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MARXISMO E FILOSOFIA DA LINGUAGEM BAKHTIN, Mikhail 12ª Edição – 2006 - HUCITEC

Marxismo e filosofia da linguagem

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MARXISMO E FILOSOFIA DA LINGUAGEM

BAKHTIN, Mikhail12ª Edição – 2006 - HUCITEC

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Prefácio (R. Jakobson) • Afirma que a obra é de Bakhtin;• Chama Voloshinov de “adepto e discípulo do pesquisador”,

“Apesar de toda a singularidade da biografia do livro e de seu autor,é pela novidade e originalidade de seu conteúdo que a obra maissurpreende todo leitor de espírito aberto. Esse volume, cujo subtítulodiz Os problemas fundamentais do método sociológico na ciência dalinguagem, antecipa as atuais explorações realizadas no campo dasociolingüística e, principalmente, consegue preceder as pesquisassemióticas de hoje e fixar-lhes novas tarefas de grande envergadura.A “dialética do signo”, e do signo verbal em particular, que éestudada no livro conserva, ou melhor, adquire um grande valorsugestivo à luz dos debates semióticos contemporâneos.”

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Introdução (Marina Yaguello)“Bakhtin pertencia a um pequeno círculo de intelectuais e deartistas entre os quais se encontravam Marc Chagall e o musicólogoSollertinsky, amigo íntimo de Chostakovitch. Também fazia partedeste círculo um jovem professor do Conservatório de Música deVitebsk, V. N. Volochínov, e ainda P. N. Medviédiev, empregado deuma casa editora. Os dois tornaram-se alunos, amigos devotados eardorosos admiradores de Bakhtin. Este círculo, conhecido sob onome de “círculo de Bakhtin”, foi um cadinho de idéias inovadoras,numa época de muita criatividade, particularmente nos domínios daarte e das ciências humanas.”

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Introdução (Marina Yaguello)“Em 1923, atacado de osteomielite, Bakhtin retornou a Petrogrado.Impossibilitado de trabalhar regularmente, deve ter passado por umasituação material difícil. Seus discípulos e admiradores, Volochínov eMedviédiev, seguiram-no a Petrogrado. Animados pelo desejo de virajudar financeiramente a seu mestre e, ao mesmo tempo, divulgar suasidéias, ofereceram seus nomes a fim de tornar possível a publicaçãode suas primeiras obras. Freidizm (O Freudismo, Leningrado, 1927)e Marxismo e Filosofia da Linguagem (Leningrado, 1929) saíram sob onome de Volochínov. Formalni métod v literaturoviédenie. Kritítcheskoievvdiénie v sotsiologuítcheskuiu poétiku (O Método FormalistaAplicado à Crítica Literária. Introdução Crítica à Poética Sociológica)que constituiu uma crítica aos formalistas, foi publicado em 1928,também em Leningrado sob a assinatura de Medviédiev. Por que,então Bakhtin não os publicou com seu próprio nome? Não hádúvidas quanto à paternidade de suas obras. (...)”

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BRANDIST, C. The Bakhtin circle. Philosophy, Culture and Politics

“As noted earlier, the works with which we will be concerned in this chapter are of disputed authorship, and Bakhtin’s participation in their production cannot be excluded. However, I will discuss them as predominantly the work of their signatories, but also as products of the meetings and discussions of the Circle at the time.We will see that Voloshinov and Medvedev brought to the Circle expertise in contemporary psychology, philosophy of language and German art history that ultimately transformed ‘Bakhtinian’ theory into what we know today. (...)Apart from the very different tone and language of the works published in the names of Voloshinov and Medvedev, one is immediately struck by the quality and quantity of footnote references found there. Together, these factors signal a very different authorial practice (...).” (p. 62)

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Split or whole – the status of subject and society in Voloshinov’s work – 2005

Patrick Seriot• http://www.ut.ee/SOSE/oppetoo/seriot_txt/seriot_split.pdf• O autor critica a recepção feita de Voloshinov no

ocidente.• O autor diz que:

– o sujeito é em Voloshinov concreto (indivíduo), não é o sujeito da enunciação; é “completo”, todo poderoso, todo consciência, não é o sujeito dividido da psicanálise. Há uma interação como “cooperação”, sem desentendimentos.

– A visão de sociedade em Voloshinov é determinista. A sociedade é um bloco homogêneo.

– A ideologia não é falsa consciência, não há ideologia dominante.

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Cap. 5 – Língua, fala e enunciação

p. 92/93 – língua como algo concreto, em uso, signo variável e flexível

Na realidade, o locutor serve-se da língua para suas necessidadesenunciativas concretas (para o locutor, a construção da língua estáorientada no sentido da enunciação da fala). Trata-se, para ele, deutilizar as formas normativas (admitamos, por enquanto, alegitimidade destas) num dado contexto concreto. Para ele, o centrode gravidade da língua não reside na conformidade à norma da formautilizada, mas na nova significação que essa forma adquireno contexto. O que importa não é o aspecto da forma lingüísticaque, em qualquer caso em que esta é utilizada, permanece sempreidêntico. Não; para o locutor o que importa é aquilo que permiteque a forma lingüística figure num dado contexto, aquilo que a tornaum signo adequado às condições de uma situação concreta dada. Parao locutor, a forma lingüística não tem importância enquanto sinalestável e sempre igual a si mesmo, mas somente enquanto signosempre variável e flexível. Este é o ponto de vista do locutor.

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Cap. 5 – Língua, fala e enunciaçãop. 93 – o ponto de vista do receptor/destinatário – a questão

da leitura

Mas o locutor também deve levar em consideração o ponto devista do receptor. Seria aqui que a norma lingüística entraria em jogo?Não, também não é exatamente assim. É impossível reduzir-se o atode descodificação ao reconhecimento de uma forma lingüísticautilizada pelo locutor como forma familiar, conhecida – modo comoreconhecemos, por exemplo, um sinal ao qual não estamossuficientemente habituados ou uma forma de uma língua queconhecemos mal. Não; o essencial na tarefa de descodificação nãoconsiste em reconhecer a forma utilizada, mas compreendê-la numcontexto concreto preciso, compreender sua significação numaenunciação particular. Em suma, trata-se de perceber seu caráter denovidade e não somente sua conformidade à norma. Em outrostermos, o receptor, pertencente à mesma comunidade lingüística,também considera a forma lingüística utilizada como um signovariável e flexível e não como um sinal imutável e sempre idêntico asi mesmo.

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Cap. 5 – Língua, fala e enunciação• p. 95 – palavra e ideologiaAssim, na prática viva da língua, a consciência lingüística do locutor edo receptor nada tem a ver com um sistema abstrato de formasnormativas, mas apenas com a linguagem no sentido de conjunto doscontextos possíveis de uso de cada forma particular. Para o falante nativo,a palavra não se apresenta como um item de dicionário, mas como partedas mais diversas enunciações dos locutores A, B ou C de suacomunidade e das múltiplas enunciações de sua própria práticalingüística. (...)De fato, a forma lingüística, como acabamos de mostrar, sempre seapresenta aos locutores no contexto de enunciações precisas, o queimplica sempre um contexto ideológico preciso. Na realidade, não sãopalavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades oumentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis oudesagradáveis, etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdoou de um sentido ideológico ou vivencial. É assim quecompreendemos as palavras e somente reagimos àquelas quedespertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida.

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Cap. 5 – Língua, fala e enunciação• p. 98 – o enunciado é orientado para um outro (outro social)Toda enunciação monológica, inclusive uma inscrição num monumento, constitui um elemento inalienável da comunicação verbal. Toda enunciação,mesmo na forma imobilizada da escrita, é uma resposta a algumacoisa e é construída como tal. Não passa de um elo da cadeia dos atosde fala. Toda inscrição prolonga aquelas que a precederam, trava umapolêmica com elas, conta com as reações ativas da compreensão,antecipa-as. Cada inscrição constitui uma parte inalienável da ciênciaou da literatura ou da vida política. Uma inscrição, como todaenunciação monológica, é produzida para ser compreendida, éorientada para uma leitura no contexto da vida científica ou darealidade literária do momento, isto é, no contexto do processoideológico do qual ela é parte integrante. O filólogo-lingüista desvincula-a dessa esfera real, apreende-acomo um todo isolado que se basta a si mesmo, e não lhe aplica umacompreensão ideológica ativa, e sim, ao contrário, uma compreensãototalmente passiva, que não comporta nem o esboço de uma resposta,como seria exigido por qualquer espécie autêntica de compreensão. Ofilólogo contenta-se em tomar essa inscrição isolada como umdocumento de linguagem e em compará-la com outras inscrições noquadro geral de uma língua dada.

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Cap. 5 – Língua, fala e enunciação

• p. 99 – compreensão ativa / crítica à linguística da época

Veremos mais adiante que esse tipo de compreensão, que exclui deantemão qualquer resposta, nada tem a ver com a compreensão dalinguagem. Essa última confunde-se com uma tomada de posiçãoativa a propósito do que é dito e compreendido. A compreensãopassiva caracteriza-se justamente por uma nítida percepção docomponente normativo do signo lingüístico, isto é, pela percepção dosigno como objeto-sinal: correlativamente, o reconhecimentopredomina sobre a compreensão.Assim é a língua morta-escrita-estrangeira que serve de base àconcepção da língua que emana da reflexão lingüística. A enunciaçãoisolada-fechada-monológica, desvinculada de seu contexto lingüísticoe real, à qual se opõe, não uma resposta potencial ativa, mas acompreensão passiva do filólogo: este é o “dado” último e o ponto departida da reflexão lingüística.

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Cap. 5 – Língua, fala e enunciação

• p. 103 - Objetivismo abstrato:

1. Nas formas lingüísticas, o fator normativo e estável prevalecesobre o caráter mutável.2. O abstrato prevalece sobre o concreto.3. O sistemático abstrato prevalece sobre a verdade histórica.4. As formas dos elementos prevalecem sobre as do conjunto.5. A reificação do elemento lingüístico isolado substitui adinâmica da fala.6. Univocidade da palavra mais do que polissemia e plurivalênciavivas.7. Representação da linguagem como um produto acabado, que setransmite de geração a geração.8. Incapacidade de compreender o processo gerativo interno dalíngua.

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Cap. 5 – Língua, fala e enunciação(p. 107) 7. Para o objetivismo abstrato, a língua, como produto acabado,transmite-se de geração a geração. Evidentemente, é de um ângulometafórico que os adeptos da segunda orientação entendem essatransmissão da língua como herança de um objeto: mas essacomparação não constitui para eles apenas uma metáfora.Configurando o sistema da língua e tratando as línguas vivas como sefossem mortas e estrangeiras, o objetivismo abstrato coloca a línguafora do fluxo da comunicação verbal. Esse fluxo avançacontinuamente, enquanto a língua, como uma bola, pula de geraçãopara geração.Entretanto, a língua é inseparável desse fluxo e avança juntamentecom ele. Na verdade, a língua não se transmite; eladura e perdura sob a forma de um processo evolutivo contínuo.Os indivíduos não recebem a língua pronta para ser usada;eles penetram na corrente da comunicação verbal; ou melhor, somentequando mergulham nessa corrente é que sua consciênciadesperta e começa a operar. É apenas no processo de aquisiçãode uma língua estrangeira que a consciência já consti-tuída – graças à língua materna – se confronta com uma línguatoda pronta, que só lhe resta assimilar. Os sujeitos não “adquirem”sua língua materna; é nela e por meio dela que ocorre o primeirodespertar da consciência.

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Cap. 5 – Língua, fala e enunciação(p. 108) 8. O objetivismo abstrato, como vimos, não sabe ligar a existênciada língua na sua abstrata dimensão sincrônica comsua evolução. Para a consciência do locutor, a língua existecomo sistema de formas sujeitas a normas; e só para o historiadoré que ela existe como processo evolutivo. O que exclui a possibilidadede associação ativa da consciência do locutor com o processode evolução histórica. Torna-se, assim, impossível a conjunçãodialética entre necessidade e liberdade e até, por assim dizer,a responsabilidade lingüística. Assenta-se, aqui, o reino deuma concepção puramente mecanicista da necessidade no domínioda língua. (...)Ao contrário, ele nos distancia da realidadeevolutiva e viva da língua e de suas funções sociais, embora osadeptos do objetivismo abstrato tenham pretensões quanto àsignificação sociológica de seus pontos de vista. Na base dosfundamentos teóricos do objetivismo abstrato,estão as premissas de uma visão do mundo racionalista e mecanicista,as menos favoráveis a uma concepção correta da história; ora, alíngua é um fenômeno puramente histórico.

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Cap. 5 – Língua, fala e enunciação

• p. 109 – síntese dialética entre objetivismo abstrato e subjetivismo individualista

Queremos, agora, chamar a atenção para o seguinte: ao considerarque só o sistema lingüístico pode dar conta dos fatos da língua, oobjetivo abstrato rejeita a enunciação, o ato de fala, como sendoindividual. Como dissemos, é esse o proton pseudos, a “primeiramentira”, do objetivismo abstrato. O subjetivismo individualista, aocontrário, só leva em consideração a fala. Mas ele também considerao ato de fala como individual e é por isso que tenta explicá-lo a partirdas condições da vida psíquica individual do sujeito falante. E esse éo seu proton pseudos.Na realidade, o ato de fala, ou, mais exatamente, seu produto, aenunciação, não pode de forma alguma ser considerado comoindividual no sentido estrito do termo; não pode ser explicado a partirdas condições psicofisiológicas do sujeito falante. A enunciação é denatureza social.

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Cap. 6 – A interação verbal• Subjetivismo idealista:P. 110-111: Como se apresenta a enunciação monológica do ponto de vistado subjetivismo individualista? Vimos que ela se apresenta como umato puramente individual, como uma expressão da consciênciaindividual, de seus desejos, suas intenções, seus impulsos criadores,seus gostos, etc. (...)Mas o que é afinal a expressão? Sua mais simples e mais grosseiradefinição é: tudo aquilo que, tendo se formado e determinado dealguma maneira no psiquismo do indivíduo, exterioriza-seobjetivamente para outrem com a ajuda de algum código de signosexteriores.A expressão comporta, portanto, duas facetas: o conteúdo(interior) e sua objetivação exterior para outrem (ou também para simesmo). A teoria da expressão supõeinevitavelmente um certo dualismo entre o que é interior e o que éexterior, com primazia explícita do conteúdo interior, já que todo atode objetivação (expressão) procede do interior para o exterior. Suasfontes são interiores. Não é por acaso que a teoria do subjetivismoindividualista, como todas as teorias da expressão, só se pôdedesenvolver sobre um terreno idealista e espiritualista. Tudo que éessencial é interior, o que é exterior só se torna essencial a título dereceptáculo do conteúdo interior, de meio de expressão do espírito.

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Cap. 6 – A interação verbal • p. 112 (centro no exterior)A teoria da expressão que serve de fundamento à primeiraorientação do pensamento filosófico-lingüístico é radicalmente falsa.O conteúdo a exprimir e sua objetivação externa são criados, comovimos, a partir de um único e mesmo material, pois não existeatividade mental sem expressão semiótica. Conseqüentemente, épreciso eliminar de saída o princípio de uma distinção qualitativaentre o conteúdo interior e a expressão exterior. Além disso, o centro organizador e formador não se situa no

interior, mas no exterior. Não é a atividade mental que organiza a expressão, mas, ao contrário, é a expressão que organiza a atividade mental, que a modela e determina sua orientação.

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Cap. 6 – A interação verbal

• p. 112 (situação imediata e interlocutor)

Qualquer que seja o aspecto da expressão-enunciação considerado,ele será determinado pelas condições reais da enunciação em questão,isto é, antes de tudo pela situação social mais imediata.Com efeito, a enunciação é o produto da interação de doisindivíduos socialmente organizados e, mesmo que não haja uminterlocutor real, este pode ser substituído pelo representante médiodo grupo social ao qual pertence o locutor. A palavra dirige-se a uminterlocutor: ela é função da pessoa desse interlocutor: variará se setratar de uma pessoa do mesmo grupo social ou não, se esta forinferior ou superior na hierarquia social, se estiver ligada ao locutorpor laços sociais mais ou menos estreitos (pai, mãe, marido, etc.).

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Cap. 6 – A interação verbal• p. 112 – 113 (interação no horizonte social mais amplo)

Na maior parte dos casos, épreciso supor além disso um certo horizonte social definido eestabelecido que determina a criação ideológica do grupo social e daépoca a que pertencemos, um horizonte contemporâneo da nossaliteratura, da nossa ciência, da nossa moral, do nosso direito.O mundo interior e a reflexão de cada indivíduo têm umauditório social próprio bem estabelecido, em cuja atmosfera seconstroem suas deduções interiores, suas motivações, apreciações,etc. Quanto mais aculturado for o indivíduo, mais o auditório emquestão se aproximará do auditório médio da criação ideológica, masem todo caso o interlocutor ideal não pode ultrapassar as fronteiras deuma classe e de uma época bem definidas.Essa orientação da palavra em função do interlocutor tem umaimportância muito grande. Na realidade, toda palavra comporta duasfaces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém,como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamenteo produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve deexpressão a um em relação ao outro. Através da palavra, defino-meem relação ao outro, isto é, em última análise, em relação àcoletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim eos outros. Se ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outraapóia-se sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum dolocutor e do interlocutor.

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Cap. 6 – A interação verbal• p. 115 – p. 116 (atividade mental do eu e atividade mental do

nós)

Na relação com um ouvinte potencial (e algumas vezesdistintamente percebido), podem-se distinguir dois pólos, dois limites,dentro dos quais se realiza a tomada de consciência e a elaboraçãoideológica. A atividade mental oscila de um a outro. Por convenção,chamemos esses dois pólos atividade mental do eu e atividade mentaldo nós. (...)A atividade mental do nós permite diferentes graus e diferentestipos de modelagem ideológica (...)Todos os tipos de atividade mental que examinamos [para expressão da fome], com suasinflexões principais, geram modelos e formas de enunciaçõescorrespondentes. Em todos os casos, a situação social determina quemodelo, que metáfora, que forma de enunciação servirá para exprimira fome a partir das direções inflexivas da experiência.

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Cap. 6 – A interação verbal• p. 117-118 (consciência do sujeito)

Assim, a personalidade que se exprime, apreendida, porassim dizer, do interior, revela-se um produto total da inter-relaçãosocial. A atividade mental do sujeito constitui, da mesma forma que aexpressão exterior, um território social. Em conseqüência, todo oitinerário que leva da atividade mental (o “conteúdo a exprimir”) àsua objetivação externa (a “enunciação”) situa-se completamente emterritório social. (...)Tudo isso lança uma nova luz sobre o problema da consciênciae da ideologia. Fora de sua objetivação, de sua realização nummaterial determinado (o gesto, a palavra, o grito), a consciênciaé uma ficção. (...)Uma vez materializada, a expressão exerce umefeito reversivo sobre a atividade mental: ela põe-se então a estruturara vida interior, a dar-lhe uma expressão ainda mais definidae mais estável.Essa ação reversiva da expressão bem formada sobre a atividademental (isto é, a expressão interior) tem uma importânciaenorme, que deve ser sempre considerada. Pode-se dizer que nãoé tanto a expressão que se adapta ao nosso mundo interior, maso nosso mundo interior que se adapta às possibilidades denossa expressão, aos seus caminhos e orientações possíveis

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Cap. 6 – A interação verbal• p. 118-119 – ideologia do cotidiano e sistemas ideológicos

constituídos

Chamaremos a totalidade da atividade mental centrada sobre a vidacotidiana, assim como a expressão que a ela se liga, ideologia docotidiano, para distingui-la dos sistemas ideológicos constituídos, taiscomo a arte, a moral, o direito, etc. A ideologia do cotidiano constituio domínio da palavra interior e exterior desordenada e não fixada numsistema, que acompanha cada um dos nossos atos ou gestos e cadaum dos nossos estados de consciência. (...)Os sistemas ideológicos constituídos da moral social, da ciência,da arte e da religião cristalizam-se a partir da ideologia do cotidiano,exercem por sua vez sobre esta, em retorno, uma forte influência edão assim normalmente o tom a essa ideologia. Mas, ao mesmotempo, esses produtos ideológicos constituídos conservamconstantemente um elo orgânico vivo com a ideologia do cotidiano;alimentam-se de sua seiva, pois, fora dela, morrem (...).

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Cap. 6 – A interação verbal• p. 119-120 - ideologia do cotidiano

Na ideologia do cotidiano, é preciso distinguir vários níveis (...).Esse tipo de atividade mental constitui o nível inferior, aquele quedesliza e muda mais rapidamente na ideologia do cotidiano.Conseqüentemente, colocaremos nesse nível todas as atividadesmentais e pensamentos confusos e informes que se acendem e apagamna nossa alma, assim como as palavras fortuitas ou inúteis. Estamosdiante de abortos da orientação social, incapazes de viver,comparáveis a romances sem heróis ou a representações semespectadores. São privados de toda lógica ou unicidade. Éextremamente difícil perceber nesses farrapos ideológicos leissociológicas. (...)Os níveis superiores da ideologia do cotidiano que estãoem contato direto com os sistemas ideológicos, são substanciais etêm um caráter de responsabilidade e de criatividade. São mais móveise sensíveis que as ideologias constituídas. São capazesde repercutir as mudanças da infra-estrutura sócio-econômicamais rápida e mais distintamente. Aí justamente é que se acumulamas energias criadoras com cujo auxílio se efetuam as revisõesparciais ou totais dos sistemas ideológicos. Logo que aparecem, asnovas forças sociais encontram sua primeira expressão e suaelaboração ideológica nesses níveis superiores da ideologia docotidiano, antes que consigam invadir a arena da ideologia oficialconstituída

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Cap. 6 – A interação verbal• p. 121-122 – resumo

Assim, a teoria da expressão subjacente ao subjetivismoindividualista deve ser completamente rejeitada. O centro organizador de toda enunciação, de toda expressão, não é interior, mas exterior: está situado no meio social que envolve o indivíduo (...).A enunciação individual (a “parole”), contrariamente à teoriado objetivismo abstrato, não é de maneira alguma um fato individualque, pela sua individualidade, não se presta à análise sociológica. (...)A estrutura daenunciação e da atividade mental a exprimir são de natureza social. Aelaboração estilística da enunciação é de natureza sociológica e aprópria cadeia verbal, à qual se reduz em última análise a realidade dalíngua, é social. Cada elo dessa cadeia é social, assim como toda adinâmica da sua evolução. (...)A verdadeira substância dalíngua não é constituída por um sistema abstrato de formaslingüísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo atopsicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social dainteração verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações.A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua.A língua vive e evolui historicamente na comunicação verbalconcreta, não no sistema lingüístico abstrato das formas da línguanem no psiquismo individual dos falantes. (p. 124)

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Cap. 6 – A interação verbal• p. 123 - diálogoO diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro, senãouma das formas, é verdade que das mais importantes, da interaçãoverbal. Mas pode-se compreender a palavra “diálogo” num sentidoamplo, isto é, não apenas como a comunicação em voz alta, depessoas colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, dequalquer tipo que seja.O livro, isto é, o ato de fala impresso, constitui igualmente umelemento da comunicação verbal. Ele é objeto de discussões ativassob a forma de diálogo e, além disso, é feito para ser apreendido demaneira ativa, para ser estudado a fundo, comentado e criticado noquadro do discurso interior, sem contar as reações impressas,institucionalizadas, que se encontram nas diferentes esferas dacomunicação verbal (críticas, resenhas, que exercem influência sobreos trabalhos posteriores, etc.). Além disso, o ato de fala sob a formade livro é sempre orientado em função das intervenções anteriores namesma esfera de atividade, tanto as do próprio autor como as deoutros autores: ele decorre portanto da situação particular de umproblema científico ou de um estilo de produção literária. Assim, odiscurso escrito é de certa maneira parte integrante de uma discussãoideológica em grande escala: ele responde a alguma coisa, refuta,confirma, antecipa as respostas e objeções potenciais, procura apoio,etc.

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Cap. 6 – A interação verbal• Tipo de interação verbal (gêneros do discurso) – metodologia• Unidade de estudo • Esferas de atividade

“Disso decorre que a ordem metodológica para o estudo da línguadeve ser o seguinte:1. As formas e os tipos de interação verbal em ligação com ascondições concretas em que se realiza.2. As formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados,em ligação estreita com a interação de que constituem os elementos,isto é, as categorias de atos de fala na vida e na criação ideológica quese prestam a uma determinação pela interação verbal.3. A partir daí, exame das formas da língua na sua interpretaçãolingüística habitual. (...)as unidades reais da cadeia verbal são as enunciações. Mas, justamente,para estudar as formas dessas unidades, convém não separá-las docurso histórico das enunciações. Enquanto um todo, a enunciação sóse realiza no curso da comunicação verbal, pois o todo é determinadopelos seus limites, que se configuram pelos pontos de contato de umadeterminada enunciação com o meio extraverbal e verbal (isto é, asoutras enunciações).”

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Cap. 6 – A interação verbalSó se pode falar de fórmulas específicas, de estereótipos no discurso da vida

cotidiana quando existem formas de vida em comum relativamente regularizadas, reforçadas pelo uso e pelas circunstâncias. Assim, encontram-se tipos particulares de fórmulas estereotipadas servindo às necessidades da conversa de salão, fútil e que não cria nenhuma obrigação, em que todos os participantes são familiares uns aos outros e onde a diferença principal é entre homens e mulheres. Encontram-se elaboradas formas particulares de palavras-alusões, de subentendidos, de reminiscências de pequenos incidentes sem nenhuma importância, etc. Um outro tipo de fórmula elabora-se na conversa entre marido e mulher, entre irmão e irmã. Pessoas inteiramente estranhas umas às outras e reunidas por acaso (numa fila, numa entidade qualquer) começam, constroem e terminam suas declarações e suas réplicas de maneira completamente diferente. Encontram-se ainda outros tipos nos serões no campo, nas quermesses populares na cidade, na conversa dos operários à hora do almoço, etc. Toda situação inscrita duravelmente nos costumes possui um auditório organizado de uma certa maneira e conseqüentemente um certo repertório de pequenas fórmulas correntes. A fórmula estereotipada adapta-se, em qualquer lugar, ao canal de interação social que lhe é reservado, refletindo ideologicamente o tipo, a estrutura, os objetivos e a composição social do grupo. As fórmulas da vida corrente fazem parte do meio social, são elementos da festa, dos lazeres, das relações que se travam no hotel, nas fábricas, etc. Elas coincidem com esse meio, são por ele delimitadas e determinadas em todos os aspectos. Assim, encontram-se diferentes formas de construção de enunciações nos lugares de produção de trabalho e nos meios de comércio.

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Cap. 6 – A interação verbalNo que se refere às formas dacomunicação ideológica no sentido preciso do termo – as formas dasdeclarações políticas, atos políticos, leis, decretos, manifestos, etc.; eas formas das enunciações poéticas, tratados científicos, etc. – todaselas foram objeto de pesquisas especializadas em retórica e poética.Mas, como vimos, essas pesquisas estiveram completamentedivorciadas, de um lado, do problema da linguagem, e do outro, doproblema da comunicação social. Uma análise fecunda das formas doconjunto de enunciações como unidades reais na cadeia verbal só épossível de uma perspectiva que encare a enunciação individual comoum fenômeno puramente sociológico. A filosofia marxistada linguagem deve justamente colocar como base de sua doutrinaa enunciação como realidade da linguagem e como estruturasócio-ideológica.

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CAPÍTULO 7TEMA E SIGNIFICAÇÃO NA LÍNGUA

• P. 128, 129 – tema (unidade temática, verbal e não verbal)

Um sentido definido e único, uma significação unitária, é umapropriedade que pertence a cada enunciação como um todo. Vamoschamar o sentido da enunciação completa o seu tema. O tema deveser único. Caso contrário, não teríamos nenhuma base para definir aenunciação. O tema da enunciação é na verdade, assim como aprópria enunciação, individual e não reiterável. Ele se apresenta comoa expressão de uma situação histórica concreta que deu origem àenunciação. A enunciação: “Que horas são?” tem um sentidodiferente cada vez que é usada e também, conseqüentemente, na nossaterminologia, um outro tema, que depende da situação históricaconcreta (histórica, numa escala microscópica) em que é pronunciadae da qual constitui na verdade um elemento.Conclui-se que o tema da enunciação é determinado não sópelas formas lingüísticas que entram na composição (as palavras, asformas morfológicas ou sintáticas, os sons, as entoações), masigualmente pelos elementos não verbais da situação. Se perdermosde vista os elementos da situação, estaremos tão pouco aptosa compreender a enunciação como se perdêssemos suas palavrasmais importantes. O tema da enunciação é concreto, tão concretocomo o instante histórico ao qual ela pertence. Somentea enunciação tomada em toda a sua amplitude concreta, comofenômeno histórico, possui um tema. Isto é o que se entende portema da enunciação.

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CAPÍTULO 7TEMA E SIGNIFICAÇÃO NA LÍNGUA

• P. 129 – tema e significação

Além do tema, ou, mais exatamente,no interior dele, a enunciação é igualmente dotada de umasignificação. Por significação, diferentemente do tema, entendemosos elementos da enunciação que são reiteráveis e idênticos cadavez que são repetidos. Naturalmente, esses elementos são abstratos:fundados sobre uma convenção, eles não têm existência concretaindependente, o que não os impede de formar uma parte inalienável,indispensável, da enunciação. (...)O tema é um sistema de signos dinâmico e complexo, que procuraadaptar-se adequadamente às condições de um dado momentoda evolução. O tema é uma reação da consciência em devir ao serem devir. A significação é um aparato técnico para a realizaçãodo tema. Bem entendido, é impossível traçar uma fronteira mecânicaabsoluta entre a significação e o tema. Não há temasem significação, e vice-versa

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CAPÍTULO 7TEMA E SIGNIFICAÇÃO NA LÍNGUA

• P. 131 – relação entre significação e tema

A maneira mais correta de formular a inter-relação do tema eda significação é a seguinte: o tema constitui o estágio superiorreal da capacidade lingüística de significar. De fato, apenas otema significa de maneira determinada. A significação é o estágioinferior da capacidade de significar. A significação não quer dizernada em si mesma, ela é apenas um potencial, uma possibilidade designificar no interior de um tema concreto. A investigação dasignificação de um ou outro elemento lingüístico pode, segundo adefinição que demos, orientar-se para duas direções: para o estágiosuperior, o tema; nesse caso, tratar-se-ia da investigação dasignificação contextual de uma dada palavra nas condições de umaenunciação concreta. Ou então ela pode tender para o estágio inferior,o da significação: nesse caso, será a investigação da significação dapalavra no sistema da língua, ou em outros termos a investigação dapalavra dicionarizada.

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CAPÍTULO 7TEMA E SIGNIFICAÇÃO NA LÍNGUA

• P. 131-132 – tema, significação e compreensão

Qualquer tipo genuíno de compreensão deveser ativo, deve conter já o germe de uma resposta. Só a compreensãoativa nos permite apreender o tema (...).Compreender a enunciação de outrem significa orientar-seem relação a ela, encontrar o seu lugar adequado no contextocorrespondente. A cada palavra da enunciação que estamos emprocesso de compreender, fazemos corresponder uma série depalavras nossas, formando uma réplica. Quanto mais numerosas esubstanciais forem, mais profunda e real é a nossa compreensão.Assim, cada um dos elementos significativos isoláveis deuma enunciação e a enunciação toda são transferidos nas nossasmentes para um outro contexto, ativo e responsivo. A compreensãoé uma forma de diálogo; ela está para a enunciação assim comouma réplica está para a outra no diálogo. Compreender é opora palavra do locutor uma contrapalavra. (...). Na verdade, a significação pertence a uma palavra enquantotraço de união entre os interlocutores, isto é, ela só se realiza noprocesso de compreensão ativa e responsiva.

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CAPÍTULO 7TEMA E SIGNIFICAÇÃO NA LÍNGUA

• p. 132 -134 – acento apreciativo e entoação

Toda palavra usada na fala real possui não apenas temae significação no sentido objetivo, de conteúdo, desses termos, mastambém um acento de valor ou apreciativo, isto é, quando umconteúdo objetivo é expresso (dito ou escrito) pela fala viva, ele é acento apreciativo, não há palavra.Em que consiste esse acento e qual é a sua relação com a faceobjetiva da significação? O nível mais óbvio, que é ao mesmo tempoo mais superficial da apreciação social contida na palavra, étransmitido através da entoação expressiva. Na maioria dos casos, aentoação é determinada pela situação imediata e freqüentemente porsuas circunstâncias mais efêmeras (...).Os acentos apreciativos dessa ordem eas entoações correspondentes não podem ultrapassar os limitesestreitos da situação imediata e de um pequeno círculo social íntimo.Podemos qualificá-los como auxiliares marginais das significaçõeslingüísticas.

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CAPÍTULO 7TEMA E SIGNIFICAÇÃO NA LÍNGUAp. 134-136 – acento apreciativo e horizonte social

Entretanto, nem todos os julgamentos de valor são como esses.Em qualquer enunciação, por maior que seja amplitude do seuespectro semântico e da audiência social de que goza, uma enormeimportância pertence à apreciação. (...). Não se pode construiruma enunciação sem modalidade apreciativa. Toda enunciaçãocompreende antes de mais nada uma orientação apreciativa.É por isso que, na enunciação viva, cada elemento contém ao mesmotempo um sentido e uma apreciação. (...)É justamente para compreender a evolução histórica do tema edas significações que o compõem que é indispensável levar emconta a apreciação social. A evolução semântica na língua é sempreligada à evolução do horizonte apreciativo de um dado gruposocial e a evolução do horizonte apreciativo – no sentido da totalidadede tudo que tem sentido e importância aos olhos de um determinadogrupo – é inteiramente determinada pela expansão da infra-estruturaeconômica.

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• P. 136 - RESUMO

O resultado é uma luta incessante dos acentos em cada áreasemântica da existência. Não há nada na composição do sentido quepossa colocar-se acima da evolução, que seja independente doalargamento dialético do horizonte social. A sociedade emtransformação alarga-se para integrar o ser em transformação. Nadapode permanecer estável nesse processo. É por isso que asignificação, elemento abstrato igual a si mesmo, é absorvida pelotema, e dilacerada por suas contradições vivas, para retornar enfimsob a forma de uma nova significação com uma estabilidade e umaidentidade igualmente provisórias.