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DE MIKHAIL BAKHTIN'/ NA EDITORA HUCITEC MIKHAILBAKH'HN IV N. Volochínovl A Cultwa Popular na Idade Média e no Renascimento. o Contexto de François Rabelais Questõesde Literatura e de Estética Marxismo e Filosofia da Linguagem Problemas Fundamentais do Método Sociológico na Ciência da Linguagem prefácio de ROMAN JAKOBSON apresentação de MARINA YAGUELLO traduçãode MICHEI. LAnÍD & YARA FRATESCm VIEIRA com a colabora ção de LÚCIA TEIXEntA WISMK & CARA,OS HIENNQUE D. CHAGAS CRUZ 12.'edição! EDITORAHUCITEC São Paulo,2006 b608so

Marxismo Filosofia da Linguagem

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Page 1: Marxismo Filosofia da Linguagem

DE MIKHAIL BAKHTIN'/ NA EDITORA HUCITEC MIKHAILBAKH'HNIV N. VolochínovlA Cultwa Popular na Idade Média e no Renascimento.

o Contexto de François RabelaisQuestões de Literatura e de Estética

Marxismo e Filosofiada Linguagem

Problemas Fundamentais do Método Sociológicona Ciência da Linguagem

prefácio deROMAN JAKOBSON

apresentação deMARINA YAGUELLO

traduçãodeMICHEI. LAnÍD & YARA FRATESCm VIEIRA

com a colabora ção deLÚCIA TEIXEntA WISMK & CARA,OS HIENNQUE D. CHAGAS CRUZ

12.'edição!

EDITORAHUCITECSão Paulo,2006

b608so

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mos descobrir as balizas já colocadas no caminho da resolução desteproblema pelas tendências do pensamento filosófico-hngüístico quenos precederam. Por fim, achamo-nos diante de duas categorias desinalizações colocadas em direções diametralmente opostas. De umlado, as teses do subjetivismo individualista:.ç, de outro, as antítesesdo objetivismoãli$jrato Mãiique é que se revela como o verdadei-ro núcleo da realidade linguística? O ato individual da fala -- aenunciação -- ou o sistema da língua? E qual é, pois, o modo deexistência da realidade lingüística? Evolução criadora ininterruptaou imutabilidade de normas idênticas a si mesmas?

CAPÍTULO 5LÍNGUA,FALAEENUNCIAÇAO

No capítulo precedente, tentamos representar de maneira total-mente objetiva as duas orientações do pensamento filosófico-lingüístico. Agora, devemos submetê-las a uma análise crítica emprofundidade. Isso feito, estaremos em condições de responder àquestão levantada no fim do Capítulo 4. Comecemos pela crítica dasegunda orientação, a do objetivismo abstrato.

Coloquemo-nos, primeiro, a seguinte questão: em que medi-da um sistema de normas imutáveis -- isto é, um sistema de lín-gua, segundo os representantes da segunda orientação -- confor-ma-se à realidade? Evidentemente, nenhum dos representantes doobjetivismo abstrato confere ao sistema linguístico um caráter derealidade material eterna. Esse sistema exprime-se, efetivamen-te, em coisas materiais, em signos, mas, enquanto sistema de for-mas normativas, sua realidade repousa na sua qualidade de normasocial. Os representantes dessa orientação acentuam constante-mente que o sistema lingüístico constitui um fato objetivo exter-no à consciência individual e independente desta -- e isto repre-senta uma de suas posições fundamentais. E,. no entanto, é só paraa consciência individual, e do ponto de vista dela, que a língua seapresenta como sisterúa de normas rígidas e imutáveis. Na verda-de, se fizermos abstração da consciência individual subjetiva e lan-çarmos sobre a língua um olhar verdatleiramente objetivo, umolhar, digamos, oblíquo, ou melhor, de cima, não encontraremosnenhum indício de um sistema de normas imutáveis. Pelo con-trário, depararemos com a evolução ininterrupta das normas dalíngua. De um ponto de vista realmente objetivo, percebendo alíngua de um modo completamente diferente daquele como elaapareceria para um certo indivíduo, num dado momento do tempo,a língua apresenta-se como uma corrente evolutiva ininterrupta.Para o observador que enfoca a língua de cima, o lapso de tempo

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em cujos limites é possível construir um sistema sincrânico nãopassa de uma ficção.

Assim, de um ponto de vista ob/etivo, o sistema slncrõnlco nãocorresponde a nenhum momento efetivo do processo de evoluçãoda ]íhgua. E, na verdade, para o historiador da língua que adota umponto de vista diacrónico, o sistema sincrânico não constitui umarealidade; ele apenas serve de escala convencional para registrar osdesvios que se produzem a cada momento no tempo. O sistemasincrõnico da língua só existe do ponto de vista da consciência sub-jetiva do locutor de uma dada comunidade linguística num dadomomento da história. Objetivamente, esse sistema não existe emnenhum verdadeiro momento da história. Podemos admitir que nomomento em que César escrevia suas obras, a língua latina consti-tuía para ele um sistema imutável e incontestável de normas fixas;mas, para o historiador da língua latina, naquele mesmo momentoem que César escrevia, produzia-se um processo contínuo de transfor-mação linguística mesmo se o historiador não for capaz de regis-trar essas transformações.

Todo sistema de normas sociais encontra-se numa posição aná-loga; somente existe relacionado à consciência subjetiva dos indi-víduos que participam da coletividade regida por essas normas. Sãoassim os sistemas de normas morais, jurídicas, estéticas Itais nor-mas realmente existeml, etc. Certamente, essas normas variam.Diferem pelo grau de coerção que exercem, pela extensão de suaescala social, pelo grau de significação social, que é função de suarelação mais ou menos próxima com a infra-estrutura, etc. Mas,enquanto normas, a natureza de sua existência permanece a mes-ma; só existem relativamente à consciência subjetiva dos indiví-duos de uma dada comunidade. Segue-se, então, que essa relaçãoentre a consciência subjetiva e a língua como sistema objetivo denormas incontestáveis seja desprovida de qualquer objetividade? Não,evidentemente. Compreendida corretamente, essa relação pode serconsiderada um fato objetivo. Dizer que a língua, como sistema denormas imutáveis e incontestáveis, possui uma existência objetivaé cometer um grave erro. Mas exprime-se uma relação perfeitamen-te objetiva quando se diz que a língua constitui, relativamente àconsciência individual, um sistema de normas imutáveis, que este éo modo de existência da língua para todo membro de uma comuni-dade linguística dada. Se o próprio fato está corretamente estabele-cido, se é realmente 'herdade que a língua se apresenta para a cons-

ciência do locutor como um sistema de normas fixas e imutáveis, éuma outra questão que, por enquanto, será deixada em aberto. Emtodo caso, nosso alvo é poder estabelecer uma certa relação objetiva.

Qual a posição dos partidários do objetivismo abstrato com re-lação a esse ponto? Afirmam eles que a língua é um sistema de nor-mas fixas objetivas e incontestáveis ou percebem que este é apenaso modo de existência da língua para a consciência subjetiva dos lo-cutores de uma dada comunidade? A melhor resposta a essa questãoé a seguinte: a maioria dos partidários do objetivismo abstrato tendea afirmar a realidade e a objetividade imediatas da língua como sis-tema de formas normativas. Para esses representantes da segundaorientação, o objetivismo abstrato toma-se simplesmente hipos-tático. Outros representantes da mesma orientação IMeillet, porexemplos são mais críticos e percebem a natureza abstrata e con-vencional do sistema linguístico. No entanto, nenhum dos objeti-vistas abstratos chegou a compreender de maneira clara e precisa ofuncionamento intrínseco da língua como sistema objetivo. Na maio-ria dos casos, eles oscilam entre as duas acepções que a palawa "obje-tivo" possui quando aplicada ao sistema linguístico: a acepção, porassim dizer, entre aspas jexpressando o ponto de vista da consciên-cia subjetiva do locutora e a acepção sem aspas jobjetivo no sentidopróprios. Até Saussure procede dessa maneira. Ele não resolve a ques-tão claramente.

Devemos, agora, perguntar-nos se a língua existe realmente paraa consciência subjetiva do locutor unicamente como sistema obje-tivo de formas normativas e intocáveis. O objetivismo abstrato cap-tou conetamente o ponto de vista da consciência subjetiva do locutor?É realmente este o modo de existência da língua na consciência lin-guística subjetiva? A essa questão somos obrigados a responder pelanegativa. A consciência subjetiva do locutor não se utiliza da línguacomo de um sistema de formas normativas. Tal sistema é uma meraabstração, produzida com dificuldade por procedimentos cognitivosbem-determinados. O sistema lingtiístiêo é o produto de uma re-flexão sobre a língua, reflexão que não procede da consciência dolocutor nativo e que não serve aos propósitos imediatos da comu-nicação.

Na realidade, o locutor serve-se da língua para suas necessida-des enunciativas concretas apara o locutor, a construção da língua >está orientada no sentido da enunciação da falai. Trata-se, para ele,de utilizar as formas normativas jadmitamos, por enquanto, a legiti-

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midade destasl num dado contexto concreto. Para ele, o centro degravidade da língua não reside na conformidade à norma da formautilizada, mas na nova significação que essa forma adquire no con-texto. O que importa não é o aspecto da forma linguística que, emqualquer caso em que esta é utilizada, permanece sempre idêntico.Não; para o locutor o que importa é aquilo que permite que a formalinguística figure num dado contexto, aquilo que a torna um signoadequado às condições de uma situação concreta dada. Para o lo-cutor, a forma linguística não tem importância enquanto sinal está-vel e sempre igual a si mesmo, mas somente enquanto signo semprevariável e flexível. Este é o ponto de vista do locutor.

Mas o locutor também deve levar em consideração o ponto devista do receptor. Seria aqui que a norma linguística entraria emjogo? Não, também não é exatamente assim. É impossível reduzir-se o ato de descodificação ao reconhecimento de uma forma linguís-tica utilizada pelo locutor como forma familiar, conhecida -- modocomo reconhecemos, por exemplo, um sinal ao qual não estamossuficientemente habituados ou uma forma de uma língua que conhe-cemos mal. Não; o essencial na tarefa de descodificação não consisteem reconhecer a forma utilizada, mas compreende-la num contextoconcreto preciso, compreender sua significação numa enunciaçãoparticular. Em fuma, trata-se de perceber seu caráter de novidade enão somente sua conformidade à norma. Em outros termos, o recep-tor, pertencente à mesma comunidade linguística, também consideraa forma lingüística utilizada como um signo variável e flexível e nãocomo um sinal imutável e sempre idêntico a si mesmo.

O processo de descodificação jcompreensãol não deve, em ne-nhum caso, ser confundido com o processo de identificação. Trata-se de dois processos profundamente distintos. O signo é desco-dificado; só o sinal é identificado. O sinal é uma entidade de conteú-do imutável; ele não pode substituir, nem refletir, nem refutar nada;constitui apenas um instrumento técnico para designar este ou aqueleobjeto jpreciso e imutávell ou este ou aquele acontecimento jigual-mente preciso e imutávell.i O sinal não pertence ao domínio da ideo-logia; ele faz parte do mundo dos objetos técnicos, dos instrumentos

de produção no sentido amplo do termo. Mais distantes ainda daideologia estão os sinais com os quais trabalha a reflexologia. Essessinais, considerados em ]'elação ao organismo que os recebe, isto é,ao organismo sobre o qual eles incidem, nada têm a ver com as téc-nicas de produção. Nesse caso, não são mais sinais, mas estímulosde uma espécie particular. SÓ se tornam instrumentos de produçãonas mãos do experimentador. Somente um concurso infeliz de cir-cunstâncias e as inextirpáveis práticas da reflexão mecanicista pude-ram induzir certos pesquisadores a fazer desses "sinais", praticamen-te, a chave da compreensão da linguagem e do psiquismo humanoIdo discurso interiorl.

Enquanto uma forma linguística for apenas um sinal e for perce-bida pelo receptor somente como tal, ela não terá para ele nenhumvalor lingüístico. A pura "sinalidade" não existe, mesmo nas pri-meiras fases da aquisição da linguagem. Até mesmo ali, a forma éorientada pelo contexto, já constitui um signo, embora o compo-nente de "finalidade" e de identificação que Ihe é correlata seja real.Assim, o elemento que torna a forma linguística um signo não é suaidentidade como sinal, mas sua mobilidade específica; da mesmaforma que aquilo que constitui a descodificação da forma linguísticanão é o reconhecimento do sinal, mas a compreensão da palavra nóseu sentido particular, isto é, a apreensão da orientação que é con-ferida à palavra por um contexto e uma situação precisos, uma orien-tação no sentido da evolução e não do imobilismo.'

Disso não se conclui que o componente de "sinalidade" e seucorrelato, a identificação, não existam na língua. Existem, mas nãocomo constituintes da língua como tal. O componente de "sina-lidade" é dialeticamente deslocado, absorvido pela nova qualidadedo signo listo é, da língua como tala. Na língua materna, isto é, pre-cisamente para os membros de uma comunidade linguística dada, osinal e o reconhecimento estão dialeticamente apagados. No pro-cesso de assimilação de uma língua estrangeira, sente-se a "sina-lidade" e o reconhecimento, que não foram ainda dominados: a lín-gua ainda não se tornou língua. A assimilação ideal de uma língua

Karl Bühler, no seu artigo "Vom Wesem der Syntax" jin: FestschriP/ür Kar/Vossler, pp. 61 -91, estabelece distinções interessantes e astuciosas entre, de umlado, o sinal e suas combinações Ino domínio marítimo, por exemplos e, de outro,a forma linguística e suas combinações, em conexão com os problemas de sintaxe.

2 Veremos mais adiante que é justamente a compreensão no sentido próprio,

a compreensão da evolução, que se acha na base da resposta, isto é, da interaçãoverbal. É impossível delimitar de modo estrito o ato de compreensão e a resposta.Todo ato de compreensão é uma resposta, na medida em que ele introduz o objetoda compreensão num novo contexto -- o contexto potencial da resposta.

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dá-se quando o sinal é completamente absorvido pelo signo e o reco-nhecimento pela compreensão.3

Assim, na prática viva da língua, a consciência linguística dolocutor e do receptor nada tem a ver com um sistema abstrato deformas normativas, mas apenas com a linguagem no sentido de con-junto dos contextos possíveis de uso de cada forma particular. Parao falante nativo, a palavra não se apresenta como um item de dicio-nário, mas como parte das mais diversas enunciações dos locutor.esA, B ou C de sua comunidade e das múltiplas enunciações de suaprópria prática linguística. Para que se passe a perceber a palavracomo uma forma fixa pertencente ao sistema lexical de uma línguadada -- como uma palavra de dicionário --) é preciso que se adoteuma orientação particular e específica. É por isso que os membrosde uma comunidade linguística, normalmente, não percebem nun-ca o caráter coercitivo das normas linguísticas. A significação nor-mativa da forma linguística:jó se dçjxa perceber'ãõimomçBIQlgJconflito, mõiiiêiiios raríssimos e não característicos do uso da !ÍD--guaLpara o homem contemporâneo, eles estão quase exclusivamen-te associados à expressão escritas.

Cumpre ainda acrescentar aqui uma observação extremamenteimportante: a consciência lingüística dos sujeitos falantes não temo que fazer com a forma linguística enquanto tal, nem com a próprialíngua como tal.

De fato, a forma linguística, como acabamos de mostrar, sem-pre se apresenta aos locutores no contexto de enunciações precisas,o que implica sempre um contexto ideológico preciso. Na realidade,não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades

ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveisou desagradáveis, etc. .A palavra'está sempre carregada de um con-teúdo ou de um sentido ídeoZógíco ou vívencía]. É assim que com-preendemos as palavras e somente reagimos àquelas que despertamem nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida.

O critério de correção só se aplica à enunciação em situaçõesanormais ou particulares lpol' exemplo, no estudo de uma línguaestrangeiras. Em condições normais, o critério de correção linguísti-ca cede lugar ao critério puramente ideológico: importa-nos menosa correção da enunciação do que seu valor de verdade ou de mentira,seu caráter poético ou vulgar, etc.' A língua, no seu uso prático, éinseparável de seu conteúdo ideológico ou relativo à vida. Para seseparar abstratamente a língua de seu conteúdo ideológico ou viven-cial, é preciso elaborar procedifnentos particulares não condiciona-dos pelas motivações da consciência do locutor.

Se, à maneira de alguns representantes da segunda orientação,fizermos dessa separação abst].ata um princípio, se concedermos umestatuto separado à forma lingüística vazia de ideologia, só encon-tl'arcmos sinais e não mais signos da linguagem. A separação da lín-gua de seu conteúdo ideológico constitui um dos erros mais grossei-ros do objetivismo abstrato.

Assim, a língua, para a consciência dos indivíduos que a falam,de maneira alguma se apresenta como um sistema de formas nor-mativas. O sistema lingüístico tal como é construído pelo objeti-vismo abstrato não é diretamente acessível à consciência do sujeitofalante, definido pol' sua prática viva de comunicação social.

No que consiste, então, esse sistema? É claro, desde o começo,que esse sistema resulta de uma análise abstrata, que ele se compõede elementos abstratamente isolados das unidades reais da cadeiaverbal, das enunciações. Todo procedimento abstrato, para se legiti-mar, deve ser justificado por um propósito teórico e prático preciso.Uma abstração pode ser fecunda ou estéril, útil para certos fins edeterminadas tarefas e não para outras.

Quais são, então, as metas da análise linguística abstrata queconduz ao sistema sincrânico da língua? E de que ponto de vista essesistema se revela produtivo e necessário? Na base dos métodos de

; O ponto de vista que defendemos, embora cabeça de uma sustentação teóri-ca, constitui, na prática, a base de todos os métodos eficazes de ensino de línguasvivas estrangeiras. O essencial desses métodos é familiarizar o aprendiz com cadaforma da língua inserida num contexto e numa situação concretas. Assim, umapalavra nova só é introduzida mediante uma série decontextos em que ela ligue.O que faz com que o fatos de reconhecimento da palavra normativa seja, logo deinício, associado e dialeticamente integrado aos favores de mutabilidade contextual,de diferença e de novidade. A palavra isolada de seu contexto, inscrita num cader-no e apreendida por associação com seu equivalente russo, torna-se, por assimdizer, sinal, torna-se uma coisa única e, no processo de compreensão, o fator de re-conhecimento adquire um peso muito forte. Em suma, um método eficaz e corre-io de ensino prático exige que a forma seja assimilada não no sistema abstrato dalíngua, isto é, como uma forma sempre idêntica a si mesma, mas na estruturaconcreta da enunciação, como um signo flexível e variável.

4 Por isso, como veremos, não podemos concordar com Vossler quanto à existên-cia de um "gosto linguístico" específico e determinado, que não se confunda a cadamomento com um "gosto" ideológico particular jartístico, cognitivo, ético, etc.l.

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reflexão linguística que levam à postulação da língua como sistemade formas normativas, estão os procedimentos práticos e teóricoselaborados para o estudo das línguas mortas, que se conservaramem documentos escritos. Ê preciso salientar com insistência queessa abordagem filológica foi determinante para o pensamentolingüístico do mundo europeu. Esse pensamento nasceu e nutriu-sedos cadáveres dessas línguas escritas. Quase todas as abordagensfundamentais e as práticas desse pensamento foram elaboradas noprocesso de ressurreição desses cadáveres. O filologismo é um traçoinevitável de toda a linguística européia, condicionada pelas vicissi-tudes históricas que presidiram ao seu nascimento e seu desenvolvi-mento. Por mais que voltemos os olhos ao passado para traçar ahistória das categorias e dos métodos linguísticos, sempre encontra-remos filólogos. Os alexandrinos eram filólogos, assim como os ro-manos e os gregos IAristóteles é um exemplo típicos. Também aíndia possuía seus filólogos.

Podemos dizer que a linguística surgiu quando e onde surgiramexigências filológicas. Os imperativos da filologia engendraram a lin-guística, acalentaram-na e deixaram dentro de suas fraldas a flautada filologia. Essa flauta tem por função despertar os mortos. Masessa flauta carece da potência necessária para dominar a fala viva,com sua evolução permanente.

Nicolau Marr salienta muito corretamente essa essência filo-lógica do pensamento linguístico indo-europeu:

insuficiência de dados sólidos; é nosso modo de pensamento cien-tífico, forjado por uma visão do mundo tradicionalmente filológicae pela história da cultura; esse pensamento não foi nutrido poruma concepção etnolingtiística da fala viva, por suas formas queela adquire."ó

Essas palavras de N. Marr parecem-nos justas não apenas noque tange aos estudos indo-europeus, que forneceram o tom a toda alinguística contemporânea, mas também no que respeita à linguís-tica toda, tal como a conhecemos pela história. Em toda parte, alinguística é filha da filologia. Submetida aos imperativos desta, alinguística sempre se apoiou em enunciações constitutivas de mo-nólogos fechados, por exemplo, em inscrições em monumentos anti-gos, considerando-as como a realidade mais imediata. A lingtlísticaelaborou seus métodos e categorias trabalhando com monólogosmortos, ou melhor, com um corpus de enunciações desse tipo, cujoúnico ponto comum é o uso da mesma língua.

E, no entanto, a enunciação monológica já é uma abstração, em-bora seja uma abstração de tipo "natural". Toda enunciação mon(i-lógica, inclusive uma inscrição num monumento, constitui um ele-mcnto inalienável da comunicação verbal. Toda enunciação, mesmona forma imobilizada da escrita, é uma resposta a alguma coisa e éconstruída como tal. Não passa de um elo da cadeia dos atos de fala.Toda inscrição prolonga aquelas que a precederam, trava uma polé-mica com elas, conta com as reações ãtivas da compreensão, anteci-pa-as. Cada inscrição constitui uma parte inalienável da ciência ouda literatura ou da vida política. Uma inscrição, como toda enun-ciação monológica, é produzida pal'a sel' compreendida, é orientadapara uma leitura no contexto da vida científica ou da realidade lite-rária do momento, isto é, no contexto do processo ideológico doqual ela é parte integrante.

C) filólogo-linguista desvincula-a dessa esfera real, apreende-a comoum todo isolado que se basta a si mesmo, e não Ihe aplica uma com-pl'eensão ideológica ativa, e sim, ao contrário, uma compreensão to-talmente passiva, que não comporta nem o esboço de uma resposta,como seria exigido por qualquer espécie autêntica de compreensão. Ofilólogo contenta-se em tomai' essa inscrição isolada como um do-

"A linguística indo-européia, dispondo já há muito tempo deum objeto de investigação estabelecido e completamente forma-do -- a saber, as línguas indo-europeias das épocas históricas -- e,além do mais, tirando todas as suas conclusões das formas petri-ficadas das línguas escritas -- favorecendo, entre estas, as línguasmortas -- foi, com toda evidência, incapaz de descrever o proces-so de aparição da linguagem em geral e a origem das diferentesformas que ela adquire."s

Ou ainda:

"0 que gera os maiores obstáculos jao estudo da linguagemprimitivas não é a dificuldade das pesquisas enquanto tal, nem a

5 N. Marr, Po etapas ia/etítcheskoi teóríi IAs Etapas da Teoria Jafétical, 1926P.269. 6 Ibidem, p. 94

100FACULDADEDEEDUCAÇÀ0 DAt.ix

BIBLnTECA

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aumento de linguagem e em compara-la com outras inscrições noquadro geral de uma língua dada. É nesse pmcesso de comparação e demútua conelação das enunciações de uma dada língua que os méto-dos e as categorias do pensamento linguístico se constituíram.

Uma língua morta apresenta-se claramente como uma língua es-trangeira para o linguista que a estuda. Por isso é impossível afirmarque o sistema das categorias linguísticas constitui o pl'oduto da refle-xão epistemológica do locutor de uma língua dada. Não se trata deuma reflexão sobre a percepção que o locutor nativo tem de sua pró-pria língua; trata-se, antes, da reflexão de uma consciência que lutapara abrir caminho no mundo misterioso de uma língua estrangeira.

A compreensão inevitavelmente passiva do filólogo-linguistaprofeta-se sobre a própria inscrição, sobre o objeto do estudo lin-guístico, como se essa inscrição tivesse sido concebida, desde a ori-gem, para ser apreendida dessa maneira, como se ela tivesse sidoescrita para os filólogos. Disso resulta uma teoria completamentefalsa da compreensão, que está na base não só dos métodos de inter-pretação lingüística dos textos, mas também de toda a semasiologiaeuropeia. Toda a sua posição em relação ao sentido e ao tema dapalavra está impregnada dessa falsa concepção da compreensão comoato passivo -- compreensão da palavra que exclui de antemão e porprincípio qualquer réplica ativa.

Veremos mais adiante que esse tipo de compreensão, que excluide antemão qualquer resposta, nada tem a ver com a compreensãoda linguagem. Essa última confunde-se com uma tomada de posiçãoativa a propósito do que é dito e compreendido. A compl'eensão pas-siva caracteriza-se justamente por uma nítida percepção do compo-nente normativo do signo linguístico, isto é, pela percepção do signocomo objeto-sinal: correlativamente, o reconhecimento predominasobre a compreensão.

Assim é a língua mortíz-escrita-estrazlgeira que serve de base àconcepção da língua que emana da reflexão lingüística. A enuncia-ção isolada-/ecfzada-mozlológíca, desvinculado de seu contextolingÍiístico e real, à qual se opõe, não uma I'esposta potencial ativa,mas a compl'eensão passiva do filólogo: este é o "dado" último e oponto de partida da reflexão linguística.

bém a outros propósitos, não mais de pesquisa, mas de ensino; não setrata mais de decifrar uma língua, mas, uma vez essa língua decifrada,de ensina-la. As inscrições extraídas de documentos heurísticos trans-formam-se em exemplos escolares, em clássicos da língua.

O segundo problema fundamental da linguística: criar o instru-mental indispensável para a aquisição da língua decifrada, codificaressa língua no propósito de adapta-la às necessidades da transmis-são escolar, marcou profundamente o pensamento linguístico. A /o-22ética, a gramcítica, o léxico, essas três divisões do sistema da lín-gua, os três centros organizadores das categorias linguísticas, for-maram-se em função das duas tarefas atribuídas à linguística: umaheurútíca e a outra pedagógica.

O que é um filólogo? Independentemente das diferenças pro-fundas. de ordem cultural e histórica, que separam os sacerdoteshindus dos lingtlistas contemporâneos, o filólogo, sempre e em todaparte, é o adivinho que tenta decifrar o "mistério" de letras e depalavras estrangeiras e o mestre que transmite aquilo que decifrouou herdou da tradição. Os sacerdotes foram sempre e em toda parteos primeiros filólogos e os primeiros linguistas. A história não co-nhece nenhum povo cujas escrituras sagradas ou tradições não te-nham sido numa certa medida redigidas numa língua estrangeira eincompreensível para o profano. Decifrar o mistério das escriturassagradas foi justamente a tarefa dos sacerdotes-linguistas.

É também sobre esse terreno que, desde os tempos mais remo-tos, a filosofia da linguagem se desenvolveu: o ensino védico da pa-lavra, o ensino dos /ocos dos antigos pensadores gregos e a filosofiabíblica dapalavra.

Para compreender esses #/osolremczs, convém não perder de vis-ta o fato de que eles são filosofemas de palavras estrazlgeíras. Supo-nhamos um povo que só disponha de sua língua materna, um povopara o qual a palavra só possa ser a da língua nativa e que não estejaexposto à palavra estrangeira, crípticaí esse povo jamais teria criadotais filosofemas.r Trata-se de um faia surpreendente: desde a mais

r Na religião védica, a palavra sagrada, no uso que dela faz o iniciado, o sacer-dote consagrado, torna-se soberano do Ser, dos deuses e dos homens. O sacerdoteonisciente define-se aqui como aquele que dispõe da palavra -- e é nisso que re-pousa seu poder. A doutrina correspondente já se encontra no Rig Veda. O filosofemado /egos na Grécia antiga e a doutrina a]exandrina do Jogos são universalmenteconhecidos.

Originada no processo de aquisição de uma língua estrangeira numpropósito de investigação científica, a reflexão linguística serviu tam-

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remota Antigüidade até nossos dias, a filosofia da palavra e a refle-xão linguística fundamentam-se, especificamente, na apreensão dapalavra estrangeira e nos problemas que a língua estrangeira apresen-ta para a consciência: a saber, o deciframento e a transmissão do quefoi decifrado. Na sua reflexão sobre a linguagem, o sacerdote védico eo linguista-filólogo contemporâneo deixam-se fascinar e subjugar porum único e idêntico fenómeno: o da palavra estrangeira cz:z@tlca.

A palavra da língua nativa é percebida de modo totalmente di-verso; ela não é habitualmente percebida como uma palavra car-regada de todas aquelas categorias que ela engendrou na reflexãolinguística e que engendrava na reflexão filosófico-religiosa da Anti-guidade. A palavra nativa é percebida como um irmão, como umaroupa familiar, ou melhor, como a atmosfera na qual habitualmentese vive e se respira. Ela não apresenta nenhum mistério. SÓ podeapresentar algum, na boca de um estrangeiro, duplamente estran-geiro por sua posição hierárquica e se se trata, por exemplo, de umchefe ou de um sacerdote; mas, nesse, a palavra muda de natureza,transforma-se exteriormente ou desprende-se de seu uso cotidianoItorna-se tabu na vida ordinária ou então arcaíza-sel -- isto se a pala-vra em questão já não for, desde a origem, uma palavra estrangeirana boca de algum chefe-conquistador. É somente nessas condiçõesque a " Palavra" nasce: incipitphilosophia, incipit philologia.

O fato de que a linguística e a filologia estejam voltadas para apalavra estrangeira não é produto do acaso ou de uma escolha arbi-trária da parte dessas duas ciências. Não, essa orientação reflete oimenso papel histórico que a palavra estrangeira desempenhou noprocesso de formação de todas as civilizações da história. Esse papelfoi conferido à palavra estrangeira em todas as esferas da criaçãoideológica, desde a estrutura sociopolítica até o código de boas ma-neiras. A palavl'a estrangeira foi, efetivamente, o veículo da civiliza-ção, da cultura, da religião, da organização política los sumérios emrelação aos semitas babilónicos; os jaféticos em relação aos helenos;Romã, o cristianismo, em relação aos eslavos do Leste, etc.l. Essegrandioso papel organizador da palavra estrangeira -- palavra quetransporta consigo forças e estruturas estrangeiras e que algumasvezes é encontrada por um jovem povo conquistador no territórioinvadido de uma cultura antiga e poderosa jcultura que, então, es-craviza, por assim dizer, do seu túmulo, a consciência ideológica dopovo invasora -- fez com que, na consciência histórica dos povos, apalavra estrangeira se fundisse com a ideia de poder, de /orça, de

santidade, de verdade, e obrigou a reflexão linguística a voltar-se demaneira privilegiada para seu estudo.

E, no entanto, a filosofia da linguagem e a lingüística até hojeainda não se conscientizaram do imenso papel ideológico da palavraestrangeira. A linguística continua escravizada por ela. Representa,por assim dizer, a última onda trazida pelas águas outrora criativas evivas da palavra estrangeira, a última peripécia de sua carreira dita-torial e geradora de cultura.

Esta é a razão pela qual a linguística, ela própria produto da pala-vra estrangeira, está ainda longe de alcançar uma compreensão cor-reta do papel dessa palavra na história da língua e da consciêncialinguística. Pelo contrário, os estudos indo-europeus elaboraram ca-tegorias de análise da história da língua que excluem completamen-te qualquer apreciação corneta desse papel. Entretanto, esse papel,como vimos, é imenso.

A ideia do "cruzamento" de línguas Ida interferência lingüísticalcomo fator essencial da evolução das línguas foi avançada com todaclareza por Nicolau Marr. Ele também reconheceu esse fator comofundamental para a resolução do problema da origem da linguagem:

"A interferência em geral, como favor que provoca a apariçãode formas e de tipos linguísticos diferentes, é a fonte da formaçãode novas espécies: isso é observado e apontado em todas as lín-guas jaféticas e esse é um dos resultados mais bem-sucedidos dalinguística jafética 1. . . 1 0 fato é que não existe nenhuma línguaonomatopaica primitiva, comum a todos os povos e, como vere-mos, tal língua jamais existiu nem poderia ter existido. A línguaé uma criação da sociedade, oriunda da intercomunicação entreos povos provocada por imperativos económicos; constitui umsubproduto da comunicação social, que implica sempre popula-ções numerosas." '

No seu artigo intitulado "Sobre a Origem da Linguagem", elediz o seguinte:

"Em suma, a concepção que a assim chamada cultura nacio-nal possui dessa ou daquela língua, como língua nativa, de massa,

B N. Man, Po ataram ia/etítcbeskoi teórií IAs Etapas da Teoria JaféticalP.268.

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de toda a população, é anticientífica e irrealista. Por enquanto, aideia de uma língua nacional comum a todas as castas. a todas asclasses é uma ficção. Ou melhor: assim como a estratificação dasociedade durante as primeiras fases de desenvolvimento procededas tribos, isto é, na realidade, de formações tribais -- que nempor isso são simples -- por via de cruzamento, assim também aslínguas tl'ibais concretas, e a /ortiorí, as línguas nacionais, repre-sentam tipos cruzados de línguas -- cruzamentos constituídos deelementos simples cuja associação está na base de qualquer lín-gua. A análise paleontológica da linguagem humana não vai alémda definição desses elementos tribais; mas a teoria jafética ajustaesses elementos de maneira tão direta e decisiva que a questãoda origem da linguagem fica reduzida à questão do surgimentodesses elementos, que nada mais são do que as denominaçõestribais.//P

8. Incapacidade de compreender o processo gerativo interno dalíngua.

Consideremos brevemente cada uma dessas particularidades dareflexão dominada pela palavra estrangeira.

1 . A primeira dispensa qualquer explicação. Já mostramos que acompreensão que o indivíduo tem de sua língua não está orientadapara a identificação de elementos normativos do discurso, mas paraa apreciação de sua nova qualidade contextual. A construção de umsistema de formas submetidas a uma norma é uma etapa indispen-sável e importante no processo de deciframento e de transmissão deuma língua estrangeira.

2. O segundo ponto fica também bastante claro à luz do que jáexpusemos. A enunciação monológica fechada constitui, de fato, umaabstração. A concretização da palavra só é possível com a inclusãodessa palavl'a no contexto histórico real de sua realização primitiva.Na enunciação monológtca isolada, os fios que ligam a palavra atoda a evolução histórica concreta foram cortados.

3. O formalismo e o sistematismo constituem os traços típicosde toda reflexão que se exerce sobre um objeto acabado, por assimdizer, estagnado. Essa última particularidade manifesta-se de dife-rentes maneiras. De modo característico, é o pensamento alheio queé habitualmente, se não exclusivamente, sistematizado Os criado-res -- iniciadores de novas correntes ideológicas -- nunca sentemnecessidade de formalizar sistematicamente. A sistematização apa-

rece quando nos sentimos sob a dominação de um pensamento au-toritário aceito como tal. É preciso que a época de criatividade aca-be; só aí é que então começa a sistematização-formalização; é o tra-balho dos herdeiros e dos epígonos dominados pela palavra alheiaque parou de ]-essoar. A orientação da corrente em evolução nuncapode ser formalizada e sistematizada. Esta é a razão pela qual o pen-samento gramatical formalista e sistematizante desenvolveu-se comtoda plenitude e vigor no campo das línguas mortas e, ainda, somen-te nos casos em que essas línguas perderam, até certo ponto, suainfluência e seu caráter autoritário sagrado. A reflexão linguística decaráter formal-sistemático foi inevitavelmente coagida a adorar emrelação às línguas vivas unia posição conservadora e acadêmica, istoé, a tratar a língua viva como se fosse algo acabado, o que implicauma atitude hostil em relação a todas as inovações linguísticas. Areflexão linguística de caráter formal-sistemático é incompatível com

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Os problemas da significação da palavra e da origem da lingua-gem fogem do quadro de nossa pesquisa. Não examinaremos aqui ateoria da palavra estrangeira dos antigos:' e limitar-nos-emos a es-boçar as categorias provenientes da palavra estrangeira que servi-ram de base ao objetivismo abstrato; resumiremos assim.o expostoacima e completaremos essa exposição por uma série de pontos es-senciais:

1 . Nas fol.mas linguísticas, o fatos no/nativo e esteve/ prevale-ce sobre o caráter mutável.

2. O abstrato prevalece sobre o concz'eto.3. C) sístemcítico abstzato prevalecesobre a verdade bístóríca.4. As formas dos elementos prevalecem sobre as do conjunto.5. A reJHcação do elemento linguístico isolado substitui a dinâ-

mica da fala.

6. [;1dvocídade dapa]awa mais do quepoZíssez?lía epZmva/ência\Uvas.

7. Representação da linguagem como um produto acabado, quese transmite de geração a geração.

9 Ibidem, pp. 315-6.

io Assim, a percepção que o homem pré-histórico tem do caráter mágico dapalavra é fortemente marcada pela palavra estrangeira. Estamos pensando aqui natotalidade dos fenómenos com ela relacionados.

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uma abordagem histórica e viva da língua. Do ponto de vista do sis-tema! a história apresenta-se sempre como uma série de destruiçõesdevidasao acaso.

4. A linguística, como vimos, está voltada para o estudo daenunciação monológica isolada. Estudam-se documentos históricos

em relação aos quais o filólogo adota uma atitude de compreensãopassiva. Assim, todo o trabalho desenvolve-se nos limites de umadada enunciação. Os próprios limites da enunciação como uma enti-dade total são pouco percebidos. O trabalho de pesquisa reduz-se aoestudo das relações imanentes no interior do terreno da enunciação.Todos os problemas daquilo que se poderia chamar de "política ex-terna" da enunciação ficam excluídos do campo da observação. Con-sequentemente, todas as relações que ultrapassam os limites daenunciação monológica constituem um todo que é ignorado pelareflexão linguística. Esta, na verdade, não ousa ir além dos elemen-tos constitutivos da enunciação monológica. Seu alcance máximo é

a frase complexa lo períodos. A estrutura da enunciação completa éalgo cujo estudo a linguística deixa para outras disciplinas: a retóricae a poética. Ela própria é incapaz de abordar as formas de composi-ção do todo. Eis por que, de maneira geral, não há relação nem tran-sição progressiva alguma entre as formas dos elementos constituin-tes da enunciação e as formas do todo no qual ela se insere. Existeum abismo entre a sintaxe e os problemas de composição do discur-o. Isso é totalmente inevitável, pois as formas que constituem umanunciação completa só podem ser percebidas e compreendidas quan-

'do relacionadas com outras enunciações completas pertencentes aum único e mesmo domínio ideológico. Assim, as formas de umaenunciação literária, de uma obra literária, só podem ser apreendi-das na unicidade da vida literária, em conexão permanente com ou-tras espécies de formas literárias. Se encerrarmos a obra literária naunicidade da língua como sistema, se a estudarmos como um mo-numento hngtiístico, destruiremos o acesso a suas formas como for-mas da literatura como um todo. Existe um abismo entre as duasabordagens: a que refere a obra ao sistema linguístico e aquela que arefere à unicidade concreta da vida literária. Esse abismo é intrans-ponível sobre a base do objetivismo abstrato.

5. A forma linguística somente constitui um elemento abstra-tamente isolado do todo dinâmico da fala, da enunciação. Bem en-tendido, essa abstração revela-se legítima quando serve a deter-minados objetivos linguísticos. Entretanto, o objetivismo abstrato

dota a forma linguística de uma substância própria, torna-a um ele-mento realmente isolável, capaz de assumir uma existência históricaseparada, independente. ': Isso é perfeitamente compreensível já quese nega ao sistema, como um todo, o direito ao desenvolvimentohistórico. A enunciação como um todo não existe para a lingüística.Consequentemente, apenas subsistem os elementos do sistema; istoé, as formas linguísticas isoladas. Somente elas podem suportar ochoque da história.

Assim, a história da língua torna-se a história das formas lin-guísticas separadas Ifonética, morfologia, etc.l que se desenvolvemindependentemente do sistema como um todo e sem qualquer refe-rência à enunciação concreta.:z A propósito da história da língua talcomo a concebe o objetivismo abstrato, Vossler, com razão, diz oseguinte:

"Pode-se comparar grosseiramente a história da língua, talcomo a concebe a gramática histórica, com a história do vestuá-rio: essa última não é um reflexo da concepção de mundo ou dogosto de uma época; ela fornece-nos listas cronológicas e geogra-ficamente ordenadas de botões, alfinetes, chapéus e fitas. Em gra-mática histórica, esses botões e essas cifras chamam-se, por exem-

plo, /e/ aberto e fechado, /t/ surdo ou /d/ sonoro, etc."';

6. O sentido da palavra é totalmente determinado por seu con-texto. De fato, há tantas significações possíveis quantos contextospossíveis.:' No entanto, nem por isso a palavra deixa de ser una. Ela

11 Não se deve esquecer que o objetivismo abstiato em sua nova versão refle-te a posição da palavra estrangeira no estágio em que ela já perdeu, numa largamedida, seu caráter autoritário e sua força produtiva. Além disso, a especihcidade

da apreensão da palavra estrangeira é atenuada. no objetivismo abstrato devido aofato de que todas as categorias fundamentai? do pensamento dessa escola foramestendidas às línguas vivas e nativas. Com efeito, a linguística estuda as línguasvivas como se fossem mortas e a língua nativa como se fosse estrangeira. Essa é arazão pela qual o sistema construído pelo objetivismo abstrato difere dos filosofemas

da palavra estrangeira elaborados pelos antigos.!z A enunciação constitui apenas o meio neutro no qual se opera a transfor-

mação das formas da língua.IS Cf. o artigo de Vossler já citado "Gramática e História da Língua", p. 170n Não nos preocuparemos, por enquanto, em distinguir a significação e o

tema. Essa distinção será o objeto do Capítulo 7

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não se desagrega em tantas palavras quantos forem os contextos nos

quais ela pode se inserir. Evidentemente, essa unicidade da palavranão é somente assegurada pela unicidade de sua composição fonéti-ca; há também uma unicidade inerente a todas as suas significações.

.F' ÇgDgçQ11çilial=apolissemizdapalavLracom sua:tnlil;idadelÉassim,,,,/ / ãue podemos formular, de modo grosseiro e elementar, o problema

fundamental da semântica. Esse problema só pode ser resolvido peladiabética. Que procedimentos são empregados pelo objetivismo abs-trato? Ele salienta o fatal de unicidade da palavra em detrimento dapluralidade de suas significações. Essa pluralidade é percebida comoanáloga a harmónicos ocasionais de um único e mesmo significadoestável e firme. A atitude do linguista é diametralmente oposta àatitude da viva compl'eensão que caracteriza os falantes empenha-dos num processo de comunicação verbal. Quando o filólogo-lin-gÍiista alinha os contextos possíveis de uma palavl.a dada, ele acen-tua o favor de conformidade à norma: o que Ihe importa é extrairdesses contextos dispostos lado a lado uma determinação descon-textualizada, para poder encerrar a palavra num dicionário. Esse pro-cesso de isolamento da palavra, de estabilização de sua significaçãofora de todo contexto, é reforçado ainda mais pela justaposição delínguas, isto é, pela procura da palavra paralela numa língua diferen-te. A pesquisa linguística constrói a significação a partir do ponto deconvergência de pelo menos duas línguas. Esse trabalho do linguistatorna-se ainda mais complicado pelo fato de que ele cria a ficção deum recorte único da realidade, que se reflete na língua. É o objetoúnico, sempre idêntico a si próprio, que garante a unicidade do sen-tido. A ficção da palavra como decalque da realidade ajuda aindamais a congelar sua significação. Sobre essa base, a associaçãodialética de unicidade e de pluralidade torna-se impossível.

Mencionaremos ainda um outro erro grave do objetivismo abs-trato: para seus adeptos, os diferentes contextos em que aparece umapalavra qualquer estão num único e mesmo plano. Esses contextosdão origem a uma série de enunciações fechadas que têm significadopróprio e apontam todas para uma mesma direção. Na realidade, ascoisas são bem diferentes: os contextos possíveis de uma única emesma palavra são frequentemente opostos. As réplicas de um diá-logo são um exemplo clássico disso. Ali, uma única e mesma pala-vra pode figurar em dois contextos mutuamente conflitantes. É evi.dente que o diálogo constitui um caso particularmente evidente eostensivo de contextos diversamente orientados. Pode-se, no entan-

to, dizer que toda enunciação efetiva, seja qual for a sua forma, con-tém sempre, com maior ou menor nitidez, a indicação de um acordoou de um desacordo com alguma coisa. Os contextos não estão sim-plesmente justapostos, como se fossem indiferentes uns aos outros;encontram-se numa situação de interação e de conflito tenso eininterrupto. A mudança do acento avaliativo da palavra em funçãodo contexto é totalmente ignorada pela linguística e não encontranenhuma repercussão na sua doutrina da unicidade da significação.Embora os acentos avaliativos sejam privados de substância, é a plu-ralidade de acentos que dá vida à palavra. O problema da pluriacen-tuação deve ser estreitamente relacionado com o da polissemia. SÓassim é que ambos os problemas poderão ser resolvidos. Ora, é im-possível estabelecer essa vinculação a partir dos princípios do obje-tivismo abstrato. A linguística se desembaraça dos acentos avalia-tivos ao mesmo tempo que da enunciação, da fala.:s

7. Para o objetivismo abstrato, a !íngua, como produto acabado,transmite-se de geração a geração. Evidentemente, é de um ângulometafórico que os adeptos da segunda orientação entendem essatransmissão da língua como herança de um objeto; mas essa com-paração não constitui para eles apenas uma metáfora. Configurandoo sistema da língua e tratando as línguas vivas como se fossem mor-tas e estrangeiras, o objetivismo abstrato coloca a língua fora do flu-xo da comunicação verbal. Esse fluxo avança continuamente, en-quanto a língua, como uma bola, pula de geração para geração. En-tretanto, a língua é inseparável desse fluxo e avança juntamente comele. Na verdade, a língua não se transmite; ela dura e perdura sob aforma de um processo evolutivo contínuo. Os i111+iWídllQ!.nãQ.rece-

be!!!.g.]íDgçê.plgBl4.Pára.ser.usada; eles penetralB.noJO.çeiBg.g!.comunicação Verbal; oy melhor, someiiçg.çjqando m.orgulham: nessacorrente é que su4 consçiênçj4 çlesperta e.,começa a.operar. E apenasHÕ $tõêéàéó de aquisição de uma língua estrangeira que a consciên-cia já constituída -- graças à língua Materna -- se confronta comuma língua toda pronta, que só Ihe festa assimilar. Os sujeitos não"adquirem" sua língua materna; é nela e por meio dela que ocorre oprimeiro despertar da consciência.''

'5 As posições aqui expressas serão fundamentadas no Capítulo 7.'' O processo pelo qual a criança assimila sua língua materna é um processo

de integração progressiva da criança na comunicação verbal. À medida que essaintegração se realiza, sua consciência é formada e adquire seu conteúdo.

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8. O objetivismo abstrato, como vimos, não sabe ligar a exis-tência da língua na sua abstrata dimensão sincrónica com sua evo-lução. Para a consciência do locutor, a língua existe como sistemade formas sujeitas a normas; e só para o historiador é que ela existecomo processo evolutivo. O que exclui a possibilidade de associa-ção atava da consciência do locutor com o processo de evoluçãohistórica. Torna-se, assim, impossível a conjunção dialética entrenecessidade e liberdade e até, por assim dizer, a responsabilidadelinguística. Assenta-se, aqui, o reino de uma concepção puramentemecanicista da necessidade no domínio da língua. Não há dúvida deque esse traço do objetivismo abstrato está ligado à irresponsávelfixação dessa escola nas línguas mortas.

SÓ nos resta tirar as conclusões de nossa análise crítica do obje-tivismo abstrato. O problema que levantamos no começo do quartocapítulo, o da realidade dos fenómenos linguísticos como objeto deestudo específico e único, é solucionado de maneio'a incorreta. Alíngua, como sistema de formas que remetem a uma norma. nãopassa de uma abstração, que só pode ser demonstrada no plano teó-rico e prático do ponto de vista do deciframento de uma língua mor-ta e do seu ensino. Esse sistema não pode servil' de base para a com-preensão e explicação dos fatos linguísticos enquanto fatos vivos eem evolução. Ao contrário, ele nos distancia da realidade evolutiva

e viva da língua e de suas funções sociais, embora os adeptos daobjetivismo abstrato tenham pretensões quanto à significação so-ciológica de seus pontos dç vista. Na base dos fundamentos teóricosdo objetivismo abstrato, estão as premissas de uma visão do mundo

racionalista e mecanicista, as menos favoráveis a uma concepçãocometa da história; ora, a língua é um fenómeno puramente histórico.

Seriam os princípios fundamentais da primeira orientação, a dosubjetivismo individualista, os correios? Não teria o subjetivismoindividualista conseguido tocar de perto a verdadeira natureza dalinguagem? Ou a vei'dade estaria no meio-termo, entre as teses dosubjetivismo individualista e as antíteses do objetivismo abstrato,constituindo um compromisso entre as duas orientações?

Acreditamos que aqui como em qualquer lugar a verdade não seencontra exatamente no meio, num compromisso entre a tese e aantítese; a verdade encontra-se além, mais longe, manifesta umaidêntica recusa tanto da tese como da antítese, e constitui uma sín-tese diabética. As teses da primeira orientação, como veremos nocapítulo seguinte, não resistem à crítica mais do que as da segunda.

Queremos, agora, chamar a atenção para o seguinte: ao considerarque só o sistema linguístico pode dar conta:dos fatos da língua, oobjetivo abstrato rejq!! a enunciação,Q ?tã de íaaã;como sendo in-dividual. Como dissemos, é esse o proton picados, a "primeira men-tira", do objetivismo abstrato. O subjetivismo individualista, aó con-trário, só leva em consideração a fala. Mãs ele também considera oato de fala como individual e é por isso que tcnta explica-lo a partirdas condições da vida psíquica individual do sujeito falante. E esse éo seuproton pseudos.

Na realidade, o ato de fala, ou, mais exatamente, seu produto, aenunciação, não pode de forma alguma ser considerado como indivi-dual no sentido estrito do termo; não pode ser explicado a partir das

condições psicofisiológicas do sujeito falante. .A enuncíaç;ão é denatureza social. Cabe-nos firmar essa tese no próximo capítulo.

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