, debelando o
"perigo comunista", deixou à vontade a burguesia dos países
imperialistas para ampliar a ofensiva neoliberal contra as
conquistas sociais da classe operária, o nível dos salários nos países
dominantes sofreu certa erosão, mas permaneceu no patamar que
indicamos acima, muitas vezes superior ao dos países periféricos.
Essa diferença, com certeza, não se explica por oscilações
conjunturais. Expressa a desigualdade de desenvolvimento entre
centro e periferia do sistema imperialista, que por sua vez resulta de
toda a história da colonização, da pilhagem voraz das riquezas
vegetais e minerais dos continentes agredidos, da escravidão, da
indizível pobreza das massas rurais, do intercâmbio desigual etc.
Sem dúvida, nada impede falar em super-exploração para
descrever as situações em que aumenta a taxa de mais-valia. Mas
não é preciso um novo conceito para marcar a queda do preço
(salário) relativamente ao valor da força de trabalho. Ambos,
evidentemente, têm limites inferiores objetivos: a mera
sobrevivência. Entretanto, segundo alguns expositores da doutrina
da super-exploração, os mecanismos que a produzem, “ao
retirarem do trabalhador as condições necessárias para que
reponha o desgaste de sua força de trabalho [...]configuram um
modo de produção fundado na maior exploração da classe
trabalhadora”. Difícil acompanhar esse argumento. O peculiar
“modo de produção fundado na maior exploração da classe
trabalhadora”, no qual o operário não consegue repor o desgaste
de sua força de trabalho é, antes, um modo de extermínio, como
nos campos de concentração hitlerianos17.
O fato de que as mulheres costumem ganhar (salvo no setor
público) menos do que os homens para executar as mesmas
tarefas com a mesma qualificação corresponde à mais
generalizada forma de super-exploração do trabalho. Ele nos põe
diante de uma questão que remonta à aldeia neolítica e que
17 Na mesma exposição encontramos outras afirmações do mesmo gabarito: a super-exploração (ou
“maior exploração da classe trabalhadora“??), alienaria do trabalhador “o consumo estritamente necessário para conservar sua força de trabalho”; o consumo do operário seria reduzido “além de seu
limite normal” (??); “a utilização desses mecanismos (isto é, aqueles definidos por R.M.Marini,
principal pensador dessa corrente) acaba fazendo com que o trabalho “seja remunerado por baixo de seu valor” e acarretaria “o dispêndio da força de trabalho em uma proporção maior que o normal”(??).
Notemos enfim que falar em valor do trabalho (que este “seja remunerado por baixo de seu valor“) é
uma aberração do ponto de vista do marxismo e, na mais otimista das hipóteses, um retorno ao ponto de vista da teoria burguesa do valor-trabalho (Petty, Smith, Ricardo). Cf. Pedro Henrique Evangelista
Duarte e Edílson José Graciolli,“Da relação entre a superexploração do trabalho e a política sindical no
Brasil: notas para uma discussão” (Disponível em http://www.ifch.unicamp.br/cemarx/coloquio/Docs/gt5/Mesa2/da-relacao-entre-a-superexploracao-do-
trabalho-e-a-politica-.pdf)
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
41
Engels foi o primeiro a analisar em profundidade, a opressão da
mulher pelo homem. Para explicar a persistência dessa opressão, a
despeito dos inegáveis progressos conquistados pelos movimentos
feministas da segunda metade do século XX, a noção de super-
exploração poderá ser útil, mais além das modas intelectuais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DUARTE, Pedro Henrique Evangelista; GRACIOLLI, Edílson José.“Da
relação entre a superexploração do trabalho e a política
sindical no Brasil: notas para uma discussão”.6° Colóquio
Internacional Marx e Engels. Disponível
emhttp://www.ifch.unicamp.br/cemarx/coloquio/Docs/gt5/
Mesa2/da-relacao-entre-a-superexploracao-do-trabalho-e-
a-politica-.pdf
FIORI, José Luis; TAVARES, Maria Conceição. Poder e dinheiro,
Petrópolis, Vozes, 1997.
MARX, Karl. Karl Marx, Oeuvres, I, (M. RUBEL, M. org.) Paris,
Bibliothèque de la Pléiade, 1965.
MARX, Karl. Capital Book One: The Process of Production of Capital.
Moscow. Marx/Engels Internet Archive (marxists.org) 1995,
1999.
LÉNINE, V., Oeuvres, Tomo 22. Paris-Moscou: Editions Sociales-
Editions du Progrès, 1960.
O’CONNOR, James. “The meaning of economic imperialism”, in
RHODES, Robert I (org.) Imperialism and underdevelopment,
Londres e Nova Iorque, Monthly Review Press, 1970.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
43
A recepção de Rosa Luxemburgo
no Brasil18
Isabel Loureiro19
Embora os estudos marxistas tenham pouco espaço no Brasil
(como aliás no mundo todo), eles ainda podem ser encontrados
em algumas universidades públicas,20 sendo que a maior parte das
pesquisas gira em torno de autores como Marx, Lênin, Gramsci,
Lukács e os filósofos da Escola de Frankfurt. Em compensação, há
poucas pesquisas acadêmicas sobre Rosa Luxemburgo o que
talvez seja consequência de que a maioria de suas obras ainda
não foi traduzida em português. Por conseguinte, a recepção de
Rosa Luxemburgo no Brasil não foi acadêmica, mas política. Em
1995, Michael Löwy resumiu bem o que ocorreu entre nós: “Sempre
existiu na cultura da esquerda brasileira uma corrente
‘luxemburguista’, mas até há poucos anos ela era relativamente
marginal. Isso começa a mudar com a fundação do Partido dos
Trabalhadores, cujo primeiro aderente, simbolicamente, foi Mário
Pedrosa, o mais conhecido representante dessa corrente desde os
anos 1940. Muitos dos intelectuais e dirigentes do novo movimento
se dizem herdeiros de Rosa Luxemburgo,enquanto se observa de
alguns aspectos essenciais dessa herança – a democracia
socialista, o élan antiburocrático e libertário, a busca de uma
alternativa à social-democracia e às formas autoritárias do
comunismo – na nova cultura socialista do Brasil” (LÖWY, 2004).
18 Tradução do artigo publicado em Nahiriko Ito, Annelies Laschitza, Ottokar Luban (ed.), Rosa Luxemburg. Ökonomische und historisch-politische Aspekte ihres Werkes, Berlim, Dietz Verlag, 2010.
19 Professora colaboradora do Programa de Pós-Gradução em Ciência Política, UNICAMP, e membro
do Comitê Editorial de Crítica Marxista.
20 Na UNICAMP a cada dois anos é realizado o Colóquio Marx/Engels em que cerca de 400 trabalhos
são apresentados.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
44
Este artigo tem duas partes. A primeira visa a esclarecer esta
citação que resume de maneira particularmente feliz a
Weltanschauung socialista e democrática de Rosa Luxemburgo a
qual foi desde o início da sua recepção entre nós como uma
espécie de corrente subterrânea na cultura de esquerda no Brasil,
com alguma influência nas origens do PT, embora não houvesse
referência explícita a ela. Na segunda parte gostaria de mostrar
que, ao lado desta dimensão bastante conhecida do pensamento
político de Rosa Luxemburgo, segundo a qual o socialismo
democrático só pode ser realizado pela ação autônoma das
massas populares, há outra dimensão menos conhecida em A
Acumulação do Capital e na Introdução à Economia Política que
também pode contribuir para a renovação do pensamento
marxista.
SOCIALISMO DEMOCRÁTICO, REVOLUÇÃO E FORMAÇÃO
POLÍTICA
Desde o início de sua recepção no Brasil Rosa Luxemburgo
foi vista como o símbolo do socialismo democrático. Mário
Pedrosa,21 nosso mais importante pensador socialista e nosso mais
importante crítico de arte, foi o pai do “trotskismo” e mais tarde do
“luxemburguismo” brasileiro. Durante sua estada em Berlim e Paris
no fim dos anos 1920, ele teve contato pela primeira vez com as
idéias econômicas de Rosa Luxemburgo, conquanto ainda não
tivesse lido suas obras nessa época. Numa carta de 14 de maio de
1928 ao amigo Lívio Xavier, escreve: “A tese de Rosa Luxemburgo
sobre a acumulação do capital explica hoje melhor a situação do
21 Mário Pedrosa (25.04.1900-05.11.1981) entra no PCB em 1926. Em 1927 é enviado à escola do
partido em Moscou, mas tendo ficado doente, precisa interromper a viagem em Berlim, onde conhece a
oposição trotskista. Com isso, deixa o PCB e toma parte na fundação do movimento trotskista na
Alemanha e na França, do qual assume a direção no Brasil em 1929. Em 1933 começa seu trabalho de
crítico de arte com um artigo sobre Käthe Kollwitz. Em 1934 m participe de uma frente de esquerda contra o fascismo brasileiro (“integralismo”) e em outubro é ferido num combate de rua na Praça da
Sé, em São Paulo. Durante a ditadura de Getúlio Vargas (1937-1945) parte para o exílio em Paris e
Nova York. Em 1941 é preso ao voltar ao Brasil e forçado a exilar-se. Em maio de 1940 ele se afasta da IV Internacional por não concordar com a caracterização da URSS por Trotsky como “Estado
operário degenerado” nem com a idéia da “defesa incondicional da URSS”. Em 1945 volta ao Brasil e
funda o jornal Vanguarda Socialista onde adota uma posição muito crítica em relação PCB, influenciada por Rosa Luxemburgo. Em 1947 entra no Partido Socialista (PSB) de onde é excluído em
1956. Durante a ditadura militar (1964-1984), Pedrosa parte para o exílio, primeiro no Chile (onde
Salvador Allende lhe pede para organizar o Museu da Solidariedade), depois em Paris. Em 1977 volta novamente ao Brasil. A partir de 1980 Mário Pedrosa se engaja na criação do PT, tendo sido o primeiro
a assinar o manifesto de fundação em 10 de fevereiro de 1980.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
45
capitalismo mundial do que a de Hilferding, Lênin, Bukharin – que a
deformou como sempre. Etc. A questão do imperialismo. A questão
colonial. Etc. O bolchevismo enfim está em crise”. 22
Mário Pedrosa, que conhecia muito bem a história da
Revolução Russa, foi desde o fim dos anos 1920 um crítico ácido da
degeneração burocrática do partido, dos sindicatos e dos sovietes
na URSS.
A partir de 1945 ele passa a divulgar as idéias políticas de
Rosa Luxemburgo em seu jornal Vanguarda Socialista (1945-1948), o
que acabou tendo uma certa influência num pequeno círculo de
esquerda fora do Partido Comunista. Num país provinciano e
afastado do debate no interior da esquerda, esse semanário
cumpriu seu papel publicando textos desconhecidos dos clássicos
do marxismo (Marx, Engels, Trotsky, Kautsky, Rosa Luxemburgo) e
também de autores contemporâneos que discutiam os problemas
do socialismo (Anton Ciliga, Andrés Nin, Karl Korsch). Vanguarda
Socialista se distinguia de outros pequenos jornais de esquerda pelo
seu alto nível intelectual e a amplitude dos temas que iam da
economia à cultura. Num país periférico como o Brasil onde a
tradução sistemática das obras marxistas só começou nos anos
1960, o jornal de Mário Pedrosa apostava no futuro. Um dos textos
publicados em 1946 foi justamente A Revolução Russa de Rosa
Luxemburgo23, verdadeira heresia numa época em que a URSS
estava no auge da sua glória e a maioria da esquerda brasileira
vivia sob a hegemonia do PCB24. Não é preciso dizer que
Vanguarda Socialista foi posto no índex dos comunistas brasileiros.
22 Ver, José Castilho Marques Neto. Solidão revolucionária. Mário Pedrosa e as origens do trotskismo
no Brasil (MARQUES NETO, 1993: 295, 296). Foi provavelmente Lucien Laurat (pseudônimo de
Otto Maschl), que Pedrosa conheceu em Paris, que lhe apresentou as idéias econômicas de Rosa Luxemburgo. Em 1930 Laurat publicou um livro sobre o tema: L’accumulation du capital d’après
Rosa Luxemburg. Muito mais tarde Pedrosa também escreveu um livro sobre o mesmo assunto, mas
em relação com a América Latina: A crise mundial do imperialismo e Rosa Luxemburgo (PEDROSA,
1979).
23 Esse texto, traduzido por Miguel Macedo, foi publicado em duas partes, em abril e maio de 1946. No
Prefácio à tradução brasileira do livro de Jörn Schütrumpf, Rosa Luxemburg ou o preço da liberdade, Michael Löwy escreve a esse respeito: “Lembro-me ainda do entusiasmo, do fervor mesmo com que
líamos esse precioso escrito, quando participei, por volta de 1956, em São Paulo, da fundação de um
pequeno grupo ‘luxemburguista’, junto com amigos e companheiros de grande valor como Paul Singer, os irmãos Eder e Emir Sader, Mauricio Tragtenberg, Herminio Sachetta, os advogados Renato Caldas e
Luis Carvalho Pinto (…) Estou convencido de que esa brochura de 1918 é um dos textos
indispensáveis não só para entender o passado, mas também e sobretudo para uma refundação do socialismo (ou do comunismo) no século XXI.” (LÖWY, 2006: 10) Uma das ironias da história é que
esse texto só veio a público na RDA em 1975, acompanhado das habituais observações a respeito dos
“erros” de Luxemburgo, e na URSS em 1990.
24 Ver Paul Singer, Mário Pedrosa e o Vanguarda Socialista (SINGER, 2001) Paul Singer, judeu
austríaco, emigrou em 1939 com a mãe para São Paulo. Na juventude começou a ler a obra de Rosa
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
46
Em 1946 Mário Pedrosa estava convencido de que Rosa
Luxemburgo era a única socialista no mundo ocidental que,
embora entusiasta da tomada do poder pelos bolcheviques, podia
enfrentá-los de maneira independente: “Sobrava-lhe, para isto, em
valor moral e intelectual, em autoridade e em espírito
revolucionário”25.
Segundo ele, a voz da revolucionária polonesa, com sua
defesa das liberdades democráticas, da ação espontânea e da
experiência das massas era novamente ouvida por todos aqueles
que queriam reconstruir o movimento socialista internacional sobre
novas bases que superassem, tanto o reformismo social-democrata
“carregado de crimes e de senilidade”, quanto o bolchevismo,
“não menos carregado de crimes e degenerado até a horrenda
caricatura do que, hoje, sob a forma stalinista, não é mais do que a
máscara totalitária de um neobarbarismo.” (PEDROSA, 1979: 129).
Contra uma concepção autoritária da política segundo a
qual a consciência é introduzida “de fora” na classe operária por
um partido de vanguarda “esclarecido”, os socialistas brasileiros –
cujo precursor foi Mário Pedrosa – pensavam que o socialismo
pode ser somente uma criação autônoma das massas organizadas,
seja em um (ou vários) partido democrático, seja nos movimentos
sociais, nos conselhos e nas mais diferentes formas de organização
pela base. Afastados de todo dogmatismo organizativo eles
pensavam, assim como Rosa Luxemburgo, que “A hora histórica
exige a cada momento as formas correspondentes de movimento
popular e ela cria ela mesma meios de combate novos e
improvisados, desconhecidos anteriormente, ela escolhe e
enriquece o arsenal do povo, indiferente a todas as prescrições dos
partidos” (LUXEMBURGO, 1987: 149)Além disso, o partido político
idealizado pelos socialistas brasileiros logo após a Segunda Guerra
Mundial não era uma organização centralizada e hierarquizada de
revolucionários profissionais, mas a expressão das experiências
históricas das camadas subalternas da sociedade. Quanto a esse
ponto eles também estavam de acordo com a concepção de
Rosa Luxemburgo segundo a qual o partido abarca “o conjunto
Luxemburgo, não só mas também no jornal Vanguarda Socialista. Foi militante do PSB (1950-1965)
até que a ditadura militar proibiu o multipartidarismo, permitindo apenas dois partidos. Paul Singer foi co-fundador do PT e no momento é coordenador da Secretaria de Economia Solidária do governo Lula.
Para mais informações sobre ele e sobre a influência que Rosa Luxemburgo exerceu sobre suas idéias,
ver Uma discípula de Marx que ousava criticar Marx, (SINGER, 2008). David Muhlmann, Réconcilier marxisme et démocratie, (MUHLMANN, 2010).
25Nota explicativa, A revolução russa (PEDROSA, 1979: 119-20).
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
47
dos interesses progressistas da sociedade e de todas as vítimas
oprimidas pela ordem social burguesa” (LUXEMBURGO, 1979: 441).
Em outras palavras, tratava-se de pôr em prática a
declaração da Associação Internacional dos Trabalhadores: “A
emancipação dos trabalhadores é obra dos próprios
trabalhadores”. Assim sendo, era preciso que todos os grupo
subalternos da sociedade se organizassem (não só os operários da
indústria) para defender seus direitos: os negros, os empregados, os
trabalhadores agrícolas, os estudantes, as empregadas domésticas,
as mães, “todos os que trabalham e não exploram o trabalho
alheio”.26 Esta idéia dos movimentos sociais e da luta para criar
embriões de socialismo já na sociedade capitalista – o que hoje se
chama de contra-hegemonia – era algo espantosamente original
na esquerda brasileira daquela época. Para Mário Pedrosa o poder
não era um lugar determinado a ser conquistado (para ser
reformado como queria a social-democracia, ou para ser destruído
como queriam os bolcheviques) mas uma dimensão que era
preciso construir. Nesse sentido, ele escreve em Vanguarda
Socialista: “O socialismo não consiste somente na conquista do
poder pelo proletariado e na realização das reformas de estrutura
com a socialização dos meios de produção. O socialismo é a ação
consciente, quotidiana e constante das massas, mas por elas
mesmas e não por meio de uma ‘procuração’ a um partido de
vanguarda mais consciente”27.
Mário Pedrosa, assim como Rosa Luxemburgo, estava
convencido de que a tomada do poder de Estado, embora fosse
importante, não bastava para mudar a sociedade. Essa idéia é
claramente exposta por ela em seu discurso à assembléia de
fundação do Partido Comunista Alemão (KPD) falando da
revolução socialista: “a história não nos faz a tarefa tão fácil como
nas revoluções burguesas em que bastava derrubar o poder oficial
no centro e substituí-lo por alguns homens, ou por algumas dúzias
de homens novos. Precisamos trabalhar de baixo para cima, o que
corresponde precisamente ao caráter de massa de nossa
revolução (...) devemos conquistar o poder político não por cima,
mas por baixo” (LUXEMBURGO, 1987: 510) Em outras palavras,
Luxemburgo está se referindo à formação de uma hegemonia das
classes subalternas já na sociedade capitalista, o que Oskar Negt
chama de “espaço público proletário” (NEGT, 1974: 190) Uma
experiência nesse sentido, apesar de sua curta duração, foram os
26 Mário Pedrosa (1946b) Vanguardas, partido e socialismo.
27 Mário Pedrosa (1946a), A luta quotidiana das massas e o Partido Comunista.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
48
conselhos de operários e soldados na Revolução de novembro de
1918 na Alemanha.
A tradição dos conselhos como exemplo de democracia
participativa permanece um ponto de referência importante para
Mário Pedrosa para quem o conceito de democracia
representativa deve “ser arquivado num museu de antiguidades”
(PEDROSA, 1966: 438). A vitória de uma revolução socialista-
democrática, tanto na metrópole quanto na periferia, exige que
ela seja feita e controlada pelo poder popular. É preciso construir
“novos centros democráticos de poder” (empresas, escolas,
municípios, regiões, etc.) o que significa descentralização do poder
de decidir, limitação dos poderes do Estado e do capital, “uma
extensão do poder popular, quer dizer, uma vitória da democracia
sobre a ditadura do lucro” (PEDROSA, 1966: 324). Mário Pedrosa
pensava, já em 1946, que o controle dos trabalhadores sobre toda
a vida social é o caminho para o socialismo democrático e que
este começa imediatamente, “antes da tomada do poder”
(PEDROSA, 1946b) Dito de outro modo, não se trata de esperar a
“martelada da revolução” (LUXEMBURGO, 1970: 400), mas de tentar
construir, aqui e agora, o poder popular, uma idéia aplicada hoje
pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) no Brasil e pelos
zapatistas no México (LOUREIRO, 2006; LÓPEZ Y RIVA, 2006) Desse
ponto de vista a revolução é um longo processo, é a construção
de uma contra-hegemonia inseparável da auto-organização e da
autogestão. Ou seja, para os socialistas brasileiros depois da
Segunda Guerra Mundial, e nisso eles estavam absolutamente de
acordo com Rosa Luxemburgo, uma sociedade socialista e
democrática começa pelo controle da vida pública pelas massas
populares, que devem exercer a autogestão em todos os níveis,
começando pela produção (LUXEMBURGO, 1987: 442s).
Mário Pedrosa se considerava sobretudo um revolucionário.
Numa entrevista pouco antes de morrer declarou: “Os homens da
minha idade que não se empolgaram pela Revolução Russa …
alguma coisa lhes falta. E ainda acho que uma Nação que não
passa por uma revolução não é ainda uma Nação formada.
Sempre sonhei uma revolução para o Brasil” (PEDROSA, 1981). Mas
como recusava toda concepção doutrinária de revolução e se
inspirava na crítica de Rosa Luxemburgo aos bolcheviques (contra
a imitação servil da Revolução Russa pela esquerda ortodoxa)
nunca abandonou a idéia de que cada país deve seguir seu
próprio caminho revolucionário, o qual depende das condições
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
49
objetivas do desenvolvimento local e não pode ser determinado
de antemão por nenhum partido-vanguarda.28
Pode-se traçar um paralelo entre a recusa do partido-
vanguarda pelos socialistas brasileiros e a herança de Rosa
Luxemburgo no KPD depois de seu assassinato. É o que faz a
historiadora Angela Mendes de Almeida quando lembra que as
idéias de Luxemburgo não estiveram na ordem do dia a não ser
durante o breve período em que a Internacional Comunista (IC),
de maneira tortuosa, adotou a tática de “frente única operária”
sem no entanto reconhecer a paternidade alemã da idéia.29
Angela Mendes de Almeida considera esse comportamento da IC
“uma espécie de oportunismo, que iria pesar muito fortemente em
seguida” sobre a esquerda do mundo inteiro. “Uma sucessão de
camadas de mentiras que, na era stalinista, foram conformando
uma política inexplicável, com ares de falsidade maquiavélica.”
Referindo-se à célebre frase de Rosa Luxemburgo sobre “a
liberdade de quem pensa de maneira diferente”, a historiadora
acredita que embora o stalinismo seja “uma enorme
degenerescência do leninismo, alguns elementos, sobretudo essa
intolerância com aquele que pensa diferente, já estavam presentes
no bolchevismo, ou no leninismo.” (MENDES DE ALMEIDA, 2008: 55).
Após esta curta exposição podemos resumir as idéias que os
socialistas brasileiros herdaram de Rosa Luxemburgo: 1. a defesa de
uma concepção democrática de partido de massas contra a
concepção leninista do partido-vanguarda que, segundo eles,
implica a separação antidemocrática entre vanguarda e massas e,
como mostrou o desenvolvimento dos partidos comunistas no
século XX, a separação entre a direção do partido e a base; 2. a
defesa do socialismo democrático como criação autônoma das
massas populares que se organizam das mais diferentes maneiras e
se politizam na luta diária com a finalidade de transformar o mundo
capitalista dos interesses privados numa sociedade justa e
igualitária; 3. a idéia de que não há modelo para a revolução, de
que a esquerda de cada país deve encontrar seu próprio caminho
a partir de sua própria experiência e de sua situação concreta; 4. a
28 “... revolução não se aprende a fazer em livros ou mesmo em textos escritos, por mais sagrados que
sejam de Marx ou Lênin. Ela é o ditado das coisas da terra, da qualificação dos homens que a fazem, das classes em movimento, da realidade histórica de onde provém ou onde atua. Interpretar textos
sagrados não substitui a experiência vivida nem a prática, mas foi quase o que se limitaram a fazer
tantos dos nossos melhores dissidentes.” (PEDROSA, 1982).
29 Essa era uma antiga palavra de ordem do spartakista Paul Levi (nesse momento já expulso do KPD)
contra a política golpista e aventureira da Internacional Comunista na Alemanha.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
50
crítica da democracia representativa e a defesa da autogestão e
da auto-organização.
Como dissemos no início, essa posição socialista-
democrática era manifesta nas origens do PT. Mas com o passar do
tempo foi sendo abandonada e substituída pela Realpolitik sem
mais, com o intuito de ganhar as eleições e de fortalecer a
máquina partidária. Além disso, muitos acreditam que durante o
governo Lula o PT se transformou num partido da ordem,
burocrático e corrompido.30 A perspectiva socialista-democrática-
revolucionária de Rosa Luxemburgo deixou de fazer sentido para a
esquerda governamental no Brasil.
Os herdeiros de Rosa Luxemburgo estão hoje no MST e entre
os zapatistas, movimentos que ao querer ir além da democracia
representativa e dos limites que o capital lhe impõe, lutam por uma
democracia centrada na autonomia das massas populares. Esses
movimentos sociais opõem à esquerda eleitoral, institucionalizada e
burocrática, a construção do poder a partir de baixo e insistem na
participação das massas populares nos assuntos que lhes dizem
respeito como uma condição indispensável à sua formação
política. Mas no Brasil ocorre precisamente o contrário. É o que
pensa Gilmar Mauro, um dos líderes mais importantes do MST,
constatando que no governo Lula (2003-2010) os movimentos
sociais se enfraqueceram. Segundo ele a formação política é a
única possibilidade de impedir, ou pelo menos de tornar mais difícil
a burocratização interna das organizações e a cooptação dos
ativistas pelo Estado (MAURO, 2008). Penso que a observação de
Rosa Luxemburgo sobre Marx e Lassalle resume bem o dilema em
que se encontram o MST e seus líderes: “(...) quando em vez da
crise e da revolução começou a triste saison morte [época morta]
da reação política, Lassalle e Marx voltam a compartilhar a mesma
idéia – a resignação momentânea e os planos de um trabalho de
toupeira de esclarecimento revolucionário, temporário e
silencioso.” (LUXEMBURGO, 1979: 151). É neste lento e paciente
trabalho de toupeira de formação política, tendo como finalidade
a transformação estrutural da ordem capitalista, que o MST aposta
todas as suas fichas, especialmente numa época em que a
possibilidade de uma reforma agrária em termos clássicos é cada
vez mais improvável.
Gilmar Mauro acredita que se a esquerda no Brasil quiser
estar à altura do desafio que lhe é imposto – em outras palavras, se
quiser construir o ciclo “pós-PT” – tem à sua frente a imensa tarefa
30 Ver Francisco de Oliveira, O momento Lênin, (OLIVEIRA, 2006).
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
51
de organizar os trabalhadores em geral (e não só os trabalhadores
da indústria). Segundo ele, neste momento é preciso “um
movimento político de um tipo novo que parta da idéia de
construção de espaços de poder popular, de conselhos, buscando
as experiências históricas da Liga Spartakus, a experiência da
Comuna de Paris, a experiência dos conselhos de Turim (que eram
conselhos de fábrica), buscando a própria experiência latino-
americana; no México tem várias experiências das comunidades
indígenas” (MAURO, 2008: 100). Dito de outro modo, trata-se de
organizar os trabalhadores a partir das comunidades locais, em
diálogo permanente com seus problemas (p. ex., utilizando a
cultura como canal de participação) com a esperança de
construir uma ampla rede de organizações em todo o país tendo
como finalidade formar “uma poderosa contra-hegemonia”: “(...)
estou convencido de que este é o caminho: ou a gente constrói
este processo dos conselhos populares, organizações populares,
com um projeto político claro de substituição da sociedade
capitalista e construção de uma sociabilidade diferente – o
socialismo – ou efetivamente a esquerda amargará muitos anos.”
(MAURO, 2008: 101). Em resumo, no que se refere à questão do
socialismo democrático construído a partir de baixo Rosa
Luxemburgo é uma referência teórica fundamental para os
militantes dos movimentos sociais.
A ACUMULAÇÃO DO CAPITAL E A CRÍTICA DA CRENÇA NO
PROGRESSO
Em sua recepção no Brasil, Rosa Luxemburgo é além disso
considerada como uma marxista “terceiro-mundista” avant la lettre
por suas obras de economia política, A acumulação do capital e a
Introdução à Economia Política 131Fi.31
Do ponto de vista de Rosa Luxemburgo o capital precisa de
regiões não capitalistas – “algo fora de si mesmo” – para acumular.
Esta idéia foi retomada e atualizada por David Harvey que chama
a esse processo de “accumulation through dispossession”
[acumulação por espoliação], (HARVEY, 2004: 121-26) uma
esclarecedora explicação teórica para a exploração do Terceiro
Mundo. Como mostra Harvey, hoje em dia a expansão capitalista
não é mais geográfica mas econômica, baseando-se a estratégia
31 Ver (PEDROSA, 1979; SINGER, 1991; 1988; 2008 ; LÖWY, 2008).
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
52
do capital na transformação de antigos direitos em mercadorias
(serviços públicos, cultura, saúde, educação, agricultura, água,
etc.). Rosa Luxemburgo dá vários exemplos de como a expansão
capitalista provoca a destruição das formas de vida tradicionais,
ou seja, das comunidades indígenas e camponesas (o que ela
chamava de comunismo primitivo). Hoje em dia podemos
constatar esse processo na América Latina, provocado pela
chamada “modernização” da vida rural, introduzida à força pelo
agronegócio e por todas as políticas de integração do espaço na
América do Sul financiadas pelo BID.32
A atualidade de A acumulação do capital de uma
perspectiva latino-americana também é corroborada pelo
economista Paul Singer. Para ele a grande contribuição dessa obra
é “mostrar que nunca houve um modo de produção único no
mundo. Sempre houve diferentes modos de produção que
interagem” ou no passado ou no presente. “Na realidade, o
campesinato, o artesanato – a pequena produção de mercadorias
precede o capitalismo e convive com o capitalismo até hoje. Isto
eu percebi graças à Rosa. Então todo o meu trabalho teórico a
partir daí pressupõe múltiplos modos de produção. Isso tem a ver
com a economia solidária, obviamente. Quer dizer, eu entendo a
economia solidária como um modo de produção, entre outros, que
existe dentro do capitalismo, já há duzentos anos, com maior ou
menor força, mas que pode, diante das contradições que o
capitalismo apresenta, ter um desenvolvimento.” (SINGER, 2001: 18).
A crítica dirigida por Rosa Luxemburgo ao aniquilamento
dos povos primitivos pelo capitalismo europeu é
extraordinariamente próxima de nós, sobretudo se comparada aos
comentários de Kautsky nos quais não figuram nem o Terceiro
Mundo nem os povos não-brancos. Rosa Luxemburgo destaca
insistentemente que o capitalismo, no seu processo de
acumulação, precisa desses povos para explorar regiões onde os
brancos não podem ou não querem trabalhar, para o quê
também Mário Pedrosa chamava a atenção.33 Não podemos
esquecer que em Introdução à Economia Política Rosa
Luxemburgo fica do lado das vítimas da modernização capitalista:
“Para todos os povos primitivos nos países coloniais, a passagem de
seu estado comunista primitivo ao capitalismo moderno ocorreu
32 Um exemplo notável é a IIRSA (Iniciativa de Integração da Infra-Estrutura Regional Sul-
Americana).
33 Ver Rosa Luxemburgo, Die Akkumulation des Kapitals [1912], (LUXEMBURGO, 1985: 311). Ver
também: (PEDROSA, 1979: 58-59).
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
53
como uma catástrofe súbita, como um desastre indizível
acompanhado dos mais atrozes sofrimentos.” (LUXEMBURGO, 1985:
717). E ela vê na resistência desses povos contra as metrópoles
imperialistas uma luta digna de admiração.
Michael Löwy foi o primeiro (que eu saiba) a fazer uma
interpretação muito original e fecunda desse livro (LÖWY, 1986)
quase ignorado pelos comentadores,34 talvez por ser um livro
inacabado. Mas é mais provável que a exposição feita por Rosa
Luxemburgo, não convencional de um ponto de vista marxista, seja
a razão. Os capítulos sobre o comunismo primitivo e sua destruição
ocupam mais espaço do que aqueles sobre a produção de
mercadorias e o modo de produção capitalista. A era capitalista
da história da humanidade aparece aí como uma época breve,
condenada a desaparecer. Descrevendo as comunidades
camponesas, Rosa Luxemburgo mostra que essas velhas formas
sociais “comunistas” eram dotadas de qualidades que as
sociedades modernas perderam, podendo assim servir de
inspiração para propostas alternativas. Dito de outro modo, os
povos originários podem ensinar aos “civilizados” uma maneira de
viver em que os interesses da comunidade determinam de maneira
harmoniosa e democrática a vida de seus membros.
Segundo esta perspectiva, Rosa Luxemburgo recusaria uma
concepção teleológica da história, segundo a qual já haveria no
passado “bárbaro” da humanidade tendências inelutáveis rumo à
civilização capitalista. Sua admiração pelo passado não capitalista
da humanidade daria elementos para uma concepção aberta da
história, que se oporia criticamente à idéia de progresso linear da
social-democracia alemã. Michael Löwy escreve: “Ao confrontar a
civilização capitalista industrial com o passado comunitário da
humanidade, Rosa Luxemburgo rompe com o evolucionismo linear,
com o ‘progressismo’ positivista, o darwinismo social e todas as
interpretações do marxismo que o reduzem a uma versão mais
avançada da filosofia do senhor Homais. O que está em jogo
nesses textos, em última análise, é o próprio significado da
concepção marxista de história.” (LÖWY, 1986: 72).
34 Paul Frölich é uma exceção, ainda que não se possa concordar com sua interpretação economicista da obra de Rosa Luxemburgo. Ver: Rosa Luxemburg, sa vie et son œuvre, (FRÖLICH, 1965: 189-191).
Ver também J. P. Nettl, La vie et l'oeuvre de Rosa Luxemburg (NETTL, 1972: 818-822). De qualquer
maneira nenhuma dessas obras faz referência à perspectiva “terceiro-mundista” de Rosa Luxemburgo. Annelies Laschitza em contrapartida na sua biografia de Rosa Luxemburgo: Im Lebensrausch trotz
alledem, (LASCHITZA, 1996: 326) observa: “As explanações de Rosa Luxemburgo abarcam o
Próximo Oriente, a Ásia do sul, a África do norte, a América do sul, a Austrália, o que é um dos méritos da sua pesquisa. Essa perspectiva externa à Europa encontrou um interesse cada vez maior no
século XX.”
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
54
Hoje em dia pode-se ver claramente que a civilização
capitalista ocidental com seu gigantesco desenvolvimento das
forças produtivas e a destruição do equilíbrio ecológico do planeta
não é modelo para o resto do mundo. Esse progresso é ao mesmo
tempo um retrocesso, como constatam Rosa Luxemburgo em
várias passagens de sua obra35 e os filósofos da Escola de Frankfurt.
Um dos grandes desafios da esquerda marxista hoje é fazer a
revisão crítica do conceito de forças produtivas36 e romper com a
“ideologia do progresso e o paradigma tecnológico e econômico
da sociedade industrial moderna.” (LÖWY, 2000: 64). Em nossos dias,
um projeto socialista precisa ter uma dimensão ecológica e mostrar
que o desenvolvimento das forças produtivas não é um bem em si
mesmo e que a “modernização” do Terceiro Mundo (que, entre
outras coisas, reduz a diversidade cultural e ecológica) serve
apenas para valorizar o capital.37 Já nos anos 1970 Mário Pedrosa
defendia a idéia de que cada país deve seguir seu próprio
caminho e recusava vivamente a imitação dos países centrais: “A
civilização burguesa imperialista está num beco sem saída. Deste
beco não temos que participar – os bugres das baixas latitudes e
adjacências” (PEDROSA, 1995: 335).
Os herdeiros desta crítica da modernização, e pode-se ver
em Rosa Luxemburgo um de seus precursores, são hoje os
movimentos sociais formados por aqueles que não encontram
lugar no mundo capitalista. Os índios, os quilombolas, os povos da
floresta, os trabalhadores sem terra – todos aqueles que devem
aniquilados pelo processo de modernização porque supostamente
personificam o atraso – fazem enormes esforços para resistir e
construir uma nova cultura política, aliados a pequenos grupos da
esquerda radical, com o objetivo de erigir uma sociedade mais
humana, sem desperdício dos recursos naturais, baseada na
autonomia das forças sociais.
Mas é preciso reconhecer que, apesar da atualidade de
Rosa Luxemburgo, ela não pode responder a todas as perguntas
postas pelo presente. É evidente que a esquerda precisa,
particularmente no Brasil, de uma nova teoria crítica que leve em
35 “Para os economistas e políticos burgueses liberais, ferrovias, fósforos suecos, esgotos e lojas
significam ‘progresso’ e ‘civilização’. Essas obras em si, enxertadas nas condições primitivas, não
significam civilização nem progresso, porque são compradas ao preço da rápida ruína econômica e cultural dos povos, os quais sofrem de uma só vez todas as calamidades e todos os horrores de duas
épocas: a das relações de dominação da economia natural tradicional e a da exploração capitalista mais
moderna e refinada”(LUXEMBURGO, 1987: 160-161).
36 É melhor falar de forças destrutivas como propõe Michael Löwy (2005: 54).
37 Ver International Ecosocialist Manifesto de Joel Kovel et Michael Löwy.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
55
conta as mudanças do capitalismo durante as últimas décadas e
seus efeitos nos países do Sul. Essa nova teoria crítica, pelo menos é
o que pensa Paulo Arantes, só virá – se vier – de um novo tipo de
intelectual de esquerda, com boa formação universitária, tendo
assimilado a tradição radical brasileira, com vínculos com os
movimentos sociais, desempregado ou subempregado, ou seja,
relativamente marginal em relação à sociedade de consumo. Esse
novo tipo de intelectual conhece a miséria brasileira dos dois lados,
o do Estado e o dos movimentos sociais, e não alimenta ilusões em
relação a nenhum dos dois. Mas Paulo Arantes reconhece que,
apesar de todos os problemas dos movimentos sociais é neles e a
partir deles que “algo politicamente revelador e contundente”
pode nascer (ARANTES, 2008: 124). Pode ser que essa nova
geração de intelectuais de esquerda produza finalmente o que
Rosa Luxemburgo caracterizava como o núcleo do marxismo: o
vínculo indissolúvel entre a teoria e a prática.
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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
59
A teoria crítica como teoria da
mudança social: o marxismo de
Marcuse
Robespierre de Oliveira (UEM)
“Há, sobretudo, dois momentos que vinculam o materialismo à correta teoria da sociedade: a preocupação com a felicidade dos homens, e a convicção de que esta felicidade seja conseguida somente mediante uma transformação das relações materiais de existência. O caminho da transformação e as medidas fundamentais para a organização racional da sociedade são traçados mediante a respectiva análise das relações políticas e econômicas. O aperfeiçoamento ulterior da nova sociedade não pode mais ser o objeto de qualquer teoria: deve ser, como obra livre, o resultado dos indivíduos liberados.” (Marcuse, Filosofia e Teoria Crítica, 1937)
“Up to now, it has been one of
the principal tenets of the critical theory of society (and particularly Marxian theory) to refrain from what might be reasonably called utopian speculation. Social theory is supposed to analyze existing societies in the light of their own functions and capabilities and to identify demonstrable tendencies (if any) which might lead beyond the existing state of affairs.”(Marcuse, An Essay on Liberation, 1967)
CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Gostaria de alertar para questões polêmicas, as quais não
tratarei aqui, por fugirem do recorte necessário. A teoria crítica,
discute-se, é entendida como equivalente a marxismo ou como
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
60
algo independente, apesar de ter referências na teoria de Marx. Os
autores principais da teoria crítica, como Theodor W. Adorno, Max
Horkheimer e Herbert Marcuse, fariam parte do chamado marxismo
ocidental, cujo conceito seria de dificilmente determinação. As
principais características, segundo Perry Anderson, seriam o déficit
dessa geração em relação à anterior, marcada pelo êxito
revolucionário. Assim, o marxismo ocidental seria composto por
intelectuais mais afeitos à teoria do que à prática revolucionária,
mais ainda: seu desenvolvimento teórico voltar-se-ia para questões
não tratados por Marx e Engels, como a ênfase sobre a cultura,
faltando-lhe o enfoque econômico e político. Para tal
desenvolvimento teórico, o marxismo ocidental introduziu outros
elementos teóricos “alheios” ao marxismo, como a psicanálise e a
sociologia weberiana. Marcuse, em particular nos anos 1960, foi
muito criticado pela direita e pela esquerda, seja como perigoso
revolucionário, seja como ludibriador do movimento operário.
Sem entrar na discussão sobre o mérito de tais questões,
lembraria que em sua fase inicial a teoria crítica constituiu-se a
partir do debate entre marxismo e filosofia elaborado sobre a crise
do movimento operário no início do século XX. A preocupação
com o problema da consciência surgiu com grande relevância
nesse período em vista da vitória, que já se desenhava, de sistemas
autoritários, como o fascismo e o estalinismo, com apoio dos
próprios operários. Neste sentido, pode-se compreender a teoria
crítica como uma contribuição ao desenvolvimento da teoria
marxista, a qual nunca teve uma elaboração absoluta e universal,
não sendo, portanto, dogmática. O apoio de outras teorias, como
a psicanálise e a sociologia de Max Webber, significava preencher
lacunas da própria teoria marxista. Não seria descabido afirmar
que Marx também se apropriou, a seu modo, da teoria burguesa
de seu tempo. Assim, considera-se que não há um corpo teórico
fechado do marxismo, mas sim interpretações, por vezes
apaixonadas, as quais chegam a digladiar-se visando sua
preponderância sobre as demais. Tais interpretações muitas vezes
censuram Marcuse equivocadamente, a partir de uma crítica
exterior ao próprio pensamento dele.38
38 Sobre o marxismo ocidental, veja-se Anderson, Perry. Considerações sobre o marxismo ocidental.
Considerações sobre o marxismo ocidental. Trad. M. Levy. Revisão técnica. E. Sader. 2ª ed. São
Paulo, Brasiliense, 1989. Sobre a crítica ao marxismo de Marcuse, ver entre outros, Kellner, Douglas. Herbert Marcuse and the crisis of marxism. Berkeley, Los Angeles, University of California Press,
1984.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
61
A “PERSISTÊNCIA DA UTOPIA”
No presente texto, mostrarei alguns aspectos da
compreensão do marxismo por Marcuse, relevando sua
contribuição para o debate revolucionário, apontando sua
originalidade e limitações. A grande característica do marxismo de
Marcuse é o que Gunzelin Schmid Noerr chamou de “persistência
da utopia”. A perspectiva da felicidade, da liberdade, a
preocupação com o papel do indivíduo, a abolição do trabalho
alienado, a necessidade da ética da revolução estão no horizonte
da perspectiva utópica de Marcuse. Tais parâmetros podem ser
utilizados pela imaginação ou fantasia para vislumbrar uma outra
sociedade racionalmente organizada. Esta realidade possível,
embora não existente, é a utopia. Para Marcuse, o socialismo é a
transformação da sociedade existente numa qualitativamente
diferente, cujos parâmetros podem ser delineados a sua pré-
existência. A utopia não é só o objetivo a ser alcançado, como
orientadora do processo, na medida em que uma sociedade
melhor depende da consciência dos homens desse objetivo para
sua realização. Uma sociedade qualitativamente diferente e
melhor do que é esta é possível, porém não decorre do acaso das
necessidades.
O conceito de utopia recebeu uma conotação pejorativa,
principalmente, a partir de Marx e Engels em seu “Manifesto do
Partido Comunista”. Para eles, tratava-se de combater as visões
anteriores de socialismo como equivocadas, para afirmarem a
validade de sua nova proposição. A nova conotação de utopia
aparece com Ernst Bloch, como “utopia positiva”. Trata-se de
elaborar uma nova realidade a partir da crítica à realidade
existente, elemento comum a diversas utopias (desde Thomas
More), mas a diferença estaria na insistência do caráter material da
crítica, tal como Marx fez em O Capital. Em “Filosofia e Teoria
Crítica” (1937), Marcuse afirma o conceito de utopia em
contraposição à antropologia filosófica, a qual seria apenas
descritiva da situação humana tal como é, enquanto a utopia
visaria afirmar os homens como podem ser. Para Marcuse, os
homens podem ser mais do que efetivamente são.
Essa perspectiva utópica aparece no jovem Marcuse, o
qual participou da revolução fracassada da Alemanha em 1918, e
acompanha seu amadurecimento teórico ao longo de sua obra,
como um fator normativo. O jovem Marcuse abandonou um
conselho de soldados quando viu os oficiais serem eleitos para
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
62
cargos de direção. Tal rebeldia, embora acompanhada da falta
de experiência política, retratava a perspectiva libertária de
Marcuse, que desde jovem esteve mais próximo da linha política
de Rosa Luxemburg do que do bolchevismo de Lênin. Apesar de
Marcuse não ter mais se interessado pela participação partidária,
ele se manteve sintonizado com o movimento operário. Isto pode
ser considerado como uma limitação do marxismo de Marcuse, o
fato de não ter uma experiência partidária e ter elaborado um
programa político claro, como as discussões de Luxemburg e Lênin.
Entretanto, deve-se considerar as limitações históricas da época,
como o estalinismo, o nazismo, a Segunda Guerra Mundial, a
Guerra Fria. Mas, também se deve lembrar o papel de Marcuse na
New Left e suas proposições políticas (como as 33 teses publicadas
em Tecnologia, guerra e fascismo, 1998), nas quais ele reafirma sua
perspectiva libertária inclusive para aqueles que desejam uma
futura sociedade livre.
Segundo Marcuse, em “Filosofia e Teoria Crítica” (1937), a
“utopia é o elemento mais progressivo na história da filosofia”. A
perspectiva utópica aparece em Marcuse mediante a articulação
entre ontologia e antropologia, desenvolvendo-se desde uma
ontologia concreta até uma antropologia negativa (abstrata).
Assim, não só sua preocupação com o papel do indivíduo,
subsumido sob várias categorias (como a classe, o povo, o
partido), como a preocupação com um fundamentação
ontológica do marxismo o atraíram para a filosofia de Ser e Tempo
(1927), de Heidegger. Na minha interpretação, corroborada por
Douglas Kellner, Marcuse foi desde o início fundamentalmente
marxista. A filosofia heideggeriana, para ele, visava preencher
“lacunas” na teoria marxista. Assim, formulou o projeto da “filosofia
concreta”, no qual a perspectiva ontológica aparecia com mais
ênfase do que a antropológica. Mais ainda: a perspectiva
ontológica era posta como concreta tendo em vista sua
apreensão da historicidade humana.39 Deste modo, para ele,
torna-se possível determinar o papel do indivíduo no processo
revolucionário. Contrário, a Lukács, para quem só os possuidores da
“correta consciência de classe” seriam revolucionários, Marcuse
insiste na “ação radical” dos descontentes com o sistema, aqueles
que reconhecem sua opressão diária, apesar de não saberem
39 “Apenas com a unificação de ambos métodos — um fenomenologia dialética que representa um
método de extrema e constante concreção — é possível fazer justiça à historicidade do Dasein
humano.” Marcuse, “Contribuições para uma fenomenologia do materialismo histórico” (1928) In: Marcuse, Herbert. Heideggerian Marxism. Richard Wolin and John Abromeit (Eds) University of
Nebraska Press, 2005, p. 21.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
63
como se livrarem dela. O conceito de ação radical visa incluir
também o conceito de “revolução total”, isto é, que a revolução
não ocorra apenas no plano econômico e político, mas sim no
plano da própria existência vital dos homens.
A filosofia preocupa-se com os homens na medida em que
é produção humana. Neste sentido, a filosofia elaborou verdades
sobre as relações, verdades que não foram efetivadas na
realidade. A consciência dos homens pode ser obscurecida e
oprimida não só pelas condições materiais existentes como
também pelas promessas não cumpridas da filosofia. A dimensão
filosófica, do mesmo modo que para Korsch e Lukács, tem uma
contribuição crítica para a teoria marxista. Daí a necessidade de
justificação filosófica do marxismo para o jovem Marcuse, que via
na ontologia da historicidade humana a chave para a crítica
imanente do processo social dos homens. Apesar da linguagem
heideggeriana, Marcuse insiste na visão marxiana d’A Ideologia
alemã de Marx e Engels, em que ambos autores afirmam a
superioridade das condições materiais frente a elaboração
idealista das mesmas condições. Ao avançar nessa direção,
Marcuse encontra insuficiências na fenomenologia heideggeriana,
cujos conceitos soam muito abstratos e vazios. Bastou a publicação
dos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 de Marx, para tornar
Heidegger desnecessário. Marcuse encontrara no próprio Marx a
fundamentação que buscara na fenomenologia. Nem é preciso
mencionar o “namoro” de Heidegger com o nacional-socialismo
para mostrar o rompimento entre ele e Marcuse e o abandono do
projeto da filosofia concreta.
No jovem Marx, Marcuse encontra um conceito de essência
humana determinado tanto pela história quanto pelo trabalho e
pela sociedade humana, porém num sentido negativo e com um
caráter antropológico também negativo: os homens não são como
podem ser. Um conceito fundamental de Marx é a essência
genérica (Gattungswesen) do homem: “o homem é o mundo dos
homens”. Assim, no texto “Sobre o conceito de essência” (1936),
Marcuse faz um de ajuste contas com a fenomenologia, que tinha
pretensões de um conceito material de essência. Marcuse mostra
que o conceito de essência da fenomenologia e de outras filosofias
próximas são abstratos justamente por se aterem à descrição do
que o homem é, sendo condescendentes com a realidade tal
como está. O conceito de essência para Marcuse resulta de
características humanas universais abstraídas de seu conteúdo real,
tais como: a linguagem, o trabalho, a racionalidade, a
sociabilidade, a liberdade e a felicidade, entre outros. Tais
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
64
características são abstratas (e dadas negativamente) na medida
em que não são efetivadas na realidade, sendo postas então
como potencialidades. A não efetivação delas resulta da má-
facticidade humana e das relações sociais existentes. Neste
sentido, a crítica da economia política é entendida como crítica
das relações sociais. As potencialidades humanas não são
cumpridas devido à opressão dos homens pelos próprios homens.
O conceito de essência humana aparece como necessário
por ser medida da crítica à realidade existente, pois se não
houvesse tal medida a crítica seria infundada. O capitalismo é
considerado como “catástrofe da essência humana” e por isso
uma má-facticidade. Desde o início, o principal método da crítica
é a imanência a seu objeto. O pressuposto da sociedade humana
é a realização plena das potencialidades humanas, entretanto, as
relações econômicas desiguais entre os homens, a divisão social,
privilegiaram uma camada da sociedade em detrimento das
demais, impedindo a realização dos homens como tais. Para Marx,
o comunismo é “humanismo social”, isto é a realização da
sociedade como humanidade, sendo para isso superação da
divisão e da opressão social existentes. A realização das
potencialidades humanas aparecem como utópicas face ao
existente, não como impossibilidade, mas como guia para sua
realização.40
Da mesma forma que se mede criticamente o que é com o
que pode ser, mede-se o conceito com sua existência. Assim,
Marcuse recorre à história da filosofia para avaliar determinados
conceitos em relação ao que é dado empiricamente, como o
conceito de liberdade, indivíduo, felicidade, razão, entre outros.
Neste sentido, afirma em O homem unidimensional (1964) a
importância dos universais, cuja realização particular aparece em
geral como deficiência. O indivíduo existente não é como o
liberalismo clássico proclamou: um indivíduo isolado que devesse
somente a sua razão e vontade os objetivos a serem alcançados.
O indivíduo seria autônomo face às autoridades instituídas pela
40 “The theoretical status of Marcuse’s utopian construction — especially in his later work — has
nothing to do with the possibility of its realization. It serves as a theoretical medium of critique.!” Bundschuh, Stephan, “The Theoretical Place of Utopia – Some remarks on Herbert Marcuse’s Dual
Anthropology”, In Herbert Marcuse – A critical reader, John Abromeit and W. Mark Cobb (eds), New
York and London, Routledge, 2004, p. 158. Bundschuh afirma que Marcuse desenvolve uma antropologia que é normative do seu projeto de transformação social. “In Marcuse’s work the utopian
dimension is a precondition of theoretical critique. But does this imply that a transformation of the
essence of man must also be a real possibility? On this point there is a difference between Marcuse’s understanding of his own theory and the real theoretical position of his utopia. Marcuse thinks that his
new anthropology is not only a theoretical project but also a real form of existence.” (Idem, p. 160.)
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
65
sociedade, de fato seria constituído contra a sociedade. O
diagnóstico de Marcuse, em “Algumas implicações sociais da
tecnologia moderna” (1941), e de Horkheimer, em O eclipse da
razão (1947), aponta para o declínio do indivíduo no interior da
sociedade capitalista avançada. O indivíduo perdeu sua
autonomia, sendo subsumido sob categorias gerais: como massa,
povo, classe, etc. Daí o interesse de Marcuse pelo papel do
indivíduo no processo revolucionário. Os marxistas de sua época
tratavam o indivíduo subsumido sob o coletivo, de tal modo que os
indivíduos desapareciam. Muitos autores chegaram a afirmar isto
como verdade da teoria marxista, que não teria lugar para o
indivíduo. Marcuse buscou, então, em Heidegger a afirmação
existencial do indivíduo. Mas os Manuscritos... de Marx mostraram
não só a não necessidade da filosofia de Heidegger como
também a afirmação concreta do indivíduo. Por isso, Marcuse
escreve em Razão e revolução (1941) que o comunismo é a
realização do indivíduo. Entretanto, não o indivíduo do liberalismo,
o indivíduo isolado, mas sim um indivíduo socialmente inserido.
Mas a inserção do indivíduo na sociedade capitalista ocorre
em meio à divisão social de classes. Os mecanismos ideológicos de
dominação, a integração da classe trabalhadora ao mercado
consumidor, a difusão cultural, são aspectos que corroboram para
a perda de autonomia dos indivíduos. Os regimes autoritários
demonstraram a manipulação dos indivíduos, ao fornecerem para
eles meios de satisfação. Deste modo, não são motivados para a
revolução, a qual, segundo Lênin, não é obra só dos comunistas. Os
trabalhadores e os indivíduos, em geral, participam da revolução
na medida em que a sociedade não atende a seus interesses e
não há perspectivas reais para isso, poucos são os que têm uma
alternativa social, como o socialismo, como objetivo final.
Os homens se formam pelo trabalho, modelam suas
habilidades pelo trabalho. Marx, porém, afirma que além de formar
o trabalho deforma. Mais ainda: a condição de trabalhador nega
a existência do homem, inclusive até à morte. O capitalismo é a
desrealização da essência humana, na medida em que os homens
não desenvolvem suas potencialidades. O caráter alienado do
trabalho e da própria sociedade humana contribui para tal
desrealização. Marcuse recorre a Freud para quem o trabalho é o
principal agente repressor das pulsões humanas. Há repressões
necessárias para a organização social, como a moral, há outras,
porém, que aumentam a carga opressiva dos homens. O princípio
de realidade pode ser considerado como a adaptação necessária
dos homens à ordem social, controlando as pulsões primárias. Mas
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
66
a sociedade humana erigiu-se em sua história de modo mais
repressivo do que o necessário. Marcuse utiliza o termo “princípio
de desempenho” para descrever o princípio de realidade na
sociedade capitalista competitiva. O termo “mais repressão”
designa uma repressão adicional. Os trabalhadores não se
emancipam devido apenas à oposição da burguesia, mas
também devido a si mesmos. A dificuldade pela integração e
adaptação social leva os trabalhadores a terem dificuldade de
romperem com a continuidade histórica e social. O trabalho
alienado ocupa o tempo dos homens de tal maneira que sobra
muito pouco tempo para pensarem sobre si mesmos e viverem suas
próprias vidas. O tempo fora do trabalho também é um tempo
administrado.
Segundo Marcuse, a racionalidade vigente é a
racionalidade tecnológica (ou instrumental). Trata-se da
racionalidade organizada no interior da fábrica expandida para o
todo da sociedade, visando produtividade, eficiência e lucro.
Deste modo é possível entender métodos altamente racionais,
coordenados e organizados, para uma finalidade irracional.
Auschwitz é exemplo disso. A tecnologia não se refere apenas a
aparelhos e instrumentos, mas também a procedimentos. Os
indivíduos são cada vez mais coordenados por instâncias superiores
da sociedade, como a mídia. Eles se guiam pela lógica do cálculo
custo-benefício e pela ideologia dominante do capitalismo: a
compra e venda de mercadorias. O desenvolvimento da
tecnologia aumentou a produção de mercadorias e mudou o
comportamento dos indivíduos, afetando até sua biologia, como
por exemplo a ingestão de fast-food. A moda oferece variedades
do que vestir e de se comportar; o plug-in das rádios, o que ouvir; a
“opinião pública” da mídia, o que pensar sobre certos
acontecimentos; e assim por diante. A própria razão dos homens
está ceifada do poder crítico e de discernir sobre os processos a
que estão submetidos.
Na medida em que seu objetivo o lucro a lógica do
capitalismo é estruturalmente “ilógica”, ela passa por cima de
outros objetivos, como o bem-estar da humanidade e a ecologia.
O desperdício de recursos naturais e de vidas humanas insere-se na
lógica de desenvolvimento do capitalismo. Marcuse foi um dos
primeiros a apontar a ecologia como um problema real para a
sociedade humana. A frase “socialismo ou barbárie” de Rosa
Luxemburg torna-se cada vez mais real na época da sociedade
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
67
industrial avançada.41 Segundo Marcuse, “(...) Marxismo como uma
teoria é uma análise — política, sociológica e econômica — do
capitalismo, que chega à conclusão de que o sistema capitalista
só pode preservar-se através de conflitos crescentes, desperdício
de recursos, destruição de recursos, guerras, e assim por diante, e
que a transição para o socialismo é a única solução para esta
filosofia.”42
A sociedade unidimensional eliminou a dimensão da
liberdade. O processo de contenção é organizado em todos os
níveis, onde a indústria cultural não alcança a força bélica é
utilizada. Porém, não se trata de uma repressão declarada, a
liberdade converteu-se em instrumento de dominação. O processo
de dominação se faz por meio da exigência de liberdade, dentro
da ordem estabelecida. A sociedade democrática é autoritária na
medida em que a eleição se torna plebiscitária e é livre apenas
para a escolha dos senhores. A oportunidade de alternativa está
em extrapolar os limites estabelecidos pela ordem vigente, os quais
não são aceitos pela própria ordem. Assim, a exigência de
emprego para todos é impossível de ser cumprida pelo sistema
capitalista que necessita de um exército industrial de reserva para
regular o valor dos salários. Nos anos 1960 e 1970, Marcuse
“apostou” em grupos marginais, não como substitutos da classe
operária, mas como catalisadores de um possível processo
revolucionário. As chamadas “minorias”, como negros, mulheres,
homossexuais, entre outros, poderiam colocar em xeque a estrutura
social vigente conservadora, porém com o tempo tanto elas
quanto a sociedade se adaptaram uma à outra. As minorias
queriam direitos reconhecidos e foram “aceitas” pela sociedade
que descobriu elas serem também consumidoras de mercadorias.
O processo de contenção visa a adaptação ao mecanismo
social, reduzindo focos de contestação. Neste sentido, a New Left43
41 Marcuse, “The classical alternative “socialism or barbarism” is more urgent today than ever before.”,
“The failure of the New Left?” In: Marcuse, Herbert. The New Left and the 1960s. Douglas Kellner
(eds) London and New York, Routledge, 2005, p.191 (Collected Papers of Herbert Marcuse, vol. III)
42 Marcuse, H. “Mr. Harold Keen: Interview with Dr. Herbert Marcuse”, op. cit., pp. 128-9.
43 Marcuse, “The New Left consists of political groups that are situated to the left of the traditional
communist parties; they do not yet possess any new organizational forms, are without a mass base and are isolated from the working class, especially in the United States. The strong libertarian, anti-
authoritarian movements that originally defined the New Left have vanished in the meantime or
yielded to a new “group-authoritarianism.” Nevertheless, that which distinguishes and essentially characterizes this movement is the fact that it has redefined the concept of revolution, bringing to it
those new possibilities for freedom and new potentials for socialist development that were created (and
immediately arrested) by advanced capitalism. As a result of these developments, new dimensions of social change have emerged. Change is no longer defined simply as economic and political upheaval,
as the establishment of a different mode of production and new institutions, but also and above all as a
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
68
apareceu como uma alternativa à esquerda ortodoxa, que só
compreendia o desenvolvimento histórico social seguindo dogmas
oficiais. A nova realidade histórica surgida após a Segunda Guerra
não permitia um processo revolucionário como foi com a
Revolução Russa de 1917. A revolução chinesa e a revolução
cubana apareceram como novas alternativas fora do bloco
soviético. Muitos ficaram impressionados e se deixaram levar, como
Jean-Paul Sartre que apoiou o maoísmo. Mas a New Left pretendia
estabelecer uma organização muito mais livre e democrática do
que as organizações tradicionais, visando métodos ação menos
dogmáticos, incorporando debates não registrados pela esquerda
tradicional, como o movimento ecológico, o feminismo, entre
outros. O problema da revolução tornou-se a dimensão total da
existência.
Os jovens militantes sabem ou sentem que o que está em
jogo é simplesmente suas vidas, a vida de seres humanos que se
tornaram um brinquedo nas mãos dos políticos e gerentes e
generais. Os rebeldes querem retirá-la destas mãos e fazer valer a
pena vivê-la; eles percebem que isto ainda é possível hoje, e que o
alcance desta meta necessita de uma luta que já não pode ser
contida pelas regras e regulamentos de uma pseudo-democracia
em um Mundo Livre Orwelliano.44
À GUISA DE CONCLUSÃO
Se em Um ensaio sobre a libertação (1967), Marcuse
desenha uma utopia crítica, pensando o socialismo como uma
necessidade biológica e defendendo uma nova sensibilidade, em
Contrarevolução e revolta (1971), embora mantenha muitas de
suas posições, ele percebe claramente o processo de contra-
revolução instaurado e a prática petrificada da esquerda
institucionalizada e da fraqueza da oposição real. Para ele, a luta
de classes não deixou de existir, age inclusive com mais força por
meios mais sutis, como a indústria cultural, embora a força das
armas continue imperando nos rincões do mundo. O capitalismo é
visto tanto em sua face de abundância quanto de miséria. A
estrutura conjuntural mundial estava mudando. O mundo estava
revolution in the prevailing structure of needs and the possibilities for their fulfillment.” (“The Failure of the New Left”, op. cit., p.183)
44 Marcuse, Um ensaio sobre a libertação (1967), Preface, p. X.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
69
sofrendo um processo de repressão violento, em todos os níveis:
econômico, político, social, cultural, sexual, etc. Marcuse
vislumbrara parte do que estava por vir. Certamente, o fim da
Guerra Fria, o fim da URSS e dos países socialistas do leste europeu,
a transformação em potências da China (com características
capitalistas e poder político vinculado ao partido comunista) e da
Índia, a integração cada vez maior das minorias nos países
capitalistas avançados, o aparecimento de novas doenças, como
a AIDS, o desenvolvimento da engenharia genética, entre diversos
outros fatores, não estavam no horizonte de Marcuse. Mesmo assim,
muitos destes fatores e até a nova ordem mundial após o 11 de
setembro de 2001, corroboram análises desenvolvidas por ele em
seus últimos textos.45
Pode-se notar como características do marxismo de
Marcuse, a busca incessante pela utopia como guia ético do
processo de transformação social e a crítica sem concessões ao
existente. A crítica da economia política como crítica das relações
sociais implica em novas formas de sociabilidade, em novas formas
de relação com a natureza (não mais como mercadoria). A
atitude ética poderia ser pensada como um sistema da vida ética,
visando, porém, a liberdade e a felicidade de todos. Como guia do
processo, não se pode pensar a liberdade e a felicidade como
“presente de natal”, como promessa a ser adiada. A abolição do
trabalho alienado é parte essencial do processo de transformação
social, na medida em que o trabalho alienado além de gerar
riqueza também gera desconforto, miséria e sofrimento. Não,
porém, em Marcuse, uma ética do trabalho, nem uma
sobrevalorização do trabalho. Os trabalhadores não são melhores
por serem trabalhadores. Eles têm destaque no processo
revolucionário devido à sua posição na produção social. Há que se
combater o machismo, sexismo, racismo, autoritarismo e outras
formas nocivas a um processo de mudança social. Deve-se
respeitar o outro e a natureza. A mudança social não pode ser
efetuada de “cima para baixo”, mas deve ser um processo que
afete o todo da sociedade e que os indivíduos devam sentir sua
necessidade. Marcuse entende as dificuldades deste processo e
afirma que a revolução não é para amanhã, não há ilusão nisso. A
contrarrevolução ainda é forte. A paralisia (ou fraqueza) da
oposição tem garantido tal força. Mesmo assim, não se deve deixar
cair a bandeira do socialismo, cuja propaganda necessita ser
45 Cumpre observar que Marcuse contribui para o marxismo, não pretende dar a última palavra ou ser
dogmático.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
70
mantida e debatida para ser compreendida. Trata-se, talvez, de
um trabalho de “formiguinha”, um trabalho muito arriscado, e, para
Marcuse, o risco vale a pena.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Trad. Maria Cristina Vidal Borba. São Paulo, Unesp, 1999.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
71
Gramsci e a cultura de seu tempo:
observações sobre arte e literatura
Anita Helena Schlesener (UTP)46
O presente trabalho pretende retomar algumas reflexões
sobre o conceito de hegemonia e sua relação com a cultura a
partir das observações de Gramsci sobre arte e literatura. O tema
se insere numa perspectiva recente de leitura dos escritos desse
autor, a partir da publicação da nova edição crítica iniciada em
2007, como parte da Edição Nacional das obras de Gramsci,
acompanhada de um estudo crítico que redefine o contexto de
produção da obra. Os temas sobre a literatura aparecem nas
intenções de pesquisa esboçadas nas primeiras cartas do cárcere
e em alguns projetos de pesquisa, alem da explicitação do desejo
de estudar varias línguas a partir da tradução de textos de
determinados autores alemães e russos, entre eles Goethe, Marx,
Dostoievski, Tchecov, Gogol e Pushkin.47 Gianni Francioni,
organizador da nova Edição Crítica, acentua que a escolha dos
autores e dos textos a traduzir evidenciam tanto interesses
precedentes ao confinamento quanto problemas centrais a
desenvolver nos Cadernos do Cárcere, fato que se pode constatar
principalmente na escolha dos textos de Marx. De qualquer modo,
as idéias de Gramsci sobre a literatura de seu tempo precisam ser
examinadas na sua relação com sua teoria política, na qual se
pode inserir a sua preocupação com uma historia da cultura e os
46 Professora de filosofia política (aposentada) da UFPR; professora do Mestrado e Doutorado em educação da UTP.
47 Esse último nos traz a lembrança da influência do romantismo nas primeiras leituras de Gramsci no
período universitário, tanto na vertente russa quanto na francesa (estudada por GERVASONI,1998). Para Gramsci, a questão do romantismo italiano precisa ser entendida no contexto da relação ou
ligação particular entre os intelectuais e o povo; isto é, trata-se de um problema que envolve, também
aqui, o aprofundamento das raízes históricas e sociais a partir das quais se construíram as relações políticas na Itália. Em linhas gerais, é sempre o significado político que Gramsci busca na literatura. O
que o preocupa é elaborar uma história da cultura e não uma história da literatura.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
72
seus objetivos em relação a uma nova organização social e
política.
Evidenciar a relação entre política e cultura no contexto do
conceito de hegemonia permite salientar as novas dimensões da
luta de classes; esta assume cada vez mais a forma de formação
de hábitos, costumes, modo de pensar que se torna homogêneo e
possibilita que as formas de vida dos dominantes sirvam de modelo
e exemplo para as classes dominadas, que perdem assim a sua
capacidade de agir e decidir autonomamente. Nesse contexto, a
abordagem gramsciana da literatura assume nova configuração
no âmbito da teoria política, sempre tendo como pressuposto a
relação intrínseca entre política, historia e filosofia. Atribui-se para a
literatura uma função ampliada, enquanto enunciadora de
conceitos na forma assimilável no senso comum e enquanto forma
de explicitar relações históricas que constituem a sociabilidade e as
relações de forças que mantém ou renovam uma determinada
estrutura política.
A função mistificadora de um pensamento homogêneo que
anuncia a promessa de participação e de liberdade para todos no
contexto da ordem burguesa, basta que se trabalhe e se consuma,
é abordada por Gramsci por meio da metáfora do carrossel:48 a
sociedade burguesa é um grande parque de diversões que tem no
seu centro um carrossel; a felicidade se traduz em andar nos
cavalinhos, fato que demonstra que se conseguiu o acesso à
propriedade. Acontece que existem milhares de pessoas que
tentam andar nos cavalinhos, mas somente algumas conseguem;
as outras sofrem todos os constrangimentos sem resistência, porque
esperam, um dia, conseguir ascender socialmente e usufruir as
benesses da propriedade. O que se ressalta nessa metáfora é que
a riqueza não se apresenta como um fim em si, mas como um meio
para conseguir a liberdade, isto é, a busca de riqueza não se
circunscreve ao material, mas envolve uma finalidade maior que é
a liberdade e a continuidade do bem-estar gerado; essa
concepção disseminada no senso comum retira da exploração do
trabalho e do conjunto do processo de dominação seu caráter
moral negativo e acresce-a de um elemento meritório vinculado à
preservação da família e à transmissão de valores.
A consolidação da hegemonia de um grupo social
acontece quando se alcança uma homogeneidade de
48 O artigo no qual Gramsci apresenta esta metáfora foi escrito em 1918, publicado em Gramsci (1975) e se encontra traduzido no livro Antologia de textos filosóficos, publicado pela Secretaria de Educação
do Paraná em 2009, como material didático para o ensino médio.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
73
pensamento, ou seja, quando o domínio de uma classe determina
o modo de ser, de pensar, de competir e de conceber a própria
individualidade. A questão da cultura, portanto, reveste-se da
ideologia como pratica de poder, o que pode ser compreendido
somente quando as classes dominadas esclarecerem para si as
varias formas que assume a dominação no contexto do modo de
produção capitalista. Para as classes trabalhadoras a questão
cultural reveste-se das características da luta de classes, que
implica em compreender que, ao assimilar o pensamento
dominante, compartilham um horizonte subjetivo que jamais
poderá ser usufruído verdadeiramente.
A ideologia como prática de poder produz e realimenta o
imaginário social criando no indivíduo expectativas de ascensão
social que nunca serão realizadas, mas que produzem, no senso
comum, uma apatia, uma indiferença política difícil de abalar. No
campo da democracia burguesa, as eleições, o debate
parlamentar (o parlamento é o lugar onde "se parla"), a
proclamação da igualdade de acesso aos direitos individuais e
outras práticas, ocultam a verdadeira situação política, que se
produz para manter e consolidar a relação efetiva entre a estrutura
econômica e o aparato estatal; a pratica e se reforça na medida
em que, no imaginário social se mantém a crença de participação
igualitária e do exercício de uma política democrática no âmbito
do Estado.
Nisso consiste a relação entre política e cultura: esclarecer
como se constrói a sociabilidade como hegemonia dos
dominantes, que desarma e imobiliza qualquer possibilidade de
organização política de massas. A leitura que sustenta essa
exposição tem como base os Cadernos do Cárcere que, entre os
vários temas que abordou e que possuem relevância no contexto
da formação das relações de hegemonia, está a cultura popular,
considerada na sua relação com a arte e a literatura de seu
tempo, com as quais Gramsci tentou estabelecer um diálogo.
Dentro dessa perspectiva, a pergunta que se faz é sobre o
que é efetivamente popular, ou seja, o que é produzido pelas
classes populares e o que é apresentado e veiculado para elas. No
contexto do pensamento de Gramsci a cultura popular assume um
significado próprio, na medida em que pressupõe a luta de classes
e a correlação de forças expressa nas relações de hegemonia: a
cultura se expressa no senso comum por meio de um modo de
pensar; o senso comum se compõe de um conjunto fragmentado e
incoerente de conhecimentos evidenciados por Gramsci no
chamado “folclore” e por elementos coerentes e mais
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
74
sistematizados a partir dos referenciais hegemônicos, denominados
pelo autor como “filosofia”. A característica fragmentária e
assistemática do senso comum se constitui na grande fraqueza
desse modo de pensar, visto que a ausência de uma coerência
não permite evidenciar as contradições que permeiam o cotidiano
e se traduzem no antagonismo entre o pensamento e a ação.
Somente a elaboração de um pensamento crítico e coerente, a
partir da organização política, pode permitir aos trabalhadores
identificar na sua prática social e política os germens de um novo
pensamento e renovar a cultura. Enquanto isso não acontece, a
cultura popular se constitui de elementos do pensamento
dominante e dos valores e idéias que provém tanto do passado
mais remoto quanto do ideário das classes que detém o poder. A
organização política, possibilitando uma compreensão do conjunto
de relações econômicas, sociais e políticas, evidenciaria as formas
culturais de dominação presentes na divulgação e consolidação
de um pensamento homogêneo e permitiria a elaboração de um
pensamento rico e peculiar da realidade, que consistiria, então, na
cultura popular.
Gramsci evidencia esta situação no contexto da realidade
italiana de sua época, na análise de situações diversas ocorridas
no curso da história, desde a Revolução Francesa, passando pela
Revolução burguesa italiana, que teve início no renascimento e se
consolidou como revolução passiva no Risorgimento, até a
ascensão do fascismo na Itália. A leitura da história traz implícita a
discussão sobre os intelectuais enquanto funcionários da
hegemonia, ou seja, enquanto responsáveis por uma constante
“direção intelectual e moral” que sedimenta e mantém a
hegemonia de determinados grupos sociais. Da retomada e
reinterpretação da história moderna se elaboram os elementos
centrais do conceito de hegemonia: um grupo social é dominante
tanto pelo exercício da força, que lhe permite submeter os grupos
resistentes, quanto pela direção intelectual e moral, que lhe
permite alcançar o consentimento pela formação de um modo de
pensar homogêneo. El qualquer caso è mais interessante, para os
grupos que desejam conquistar a hegemonia, tornar-se dirigentes
antes de dominantes e, ao conquistarem o poder, manter a
direção intelectual e moral.
Na organização política se criam os mecanismos de direção
e de participação efetiva e consciente, fato que implica em formar
seus próprios intelectuais, cujo compromisso refletir e criticar as
contradições que perpassam seu cotidiano, para “buscar os elos
com o povo, com a nação”, para gerar “uma unidade não servil,
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
75
devida a obediência passiva, mas uma unidade ativa, vivente,
qualquer que seja o conteúdo dessa vida” (GRAMSCI, 1977, Q. 9:
1740). A valorização da cultura popular como mecanismo de luta
política permite compreender as idéias de Gramsci sobre a arte e a
literatura de seu tempo, visto que essas encontram seu significado
no contexto da organização social e política e dos conflitos que
permeiam a sociedade italiana dão inicio do século XX; no curso
de sua organização política os trabalhadores podem tomar
consciência das contradições que permeiam seu modo de
existência e elaborar uma nova concepção de mundo a partir da
qual se pode redefinir toda a cultura historicamente produzida,
elemento indispensável para a proposição de uma nova
hegemonia.
Essa leitura ressalta do significado peculiar de “popular”
presente nos escritos de Gramsci: ao mesmo tempo em que
acentua que os intelectuais devem mergulhar nas práticas e
tradições das classes populares para construir a coerência interna
desse material, levanta a pergunta sobre qual literatura pode ser
considerada popular, e responde que os grandes clássicos como
Dostoievski, Goldoni, entre outros, são autores populares porque
abordaram assuntos que apresentam um valor universal e, ao
divulgá-los em sua literatura, contribuíram para torná-los de amplo
conhecimento. Se a arte e a literatura se inserem no conjunto de
relações de hegemonia, trata-se de evidenciar sua importância na
edificação dos princípios necessários para a elaboração de uma
nova concepção de mundo. Se levarmos em conta que o
conhecimento é dinâmico, fruto da constante interlocução dos
homens entre si e com o pensamento historicamente produzido,
arte e literatura cumprem a sua função política renovadora na
medida em que se tornam populares, ou seja, enquanto sejam
restituídas em sua integridade a toda a sociedade.
Nas condições de capitalismo avançado essa formação
tem fundamental importância na luta hegemônica, ou seja, a
cultura tornou-se um dos mecanismos das relações de poder e da
luta de classes que se consolida enquanto exploração do trabalho
firmando-se como dominação das consciências individuais pela
formação das subjetividades. A exploração do trabalho assume
novas proporções na medida em que se consolidam os padrões de
comportamento constantemente reafirmados pelos meios de
comunicação de massa. Dessa perspectiva a leitura de Gramsci
assume sua atualidade, na medida em que seus conceitos nos
permitem refletir sobre questões que se renovam. O problema da
atualidade de um pensamento político de um pensador agora
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
76
entendido como um clássico é sempre uma questão polêmica.49
Gramsci falava de um contexto e de uma realidade que se alterou
significativamente nas últimas quatro décadas, tanto no que se
refere a relações de trabalho quanto ao significado da cultura no
contexto da política. Para Accardo,
“a questão a colocar é se, depois das
grandes mudanças da política italiana e internacional a partir de 1989, Gramsci pode ser ainda um ponto de referencia para a esquerda saída da experiência do partido comunista. Não se trata de avaliar a atualidade de um autor com base na possibilidade de encontrar na sua reflexão a resposta para questões precisas e determinadas, mas de avaliar o quanto pode ser fecundo, na realidade atual, o patrimônio moral, político e cultural de sua obra” (ACCARDO, 2009: 11).
Entendemos que existem conceitos que continuam sendo
fundamentais para pensar a realidade contemporânea,
principalmente se tomarmos a relação intrínseca estabelecida por
Gramsci entre filosofia, política e história. Apesar de todas as
mudanças, a noção de hegemonia e a importância da cultura na
formação de um consenso apresentam-se como referenciais
importantes para pensar as novas formas de alienação geradas a
partir da sedimentação da ideologia neoliberal e sua difusão pelos
meios de comunicação.
Seguindo a senda inicialmente aberta, salienta-se que o
conceito de hegemonia e os elos entre política e cultura permitem
a Gramsci redimensionar a arte e a literatura no contexto da
história italiana, por meio de temas como a importância de uma
língua nacional unificadora, a ausência de vínculos consistentes
entre os intelectuais italianos e as classes populares, fruto de um
processo histórico no qual as forças conservadoras prevaleceram; o
caráter progressivo e regressivo do Humanismo e do Renascimento,
a necessidade de mergulhar na cultura das massas para nela
encontrar os elementos universais a serem expressos na linguagem
literária. A literatura, para ser popular, precisa ser expressão
49 Conforme Anglani (2007: 5), as “razões que fazem de Gramsci um ‘clássico’, ou seja, um autor que não se tornou ‘obsoleto’ com as mudanças dos tempos e das condições históricas” se apresentam
precisamente na valorização do ético-estético juntamente ao teórico-político.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
77
elaborada das aspirações e sentimentos mais profundos das classes
populares em determinado momento histórico e, ao mesmo
tempo, obra de arte. Esse elemento não era alcançado pela
literatura italiana de sua época, fato que se evidenciava no
distanciamento dos intelectuais em relação as classes populares,
tanto que estas conheciam e apreciavam romances de folhetim
franceses e desconheciam completamente os autores italianos.
“O erro do intelectual consiste em crer
que se possa saber sem compreender e, especialmente sem sentir e estar apaixonado (não só pelo saber em si, mas pelo objeto do saber), isto é, em acreditar que o intelectual possa ser tal (e não um puro pedante) quando distinto e separado do povo-nação, isto é, sem sentir as paixões elementares do povo, compreendendo-as e, assim, explicando-as e justificando-as em determinada situação histórica, vinculando-as dialeticamente às leis da história, a uma concepção de mundo superior, científica e coerentemente elaborada, o ‘saber’; não se faz política-história sem esta paixão, isto é, sem este elo sentimental entre intelectuais e povo-nação. Na ausência desse elo, as relações do intelectual com o povo-nação são ou se reduzem a relações de ordem puramente burocrática e formal” (GRAMSCI, 1977, Q. 9: 1505).
A ausência de elos e até um certo desprezo de alguns
intelectuais pela cultura popular, a falta de interesse em conhecer
e expressar as aspirações populares, constatada por Gramsci na
literatura italiana, evidencia o compromisso político desses
intelectuais com o movimento conservador que caracterizou a
revolução burguesa italiana; se houvessem esses elos, os
intelectuais poderiam ter contribuído para o caráter mais
progressivo da revolução, fato que poderia fortalecer a própria
burguesia da época.
O aspecto político apresenta-se no fato de a literatura
apresentar um conteúdo ideológico que tem uma grande
importância, visto que o leitor se identifica com o conteúdo e as
escolhas morais dos personagens; porém o critério político de
formação não se sobrepõe ao critério estético: o conteúdo da arte
não pode ser pensado abstratamente, separado da forma. As
questões estéticas como a relação entre conteúdo e forma, por
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
78
exemplo, possuem um alcance histórico e político. E é dessa
perspectiva que Gramsci as aborda: no contexto das relações de
hegemonia, interessado em produzir uma história dos intelectuais
italianos enquanto aqueles que contribuem para manter
determinadas relações de poder.
Tomamos como exemplo a leitura de Pirandello: embora
revelando-se um crítico severo da obra pirandelliana, Gramsci
acentua a importância desse autor para a cultura italiana, porque
seu trabalho apresenta um conteúdo cultural mais do que artístico
e, ao apresentar dessa forma seu teatro, Pirandello contribuiu para
renovar o senso comum, separando o “folclore” do “bom senso”.
“Em Pirandello temos um escritor ‘siciliano’ que consegue conceber
a vida camponesa em termos ‘dialetais’, folclóricos (...),, que ao
mesmo tempo é um escritor ‘italiano’ e um escritor ‘europeu’”.
Entretanto, a consciência de ser tudo isso transparece na sua
“debilidade artística, ao lado do seu grande significado ‘cultural’.
Essa ‘contradição’” expressou-se explicitamente em alguns de seus
trabalhos narrativos (GRAMSCI, 1977, Q. 9: 1671-2).
Nesse contexto, nas palavras de Stipcevic, a crítica
gramsciana ao teatro de Pirandello traz uma forte influência de
Croce e de sua posição em relação ao escritor de Mattia Pascal,
Sei personaggi in cerca d’autore e outros belos trabalhos; por
motivos ligados a seus próprios objetivos, Gramsci “isolou o
elemento cultural da criatividade de Pirandello, para poder
examinar a medida de sua influência sobre a transformação do
clima cultural da época” (STIPCEVIC, 1981: 114) Apesar desses
limites que orientam sua leitura, Stipcevic acentua que se deve
“reconhecer que Gramsci expôs, muito antes de tantos outros, uma
das funções principais sustentadas pela obra pirandelliana no
interior da literatura e da cultura italianas”, ou seja, ressaltou o
aspecto cultural da obra, na sua relação com o contexto
ideológico e político (STIPCEVIC, 1981: 115-6). No ponto de vista
gramsciano, a questão principal apresenta-se na capacidade de
uma literatura contribuir para a formação de uma nova
concepção de mundo, para renovar a ética e os costumes, ou
seja, na sua forca renovadora do social, para além de suas
qualidades artísticas.
Ainda no contexto da literatura italiana, algumas
considerações sobre as reflexões de Gramsci sobre Dante Alighieri,
que supõe a sua leitura do livro de Croce sobre a Divina Comedia e
também dos debates gerados por ocasião de sua publicação. As
polêmicas em torno da poesia dantesca se acentuam a partir de
1921, ano de comemoração dos seiscentos anos da morte do
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
79
autor, debate que teve como figuras centrais Benedetto Croce e
Luigi Russo sobre a interpretação da principal obra de Dante na
relação entre estrutura e poesia (STIPCEVIC, 1981: 150-1).
Gramsci insere-se nesse debate já a partir de 1918, quando
publica no Avanti! o artigo Il cieco Tiresia, comparando o texto de
Dante com alguns fenômenos populares a respeito de previsões do
final da Primeira guerra. Já nesse artigo a leitura gramsciana do
Canto X do Inferno visa a contrapor a chamada alta cultura
(burguesa e católica) com a cultura popular na perspectiva da
oposição entre teoria e prática na compreensão da
temporalidade (GRAMSCI, 1982: 833-4). O elo entre tradição
literária e cultura popular se esclarece na motivação do artigo, que
é a notícia publicada por um jornal da época sobre uma menina
do interior da Itália que, depois de prever o final da guerra em
1918, fica cega. O dom de prever faz parte do folclore e o
“vidente, embora veja o futuro, não vê o presente imediato porque
tomado de cegueira”. A descrença dos que ouvem as previsões
pode ligar-se ao fato de não se dever alterar a ordem natural das
coisas, como aconteceu com Cassandra, na qual ninguém
acredita; “chora e fala, mas encontra somente céticos, homens
indiferentes que não se preocupam, que não se contrapõe ao
destino. Cassandra vive um drama mais individual, é criação de
poesia culta, literariamente refinada”. Já Tirésias é fruto da
expressão popular e a piedade por ele é imediata. “Parece pouca
coisa: em vez disso, é uma enorme experiência que só a tradição
popular poderia conseguir tentar e concretizar. O décimo Canto
do Inferno dantesco, o sucesso que teve na crítica e na difusão,
dependem desta experiência” (GRAMSCI, 1977, Q. 4: 527)50 Em
1918 Gramsci escrevia:
“Farinata e Cavalcante são punidos por
haverem desejado muito ver no além, saindo fora da disciplina católica: são punidos com o desconhecimento do presente. Mas o drama desta punição escapa a crítica. Farinata é admirado como modelo pela sua atitude orgulhosa, pela sua distinção no horror infernal. Cavalcante é negligenciado, ainda que seja golpeado de morte por uma palavra: ele era, que o faz acreditar que seu filho está morto. Ele não conhece o presente: vê o futuro e nele o seu filho
50 Esse fragmento foi retomado por Gramsci de um comentário feito com um colega de curso
universitário a respeito da monografia, apresentado como nota no artigo Il cieco di Tirésias.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
80
está morto. Dúvida torturante, punição tremenda nesta dúvida, drama altíssimo que se consuma em poucas palavras. Mas drama difícil, complicado, que necessita de reflexão e raciocínio para ser compreendido; (...) Cavalcante não vê, mas não é cego, não tem uma prova corporal evidente de sua desventura. Dante, neste caso, é um peta culto. A tradição popular quer (...) uma poesia mais ingênua e imediata” (GRAMSCI, 1977, Q. 9: 1187)
Essas posições são retomadas, defendidas e ampliadas nos
Cadernos do Cárcere, colocando Gramsci em oposição a todos os
críticos de seu tempo, como se pode deduzir da carta do Prof.
Umberto Cosmo, comentada por Gramsci.51 Concentrando-se no
Canto X do Inferno, que se conhece, em geral, como o Drama de
Farinata, a leitura encaminha-se a salientar os elementos da história
de Cavalcante. Para Gramsci, a figura central desse Canto não era
Farinata, mas sim Cavalcante; dessa perspectiva, contrapõe-se
tanto a De Sanctis quanto a Croce e, na senda aberta por Foscolo,
consegue dar uma interpretação unitária do poema dantesco no
seu aspecto histórico e político. Esta questão é abordada a partir
da escolha desse Canto para análise, visto que nele se apresenta,
com toda a sua força, a paixão política de Dante. Gramsci
acentua que “o décimo canto é político assim como é política
toda a Divina Comedia, mas não é político por excelência”,
(GRAMSCI, 1977, Q. 4: 522) visto que a posição política de Dante
não pode ser determinada apenas por essa obra, mas por toda a
sua produção bibliográfica considerada nos limites da história e das
divisões políticas de seu tempo (GRAMSCI, 1977, Q. 4: 525)
A beleza do texto de Dante transparece no modo de sugerir
as condições do drama: Cavalcante, porque desejou ver o futuro,
representa a alma punida com a impossibilidade de conhecer o
presente. “Quando Dante se aproxima das duas sombras, estas
vêem Guido Cavalcanti, amigo de Dante, filho de Cavalcante e
genro de Farinata, vivo no passado e morto no futuro, mas não
sabem, no momento em que conversam, se ele está vivo ou morto”
(STIPCEVIC, 1981: 154).
Dante não representa os fatos, apenas oferece ao leitor os
elementos (angústia, abatimento, ternura paterna, postura
51 A carta, datada de 1932, diz: “Ao que parece, o amigo acertou no alvo; (...) realizaria uma ótima obra se o iluminasse (o drama de Cavalcante). Mas para iluminá-lo seria necessário entrar um pouco mais na
alma medieval” (GRAMSCI, 1977, Q. 9: 528).
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
81
corporal) para reconstruir o drama a partir da estrutura do poema.
Gramsci procura mostrar que o núcleo poético se encontra na
segunda parte, na reação de Cavalcante lançado na dúvida,
expressão da faculdade dos danados de conhecer o passado e
antever o futuro, estando cegos para o presente. Nas figuras dos
dois personagens, as diferenças evidenciadas entre alta cultura
(heroísmo e altivez de Farinata) e cultura popular (sofrimento e
abatimento de Cavalcante) valorizam tanto os elementos
estruturais quando ressaltam o aspecto político da poesia.
Conforme Stipcevic, Gramsci”abriu a possibilidade teórica de dar
uma interpretação desse gênero a toda a Comédia. Valorizando
um detalhe deste grandioso afresco poético, demonstrou como o
resgate da poesia pode acontecer num plano mais vasto”, além
de contestar frontalmente a interpretação de Croce (STIPCEVIC,
1981: 157-8).
Salientamos ainda a defesa de Goethe e de sua
importância cultural, pela sua genialidade, acrescida da
singularidade de sua figura. Gramsci lembra que se afirma que a
função dos grandes intelectuais é “ensinar como filósofos, aquilo
em que devemos crer, como poetas aquilo que devemos intuir
(sentir), como homens, aquilo que devemos fazer” (GRAMSCI, 1977,
Q. 9: 1187) Em seguida se pergunta quais os autores que poderiam
entrar nessa definição e completa:
“Não Dante, por sua distância no tempo
e pelo período que exprime, a passagem do Medieval para a Idade Moderna. Somente Goethe é sempre de uma certa atualidade, porque exprime de modo sereno e clássico (...) a confiança na atividade criadora do homem, em uma natureza vista não como inimiga e antagonista, mas como uma força a conhecer e a dominar, com o abandono sem o lamento e a desesperação das ‘fabulas antigas’” (GRAMSCI, 1977, Q. 9: 1187).
Goethe expressa a mentalidade própria do mundo
moderno, cuja confiança na capacidade e criatividade do
homem se traduz na figura de Fausto, aquele capaz de empenhar
sua vida para alcançar seus objetivos. Para Gramsci esses são os
elementos a serem assimilados pela cultura popular, a fim de
realizar os objetivos de uma nova sociedade. O conceito de
cultura, capaz de transformar a concepção de mundo de uma
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
82
época, pressupõe a compreensão de como o modo de pensar
atua nas relações de hegemonia e como, nesse contexto, as
classes trabalhadoras precisam, no processo de organização
política, reformular suas próprias concepções da realidade, a fim
de avançar na luta de classes.
A abordagem gramsciana da literatura insere-se no
contexto da produção de uma “nova literatura enquanto
expressão de uma renovação intelectual e moral” (GRAMSCI, 1977,
Q. 9: 1820) que, por sua vez, pode acontecer somente num
movimento consistente de organização política para construir uma
nova ordem social. A “premissa de uma nova literatura não pode
deixar de ser histórica, política, popular” lançando suas raízes na
cultura popular (GRAMSCI, 1977, Q. 9: 1821).
Para concluir, as considerações de Gramsci sobre a arte e a
literatura inserem-se no objetivo mais amplo da formação de uma
concepção de mundo coerente e unitária para as classes
trabalhadoras. As ambigüidades do movimento futurista, por
exemplo, expressas na contradição entre rebelião-recusa no
âmbito da produção artística e restauração nas posições políticas,
ligam-se não só às raízes pequeno-burguesas e às incertezas que
marcaram o início do século eclodindo na Primeira Guerra, mas
principalmente à história da intelectualidade italiana que, desde o
Duecento distanciou-se do povo e abandonou as posições mais
radicais por atitudes mais conservadoras, analisadas por Gramsci
no fenômeno do transformismo.
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STIPCEVIC, Niksa. Gramsci e i problemi letterari. Milano: Mursia, 1981
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
85
Gramsci e Relações Internacionais:
hegemonia, dependência e
imperialismo
Marcos Vinícius Pansardi (UTP)52
INTRODUÇÃO
A influência do marxismo em todas as áreas das ciências
humanas foi imenso ao longo do século XX. Da economia à historia,
da sociologia à teoria literária, o marxismo não pode ser ignorado,
mesmo por aqueles que se opunham a ele.
No campo teórico das relações internacionais isso, no
entanto, não ocorreu. Durante boa parte do século XX o marxismo
e as relações internacionais permaneceram de costas um para o
outro53. O marxismo não teve nenhuma influência nas correntes
predominantes das relações internacionais até o final dos anos 70.
Para Halliday (1999), isso pode ser explicado por dois fatores.
Primeiro o fato de que as relações internacionais se desenvolveram
inicialmente nas universidades britânicas e norte-americanas, locais
onde o marxismo teve pouca influência. Segundo, pelo papel da
teoria do imperialismo, que nunca teve boa recepção nas relações
internacionais, por que era vista como uma teoria que pouco tinha
a dizer sobre a política internacional, centrando-se nos aspectos
econômicos da arena internacional.
52 Doutor em Ciências Sociais – UNICAMP. Prof. do PPGED – Mestrado em Educação da Universidade Tuiuti do Paraná. Email: [email protected]
53 Hans Morgenthau, considerado o “fundador” dos estudos científicos contemporâneos das relações
internacionais, usa apenas duas páginas, no seu livro clássico - Política entre as nações. A luta pelo poder e pela paz (MORGENTHAU, 2003) -, para analisar o marxismo e o imperialismo, afirmando
que todas as suas conclusões são errôneas. Não há nenhuma citação ou referência a Marx.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
86
Por outro lado, o marxismo também não estabeleceu
diálogo com aquelas teorias. Não que o marxismo não se
interessasse pelas questões internacionais, ao contrário, o maior
exemplo seriam a própria teoria do imperialismo, que foi objeto de
amplo debate nas primeiras décadas do século XX.
Assim poderíamos afirmar que a relação entre o marxismo e
as relações internacionais foi historicamente um diálogo de surdos.
Sabemos que o próprio Marx nunca chegou a desenvolver estudos
específicos e aprofundados sobre a questão internacional, apesar
de ter acompanhado por anos a política internacional como
correspondente de um jornal norte-americano. Durante 11 anos
Marx colaborou, como analista internacional, para o influente jornal
norte-americano New York Daily Tribune. É verdade também que
Marx e Engels revelaram grande interesse pelas questões
internacionais, particularmente sobre o fenômeno do
colonialismo54.
Suas análises sobre o tema, contudo, além de pouco
sistematizadas e fortemente conjunturais, muitas vezes revelavam
doses de eurocentrismo e desconhecimento sobre a complexa
realidade para além das fronteiras européias. Assim, se explica
porque estes autores não chegaram a desenvolver uma teoria
coerente sobre as relações internacionais55.
Portanto, foi Lênin a grande referência para o estudo das
relações internacionais no campo do marxismo56, sua utilização do
conceito de “imperialismo” passou a ser a grande, senão a única
referência teórica de peso no marxismo sobre a questão
internacional. No pós-guerra, no entanto, as teorias do imperialismo
perderam força e ao longo dos anos 70 o tema praticamente tinha
desaparecido das análises dos teóricos que reivindicavam o
marxismo.
Por outro lado, no campo acadêmico dos estudos sobre as
relações internacionais, o marxismo foi amplamente marginalizado.
Sendo o campo teórico das relações internacionais essencialmente
anglo-americano (mais americano do que britânico) e, sendo o
54 Textos reunidos na coletânea, em dois volumes, sob o título: Sobre o colonialismo (MARX; ENGELS, 1989).
55 Veja-se, por exemplo: M. FERREIRA (2002), Europa, Afeganistão e África do Norte: uma
introdução às análises de Marx e Engels sobre os conflitos internacionais.
56 Não estamos aqui negando a contribuição fundamental de outros autores marxistas sobre o
imperialismo. Rosa de Luxemburgo, Bukharin, Kautsky, tiveram contribuições importantes, mas
historicamente seus estudos tiveram menos impacto sobre os futuros estudos sobre as relações internacionais do que o de Lênin, que continua até hoje ser a grande referência quando se aborda a
teoria do imperialismo.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
87
marxismo uma teoria reconhecidamente marginal nas
universidades e centros de pesquisa norte-americanos, não seria de
estranhar que assim o fosse. Quando não ignorado, o marxismo era
educadamente descartado como uma teoria simplista e mecânica
(COX, 1981).
É assim que um dos principais teóricos contemporâneos das
relações internacionais, considerado o “pai” da corrente
modernizante do conservadorismo neste campo de estudos,
fundador do chamado “neorealista” (também chamado de
realismo estrutural), Kenneth Waltz, ao buscar classificar os vários
tipos de teorias das relações internacionais, vai dividi-las em dois
grandes grupos: as teorias “reducionistas” e as teorias “sistêmicas”.
Sendo a teoria neorealista sistêmica, o que significa compreender
que o fenômeno internacional é fruto de causas essencialmente
estruturais, externas aos Estados, e não fruto de suas características
internas (nacionais) (WALTZ, 2002).
Consequentemente, as teorias reducionistas seriam aquelas
em que as análises sobre o fenômeno internacional, ou da ordem
internacional, seriam derivadas de alguma característica interna
dos Estados nacionais. Para este autor, o exemplo mais acabado
de reducionismo seria a teoria leninista do imperialismo, pois esta,
ao determinar as características do sistema através de um
determinado estágio de evolução das economias nacionais
(capitalismo monopolista) estaria eclipsando as determinações
sistêmicas que moldariam o sistema internacional. Para Waltz, a
teoria leninista pecava por ser incapaz de compreender as causas
sistêmicas (estruturais) que moldavam a ordem internacional.
GRAMSCI E A QUESTÃO INTERNACIONAL
Nosso objeto de estudo aqui não é a teoria leninista do
imperialismo, e por mais que pudéssemos questionar a leitura de
Waltz sobre ela, vamos partir de suas críticas para analisar as
contribuições de Gramsci ao estudo das relações internacionais.
Para isso nos propomos a fazer uma análise das leituras de Gramsci
desenvolvidas nos Cadernos do Cárcere57 sobre a questão
internacional.
57 Utilizaremos neste estudo a versão brasileira do Cadernos, compostos pelos livros: Maquiavel, a
política e o Estado Moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984; Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1988; Concepção dialética da história.
Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1986;Literatura e vidanacional. Rio de Janeiro, Civilização
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
88
Na crítica de Waltz a Lênin colocava-se a questão central
de explicar as causas da guerra, o reducionismo leninista estaria
em compreender este fenômeno a partir de uma forma especifica
de Estado (monopolista). Quando buscamos a explicação de
Gramsci sobre a origem das guerras observamos que a sua leitura
em nada se diferencia da explicação dada por Lênin, pois para
ele, as guerras entre os estados se originam da luta interna entre os
grupos em cada país.
O grupo dirigente tenderá a manter o equilíbrio melhor não
só para sua permanência, mas para sua permanência em
condições determinadas de prosperidade e de incremento destas
condições. Mas, como a área social de cada país é limitada, será
levado a estendê-la às zonas colônias e de influencia, entrando em
conflito com outros grupos dirigentes que aspiram ao mesmo fim,
ou em cujo prejuízo a sua expansão deveria necessariamente se
verificar, já que também o globo terrestre é limitado. Cada grupo
dirigente tende em abstrato a ampliar a base da sociedade
trabalhadora da qual extrai a mais-valia, mas a tendência de
abstrata torna-se concreta e imediata quando a extração da mais-
valia na sua base histórica ficou mais difícil ou perigosa, além de
certos limites que, todavia, são insuficientes (GRAMSCI, 1984: 194).
Segundo Buci-Glucksmann (1980: 183) foi a partir de seus
escritos de 1919 que Gramsci incorporou em suas análises a
questão leninista do imperialismo. Estas leituras propiciaram a ele a
compreensão da nova conformação do Estado e de seus
aparelhos a partir das transformações estruturais do capitalismo e
da expansão da política do imperialismo (BUCI-GLUCKSMANN,
1980: 192).
Partindo do princípio de que as leituras gramscianas sobre
as relações internacionais se fundamentam nas concepções
leninistas não seria difícil concluir, como afirma categoricamente
Carnevalli (2005: 42), que a resposta à questão colocada seria
positiva, pois, ao enfatizar a proeminência do elemento nacional
sobre o internacional, Gramsci estaria subordinando o segundo
elemento ao primeiro. Isso estaria claramente caracterizado na
famosa e sempre citada observação dos Cadernos, na qual ele se
perguntava se na abordagem teórica da política as relações
internacionais determinam ou são determinadas pelas estruturas
sociais (nacionais):
Brasileira, 1986; a edição espanhola do Pasado y presente. Barcelona: Granica, 1977; além do livro A
questão meridional. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1987.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
89
As relações internacionais precedem ou seguem
(logicamente) as relações sociais fundamentais? Seguem, é
indubitável. Toda inovação orgânica na estrutura modifica
organicamente as relações absolutas e relativas no campo
internacional, através das suas expressões técnico-militares.
Inclusive a posição geográfica de um Estado não precede, mas
segue (logicamente) as inovações estruturais, mesmo reagindo
sobre elas numa certa medida (exatamente na medida em que as
superestruturas reagem sobre a estrutura, a política sobre a
economia, etc.). Além do mais, as relações internacionais reagem
positiva e ativamente sobre as relações políticas (de hegemonia
dos partidos) (GRAMSCI, 1984: 44).
É possível ainda, observar outros momentos em que Gramsci
reforça este argumento, procurando reconhecer que esta sua
visão estaria alinhada com o pensamento já desenvolvido
anteriormente por Marx e por Lênin. Assim “segundo a filosofia da
práxis (na sua manifestação política), seja na formulação do seu
fundador, mas especificamente na definição do seu mais recente
grande teórico, a situação internacional deve ser considerada no
seu aspecto nacional” (GRAMSCI, 1984: 129).
No entanto, é possível encontrar nos escritos de Gramsci
vários trechos onde ele inverte a argumentação, ou seja,
mostrando que a questão internacional tem primazia sobre o
elemento nacional. Em uma passagem dos Cadernos ele afirma
que “as relações internacionais estabelecem um equilíbrio de
forças sobre o qual cada elemento estatal pode influir muito
debilmente” (GRAMSCI, 1984: 93); em outro trecho diz que “só se
pode julgar a atividade econômica de um país em relação ao
mercado internacional, ela ‘existe’ e é avaliada quando inserida
numa unidade internacional” (GRAMSCI, 1984: 217); também
afirma que “não se compreende que o mundo é uma unidade, se
se quer ou não, e que todos os países, que atravessam certas
condições de estrutura, passarão também por certas ‘crises’”
(GRAMSCI, 1984: 215). Por fim, em mais outra citação, diria que
“quando em um Estado a moeda varia (inflação ou deflação),
sucede uma nova estratificação de classes em um mesmo país,
mas quando varia uma moeda internacional, sucede uma nova
hierarquia entre os Estados (...)” (GRAMSCI, 1977: 116).
Assim, é possível então, observar que há uma leitura
sistêmica ou estrutural, mesmo que não seja certamente aquela
defendida por Waltz.
Também é verdade que, uma leitura atenta dos mesmos
Cadernos do Cárcere nos mostra que Gramsci usou raras vezes a
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
90
palavra “imperialismo” e quando o fez foi para caracterizar a
época que vivia: “na época atual do imperialismo”, no sentido
clássico do seu uso por Lênin, ou seja, no período da ascensão do
capital monopolístico, do capitalismo monopolista de Estado.
Acredita-se que Gramsci não se interessou particularmente
sobre as questões da política internacional e foi mais um analista
preocupado com a causa italiana; com a incapacidade da Itália
de concluir sua revolução burguesa, da questão do surgimento do
fascismo, dos caminhos da construção de uma revolução
comunista autóctone. Certamente ele foi um autor profundamente
enraizado nas questões nacionais, mas seria um erro grave pensar
que ele não tinha interesse nas questões internacionais ou que
estas eram secundárias em seu pensamento.
Para Jessop, ao contrário, ele foi fortemente interessado em
relações internacionais e foi um estudioso da “geopolítica e da
demopolítica (que passaria a ser chamada bio-política) para
compreender melhor as implicações políticas do equilíbrio de
forças internacionais” (JESSOP, 2005, 434). Para ele a leitura
gramsciana rompe com uma visão estado-cêntrica ou nacionalista
dominante nas relações internacionais58 ao realizar uma
interpretação profunda e complexa do fenômeno internacional.
Para o autor o pensamento de Gramsci combina análises em
diversos níveis (escalas) indo da análise nacional a internacional,
das classes ao estudo das instituições internacionais, das relações
entre o Estado, as organizações internacionais e as ordens
mundiais. Em realidade ele rompeu com a dicotomia tradicional do
realismo entre o mundo interno e o externo da política.
Ao explorar a dimensão internacional das relações
econômicas, políticas e socioculturais, Gramsci não assumiu que as
unidades básicas das relações internacional eram as economias
nacionais, os Estados nacionais, ou as sociedades civis constituídas
a nível nacional. Em vez disso, ele explorou as mútuas implicações
da organização política e econômica, os seus pressupostos sociais
e culturais, e as conseqüências da dissociação das escalas de vida
dominante econômica, política, intelectual e moral. Isso fez-lhe
sensível às complexidades das relações interescalares e ele nunca
assumiu que eles foram ordenados em simples aninhados
hierárquicos (JESSOP, 2005, 433).
58 Para Jessop (2005, 434), apesar de uma defesa de uma concepção sistêmica no estudo da política
internacional, Waltz seria o maior exemplo de uma leitura “nacionalista”, pois coloca o Estado nacional como o único ator relevante das relações internacionais, sem esquecer que sua leitura tem um
viés claramente norte-americano.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
91
Gramsci, procura nos mostrar que a política internacional
tem sua origem na arena nacional, no conflito de classes, na
conformação das forças sociais nacionais, na constituição e na
capacidade de expansão político-econômico-cultural do Estado
nacional para além de suas fronteiras, mas observa que estes
processos não podem ser compreendidos sem a referencia aos
influxos internacionais na ordem nacional. Para ele a própria
construção da ordem mundial moderna esta associada à
necessidade das classes dominantes nacionais de assegurar sua
expansão internacional, ao mesmo tempo em que preservam o
controle político nacional59.
Para este autor, a simbiose nacional-internacional
caracteriza os processos de dominância e não podem ser isolados
ou hierarquizados para além de processos didáticos ou
metodológicos iniciais. É nesse sentido que precisamos reavaliar a
“primazia do nacional” para que não nos limitemos a uma visão
“reducionista”. Como o próprio Gramsci nos alertaria é “necessário
ter em conta o fato de que as relações internacionais entrelaçam-
se com as relações internas dos Estados-nação, criando novas e
únicas combinações historicamente concretas” (GRAMSCI, 1984:
50), ou então, que “é certo que o desenvolvimento verifica-se no
sentido do internacionalismo, mas o ponto de partida é ‘nacional’,
e é deste ponto de partida que se devem adotar as diretivas. Mas
a perspectiva é internacional e não pode deixar de sê-lo”
(GRAMSCI, 1984: 130).
Sua concepção dialética das relações nacional-
internacional não se resume ao espaço estatal, como bem
sabemos o papel da sociedade civil, assim como dos intelectuais, é
fundamental nos processos de construção de uma hegemonia
política. Também nesse caso o fenômeno não pode ser limitado às
fronteiras nacionais:
A religião, por exemplo, sempre foi uma fonte dessas
combinações ideológico-políticas nacionais e internacionais; e
com a religião, as outras formações internacionais: a maçonaria, o
Rotary Clube, os judeus, a diplomacia de carreira, que sugerem
expedientes políticos de origem histórica diferente e levam-nas a
triunfar em determinados países, funcionando como partido
político internacional que atua em cada nação com todas as suas
forças internacionais concentradas. Uma religião, a maçonaria, os
59 Assim: “Toda a história, a partir de 1815, mostra o esforço das classes tradicionais para impedir a formação de uma vontade coletiva deste gênero, para manter o poder ‘econômico-corporativo’ num
sistema internacional de equilíbrio passivo” (GRAMSCI, 1984: 8).
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
92
judeus, Rotary, etc., podem ser incluídos na categoria social dos
“intelectuais”, cuja função, em escala internacional, é a de mediar
os extremos, “socializar” as inovações técnicas que permitem o
funcionamento de toda atividade de direção, de excogitar
compromissos e saídas entre soluções extremas (GRAMSCI, 1984:
51).
Sendo assim a teoria desenvolvida por Gramsci não é nem
reducionista e nem sistêmica, sendo esta tipologia uma visão
positivista de ciência bem ao gosto das análises de Waltz, ela é
certamente dialética. O próprio Gramsci faz uma analogia das
relações entre o nacional-internacional da mesma forma que
observaríamos as relações entre o estrutural e o superestrutural,
entre o econômico e o político. Não são relações mecânicas, mas
relações dialéticas de determinação.
Na história real estes momentos se confundem
reciprocamente, por assim dizer horizontal e verticalmente,
segundo as atividades econômicas sociais (horizontais) e segundo
os territórios (verticais), combinando-se e dividindo-se
alternadamente. Cada uma destas combinações pode ser
representada por uma expressão orgânica própria, econômica e
política. Também é necessário levar em conta que, com estas
relações internas de um Estado-nação, entrelaçam-se as relações
internacionais, criando novas combinações originais e
historicamente concretas (GRAMSCI, 1984: 50).
Gramsci coloca todas as questões em torno das quais se
acende a luta política não num plano corporativo, mas num plano
“universal”, pensando assim, a hegemonia de um grupo social
fundamental sobre uma série de grupos subordinados. O Estado,
para ele, é concebido como organismo próprio de um grupo,
destinado a criar as condições favoráveis à expansão máxima
deste grupo. O que caracteriza o processo de construção desta
expansão é exatamente a capacidade destas classes
(dominantes) em expandirem seu domínio para além das fronteiras
nacionais. Mas este desenvolvimento e esta expansão são
concebidos e apresentados como a força motriz de uma expansão
universal, de um desenvolvimento de todas as energias “nacionais”
(GRAMSCI, 1984: 50). Uma ideologia nascida num país desenvolvido
difunde-se em países menos desenvolvidos, incidindo no jogo local
de combinações. Estes países periféricos, exatamente por terem
sido incapazes de realizar sua própria revolução burguesa acabam
incorporando elementos ideológicos dos países dominantes, é o
que Gramsci chamou de “revolução passiva”.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
93
O modo através do qual se exprime o ser grande potência é
dado pela possibilidade de imprimir à atividade estatal uma
direção autônoma, que influa e repercuta sobre outros Estados: a
grande potência é potência hegemônica, chefe e guia de um
sistema de alianças e de acordos com maior ou menor extensão. A
força militar sintetiza o valor da extensão territorial e do potencial
econômico (GRAMSCI, 1984: 191). Pode-se observar que, na
dialética nacional-internacional, o fato de que os elementos
internos predominarem sobre os fatores externos ou ao contrário,
também se relaciona com a diferença entre uma grande potência
e os países periféricos, pois, os primeiros têm uma maior
capacidade de ação independente e os segundos se colocam em
relações de dependência. O exemplo sempre invocado é o da
Itália entre 1500 e 1700, que permaneceu incapaz de construir seu
estado nacional, limitada que foi pelo jogo internacional de
equilíbrio passivo entre as grandes potências (GRAMSCI, 1984: 17).
A centralidade esta na luta de classes e no papel de cada
classe na estrutura sócio-econômica nacional. As relações entre
centro e periferia e o papel de cada Estado-nação no sistema
internacional não é apenas fruto desta própria estrutura. As
relações de classes internas a cada Estado e a capacidade
dirigente das classes dominantes exercem aí um papel
fundamental.
Uma classe dominante nacional tem que exercer
plenamente a hegemonia sobre o conjunto das classes subalternas,
a incapacidade de hegemonia interna afeta a sua capacidade
de expansão externa. As grandes potências se caracterizam
exatamente pelo grau de hegemonia das classes dominantes e sua
capacidade de criar um consenso interno. Nos países periféricos
suas classes dominantes foram incapazes historicamente de
constituírem sua hegemonia a partir de um projeto “universalizante”
que agregasse todas as classes nacionais. Foram incapazes de
transformar seu projeto individual de poder em um projeto nacional
de desenvolvimento. Assim é que:
Deve-se considerar também a noção de grande potência o
elemento “tranqüilidade interna”, isto é, o grau e a intensidade da
função hegemônica do grupo social dirigente: este elemento deve
ser situado na avaliação da potência de cada estado, mas
adquire maior importância na consideração das grandes potências
(...) Por isso pode-se dizer que quanto mais forte é o aparelho
policial tanto mais fraco é o exército, e quanto mais fraca (isto é,
relativamente inútil) a polícia, tanto mais forte é o exército (diante
da perspectiva de uma luta internacional) (GRAMSCI, 1984: 193).
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
94
As classes dominantes não exercem a hegemonia apenas
para si, mas para a “grandeza da nação”, assim como esta existe
também para a grandeza de suas classes dominantes. Seu projeto
deve ser confundido com o projeto da nação, sua legitimidade
está nesta capacidade de ocultar seus interesses de classe.
Nos países periféricos as classes dirigentes aliam seus
destinos, não há um projeto de desenvolvimento autóctone, mas a
um projeto estrangeiro, a um projeto de dependência. São sócios
menores das classes dominantes internacionais.
Portanto os destinos de um país, sua inserção na divisão
internacional do trabalho, sua situação no sistema internacional,
depende essencialmente dos projetos, das escolhas, das
estratégias de hegemonia construídas pelas suas classes
dominantes. Seu projeto deve incluir as classes subalternas, elas
devem vir a reboque, devem ser aliadas, devem ser a base de
sustentação desse projeto. O “nacionalismo” deve ser também um
projeto “para” as classes populares, mas não um projeto “das”
classes populares. No sucesso de uma ação reformista, das
estratégias de conciliação de classe, esta a chave para um projeto
de hegemonia interna e também externa. Na “qualidade”
dirigente das classes dominantes deve-se encontrar as explicações
fundamentais para o sucesso ou fracasso da construção nacional e
internacional de um país.
A riqueza nacional é condicionada pela divisão
internacional do trabalho e por ter sabido escolher, entre as
possibilidades que esta divisão oferece, a mais racional e rentável
para cada país. Trata-se, assim, essencialmente, de “capacidade
dirigente” da classe econômica dominante, do seu espírito de
iniciativa e de organização. Se não existem estas qualidades, e a
administração econômica baseia-se fundamentalmente na
exploração brutal das classes trabalhadoras e produtoras, nenhum
acordo internacional pode sanar a situação. Na História moderna
não há exemplo de colônias de “povoamento”; elas jamais
existiram (GRAMSCI, 1984: 233).
Gramsci mostra que os destinos de uma nação estão tão
dependentes da história de suas classes dominantes como a
história dos estados periféricos esta entrelaçada com a história dos
estados centrais (GRAMSCI, 1977: 117).
Gramsci antecipa em várias décadas o debate que
movimentou as sociedades nos anos 60. A questão italiana, sua
incapacidade de construir um projeto nacional, autônomo, de
desenvolvimento, aproxima profundamente a abordagem
gramsciana das interpretações dependentistas latino-americanas.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
95
Os argumentos levantados acima mostram uma aproximação
teórica entre as duas abordagens em vários aspectos cruciais. Seria
Gramsci um teórico da dependência “avant la lettre”? Ou
poderíamos especular se Gramsci chegou a ser um autor de
referência para os autores dependentistas? O conceito de
Revolução Passiva envolve elementos de dependência econômica
e política que poderia certamente ter saído dos escritos de Rui
Mauro Marini, Theotônio dos Santos, etc. Não é o objetivo deste
trabalho fazer um estudo sobre a relação entre Gramsci e a “teoria
da dependência”, ficando este tema para ser desenvolvido em
futuros trabalhos.
HEGEMONIA E IMPERIALISMO NA LEITURA NEOGRAMSCIANA.
A aplicação das teorias de Gramsci às relações
internacionais foi centrado no conceito de hegemonia, é a partir
dele que a chamada “escola italiana”, que paradoxalmente tem
em dois autores canadenses, Robert W. Cox e Stephen Gill, seus
maiores expoentes, desenvolveu uma rica e original contribuição a
este campo de estudos.
Para Arrighi, autor em geral identificado com esta escola, a
definição do conceito em uma perspectiva de relações
internacionais, assim seria definido:
“O conceito de “hegemonia mundial”, adotado aqui, se
refere ao poder que um Estado tem de exercer funções
governamentais sobre um sistema de Estados soberanos. Em
principio, esse poder não envolve só a administração usual desse
sistema tal como foi instruída numa determinada época. No
entanto, como veremos, o governo de um sistema de Estado
soberanos sempre envolve, na prática, algum tipo de ação
transformadora que altera o modo de operação do sistema de
maneira fundamental.Esse poder é algo mais do que “dominação”
pura e simples. É o poder associado ao domínio ampliado pelo
exercício da “liderança intelectual e moral”. Como enfatizado por
Gramsci a respeito da hegemonia no plano nacional (...) a
hegemonia é o poder adicional que resulta da capacidade de um
grupo dominante apresentar, num plano universal todas as
questões em torno das quais gira o conflito (ARRIGHI, 2007: 227-
228)”.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
96
Esta escola centrou sua análise no conceito de hegemonia,
mas seria este um conceito passível de ser traduzido para o estudo
das relações internacionais? Esta pergunta foi feita pelo próprio
Gramsci, ao refletir sobre as condições políticas de sua época:
Será ainda possível, no mundo moderno, a hegemonia
cultural de uma nação sobre as outras? Ou então o mundo já está
de tal modo unificado na sua estrutura econômico social que um
país, mesmo podendo ter “cronologicamente” a iniciativa de uma
inovação, não pode, porém, conservar o “monopólio político” e,
portanto, servir-se dele como base da hegemonia? Logo, que
significado pode ter hoje o nacionalismo? Não será ele possível
apenas como “imperialismo” econômico-financeiro, e não mais
como “primado” civil ou hegemonia político-intelectual?
(GRAMSCI, 1984: 192).
Parece claro que Gramsci coloca sérias dúvidas na
possibilidade de que algum país construa um projeto de
hegemonia mundial. No período em que ele escreve (entre as duas
guerras mundiais) as relações políticas internacionais seriam
caracterizadas pelo imperialismo e não pela hegemonia. Pela
coerção e não pelo consenso.
Esta citação transcrita acima apontaria que para Gramsci
há uma diferenciação entre hegemonia (primado civil, momento
político-ideológico) e imperialismo (momento econômico-
financeiro). Assim como o período anterior, a Primeira Guerra
Mundial, que Lênin analisou, o período entre guerras, período dos
escritos de Gramsci, se caracterizaria pelo primado da coerção, da
dominação, do imperialismo.
Assim também Cox se pergunta: Seria o conceito de
hegemonia em Gramsci aplicável no nível internacional ou
mundial? (COX, 1981).
A hegemonia para ele deve ser compreendida no contexto
da criação de ordens hegemônicas. Estas construções não são
naturais, ao contrário, são sempre o resultado final de um projeto
de expansão de um Estado hegemônico. Assim estas ordens
podem se caracterizar por terem o caráter hegemônico ou não
hegemônico, ou seja, de serem dominantes.
Para Cox (COX, 2007) a partir de 1845, existiram quatro
períodos distintos: 1845-1875, 1875-1945, 1945-1965 e de 1965 até os
dias atuais.
O primeiro período se caracterizou pela constituição de
uma ordem hegemônica, foi a era da pax britannica, do
predomínio da Grã Bretanha. Seu inconteste domínio econômico e
militar se traduziu na construção de princípios e instituições que
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97
universalizaram seu domínio: a teoria das vantagens comparativas,
o comércio livre e o padrão de ouro.
No segundo período, ao contrário, se caracterizou pela
desconstrução da ordem anterior, foi um período não-
hegemônico. O equilíbrio de poder se rompe e um período de
instabilidade se abre com vários países lutando pela supremacia.
No terceiro período, estruturou-se a partir do predomínio dos
Estados Unidos, que construíram uma ordem hegemônica a partir
da construção de um amplo leque de instituições econômicas e
políticas internacionais (FMI, Banco Mundial, OMC, ONU etc.).
E finalmente, no quarto período, abre-se um período em
que o grande debate entre os especialistas era sobre a crise da
hegemonia norte-americana60.
Assim, para Cox, fica claro que o período em que escreveu
Gramsci era realmente um período não-hegemônico, ou seja,
podemos reconhecer com ele a impossibilidade de usar o conceito
para aqueles anos, mas a questão seria apenas conjuntural e não
teórica.
Na leitura de Cox, a distinção entre hegemonia e
dominação nos remete à questão do imperialismo. Qual a relação
entre imperialismo e hegemonia? São os conceitos similares,
homônimos ou contrastantes?
Para Cox, o imperialismo é uma dimensão das ordens
mundiais explicitando o caráter vertical das relações de poder
para além das relações horizontais de rivalidade e conflituosidade
inter-imperialistas, as relações de dominação político-econômicos
são relações imperialistas. Isso significa que as relações
hegemônicas não se figuram como relações de subordinação
imperialistas, pois estas se caracterizariam como momentos de
força militares, de guerra de movimento e não de posição? (COX,
1981).
Em outro momento, no entanto Cox se refere aos três
primeiros períodos citados acima com outra terminologia o período
de 1845-1875 seria caracterizado pelo “imperialismo liberal”, o
segundo de 1945-1965 de “novo imperialismo”, e o período
posterior a 1965 de “imperialismo neoliberal”. Mas mesmo ele
reconhece que usar o termo imperial ou imperialismo obscurece as
diferenças entre as ordens hegemônicas e não-hegemônicas
(COX, 2007).
60 Segundo Arrighi o possível declínio do poder mundial dos Estados Unidos nas décadas de 1970 e
1980 levou a uma “onda de estudos sobre a ascensão e queda das ‘hegemonias’ (Hopkins e Wallerstein, 1979; Bousquet, 1979; 1980; Wallerstein, 1984b), ‘potências mundiais’ (Modelski, 1978;
1981, 1987), ‘núcleos’ (Gilpin, 1975) e ‘grandes potências’ (Kennedy 1987-1988)” (Op. Cit., P.227).
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Na releitura da obra de Gramsci, Cox propõe uma outra
abordagem das relações entre imperialismo e hegemonia das
relações internacionais. Nas suas análises não se observa nenhum
questionamento do uso alternado do conceito de imperialismo e
de hegemonia. Assim sendo, minha leitura aponta que, para este
autor, hegemonia caracteriza um tipo de processo político que
coloca a primazia dos momentos de consenso sobre a coerção,
quando o contrário acontece poderíamos chamar este processo
de dominação. O imperialismo abrangeria ambos os conceitos, em
ordens hegemônicas ou não-hegemônicas, isto é dominantes. As
ordens mundiais, por seu turno caracterizariam as construções
políticas geradas pela expansão de uma grande potência.
CONCLUSÃO
Partindo das análises de Cox, poderíamos concluir que em
Gramsci imperialismo e hegemonia são dois momentos, não
excludentes, nem contraditórios, mas dialéticos dos processos de
formação dos sistemas internacionais. Tanto ele como Lênin
viveram e analisaram a política internacional em sua conjuntura
história específica: a era do capitalismo monopolista. Contudo,
Gramsci nos fornece ferramentas para compreender os sistemas
internacionais para além do período histórico do imperialismo e da
ascensão do fascismo.
Assim, poderia ser explicado o fato de Gramsci usar com
pouca freqüência o conceito de imperialismo: ele não abandonou
este conceito, ao contrário, este estaria sempre presente em suas
obras, a partir da sua preocupação com os processos de
construção de projetos hegemônicos mundiais.
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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
101
A evolução da teoria da crise em
Marx
Francisco Paulo Cipolla (UFPR)61
INTRODUÇÃO
O desenvolvimento da teoria da crise nos escritos de Marx
inicia com suas observações gerais quanto ao seu caráter cíclico;
passa pela análise de eventos concretos na Inglaterra e no
continente europeu; segue o curso necessário da crítica à
economia política clássica, até culminar em seu estado teórico
mais maduro n’O Capital. Suas primeiras observações sobre a crise
se dão no contexto da concepção materialista da história e,
portanto, como um elemento necessário da dissolução do
capitalismo. No Manifesto Comunista e no Trabalho Assalariado e
Capital a crise se apresenta na forma de esboço genérico quanto
ao seu caráter cíclico, reaparece nas suas reflexões sobre a
revolução de 48 na forma de uma reafirmação das visões já
sedimentadas na fase de desenvolvimento do materialismo
histórico; ganha material factual e empírico durante o período de
atividade jornalística junto ao New York Daily Tribune. À partir do
final da década de 50, principalmente sob o estimulo da crise de
57, começa a se estruturar uma concepção mais explícita da crise
nos trabalhos de preparação d’O Capital, os Grundrisse. A
Contribuição à Critica da Economia Política apresenta uma
discussão detalhada sobre o dinheiro e a crise no sistema
monetário. As Teorias da Mais Valia retomam a crítica aos clássicos
e procuram explicitar as condições nas quais a crise geral de
superprodução é possível. Finalmente n’O Capital Marx reúne todos
os elementos até ali estudados e apresenta com base nos
61Francisco Paulo Cipolla é professor titular do Departamento de Economia da Universidade Federal
do Paraná (UFPR).
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
102
resultados sobre o sistema de crédito uma teoria da crise que
retoma a concepção cíclica apresentada 20 anos antes.
CRISE NO CONTEXTO DA TEORIA DA HISTÓRIA DE MARX
Grande parte do esforço teórico de Marx, após a ruptura
com Feuerbach em 1845, se dirige ao desenvolvimento da
concepção materialista da história cujos primeiros elementos
aparecem com a publicação d’A Sagrada Família (1844-45). Não
são as idéias que movem a história, mas as suas contradições. Não
é o que este ou aquele proletário pense que seja sua missão, mas o
que a classe como um todo será compelida a fazer devido à sua
situação material. A divisão de classe fundada na propriedade
privada forçará o proletariado a transcendê-la e a superar a
própria alienação assim como a alienação da classe proprietária
(McLellan 1971, p. 33). Curiosamente, A Ideologia Alemã (1846), a
mais completa apresentação do materialismo histórico, apresenta
poucas referências ao tema da crise. Mandel (1971) observa que
nessa obra Marx e Engels “analisam brevemente as razões pelas
quais crises monetárias podem ocorrer” e que “a crise de
superprodução não é causada pela superprodução física, mas por
distúrbios no valor de troca” (p.69).
Com a Pobreza da Filosofia (1847) vem a público pela
primeira vez a concepção materialista da história (McLellan 1971,
p. 37) uma vez que A Ideologia Alemã escrita em 1846 não pode
ser publicada e foi abandonada à “crítica roedora dos ratos” (Marx
1976, p.22). Na Pobreza da Filosofia Marx critica a idéia de
Proudhon de que a substituição do dinheiro pelo tempo de
trabalho como medida de valor garantiria a proporcionalidade
entre os vários produtos da sociedade. Marx argumenta que a
proporcionalidade entre oferta e demanda foi superada pelo
advento da produção em larga escala baseada na indústria
moderna e que o restabelecimento da proporcionalidade é uma
visão reacionária, pois implica a adoção de forças produtivas
pretéritas menos desenvolvidas, no interior das quais a demanda
determinava a oferta. Com a grande indústria “a produção é
inevitavelmente forçada a passar pelas fases sucessivas de
prosperidade, depressão, crise, estagnação, renovação da
prosperidade, e assim por diante” (CW 1976, v.6, p.137)62. Com a
62 CW se refere aos Collected Works de Marx e Engels cuja publicação pela International Publishers iniciou-se no ano de 1975 e em 2004 ainda se encontrava no volume 50.
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103
mecanização e o crescimento contínuo da escala industrial a
“produção precede o consumo, a oferta força a demanda” (idem,
p.137).
No Manifesto do Partido Comunista (1848) Marx e Engels
argumentam que assim como na fase de ascensão do capitalismo
o desenvolvimento dos meios de produção entraram em
contradição com as relações feudais de propriedade e tiveram
que suplantá-las, o mesmo estaria ocorrendo já em sua época com
o próprio capitalismo. O desenvolvimento das forças produtivas
teria ultrapassado os limites compatíveis com as relações de
propriedade burguesas. As forças produtivas são limitadas pelas
relações de propriedade burguesas e assim que ultrapassam esses
limites geram uma crise. Daí a ocorrência de crises comerciais que
para eles são a manifestação do choque entre forças produtivas e
relações de propriedade sobre as quais se assenta a classe
capitalista. Essas crises destroem parte da produção e das forças
produtivas acumuladas anteriormente (p.489). São as crises de
superprodução que resultam do excesso de indústria, excesso de
produção, excesso de comércio. “As condições da sociedade
burguesa são muito estreitas para abarcar a riqueza criada por ela
mesma” (p.490). A superação das crises se dá pela destruição
massiva de forças produtivas e pela conquista de novos mercados,
processo que prepara as condições para crises mais abrangentes e
mais severas e ao mesmo tempo diminui os meios para superá-las.
No Trabalho Assalariado e Capital (1849), escrito na mesma
época, a exposição é muito similar. A batalha entre os capitalistas
se dá através do aumento do emprego de maquinaria. O aumento
da escala e da produtividade obtidos com o auxílio do crédito leva
a crises de magnitude cada vez mais amplas (p.47-48). As crises
passam a ser mais freqüentes e mais violentas já que o aumento do
mercado exigido pelo aumento da produtividade encontra limites
uma vez que a cada crise mais mercados são incorporados e
menos mercados restam para serem incorporados (p.48). Aqui Marx
sugere um processo de progressivo esgotamento do capitalismo na
medida em que seu desenvolvimento levaria à exaustão dos
mercados ao mesmo tempo em que provocaria crises recorrentes
cada vez mais violentas.
“E NÃO HAVERÁ REVOLUÇÃO SEM CRISE”
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
104
Marx se instala em Londres em 1849 e à partir de 1850
retoma seus estudos econômicos. Estes últimos, no entanto, são
prejudicados pelo tempo que Marx necessita dedicar à atividade
jornalística. Antes, porém, a necessidade de fazer as contas com a
revolução de 1848 o leva a escrever A Luta de Classes na França
na qual procura entender as razões da derrota da revolução.
No plano da atividade política Marx combate a ala da
Associação Internacional dos Comunistas Revolucionários que
pregava a luta pela conquista imediata do poder. Marx
argumentava que, com a descoberta do ouro na Califórnia e o
clima de prosperidade no início dos anos 50, uma nova revolução
era impossível no plano imediato. Em carta a Ferdinand Freligrath,
datada de 27 de dezembro de 1851, Marx finaliza escrevendo em
francês: “après les derniers événements je suis plus convaincu que
jamais, qu’il n’y aura pas de révolution sérieuse sans crise
commerciale” (CW 1982, v.38, p. 521).
Marx inicia em 1850 a atividade de correspondente europeu
do New York Daily Tribune, para o qual escreve inúmeros artigos,
vários deles analisando as condições de maturação da próxima
crise econômica. É exatamente em relação a essa crise iminente
que ele diz que “os desastres econômicos e as convulsões sociais
que estão a caminho serão as sementes da revolução
européia”(v.12, p.308). E acrescenta: “Desde 1849 a prosperidade
comercial e industrial foi a base segura na qual dormiu em
segurança a contra-revolução”.
No artigo sobre “Pauperismo e livre comércio – a crise
comercial iminente”63 Marx prevê o início da crise para o ano de
1853. Essa previsão se baseia na concepção já apresentada tanto
na Pobreza da Filosofia quanto no Manifesto Comunista de que ao
período de prosperidade se segue a fase de excitação na qual
começam a pulular as bolhas especulativas. Segundo Marx o ano
de 1852 havia sido um ano de prosperidade sem igual na
Inglaterra. De acordo com os dados econômicos á sua disposição,
entre eles a abundância de capital de empréstimo e a baixa taxa
de juros, era de se esperar que essa fase de prosperidade fosse
rapidamente sucedida pela fase de excitação precursora da crise.
“A excitação é o cume da prosperidade; ela não produz a crise
mas provoca o seu início” (v.11, p.362)
A teoria que emerge dos escritos de Marx, até aqui, é uma
teoria de superprodução cíclica que se realiza através do excesso
de capital, excesso de comércio, excesso de mercadorias. Quando
63 “Pauperism and Free Trade – The Approaching Commercial Crisis” (CW 1979, v.11)
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
105
Marx passa a se concentrar no trabalho teórico de crítica da
economia política se depara imediatamente com a visão clássica
dominante, por oposição a Malthus, de que as crises de
superprodução são impossíveis. Suas explorações sobre o tema
ganham um novo foco, qual seja, a explicação teórica de porque
as crises de superprodução são possíveis.
A LUTA PELA TEORIA ANTES DO DILÚVIO
No inverno londrino de 57-58 Marx empreende uma
frenética atividade de pesquisa no museu de Londres. Em carta a
Engels, de 8 de dezembro de 1857, Marx dirá: “Estou trabalhando
como louco todas as noites durante a noite toda na organização
dos meus estudos econômicos para que finalmente eu possa ter o
esboço claro antes do dilúvio” (CW 1983, v.40, p. 217).
Como vimos Marx apresenta ao longo de sua obra pré-
econômica a idéia de que as crises capitalistas são crises de
superprodução. Ao defrontar-se com a crítica aos clássicos deverá
necessariamente fazer as contas com a noção de que não podem
haver crises gerais de superprodução. Marx se depara com a visão
clássica que reduzia as relações capitalistas de produção ao
intercâmbio de mercadorias (M1 – D – M2) e o intercâmbio de
mercadorias, por sua vez, ao escambo (M1 – M2). Desaparecia
assim qualquer possibilidade de superprodução generalizada uma
vez que a produção de M1 constituia um ato de demanda de M2.
Como a crise é a manifestação do fundamento
contraditório do modo de produção capitalista, a análise deve
tomar como ponto de partida um conceito que contenha a
contradição fundamental sobra a qual a crise se assenta, conceito
esse ao mesmo tempo forma mais abstrata da crise e aspecto
concreto de qualquer crise particular. A mercadoria como ponto
de partida é a solução metodológica. Antecipando de 8 anos a
apresentação d’O Capital, Marx argumenta na Contribuição à
Crítica da Economia Política que o dinheiro é a forma com que o
comércio resolve a contradição da mercadoria entre valor de uso
e valor: a mercadoria M1 não precisa encontrar a mercadoria M2
na qual possa expressar o seu valor e que seja ao mesmo tempo
valor de uso para o produtor 1; tampouco é necessário que M1
represente valor de uso para o produtor 2. Todas as mercadorias
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
106
agora expressam seus valores numa única mercadoria, a
mercadoria-dinheiro. Essa solução, porém, gera outra contradição,
precisamente a contradição ignorada pelos clássicos: a separação
da metamorfose da mercadoria entre uma fase de venda e uma
fase de compra, o fundamento da possibilidade de crise. A
contradição entre “mercadoria e dinheiro é a forma geral e
abstrata de todas as contradições inerentes ao modo de produção
capitalista” (Marx 1976, p.96).
A metamorfose da mercadoria é composta de duas fases
independentes: a primeira fase é a venda, M – D; a segunda fase é
a compra, D – M. O mesmo dinheiro obtido na venda efetua uma
compra. Porém, essa compra não é necessariamente imediata.
Após a fase de venda a mercadoria assume uma forma durável no
dinheiro; uma forma que pode ser trocada a qualquer momento;
uma fase independente na qual pode permanecer por um período
mais ou menos longo (Marx 1976, p.91). Se a permanência do
dinheiro nessa fase torna a separação entre venda e compra muito
longa, a unidade da metamorfose da mercadoria se afirma através
de uma crise (Marx 1975, I, p.114) na qual mercadorias de todos os
gêneros jazem inertes à espera de um comprador, ao contrário do
que pensavam Ricardo e Say de que somente superproduções
parciais eram possíveis. Nas suas visões as crises gerais de
superprodução eram impossíveis, pois ao reduzirem o intercâmbio
ao escambo, quaisquer mercadorias produzidas encontrariam
outras pelas quais se pudessem trocar até que exaurindo-se as
possibilidades de troca pudessem eventualmente sobrar um ou
outro gênero, mas nunca um excesso geral de mercadorias.
A possibilidade de crise se desenvolve ainda mais à medida
que se desenvolve a função do dinheiro como meio de
pagamento. A função de meio de pagamento implica uma
contradição: enquanto os pagamentos se compensam o dinheiro
funciona apenas idealmente como dinheiro de conta e medida de
valor. Quando os pagamentos devem ser efetivamente realizados
o dinheiro não entra como figura transiente da circulação, mas
como encarnação material do trabalho social (Marx , 1985 p.116).
Com a evolução da circulação de mercadorias a venda se
transforma numa necessidade social independente das
necessidades individuais de quem vende já que com a
generalização da função de meio de pagamento é preciso vender
para pagar (Marx 1976, p. 141). Como comprador a crédito todo
vendedor de mercadoria é obrigado a vender para obter os meios
de pagamento necessários para saldar suas dívidas (idem 141). A
conversão M – D se torna uma função da necessidade de pagar
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107
(142) e não meramente uma fase da metamorfose da mercadoria.
Daí que qualquer interrupção na cadeia de intercâmbio cause
uma crise monetária: a busca por dinheiro na sua forma absoluta.
Essa crise monetária é parte de qualquer crise. A crise monetária
nesse contexto nada mais é do que a corrida por meios de
pagamento quando a circulação se estanca e todos precisam
pagar.
Na Contribuição à Crítica da Economia Política Marx
distingue entre moeda em suspensão e entesouramento (Marx
1976, p.137). Moeda em suspensão é também referido por Marx
simplesmente como dinheiro por oposição a moeda ativa na
circulação. Esta última, moeda, designa o dinheiro no processo
ativo de circulação. Essa mesma moeda passa de moeda a
dinheiro quando sai da circulação temporariamente não em
virtude do entesouramento, mas devido ao fato de que o dinheiro
obtido com a venda da mercadoria é gasto paulatinamente numa
série de aquisições de modo que uma parte dele jaz dormente
como dinheiro enquanto a outra circula como moeda. É apenas
uma distinção entre dinheiro ativo na circulação imediata e
dinheiro temporariamente inativo. Essa distinção é importante, pois
no capitalismo a acumulação de capital dinheiro latente, capital
na forma dinheiro, mas inativo enquanto capital, é a contrapartida,
na circulação do capital, da moeda em suspensão e não do
entesouramento. No capitalismo o entesouramento é antitético ao
conceito de capital uma vez que implica a esterilização do
processo de valorização na forma de um dinheiro dormente. A
suspensão do dinheiro no interior do circuito do capital é fenômeno
fundamental para a explicação da função do sistema de crédito
assim como sua influência sobre o processo de reprodução do
capital e da crise. Todo o dinheiro que emerge do circuito do
capital e não pode ser imediatamente transformado em capital
produtivo encontra os canais do sistema bancário através dos
quais retorna ao circuito do capital na forma de crédito de capital,
impulsionando assim a reprodução até seus limites máximos. Esse
processo constitui parte fundamental da teoria da crise de
superprodução de Marx, como veremos a seguir.
A CRISE REAL REQUER A CONCORRÊNCIA E O CRÉDITO64
64 “A crise real só pode ser derivada do movimento real da produção capitalista, da concorrência e do
crédito” (Marx, 1968, p.512).
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
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O Capital retoma a idéia inicial já expressa no Manifesto
Comunista de 1848 de que as crises são parte do comportamento
cíclico da acumulação de capital. A análise da possibilidade da
crise implícita na metamorfose da mercadoria não é abandonada
quando Marx passa à análise do capital. Ao contrário, nas Teorias
da Mais Valia, Marx afirma que as formas abstratas da crise tal
como se depreendem da metamorfose da mercadoria aparecem
na crise como produto de causas relacionadas às propriedades do
capital.65
A análise do crédito e da concorrência efetuada no volume
III d’O Capital permite a Marx retomar as concepções
fundamentais acerca da crise, agora num plano mais concreto da
análise, plano esse que incorpora a concorrência e o crédito no
processo cíclico de expansão e colapso da reprodução.
Dinheiro de crédito e crédito de capital
O prosseguimento da apresentação requer uma breve
digressão sobre as categorias de dinheiro de crédito e crédito de
capital. O dinheiro de crédito é um título de crédito que funciona
como meio de circulação. No processo de circulação do capital
esse mecanismo era realizado pelas Letras de Câmbio até a data
do seu vencimento. Nessa data o dinheiro deveria atuar como
meio de pagamento, isto é, dinheiro de fato, quer seja na forma de
dinheiro-mercadoria, quer seja na forma de notas bancárias que
representavam depósitos em dinheiro-mercadoria. Uma
determinada quantidade de dinheiro deveria, portanto, estar
constantemente disponível para realizar a função de meio de
pagamento.
À medida que a função de dinheiro de crédito passa das
Letras de Câmbio para os próprios depósitos bancários a massa de
dinheiro necessário para a função de meio de pagamento se reduz
a uma fração mínima uma vez que os créditos e débitos são
compensados no interior do sistema bancário. Desse modo uma
fração crescente dos depósitos é disponibilizada para o crédito de
capital. O mesmo ocorre com os fundos monetários de capital
circulante, de depreciação e de acumulação que se formam ao
longo de cada circuito do capital. Sua concentração nos bancos
65 Para um aprofundamento dessa questão ver Aquino (2007).
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
109
permite com que apenas uma pequena fração do seu volume
tenha que permanecer disponível na forma dinheiro, fato que
libera a maior parte do capital dinheiro latente da classe capitalista
coletiva para a reinserção no circuito do capital produtivo na
forma de empréstimos bancários.66
A massa de capital monetário à disposição para
empréstimo aumenta também devido ao fato de que a
acumulação monetária contém elementos que não representam
acumulação real. De fato, a acumulação monetária avança mais
rapidamente do que a acumulação de capital produtivo, pois com
a extensão e desenvolvimento do sistema bancário toda massa de
dinheiro temporariamente inutilizada se concentra nos bancos e se
transforma em capital monetário de empréstimo. Como o lucro
bancário depende do comércio do dinheiro depositado nos seus
cofres pode-se dizer que os bancos pressionam ao máximo o
processo de reprodução através de uma oferta de crédito que
excede as necessidades do processo normal de reprodução. É
nisso que consiste o excesso de crédito ou super-crédito apontado
por Marx como elemento importante para a compreensão das
crises (Marx 1968, p.515).
A contradição implícita na função do dinheiro como meio
de pagamento é assim exacerbada no sistema de crédito
desenvolvido com a dupla função dos depósitos como dinheiro de
crédito e crédito de capital: como grande parte dos depósitos é
emprestada as reservas são suficientes apenas para o volume
normal de saques. No auge da prosperidade a demanda de
crédito pressiona as reservas ao máximo. Por isso, assim que os
bancos percebem um desequilíbrio entre depósitos e saques
tratam de aumentar imediatamente a taxa de juros fato que se
configura como um dos elementos que explicam o início da crise.
Vejamos agora como se apresentam as coisas do ponto de vista
da demanda de crédito.
Concorrência e taxa de lucro de empresário
A tendência do capital de crescer o mais rapidamente
possível faz com que em cada ramo da economia se desenrole,
entre os vários capitais daquele ramo, uma luta encarniçada pelo
66 Para uma análise sistemática do processo de formação de reservas bancárias à partir do circuito do
capital produtivo ver Germer (1998).
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
110
aumento da parcela de mercado, única forma de crescer além do
crescimento médio do mercado. Para conseguir aumentar a
parcela de mercado os capitais individuais procuram introduzir
métodos de produção novos, capazes de diminuir o valor de suas
mercadorias abaixo do valor de mercado. Como essa compulsão
move todos os capitais para adiante, o resultado é uma
superprodução ao valor de mercado vigente. Isso significa que a
taxa de lucro ao novo valor de mercado pode estar caindo, mas
não se manifesta enquanto tal pois a expansão impede a queda
dos preços.
A concorrência entre capitais com o intuito de aumentar a
parcela de mercado se utiliza do crédito para alavancar a
competitividade individual. À medida que a atividade econômica
se recupera, a taxa de lucro começa a aumentar, aumentando
em conseqüência a diferença entre taxa de lucro e taxa de juros.
O aumento dessa diferença implica que quanto mais crédito o
capitalista utilizar maior será a taxa de lucro de empresário
calculada sobre o capital próprio (Hilferding, 1981, p.93) O
aumento da taxa de lucro de empresário instiga a busca pelo
crédito de capital.
Aqui se faz necessária uma digressão sobre a relação entre
taxa de juros e taxa média de lucro. A economia neoclássica
supõe que essas duas taxas se igualam através da concorrência
entre capital produtivo e capital monetário. Se a lucratividade do
capital aplicado na indústria é maior do que a taxa de juros então
capital monetário se transforma em capital produtivo e vice
versa.67 Não há nada disso em Marx. O capital fixo impede essa
perfeita mobilidade entre capital produtivo e capital monetário.
Apenas a fração do capital produtivo que necessariamente se
monetiza no processo de rotação do capital é que encontra a
forma monetária própria para servir de capital emprestável pelos
bancos.68 Desse modo, não existe nenhum mecanismo de
equalização das taxas de lucro e de juros. O juro é uma fração da
mais valia. Não pode ser maior do que a matéria da qual provém
que é o trabalho não pago. Desse modo a taxa de juros é
67 A terminologia da teoria marginalista é diferente: na verdade a equalização se dá entre a
produtividade marginal do capital e a taxa de juros. A taxa de juros é dada pela relação entre consumo
futuro que se ganha com base na abstinência do consumo no presente. Desde que a produtividade marginal do capital seja maior do que a taxa intertemporal de consumo vale a pena sacrificar consumo
presente, até que, com o decréscimo da produtividade marginal esta última se iguale à taxa
intertemporal de consumo. Que mundo harmonioso esse no qual o capitalismo se reduz a satisfazer o consumo e todo o sistema se move de modo a maximizar a utilidade intertemporal!
68 Ver a esse respeito Itoh (1988).
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
111
necessariamente, em geral, menor do que a taxa de lucro. O limite
máximo da taxa de juros é a taxa de lucro. Uma taxa de juros maior
do que a taxa de lucro é um dos sintomas da crise econômica
quando a corrida por meios de pagamento faz a taxa de juros
atingir os níveis mais altos de sua trajetória cíclica. A diferença entre
o lucro médio e o juro é o lucro do empresário. Se todo o capital
produtivo fosse financiado por crédito bancário então a taxa
média de lucro menos a taxa de juros seria a taxa de lucro de
empresário.
Assim, na fase de retomada do crescimento a taxa de lucro
de empresário é alta e os capitais aumentam o uso de crédito. Os
capitais que adotam métodos mais avançados de produção
gozam de lucros extras e, portanto, de taxas de lucro ainda
maiores em virtude do fato de que o preço de mercado
sustentado pela expansão retarda em expressar a estrutura
produtiva mais eficiente. Esse processo coincide com o aumento
das escalas de produção e com a expansão da massa de
produtos levada ao mercado. Obviamente os cálculos são
realizados ao valor de mercado vigente, mas a expansão da
produção se dá com base nas condições técnicas mais
avançadas que se encontram disponíveis e cujo valor de mercado
implícito é mais baixo. Esse processo coincide com a redução das
reservas bancárias até seus limites mínimos enquanto, por outro
lado, a relação Ce/Cp, capital emprestado/capital próprio vai
subindo. Na verdade a relação Ce/Cpc, capital emprestado/capital
próprio circulante aumenta ainda mais já que o crédito de capital
é crédito de curto prazo refletindo a natureza das reservas
capitalistas. O aumento da relação Ce/Cpc implica num aumento
da fragilidade sistêmica da reprodução na medida em que o juro
se paga à partir do refluxo do capital circulante aumentado pelo
lucro médio e como sabemos os valores de mercado implícitos na
mais alta produtividade comportam margens de lucro menores
que os preços vigentes.
O processo de aumento da razão Ce/Cpc é ao mesmo
tempo o processo de diminuição das reservas a um mínimo
compatível com a conversibilidade dos depósitos. O sistema como
um todo se estira até os limites de suas possibilidades tanto na
direção do aumento do endividamento das empresas, quanto no
aumento da produção, quanto na direção da redução das
reservas bancárias. Esse é o sentido, agora substanciado numa
análise concreta do processo cíclico, da idéia de excesso de
capital, excesso de produção, excesso de comércio. Isso significa
que o aumento da produção não pode se realizar indefinidamente
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
112
ao valor de mercado no qual foram calculados o aumento da
escala e os empréstimos tomados para realizá-la.
Temos, assim, um processo no qual simultaneamente e
reciprocamente os bancos reduzem as reservas a um mínimo e os
capitalistas aumentam o endividamento ao máximo. Essa dupla
circunstância se assenta no período de expansão que precede a
fase de super-excitação na qual entra em cena a demanda de
crédito para fins especulativos. Ademais, a expansão da
circulação da renda faz com que diminua a quantidade de
dinheiro que reflui para os bancos precisamente quando a
demanda por crédito de capital se expande ao máximo. A taxa de
juros sofre uma alta significativa. Vejamos agora o comportamento
do ciclo numa visão de conjunto da concorrência e do crédito.
Crise industrial e crise monetária: o movimento cíclico no seu
conjunto
A acumulação de material monetário de empréstimo sofre
os percalços do comportamento cíclico da acumulação
capitalista. Após a crise a acumulação monetária nos bancos
reflete um fator contrário à acumulação de capital, sua completa
estagnação. À estagnação da acumulação corresponde um fluxo
unilateral de depósitos sem as correspondentes retiradas
associadas às compras de meios de produção e força de trabalho.
Após a crise a taxa de juros é baixa porque o capital monetário se
acumula nos bancos e a demanda de crédito bancário é
praticamente nula. A taxa de juro se mantém baixa nessa fase
porque parte substancial do crédito é realizada diretamente entre
os próprios capitalistas. O movimento cíclico se inicia à partir da
fase que sucede a crise, fase essa caracterizada pela pletora de
capital dinheiro de empréstimo e baixa taxa de juro. Com a
recuperação econômica a taxa média de lucro aumenta fazendo
crescer a taxa de lucro de empresário.
À medida que a expansão ganha fôlego os empréstimos
bancários ultrapassam – pois economizam reservas de meios de
pagamento e concentram dinheiro que não representa capital – os
limites da reprodução material que é a contrapartida em meios de
produção e meios de consumo do dinheiro que representa capital
e, por isso começam a elevar-se os preços. Entra em cena a
demanda de capital dinheiro para especulação, fato que força
um aumento na taxa de juros. É precisamente esse período que
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
113
antecede a crise que apresenta a aparência de reprodução
saudável.
A dupla função dos depósitos como dinheiro de crédito e
crédito de capital faz com que sua função de dinheiro de crédito
se exerça sem a sua presença material já que o depósito de A é
emprestado a B. Isso significa que o depósito bancário como
dinheiro de crédito não pode funcionar como meio de pagamento
no montante de sua magnitude nominal, pois o sistema bancário
empresta o dinheiro o que significa que a conversão em dinheiro
de fato é impossível. As condições de convertibilidade dos
depósitos só funcionam dentro dos estritos limites das reservas
baseadas no funcionamento normal de saques e depósitos.69 Ao
reduzir as reservas ao mínimo qualquer sinal de retiradas maiores do
que os depósitos produz um aumento da taxa de juros por parte
dos bancos como forma de proteger as reservas. No sistema de
crédito básico com crédito comercial e crédito de capital
circulante o fenômeno que dá origem ao aumento da taxa de
juros é o aumento da demanda de desconto de Letras de Câmbio
relativamente ao fluxo de depósitos. No sistema moderno no qual
os depósitos bancários substituem as Letras de Câmbio como
dinheiro de crédito o problema emerge quando o fluxo das
reservas começa a desacelerar como reflexo de dificuldades de
realização na fase M’– D’. Portanto, seja no sistema simples seja no
sistema à base de depósito como dinheiro de crédito, o
fundamento da crise cíclica é necessariamente resultado da
elasticidade que o sistema de crédito imprime à reprodução do
capital, elasticidade essa que leva o sistema a ultrapassar as suas
possibilidades de reprodução.
A partir do momento em que começam a se apresentar
problemas de refluxo de reservas, os bancos aumentam as taxas de
juros. As empresas menos sólidas começam a apresentar
problemas financeiros relacionados ao serviço de suas dívidas.
Com as primeiras falências a taxa de juro sobe ainda mais. Nesse
momento todos tentam assegurar-se dinheiro na perspectiva de
que as taxas de juros continuarão subindo. Taxas de juros elevadas
começam a fazer estrago na estrutura fragilizada da reprodução.
As primeiras falências dão o sinal para uma corrida ao dinheiro
com o que a função de meio de pagamento do dinheiro não
pode se realizar levando a uma crise generalizada na qual todos
69 Marx se refere a esse problema tendo em mente depósitos em ouro no capitulo 32 do vol III d’O
Capital.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
114
vendem para pagar depreciando assim o preço dos seus ativos e
mercadorias.
Neste momento entra em cena a crise monetária: a busca
desenfreada por meios de pagamento que como vimos não pode
ser suprida, pois simplesmente não existe nos cofres bancários. Daí
que a crise monetária, fase de qualquer crise geral, é
necessariamente uma crise bancária. Os bancos não podem
converter depósitos em meio de pagamento e cerram as portas. O
crédito estagna e a crise se aprofunda. Desse modo a crise
bancária é um fator de agravamento da crise. Num sistema em
que tudo depende do crédito a paralisação da atividade
bancária produz uma paralisia na reprodução do capital.
A crise monetária tal como analisada na circulação simples
de mercadorias agora aparece como crise bancária porque os
meios de pagamento estão concentrados no sistema bancário. A
existência contábil dos depósitos em contraste com a sua
inexistência real face à procura desenfreada por meios de
pagamento é a crise bancária.
Assim que a crise se manifesta a desova de quantidades
aumentadas de produção no mercado revela o verdadeiro valor
das mercadorias, fruto das condições mais avançadas de
produção. O preço de mercado cai. A lucratividade se contrai
ainda mais em virtude da liquidação de preços. Empresas se
tornam inadimplentes. A massiva destruição de valor-capital
prepara as condições para o início de um novo ciclo.
CONCLUSÕES
Os 20 anos que separam a Pobreza da Filosofia da
publicação do primeiro volume d’O Capital foram, ao mesmo
tempo, anos de intensa pesquisa e sofrimento material. No final da
década dos anos 50 Marx dirá – munido da ironia em meio às
dificuldades financeiras – que “nunca ninguém escreveu tanto
sobre o dinheiro tendo tão pouco dele”. É precisamente sua
elaboração sobre o dinheiro e suas funções, apresentada pela
primeira vez na Contribuição à Crítica da Economia Política, que
pavimentou o caminho para o desenvolvimento da análise do
crédito, elemento que junto com a análise da concorrência são
fundamentais para o entendimento das crises capitalistas.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
115
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AQUINO, D. C. “Os desdobramentos das contradições do processo
de reprodução do capital: elementos para o entendimento
das crises”. Dissertação apresentada para obtenção do
título de mestre. Universidade Federal do Paraná, Programa
de pós-graduação em Desenvolvimento Econômico, 2007.
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da hipótese da endogeneidade da oferta monetária”.
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HILFERDING, R. Finance Capital. A Study of the Latest Phase of
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1981.
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New York: Monthly Review Press, 1971
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MCLELLAN, D. The Thought of Karl Marx. New York: Harper & Row
Publishers, 1971.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
117
As tendências de longo prazo da
economia capitalista e a transição
para o socialismo
Claus M. Germer (UFPR)70
INTRODUÇÃO
A análise deste tema é oportuna em um momento em que
o capitalismo se considera triunfante e os críticos do capitalismo,
mesmo no campo do marxismo, vacilam na afirmação do caráter
historicamente passageiro do presente modo de produção ou
jogam para um futuro remoto e incerto a possibilidade da transição
para o novo modo de produção, o comunismo.
Uma das principais críticas feitas por Marx à teoria
econômica burguesa (a Economia Política clássica, na sua época,
cujo caráter científico reconhecia) foi o seu caráter a-histórico, isto
é, o fato de não reconhecer a natureza passageira do capitalismo.
Atualmente, no campo do marxismo, isto é geralmente
reconhecido, mas, ao contrário de Marx, parece ser aplicado, na
análise teórica, praticamente apenas ao passado, principalmente
como análise do processo de gênese do capitalismo no interior do
feudalismo. Raramente é aplicado à tentativa de identificar o
processo corrente de gestação dos elementos que emergem no
interior do capitalismo e que apontam para a sua superação, na
forma de elementos constitutivos de um novo modo de produção.
Um esforço neste sentido não se confunde com a tentativa de
prever o futuro ou elaborar receitas sobre a forma concreta que
deveria assumir o novo modo de produção. O de que se trata é de
procurar identificar os elementos emergentes deste no interior do
capitalismo.
70 Professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Econômico da Universidade Federal
do Paraná.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
118
Uma tentativa deste tipo não é uma empresa fácil, uma vez
que a evolução social está sendo tecida cotidianamente, por
intermédio da atividade de milhões de indivíduos e grupos de
indivíduos agindo sem coordenação consciente, portanto sem um
objetivo comum conhecido. As mudanças meramente
incrementais podem ser previstas até certo ponto, mas apenas
para o futuro próximo, uma vez que são mera extrapolação da
situação vigente, que é conhecida. Mas as mudanças que
implicam saltos qualitativos dificilmente podem sê-lo. O
desenvolvimento da manufatura, a partir de meados do século 16,
é um exemplo deste tipo. No início daquele século, quando a
produção artesanal era a forma vigente da produção industrial,
nada permitia prever o surgimento e a difusão da produção
manufatureira, algumas décadas depois, cujas condições de
emergência estavam, porém, sendo gestadas a partir de diferentes
pontos da sociedade, mas cuja combinação em um processo de
convergência para o que viria a ser a manufatura era
imperceptível a qualquer observador. Do mesmo modo, durante o
domínio da produção manufatureira, nada permitia antever o
desenvolvimento da indústria mecanizada a partir dela.
Sendo assim, como é possível antecipar uma mudança
qualitativa tão significativa quanto a natureza do modo de
produção que tomará o lugar do capitalismo? Ou seja, como é
possível identificar o comunismo como o novo modo de produção?
O objetivo desta exposição é retomar os fundamentos teóricos que
tornam isto possível.
Uma correlação de forças de classes extremamente
desfavorável ao socialismo, principalmente nas últimas três
décadas, parece ter produzido uma forte desmotivação para o
estudo do processo de transição em curso e até mesmo uma certa
descrença de que isto esteja ocorrendo. Como consequência, são
escassas as análises que sintetizam os abundantes dados e
informações que identificam o curso deste processo. O objetivo
deste artigo não pode, portanto, ir além da retomada dos
fundamentos teóricos da existência deste processo e da indicação
de algumas evidências mais gritantes da sua realização.
A TEORIA DOS MODOS DE PRODUÇÃO
Não há dúvida de que Marx e Engels consideravam possível
antever pelo menos as características fundamentais do modo de
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
119
produção – o comunismo – que sucederia o capitalismo. Marx não
só referiu-se ao novo modo de produção em numerosas passagens
da sua obra, como pretendia dedicar um volume do O Capital a
este tema, intenção que, lamentavelmente, não pode realizar.
Rosdolsky, citando os Grundisse, esclarece que, “segundo o plano
original de Marx, o último volume da sua obra deveria encerrar-se
com o exame dos momentos que apontam ‘para além do que
está pressuposto’ e que ‘pressionam pela emergência de uma
nova forma histórica’ da sociedade. Este volume deveria ocupar-
se, portanto, com a análise da ‘dissolução do modo de produção
e da forma de sociedade baseados no valor de troca’ e da sua
transição para o socialismo” (Rosdolsky, p. 486). Prossegue o mesmo
autor: como resultado da análise de Marx “o socialismo já não
aparecia como um mero ideal, mas como uma fase necessária do
desenvolvimento da humanidade, para a qual tende a história
decorrida até hoje, de modo que só se poderia falar da futura
forma socialista da sociedade, na medida que embriões visíveis
desta futura sociedade pudessem ser descobertos na história
decorrida e suas tendências de desenvolvimento” (Ibidem, p. 487).
Isto significa que a transição para um novo modo de
produção inicia-se quando elementos do mesmo começam a
desenvolver-se no interior do modo de produção vigente. Um
pouco de reflexão é suficiente para indicar que esta é uma
condição indispensável à possibilidade da passagem a um novo
modo de produção71. Sendo assim, os elementos emergentes e
constitutivos do modo de produção que se seguirá ao capitalismo
devem poder ser observados no interior da sociedade capitalista
atual.
Deve-se notar que, para que embriões visíveis da sociedade
futura possam ser encontrados no interior do capitalismo atual, são
necessários critérios capazes de indicar quais seriam os fenômenos
que constituem embriões da sociedade futura. Tais critérios só
podem ser derivados das leis que presidem a evolução do
capitalismo. É preciso, portanto, identificar estas leis, função que
cabe à ciência. O que se necessita, por conseguinte, é que a
sociedade capitalista seja analisada segundo o método científico
usual, isto é, procurando identificar as leis que presidem o seu
funcionamento e sua evolução, a partir dos fatores materiais que
objetivamente a condicionam, e sem a intervenção da
71 Segundo Marx, “...relações de produção novas e superiores nunca se instalam antes que as condições de existência materiais das mesmas tenham sido geradas no próprio seio da velha sociedade” ( Marx,
1980, p. 101).
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
120
intencionalidade humana. Como Marx esclareceu no prefácio ao
primeiro volume do O Capital, tratava-se nesta obra de identificar
as “leis naturais da produção capitalista (...) [as] tendências que
atuam e se impõem com necessidade férrea”, ou seja, “descobrir a
lei econômica do movimento da sociedade moderna”, que é a
sociedade capitalista (Marx, 1983, p. 12). O método desenvolvido
por Marx e Engels para investigar o processo de desenvolvimento
da sociedade humana, é o materialismo histórico, que consiste na
aplicação do materialismo filosófico e da dialética à análise da
sociedade humana. Ao contrário do que se possa crer, o
materialismo é a filosofia na qual se baseia, consciente ou
inconscientemente, a moderna pesquisa científica burguesa no
campo das ciências naturais72. Sendo assim, se a ciência é
materialista em todos os campos, segue-se que a análise científica
da sociedade requer igualmente uma abordagem materialista.
Mas a possibilidade de analisar o movimento da sociedade
capitalista depende crucialmente de se ter identificado as leis que
presidem a evolução da sociedade humana em geral, isto é, as leis
que movem a ação do ser humano como tal e, mais
especificamente, aquelas que presidem a transição de um modo
de produção a outro. As tendências a serem observadas na
evolução do capitalismo nada mais são do que manifestações da
operação destas leis gerais. Sem elas seria impossível saber quais
fenômenos deveriam ser observados como indicadores do
processo de transição. O estabelecimento destas leis foi realizado
por Marx e Engels nas suas obras iniciais, de cunho eminentemente
metodológico, com destaque para a ‘A ideologia alemã’ e o
prefácio da ‘Contribuição à crítica da economia política’. Marx e
Engels pretenderam analisar a evolução da humanidade
cientificamente, isto é, sem atribuí-la a entes fantásticos ou a
inspirações geniais de grandes personagens. Nestas obras
identifica-se o desenvolvimento das forças produtivas como o fator
material responsável pelo desenvolvimento da sociedade humana
em geral, e a contradição entre as forças produtivas e as relações
sociais de produção como o fator responsável pelo
desenvolvimento das lutas de classes que conduzem à transição de
um modo de produção a outro. Deste modo, a identificação das
tendências de evolução das forças produtivas e da contradição
entre estas e as relações de produção, em determinado modo de
72 Na filosofia não marxista das ciências naturais atuais isto é amplamente reconhecido: “Materialism is now the dominant systematic ontology among philosophers and scientists, and there are currently no
established alternative ontological views competing with it” (Moser and Trout, p. ix).
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
121
produção, permite antecipar as características fundamentais do
modo de produção seguinte. Deve-se ter em mente que as
relações de produção expressam-se na forma jurídica da
propriedade ou da apropriação. Portanto, é necessário observar a
emergência de novas formas materiais de apropriação,
conflitantes com a forma vigente e sua expressão jurídica. Por outro
lado, esta contradição desencadeia uma reação por parte da
classe proprietária vigente, na tentativa de controlar e/ou deter o
desenvolvimento das novas forças produtivas e da nova forma
material de apropriação que lhe corresponde73. A existência destas
reações acrescenta-se ao observador como outro indicador da
intensidade da contradição mencionada.
Não se pode de imediato dizer se as mudanças mais
facilmente observáveis são as que se dão nas relações de
produção ou nas forças produtivas, embora estas sejam a causa
daquelas. Os desenvolvimentos técnicos dos meios de produção
ocorrem no interior das unidades produtivas, longe das vistas da
maioria da população e mesmo de observadores atentos,
enquanto as mudanças nas relações de produção, que se dão
entre indivíduos que circulam na sociedade como portadores de
uma nova relação social, tornam-se por este motivo mais fácil e
rapidamente percebidas. Por outro lado, porém, importantes
desenvolvimentos técnicos nos meios de transporte, que são
também elementos das forças produtivas, e que desempenharam
papel importantíssimo no impulso ao desenvolvimento das novas
forças produtivas e relações de produção como um todo em
diversas fases da evolução da humanidade, principalmente nas
mais recentes, são mais fácil e extensamente percebidas.
Finalmente, deve-se notar que não há leis que permitam antever as
direções dos desenvolvimentos técnicos e a natureza dos saltos
qualitativos que caracterizam a emergência de forças produtivas
portadoras de mudanças cruciais. Sendo assim, parece que os
melhores indicadores da emergência do novo modo de produção
no capitalismo são as mudanças nas relações de produção e a
explicitação do seu conflito com a forma jurídica vigente da
propriedade. Se as relações de produção mudam, é porque as
forças produtivas estão mudando.
Deste modo torna-se possível a identificação do processo
em curso de constituição de uma realidade social futura, antes que
esta tenha se materializado. Esta possibilidade depende de se
73 Uma exposição detalhada da teoria da transição entre modos de produção, elaborada por Marx e
Engels, encontra-se em Germer, 2009.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
122
poder antever, pelo menos em suas linhas gerais, o formato da
realidade futura, que depende, por sua vez, de ser possível extrair,
da análise do processo evolutivo atualmente em curso, as
tendências evolutivas essenciais e a sua convergência em direção
a uma transição determinada.
O resultado da análise de Marx está sintetizado na lei geral
da acumulação capitalista (Marx, 1983, cap. 23), e pode ser assim
enunciado: na sociedade capitalista os produtores são
independentes e concorrem uns com os outros pela sobrevivência
como produtores. A concorrência conduz à elevação contínua da
composição orgânica do capital e à centralização crescente dos
capitais, isto é, à absorção dos capitais menores pelos maiores e à
proletarização dos menores capitalistas e demais produtores
porventura existentes. Da centralização crescente decorrem duas
tendências: a primeira é a polarização crescente da população
em duas classes: a classe capitalista, cujo número diminui
gradualmente, por um lado, e a classe dos trabalhadores
assalariados, que tende a absorver o restante da população, ou
seja, a maioria, por outro. A segunda tendência é o crescimento
contínuo das escalas dos capitais individuais e a correspondente
expansão do caráter social do trabalho, com contingentes cada
vez maiores de trabalhadores trabalhando combinadamente em
regime de cooperação técnica. Finalmente, com o advento e
difusão da sociedade anônima, os capitalistas são substituídos por
trabalhadores assalariados nas funções de direção nas esferas da
produção e da distribuição dos produtos do trabalho. Todas estas
tendências realizaram-se plenamente após a publicação do O
Capital, mesmo aquelas que, à época, ainda não haviam se
manifestado claramente, como é o caso da difusão da sistema de
crédito, da sociedade anônima e da centralização geral dos
capitais.
Desta síntese decorrem as evidências a serem procuradas
na evolução do capitalismo até este momento: por um lado, as
evidências sobre o processo de polarização social entre capitalistas
e assalariados; por outro lado, as evidências de uma tendência
ainda inexistente quando da elaboração do O Capital, mas
implícita no processo de centralização, que é a progressiva
substituição do mercado pelo planejamento da atividade
econômica, tanto ao nível dos capitais individuais quanto do
capital global.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
123
OS ELEMENTOS FUNDAMENTAIS DO COMUNISMO NO
INTERIOR DO CAPITALISMO
Entre as referências feitas por Marx ao comunismo,
encontra-se frequentemente a expressão ‘sociedade de
produtores associados’. O conceito de ‘produtores associados’,
cuja base é a propriedade comum dos meios de produção, opõe-
se ao de ‘produtores independentes em concorrência’, cuja base
é a propriedade privada dos meios de produção. É clara nos textos
de Marx a indicação de que o comunismo baseia-se na
propriedade comum ou coletiva dos meios de produção. A
propriedade comum implica, logicamente, que a gestão dos meios
de produção é também comum e unificada, significando que o
conjunto deles é gerido como uma totalidade, ou seja, há
planejamento global unificado da produção e da distribuição.
Pode-se dizer, por conseguinte, que os dois componentes
fundamentais do comunismo são a propriedade comum dos meios
de produção, por um lado, e o planejamento integrado ou global
da produção e da distribuição, por outro.
Ora, o novo modo de produção somente se torna possível
na medida que os seus componentes fundamentais estejam
desenvolvidos a um ponto que se possa considerar suficiente, uma
vez que eles constituem o fundamento material do
desenvolvimento da classe social portadora do projeto do novo
modo de produção, projeto este que nada mais é que a expressão
das exigências objetivas dos componentes já desenvolvidos do
mesmo74. Ou seja, a transição para o comunismo requer que se
desenvolva previamente, no interior do capitalismo, uma classe
cujo destino depende desta transição, e uma tal classe só pode
desenvolver-se caso a apropriação coletiva dos meios de
produção se desenvolva também previamente, em estado
embrionário, no interior do capitalismo. Isto lembra a máxima de
Marx, segunda a qual a sociedade somente se propõe um
problema quando as condições materiais para a sua solução já
estão presentes. Sendo assim, pode-se dizer que as duas
tendências de longo prazo fundamentais do capitalismo são a
progressiva emergência da propriedade comum dos meios de
produção, por um lado, e do planejamento global da produção e
da distribuição, por outro. Conseqüentemente, estas duas
74 “A existência de idéias revolucionárias numa época determinada pressupõe já a existência de uma
classe revolucionária” (Marx e Engels, 1975, p. 68). Ver também Germer (2009).
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
124
tendências devem poder ser observadas no processo objetivo de
desenvolvimento do capitalismo.
A EMERGÊNCIA DA PROPRIEDADE COLETIVA DOS MEIOS DE
PRODUÇÃO
A afirmação de que os componentes do comunismo
devem desenvolver-se até um ponto significativo no interior do
capitalismo não significa que se pretenda que estes se manifestem
abertamente como tais, de modo explícito. Assim, a emergência
da propriedade comum no interior do capitalismo não pode ser
entendido como a difusão desta nova forma de propriedade
explicitamente como propriedade comum, de todo o povo. Isto
nem poderia ocorrer, uma vez que a forma jurídica geral da
propriedade dos meios de produção é a propriedade privada.
Sendo assim, dada a dominância desta, é óbvio que a
propriedade coletiva não pode desenvolver-se a não ser como
uma forma encoberta da propriedade privada. O mesmo deu-se
na transição do feudalismo para o capitalismo, na qual o
capitalista desenvolveu-se na forma de arrendatário do nobre
feudal, ou seja, como uma espécie de vassalo de novo tipo, tanto
da agricultura como na manufatura.
Parece legítimo sugerir que a propriedade comum pode
desenvolver-se de duas maneiras no capitalismo, por um lado de
maneira positiva, isto é, como propriedade efetivamente existente,
mas em forma encoberta pela propriedade privada; por outro lado
de maneira negativa, isto é, como processo de progressiva
redução do âmbito de existência da propriedade privada.
A PROPRIEDADE COMUM DOS MEIOS DE PRODUÇÃO COMO
FORMA ENCOBERTA PELA PROPRIEDADE PRIVADA
Segundo Marx, a propriedade comum dos meios de
produção desenvolve-se, no capitalismo, sob as formas da
sociedade por ações ou sociedade anônima, e das fábricas-
cooperativas75 (Marx, 1985, p. 332-5). É significativo que estas
últimas, em contraste com a sociedade anônima, nunca se
75 Sobre o papel das fábricas-cooperativas na teoria de Marx, consultar Germer, 2006a.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
125
tenham expandido, o que se explica pelo fato de constituírem uma
forma explicitamente comum de propriedade dos meios de
produção, por parte de não-proprietários convertidos diretamente
em proprietários comuns, e não como forma socializada da
propriedade privada, em âmbito limitado, como é caso da
sociedade anônima. Segundo Marx,
“As empresas capitalistas por ações tanto quanto as
fábricas-cooperativas devem ser consideradas formas de transição
do modo de produção capitalista ao modo associado, só que,
num caso a antítese é abolida negativamente e, no outro,
positivamente” (Marx, 1985, p. 335).
A sociedade anônima representa, para Marx, a forma
extrema da produção capitalista como forma embrionária da
propriedade comum. Ou seja, é a propriedade comum sob a
aparência da propriedade privada. Em carta a Engels, de 2 de
abril de 1858, Marx define a sociedade anônima de modo radical,
como “a forma mais perfeita (que desemboca no comunismo),
com, ao mesmo tempo, todas as suas contradições” (Marx e
Engels, 1974, p. 77). Coerentemente, quase dez anos depois, ao
redigir o livro III do O Capital, a define como “a abolição do capital
como propriedade privada, dentro dos limites do próprio modo de
produção capitalista” (OC, 1985, p. 332).
Assim, a sociedade anônima constitui uma socialização dos
meios de produção, embora no âmbito limitado da própria classe
capitalista. Deste modo, a propriedade comum desenvolve-se
amplamente como derivação da propriedade privada, assim
como a propriedade privada capitalista desenvolveu-se
amplamente no interior do feudalismo, como forma derivada da
propriedade feudal. Com efeito, atualmente a sociedade anônima
apresenta-se como a forma típica e mais geral da empresa
capitalista (Scott, 1986). Como consequência disto, como regra
geral estas empresas deixam de ser geridas, em qualquer
proporção, por capitalistas, para serem geridas por gerentes
especializados assalariados. Na medida que a sociedade anônima
se converte na forma geral da empresa capitalista, a classe
capitalista está afastada da gestão direta da produção e da
distribuição, sendo portanto dispensável do ponto de vista da
reprodução social, apresentando-se crescentemente como uma
classe parasitária, tal como se apresentava a nobreza feudal na
fase terminal do feudalismo. Ao mesmo tempo, a gestão efetiva
dos meios de produção passa às mãos de uma hierarquia de
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
126
gerentes e especialistas assalariados. Embora agentes diretos de
capitalistas, são integrantes da classe dos não-proprietários de
meios de produção, o que significa que, na medida que a
sociedade anônima torna-se dominante, a gestão real dos meios
de produção do capitalismo transfere-se das mãos da classe
capitalista às mãos da classe oposta. O desenvolvimento da
sociedade anônima constitui, portanto, um momento do processo
histórico de transferência da gestão dos meios de produção para
uma nova classe de proprietários coletivos dos meios de produção
sociais.
Ao longo do século 20 a emergência da propriedade
comum deu mais alguns passos significativos. Por um lado, nos
países capitalistas, ingressaram na cena econômica a propriedade
e a gestão estatais diretas de meios de produção, principalmente
a partir da grande depressão dos anos 30 e aprofundando-se após
a II Guerra Mundial, de modo que o Estado assumiu importantes
funções diretas no processo global de reprodução do capital.
Embora o Estado represente a classe capitalista, a sua intervenção
direta na economia amplia consideravelmente o processo de
socialização em relação ao representado pela sociedade
anônima, uma vez que o vínculo direto do Estado ao capital está
oculto pela sua representação como poder acima das classes.
Deve-se também ressaltar o fato de que a direção das sociedades
anônimas é eleita pela sociedade dos acionistas, enquanto a
direção do Estado é eleita pela sociedade dos eleitores.
Por outro lado, o socialismo como forma de organização da
sociedade fez sua aparição histórica, embora apenas na periferia
do capitalismo, mas em dimensões geográfica e populacional
significativas. A abolição da propriedade privada e sua substituição
pela propriedade comum converteram-se em realidade, embora
ainda caracterizando uma fase de transição e sendo interrompida
como consequência de contradições internas e externas.
A propriedade estatal, tanto nos países capitalistas quanto
nos socialistas, vista em perspectiva histórica, constitui um passo
decisivo no processo de desenvolvimento dos elementos do
comunismo no interior do capitalismo como sistema mundial, e no
processo histórico de transição do capitalismo ao comunismo. Nos
países capitalistas, a propriedade comum, que até então se
apresentava apenas na forma da sociedade anônima, encoberta
sob a aparência da propriedade privada, e representando uma
socialização limitada à classe capitalista, converte-se
explicitamente, embora apenas formalmente, em propriedade
comum de todo o povo. Na empresa estatal a forma de sociedade
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
127
anônima é inicialmente apenas uma ficção jurídica, uma vez que o
Estado detém a quase totalidade das ações. Posteriormente, como
reação burguesa à atuação do Estado como produtor direto, a
venda pública de ações e o controle de empresas estatais por
acionistas privados procuram encobrir o caráter público das
empresas estatais que escaparam da onda de privatizações do
período iniciado nos anos 1980. A diluição da participação
acionária do Estado nas empresas estatais toma ainda a forma de
uma associação de capitalistas, que, no entanto, mal encobre a
realidade da socialização capitalista de parte dos meios de
produção nos países capitalistas mais avançados.
Independentemente das vicissitudes das experiências
socialistas ao longo do século 20, constituem elas momentos do
processo histórico de gestação do comunismo, experiências de
gestão unificada da produção e da distribuição, baseada na
propriedade comum dos meios de produção por toda a
sociedade, abolidas a propriedade e a gestão privadas76. Pode-se
dizer ‘independentemente das vicissitudes’, porque os processos
objetivos, materiais, movem-se com a força irresistível das leis da
natureza, como dizia Marx, mesmo que os indivíduos e as classes,
que colocam tais processos em movimento, não compreendam o
sentido histórico do que fazem, oculto sob o manto muitas vezes
espesso das suas contradições.
A POLARIZAÇÃO CRESCENTE ENTRE PROPRIETÁRIOS E NÃO-
PROPRIETÁRIOS DE MEIOS DE PRODUÇÃO: A EXTINÇÃO DA
PROPRIEDADE PRIVADA
A propriedade comum dos meios de produção também se
desenvolve pelo seu negativo, isto é, pela expropriação de uma
proporção crescente da população de qualquer propriedade. A
expropriação de um proprietário implica a sua conversão em não-
proprietário e, de modo geral, em trabalhador assalariado. Deste
modo, a progressiva extinção da propriedade privada pode ser
76 É interessante notar que os críticos de esquerda das experiências socialistas do século 20
concentram-se na acusação de que a socialização dos meios de produção teria se reduzido à mera
estatização, em contraste com a esperada e verdadeira socialização. Concentram-se em um aspecto, mesmo que relevante, mas, na medida que esquecem a contradição presente em todos os processos
sociais, vulgarizam a sua crítica ao ignorarem o significado histórico destas experiências.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
128
avaliada pelo crescimento da proporção dos não-proprietários, isto
é, dos assalariados na população77.
Este processo tem se realizado consistentemente, indiferente
às contestações tendenciosas dos críticos do marxismo. Com
efeito, a proporção da classe dos trabalhadores assalariados na
população total tem crescido sistematicamente nos países
capitalistas. Nos mais adiantados, como por exemplo os EUA, os
assalariados já ultrapassam os 90% da população (Schneider, 1976,
p. 317; OIT, para dados atuais). No Brasil, segundo o censo
demográfico de 2000, os assalariados somam cerca de 75% da
população total, e entre eles o proletariado propriamente dito
(industrial e comercial/bancário) constitui cerca de 52% da
população total (IBGE). Em todo o mundo, segundo estimativa de
Bensaïd, a proporção da classe de trabalhadores assalariados
aumentou de cerca de 5% no início do século 20, a cerca de 33%
no início do século 21 (Bensaïd, 2001).
A classe capitalista, em contrapartida, nunca representou
uma proporção significativa da população, o que é comum a
todos os modos de produção baseados na propriedade privada.
No Brasil, ainda segundo o censo demográfico de 2000, a classe
capitalista (empregadores, segundo o Censo) conta menos de 3%
da população. Segundo estimativa de Labini, nos anos 1970,
referente a alguns dos países capitalistas mais desenvolvidos, em
nenhum deles a classe capitalista contava mais de 5% da
população (Labini, 1983). É curioso constatar que mesmo autores
que se dizem marxistas dispõem-se a admitir que a luta pelo
socialismo perde a sua legitimidade porque o ‘proletariado’,
definido tendenciosa e restritamente como proletariado fabril,
representa supostamente uma proporção ‘decrescente’ da
população, mesmo assim em torno dos 20%, com o que admite,
impliciticamente, que uma classe – a burguesia –, que nunca
ultrapassa os 5% da população, mantenha seu domínio absoluto
77 “Horrorizais-vos porque queremos abolir a propriedade privada. Mas em vossa sociedade a
propriedade privada está abolida para nove décimos de seus membros. E é precisamente porque não
existe para estes nove décimos que ela existe para vós. Acusais-nos, portanto, de querer abolir uma forma de propriedade que só pode existir com a condição de privar de toda propriedade a imensa
maioria da sociedade” (Marx e Engels, s/d, p. 33). O número parece exagerado, talvez por terem os
autores incluído os pequenos camponeses, maioria da população à época, entre os excluídos da propriedade, entendida provavelmente como a propriedade especificamente capitalista, utilizando
trabalhadores assalariados. Em importante obra posterior, Marx afirma que “o ‘povo trabalhador’
compõe-se, na Alemanha, na sua maioria de camponeses e não de proletários” (Marx, 1875).
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
129
em um sistema baseado no monopólio dos meios de produção
sociais e na exploração desenfreada da força de trabalho da
imensa maioria da população.
Note-se que, no caso das transições anteriores, entre modos
de produção baseados na propriedade privada, o
desenvolvimento das forças produtivas dava origem a uma nova
forma privada de apropriação dos meios de produção, base de
uma nova classe proprietária privada, que se tornaria dominante
no novo modo de produção. Na transição do capitalismo ao
comunismo, ao contrário, o desenvolvimento das forças produtivas
não dá origem a uma nova forma de apropriação privada. O que
cresce persistentemente, ao contrário, é a não-propriedade, ou
seja, a privação da propriedade privada, forma negativa da
propriedade comum em desenvolvimento. Como resultado das leis
de movimento do próprio capitalismo, como se indicará adiante,
expande-se o caráter social da produção, isto é, o seu caráter
cooperativo geral; expande-se a interconexão técnica entre as
unidades independentes de produção e distribuição; cresce a
contradição entre este caráter social da produção e a
manutenção da apropriação privada por uma minoria, de modo
que o caráter privado da apropriação entra crescentemente em
conflito com a destinação social da produção.
A EMERGÊNCIA DO PLANEJAMENTO DA ECONOMIA
À propriedade comum ou coletiva dos meios de produção
corresponde a sua gestão comum ou coletiva, isto é, o
planejamento integrado e global da produção e da distribuição
dos produtos do trabalho social, substituindo o mercado. Sendo
esta uma característica fundamental do comunismo, deve-se
esperar que o planejamento da atividade econômica também se
desenvolva, de modo perceptível e em escala crescente, no
interior do próprio capitalismo. Quando se fala em planejamento
econômico, isto geralmente se refere ao planejamento realizado
pelo Estado. De fato, o desenvolvimento do planejamento da
economia pelo Estado, em graus variáveis de abrangência, em
todos os países capitalistas, é evidente ao longo do século 20. No
entanto, o planejamento econômico não se restringe ao Estado.
Embora o Estado seja uma instituição política da classe proprietária,
e embora o planejamento estatal tenha sido e continue sendo
relevante, do ponto de vista da transição para o comunismo, é
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
130
essencial que o planejamento se desenvolva, principalmente,
como elemento do funcionamento corrente da economia, isto é,
como elemento da dinâmica do capital, individual e
coletivamente. No momento da revolução política, é necessário
que a estrutura básica do planejamento já esteja constituída no
próprio coração do movimento do capital. Juntamente com a
abolição, na prática, da propriedade privada dos meios de
produção para a maioria da população, à medida que o
capitalismo se desenvolve, o planejamento da produção e da
distribuição deve também desenvolver-se espontaneamente e
deve estar constituído no momento da transição política.
Com efeito, a observação mais rigorosa permite constatar
que o planejamento da economia surge e se desenvolve sob duas
formas e não apenas uma: por um lado o planejamento ao nível
da economia como um todo, realizado pelo Estado e, por outro
lado, e mais importante, o planejamento ao nível dos capitais
individuais. Ambos emergem como emanação direta do crescente
caráter monopolista do capitalismo, isto é, constituem uma
característica do imperialismo, entendido como fase estrutural do
capitalismo. Não é casualidade que a gradual substituição do
mercado pelo planejamento, ao nível das empresas, tenha
começado a desenvolver-se no último quarto do século 19, e que o
planejamento estatal da economia tenha começado a
desenvolver-se no século 20, a partir da grande depressão iniciada
em 1929.
Sendo assim, deve-se distinguir duas modalidades de
planejamento econômico: o planejamento na esfera do capital
privado, que se pode denominar planejamento econômico
privado, e o planejamento econômico na esfera do Estado, que se
pode denominar planejamento econômico estatal.
O PLANEJAMENTO GLOBAL DA PRODUÇÃO E DA
DISTRIBUIÇÃO
O planejamento econômico pelo Estado desenvolveu-se,
no século 20, em dois aspectos: por um lado nos países capitalistas,
como evolução das contradições do próprio capitalismo e, por
outro lado, nos países socialistas, como momento da transição ao
socialismo. Ambos os processos estão mergulhados em
contradições específicas, mas o que sobressai é o seu significado
no processo histórico do desenvolvimento social
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
131
A força irresistível dos processos sociais objetivos pode ser
ilustrada pelo fato de que, durante o século 20, a própria burguesia
foi autora de audaciosos experimentos de planejamento global
sob condições capitalistas. A superação da assustadora crise
econômica desencadeada pelo colapso da bolsa de Nova Iorque,
em 1929, foi em grande parte obra da intervenção direta do
Estado capitalista na gestão da economia. A ação planejada do
Estado aprofundou-se durante a II Guerra Mundial: nos EUA, país
hegemônico do capitalismo, a economia foi colocada sob o
controle direto do Estado durante toda a guerra. A produção
industrial foi convertida em produção militar. Como exemplo
paradigmático pode-se citar a proibição da fabricação de
automóveis de passeio pela indústria automobilística e a
destinação total da sua atividade à produção de veículos militares
de todos os tipos. O mesmo ocorreu na indústria da aviação e em
todas as demais. Os investimentos, os preços, o crédito, etc.,
passaram a ser administrados diretamente pelo Estado. O mercado
entrou temporariamente em recesso. A própria classe capitalista
aboliu temporariamente as sagradas leis do mercado, não porque
lhe agradasse, mas porque agia sob a compulsão de uma
realidade objetiva irresistível.
No processo de descolonização, que se seguiu ao fim da II
GM, o planejamento do desenvolvimento, pelo Estado, e não o
mercado, tornou-se o mecanismo central da promoção do
crescimento econômico das ex-colônias. Mesmo nos países
capitalistas mais atingidos pela guerra o planejamento econômico
explícito tornou-se regra: a França e o Japão, por exemplo,
elaboraram planos quinquenais de desenvolvimento até os anos 60
e 70, respectivamente.
No entanto, o planejamento econômico estatal, no
capitalismo, como não poderia deixar de ser, substituiu o mercado
apenas parcial e temporariamente, e não substituiu a propriedade
privada dos meios de produção. Mas constitui um sintoma da
emergência da propriedade social no interior do sistema da
propriedade privada capitalista. Constitui ainda um sintoma de que
o mercado é incapaz de continuar assegurando a reprodução
normal da economia, exigindo a intervenção de um poder
regulador não mercantil, que é o Estado, que deve ser entendido
como embrião de uma autoridade social como gestora global na
economia no socialismo. Dado o seu caráter não mercantil, o
planejamento econômico estatal reflete o crescimento da
propriedade social e entra em choque com a propriedade
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
132
privada. Segundo a tese de Marx, de que a classe proprietária
dominante reage aos desenvolvimentos das relações de produção
que refletem uma nova forma objetiva de apropriação e se
opõem, portanto, à propriedade privada, era de esperar que o
planejamento econômico estatal, nos países capitalistas, entrasse
em choque com os interesses da classe proprietária, a burguesia, e
que esta tudo fizesse para bloquear e mesmo abolir o
planejamento estatal. Efetivamente, o chamado neoliberalismo
pode ser reduzido a uma grande ofensiva da burguesia mundial
contra o planejamento econômico estatal, imposto pelas
circunstâncias dramáticas da crise geral dos anos 1930 e pelos
imperativos do pós-II Guerra Mundial.
É oportuno notar que já é impossível impedir a interferência
direta e ampla do Estado se não no planejamento, pelo menos no
direcionamento da economia, por diversas vias. A receita pública
absorve atualmente, nos países capitalistas avançados, em torno
de 40% do PIB. Por um lado esta receita converte-se em despesas,
que movem uma proporção importante da economia; por outro
lado, a forma da arrecadação e os canais bancários e financeiros
que esta volumosa receita percorre convertem-se em outros tantos
meios através dos quais o Estado influencia o destino de empresas,
ramos de atividade, regiões, etc. Adicionalmente, a centralização
do sistema bancário sob a coordenação do banco central fornece
ao Estado um poderoso meio de influenciar a economia por
intermédio da regulação do crédito e do câmbio. Todas estas
formas de intervenção do Estado não devem, porém, ser
encaradas como se estivesse ao alcance do Estado determinar
características essenciais da economia, sujeita que está esta, e o
Estado por seu intermédio, às leis de movimento do capital. Mas a
proporção da renda que passa pelo Estado, assim como os fluxos
de dinheiro, de crédito e de transações internacionais, que se
centralizam no banco central, fornecem ao Estado meios de intervir
na realização destas leis dentro de certos limites.
As iniciativas estatais no sentido de conter o processo de
centralização do capital, por intermédio das chamadas leis anti-
truste e outras, podem ser interpretadas como uma reação da
classe capitalista representada pelo Estado ao desenvolvimento
das forças produtivas, na medida que a centralização acelera o
aumento das escalas de produção e da produtividade do trabalho
e reduz o âmbito da concorrência, ameaçando a supremacia do
mercado. A relativa ineficácia destas leis apenas reflete a
impossibilidade de bloquear definitivamente o avanço inexorável
do desenvolvimento das forças produtivas. As leis sobre direitos
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
133
autorais atuam no mesmo sentido, na medida que procuram
conter a velocidade de difusão do progresso técnico e a erosão
da concorrência. O mesmo se pode dizer das leis que, nos países
capitalistas mais avançados, bloqueiam o avanço do processo de
centralização do capital na agricultura78.
O PLANEJAMENTO AO NÍVEL DAS EMPRESAS
Nas últimas décadas do século 19 o capitalismo
experimenta um conjunto de transformações que o elevam a uma
nova fase, o imperialismo (Lênin, 1979, p. 594). O imperialismo,
segundo Lênin, não é uma política, mas uma fase estrutural do
capitalismo, caracterizada pelo domínio do processo de
centralização do capital e do monopólio gerado por este
processo, motivo pelo qual Lênin também a denominou fase do
capital monopolista. Nos três primeiros capítulos desta importante
obra, Lênin expõe o processo de formação das grandes empresas
que caracterizam a nova fase, e a elevação generalizada do grau
de concentração em todos os setores da economia. Esta fase é,
segundo Lênin, uma fase de transição “entre a absoluta liberdade
de concorrência e a socialização completa”, e a caracteriza
como um “novo regime social” (594), em que o âmbito do
mercado se contrai, substituído pelo controle dos mercados pelas
empresas monopolistas. Há uma certa complementaridade entre a
ampla análise da evolução histórica da ‘grande empresa industrial
moderna’ (big business), realizada por Alfred Chandler Jr, e a
análise de Lênin, com exceção, obviamente, da base teórica
totalmente divergente.
A história da grande empresa de Chandler e do novo
sistema social ao qual dá origem inicia-se também no final do
século 19 e estabelece-se definitivamente no início do século 20. A
grande empresa surge e cresce com base no salto tecnológico da
segunda revolução industrial, ocorrido neste período, e alimenta-se
da absorção contínua de empresas concorrentes e da integração
78 Em diversos países europeus ocidentais e em diversos Estados dos EUA, há leis que limitam o
tamanho da propriedade da terra agrícola. Nos EUA há também uma proibição legal ao estabelecimento de sociedades anônimas na agricultura. Estas e outras leis de mesmo sentido
constituem sem dúvida obstáculos opostos pelo Estado burguês ao desenvolvimento das forças
produtivas. É interessante notar que a motivação, neste caso, é a manutenção de uma pequena-burguesia conservadora no meio rural, como uma barreira ao avanço da luta pelo socialismo na
agricultura (Germer, 2006b, p. 53-55).
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
134
vertical, que Lênin também destaca sob o nome de ‘combinação’.
Ou seja, a grande empresa moderna, de Chandler, que coincide
com o grande capital monopolista, de Lênin, é a empresa típica da
fase imperialista do capitalismo. Com a integração vertical, ou
combinação, o comércio entre empresas independentes de uma
cadeia produtiva é substituído pela conexão planejada, no interior
da empresa integrada, entre as etapas sucessivas da cadeia de
produção/distribuição, que vai da produção das matérias-primas
até a distribuição do produto final. Segundo Chandler,
“a moderna empresa tomou o lugar dos
mecanismos de mercado na coordenação das atividades da economia e na alocação dos seus recursos. Em muitos setores, a mão visível da gerência substituiu o que Adam Smith denominou de mão invisível das forças de mercado (...) Antes do advento da moderna empresa, as atividades da pequena firma pessoal eram coordenadas pelos mecanismos de mercado e de preço. A moderna empresa, ao assumir o controle de muitas unidades, começou a operar em diferentes lugares, geralmente exercendo diferentes tipos de atividades econômicas e lidando com diferentes linhas de bens e serviços. As atividades dessas unidades e as transações entre elas foram portanto interiorizadas, passando a ser monitoradas e coordenadas por empregados assalariados e não pelos mecanismos de mercado” (Chandler, 1998, p. 248-9).
A necessidade de planejamento cada vez mais detalhado
cresce nas empresas, como resultado da centralização sempre
maior do capital, que resulta em empresas de dimensões cada vez
maiores, cuja produção atende uma proporção cada vez maior
de cada mercado, não só no interior dos países, mas também no
âmbito mundial. Como consequência, as empresas produtoras de
cada produto, ao planejarem a sua produção, planejam
concomitantemente o abastecimento de proporções crescentes
das populações (Schneider, pp. 125ss). Ao combinarem,
forçosamente, o planejamento da produção e da distribuição, tais
empresas traçam, na realidade, planos sociais parciais de
produção e distribuição.
O surgimento da ‘grande empresa moderna’ tornou-se
possível como resultado de um conjunto de transformações na
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
135
base material da sociedade. Na base de todas está o
desenvolvimento das forças produtivas ou, mais restritamente, o
desenvolvimento tecnológico. Nas palavras de Chandler, a grande
empresa moderna
“surgiu pela primeira vez na história
quando o volume das atividades econômicas atingiu um nível que tornou a coordenação administrativa mais eficiente e mais vantajosa do que a coordenação pelo mercado. Este maior volume de atividades foi possível graças à nova tecnologia e à expansão dos mercados (...) Assim, a moderna empresa comercial [big business – CMG] surgiu, cresceu e continuou a prosperar justamente nos setores e indústrias que tinham tecnologia avançada e mercados em expansão (Ibidem, p. 255)
Lênin traduz o mesmo fenômeno como um processo no qual
“a concorrência transforma-se em monopólio”. A redução do
âmbito de atuação do mercado e sua substituição pelo
planejamento interno e externo das grandes empresas, que se
caracteriza como uma situação de transição entre o mercado e o
plano como reguladores da economia, representa, ao mesmo
tempo, “um gigantesco progresso na socialização da produção.
Socializa-se também, em particular, o processo dos inventos e
aperfeiçoamentos técnicos” (Lênin, p. 593).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo desta exposição foi mostrar que a expectativa
de que o capitalismo será sucedido pelo comunismo não é
arbitrária, mas baseia-se em uma análise científica, representada
pelo materialismo histórico, da evolução da sociedade humana. A
pretensão de que o materialismo histórico constitui o método
científico de análise da sociedade baseia-se na utilização, de que
ele lança mão, do método de toda ciência, que é o materialismo,
não necessariamente aos resultados da análise nele baseada.
Assim, os resultados da análise de Marx e Engels podem ser
contestados, mas só podem sê-lo consistentemente, com base,
igualmente, no uso do método científico geral, que é, repita-se, o
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
136
materialismo. Marx e Engels denominaram socialismo científico a
nova forma de sociedade para a qual o capitalismo converge,
como resultado da sua análise, porque esta foi baseada no
método geral da ciência e não em preferências ou motivações
subjetivas.
Procurou-se demonstrar que, na medida que seja possível
identificar, metodicamente, as leis de movimento da sociedade
humana em geral, e com base nestas as da sociedade capitalista,
especificamente, partindo exclusivamente dos fatores materiais ou
objetivos que as condicionam e determinam, como Marx e Engels
pretenderam ter feito, deve ser possível identificar, por um lado, as
tendências gerais de longo prazo que conduzem a sociedade
capitalista à passagem para um novo modo de produção e, por
outro lado, a natureza do novo modo de produção. Esta foi, em
essência, a pretensão de Marx e Engels.
Finalmente, procurou-se também apontar algumas
evidências históricas sobre a realização das tendências
fundamentais de longo prazo do capitalismo, a partir da
elaboração do O Capital. Esta exposição tem um caráter
exploratório inicial, devido à escassez de pesquisas extensas e
aprofundadas sobre este tema.
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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
139
Nicos Poulantzas, as elites e a
sociologia política norte-americana
Sérgio Braga (DECISO/UFPR)
“O empréstimo de um conceito
isolado (do seu contexto) não compromete aquele que o fez frente ao contexto de onde o tomou (Assim, por exemplo, os empréstimos do Capital feitos a Smith, Ricardo ou Hegel). Mas o empréstimo de uma verdadeira problemática não pode ser acidental, e compromete o seu autor”
(Louis Althusser, Pour Marx).
INTRODUÇÃO
O objetivo deste texto é recuperar alguns dos principais
momentos do diálogo crítico sobre alguns conceitos fundamentais
de teoria política travado por Nicos Poulantzas em suas obras
iniciais, especialmente em sua obra magna Poder Político e Classes
Sociais (POULANTZAS, 1968), com analistas políticos representantes
daquele paradigma de análise política que, numa definição
ampla, podemos qualificar como pertencendo à “sociologia
política norte-americana”79.
79 Definimos como “sociologia política norte-americana” (ou funcionalista) aquele paradigma de
análise política bastante influente na ciência política anglo-saxã nos anos 60 e 70, cujos representantes produziram uma série de obras significativas sob a influência do funcionalismo sociológico de Talcott
Parsons, e orientados pelo conjunto de questões gerais comuns (ou pela “problemática”) expostos mais
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
140
Dentre estes autores, destacamos neste texto alguns dos
principais cientistas sociais e políticos do século passado tais como
Talcott Parsons (PARSONS, 1951, 1969), Harold Lasswell (LASSWELL &
KAPLAN, 1979), David Easton (EASTON, 1953, 1969), Robert Dahl
(DAHL, 1963, 2005), Gabriel Almond (ALMOND et. Al., 1969, 1972, ) e
Karl Deutsch (DEUTSCH, 1971; 1983), os quais foram interlocutores
privilegiados de Poulantzas em sua primeira fase de elaboração
teórica.
Como se sabe, o próprio Poulantzas afirmou explicitamente
em Poder Político e Classes Sociais que as obras clássicas do
marxismo apresentavam uma série de deficiências e lacunas
analíticas, que tornavam indispensável o recurso a outros tipos de
“matérias-primas” para fundamentar a tentativa de (re)
formulação da teoria política marxista que era o núcleo de seu
próprio projeto teórico original (Poulantzas, 1968: p.: 18)80 Assim,
longe de propor um “retorno (exegético) a Marx”, da mesma
maneira que seu inspirador mais imediato, Louis Althusser, o autor
reconhecia e afirmava de forma explícita as deficiências e os
limites do esquema analítico e do método de exposição
elaborados pelos clássicos do marxismo (embora, naturalmente,
estas referências se constituam em ponto de partida de qualquer
reflexão que se propusesse a permanecer dentro do campo
teórico marxista), assim como a necessidade de um diálogo
teórico-metodológico franco e aberto com as diferentes correntes
da análise política produzidas no ambiente acadêmico de então81.
à frente. Alguns dos subgrupos desse campo intelectual mais geral são a análise sistêmica de David Easton, o pluralismo elitista de Robert Dahl e Seymour Martin Lipset, o modelo cibernético de Karl
Deutsch, a teoria do “governo comparado” e do desenvolvimento político de Gabriel Almond. Esses
autores, fortemente influentes no mainstream da produção acadêmica norte-americana até meados dos anos 80, foram sendo progressivamente substituídos ao longo dos anos 1990 por outros paradigmas tais
como a teoria da escolha racional, a public choice e as diversas vertentes do neoinstitucionalismo que
não demonstram a mesma preocupação em vincular o estudo dos processos políticos com processos
que se dão em sistemas sociais mais abrangentes.
80 Relembre-se de passagem que esta era uma postura simetricamente oposta à de analistas como Ralph
Miliband, que consideravam que os fundamentos de tal teoria já estariam contidos nas obras originais dos “clássicos” do marxismo, sendo a principal tarefa dos marxistas contemporâneos efetuar o “teste
empírico” de tais princípios na análise das sociedades capitalistas visando a desmistificar a visão das
democracias modernas presentes nas obras dos “pluralistas” (Cf. MILIBAND, POULANTZAS & LACLAU, 1988).
81 Já no início Poulantzas de seu livro afirma em relação às obras contemporâneas de Ciência Política
que “o caráter ou a natureza marxista ou não marxista dessas obras de modo algum constitui ─ no estágio atual de investigação e no que diz respeito à sua tomada em consideração como matéria-prima
de investigação ─ um critério pertinente de sua seriedade ou não seriedade”. Em seguida, enfatiza que
“recorremos com freqüência a obras em língua inglesa ─ inglesas e americanas ─ ”, censurando ainda o “provincianismo característico da vida intelectual francesa, da qual uma das características ─ e não a
menor ─ consiste muitas vezes em arrombar portas abertas, isto é, em acreditar serenamente na
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
141
Nesse sentido, um dos elementos constitutivos a nosso ver
mais importantes de Poder Político e Classes Sociais é a tentativa
do autor de renovar a teoria política marxista a partir do diálogo
crítico com alguns dos principais paradigmas analíticos que
compunham a corrente dominante da teoria política de então,
menos do que através do recurso a um “retorno a Marx” ou a um
simples trabalho de explicitação e extração teórica de elementos
que já estariam contidos, de maneira aplicada (ou em “estado
prático” segundo o jargão utilizado), nas obras clássicas do
marxismo. Apenas à guisa de exemplo, podemos mencionar como
resultados analíticos (ou seja, teóricos, históricos e empíricos)
fecundos obtidos por Poulantzas a partir de seu diálogo com outras
perspectivas de análise os seguintes: a) sua teoria do Estado
Capitalista e o conceito de burocratismo, formulados a partir de
um diálogo crítico com a teoria da dominação racional-legal e a
sociologia da burocracia originalmente elaboradas e aplicadas em
análises históricas por Max Weber, Reinhard Bendix, dentre outros
autores; b) suas concepções de estratificação social, classes sociais
e o esboço de uma sociologia dos grupos de intervenção política,
elaboradas a partir do confronto explícito e sistemático com outras
concepções não necessariamente de inspiração marxista, tais
como a sociologia das elites, o funcionalismo conflitualista de Ralph
Dahrendorf, dentre outros autores; c) suas concepções sobre forma
de Estado, regime político e democracia, formuladas a partir de
um confronto crítico com as idéias de Maurice Duverger, um dos
principais expoentes do institucionalismo constitucionalista francês
de então.
Ou seja: qualquer leitura, por mais superficial que seja, dos
textos da “primeira fase” da elaboração teórica poulantziana,
perceberá facilmente que um dos principais elementos do
processo de reflexão teórica e de exposição analítica do autor, era
a tentativa de estabelecer um diálogo sistemático com outros
paradigmas de análise política, dentro dos quais devemos
destacar a “sociologia política norte-americana”. Esse papel
destacado do diálogo com a sociologia política funcionalista nas
obras iniciais de Poulantzas não é casual dado que, apesar das
diferenças substanciais entre os projetos teóricos (ou seja, aquele
que derivava do estrutural-marxismo “althusseriano", por um lado, e
do funcionalismo sistêmico parsoniano, de outro), existem a nosso
originalidade de uma produção teórica, quando esta já se encontra mais elaborada em outros autores estrangeiros” (p. 18).
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
142
ver vários pontos de contato e de interseção teórica entre os
sociólogos funcionalistas norte-americanos e o projeto teórico
original de Poulantzas (tais como a tentativa de elaborar uma
definição geral e “supra-modal” de poder e de política,
concepção de estrutura como o sistema de valores, de motivações
e de normas que orientam a conduta humana ou “as práticas”
reprodutivas, acionalismo interacionista e perspectiva de análise
estruturo-funcional, uso dos conceitos de sistema e de equilíbrio,
dentre outros). Assim, apesar das declarações formais em contrário,
e da tentativa freqüente de se demarcar desse campo teórico,
existem pontos de contato entre estes dois paradigmas que a nosso
ver, salvo raras exceções, ainda não foram devidamente
explorados pelos comentadores da obra poulantziana82.
O objetivo desse texto é recuperar sumariamente algumas
das dimensões desse diálogo, que a nosso ver é de fundamental
importância para a compreensão e, mais importante, para a
restauração, em novas bases, no projeto estrutural-marxista
poulantiziano original83. Para cumprir tal meta, organizaremos nossa
exposição da seguinte forma: a) na primeira parte do texto,
procuraremos reconstituir sumariamente a problemática teórica da
“sociologia política norte-americana” a partir da análise das obras
de alguns de seus autores mais representativos; b) na segunda
parte do texto, buscaremos reconstituir sumariamente os termos do
diálogo crítico empreendido por Poulantzas com estes autores,
tomando por base os seguintes problemas fundamentais de análise
política: (i) Concepção geral de poder e de política; (ii) Definições
gerais de Estado e da interação entre os níveis da totalidade social
82 De nosso conhecimento, uma das poucas tentativas sistemáticas de cotejar as semelhanças e diferenças entre os modelos estruturo-funcionais elaborados por “parsonianos” e “althusserianos” é o
manuscrito não publicado de Erik Olin Wright e Luca Perrone (1973) e o sugestivo opúsculo de
Maurice Godelier (1972). Em seu conhecido texto destinado a criticar o projeto teórico de Nicos Poulanzas, David Easton aponta en passant algumas semelhanças entre estes paradigmas de análise,
como se isso fosse, por si só, algum demérito para os estrutural-marxistas, mas não se aprofunda no
tema (Easton, 1981: p. 137). Autores como Merton e Lipset tentaram explorar algumas semelhanças entre estes paradigmas, mas ao que parece com a intenção algo maquavélica de subsumir a teoria social
e da história marxistas em alguma variante de funcionalismo, o que não é propriamente o escopo deste
texto, esclareçamos desde já (cf. MERTON, 1979; LIPSET, 1992: p. 25-70).
83 Devemos insistir uma vez mais para evitar ambiguidades: referimos-nos aqui a uma “restauração” de
um projeto teórico porque, conforme fica claro para aqueles que tiverem a paciência de executar o tour
de force que é o de percorrer todas as páginas de Poder Político e Classes Sociais, o projeto teórico de Poulantzas nessa obra vai muito além de elaborar uma teoria do Estado capitalista e de “trazer o Estado
de volta para a teoria”, como é enfatizado por uma certa grade de leitura que consideramos bastante
empobrecedora do projeto “poulantizano” original, para não dizer de seus desdobramentos e metamorfoses posteriores.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
143
e do papel do desempenhado pelo nível político nesse processo;
(iii) concepção de classe social e esboço de uma sociologia dos
grupos de intervenção política; (iv) O conceito de “poliarquia” e o
problema de uma teoria das “formas de governo”.
A hipótese ou proposição básica subjacente a este esforço
de reflexão é o de que, apesar da retórica pedregosa e do
vernáculo pouco atrativo de alguns dos textos poulantzianos, há
um “núcleo racional” das propostas analíticas do “primeiro
Poulantzas” que, a nosso ver, ainda hoje pode ser recuperado de
forma estimulante por aqueles que buscam trabalhar no campo
teórico da análise política marxista “empiricamente orientada”, e
não apenas no nível da análise macro-sociológica global ou da
elaboração de um discurso crítico-“normativo” contra o que seus
elaboradores julgam ser o “capitalismo”.
Assim, o objetivo central desse texto não é o de efetuar
(mais) uma exegese que replique o estilo algo confuso e as
imprecisões e oscilações terminológicas existentes nas obras
originais de N. Poulantzas. Ao invés disso, e seguindo em parte as
lições dos próprios althuserianos iniciais, faremos uma leitura seletiva
e instrumental das próprias formulações e hipóteses deste autor a
fim de reter alguns elementos teóricos que consideramos mais
produtivos para o desenvolvimento de uma sociologia política
estrutural-marxista “empiricamente orientada”.
A PROBLEMÁTICA TEÓRICA DA “SOCIOLOGIA POLÍTICA
NORTE-AMERICANA”: PLURALISMO, SISTEMA POLÍTICO E A
PLATAFORMA DE UMA “MICROSSOCIOLOGIA DO PODER”
EMPIRICAMENTE ORIENTADA
Para os fins da presente análise, podemos definir como
elementos fundamentais da sociologia política norte-americana ou
funcionalista (tanto em sua versão funcionalista original, formulada
por Talcott Parsons, como em suas variantes sistêmico-cibernética e
pluralista (formuladas respectivamente por David Easton e Karl
Deutsch, por um lado, e Robert Dahl e S. Martins Lipset, de outro), as
seguintes idéias e teses fundamentais que, a nosso ver, dão uma
certa unidade a esse campo teórico, possibilitando falar de uma
“problemática da sociologia política norte-americana” (ou
funcionalista) propriamente dita84:
84 Segundo Althusser (desconheço citação de fonte precisa), o conceito de problemática foi criado por
Jacques Martin para caracterizar o conjunto de questões mais gerais que dá unidade a um determinado
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
144
(1) Em primeiro lugar, podemos identificar como aspecto
comum do projeto teórico destes autores a tentativa de
empreender uma reflexão sistemática e “empiricamente
orientada” (ou seja, vinculada a uma preocupação com a
aplicação de modelos teóricos em análises e pesquisas empíricas,
não necessariamente vinculado a um discurso prescritivo sobre a
realidade social) de conceitos gerais que fazem parte de qualquer
comunidade ou coletividade política, inclusive as sociedades tribais
ou comunitárias primitivas, e não apenas das sociedades
modernas, complexas ou com-Estado, que caracterizam a história
humana escrita85.
Assim, é um elemento comum subjacente à reflexão de
todos estes autores a preocupação em definir de maneira
consistentemente lógica e sistemática conceitos gerais tais como
os de “poder”, “política”, “autoridade”, “integração”, “influência”,
“recursos políticos”, “decisão”, “controle”, “dominação”,
“interesse”, “elites”, “governo” etc., a fim de que o analista político
orientado e inspirado por este paradigma pudesse concretamente
identificar, seja ao nível da sociedade global, seja ao nível das
micro-coletividades humanas, os atores, grupos e processos nos
quais estes conceitos políticos gerais pudessem ser aplicados e
utilizados na formulação e pesquisa de problemas de análise
política.
(2) O segundo elemento teórico a nosso ver comum à obra
destes autores, e relacionada a essa preocupação em elaborar
uma teoria geral da política que abarcasse vários tipos históricos de
sociedade humana, é a incorporação sistemática do conceito de
sistema político como um subsistema de um sistema social mais
paradigma de resolução de problemas teóricos. Diga-se de passagem que um desdobramento lógico
não muito explorado do conceito de problemática é o de que ele permite instaurar um diálogo cooperativo e não somente uma relação de “soma-zero” entre os diversos paradigmas de análise
política, como é o caso do próprio Poulantzas, que ao longo de todas as suas obras foi pródigo em
elaborar tentativas de incorporações heterodoxas (embora não ecléticas) de elementos parciais de análise política de outras perspectivas para desenvolver aspectos parciais de seu próprio modelo teórico
mais geral.
85 Salvo engano, esse projeto é particularmente claro nas obras de Parsons (1966) e Lasswell & Kaplan
(1979), onde a preocupação em elaborar conceitos e modelo teóricos para análise de processos e
comportamentos políticos que abrangessem também as sociedades tribais “sem-Estado” e instituições não-estatais é mais evidente. Como bem acentuam estes autores, a finalidade heurística deste
procedimento não é necessariamente a de instaurar uma nova filosofia da história baseada nas noções
de “progresso” ou “fim da história”, mas sim a de elaborar alguns parâmetros analíticos de alto grau de abstração que possibilitem uma análise comparativa sistemática do funcionamento dos sistemas
políticos nos diferentes tipos históricos de sociedade (ALMOND, 1972).
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
145
amplo8611, com a correlata rejeição teórica do conceito de Estado
como elemento central e mais abstrato para a elaboração de
análises políticas sistemáticas. As razões (teóricas) aduzidas por
cada um dos representantes deste paradigma para a rejeição do
conceito de Estado são de natureza distinta: ora pela confusão e
falta de precisão do conceito em si (EASTON, 1981), ora pelo fato
dele não abarcar os processos políticos que se davam em
coletividades humanas primitivas onde inexistia Estado, tais como
as sociedades comunitárias tribais (PARSONS, 1966), ora pela sua
pouca aplicabilidade em análises concretas de processos
decisórios de “governo comparado” e de desenvolvimento
político, que tornam necessárias a incorporação de outras variáveis
de menor nível de abstração para o mapeamento mais detalhado
das diferenças sincrônicas e diacrônicas do desempenho de várias
funções pelos diferentes sistemas políticos (ALMOND et. al., 1972).
Frise-se aqui que, não obstante ser forte a ênfase manifesta
da maior parte desses autores na rejeição do uso do conceito de
“Estado” como conceito mais abstrato e geral para a definição do
objeto de uma ciência política, parece haver uma oscilação entre
estes autores (e também entre comentadores-críticos ou
aplicadores do modelo funcionalista) no tocante ao grau de
compatibilidade teórica entre os conceitos de sistema político e de
Estado: enquanto uns admitem a possibilidade de enfocar o Estado
como um dos subsistemas institucionais integrantes do sistema
político da sociedade global, instituições estas possuidoras de um
atributo ou conjunto de atributos que justificam um tratamento
próprio e diferenciado do conjunto de instituições que delem
fazem parte (JAGUARIBE, 1973; MILIBAND, 1982), outros analistas
postulam veementemente a incompatibilidade radical ou a mútua
excludência entre estes dois conceitos (EASTON, 1981)87.
86 Não entraremos aqui no espinhoso tema das interações (ou falta de) estabelecidas pelos sociólogos políticos funcionalistas entre o subsistema político e os outros subsistemas que formam os sistemas
sociais mais amplos. Importa sublinhar aqui somente que esta interação é frequentemente postulada por
esta corrente de análise política, pelo que o campo da ação política não é visto como um nível inteiramente autônomo de atividade social e desvinculado de outros níveis de uma totalidade social
mais abrangente.
87 Essas duas posições podem inclusive coexistir num mesmo texto como, por exemplo, no texto de David Easton já citado. Embora num certo momento o autor admita a possibilidade de uma
coexistência pacífica entre os dois conceitos, inclusive citando elogiosamente Ralph Miliband por
tentar compatibilizar as duas abordagens através da formulação de seu conceito de “sistema estatal”, por outro lado declara uma espécie de guerra sem tréguas ao conceito (e às teorias) de Estado
(EASTON, Op. Cit.: p. 143-145), exortando os marxistas e os demais analistas a “abandonarem o
conceito de Estado” (sic., p. 144) em detrimento do conceito de sistema político. Sublinhe-se também que há diferenças significativas entre o conceito de sistema político, assim como da definição do
próprio objeto da atividade política entre estes vários autores, mas será impossível explorar estes
pontos nos limites deste artigo.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
146
(3) Ao lado dessa dissolução do Estado como elemento
nuclear e mais geral de uma teoria da política podemos detectar
uma concepção “pluralista” do exercício do poder político nas
várias sociedades, especialmente nas modernas democracias,
onde o poder político seria exercido de maneira difusa e
desconcentrada. O exercício do poder político não estaria referido
assim a nenhum centro integrador (supostamente o Estado) que
concentrasse maior parcela de poder ou que possuísse uma
superioridade hierárquica normativa sobre as diferentes instituições
ou níveis onde se exerce o poder político e o poder social, mas
estaria “difuso” por diversas instituições. Teríamos no máximo o
“governo” como um ente ou uma entidade neutra sendo
disputado por vários atores, grupos e instituições sociais. Assim, ao
invés de um Estado formado por um grupo de agentes
autonomeados e não-eletivos, o que podemos observar nas
sociedades modernas são diversos tipos de “governos”, uma
instituição entre outras do sistema político mais amplo, e sujeito a
uma multiplicidade de pressões conflitivas por parte de grupos e
interesses organizados, não demonstrando nenhum tipo de viés
invariante em relação a determinado estrato ou grupo enraizados
em outras esferas da vida social (MILIBAND, 1982: 14).
Outro elemento teórico relacionado a essa dissolução do
Estado como ente institucional nuclear e mais geral de uma teoria
da política, especialmente das sociedades contemporâneas, é a
proposta de efetuar/elaborar uma micro-sociologia política do
poder empiricamente orientada que sirva de base para análises e
pesquisas concretas de relações de poder e de processos de
tomada de decisão também no plano micro, e não apenas na
sociedade global, na medida em que o exercício do poder político
e a estruturação dos sistemas de dominação está pluralisticamente
difusa e distribuída por vários níveis sociais (DAHL, 2005).
(4) Por fim, podemos definir como último elemento comum
e mais geral subjacente à obra destes autores, qual seja, a
proposta de estabelecer critérios de comparação entre os
diferentes sistemas políticos de acordo com o grau ou a
intensidade da dispersão ou concentração dos recursos de
exercício do poder político pela pluralidade de elites em diferentes
tipos de sociedade. Haveria assim um continuum na distribuição do
poder político pelas várias elites e grupos que o exercem e esta
distribuição permitiria escalonar os diferentes sistemas políticos
como mais ou menos democráticos, sem que essa diferenciação
implicasse necessariamente uma ruptura institucional nas
prerrogativas de exercício de poder de um ator específico que
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
147
detivesse determinadas prerrogativas decisórias e normativas em
relação aos demais, supostamente o Estado. Assim, não haveria,
nos diferentes sistemas políticos, algo como uma autoridade
política central ou um “Estado” formado por um corpo burocrático
autonomeado e hierarquicamente organizado, cuja ruptura no
monopólio do processo decisório gerasse mecanismos de
“representação política” ou de consulta popular para a
constituição de organismo de deliberação paralelos ao sistema
institucional burocrático, mas sim “governos” que se
caracterizariam como mais ou menos “democráticos”, mais ou
menos “autoritários”, conforme o grau de “pluralismo” vigente na
distribuição de poder entre os diferentes atores que fazem parte de
uma coletividade política qualquer88.
Resumindo, temos a nosso ver os seguintes elementos mais
gerais da problemática da sociologia política funcionalista, apesar
das divergências internas entre seus vários subgrupos: (i) tentativa
de dar mais sistematicidade a conceitos gerais aplicáveis a uma
grande amplitude de coletividades e processos políticos, tanto no
nível macro como micro-social; (ii) uso do conceito de sistema
político em detrimento do de Estado; (iii) concepção pluralista do
poder e entendimento do “governo” como entidade neutra e
pressionada por diferentes grupos de interesse e elites políticas
(entendidas como a somatória de indivíduos que fazem parte das
minorias politicamente ativas nas várias esferas da vida social onde
se exerce o poder político) concorrentes entre si e em disputa pela
definição dos rumos de uma dada comunidade política; (iv) os
vários sistemas políticos podem ser classificados num gradiente
contínuo de dispersão/concentração do poder por uma
pluralidade de elites políticas, estando o caráter mais ou menos
democrático de um determinado sistema político relacionado ao
ponto em que cada sistema político se situa nesse gradiente de
dispersão e concentração de poder político.
POULANTZAS E A SOCIOLOGIA POLÍTICA FUNCIONALISTA
88 Há diferentes versões dessa teoria, desde a primeira versão proposta por Robert Dahl em Análise
Política Moderna, de escalonar os diferentes sistemas políticos segundo o grau de legitimidade, o
número de sub-sistemas e a distribuição de poder existente nos diferentes tipos de sociedade, até as versões mais recentes de distribuir os diversos sistemas políticos em dois eixos de “competição” (inter-
elites) e “participação” (elites X massas) (DAHL, 1969, 2005).
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
148
Qual seria o posicionamento de Poulantzas em relação a
cada um desses elementos da perspectiva de análise funcionalista
em suas obras iniciais? Percorrendo as páginas de Poder político e
Classes Sociais, podemos observar que Poulantzas abordou cada
um desses aspectos, muitas vezes em diálogo direto com as idéias
dos autores acima mencionados, outras vezes de forma indireta,
através da incorporação de elementos de outras problemáticas
teóricas.
Assim, podemos verificar em Poulantzas os seguintes
elementos fundamentais de sua argumentação teórica, de certa
forma homólogos aos anteriormente indicados como fazendo
parte da problemática teórica funcionalista: (i) uma tentativa de
definir certos conceitos gerais, instrumentais à sua teorização sobre
a estrutura jurídico-política do modo de produção capitalista (tais
como os conceitos gerais de poder, política, Estado em geral etc.);
(ii) justificação da importância do Estado como fator específico de
integração ou de coesão das diferentes sociedades de classe,
assim como de sua especificidade em relação a outras instituições
políticas. O aparelho de Estado passa a ser analisado como um
sistema específico de instituições (um “poder político
institucionalizado”) na medida em que possui determinadas
prerrogativas decisórias e normativas específicas em relação a
outras instituições que fazem parte do sistema político; (iii) a tese da
concentração e da interdependência entre a dominação política
e a dominação econômica, na medida em que o exercício do
poder social e do poder econômico dos proprietários é garantido
pela aplicação de um direito público de propriedade que
assegura a apropriação privada do valor agregado pelos
trabalhadores nas unidades econômicas, as quais por sua vez
garantem os recursos necessários à aquisição de status social pelos
membros da burocracia. Os grupos sociais e de intervenção
política se formam assim, nas sociedades de classe, a partir de uma
desigualdade básica na distribuição de recursos econômicos e
políticos juridicamente sancionados por uma autoridade política
central, desigualdade essa que tem efeitos cumulativos (embora
não irreversíveis) na competição entre os diversos grupos políticos
pela influência na definição dos objetivos globais de uma
determinada coletividade humana pelos detentores do poder de
Estado89; (iv) As diferentes formas de Estado e de governo, assim
89 Dessa perspectiva, o ponto de partida para a organização dos grupos de intervenção política é
formado por atores assimetricamente situados numa estrutura estratificada e juridicamente sancionada de papéis sociais, e não simplesmente pela agregação de vontades de indivíduos racionais atomizados
que formam grupos de intervenção política ad hoc para influenciar o “governo” à revelia e
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
149
como os gradientes entre o grau de autoritarismo e democratismo
dos diferentes sistemas políticos são definidos não a partir de um
continuum na distribuição de poder político de uma pluralidade de
grupos concorrentes entre si, mas a partir de uma descontinuidade
básica definida a partir da perda do controle exclusivo sobre o
processo decisório por determinado grupo de atores encarregados
de definir os objetivos globais de uma determinada coletividade
(ou seja, burocracia de carreira e suas cúpulas governantes), assim
como pela existência de mecanismos de consulta política aos
próprios agentes que são objeto de tais decisões.
Nos itens abaixo avaliaremos brevemente a reinterpretação
feita por Poulantzas de cada um dos itens que compõem a
problemática teórica da sociologia política pluralista acima
enumerados. Dada a exigüidade de espaço, teremos que enunciar
rapidamente as principais teses que defenderemos durante a
exposição, procurando responder às seguintes indagações mais
gerais: é possível a incorporação parcial de conceitos oriundos da
problemática teórica pluralista para o interior de uma reflexão
“estrutural-marxista” empiricamente orientada ou a importação de
tais conceitos provocaria desajustes “comprometedores” nessa
própria problemática? Qual a agenda de reflexão teórica e
empírica de pesquisa que se poderia derivar de um diálogo crítico
entre ambas as correntes?
a) Conceitos gerais de poder e de política
No que se refere aos conceitos gerais de poder e política,
devemos recordar que logo no início de PPCS, Poulantzas procura
efetuar um duplo movimento analítico: (i) em primeiro lugar,
elaborar conceitos gerais de poder e de política e uma reflexão
geral sobre estas noções que servissem de suporte à sua própria
proposta de definição dos elementos fundamentais da estrutura
jurídico-política e do conceito de Estado capitalista, que a seu ver
era um ponto cego na teoria marxista anterior; (ii) em segundo
lugar, efetuar uma crítica a outras concepções vigentes em outras
correntes de análise política, dentro dos quais se incluem os autores
anteriormente citados.
independente de uma estrutura de dominação subjacente garantida por uma autoridade jurídico-política
centralizada (= o Estado) .
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
150
Quais críticas que Poulantzas faz a estes autores? Quais as
soluções oferecidas por ele próprio para os problemas acima
formulados (ou seja: formulação de conceitos gerais de poder,
política, dominação, autoridade etc.) e como podemos avaliar tais
soluções?
Inicialmente, deve-se enfatizar ainda que o próprio
Poulantzas admite o caráter provisório e exploratório de suas
definições, assim como a natureza estritamente instrumental de tais
definições em relação a suas teorizações posteriores sobre a
estrutura jurídico-capitalista e o aparelho de Estado burguês: “As
análises referentes ao político em geral não aspiram senão a uma
sistematicidade relativa e de modo algum poderiam ser
consideradas exaustivas. [...] pareceu-me particularmente ilusório e
perigoso avançar mais na sistematização do político na teoria
geral, na medida em que atualmente há falta de suficientes teorias
sistemáticas regionais do político nos diversos modos de produção,
ou mesmo de suficientes teorias sistemáticas particulares dos
diversos modos de produção” (POULANTZAS, 1986: p. 24).
Tendo em vista estes esclarecimentos, seus alvos são tanto o
“historicismo” gramsciano, por um lado90, quanto (ponto que nos
interessa mais especificamente neste texto) a concepção de
político de Talcott Parsons. Como se sabe, a concepção de poder
e de político deste autor foi expressa em várias obras e encontra-se
sintetizada em seus textos de crítica à obra de Wright Mills, Elites no
Poder (PARSONS, 1960). Para este autor a esfera política ─ e o
objeto de uma ciência política autônoma, por conseguinte
─constitui-se num subsistema cuja função é integrar os elementos
analíticos de um sistema social total, embora a ação política esteja
simultaneamente presente em várias esferas de ação, sendo
responsável pela definição dos objetivos coletivos e pela
“integração” dos subsistemas em vários níveis da atividade social
(PARSONS, 1970: p. 96). Sendo assim, o poder político não seria uma
relação de “soma-zero” entre os diferentes atores (como querem
os elitistas monistas), nem um nível de atividade relacionado à
definição dos objetivos globais de uma coletividade territorial, mas
um fenômeno que estaria “difuso” por toda sociedade onde
houvesse definição de objetivos por determinadas associações
estáveis.
90 Embora se refiram constantemente à problemática “historicista” em seus vários textos, não
conseguimos encontrar uma definição precisa do termo entre os “althuserianos”. Podemos inferir,
entretanto, que se trata de uma concepção que vê a história como um fluxo contínuo e evolutivo de mudanças sociais, não buscando construir modelos de estrutura que apreendam eventuais regularidades
que imponham limites normativos às práticas ou ações sociais dos diferentes atores históricos.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
151
Poulantzas encaminha sua crítica a essa concepção de
Parsons efetuando a operação analítica de identificar a
superestrutura política dos diferentes modos de produção e
formação social ao poder institucionalizado do Estado, e a associar
a atividade política apenas a ações sociais ou práticas que se
relacionam ao Estado, enunciando a definição segundo a qual a
política é a ação social ou a “prática que tem por objeto o
momento atual, que produz as transformações ou a manutenção
de uma formação na medida em que tempo por objetivo
estratégico específico as estruturas políticas do Estado” (Op. Cit. p.
41).
Ora, a solução dada por Poulantzas ao problema ─ ao
restringir a atividade política em geral àquelas práticas que se
relacionam a preservação ou manutenção de um determinado
tipo de Estado, distancia-se de uma grande vertente da tradição
marxista cujo núcleo é exatamente o de dissociar a atividade
política do Estado sentido estrito do termo91.
Mas qual o argumento dado por Poulantzas para restringir a
política apenas àquelas atividades que se relacionam de alguma
maneira com o poder institucionalizado de Estado? Para Poulantzas
o Estado é o objeto privilegiado da política por possuir a função de
manter a coesão de uma determinada formação social em uma
sociedade dividida em classes ou, para usar a expressão de
Poulantzas, como “fator regulador do equilíbrio global de uma
formação social enquanto sistema” (Op. Cit. p. 16).
A nosso ver, são bastante insatisfatórios os termos pelos quais
Poulantzas equaciona o problema, pois ele sequer tangencia duas
questões tradicionalmente abordadas pela teoria política marxista,
de forma razoavelmente sistemática, mesmo em algumas obras
clássicas de análise política marxista do século retrasado: a) A
possibilidade de formas de exercício do poder político e de
91 Apenas a título de exemplo, um dos pontos altos do livro clássicos de Engels sobre as sociedades
tribais é o da reconstituição da dinâmica de organização das instituições políticas e da relação entre
elites dirigentes (chefes e conselheiros tribais) e os cidadãos comuns da tribo que configuravam os sistemas político-jurídicos das sociedades comunitárias primitivas (Engels, Origem da Família: p.
70s). Dentre estes elementos do exercício da atividade política nas sociedades sem Estado enumerados
por Engels, podemos mencionar: a) todos os homens e mulheres que participam dos assuntos comunitários tribais têm direito de eleger o chefe; b) a gens pode depor à vontade o sachem e o chefe
militar; c) cada gens tem uma “assembléia democrática de seus membros adultos, homens e mulheres,
todos com o mesmo direito de voto”. Esta assembléia é o “poder soberano da gens” (p. 72); d) o conjunto das gens formava uma tribo, integrada por determinadas instituições (os conselhos de tribos)
que se constituíam no fator de coesão de coordenação de várias gens territorialmente dispersas; e) essa
sistema jurídico-político assegurava a participação da maior parte dos membros da coletividade nas decisões públicas e na seleção das elites governantes, configurando um sistema político caracterizado
por Engels como uma “democracia gentílica” ou tribal.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
152
existência de um ordenamento normativo (ou “sistema de direitos e
deveres”, para usar a expressão de Engels) em situações em que
inexiste “dominação de classe” no sentido marxista do termo, ou
seja, situações de exploração e apropriação dos frutos do valor
agregado pelo trabalho humano por terceiros que não aqueles
que participam diretamente do esforço coletivo da execução das
tarefas no processo de trabalho; b) a possibilidade de formas de
exercício do poder ou influência política que não sejam
necessariamente exercidos através da mediação do aparelho de
Estado, ou que não sejam necessariamente referidas ao aparelho
de Estado.
Também em relação ao conceito geral de poder proposto
por Poulantzas, o diálogo com os sociólogos políticos funcionalista
desempenha um papel fundamental (POULANTZAS, 1986: p. 103):
Poulantzas critica as definições de Laswell (poder como
participação no processo decisório), de Weber (poder como
“probabilidade” de imposição de vontade mesmo contra a
resistência de terceiros) e de Parsons (poder como capacidade de
executar funções em proveito de um dado sistema social). No cap.
3 de seu livro, Sobre o conceito de poder elencará vários
“elementos do poder” e enunciará seu próprio conceito de poder
como: “a capacidade de uma classe [ou grupo] social de realizar
seus interesses objetivos” (p. 103) em vários níveis da prática social
(pelo que o poder se desdobraria em poder econômico, social,
político etc.). Também aqui, são a nosso ver insatisfatórios os termos
pelos quais Poulantzas resolve o problema, ao não: a) diferenciar o
poder de outros tipos de imposição de vontade ou de
“capacidade de realizar interesses objetivos”, tais como as relações
de influência, dominação e autoridade; b) elaborar uma reflexão
sistemática sobre a especificidade do poder político em relação a
outras modalidades de exercício do poder; c) definir o objeto do
“político” e, por conseguinte, de sua sociologia política a partir de
tal operação.
b) Estado, sistema político e totalidade social
As principais proposições da sociologia política de origem
funcionalista sobre as relações entre os conceitos de sistema
político e de Estado estão expostas de forma provocativa no
conhecido ensaio de David Easton sobre “o sistema político sitiado
pelo Estado”. Como é sabido, neste artigo Easton explicita as
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
153
motivações mais íntimas que o levaram a formular o conceito de
sistema político em substituição ao conceito de Estado, e não
como um complemento a este, e exorta os analistas políticos a
abandonarem o conceito de Estado sob os seguintes argumentos:
a) o Estado é um “instituição” ou, mais precisamente, um sistema
hierarquicamente organizado de instituições, que não pode ser
definido de forma rigorosa nem desempenha nenhuma função
específica em outras esferas da vida social; b) o Estado não possui
nenhum atributo ou conjunto de atributos que os diferencie das
demais instituições do sistema político; c) a ênfase exclusiva no
Estado como ator político relevante cria obstáculos metodológicos
à uma análise política “empiricamente orientada” ao
desconsiderar a importância de outros atores, instituições e
comportamentos políticos que também participam da ou
influenciam a busca de objetivos e a “alocação autoritária de
recursos” por parte de uma coletividade territorial específica.
No tocante ao primeiro argumento de Easton, podemos
afirmar que ele não procede, já que o “primeiro Poulantzas” é
razoavelmente claro em definir o conceito de Estado como o
conjunto de atores, instituições e aparelhos hierarquizados (ou seja,
responsáveis perante um superior funcional e não perante comitês
eletivos organizados pela sociedade), responsáveis pela
implementação de decisões e pela definição dos objetivos globais
e pela manutenção da “coesão” de uma determinada
coletividade humana cindida em “classes sociais”, e que dispõem
(atores, instituições e aparelhos) de recursos administrativos e
jurídicos para tornar tais comandos e decisões obrigatórias e
imperativas para o conjunto da coletividade sob jurisdição daquele
corpo de funcionários92. No caso do Estado Capitalista moderno,
seriam o conjunto de instituições organizadas segundo o princípio
do burocratismo, ou seja, sob princípios universalistas e submetidos
à hierarquia burocrática que fariam parte do aparelho de Estado.
Por motivos semelhantes, consideramos não ser pertinente a
segunda crítica de Easton, na medida em que, para Poulantzas, o
Estado possui um conjunto de atributos que o diferenciam das
demais instituições políticas e estes atributos estão relacionados
justamente à sua capacidade ou atributo de implementar normas
e políticas de governo a imperativas a toda uma coletividade
92Instituições e atores cujos comandos e ações não fossem devidamente autorizados por uma dada
coletividade para aplicar normas gerais e implementar políticas de governo em nome de um ente
público não fariam assim parte do aparelho de Estado (é o caso de Igrejas, escolas privadas, empresas privadas, partidos políticos, sindicados e outras associações do gênero, cujo caráter “público” não se
impõe à maioria de uma coletividade).
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
154
territorial. Como indicado pelo próprio Easton, a definição de
Poulantzas nesse aspecto específico talvez se assemelhe mais à do
jurista austríaco Hans Kelsen, embora esteja ausente neste autor a
preocupação em estabelecer uma relação invariante entre o
exercício do poder estatal e um determinado tipo ou modalidade
de dominação social, como o fazem Poulantzas e os marxistas de
uma maneira geral.
No tocante ao terceiro argumento de Easton, ele a nosso
ver procede. Os modelos de análise centrados no Estado
geralmente relegam a segundo plano, quando não a plano
irrelevante, os processos e comportamento políticos não
diretamente vinculados ao exercício do “poder de Estado” ou à
alocação imperativa de recursos por um grupo administrativo não-
eletivo em escala global, configurando-se na prática como um
obstáculo metodológico à dinamização da investigação sobre tais
domínios por analistas que reconhecem o Estado como um fator
importante mas não o único para a compreensão das estruturas de
poder e de dominação nas diferentes sociedades. Sendo assim,
faz-se mister integrar o conceito de Estado a outros conceitos que
permitam apreender estas outras dimensões da atividade política
dos diferentes agentes, e que transcendem o aparelho de Estado
no sentido estrito do termo.
c) Classes, grupos e elites: esboço de uma sociologia dos
grupos de intervenção política
Em relação a este tópico específico, o ponto de partida de
Poulantzas também é o confronto/diálogo com diversas outras
perspectivas de análise que abordam o problema, dentre os quais
devemos destacar a teoria das elites. Compreenderemos melhor a
crítica poulantziana à teoria das elites, a partir de uma afirmação
efetuada pelo autor no famoso “debate” Miliband X Poulantzas.
Como se sabe, um dos temas fundamentais aventados neste
debate foi justamente o do emprego do termo “elite” e de
elementos parciais desse paradigma para a constituição de uma
sociologia política marxista e para a explicação dos nexos que se
formam entre os detentores do poder político e os membros da
classe dominante.
Para Miliband, o recurso a elementos da teoria das elites era
fundamental para se explicar a natureza de classe do Estado
Capitalista, enquanto para Poulantzas as funções invariantes do
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
155
Estado Capitalista deveriam ser explicadas não a partir das
características sociológicas dos indivíduos que dele fazem parte,
mas a partir dos padrões prescritivos institucionalizados (de
natureza análoga ao habitus de Bourdieu) que estruturam a
organização dos vários ramos do aparelho de Estado, bem como
organizam os vínculos de identidade simbólica que entre si mantém
os altos burocratas e os gestores das empresas, ambos interessados
na manutenção de um padrão “piramidal” e “autoritário” de
gestão das organizações (seja este padrão escravocrata, tributário,
patrimonial, feudal, gerencial ou burocrático-moderno).
No tocante à posição de Poulanzas em relação ao elitismo
pluralista é expressa com bastante clareza na seguinte passagem e
em outras do famoso debate: “O que Miliband omite é a
necessidade de uma crítica da noção ideológica de elite a luz dos
conceitos da teoria marxista. Se esta crítica tivesse sido feita,
resultaria evidente que a “realidade concreta” ocultada pela
noção de “elites plurais” ─ a classe dominante, as frações de
classe, a classe hegemônica, a classe governante, o aparelho de
Estado ─ somente se pode compreender se rechaça a própria
noção de elite. Já que os conceitos e noções nunca são inocentes
e, se empregamos as noções do adversário para responder-lhe,
legitimamos estas noções e permitimos sua persistência.”
A nosso ver, o debate que se pode desenvolver a partir
dessa posição de Poulantzas envolve pelo menos três níveis de
análise que são frequentemente amalgamados pelos vários
pesquisadores que abordam o tema: a) a questão dos
determinantes das funções invariantes do aparelho de Estado,
especialmente do Estado Capitalista, bem como dos vínculos de
identidade e solidariedade simbólica e material que entre si
mantém os burocratas e os gestores das organizações econômicas,
segundo os “estruturais-marxistas”; b) a questão dos conceitos e
modelos teóricos destinados a analisar os processos decisórios nas
sociedades capitalistas bem como dos determinantes do campo
de variação no conteúdo das decisões políticas contidos nos limites
da reprodução de um determinado sistema social ou modo de
produção específico; c) a questão do emprego puro e simples,
dentro do campo teórico marxista, da expressão ou do conceito
de “elite” desvinculado da problemática original formulada pelo
“maquiavélicos” clássicos que deu origem aos conceitos de “elite”
e “massa” (que, como se sabe, são: pessimismo sociológico,
psicologia de massas, fetiche pelos ocupantes de cargos em
detrimento do conteúdo das decisões substantivas por ele
tomadas, estabelecimento de uma relação de manipulação
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
156
estratégica e não de “confiança” ou de “representação” entre
elites dirigentes ou minoria politicamente ativas e as “massas” nas
várias dimensões de seu comportamento político).
No tocante ao primeiro problema, como já observamos
para o caso específico do Estado Capitalista, Poulantzas elabora o
conceito de burocratismo, que consiste num padrão regular de
valores, comportamentos e de normas (ou seja, um “habitus”) que
enquadra o funcionamento do aparelho de Estado burguês e que
determina que os funcionários envolvidos nesse campo de
atividade social adotem via de regra práticas homólogas àquelas
adotadas pela gestão das organizações no sistema econômico
capitalista: a) recrutamento e hierarquização pelo critério
manifesto do mérito ou competência individual; b) tratamento
formalmente igual aos desiguais; c) adoção de práticas e atitudes
de ocultação do saber burocrático. Essas práticas homólogas dão
origem a relações de identidade e solidariedade simbólica e
material entre os proprietários de produção e os burocratas,
independente das características sociográficas destes últimos, na
medida em que os gestores das organizações (enquanto agentes
desempenhantes de papéis, ou seja, “suportes” de estruturas, e
não enquanto capitalistas individuais ─ cujo comportamento pode
muito bem ser desviante em relação ao padrão imposto pelas
representações coletivas) possuem interesse na manutenção do
status dos burocratas estatais (na medida em que é dele que
deriva a aplicação de um direito de propriedade responsável pela
instauração de seu predomínio na hierarquia das organizações),
enquanto estes via de regra são solidários aos padrões piramidais
de gestão das organizações adotados pelas firmas capitalistas
públicas ou privadas (na medida em que possuem a percepção
de que um processo de apropriação coletiva dos recursos
econômicos e de gestão transparente das unidades produtivas
podem vir a desencadear um processo que ponha em cheque os
valores da distinção burocrática). Ora, essa correspondência entre
dois níveis de habitus ocorre independentemente das
características do recrutamento da burocracia, sendo
determinada pelos processos de ressocialização simbólica e de
inserção nas carreiras profissionais por que passam os funcionários
administrativos do Estado Capitalista em suas trajetórias
profissionais, motivo pelo qual consideramos infudados os
argumentos de Miliband nesse aspecto específico93.
93 Havendo “hiperdeterminismo estrutural” apenas no caso de as relações de propriedade serem relações entre pessoa e coisa sempre sancionadas ex-post pela autoridade política central, e não
relações sociais entre seres humanos desempenhantes de papéis sociais e sancionadas por um
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
157
No que se refere ao segundo ponto, Poulantzas se
envolverá num hercúleo trabalho de elaboração terminológica,
caracterizando os seguintes grupos de intervenção política para
distingui-los dos atores amalgamados pela expressão “elites
políticas”: frações de classe; categorias sociais; classe reinante;
classe dominante; classe detentora; categoria social, camada etc.
Ora, a nosso ver, a tipologia elaborada por Poulantzas não esgota
todas as possibilidades de mapeamento dos atores relevantes que
atuam em um determinado sistema político.
Por exemplo, podem existir pequenos grupos específicos de
vanguarda vinculados aos grupos sociais mais abrangentes
enumerados por Poulantzas, ou mesmo determinados grupos focais
de intervenção política (e. g., membros de um parlamento, elites
dirigentes sindicais, cúpulas dirigentes de determinadas
associações, minorias politicamente ativas de determinados
estratos sociais e grupos de interesse etc.), aos quais se pode no
nosso entender empregar a expressão “elites” para qualificá-los,
sem necessariamente violentar a problemática teórica da
dominação de classe dos estruturais-marxistas, nem trazer para
dentro dessa problemática todo o pacote de proposições dos
maquiavélicos originais. Trata-se de um preciosismo terminológico
que desestimula a pesquisa empírica, e a reflexão mais sofisticada
sobre as formas de intervenção e sobre as motivações dos
diferentes atores que interagem num dado sistema político94.
d) Formas de governo e “poliarquias”
A esse respeito, e para sermos breves, deve-se observar que,
embora alguns comentadores da teoria política marxista afirmem o
contrário (BOBBIO, 1976, THERBORN, 1997), a preocupação com o
problema das “formas de governo” e com os diferentes formatos
institucionais e organizacionais através dos quais se concretiza a
dominação política “de classe” sempre foi uma questão central da
teoria política marxista. Esse também foi o caso de Nicos Poulantzas
ordenamento normativo imposto por um aparelho burocrático autorecrutado que os constituem em
pessoas jurídicas. Além do mais, as regras do burocratismo e de outros padrões de organização de autoridade política central são normas de conduta que cabe a cada ator específico decidir seguir ou não,
sabendo-se é claro das conseqüências advindas de sua não-obediência às mesmas.
94 Procuramos concretizar alguns aspectos da plataforma acima exposta, coqueteando com o conceito de elite ─ e não rejeitando-o liminarmente ─ a partir de uma perspectiva mais geral “estrutural-
marxista” em BRAGA (2002).
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
158
que, em várias de suas obras abordou o assunto, o que nos autoriza
mesmo a afirmar que este foi um dos elementos centrais de suas
preocupações ao longo de sua trajetória (POULANTZAS, 1968; 1970;
1975). Em que consistem as principais contribuições do autor ao
tema e qual o tipo de diálogo travado com a sociologia política
funcionalista sobre o assunto?
As principais contribuições poulantzianas à teoria da
democracia derivam da proposição central de seu modelo teórico
segundo o qual, nas sociedades fundadas na exploração do
trabalho, o aparelho de Estado é uma instituição central de poder,
pelo conjunto de motivos anteriormente enumerados (garantia de
um direito de propriedade que sanciona juridicamente a relação
de apropriação do sobretrabalho; concentração das prerrogativas
de promoção de uma alocação “autoritária” de recursos que
vincula toda uma formação social a partir da aplicação de normas
gerais implantadas através de mecanismos “top down” de
execução de decisões). Sendo assim, nos vários tipos de Estado
existentes ao longo da história da humanidade (escravista,
tributário, feudal-patrimonial, burocrático-moderno) o centro do
poder político é constituído sempre por um corpo administrativo
não-eletivo (i. e. a burocracia estatal de carreira, em suas várias
modalidades) que concentra as prerrogativas de governo em uma
determinada coletividade. A democracia passa a existir justamente
quando um corpo eletivo com efetivo poder decisório (um
parlamento, Executivos eleitos, corporações, parlamentos feudais,
assembléias de cidadãos livres etc.) rompe esse monopólio de
poder do quadro administrativo estatal (ou o reduz drasticamente
no caso das sociedades dominadas por instituições públicas não-
estatais), partilhando com esse corpo administrativo, em níveis
variáveis de intensidade, a prerrogativa de implementar políticas
alocativas globais ou políticas de governo.
Assim, o primeiro aspecto que devemos observar na crítica
poulantziana à teoria da democracia dos pluralistas é a existência
de uma ruptura institucional entre as formas de governo e de
gestão das organizações “autoritárias” (fundadas basicamente no
exercício do poder político por um grupo recrutado mediante
outras mecanismos que não a consulta à opinião pública), e as
formas de governo e de gestão das organizações “democráticas”
(onde existem tais mecanismos de consulta àqueles que são objeto
das normas e decisões implementadas por tais autoridades
políticas), não havendo portanto uma mera “continuidade” entre
os vários tipos de sistemas políticos como sugerem os sociólogos
políticos funcionalistas e sistêmicos.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
159
Sendo assim, para Poulantzas (assim como para outros
paradigmas de análise política, como por exemplo a sociologia da
dominação de Max Weber), o ponto de partida para a
elaboração de uma teoria da democracia deriva de sua teoria do
Estado, que é o centro de exercício do poder político nas
sociedades fundadas na apropriação privada do valor agregado
durante o processo de trabalho. Talvez seja legítimo inferir das
considerações poulantzianas que o grau de intensidade em que os
diferentes modelos de democracia se concretizam nos diferentes
tipos de sociedade correlaciona-se com o grau de intensidade de
ruptura do monopólio burocrático sobre os processos deliberativos
e a magnitude da incorporação de diferentes atores no processo
decisório global, podendo as diferentes democracias se
diferenciarem entre si conforme o maior ou menor grau de
incorporação de tais atores no sistema político global. Entretanto,
devemos admitir que, em suas obras iniciais, Poulantzas não extraiu
todas as implicações do modelo geral de tomada de decisões por
ele esboçado.
CONCLUSÕES: TRAZENDO O CONCEITO DE SISTEMA POLÍTICO
PARA DENTRO DA SOCIOLOGIA POLÍTICA ESTRUTURAL-MARXISTA
Podemos encerrar este texto fixando alguns pontos a serem
posteriormente retomados com maior grau de profundidade. A
nosso ver, o diálogo instaurado por Poulantzas entre os estruturais-
marxistas e os sociólogos políticos funcionalistas permaneceu
truncado em grande parte devido à divergências ideológicas e
normativas, mas também teóricas, de fundo entre as diversas
correntes. Embora o clima político-ideológico vigente no final dos
anos 60 e na década de 1970 tenha contribuído ainda mais para
truncar este debate, nada impede que ele seja restaurado 40 anos
após a publicação de PPCS. Segundo nosso ponto de vista, esse
diálogo pode ser restaurado pelas seguintes razões:
Ainda falta à teoria política marxista um estoque de
conceitos gerais e claramente articulados entre si
destinado à constituição de uma sociologia política
marxista com o mesmo grau de abrangência da
sociologia política funcionalista. Conceitos que abranjam
não apenas as sociedades de classe, inclusive as
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
160
capitalistas, mas também sociedades sem Estado do
passado95, e tipos ideais possíveis de sociedade sem
Estado do futuro (na melhor das hipóteses), ou sociedades
com uma burocracia regulada e controlada por
instituições civis de trabalhadores, ou mesmo de
“democracia participativa” exercida pela via não-estatal
num futuro próximo previsível.
As definições de “poder” e de “política” esboçadas em
Poder político e classes sociais são a nosso ver insuficientes
para fundamentar uma teoria marxista do político, que
também aborde o problema analítico da dinâmica das
sociedades sem Estado e da desestatização das
sociedades complexas (na melhor das hipóteses) e/ou do
controle da burocracia nas sociedades complexas com
Estado (numa hipótese menos ambiciosa) por instituições
políticas não-estatais. Uma reflexão sistemática sobre tais
conceitos gerais é fundamental para a instauração de
uma sociologia política estrutural-marxista que sirva
também de “guia de ação” para a pesquisa empírica
aplicada, e não apenas para a análise dos macro-
processos sociais que ocorrem nas sociedades globais.
Devemos agregar ainda, à guisa de conclusão, que a
oposição irredutível entre os conceitos de “Estado” e “sistema
político” é mais imaginária do que real, devendo-se a nosso ver
mais a disputas por símbolos de status e espaços de micropoderes
entre uma antiga geração de sociólogos políticos do que a razões
teóricas substantivas. Assim o conceito de sistema político pode
muito bem ser incorporado de maneira sistemática à análise
política marxista, de molde a abranger outras instituições que
participam do jogo político mas não fazem parte do sistema estatal
no sentido estrito do termo. As alegações dos teóricos sistêmicos e
marxistas (EASTON, 1982, BOITO JR., 2007) a respeito da
incompatibilidade irredutível entre ambas as noções devem ser
vistas com cautela, pois ao que parece são motivadas por outros
objetivos que não os estritamente cognitivos.
Entretanto, isso não implica “dissolver” o Estado em outras
instituições políticas que fazem parte do sistema político, na
medida em que o Estado constitui um somatório de instituições
95 Existem um amplo estoque de trabalhos de antropologia política sobre o assuntos que tendem a ser
ignorados pela maior parte dos teóricos políticos marxistas. Nesse sentido, um bom ponto de partida pode ser a análise crítica das obras de Pierre Clastres (CLASTRES, 2002, 2006) e dos próprios
antropólogos políticos funcionalistas (FORTES & EVANS-PITCHARD, 1950)).
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
161
específicas formadas por um corpo de funcionários autorizados a
tomar decisões e a implementar normas globais em sociedades
onde se aplica um direito de propriedade privada que distribui os
seres humanos em classes dominadas e classes dominantes,
explorados e exploradores.
Por todos estes motivos, não deve ser excluído um
retrabalhamento crítico, dentro do campo inclusive dos estruturais-
marxistas, de conceitos advindos da sociologia política
funcionalista, tais como os de elites dirigentes, grupos de interesses,
sistema político, governo, dentre outros.
Do ponto de vista estritamente “normativo” se, por um lado,
a elaboração de paradigmas menos “estado-centrados” implica
correr o risco de “desviar as classes populares da luta pela
transformação da sociedade capitalista” (BOITO Jr., 2007: p. 30), a
rejeição in limine dos conceitos operacionalizados dentro da
sociologia política funcionalista-pluralista (tais como os de elites
dirigentes, sistema político, governo etc.), pode colocar os
trabalhadores organizados para a construção de uma nova
sociedade socialista diante de um outro risco: o de não forjar
instrumentos teóricos para o estudo sistemático dos processos de
desestatização e de controle quotidianos sobre a burocracia
estatal e sobre as elites dirigentes em sociedades complexas pós-
capitalistas, que restaurem em novas bases as formas primitivas de
democracia comunitária e de exercício descentralizado do poder
político esboçadas em sociedades tribais onde inexistia Estado
(ENGELS, 1986; PUTNAM, 2003, 2008).
Cabe a cada analista político avaliar por si mesmo os prós e
os contras de cada um destas operações analíticas.
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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
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Política, ciência e ideologia: sobre o
"teoricismo" de Nicos Poulantzas
Adriano Codato96
MARXISMO E CIÊNCIA SOCIAL
Antes mesmo de apresentar o texto que eu preparei para
este Congresso, penso que seja necessário, a fim de explicitar todos
ou quase todos os meus pressupostos intelectuais, fazer algumas
declarações de princípio.
O que eu pretendo discutir aqui é exclusivamente o
marxismo como ciência social. Evidentemente que o marxismo não
é só isso, mas é também isso; e cada vez mais isso, visto que sua
dimensão revolucionária está, ao menos por hora, aposentada.
Nesse sentido, meu tema nesse colóquio é o processo de
elaboração conceitual – ou, para ser mais preciso, o modo de
produção teórico – de certa teoria marxista da política
exemplificada, no caso, pela obra do cientista político grego Nicos
Poulantzas.
A obra de Poulantzas e, em especial, Poder político e
classes sociais representou, quando o livro foi publicado em Paris
em abril de 1968, o empreendimento intelectual mais ambicioso no
domínio da teoria marxista da política desde pelo menos o
desaparecimento de Lênin. Representou também o desafio mais
incisivo aos pressupostos da ciência política convencional e a
crítica mais explícita aos procedimentos metodológicos e aos
princípios epistemológicos da “sociologia burguesa”. Penso,
portanto, que um trabalho de revisão da crítica poulantziana à
ciência política convencional – o tipo de crítica, o modo pelo qual
96 Adriano Codato é professor de Ciência Política no DECISO/UFPR e coordenador do Núcleo de
Pesquisa em Sociologia Política (Nusp).
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
166
essa crítica foi feita e o conteúdo dessa crítica – permita fazer um
balanço das relações entre o marxismo e a ciência social.
Se o marxismo ambiciona ser muito mais do que apenas
uma ciência positiva da sociedade e se nesse caminho ele
pretende não só dizer a verdade sobre os princípios e pressupostos
teóricos e metodológicos da ciência política e da sociologia
política “burguesas”, mas colocar no seu lugar uma teoria mais
eficiente e mais correta da política, do poder, da dominação
social, então é preciso, antes mesmo de avaliar se isso foi cumprido
como planejado e se efetivamente deu certo, tentar entender se a
maneira de fazer isso foi a mais adequada ou não. Só procedendo
assim, julgo eu, é possível fazer valer, na prática, alguns slogans
publicitários que os marxistas anunciam a respeito de sua própria
tradição, do tipo: ‘só a teoria marxista é uma teoria que pode
criticar-se a si mesma’, etc.
TEORIA E FILOSOFIA
Nesta comunicação, formulo um argumento sobre as razões
explícitas e sobre as razões implícitas da proverbial complicação
dos escritos de Poulantzas, insistindo, e esse é o problema central
que desejo destacar, sobre a influência que os procedimentos e os
pressupostos da filosofia impõem à prática teórica dos marxistas no
âmbito das ciências sociais.
O ponto aqui é antes sugerir que demonstrar que a forma
de redação dos textos de Poulantzas é menos uma questão do
“estilo” do autor (o vocabulário incomum, a fraseologia
arrevesada, a falta de clareza de certos conceitos e a
desorganização dos argumentos); ou mesmo uma questão do
“nível” do discurso (um discurso necessariamente abstrato para
tratar de problemas abstratos); e sim uma questão do “tipo”de
“ciência social”defendida e praticada pelo estrutural-funcionalismo
francês como um todo (Althusser, Balibar, Badiou, etc.).
A hipótese é que a prosa filosofante característica desse
gênero de marxismo encurrala e encerra o discurso e a prática
sociológica em três mundos, que os dirigem e passam a defini-los: i)
a política, ii) a teoria e iii) as lutas políticas no domínio exclusivo da
teoria. Invertendo a formulação de Althusser (“a filosofia é luta de
classes na teoria”), creio que se deveria dizer que essa teoria é,
antes de qualquer coisa, um produto da luta teórica no domínio da
filosofia (marxista).
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
167
Meu argumento central é o seguinte: esse gênero de
“ciência social” que Poulantzas exemplifica tira proveito da fusão
do discurso político com o discurso científico sob a proteção e a
garantia do discurso filosófico. Essa é a razão do alegado
teoricismo de Nicos Poulantzas, cujo efeito (e não a causa) é um
dialeto abstrato. A causa fundamental dessa forma de conceber o
trabalho teórico e a prática científica está, antes de qualquer
coisa, na recusa dos procedimentos convencionais da ciência
convencional. E isso por sua vez deriva do entendimento do que o
marxismo deveria ser: nem uma “ciência da História” nem uma
forma de sociologia empírica, mas uma cosmogonia.
O GÊNERO, O NÍVEL E O TIPO DE DISCURSO
W. G. Runciman, ao comentar a tradução inglesa de Les
classes sociales dans le capitalisme aujourd’hui recordou e
sintetizou a recepção chavão à obra de Poulantzas nos países de
língua inglesa: “Mr. Poulantzas escreve conforme a tradição
continental, onde a generalidade da abstração é muitíssimo mais
estimada que a clareza de expressão”97.
Essa tirada é bastante espirituosa, toca em dois problemas
reais – o gênero do discurso e o nível do discurso – mas comete dois
deslizes. Primeiro, mistura a (má) qualidade da prosa poulantziana
com o plano (teórico) onde o autor situa seu trabalho. O próprio
Poulantzas nunca negou que mesmo suas “análises concretas”
estavam voltadas principalmente para a elaboração de conceitos.
Fascisme et dictature é uma prova disso. Poulantzas sempre
pretendeu que para elaborar o conceito de Estado fascista, a
“generalidade da abstração” deveria suplantar a realidade
empírica– isto é, as formas concretas de Estados capitalistas de
exceção (Estado italiano, Estado alemão, etc.) (POULANTZAS, 1970:
325-338).
O segundo deslize, e esse é meu argumento principal, é que
esse tipo de crítica aos textos de Poulantzas, muito comum e muito
obstinada até hoje, erra o alvo. Há uma questão mais importante e
que deriva não do gênero (literário) ou do nível (abstrato) do
97 W. G. Runciman, resenha de Classes in Contemporary Capitalism e de Social Analysis publicada no Times Litterary Supplement (16 Jan. 1976). Apud Jean-René Tréanton, Réflexions sur Fascisme et
dictature. Revue française de sociologie, (1976 : 533, nota 1).
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
168
discurso, mas do tipo de discurso adotado – e não somente por
Poulantzas, mas por boa parte do marxismo “continental”.
Para além dos problemas estilísticos evidentes (períodos
muito longos, construções elípticas, interpolações constantes,
formulações de duplo sentido, definições pouco claras, distinções
em poucas palavras, explicações idem), a confluência, nesse
discurso teórico, de três modos distintos de conhecimento – i) o
filosófico, amparado na excelência e ampliado graças à
grandiloquência do comentário de texto (dos textos clássicos dos
clássicos do marxismo, bem entendido); ii) o político-teórico,
implicado na sobreposição espontânea e obrigatória de duas
problemáticas: a teoria da teoria marxista e, derivada dela, a
teoria da prática revolucionária; e iii) o científico, exigido para
construir e/ou conquistar os objetos de pesquisa das sociologias
não marxistas ou antimarxistas (e.g., a noção poder, de Estado
capitalista, etc.) –, teve consequências decisivas para esse gênero
de “ciência social”. Não só contribuiu para congestionar o texto
poulantziano de conceitos teóricos (às vezes muito úteis, como
“hegemonia de fração”, “bloco no poder”, “burocracia versus
burocratismo”, etc., às vezes não, como “autonomia relativa”),
como de declarações categóricas com base em uma série de
tomadas de posiçãopolíticas em cada um desses campos, o
filosófico, o político e o científico (“poder é o poder político das
classes sociais”, “O Estado é o fator de coesão de uma formação
social”, “o funcionamento da burocracia corresponde, em última
análise, ao interesse político da classe ou fração hegemônica”
etc.) (POULANTZAS, 1971a: X; 1971b: 167).
É verdade que a justaposição de problemas de naturezas
diversas (o social e o sociológico; o político e o politológico; o
teórico e o ideológico), e a obrigação autoimposta de enfrentá-los
ao mesmo tempo e no mesmo lugar, até produziu, nos poucos
leitores mais empenhados, e depois de passada a perplexidade
inicial, aqueles fins que Poulantzas desejava: “romper”, através da
linguagem empregada, “com o discurso descritivo ordinário” da
sociografia política dominante (POULANTZAS, 1976: 68). Ocorre que,
em boa parte dos casos, a intenção de ruptura se fez à custa da
comprovação integral do sistema integral, gerando o incômodo e
a incompreensão proveniente de duas reprovações padrão,
simétricas e opostas, que sempre acompanharam a obra de
Poulantzas: ou Poulantzas falava demais, ou Poulantzas falava de
menos.
Um exemplo do primeiro defeito vinha das cobranças
diante das interpretações um tanto arbitrárias acrescentadas às
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
169
conhecidas fórmulas de Marx e Engels, deslocadas essas dos seus
contextos originais e embaralhadas, conforme seus críticos, a esmo.
O exemplo do outro defeito – de que Poulantzas falava de menos -
eram as solicitações frequentes de evidências concretas que
comprovassem seus argumentos diante da carência explícita de
análises empíricas.
O MARXISMO ESTRUTURALISTA
Voltando ao ponto central da crítica convencional: o que
está de fato em jogo e vem encoberto por “problemas de estilo”?
Tal qual Louis Althusser (ou em razão da influência deste), os
textos dos marxistas estruturalistas – Poulantzas aí incluído – possuem
uma dicção toda própria, marcada pelo impulso polêmico, pelo
vezo contundente e pelas fórmulas definitivas, como observou
Jacques Rancière, produto dessa “ambição totalizante” autorizada
e imposta pelo culto da “grande teoria”98.
Tanto na filosofia dos filósofos, quanto na (ciência) política
de Poulantzas, os temas, as teses e os conceitos são expostos,
como ele mesmo explicou, numa ordem que oculta
propositalmente o caminho para se chegar a eles (a “ordem da
pesquisa” dos elementos empíricos). Isso produz dois defeitos,
ambos admitidos por Poulantzas, mas desclassificados também por
ele como fruto da ilusão empirista e do engano “neopositivista” dos
seus críticos99: i) o mundo social e os acontecimentos históricos só
comparecem em seus escritos comoexemplos para confirmar
princípios e conclusões já estabelecidas de antemão; ii) daí a
aparência (falsa segundo o próprio autor) de um discurso onde
conceitos geram conceitos, uma sorte de partenogênese teórica.
Não encontro, porém, uma símile mais adequada – partenogênese
teórica – para descrever esse tipo de ciência social. Explico.
O que escapa à autocrítica poulantziana é que a “ordem
de exposição” de um texto em ciência social não pode ser a
mesma de um texto em Filosofia, mesmo para o marxismo, que não
reconhece divisões departamentais nem se submete de boa
vontade aos ritos escolares. A ausência da pesquisa (ao menos no
texto) e da sua “ordem”, isto é, dos seus procedimentos – a
98 Para a constatação a respeito do tom que Althusser imprimia a sua escrita, ver Jacques Rancière (1993). Para as expressões “ambição totalizante” e “grande teoria”, ver Pierre Bourdieu, (2004: 32).
99 Para o “neopositivismo” da crítica endereçada a ele, ver Nicos Poulantzas (1976: 67).
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
170
explicitação dos modelos e dos métodos para selecionar, organizar
e interpretar evidências, por exemplo – produz dois efeitos sobre
esse discurso teórico. Primeiro, torna impossível avaliar a
documentação mobilizada, daí o tom muitas vezes arbitrário das
alegações; e segundo, transfere, para o domínio do comentário
dos textos canônicos, o que deveria ser resultado da explicação
das coisas. Daí a impressionante frequência nessa sociologia do
recurso (retórico ou não, pouco importa) à formula Marx dixit.
Sua teoria do Estado possui precisamente essas
características e é um exemplo muito ilustrativo da propensão para
transitar entre campos distintos (filosofia, economia, sociologia), ora
em nome da autoridade de Marx, Engels, Lênin e Gramsci, ora em
nome da utilidade dos princípios políticos daí derivados; ora em
nome da conformidade pressuposta das análises teóricas com o
mundo social, ora em nome da incapacidade das teorias rivais
(marxistas e não marxistas) darem conta seja da interpretação mais
correta dos textos clássicos, seja da compreensão mais concreta
dos modos de funcionamento da sociedade capitalista100.
A crítica à “ausência de qualquer problemática teórica nos
escritos de Miliband” é uma evidência de como Poulantzas se serve
da autoridade derivada dos procedimentos puros da interpretação
pura dos clássicos do marxismo para explicitar qual seria a forma
correta de ligação entre as análises concretas e os “conceitos
abstratos”. Nenhuma palavra, todavia, sobre a pertinência efetiva
daquelas análises em relação ao mundo social real. O ponto aqui,
então, torna-se o seguinte: é preferível defender a atualidade e o
poder explicativo dos conceitos abstratos, sejam eles corrigidos,
completados, desenvolvidos ou não pelo processo de elaboração
teórica, ao invés de considerar como mais legítimo ou como mais
efetivo o procedimento usual que envolve dados, hipóteses, teste,
proposições e assim sucessivamente.
O MODO DE PRODUÇÃO DE TEORIA
Mas de onde vem isso? Minha hipótese é que esse tipo de
discurso pode ser explicado em razão de dois determinantes: i) a
heteronomia dessa teoria da política em relação às lutas teóricas e
às dissensões políticas no campo político comunista; e ii) a
100 Expus e procurei comprovar este ponto em Adriano Codato: “Poulantzas, o Estado e a Revolução”
(2008: 65-85).
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
171
autonomia pretendida dessa teoria em relação à Sociologia e à
Ciência Política “burguesas” como práticas científicas “puras”.
Esse jogo duplo – condição de existência do marxismo, a
propósito – é tão ou mais necessário quanto menos os marxistas
podem prescindir, nesse momento de (re)fundação da doutrina do
Estado e de contestação da ciência política norte-americana
(sejam as vertentes comportamentalista, culturalista ou sistêmica),
dos dividendos decorrentes de dois princípios de consagração
desiguais, mas potencialmente complementares: a autoridade
universitária, disputada contra a ciência social pela imposição da
teoria marxista da política como a única teoria política legítima; e a
autoridade política, transmitida pelo partido teórico e pelo projeto
social no qual se está implicado101.
O tipo do discurso então adotado – o filosófico –, que abusa
da análise, do comentário e da interpretação de texto (dos textos
clássicos dos clássicos do marxismo), resulta da (con)fusão
inevitável pelo modo de produção dessa teoria entre três coisas: i)
as controvérsias doutrinárias dos partidos comunistas europeus; ii) a
reflexão abstrata dos intelectuais universitários comprometidos com
o socialismo; e iii) a problemática política do materialismo histórico
(a “Revolução”). A consequência de tudo isso é a subordinação
inapelável dessamodalidade de “ciência social” à teoria teórica.
CONCLUSÃO
Vou então recapitular o que disse até aqui e esquematizar
ao máximo meu argumento.
Sustentei que a teoria política poulantziana – construída
como uma crítica direta à ciência política convencional
(“burguesa”) – pode ser definida como uma teoria que é, antes de
qualquer coisa, um produto da luta teórica do marxismo teórico no
domínio da Filosofia. Isso não tem nada a ver com Ciência Social
(descrição, análise e interpretação; testes de hipóteses,
explicitação de mecanismos, estabelecimento de relações,
proposição de explicações) e não teria nenhum problema se não
fosse pensada – essa teoria política – como uma crítica e uma
correção à ciência social convencional.
101 Para a sugestão original dessa idéia, ver Pierre Bourdieu, “O discurso de importância. Algumas reflexões sociológicas sobre o texto ‘Algumas observações críticas a respeito de Ler O Capital’”
(BOURDIEU, 1996: 168).
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
172
Esse “teoricismo” – reconhecido, aliás, pelo próprio
Poulantzas no debate com Miliband no artigo de 1976 – vem
fundido e confundido com um discurso complicado, uma prosa
difícil. Essa, contudo, é a aparência do problema. A crítica que
consiste em apontar um “defeito”, o estilo “confuso”, é a meu ver
essa é uma crítica superficial. O próprio Poulantzas faz a defesa
desse “discurso complicado” nos termos corretos: trata-se de um
discurso abstrato para tratar de problemas abstratos (uma
exigência óbvia do trabalho teórico). Minha tese é que não é um
problema do estilo do discurso, ou do nível do discurso, mas do tipo
do discurso: o discurso filosófico cujo núcleo é o comentário de
texto (Marx dixit).
A confluência no texto poulantziano de três modos distintos
de conhecimento (o filosófico, o político-teórico e o científico), e a
justaposição de três problemas de naturezas diversas (o social e o
sociológico; o político e o politológico; o teórico e o ideológico),
conduziu esse discurso ao culto da grande teoria e a declarações
categóricas com base em tomadas de posição políticas. Como
falta a esse discurso a “ordem da pesquisa”, isso torna impossível
avaliar a verdade das proposições, o comentário do texto
tomando o lugar da explicação das coisas. Daí o recurso frequente
à autoridade dos textos clássicos dos clássicos.
Ficamos então com um discurso que defende a atualidade
e o poder explicativo dos conceitos abstratos produzidos pelo
processo de elaboração teórica; isto é, um discurso que depende
da capacidade de análise do que “Marx realmente disse” e não
do procedimento mais usual: reunião de dados, elaboração de
hipóteses, formulação de proposições científicas provisórias para
serem depois testadas à luz de novas evidências etc. Tudo isso
conduz à subordinação da Ciência Social à teoria teórica e tudo
depende então de ser ou não ser marxista, o que repõe
constantemente a tensão entre a heteronomia dessa teoria social
em relação à política; e a sua pretendida autonomia em relação à
ciência “pura”.
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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
175
Notas introdutórias sobre o
desenvolvimento do marxismo no Leste
Europeu
Pedro Leão da Costa Neto102
Uma análise do desenvolvimento do marxismo no leste
europeu deve ter como objeto, não só uma análise das
importantes obras e correntes teóricas surgidas no período do
“Socialismo Real”, mas também investigar outro aspecto, algumas
vezes esquecido, do trabalho associado à organização e edição
das obras de Marx e Engels, que criaram, em grande parte, a base
e o fundamento dos estudos da obra de marxistas ao longo do
século XX. Não seria exagero afirmar que toda história do marxismo
no século XX teria sido distinta sem este trabalho; referimo-nos aqui
a publicação, não só das obras completas, mas igualmente ao
trabalho de organização e edição, dos diferentes manuscritos que
se transformaram em escritos decisivos para as sucessivas
interpretações do marxismo: Crítica da Filosofia do Direito de Hegel,
Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, A Ideologia Alemã,
Grundrisse e Dialética da Natureza.
Desde o final do século XIX, em diferentes países da Europa
Oriental, em particular na Rússia e na Polônia, desenvolveram-se
importantes interpretações do pensamento marxista e que levaram
a distintos debates. Na Rússia é importante destacar, ao lado das
decisivas contribuições, de Georg Plekhanov e V. I. Lênin, para a
elaboração de uma tradição teórica nacional103, os trabalhos de
Alexander Bogdanov e Anatol Lunatcharski, entre outros. Na
Polônia104 é importante lembrar as contribuições de, entre outros,
Ludwik Krzywicki, Kazimierz Kelles-Kraus e Stanislaw Brzozowski, este
102 Professor do curso de História da Universidade Tuiuti do Paraná. Doutor em filosofia pela
Universidade de Varsóvia – Polônia. A comunicação aqui reproduzida apresenta os resultados
introdutórios de uma pesquisa em andamento, sobre os intelectuais da Europa Oriental no Período do Socialismo Real.
103 Para uma discussão sobre algumas especificidades do marxismo russo, consultar:
(ZANARDO,1974; VRANICKI, 1977a; KOŁAKOWSKI, 1988a).
104 Sobre o marxismo na Polônia, consultar: (WALICKI, 1984; KOŁAKOWSKI, 1988a).
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
176
último considerado por alguns interpretes como o criador do
“marxismo ocidental” avant la lettre.105
Entretanto, será a Revolução de Outubro de 1917, que terá
um efeito decisivo para a história do marxismo, e conduzirá a um
verdadeiro deslocamento geográfico e político na história do
marxismo.106 Entre as tarefas culturais e teóricas, com as quais se
deparou o novo estado revolucionário, devemos destacar a
publicação, a elaboração e a difusão massiva da teoria marxista.
Um dos primeiros passos neste sentido foi a publicação em 1921 do
conhecido manual de divulgação teórica de autoria de Nicolai
Bukharin: Tratado de Materialismo Histórico: Ensaio popular de
Sociologia marxista, que tinha justamente por objetivo suprir a
lacuna de “uma exposição sistemática (...) da teoria marxista” (
BUKHARIN, 1970: 7)
O pensador russo Boris Kagarlitsky (2006:75) observa que o
período que vai de 1922 a 1928, “representou um fortalecimento da
cultura e até mesmo um novo renascimento cultural”. Entre as
grandes obras teóricas aparecidas no período, podemos destacar
os trabalhos de Isaak Illich Rubin (1980): A Teoria Marxista do Valor e
do teórico do direito Evgeny Pasukanis (1989): A Teoria Geral do
Direito e o Marxismo.
A década de 1920 na Russia, foi importante igualmente no
campo da filosofia marxista, nestes anos se desenvolveu um intenso
debate teórico, entre duas distintas correntes, os mecanicistas e os
dialéticos, que travavam uma disputa pela hegemonia filosófica.107
Os mecanicistas defendiam que a filosofia era uma forma de
metafísica mística e escolástica se comparada as ciências
particulares - ciências que permitiriam a resolução dos diferentes
problemas teóricos; e os dialéticos - cujo principal representante
era o destacado marxista Abram Deborin - que defendiam que o
materialismo dialético representava uma concepção de mundo
integral que englobaria a natureza e a sociedade. Este debate, se
encerrou em 1929, com a vitória do grupo dos dialéticos, que
assumirá a direção das principais instituições filosóficas. Entretanto,
em 1930, aparece o artigo assinado por três jovens filósofos “Sobre
105 Sobre o marxismo de Stanislaw Brzozowski, consultar, ao lado dos escritos citados de WALICKI
(1984) e KOŁAKOWSKI, (1988a), o artigo de GÁNGO (2009).
106 Sobre este deslocamento geográfico e político e suas conseqüências teóricas, consulte o livro de P. ANDERSON (1989), Considerações sobre o marxismo ocidenta, em particular o capítulo A tradição
clássica. Cf., igualmente sobre as implicações da revolução de outubro para a publicação das obras de
Marx e Engels: (HOBSBAWM, 1980.)
107 Para uma reconstrução deste debate consultar: entre outros a antologia de textos organizada por
René ZAPATA (1983) e (VRANICKI, 1977b).
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
177
as novas tarefas da filosofia marxista-leninista”, no qual eram
criticados tanto os mecanicistas como os dialéticos (estes últimos
condenados como “idealistas mencheviques”). Os jovens filósofos
defendiam o caráter partidário da filosofia e a necessidade de
procurar a raiz política e de classe de todo fenômeno ideológico;
este artigo vem seguido da resolução do CC do PCUS de janeiro
de 1931, que reafirmará aquelas críticas. Será, portanto, uma
decisão político-administrativa que tornará esta tendência, a
filosofia oficial da URSS. O estudioso dos debates filosóficos dos anos
1920 na URSS René Zapata afirma que este acontecimento terá
pesadas conseqüências, inclusive sobre o ensino do marxismo na
URSS; a partir de 1931, o estudo de O Capital que, entre 1925 e
1930, ocupava um lugar importante no ensino do Instituto dos
Professores Vermelhos, será substituído por textos políticos e a partir
de 1934/1935, o papel central no ensino do marxismo passará a ser
ocupado pelos diferentes manuais de materialismo dialético,
materialismo histórico e economia política (ZAPATA, 1985: 39)
Entretanto, o passo decisivo para a definitiva formalização da
versão canônica do marxismo soviético foi a publicação do escrito
de J. Stalin (s.d.): Materialismo Dialético e Materialismo Histórico.
Seguindo a filósofa francesa Christine Buci-Glucksmann
(1978, 257) poderíamos enumerar algumas característicasdo
marxismo russo:
1. Desenvolvimento do aspecto filosófico do marxismo
com a finalidade de criar um sistema global.
2. Afirmação de que o materialismo filosófico é a
filosofia específica do marxismo e que há um nexo
privilegiado entre o materialismo e as ciências da natureza.
3. Unidade das posições filosóficas e políticas que
desemboca em uma “ingerência” do poder político nas
questões filosóficas.
Poderíamos acrescentar, ainda, como um importante
desdobramento da primeira característica, a posição subalterna
ocupada pelo Materialismo Histórico em relação ao Materialismo
Dialético.
Como já tínhamos destacado anteriormente, o outro
importante elemento constitutivo da história do marxismo no leste
europeu foram o trabalho dedicado as edições e aos estudos
sobre a obra de Marx. A revolução de outubro promoveu uma
profunda mudança geográfica e política na história da publicação
das obras de Marx e Engels, que a partir de então poderá contar
com o apoio de uma estrutura estatal.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
178
O grande personagem desta curta e rica história será David
Borisovitch Riazanov. Em 1921, é criada, em nível institucional, uma
Comissão especial para a publicação e difusão das obras de Marx,
neste mesmo ano será criado o Instituto Marx-Engels (IME) que terá
Riazanov como seu primeiro diretor. A partir de 1923, ele
fotocopiará grande parte do Arquivo Marx Engels de posse da
Social-Democracia Alemã e no ano seguinte o IME com o apoio do
Partido Social Democrata Alemão e com a participação do
Instituto de Pesquisas Social de Frankfurt concretizam a idéia da
publicação das Obras Completas de Marx e Engels: a Marx Engels
Gesamtausgabe (MEGA).108
O plano de Riazanov previa a publicação de 42 volumes e
estava dividida em 3 partes: a primeira parte em 17 volumes seria
constituída do conjunto dos escritos de Marx e Engels; na segunda
parte em um total de 13 volumes, planejava a publicação do
conjunto dos manuscritos de Marx elaborados a partir de 1857 e
relacionados ao projeto de Critica da Economia Política; e por fim,
a terceira parte reuniria o conjunto da correspondência de Marx e
Engels em um total 10 volumes. Riazanov dirigiria a publicação até
ser vitima dos expurgos stalinistas, em fevereiro de 1931 foi preso, e
substituído por Vladimir Adoratski na direção da MEGA. Da
totalidade dos volumes previstos, foram publicados apenas sete
volumes da primeira parte (o primeiro em dois tomos), que reuniam
as obras escritas entre 1843 e 1848, entre as quais cabe destacar os
importantes manuscritos da juventude de Marx (Introdução a
Critica do Direito de Hegel e os Manuscritos Econômico-Filosóficos
de 1844) e a Ideologia Alemã de Marx e Engels. Riazanov publicou
apenas os volumes I e II e os restantes foram editados por Adoratski.
Da terceira parte foram publicados apenas quatro volumes que
reuniam a correspondência entre Marx e Engels (os três primeiros
por Riazanov e o último por Adoratski). Por fim, em 1935, seria
publicado um volume dedicado às obras filosóficas de Engels,
reunindo o Anti-Dühring e os seus manuscritos científicos, agrupados
sob o titulo Dialética da Natureza. Por fim 1939/1941, coincidindo,
portanto com o início da II Guerra Mundial, foram publicados em
Moscou, pelo Instituto Marx–Engels e Lênin (IMEL, resultante da
fusão do IME e do Instituto Lênin, em 1931, após a expulsão de
Riazanov)e sob a responsabilidade de Pavel Veler, os Grundrisse der
Kritik der politischen Ökonomie. Rohentwurf, 1857-1858.
108 Sobre a publicação da MEGA consultar (LEFEBVRE, 1985; ZAPATA, R. La publication des
oeuvres de Marx après sa mort, op.cit.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
179
O maior esforço do IMEL nos anos 1935 - 1951 foi a
publicação em língua russa (Sotchinenia) das Obras de Marx e
Engels, sob a organização inicial do mesmo Riazanov (nos anos
1929-1930) e substituído posteriormente por V. Adoratski, tendo sido
publicados 28 volumes.
Após a conclusão da II Guerra Mundial terá lugar uma nova
e importante ofensiva nos campos da literatura e da filosofia
promovida por A. Zhdanov (1948), que acentuará ainda mais o
caráter dogmático da cultura soviética. Será esta filosofia que, a
partir da segunda metade dos anos 1940, será transplantada
através de diferentes métodos burocráticos e coercitivos, nos
diferentes países do leste europeu e em linhas gerais perdurará
como filosofia de partido e estado, até o colapso do Socialismo
Real.109
Partindo das indicações desenvolvidas por Leszek
Kołakowski (1988b, 923)110 em seu livro Główne Nurty Marksizmu
(Tendências Principais do Marxismo), podemos identificar as
características mais gerais do marxismo no leste europeu
eindividualizar quatro diferentes períodos:
i) os anos 1945-1949 se caracterizam pela existência de
elementos de um pluralismo político e cultural, no tocante ao
pensamento filosófico e social, que se expressava na presença de
diferentes professores estranhos a tradição marxista nas diferentes
instituições universitárias. No decorrer do período este pluralismo se
restringirá gradualmente. É nesta conjuntura intelectual que se
desenvolverá a ofensiva teórica e política para implantar o
marxismo, em sua versão sistematizada na União Soviética, na vida
cultural e universitária, ofensiva esta acompanhada de uma série
de medidas de caráter coercitivos e burocráticos.
ii) 1949-1954, unificação do “campo socialista” nos aspectos
políticos e ideológicos e stalinização da cultura. Transformação da
“filosofia marxista-leninista”, ou “tendência extensional”, como a
nomeia G. Markus,em filosofia oficial através de métodos
109 Vranicki observa sobre este processo de transplantação: “Com a finalidade de assegurar a
hegemonia política sobre os países do campo socialista e sobre os partidos comunistas de todos os países, se proclama o estado soviético “modelo” de toda a humanidade progressista e declara que a
cultura e os estados burgueses são apenas decadência e decrepitude” (VRANICKI, 1977b: 150). O
marxista francês Georges Labica observou que esta síntese filosófica perdurou até o colapso do Socialismo Real, sem nunca sido objeto de uma crítica rigorosa (LABICA, 1991).
110 Nós utilizamos, alem do livro de Kołakowski, igualmente da classificação das diferentes tendências
filosóficas existentes nos países da Europa Oriental desenvolvida membro da Escola de Budapeste György Markus, no capítulo Discussões e Tendências na Filosofia Marxista de seu livro Teoria do
Conhecimento no Jovem Marx (MARKUS, 1974: 113-129).
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
180
administrativos, tais como o afastamento e a proibição do ensino
dos antigos professores.
iii) 1955-1968, sobre o efeito do processo de desestalinização
surgem diferentes tendências anti-stalinistas e revisionistas,
surgimento de correntes filosóficas próximas as existentes na Europa
Ocidental, entre as quais o existencialismo e o neo-positivismo.
Markus refere-se a existência das seguintes correntes: “ideologia
crítica”, “cientificista”111 e “ontologia social”. É importante destacar
o esforço critico desenvolvido por György Lukács (1982: 36-176) e
Karel Kosik (1969) em superar as limitações, tanto da síntese
filosófica oficial, como destas duas correntes então hegemônicas
no ocidente.112
iv) A partir de 1969, período caracterizado pela derrota e
expurgo das diferentes correntes criticas, com o afastamento da
vida pública ou o exílio de seus principais representantes.113 Apesar
de uma tendência geral, nos anos 1970-1980, de gradual
afastamento do marxismo, é importante destacar a existência em
diferentes instituições, de um conjunto de pesquisadores marxistas
pertencentes a uma nova geração, que realizaram uns importantes
trabalhos de investigação sobre o pensamento de Marx e a
tradição marxista.
Uma segunda proposta de periodização poderia ser
realizada, partindo de critérios geracionais114, que permitiria
identificar três diferentes gerações que compartem experiências
comuns e permite identificar as filiações existentes entre elas:
i) Lukács e Bloch que se aproximaram do marxismo ainda no
período entre as guerras;
ii) geração formada nos anos sucessivos a II Guerra Mundial
(entre os principais representantes estão Karel Kosik, Leszek
Kolakowski, Zygmunt Bauman, Bronislaw Baczko, Istvan Mészáros,
Agnes Heller e outros membros da Escola de Budapeste) e que
111 O filósofo polonês nomeou estas duas correntes como: scientific philosophers e antropological
philosophers, a primeira próxima a tradição neo-positivista e a segunda ao existencialismo,
fenomenologia e outras correntes tradicionais da filosofia ocidental (KRAJEWSKI, 1966: XIV-XIX).
112 Para uma análise da experiência do marxismo no leste europeu, consultar: (ARNASON, 1989).
113 A posição extremamente critica e parcial assumida por Kołakowski em seu livro anteriormente
citado, o leva a desqualificar toda contribuição filosófica posterior a 1968; entretanto, a posição marcadamente ideológica, que transparece em diferentes passagens da sua obra, choca-se claramente
com a necessidade de uma análise mais equilibrada e aprofundada.
114 A sugestão para a elaboração de uma periodização é resultado do desenvolvimento de algumas sugestões desenvolvidas pelo filósofo italiano Guido Neri na qual estabelece uma distinção geracional
entre as obras de Lukács, Bloch, Kołakowski e Kosik (NERI, 1980).
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
181
desempenharam um importante papel nos debates teóricos a
partir da segunda metade dos anos 1950;
iii) um conjunto marxistas acadêmicos que passam a
desempenhar um papel importante depois dos acontecimentos de
1968.
O final da II Guerra Mundial e a expansão do socialismo
para o conjunto de países do leste europeu, incluindo a República
Democrática Alemã, trará igualmente mudanças no tocante a
publicação das obras de Marx e Engels. Ao IMEL de Moscou, viria
se juntar no referido trabalho, o Instituto Marxismo–Leninismo de
Berlim.
Em 1 956, os Institutos de Moscou e Berliminiciaram a
publicação das obras reunidas de Marx e Engels, nas chamadas
Marx Engels Werk (MEW), e Marx EngelsSotchinenia que, mesmo
não reunindo a integralidade das obras e escritos dos dois autores,
alguns textos foram omitidos por motivos ideológicos, e fortemente
marcados por introduções e notas que espelhavam a concepção
do marxismo–leninismo então em voga nos países do leste europeu.
Entre 1956 e 1968, seriam publicados 39 volumes, mais apêndices e
índices. Apesar dos aspectos deficientes, a MEW constituiu-se num
instrumento de referência e trabalho indispensável para os estudos
especializados, como serviu também de base para as futuras
traduções das obras de Marx e Engels para diferentes línguas da
Europa Oriental, e para as edições chinesa, italiana, inglesa e
japonesa.
Entretanto, talvez o mais importante empreendimento
editorial do período e de toda história da publicação das obras de
Marx e Engels, seria o grande projeto de uma nova publicação,
iniciado na década de 1970, sob a responsabilidade dos Institutos
de Marxismo Leninismo de Moscou e Berlim, da Marx Engels
Gesamtausgabe,que passará a ser conhecida como MEGA 2.115
Esta nova edição previa a publicação inicial de mais de 160
volumes, em que cada volume viria acompanhado de um volume
de aparelho critico.
A Marx Engels Gesamtausgabe, MEGA 2, estava organizada
e dividida da seguinte maneira: I Seção: Obras, incluindo as obras,
artigos e manuscritos; II Seção: Obras econômicas relacionadas ao
projeto de Crítica da Economia Política, a partir de 1857, reunindo
as diferentes versões e manuscritos relacionados a O Capital; III
Seção: Correspondência; IV Seção: Materiais diversos que incluiria,
entre outros materiais, as notas de leitura dos dois autores.
115 Sobre a publicação da MEGA2,alem dos já citados: (LEFEBVRE, 1985).
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
182
Após a publicação, em 1972 de um Probeband, aparece,
em 1975, o primeiro volume da nova MEGA, tendo sido publicados
até 1990, dos 164 volumes previstos, apenas 36. Entretanto,
novamente, acontecimentos políticos interferem na publicação
das obras de Marx e Engels; a “queda do muro”, em 1989, seguida
da anexação da RDA pela RFA e a posterior dissolução da URSS,
levaram ao desaparecimento dos Institutos de Marxismo-Leninismo,
em Moscou e Berlim e ao desaparecimento das grandes estruturas
estatais que financiavam a publicação das obras de Marx e
Engels.116
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116 Sobre a continuação da publicação do projeto da MEGA 2, apos a dissolução do antigo campo
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MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
185
A luta pelas leis fabris do século XIX e
a definição das idades do trabalho:
um estudo sobre a constituição das
noções de infância e adolescência
Lígia Regina Klein117
A questão das “idades da vida”118 perpassa a história
humana. Tais “idades” são marcadas por distintas práticas de
iniciação, ritos de passagem, modalidades de formação, as quais
traduzem a inserção progressiva dos indivíduos em atividades
essenciais da sociedade. Por trás de marcos etários, o
determinante é a capacidade119 – física e psíquica - de
desempenhar certas práticas e funções sociais ligadas à
reprodução da espécie e à produção/reprodução das condições
de existência – desde as formas mais primitivas como a coleta e a
caça, até as formas mais complexas que se enquadram nas
condições da indústria contemporânea.
Considerando que tais funções e práticas se transformam
de época para época, de sociedade para sociedade e, inclusive,
no interior de uma mesma sociedade em relação a distintos grupos
sociais, é compreensível que tais fases apresentem diferenças
quanto à precisão de idade e, mesmo, quanto à relevância
atribuída a certa fase em um ou outro contexto concreto. De
modo geral, nas sociedades anteriores à emergência do
capitalismo, essas fases não são tomadas como objeto de
preocupação, em si mesmas. Tendo como referência a condição
adulta, servem como meros indicativos para a atribuição de tarefas
e funções.Nas sociedades primitivas verifica-se quase que uma
indistinção das fases de desenvolvimento, conforme ensina Ponce
(1985, p. 19) “as crianças se educavam tomando parte nas funções
117 Doutora em Educação. Professora da UFPR. Coordenadora do NUPE-MARX/UFPR.
118 Título do primeiro capítulo da obra referencial de Philippe Ariès, História Social da Criança e da Família.
119 Evidentemente, não se trata, aqui, de capacidade jurídica.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
186
da coletividade. E, porque tomavam parte nas funções sociais, elas
se mantinham, não obstante as diferenças naturais, no mesmo nível
que os adultos”.Na Antiguidade e no Medievo, épocas já
marcadas pela divisão da sociedade em classes distintas e
antagônicas, embora os processos educativos se diferenciem
consoante a classe a que pertencem os educandos, também
pouca importância se dá às etapas de desenvolvimento. Não
obstante, a idade de sete anos é referida como um marco
distintivo entre maior ou menor grau de dependência (PONCE,
1985; MANACORDA, 2006; CAMBI, 1999).
Porém, a emergência da sociedade moderna traz uma
preocupação, até então inexistente, com uma rigorosa definição
de faixas etárias que demarcariam as idades, cujas características
distintivas passam a ser objeto de estudo de diferentes disciplinas.
As transformações sociais fazem com que não só se estabeleça
firmemente uma distinção entre infância e idade adulta, como
também originam outras fases de desenvolvimento120. Aqui a
adolescência toma assento na temática das “idades da vida”,
com uma ênfase nunca antes vista (ARIÈS, 1981; BECKER, 1985;
CÉSAR, 2008; SAVAGE, 2009).121
Os estudos deste fenômeno apresentam variados
enfoques122, que vão do higienismo à história cultural, passando por
abordagens antropológicas, psicológicas, sociológicas e
pedadógicas. As investigações se distinguem pela ênfase que
atribuem a um ou outro aspecto do tema. Porém, comungam sob
certo aspecto: cada fase é explicada por características ou
condições subjetivas próprias de certa faixa etária, e abandona-se,
sem maior análise, o determinante comum em todas as sociedades
anteriores ao capitalismo, qual seja a relação de dependência dos
pais e a inserção concreta dos sujeitos nos processos de
produção/reprodução da vida próprias de cada sociedade. No
trato da adolescência, o traço comum é a idéia de crise, o que
120 “Durante o século XIX, a puberdade não era considerada uma fase distinta da vida. Embora os
homens alcançassem a idade adulta ao entrar no mundo do trabalho, do exército ou do casamento, o tempo passado para alcançar essa meta variava.” (SAVAGE, 2009, p. 82).
121 Segundo Becker (1985, PP. 57-58), “O fenômeno da puberdade provavelmente nos acompanha
desde os primórdios do ser humano. Já não se pode dizer o mesmo do fenômeno da adolescência, nem da importância que a sociedade lhe dá. O conceito de adolescência, como ele é hoje considerado, é
bastante recente. Até o século XVIII, a adolescência foi confundida com a infância... A noção do limite
da infância estava mais ligada à dependência do individuo do que à puberdade.”
122 Ver, a respeito, Sirota (2001); Becchi, E., Julia, D (1998); Mauss (1996); Boto (2001); Kulhmann
JR (1998); Heywood, 2004, Warde (2007); Calligaris (2009) entre outros.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
187
impõe à sociedade uma preocupação com as práticas rebeldes
dos jovens, bem como os meios e dificuldades de seu controle.
A interpretação da construção moderna dos conceitos de
infância e adolescência sob os postulados da história cultural tem
em Phillipe Ariès uma leitura inaugural e com expressiva influência
sobre o trabalho de outros pesquisadores, inclusive entre os
pesquisadores brasileiros do campo educacional que se ocupam
do tema. A perspectiva culturalista, ao buscar determinações
históricas para a constituição moderna dessas categorias,
representa um avanço em relação às abordagens deterministas,
de caráter biologicista-subjetivista. Entretanto, são limitados os
recursos de interpretação, pois pautados em aspectos
superestruturais123. Em síntese, as teorizações são ricas na descrição
do fenômeno da construção moderna das categorias mas,
tangenciando determinações sócio-econômicas, cedem espaço a
explicações subjetivistas ou superestruturais, de cunho culturalista.
Entretanto, o descrito pede explicação e esta tem raízes materiais.
Savage (2009, p. 57) pondera que “o crime juvenil tornou-se
uma questão nacional quando as crianças da classe operária
urbana forçaram a passagem para a conscientização pública”.
Entretanto, o que o autor não considera é que antes de poderem
ser ouvidas como delinqüentes, as crianças proletárias da Grã-
Bretanha, ecoaram, desde as florescentes e sombrias indústrias,
pela voz dos pais, uma penosa luta pela limitação legal da jornada
de trabalho. Ariès, por sua vez, anuncia o papel da escola na
constituição das categorias em estudo, entretanto, desconsidera
que antes de se constituírem sujeitos escolares, os jovens proletários
teriam de desvencilhar-se da condição de trabalhadores124.As
perspectivas acima apontadas são fecundas na indicação de
mediações presentes na construção dessas categorias. Pretende-se
acrescentar, ao tema, elementos do processo material da
transformação das crianças e jovens medievais em crianças e
123 Ariès (1981, p. 115) funda a “invenção moderna” da infância na emergência de um “sentimento”
amoroso dos pais pelos filhos. Segundo o autor, a diminuição do índice de mortalidade infantil
estimularia os pais a um “investimento afetivo” na prole. A adolescência, por sua vez, como um período intermediário entre infância e idade adulta, teria sido determinada pela progressiva relação
entre classe escolar e idade. Para o pesquisador francês, “sem o colégio e suas células vivas, a
burguesia não dispensaria às diferenças mínimas de idade de suas crianças a atenção que lhes demonstra, e partilharia nesse ponto da relativa indiferença das sociedades populares”.
124 Destaque-se que, diferentemente do que propõe Ariès, é a massiva liberação da força de trabalho
mirim – decorrente em grande parte das leis fabris – que criará o contingente de destinatários do sistema de instrução pública. A esse respeito, ver, entre todos, Alves, G, L. A produção da escola
pública contemporânea.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
188
adolescentes da sociedade capitalista, considerando o peso que
teve, nessa transformação, a luta proletária pela criação das leis
fabris.
Conforme a lição de Marx (1983, p. 25), nas transformações
sociais, é necessário distinguir a base material e as suas
manifestações ideológicas - jurídicas, políticas, religiosas, artísticas
ou filosóficas; considerar, enfim, o conflito que existe entre as forças
produtivas e as relações de produção. Com efeito, a luta entre
capital e trabalho na formulação de uma legislação que atente às
condições de resistência física e mental dos trabalhadores é que
vai pôr em questão com nova ênfase, e, nesse sentido, construir
determinadas fases de desenvolvimento dos indivíduos. Assim,
distinguir infância, adolescência e adultidade é uma necessidade
que se impõe na modernidade, como fruto das contradições do
capitalismo nascente. Uma vez estabelecidas essas fases,
conformes à nova estrutura social, elas passam a ser consideradas
em diferentes perspectivas da experiência humana: na educação,
no direito, bem assim nas novas ciências como a psicologia e a
sociologia.
Parte-se da hipótese de que as lutas pelas leis fabris, ao
longo do século XIX, exercem um papel fundamental na
construção de uma nova distinção entre as fases de
desenvolvimento. A compreensão desse papel abre novas
perspectivas no trato do tema. Os embates pela constituição de
leis fabris reguladoras de jornada e idade mínima para o trabalho
na fábrica não podem ser ignorados nos estudos da construção
das categorias em pauta, posto que inauguram o debate moderno
sobre um período de transição entre a infância e a adultidade.
Nesses embates, avulta pela primeira vez a necessidade do manejo
da idade, como uma forma de proteção das crianças e
adolescentes, dado que o ritmo de exploração punha em risco sua
sobrevivência e a reprodução da própria classe trabalhadora. O
processo de elaboração das leis fabris, ao deparar com a questão
da proibição do trabalho infantil e do trabalho noturno, vai obrigar
as classes interessadas, bem assim os segmentos de classe, à
discussão de limites etários mais complexos que a mera oposição
criança-adulto, até então suficiente e fundada exclusivamente na
condição de dependência.
Inicialmente, cabe lembrar que as leis fabris são criadas, ao
longo do século XIX, em um cenário em que se opõem e se
articulam forças distintas: a luta proletária contra a exploração; as
manifestações de ordem moral dos segmentos “humanitários” das
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
189
classes médias; finalmente, os setores capitalistas preocupados
com a dizimação do exército de reserva, que buscam frear a
sanha destrutiva da indústria nascente por meio de legislação
adequada à segurança jurídica para a continuidade do processo
de exploração.
A deflagração das lutas proletárias pela legislação fabril se
dá no curso de mudanças sócio-econômicas em que se torna
evidente o caráter devastador do novo processo produtivo. As
novas relações laborais e as expressões ideológicas desse período
histórico, por seu turno, impõem profundas alterações nas
condições das crianças e jovens, por um lado, ao isolá-los no
quadro de novas exigências laborais impostas ao conjunto da
família; por outro, ao submetê-los a uma lógica marcada pelo
individualismo e inseri-los em uma situação de isolamento e
abandono que atinge cada um dos membros da família.É nessa
configuração histórica, à sombra das chaminés das fábricas e ao
desamparo do mais entranhado individualismo, que vai emergir
nova distinção entre idades.
Como destaca Vigário (2004, p. 8) “até o século XVII
considerava-se que a família, por oposição ao indivíduo, era a
unidade essencial da organização social. Nesta perspectiva, as
crianças não eram diferentes dos membros adultos da família, uma
vez que eram todos concebidos como partes componentes de
uma unidade maior, a família alargada”. Na indústria artesanal,
mulheres e crianças geralmente trabalhavam em casa, sem
perceber remuneração própria, constituindo uma força de
trabalho oculta, subordinada à figura do pai provedor. O trabalho
infantil contribuía para o bem estar da família e a facultava a
aprendizagem das habilidades laborais que lhe seriam requeridas
no mundo adulto. “Deste modo, a criança era instruída,
socializada, reprimida, sujeita a determinadas condições e
protegida do contágio moral na sua própria casa” (VIGÁRIO, 2004,
p. 10). Conforme historia Engels (2008), embora as condições de
trabalho nessas unidades familiares de produção não fossem ideais,
as crianças desfrutavam de ar puro e tinham uma alimentação,
não abundante, mas suficiente. Se ajudavam os pais, faziam-no
ocasionalmente, jamais numa jornada de trabalho de oito ou doze
horas. Trabalhavam duramente, mas o ritmo era menos regular,
pois eram donos de seu tempo e podiam dedicar o domingo a
Deus e a segunda-feira ao descanso.
Quando, entretanto, a expropriação das terras impôs a
transferência para as fábricas, a pobreza a que as famílias foram
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
190
reduzidas obrigou que os filhos acompanhassem os pais também
no trabalho fabril. Lá, foram submetidos ao ritmo e à jornada do
trabalho adulto. A nova forma de engajamento da família no
trabalho impõe a dispersão dos seus membros, na vida cotidiana.
Seja porque pai e mãe passam a maior parte do tempo no
trabalho, ficando os filhos ao abandono; seja porque os próprios
filhos, desde tenra idade, são insertos no trabalho fabril e, mesmo
quando laborando no mesmo local dos pais, não desfrutam de um
convívio efetivamente familiar. Essas mudanças impõem uma
notável inflexão nos fins da educação: antes orientada para criar
na criança um sentimento de grupo, agora se orienta pela
concorrência e o individualismo. Trata-se de uma guinada
substancial, sobretudo em relação às sociedades primitivas, nas
quais, segundo esclarecedora lição de Ponce (1985, PP. 20-21) esse
ideal consistia em adquirir, a ponto de torná-lo imperativo como
uma tendência orgânica, o sentimento profundo de que não havia
nada, mas absolutamente nada, superior aos interesses e às
necessidades da tribo.Antes de preparar os filhos para somar seus
esforços aos esforços dos demais, se impõe à família moderna
prepará-los para “enfrentar” a sociedade. Antes de ir ao encontro
da sociedade, impõe-se ir de encontro a ela. Sob um regime de
intensa e generalizada concorrência, inclusive entre os
trabalhadores, o individualismo é, agora, a diretriz pedagógica por
excelência.
Os homens, atomizados, separados e mesmo contrapostos
por interesses individuais, encontram-se no mercado. Ali estão os
bens de que necessitam, as coisas que constituem o objeto de seu
interesse e da sua satisfação. Tudo se vende, tudo se compra: é a
nova ordem. Tudo, inclusive os encontros humanos, a partir daí, não
mais ocorrem de forma gratuita. Dar-se-ão, doravante, em regra,
sob o signo dessa mesma lógica mercantil.
Todo o espectro de acontecimentos que ensejam o
individualismo dissolve a antiga pedagogia fundada na educação
pela convivência. A própria separação física entre crianças e
adultos, a impossibilidade de os pais acompanharem de perto o
dia-a-dia dos filhos retira da família as condições gerais de sua
formação e altera toda a lógica da organização educacional.
Urge criar, fora do lar, instituições que eduquem, seja quanto à
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
191
formação moral, seja quanto ao domínio de conhecimentos e
técnicas laborais125.
Outro aspecto de fundamental importância para a
emergência da luta pelas leis fabris, diz respeito às profundas
transformações nas condições tecnológicas do trabalho: o
desenvolvimento já alcançado à época permite igualar a força e
a habilidade laboral de diferentes sujeitos126. Ao potencializarem e
precisarem de forma inaudita os gestos humanos, os novos recursos
tecnológicos – sob os auspícios da ciência - tendem a anular as
diferenças naturais entre indivíduos adultos e entre indivíduos de
distintas idades. Essa igualização cria as condições necessárias
para uma nova forma de absorção da força de trabalho infanto-
juvenil. Entretanto, se esse arsenal tecnológico iguala força e
habilidade, não logra superar os limites que se levantarão à
intensificação do ritmo do trabalho, facultada por esses mesmos
recursos.
Aqui se evidencia a relação entre gênero, idade e a forma
capitalista da divisão técnica do trabalho. A simplificação do
trabalho e o emprego da maquinaria apagam as diferenças entre
os gêneros e as idades, tornando todos – crianças, homens e
mulheres - capazes de executar as mesmas funções laborais.
Entretanto, a intensificação do ritmo do trabalho, demandada pelo
aumento da produtividade no interior de uma jornada fixa,
recoloca, de forma inafastável, essas mesmas diferenças, tanto
demarcando os limites da resistência humana, como impondo a
observância de diferentes etapas, idades, condições físicas e
psíquicas para determinadas formas de inserção na jornada de
trabalho.
Assim, concomitantemente à possibilidade de indistinta
absorção de força de trabalho dos homens, das mulheres, dos
jovens e das crianças, nasce a gritante necessidade de proteger os
indivíduos das condições insalubres e da deletéria intensificação do
ritmo do trabalho. A revolta dos trabalhadores contra as condições
deletérias e aviltantes de trabalho – devastadoras para as crianças
125 Se estas instituições não existirem ou não funcionarem adequadamente, ou forem insuficientes para
acolher os filhos dos trabalhadores, estes serão relegados ao mais completo abandono. E aqui se impõe a exigência da modalidade escolar moderna, em oferta tanto quanto possível universal, visto que à
família trabalhadora foi subtraída a possibilidade de assisti-los adequada e permanentemente.
126 Dados os limites deste texto, não será desenvolvida a vasta e significativa temática da profunda repercussão do desenvolvimento científico-tecnológico no sistema produtivo e nas relações de
produção.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
192
e jovens – é o solo sobre o qual florescem, no curso do século XIX,
as lutas pela legislação protetiva. Na história dessa luta observam-
se, conforme lição de Marx (1982), duas tendências que se
desenvolvem em momentos subsequentes: no primeiro, relativo aos
estatutos de trabalho ingleses, a tendência é de extensão da
jornada; no segundo, pertinente à promulgação das leis fabris, a
tendência foi de sua redução compulsória.
Marx (1982, p. 307) situa, nestes termos, ambas as
tendências:
Sem dúvida, as pretensões do capital no seu estado
embrionário (quando começa a crescer e se assegura o direito de
sugar uma quantidade suficiente de trabalho excedente não
através da força das condições econômicas, mas através da ajuda
do estado) se apresentam bastante modestas, comparadas com a
jornada de trabalho resultante das concessões que, rosnando e
resistindo tem de fazer na idade adulta.
E, em seguida, esclarece:
É por isso natural que a jornada de trabalho prolongada,
que o capital procura impor aos trabalhadores adultos por meio da
coação do Estado, da metade do século XIV ao fim do século XVII,
coincida aproximadamente com o tempo limitado de trabalho,
que, na segunda metade do século XIX, é imposto pelo Estado,
com o fim de evitar a transformação do sangue das crianças em
capital.
No primeiro momento, o capital suga toda a força de
trabalho disponível, não fazendo distinção entre homens, mulheres
e crianças, em um quadro no qual, diz Marx (1982, p. 316) “todas as
fronteiras estabelecidas pela moral e pela natureza, pela idade e
pelo sexo, pelo dia e pela noite foram destruídas...”.
As máquinas simplificaram o trabalho, suprimindo o domínio
de técnicas custosas de difícil e lenta aquisição, e apagaram a
distinção física entre os trabalhadores. Isso permitiu a absorção,
pela fábrica, de mão de obra não especializada e a substituição
da mão de obra masculina adulta pelo trabalho de mulheres e de
jovens e crianças. Advinham daí duas grandes vantagens para o
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
193
capitalista: tratava-se de mão-de-obra mais obediente e
disciplinável e de menor valor127:
Tornando supérflua a fôrça muscular, a maquinaria permite
o emprego de trabalhadores sem fôrça muscular ou com
desenvolvimento físico incompleto, mas com membros mais
flexíveis. Por isso, a primeira preocupação do capitalista ao
empregar a maquinaria, foi a de utilizar o trabalho das mulheres e
das crianças. Assim, de poderoso meio de substituir trabalho e
trabalhadores, a maquinaria transformou-se imediatamente em
meio de aumentar o número de assalariados, colocando todos os
membros da família do trabalhador, sem distinção de sexo e de
idade, sob o domínio direto do capital. O trabalho obrigatório para
o capital tomou o lugar dos folguedos infantis e do trabalho livre
realizado, em casa, para a própria família, dentro de limites
estabelecidos pelos costumes (MARX, 1982, PP. 449-450).
Para receber esse exército pueril, entretanto, nenhuma
modificação se observa nas condições da jornada, do ritmo e do
local de trabalho. Ao contrário, o trabalho das mulheres e crianças,
nas fábricas, realiza-se nos mesmos ambientes e sob o mesmo ritmo
e intensidade de exploração a que se submetem os homens,
incluída, aí, a máxima extensão da jornada. Desnecessário lembrar
que o emprego de mão-de-obra de crianças e adolescentes,
naturalmente mais frágeis, ainda não completamente
desenvolvidos nem física, nem psiquicamente, acarreta uma
deterioração muito mais intensa, pondo em risco a própria
reprodução do exército de reserva. Engels (2008, pp. 194-195)
menciona o Relatório de Whilliam Sharp Jr., médico da fábrica de
Wood, em Bradford, a melhor equipada da região, apresentando
elementos que dão uma noção da situação dos pequenos
trabalhadores, à época:
1) Pude observar, nas condições mais favoráveis, os efeitos
do sistema fabril sobre a saúde das crianças; 2) tais efeitos,
decisivamente e em larga escala, mesmo naquelas condições
favoráveis, são os mais danosos; 3) em 1842, fui obrigado a tratar
127 A mão-de-obra infantil – referida como “meia força” – recebia ínfimo salário que, não raro,
consistia em apenas um sexto do valor da força de trabalho adulta, quando não fosse pago apenas em troca de alimentação e moradia. Não é sem razão, portanto, que os proprietários das fábricas se
mostraram, rapidamente, sequiosos por legiões de crianças e adolescentes, conforme patenteiam
inúmeros registros da época. A exploração do trabalho infanto-juvenil, entretanto, não se limita àqueles tempos.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
194
três quintos do total de crianças que trabalhavam na fábrica de
Wood; 4) o efeito mais danoso é tornar os organismos, senão
deformados, débeis e doentios; 5) em tudo isso, verificou-se uma
sensível melhora quando a jornada de trabalho das crianças foi
reduzida, em Wood, para dez horas.
Sobre o grau de desumanidade a que são submetidas as
crianças, Marx (1982, PP. 275-276) faz referência à declaração de
um juiz do condado Broughton, que presidia uma reunião na
prefeitura de Nottingham, em 14 de janeiro de 1860:
(...) naquela parte da população, empregada nas fábricas
de renda da cidade, reinavam sofrimentos e privações em grau
desconhecido no resto do mundo civilizado... As 2, 3 e 4 horas da
manhã, as crianças de 9 e 10 anos são arrancadas de camas
imundas e obrigadas a trabalhar até às 10, 11 ou 12 horas da noite,
para ganhar o indispensável à mera subsistência. Com isso, seus
membros definham, sua estatura se atrofia, suas faces se tornam
lívidas, seu ser mergulha num torpor pétreo, horripilante de se
contemplar...
Igualmente dantesco é o quadro traçado no relatório da
Children’s Employment Commission, relativo ao ano de 1863, sobre
a situação das crianças e jovens trabalhadores das fábricas de
fósforos de atrito:
A metade dos trabalhadores são meninos com menos de 13
anos e adolescentes com menos de 18. Essa indústria é tão
insalubre, repugnante e mal afamada que somente a parte mais
miserável da classe trabalhadora, viúvas famintas etc., cede-lhe
seus filhos, “crianças esfarrapadas, subnutridas, sem nunca terem
freqüentado a escola” (...) Dante acharia que foram ultrapassadas
nessa indústria suas mais cruéis fantasias (MARX, 1982, p. 279).
Nesse cenário eclodem os primeiros movimentos da luta
operária, inicialmente voltados à redução da jornada de trabalho
e à proteção das crianças e das mulheres. A identidade das
condições de vida, sofrimentos e angústias dos trabalhadores, ao
lado da abissal diferença em relação às condições de existência
do patronato, põe em curso um sentimento de pertencimento que,
com muita dificuldade, vai cimentando um interesse coletivo, uma
vontade comum, uma consciência de classe, uma perspectiva
unitária de luta.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
195
Por outro lado, o próprio Estado vem em socorro do capital,
estabelecendo o equilíbrio da concorrência, prejudicado pelo
excesso de uns e outros capitalistas, dado que a livre competição
“torna as leis imanentes da produção capitalista, leis externas,
compulsórias para cada capitalista individualmente considerado”
(MARX, 1982, p. 307). Esse socorro vem em forma de uma tentativa
de uniformização mínima da jornada, reivindicada em alguns casos
pelos próprios capitalistas, conforme registrado no Children’s
Employment Comission, de 1863, citado por Marx:
No começo de 1863, 26 firmas proprietárias de grandes
cerâmicas em Staffordshire, entre elas Josiah Wedgwood & Sons,
pediram num memorial “uma intervenção coativa do Estado”.
Alegavam que a concorrência com outros capitalistas não lhes
permitia limitar à sua vontade o tempo de trabalho das crianças,
etc. “Por mais que lamentemos os abusos acima mencionados,
seria impossível impedi-los por meio de qualquer acordo entre os
fabricantes... considerando todos esses pontos, ficamos
convencidos ser necessária uma lei coativa”.
Assim, combinando resistência dos operários e apreensão
dos capitalistas quanto a um desequilíbrio nas condições
concorrenciais – seja pela desigualdade no trato da força de
trabalho, seja pelo risco de elevação do seu custo em razão da
destruição de um volume substancial do exército de reserva – e
com o reforço de publicistas e profissionais liberais, representantes
das classes médias, põe-se em curso a segunda tendência do trato
da jornada: a sua redução compulsória, por meio da legislação.
Por outro lado, os fabricantes, em particular os grandes
industriais, evitavam confrontos desnecessários com os
trabalhadores (ENGELS, 2008) e em face de iminente agitação,
cediam naquilo que, sem maiores riscos, garantisse uma suspensão
dos conflitos. Nesse quadro, as novas leis fabris eram gestadas sem
que houvesse garantia de sua concreta efetivação. Com efeito,
sob uma aparência filantrópica, edulcoradas por um discurso que
propugnava por justiça e igualdade, essas medidas eram ineficazes
do ponto de vista de seu cumprimento no interior das fábricas, ao
mesmo tempo em que revelavam eficácia na outra ponta, ou seja,
no apaziguamento dos confrontos.
No embate que gesta o catálogo de leis fabris, avulta pela
primeira vez a necessidade do manejo da idade, como uma forma
de proteção das crianças e adolescentes, cujo ritmo de
exploração punha em risco sua sobrevivência e a reprodução da
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
196
própria classe trabalhadora128. Nesse embate, se hão de distinguir
crianças, adolescentes, jovens e adultos, como se pretende
demonstrar no estudo das mais importantes leis do período129.
O primeiro diploma a ser lembrado é a Lei da Saúde e Moral
dos Aprendizes - The Moral and Heralth Act - proposta por Robert
Peel e aprovada em 22 de junho de 1802. À época, crianças de
todos os rincões da Inglaterra – algumas com apenas seis ou sete
anos de idade – eram encaminhadas na condição de aprendizes -
pelos Poor Law Guardians - para as fábricas, onde eram expostas a
todo tipo de sofrimento decorrente do regime de exploração,
então sem os limites de qualquer freio legal. A lei foi proposta para
minimizar esse estado de coisas. Ela proibia o trabalho noturno dos
menores, estabelecendo como limites de início e término da
jornada as 6h e as 20h, respectivamente, bem como limitava a
jornada a 12 horas. Ainda, determinava algumas melhorias nas
condições de trabalho – pintura e melhoria da ventilação do local
de trabalho – e de formação dos menores, queteriam de receber
alguns rudimentos de educação, freqüentar a igreja mensalmente
e não serem constrangidas a dividir a mesma cama com mais de
duas outras crianças. O cumprimento dessa legislação dependia
de um sistema pouco eficaz: os Juízes de Paz nomeariam,
anualmente, dois voluntários para realizarem a inspeção das
fábricas - os visitors. A negligência de alguns voluntários, somada à
prévia comunicação das visitas – o que permitia o preparo de um
cenário adequado para a aprovação do fiscal - bem como à
coerção física e moral para que os próprios trabalhadores não
denunciassem a situação real em que trabalhavam e viviam
explica a ineficiência dessa lei. Uma brecha para o trabalho infantil
residia na lei de aprendizagem, que não fazia restrição à idade.
Essa brecha era comumente utilizada para burlar os fiscais. Ainda
assim, a Lei de 1802, para além de ter sido a primeira legislação
protetiva dos trabalhadores, teve o mérito também de lançar luzes
sobre o problema dos aprendizes.
Em 1815, em um cenário de intensa agitação dos
trabalhadores, Robert Owen, defensor da reforma fabril e
proprietário de tecelagens em New Larnak, divulga as condições
de trabalho de suas fábricas e informa à Comissão de Inquérito que
128 Pela mesma razão - a maior fragilidade - a legislação alcançou a questão do gênero, incluindo à
defesa das crianças e adolescentes, também a defesa das mulheres.
129 Na exposição sobre as leis fabris, tomou-se principalmente como referência: Marx (1982); Engels
(2008); Vigário (2004).
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
197
não emprega nenhuma criança com menos de dez anos de
idade, iniciando uma campanha para limitar a 10 horas diárias a
jornada infantil. A campanha encontrou resistência de proprietários
do ramo têxtil. Alegavam que o trabalho infantil era imprescindível
e, por outro lado, aumentar a folga das crianças, diminuindo-lhes a
jornada, propiciaria que elas, desocupadas, adotassem maus
hábitos.
A polêmica levou à formação de Comissões de
investigação, cujos resultados levantados forçaram a
promulgação, em 1819, de uma Lei – novamente de autoria de
Robert Peel – que estipulava horário pré-determinado para as
refeições das crianças, observando-se um intervalo de trinta
minutos para o café da manhã e uma hora para o almoço.
Também tornava ilegal o emprego de crianças com idade inferior
a nove anos e estabelecia a jornada máxima de 12 horas diárias
para aquelas com idade inferior a 16 anos. A jornada noturna, das
nove horas da noite às cinco horas da manhã, foi proibida para
trabalhadores com idade entre nove e dezesseis anos.Com esta lei,
pela primeira vez estabeleceu-se um limite etário para o trabalho
infantil nas fábricas.
Em 1831, votou-se uma lei que proibiu o trabalho noturno
para todos os trabalhadores com menos de vinte e um anos. Mas,
dada a ineficácia da legislação protetiva já promulgada – em
especial, a Lei de 1819 -, os trabalhadores, organizados em
associações operárias, deflagraram inúmeros movimentos de
agitação reivindicando uma lei que limitasse a dez horas a jornada
dos jovens menores de 18 anos. Em setembro de 1830, Richard
Oastler publica uma carta-denúncia no jornal de Leeds. Setores
mais avançados dos tories, sob liderança de Michael Sadler,
assumiram o apoio à Lei das Dez Horas – Ten Hours Bill. Com a
perda do mandato, Sadler é substituído, na defesa da reforma
fabril, por Lord Ashley, cujos esforços no Parlamento contribuem
para a promulgação da Lei de 1833 que conjugava medidas
regulamentadoras do trabalho infantil e medidas de inspeção. É
importante destacar o ineditismo dessa lei no que se refere a uma
diferenciação etária entre crianças e adolescentes. Conforme
lembra Vigário (2004, p. 69), “a distinção entre crianças e jovens foi
estabelecida, pela primeira vez, na Lei de 1833. Entre os nove e os
treze anos de idade eram consideradas crianças e os que tinham
idades compreendidas entre os treze e os dezoito eram conhecidos
por jovens”. Por esta lei, declarou-se ilegal empregar crianças
menores de 9 anos – sendo exigido do médico da fábrica um
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
198
atestado comprovando a idade do empregado. Para as crianças
entre 9 e 13 anos, estabeleceu-se 9 horas como teto para a
jornada diária e quarenta e oito horas para a jornada semanal130.
Além disso, a lei determinava que os trabalhadores entre nove e
treze anos deviam freqüentar a escola por duas horas diárias e
apresentar comprovante de freqüência escolar, assinado pelo
professor (voucher). Os adolescentes poderiam submeter-se a
jornadas de doze horas diárias e sessenta e nove horas semanais,
mas era proibido o trabalho noturno (entre as 20h30 e as 5h30) para
todos os menores de 18 anos. Essa lei inovou também ao
estabelecer um intervalo mínimo de uma hora e meia para as
refeições. Apesar da figura do fiscal nomeado – outra inovação da
lei -, a fiscalização do cumprimento dos seus preceitos restou
dificultada, pois os proprietários fabris estabeleceram o mecanismo
do sistema de turnos. Assim, esclarece Vigário (2004, p. 71), “as
crianças e os jovens eram obrigados a trabalhar em vários turnos,
pelo que os inspetores não se poderiam certificar do seu horário
laboral”. Por outro lado, muitos proprietários, insatisfeitos, reagiram
demitindo em massa as crianças ou, simplesmente, recorrendo à
fraude, que generalizou-se de inúmeras maneiras, facilitada pela
ausência de obrigatoriedade de registros de nascimento131, o
sistema de turnos, cooptação de médicos e fiscais e, inclusive, pelo
valor irrelevante das multas que caberiam aos proprietários em
caso de descumprimento da lei. Os parcos resultados concretos
dos dispositivos legais forçavam os trabalhadores ao exercício
permanente da agitação, na luta por melhores condições de
trabalho. Em 1844, nova legislação reduz para oito anos a idade
mínima para o trabalho fabril; limita a seis horas e meia ou sete
horas a jornada diária das crianças com idade entre oito e treze
anos; estabelece a proibição, para menores de treze anos, de
jornadas com mais de sete horas sucessivas ou dez horas em dias
alternados; e proíbe a ocupação de crianças na limpeza das
máquinas em movimento.
Entrementes, as associações operárias continuavam a
agitação para a criação de uma Ten Hours Bill para todos os
operários. Porém, diante da hostilidade dos proprietários fabris, os
reformadores adotaram, no Parlamento, a tática de restringir suas
exigências aos dispositivos que beneficiavam, além das mulheres,
130 A lei previa um período de transição de 2 anos e meio para a implantação deste dispositivo, de
modo que, inicialmente, a restrição limitava-se às crianças de 9 a 11 anos.
131 Somente em 1837 passou a vigorar legislação pertinente ao registro de nascimento. Além do que,
sua obrigatoriedade dar-se-á apenas nos idos de 1870.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
199
os jovens com menos de 18 anos. Por esta razão, a Lei de 1847 – a
Lei das Dez Horas – limitou para 10 horas diárias a jornada de
trabalho das mulheres e dos jovens operários. Não obstante, o
funcionamento das máquinas por 15 horas seguidas, bem como o
sistema de turnos, tornava difícil a fiscalização e, logo, o
cumprimento desse dispositivo legal.
Em 1850 aprova-se nova lei, cuja relevância reside no fato
de que, ao estipular as horas de início e término da jornada de
trabalho das mulheres, crianças e jovens – das seis às dezoito horas,
ou das sete às 19 horas – repercute, indiretamente, na jornada dos
trabalhadores homens, adultos, uma vez que era oneroso para o
proprietário fabril manter as máquinas em funcionamento nos
demais horários somente com a mão-de-obra masculina. Assim, os
homens acabaram se beneficiando de uma jornada de dez horas,
que não encontrava, ainda, previsão legal para eles.
Uma lei de 1874 elevou para dez anos a idade mínima para
o trabalho. Em 1891, a idade foi ampliada para onze anos; em 1901
para doze anos e, finalmente, em 1920, para catorze anos.
Ampliando as restrições ao emprego de crianças, a Lei de 1878132
estabeleceu três condições para o ingresso no trabalho: idade
adequada, educação suficiente e aptidão física. Essas condições
deveriam ser comprovadas por atestados médico e escolar. A lei
também ampliou a segurança em relação à limpeza das
máquinas, proibindo agora que crianças limpassem também as
partes fixas do maquinário em movimento.
A pressão popular, com o eventual apoio de setores do
capitalismo emergente, preocupados tanto com a reprodução do
exército de reserva - com um contingente de trabalhadores
suficiente para pressionar para baixo salários e garantir a
substituição contínua de mão de obra - como com um possível
adensamento das revoltas proletárias, logrou arrancar alguns
dispositivos protetivos que obrigaram a sociedade a debruçar-se
sobre a questão das diferenças entre crianças e jovens, em relação
aos homens adultos. A exploração da força de trabalho, sob o
ritmo e a intensidade da maquinaria impõe um debate cujo
conteúdo é notadamente original: a relação entre as condições e
132 De 1850 a 1878, outras leis fabris foram promulgadas pelo Parlamento da Inglaterra: Leis de 1856,
de 1864, de 1867, de 1871. Essas leis estipularam, entre outros dispositivos, condições de higiene e
segurança do trabalho, extensão dos direitos para trabalhadores de outras indústrias, além das têxteis, e para as oficinas; regulamentação das funções de fiscalização, etc. Entretanto, para os objetivos deste
trabalho, entendeu-se desnecessário comentá-las.
MARXISMO & CIÊNCIAS HUMANAS: LEITURAS SOBRE O CAPITALISMO NUM CONTEXTO DE CRISE
200
limites da intensificação da exploração da força de trabalho e “as
idades da vida”.
Incorporado à legislação, o marco etário com que se
simbolizam aqueles limites passa a ser tomado pela coisa
simbolizada. A partir daí, a legislação passa a definir crianças,
adolescentes e adultos com referência em mero critério etário e
desta forma, ao mesmo tempo em que naturalizam-se “idades da
vida”, oculta-se que a definição dessas idades se impõe pelo
caráter destrutivo que o trabalho assume sob as relações
capitalistas de produção, aviltando mesmo as mínimas condições
de preservação física e psíquica das crianças e jovens. A luta
proletária pela legislação fabril constitui, assim, um componente
fundamental da construção das categorias criança e adolescente
nos marcos da modernidade, ao exigir que a sociedade, nos
embates travados pela redução da jornada de trabalho, se
obrigasse a definir limites para a imposição de condições
excessivamente deletérias aos trabalhadores, de modo a garantir,
ao menos, a recomposição do exército de reserva. Encontrou-se tal
garantia preservando-se minimamente os brotos da vida.
Quando adultos, e em condições de cumprir uma de suas
funções sob o capital - gerar a prole para renovar a força de
trabalho – serão novamente expostos a níveis sempre crescentes
de intensificação do ritmo de exploração do trabalho, a menos
que, para além de uma definição jurídica das fases da vida, se
construa uma nova fase para a vida de toda a humanidade.
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ESTA OBRA FOI IMPRESSA PELA
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