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CRÍTICA MARXISTA • 129 CR˝TICA marxista R ESENHAS Ralph Miliband Socialismo & ceticismo. Trad. Ivone Benedetti. Bauru, SP: Edusc; São Paulo: Unesp. 200. 295 p. Caio Navarro de Toledo (professor do IFCH, Unicamp). I. Publicado poucos meses após o fale- cimento de Ralph Miliband, ocorrido em maio de 1994, Socialismo & ceticismo pretende ser uma “argumentação racio- nal em defesa do socialismo”. Nos anos seguintes ao desmoronamento da URSS e ao colapso dos “regimes comunistas”, setores conservadores, liberais e de esquer- da, por razões diversas, vieram a questio- nar ainda mais radicalmente a validade e a pertinência do socialismo. Observa o autor que o “conservadorismo epistê- mico”, outrora característica essencial do pensamento de direita, passou agora a predominar também no seio da intelec- tualidade e da política de esquerda. Para os autores afinados com os chamados pós- marxismo, pós-modernismo e pós-estru- turalismo, o socialismo – como qualquer outra “metassaga” que admita uma radi- cal e total transformação da realidade social – nada mais seria do que uma pe- rigosa ilusão, devendo, pois, ser recusa- do radicalmente. De outro lado, o pen- samento dos liberais e dos conservado- res convergem quando – proclamando o “fracasso do comunismo” – decretam que o capitalismo e sua democracia, ape- sar de todos os seus defeitos, seriam in- finitamente preferíveis ao socialismo. O autor busca demonstrar – numa di- reção semelhante àquela empreendida pelos trabalhos de Alec Nove (que difun- diu a noção “socialismo possível”) – que o socialismo deve ser concebido como uma nova ordem social, inteiramente exeqüível no mundo atual, “cuja realiza- ção é um processo que pode se estender por várias gerações”, passível até de nun- ca se concluir (sic). Em nome do realis- mo, o marxista inglês vai abdicar da idéia de uma sociedade comunista, em favor de um socialismo nunca acabado, pois su- jeito a permanentes mudanças e aperfei- çoamentos. Um socialismo como con- cepção-limite. II. A argumentação de Miliband se cons- trói em torno de duas proposições dis- tintas e autônomas, mas que deveriam se vincular: a) o capitalismo é um obstá- culo estrutural à resolução dos males produzidos por seu próprio desenvolvi- mento; b) o socialismo pode se constituir na alternativa real às contradições ine- rentes ao desenvolvimento capitalista. É inegável o apelo que o autor faz às categorias éticas no questionamento à sociabilidade instaurada pelo capitalis- mo. Em todo seu estudo, nunca se utili-

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CRÍTICAmarxista

RESENHA

S

Ralph MilibandSocialismo & ceticismo. Trad. Ivone Benedetti. Bauru, SP: Edusc;São Paulo: Unesp. 200. 295 p.Caio Navarro de Toledo (professor do IFCH, Unicamp).

I. Publicado poucos meses após o fale-cimento de Ralph Miliband, ocorrido emmaio de 1994, Socialismo & ceticismopretende ser uma “argumentação racio-nal em defesa do socialismo”. Nos anosseguintes ao desmoronamento da URSS eao colapso dos “regimes comunistas”,setores conservadores, liberais e de esquer-da, por razões diversas, vieram a questio-nar ainda mais radicalmente a validadee a pertinência do socialismo. Observa oautor que o “conservadorismo epistê-mico”, outrora característica essencial dopensamento de direita, passou agora apredominar também no seio da intelec-tualidade e da política de esquerda. Paraos autores afinados com os chamados pós-marxismo, pós-modernismo e pós-estru-turalismo, o socialismo – como qualqueroutra “metassaga” que admita uma radi-cal e total transformação da realidadesocial – nada mais seria do que uma pe-rigosa ilusão, devendo, pois, ser recusa-do radicalmente. De outro lado, o pen-samento dos liberais e dos conservado-res convergem quando – proclamando o“fracasso do comunismo” – decretamque o capitalismo e sua democracia, ape-sar de todos os seus defeitos, seriam in-finitamente preferíveis ao socialismo.

O autor busca demonstrar – numa di-reção semelhante àquela empreendidapelos trabalhos de Alec Nove (que difun-diu a noção “socialismo possível”) – queo socialismo deve ser concebido comouma nova ordem social, inteiramenteexeqüível no mundo atual, “cuja realiza-ção é um processo que pode se estenderpor várias gerações”, passível até de nun-ca se concluir (sic). Em nome do realis-mo, o marxista inglês vai abdicar da idéiade uma sociedade comunista, em favor deum socialismo nunca acabado, pois su-jeito a permanentes mudanças e aperfei-çoamentos. Um socialismo como con-cepção-limite.

II. A argumentação de Miliband se cons-trói em torno de duas proposições dis-tintas e autônomas, mas que deveriamse vincular: a) o capitalismo é um obstá-culo estrutural à resolução dos malesproduzidos por seu próprio desenvolvi-mento; b) o socialismo pode se constituirna alternativa real às contradições ine-rentes ao desenvolvimento capitalista.

É inegável o apelo que o autor faz àscategorias éticas no questionamento àsociabilidade instaurada pelo capitalis-mo. Em todo seu estudo, nunca se utili-

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za dos conceitos da crítica da economiapolítica para revelar os limites, os impas-ses e as crises estruturais a que está su-jeito o desenvolvimento econômico esocial sob a lógica do capital. Mas istonão significa que sua análise tenha umcaráter moralizante ou idealizante* .Socialismo & ceticismo passa a se cons-tituir num texto mais instigante e contro-verso quando busca delinear as caracte-rísticas econômicas, sociais e políticasdo “socialismo factível” e das exigênciase problemas que poderão implicar a suarealização histórica. Não deixando dereconhecer as conquistas alcançadas pe-los regimes Comunistas – particularmen-te, nos seus primeiros anos, nos camposdo crescimento econômico, tecnológico,educacional, saúde etc. –, o autor adver-te que o socialismo não pode ser con-fundido com tais regimes. Tomandocomo contra-exemplo os regimes Comu-nistas** , Miliband busca então esclarecero que o “socialismo não deve ser”. O“modelo” de regime Comunista tinha, aseu ver, duas principais características:de um lado, uma “economia de coman-do extremamente centralizada”, com umsistema abrangente de planejamento mi-nucioso e coercitivo; de outro, um siste-ma político controlado pelo Partido Co-munista que detinha o monopólio dopoder sobre o conjunto da sociedade.Distinguindo-se, pois, dos regimes Co-

munistas, o socialismo – a partir daspropostas contidas nos escritos dos clás-sicos do marxismo – apresentaria três te-mas nucleares: “democracia, igualitaris-mo e socialização de uma parte predo-minante da economia”.

Adverte, no entanto, que “o socialis-mo, mesmo numa versão sóbria, demo-rará muito ainda para vir ao mundo”.Assim, de princípio, o autor abandona aclássica noção de Comunismo, como“etapa superior do socialismo”; para ele,deve-se buscar um “igualitarismo apro-ximado”. É possível e razoável propug-nar a eliminação das desigualdades maisflagrantes em todas as esferas da exis-tência social (renda, riquezas, poder eoportunidades), mas não a “igualdadeperfeita”. Diante da clássica objeção dereformismo social-democrata, o autorargumenta que não se trata de melhorarnem aperfeiçoar a ordem capitalista.Visa-se transformar em profundidade aeconomia e a democracia através de umprocesso, lento e difícil, sujeito, inclusi-ve, a retrocessos e desvios de rumos, seas circunstâncias e a correlação de for-ças sociais assim o exigirem.

III. Nos capítulos iniciais de seu livro,Miliband esboça as tarefas de um gover-no comprometido efetivamente com esseprocesso radical de transformações. Noplano político, defende a radicalização

* Embora não seja aqui o lugar para tematizar o assunto, é de se indagar se os marxistas, no examecrítico do capitalismo e na discussão sobre o socialismo e o comunismo, podem prescindir de noçõesde natureza ética e ideológica. Se a análise científica é pressuposto e condição decisiva, a luta anti-capitalista, no entanto, não se realiza apenas através de conceitos rigorosos e precisos. Valores,ideais e sentimentos mobilizam homens e mulheres em suas lutas políticas e sociais.

** Com C maiúsculo, como faz questão de anotar e esclarecer: ”Comunismo não tem, acredito,nenhuma relação com o que Marx entendia por comunismo, tipo de sociedade distante no tempomarcada por abundância, igualdade e harmonia”.

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da democracia; no entanto, não exploraas possibilidades das propostas contidasem trabalhos clássicos do marxismo, taiscomo a democracia dos conselhos, a fu-são dos órgãos executivos e legislativos,a imperatividade dos mandatos e a suarevocabilidade ad nutum etc. O autorentende que o socialismo deve ampliar eaprofundar as instituições existentes nademocracia capitalista. Enquanto no ca-pitalismo o Estado é um obstáculo deci-sivo na consecução de reformas que po-nham em risco as estruturas de poder eprivilégio, o governo socialista deve serdemocrático, mas suficientemente fortepara propor e conduzir as mudanças queseu programa expôs publicamente à so-ciedade. Reforma da administração dajustiça (rápida e barata), democratizaçãoda administração pública (eleição dejuízes, dos chefes de polícia, dos altos emédios escalões da burocracia pública),reformas políticas e eleitorais que per-mitiriam a constituição de governoscolegiados (instituição do princípio da“liderança coletiva”) e maior representa-tividade do eleitorado popular, fortale-cimento do executivo a fim de poder li-dar contra ações de grupos que atentemcontra a ordem constitucional etc. sãopropostas defendidas pelo autor. Ressal-ta também a necessidade de profundasmudanças na estrutura e controle dosmeios de comunicação. Admitindo-se aexistência de um setor de cooperativas ede um setor privado, entende que o setorpúblico – “com alto grau de autonomia” –deveria ter nítida primazia na gestão dosmeios de comunicação de massa.

Estamos no reino das boas intenções?indaga o próprio autor. Certamente,desde que se acredite na possibilidadedessas mudanças em plena ordem capi-

talista. Os socialistas, ao contrário, par-tem da premissa de que a construção dademocracia socialista será impossívelenquanto os principais instrumentos deatividade econômica estiverem sob con-trole privado.

IV. No plano econômico, o governo so-cialista teria “uma forte vocação interven-cionista”. Contrapondo-se ao consensoneoliberal que contagiou amplos setoresda auto-intitulada “esquerda democrática”,Miliband afirma que se deve buscar umacontínua transferência de empresas dosetor privado para o público. Da mesmaforma, isso deveria ocorrer com o siste-ma bancário e as instituições financei-ras, pois, adverte, “não pode ser consi-derada democrática a sociedade cujasdecisões financeiras cruciais sejam toma-das por pequenos grupos sem nenhumacredencial democrática, cuja principalpreocupação é a lucratividade dasinstituições que comandam, gozando denotável grau de liberdade em relação à‘interferência’ governamental”. O autormostra como foi avassaladora e eficientea campanha ideológica anti-socialista –favorecida pelas experiências dos regimesComunistas – sobre a “ineficiência”, “ir-racionalidade” e “obsolescência” das em-presas públicas. Tomando como exemploos países asiáticos, em particular o casodo Japão, argumenta Miliband que os tra-ços (negativos) acima não são inerentes àempresa pública. Valendo-se de alguns es-tudos sobre a propriedade pública em paí-ses da Europa ocidental, pode-se argu-mentar que as empresas de propriedadeestatal podem ser tão eficientes quanto asempresas do setor privado.

O objetivo é alcançar a socializaçãode uma parte predominante dos meios

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de atividade econômica, ao lado da ex-pansão de um importante setor cooperati-vo e de um setor privado de pequenas emédias empresas (fornecimento de bens,prestação de serviços e lazer). Mas, deve-se estar advertido de que um programasubstancial de socialização (ou despri-vatização) apresentará muitas resistên-cias. Um governo socialista precisa pen-sar a longo prazo e encarar a socializaçãocomo um processo demorado, realizadocom planos bem traçados e flexíveis.

A exigência de flexibilidade leva oautor a admitir a combinação de plane-jamento (planos impositivos e indicati-vos) e forças de mercado. O planejamen-to preconizado implicaria a “proposta demetas para setores-chaves da economia,abrangendo infra-estrutura, serviços pú-blicos e outros elementos importantes doprocesso produtivo, com a oferta tambémde formação profissional, educação evários tipos de serviço”. Sem maior jus-tificação teórica, no entanto, admite apresença do mercado desempenhandoum papel secundário na economia, poisa submissão da sociedade às forças demercado, pondera, eqüivaleria à abdica-ção do governo “à responsabilidade peladecisão quanto ao que precisa ser feito pelobem comum e pela obtenção de justiçasocial”. Adotando a noção de “desmer-cadização”, acredita que no socialismo a“área de desmercadização” (como propõeNove, “saúde, educação, habitação, cor-reios, transporte público urbano, proteçãoambiental, água, iluminação etc.”) deve-ria ser gradativamente ampliada; mas es-clarece que isso não deve implicar uma“ditadura sobre as necessidades”, postoque a “desmercadização” não é incom-patível com a oferta de bens e serviçosque se submeteriam ao mercado.

O princípio organizador de uma eco-nomia socializada seria a satisfação dasnecessidades individuais e coletivas, sen-do as prioridades definidas democratica-mente. A exploração não teria lugar naempresa pública e no setor de cooperati-vas; persistiria remanescente no setorprivado, mas estritamente controlada.Obtenção do pleno emprego, encurtamen-to da semana de trabalho, diminuição daidade de aposentadoria, proliferação dosserviços etc. seriam prioridades do go-verno socialista. A libertação da socie-dade da dominação do capital é a con-dição essencial para a criação de umaordem social que torne possível um graude cooperação e harmonia inatingível nocapitalismo.

V. Sendo decisiva a participação popu-lar para o avanço e a consolidação doprojeto socialista, afirma Miliband queo apoio dos assalariados e das classes mé-dias baixas é de primordial importância.A classe trabalhadora certamente nãotem uma “essência” revolucionária e éinegável que alguns de seus setores acei-tam orientações políticas reacionárias(grupos racistas, sexistas etc.); no entan-to, também é incontestável o fato de que“a grande maioria dos trabalhadores or-ganizados sempre demonstrou forte re-sistência a partidos e movimentos deextrema-direita”. Ao contrário, umagrande parte da classe trabalhadora temdado apoio a partidos de esquerda queprometem mudanças sociais de longoalcance. Para Miliband, os próprios con-servadores bem sabem que – longe de seconstituir em massa amorfa hipnotizadapelo consumo – a classe trabalhadora“continua sendo potencialmente perigo-sa”. Observa que, em determinadas cir-

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cunstâncias, conquistas sociais deixaramde ocorrer porque as lideranças de es-querda ou os próprios governos socia-listas decidiram ser mais “sensatos”, as-sumindo posições de recuo em vez delutar por maiores conquistas. Partidos deesquerda, que tenham a capacidade deconstruir amplas coalizões como os no-vos movimentos sociais (construir uma“síntese entre o vermelho e o verde”),continuam tendo papel decisivo comoinstrumento potencial, se não real, doavanço socialista.

Miliband tem plena consciência deque um governo popular terá de enfren-tar sistemáticas e permanentes resistên-cias. Desta forma, critica os autores deesquerda – como Nove e outros – queabstraíram essa realidade. Assim, en-quanto os “revolucionários” tendem asubestimar “o que é possível fazer noâmbito da democracia capitalista”, ossocial-democratas, por sua vez, “fechamos olhos” para a gravidade dos obstácu-los. Resistências virão do Estado e foradele – do Judiciário, do Parlamento, doempresariado, dos órgãos de inteligên-cia e das Forças Armadas, de setores dasociedade civil (meios de comunicação,Igrejas, grupos neofascistas etc.). Emface desta realidade, o governo socialis-ta deveria adotar uma política que com-binasse firmeza com flexibilidade. Ouseja, não se deve desviar dos compro-missos básicos, mas é preciso ter a virtude buscar acordos fora de suas fileiras.Os exemplos do governo socialista daGrécia (1967), do golpe contra Allende

no Chile (1973) e dos recuos do governoMitterand na França (1981) são invoca-dos; no entanto, pouco se avança na dis-cussão sobre a transição ao socialismo apartir desses casos bem como das suges-tões inspiradas em Maquiavel*.

Ressalte-se também que Milibandnão deixa de reconhecer obstáculos noplano mundial: certamente o FMI, o Ban-co Mundial e demais organismos finan-ceiros internacionais não teriam nenhuminteresse em ver prosperar um governosocialista. O autor, no entanto, conside-ra que é “falta de visão” considerar ir-refutável que o predomínio das ortodo-xias neoliberais durará indefinidamente;com o declínio do poder econômico dosEUA, tais organismos certamente deixa-rão de ter o poder que no momento apre-sentam na cena mundial. A esquerda nogoverno precisa impor medidas que pro-tejam suas economias nacionais: controlecambial, controle dos fluxos financeiros,repúdio às restrições comerciais impos-tas pelo GATT etc. O Estado, nessa pers-pectiva, deve ter força para promover astransformações econômicas, sociais epolíticas requeridas pelo programa socia-lista; inclusive, para que o governo pos-sa se manter e se consolidar. Neste sen-tido, o governo socialista não deveriahesitar em lançar mão de poderes espe-ciais para fazer o que for necessário paralidar com situações de crise e de emer-gência, “como também para enfrentarações ilegais, muitas vezes de naturezaviolenta”, provocadas pelos setores anti-socialistas.

* Significativa é a epígrafe do livro, retirada de O Príncipe. Nela, Maquiavel adverte que muitas sãoas dificuldades enfrentadas pelo reformador que busca criar uma “nova ordem de coisas”. Enquantoos favorecidos pela nova ordem são tíbios em sua defesa, os prejudicados têm as leis e o hábitosantigos ao seu lado contra as mudanças em curso.

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O governo socialista precisa contarcom maciça adesão popular – desde suaassunção ao poder e durante todo o seumandato. Para que isto possa acontecer,torna-se necessário que sua política, des-de o início, contribua para melhorar efe-tivamente as condições de vida das gran-des maiorias em todos os planos da vidasocial. O governo popular, afirma Mili-band, deveria executar essa tarefa com omesmo espírito que os governos capita-listas enfrentam as guerras.

Diante da objeção que considera serum contra-senso a tese da realização do“socialismo num só país”, o autor afir-ma que “é possível um governo socialis-ta avançar no processo sem ficar à espe-ra da revolução mundial, mas, por outrolado, é óbvio que, quantos mais gover-nos socialistas subam ao poder e ajamna mesma direção, maiores (seriam) asprobabilidades de cooperação e ajudamútua, facilitando-se assim o processo”.

VI. Socialismo & ceticismo é um argu-mento racional pelo socialismo que in-veste na ação política e na luta ideológi-ca (tarefa da “anti-hegemonia” em queos intelectuais socialistas têm um papelrelevante). A pecha de “socialismo re-formista” certamente lhe será atribuídapor alguns de seus leitores. A rigor, estacrítica não seria inteiramente arbitrária,notadamente pela ausência de qualquerdiscussão sobre a exigência (ou não) darevolução na luta pelo socialismo. Noentanto, seria uma leitura empobrecedora

do livro magnificar este juízo. Estamosdiante de um texto inteligente e provo-cativo, pois contribui para levantar no-vas interrogações e questionar as certe-zas, consoladoras, mas nunca dialéticas.Alguns poderão criticar seu humanismo,o conteúdo ético de suas formulações eos sonhos que daí derivam. Mas, aindaassim, o autor não deixaria de estar nacompanhia de pensadores revolucioná-rios conseqüentes. Em Que fazer?, Leninobservou que “o desacordo entre os so-nhos e a realidade não implica malalgum, desde que o sonhador acredite se-riamente em seu sonho, fixe-se atenta-mente na vida, compare suas observa-ções com seus castelos de cartas e traba-lhe escrupulosamente para a realizaçãode suas fantasias”.

Contra o ceticismo e o cinismo dosintelectuais, à esquerda e à direita, afir-ma-se que “não faz sentido acreditar quehomens e mulheres que, graças à revo-lução nos meios de comunicação, sabemque há uma vida diferente para ser vividanão tentem, com o tempo, alcançar umavida diferente e melhor (...) Uma novaordem social em que democracia, iguali-tarismo e cooperação – valores essenciaisdo socialismo – venham a ser os princí-pios prevalecentes da organização social”.Assentado em bases materialistas, ohumanismo militante de Ralph Milibandentende que o socialismo seria o resulta-do da conjugação de uma possibilidadeobjetiva e de uma exigência ética, na me-lhor tradição dos clássicos do marxismo.

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Antonio GramsciCadernos do cárcere, vol. 1, RJ, Civilização Brasileira, 1999, 496 p.(tradução e introdução de Carlos Nelson Coutinho)Marcos del Roio (professor da Unesp, campus de Marília)

A imprensa e o mundo acadêmicosaudaram, com justificada satisfação, olançamento dos Cadernos do cárcere,título bastante conhecido do ainda maisconhecido revolucionário sardo-italiano,Antonio Gramsci. Em menos de umasemana (no mês de abril deste ano) aFolha de S.Paulo publicou dois comen-tários de destaque sobre o livro, um deAlfredo Bosi e outro de Otavio Frias Fi-lho, chamando atenção para a importân-cia do lançamento. (Isso depois de já ha-ver, em novembro de 1999, dedicadoquatro páginas sobre Gramsci e o novoempenho editorial.) O que tem sido decerta forma elidido é uma informação decrucial importância: a de que não se tra-ta da edição crítica dos Cadernos do cár-cere, organizada no Instituto Gramscipela equipe de Valentino Gerratana elançada pela Einaudi editore em 1975,como se poderia esperar, criando-se, as-sim, uma falsa expectativa.

O livro, que ora vem a público sob otítulo de Cadernos do cárcere, é apenaso primeiro de um conjunto de 11 volu-mes que comporão as Obras de Gramsci,editadas por Carlos Nelson Coutinho,Luíz Sérgio Henriques e Marco AurélioNogueira, tendo por base – no que tangeos Cadernos do cárcere propriamenteditos – a edição temática organizada porPalmiro Togliatti cinqüenta anos atrás,tendo sido os textos reagrupados e acres-cidos de informações e complementospresentes na edição crítica de ValentinoGerratana, além da assimilação de algu-

mas sugestões de Gianni Francioni. Osseis volumes previstos para os Cadernosserão completados com três volumes decartas e dois volumes de escritos do pe-ríodo pré-carcerário.

Mas foi a edição crítica dos anos 70 –de notável celebridade – que apresentoua obra do prisioneiro Gramsci, pela pri-meira vez, quase na sua inteireza e se-guindo uma ordem – na medida do pos-sível– rigorosamente cronológica. Essaedição permitiu uma nova compreensãodo pensamento de Gramsci e abriu umanova série de polêmicas que não podemser reduzidas a meras questões filoló-gicas, mas que fazem parte de um acesodebate político-cultural.

Foi tão-somente com essa edição quepôde ser perscrutado o antes oculto pro-cesso de construção do complexo uni-verso categorial gramsciano e da progres-são de suas formulações teórico-críticas,em meio a um conjunto de temas apa-rentemente díspares. A publicação daedição crítica dos Cadernos do cárcerepropiciou ainda um reforço significativona difusão da obra de Gramsci pelosquatro cantos do mundo, incluindo oBrasil. Convém lembrar, no entanto, que,assim como os homens e as mulheresquando migram se encontram com ou-tras experiências e provam outros terre-nos de luta, também as obras escritasdevem fazer as contas com o ambientecultural que as recebe.

As anotações do mais importantedetido do cárcere de Turi, inimigo irre-

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conciliável do fascismo e de toda formade domínio do capital, têm uma trajetóriaque se confunde com a projeção do nomede Gramsci como um dos mais fecundospensadores marxistas do século XX. SeTatiana Schucht não tivesse se empenha-do até o limite para salvar as anotaçõesde Gramsci, logo após sua morte, e paraevitar sua dispersão, hoje o nome deGramsci seria apenas um a mais na vas-ta galeria de vítimas do fascismo. Envia-do para a URSS em 1938, em função daguerra, as notas de Gramsci não pude-ram ser publicadas, embora Togliatti jáas tivesse estudado com empenho.

Com o final da guerra e a derrota dofascismo, os cadernos retornaram à Itá-lia e puderam ter andamento os traba-lhos de preparação editorial. Uma sele-ção de Cartas do cárcere foi publicadaem 1947, pelos dez anos da morte deGramsci, e antecipando a publicação doscadernos que ocorreria entre 1948 e1951, já no clima da “guerra fria”. A op-ção de Togliatti e dos editores foi a deseparar os trabalhos de Gramsci por te-mas e publicá-los em seis volumes, comtítulos escolhidos na ocasião. O impactoda obra gramsciana foi notável em todosos anos subseqüentes, mas não pôdedeixar de ressentir-se do peso condicio-nante da opção feita pela publicaçãotemática – que já pressupunha uma cer-ta leitura – e também da orientação polí-tica do PCI, particularmente após 1956.

Gramsci agora não era mais tão-so-mente um mártir do fascismo, mas eratambém um grande intelectual italiano,que refletira sobre os limites do risorgi-mento e antecipara a estratégia da vianacional ao socialismo, conforme idéiaque ganhou ampla guarida no conjuntodo movimento comunista na segunda

parte dos anos 50, inclusive no Brasil.Com uma grande precedência em relaçãoa outros países mais próximos, em 1966,já instaurada a ditadura militar-burguesa,tem início no Brasil a publicação dos tex-tos carcerários de Gramsci, por iniciativade Ênio Silveira, editor da Civilização Bra-sileira. As Cartas do cárcere, com tradu-ção e seleção de Noênio Spínola, forampublicadas em 1966, seguidas de pertopela edição da Concepção Dialética daHistória, texto traduzido por Carlos Nel-son Coutinho (então com 23 anos de ida-de). Esse último título foi escolhido porÊnio Silveira, preocupado com a censu-ra, para substituir o nome original daEinaudi editore O materialismo históri-co e a filosofia de Benedetto Croce.

No ano de 1968 veio a lume o volumeMaquiavel, a política e o Estado moder-no, traduzido por Luíz Mário Gazzaneo,seguido por Os intelectuais e a organi-zação da cultura e Literatura e vida na-cional, ambos com tradução e apresen-tação de Carlos Nelson Coutinho. O agra-vamento da situação política no Brasil,com o aprofundamento do regime dita-torial, não permitiu a publicação dosdemais volumes dos Cadernos do cár-cere, O risorgimento e Passado e pre-sente. A publicação da obra de Gramscino formato proposto por Togliatti, gra-ças ao empenho de um editor e de al-guns jovens intelectuais ligados ao PCB,incidindo sobre a cultura política predo-minante no Brasil numa conjuntura queprivilegiava a ação, não permitiu que sepercebesse no revolucionário italianomais que um teórico da cultura e das su-perestruturas. O resultado foi que essainiciativa pioneira teria que aguardar umaoutra ocasião para germinar e apresen-tar seus frutos.

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A edição crítica da equipe de Valenti-no Gerratana foi publicada em 1975,coincidindo com o fortalecimento do PCIe com a proposição do que ficaria co-nhecido como “eurocomunismo”. Foi oápice de um período marcante de difusãodo nome e da obra de Antonio Gramsci,inclusive em países vizinhos da Itália,nos quais, paradoxalmente, suas idéiasnão haviam conseguido penetrar. NoBrasil, na segunda metade dos anos 70,em função dessa difusão do nome deGramsci, agora associado ao “eurocomu-nismo” e aos temas da “sociedade civil”e da “democracia”, e do declínio da di-tadura, as obras do revolucionário comu-nista ganharam uma nova edição e umgrande sucesso.

Acompanhando a reedição das obraspublicadas nos anos 60, chegou ao Brasilum bom número de textos de “leitores”de Gramsci, em grande parte autores emvoga na Itália ou simpáticos ao “euro-comunismo”, mudando o foco das inter-pretações de Gramsci no Brasil: de umteórico da cultura para um teórico da po-lítica que via a “sociedade civil” comolócus da “guerra de posição” e da “estra-tégia democrática” em países do “Ociden-te”. A confusão entre luta pela “hegemo-nia” e ampliação do “consenso” na buscapela democracia – entendida como “valoruniversal”, segundo a sugestão de EnricoBerlinguer –, indicava claramente a pre-valência de uma leitura de Gramsci quepoderia facilmente ser identificada comoreformista (sem qualquer implicação pe-jorativa) entre aqueles que compunham oheterogêneo grupo de intelectuais que seempenhavam na difusão do nome e da obragramsciana no Brasil.

Assim, o momento de maior difusãoda obra de Gramsci no Brasil ocorre pelo

influxo da edição temática togliattiana,pela incidência do “eurocomunismo” doPCI e pela reflexão de muitos “leitores”do revolucionário sardo, no Brasil e naAmérica Latina, mas não pela publica-ção da edição crítica de Gerratana, acessí-vel a poucos. Pensou-se então vislumbrarna complexidade dos escritos carcerários,não só uma chave de interpretação darealidade do continente, como indicati-vos de como enfrentar as persistentes si-tuações ditatoriais, por um caminho di-ferente do enfrentamento proposto porsetores revolucionários influenciadospelo guevarismo e pelo chamado “ter-ceiro-mundismo”, que em tão grave der-rota havia redundado.

Da política, a obra de Gramsci tran-sitou para a academia, onde foi “moda”por algum tempo, incidindo muito nocampo da Pedagogia e do Serviço Social.A chave de leitura predominante entreaqueles intelectuais vinculados à tradi-ção pecebista, centrada na categoria de“sociedade civil”, possibilitou que ascategorias gramscianas (ou pretensa-mente gramscianas) fossem absorvidastambém por católicos e liberais. O resul-tado foi que, em breve tempo, gestou-seuma “vulgata” das idéias e do universocategorial de Gramsci, que pode ser en-contrada em documentos sindicais, par-tidários e de movimentos sociais.

O refluxo das idéias de Gramsci e suavulgarização ocorreu em conexão aodeclínio histórico do grande e influentePCI e do frágil e pequeno PCB. AqueleGramsci lido por um viés de “direita”, vis-to como contraponto a Lenin e não comouma obra de aprofundamento de umamesma agenda em circunstâncias de gra-ve derrota da revolução socialista interna-cional, foi facilmente trocado por

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Norberto Bobbio, filósofo italiano conti-nuador da tradição liberal de um PieroGobetti e Carlo Rosselli. A maior partedaquele grupo de intelectuais, que se vin-culou ao desenvolvimento do debatepolítico cultural ligado ao PCI, seguiuum caminho análogo ao da intelectua-lidade italiana diante da “crise do mar-xismo”, ou seja procurou em Bobbio ouem Habermas uma via de superação,deixando Gramsci em segundo plano eLukács abandonado, tendo manifestadosua adesão à dissolução do PCI.

O dilacerante debate ocorrido na Itá-lia sugeria o predomínio daqueles queentendiam ser um autor datado e supera-do pela história, sendo identificado como neo-idealismo filosófico e como umantidemocrático. O núcleo da disputatem ficado no campo das questõesfilológicas e indica a derrota ideológicado marxismo de Gramsci, teórico da re-volução socialista. De outra parte, a po-lêmica no Brasil se ressentiu fortementeda ausência da disponibilidade da edi-ção crítica dos Cadernos, limitado àquelaincompleta edição temática, quando nãoa textos de comentadores, reduzindo acompreensão dos escritos de Gramsci.

As dificuldades editoriais para pu-blicar no Brasil a edição crítica dos Ca-dernos do cárcere, composta por Valenti-no Gerratana parecem haver estimuladoCarlos Nelson Coutinho a intentar umaversão que tem muito de inédito, embora

preserve o fundamento da edição temá-tica. A edição, agora lançada no Brasil,informa o leitor da data de redação dosdiferentes cadernos carcerários, como faza edição lançada pelos Editori Riuniti em1977, com apresentação de LucianoGruppi, e separa os cadernos miscelâneosdos cadernos temáticos, conforme a su-gestão de Gianni Francioni, crítico con-victo da edição de Gerratana.

Essa forma de publicação certamen-te traz também consigo uma determina-da leitura desse que sem dúvida é o maiorconhecedor da obra de Gramsci no Bra-sil. O volume apresenta os cadernos 11e 10 que tratam de Filosofia e do pensa-mento de Benedetto Croce, além dos tex-tos dos cadernos miscelâneos que tratamde temas conexos. A pesada dúvida quepermanece é se essa edição será capazde sanar a lacuna de uma leitura da obrade Gramsci que possibilite a compreen-são de sua dialética construtiva da críti-ca do real e dos conceitos, sem que sur-jam aparentes contradições. Seria a úni-ca forma de superar a vulgarização e asleituras ideológicas que se esforçam porfazer de Gramsci um autor de esquerdapalatável até para a grande imprensa neo-liberal, e que ocultam o continuador daagenda teórica de Lenin – enriquecida pelonexo com Maquiavel –, defensor da fun-dação de um Estado operário e da eman-cipação da humanidade de todos grilhõesdo capital.

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Noam ChomskyThe new military humanism – lessons from Kosovo. Monroe, Common Courage Press, 1999.João Roberto Martins Filho (professor de Ciência Política da UFSCar).

Desde os tempos da Ilíada – ondePáris é chamado de “covarde”, porquesua arma típica era o arco – aqueles que,na guerra, preferiam matar à longa dis-tância eram vistos como soldados de se-gunda categoria. Como cantavam gregose romanos, o verdadeiro herói suplanta-va o inimigo em confrontos nos quais oscontendores corriam igual risco. Não poracaso, a lança era considerada a arma porexcelência entre os antigos; os guerrei-ros medievais apresentavam os torneiosde arco e flecha somente como distra-ção secundária dos torneios de cavalariae as armas de fogo, durante séculos, fo-ram desprezadas por permitir ao atira-dor ferir o inimigo sem risco próprio.1

Também por este ângulo, a recenteintervenção militar na Iugoslávia mereceum lugar especial na história da guerra.E, no entanto, por toda parte ouviram-selouvores à eficácia dos comandantes daOTAN, chefiados por Clinton, Blair – eoutros “líderes mundiais” menos famo-sos –, porque mandaram chover sobre aSérvia, semana após semana, as sofisti-cadas flechas contemporâneas, dispara-das de tal distância e com tal margem desegurança que seria necessário ressusci-tar Homero para fazer justiça a esse novotipo de covardia em “combate”.

O motivo do esquecimento foi,como se sabe, um só: a guerra de 1999,

como nos explicaram à exaustão autori-dades, jornalistas e intelectuais, foi umcaso diferente. Feita pelos poderosos, seuobjetivo foi defender os indefesos. Nessesentido, o tom das declarações de apoiopode ser sintetizado nas palavras de VaclavHavel ao New York Review de 10-6-99,reproduzidas por Chomsky na página 88de seu livro: “Há algo que nenhuma pes-soa razoável pode negar: esta é provavel-mente a primeira guerra que não foi mo-vida em nome de ‘interesses nacionais’,mas em nome de princípios e valores”.

É contra essa tese que se ergue NoamChomsky em The New Military Huma-nism. Para ele, a justificativa para aintervenção de março de 1999 na Iugos-lávia é a mais recente versão do estratage-ma de vestir os rudes interesses das gran-des potências com as vistosas vestimentasdos valores universais. Nesse sentido, nãohá nada de novo entre o céu e a terra.

Como lembrou em outro livro Gio-vanni Arrighi, a dominação mundial dasgrandes potências jamais dispensou orecurso à hegemonia, vale dizer, à “capa-cidade de alegar com credibilidade que(sua) expansão (...) servia não apenas aseu interesse nacional, mas também a uminteresse ‘universal’”.2 De tal modo, noséculo XIX, o Reino Unido foi o maissonoro porta-voz do livre-cambismo, osEUA do presidente Wilson o defensor do

1 Como se pode ler em Ariosto, Cervantes, Shakespeare e Milton. Ver Martin Van Creveld, Thetransformation of War, New York, The Free Press, 1991, p. 80 e segs.

2 O longo século XX, Rio de Janeiro/São Paulo, Contraponto/Unesp, 1996, p. 56.

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unimundismo e a potência norte-ameri-cana atravessou a guerra fria fazendo-sepassar por paladina do “mundo livre”.3

No entanto, o livro parece apontar paraum outro aspecto: a julgar pela lista deintelectuais progressistas que apoiaram aguerra, o humanitarismo teve estréia mun-dial bem-sucedida. Por isso, Chomsky levao argumento humanitário a sério, vale di-zer, como ideologia que merece ser exa-minada com rigor e criticada com minúcia.Assim, mais do que simples farsa e argu-mento justificatório, o humanismo militarseria, neste final de milênio, o mais sériocandidato à ideologia hegemônica do sé-culo que se avizinha.

Para o autor, o novo ideário apresen-ta-se escorado em dois alicerces: por umlado, a idéia de que o mundo pós-guerrafria se divide em dois campos: um pe-queno grupo de nações “esclarecidas” ecivilizadas (o Norte) e o resto (o Sul, comseu cortejo de nações desordeiras e poucoconfiáveis). Para esta imensa maioria dospaíses, os antigos princípios de soberaniae autonomia nacionais perderam totalmen-te o valor. As próprias noções de direitointernacional e de um quadro de arbitra-mento centrado na Organização das Na-ções Unidas estariam ultrapassadas.

Por outro lado, o humanitarismocomo ideologia vem acompanhado deum imenso esforço da mídia para silen-ciar as vozes discordantes, que procuraexpor ao ridículo qualquer intelectualque ouse duvidar das boas intenções deBill Clinton e Tony Blair. O argumentoprincipal aqui é que não é possível recor-rer aos acontecimentos internacionais doperíodo anterior aos anos 90 para denun-ciar os EUA e seus aliados. No mundo

atual – como disse Havel –, não mais vi-goram os interesses. Trata-se de umanova era, que deve ser analisada dentrode limites temporais bastante precisos.

Grande polemista e excelente filóso-fo, Chomsky aceita na maior parte dolivro este limite. Exime-se assim repeti-das vezes de analisar o histórico de vio-lações dos direitos humanos dos países“esclarecidos”. Enfrenta o debate comas armas propostas pelos adversários.

Assim, de início, a pequena obracentra-se no surgimento do novo huma-nitarismo e defende dois pontos-chaves:1) o ataque à Iugoslávia foi o motivo efe-tivamente desencadeador da faxinaétnica movida por Milosevic contra oskosovares e 2) a guerra aumentou emescala vertiginosa as baixas no lado sér-vio e no lado albanês. Das três opçõespossíveis diante de situações de viola-ção flagrante dos direitos humanos – a)agir para agravar; b) ignorar a situação enada fazer e c) mitigar a catástrofe – osEUA e a OTAN escolheram a primeira.

Em seguida, Chomsky faz um históri-co da situação na Iugoslávia e no Kosovona década anterior à guerra. Mostra comoa marginalização do problema kosovarna conferência de Dayton (1995) – reali-zada sob hegemonia dos EUA – levou àradicalização do conflito e ao fortale-cimento da alternativa violenta pregadapelos guerrilheiros do Exército de Liber-tação do Kosovo (ELK). Este, por sua vez,optou claramente pela estratégia de atraira OTAN para o conflito. O massacre deRacak (15-1-99) forneceu o pretexto finalpara a intervenção humanitária.

O livro expõe depois as incongruên-cias dos Estados Unidos como campeão

3 Idem, p. 66 e segs.

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do humanitarismo. Para ficar apenas nosanos 90, cita o apoio ao sangrento regi-me da Turquia – o maior comprador dearmas do mundo –, a falta de uma atitu-de clara contra as medidas da Indonésiano Timor Leste, a política americana naColômbia, a vigorosa recusa dos EUAem assinar o tratado internacional con-tra as minas terrestres, o abandono daÁfrica, entre outros exemplos. Em suma,um humanitarismo de fachada, quedesaparece diante de atitudes de paísesaliados ou de temas que contrariam osinteresses da superpotência. Feitas ascontas, são raríssimos – e quase sempreacontecem de forma não intencional –os casos de intervenções militares comconseqüências humanitárias.

Por outro lado, ao violar o sistemavigente de direito internacional, a guer-ra de 1999 abriu um perigoso preceden-te. Antes da intervenção, os próprios alia-dos europeus – com a exceção óbvia daGrã-Bretanha – criticaram o belicismode Madeleine Albright no encaminha-mento da questão do Kosovo. Depois dapaz, ficaram evidentes os intuitos dosEUA de não aceitar limites impostos pelaONU à força da OTAN no Kosovo. Aunanimidade produzida na mídia mun-dial preferiu, no entanto, ignorar que aproposta apresentada na conferência deRambouillet no início de 1999 significa-va na prática a aceitação pela Iugosláviade uma intervenção militar da OTAN noKosovo. Para complementar essa estra-tégia de silêncio, a proposta alternativada Assembléia Nacional da Sérvia desa-pareceu completamente no debate sobreos antecedentes da guerra. De tudo isso,chega-se à conclusão de que não inte-ressava aos EUA explorar a via diplo-

mática. Seus interesses apontavam paraa guerra, com o objetivo de fortalecer aOTAN, submeter o vilão Milosevic – e oincômodo exemplo de independência daSérvia – e mostrar os músculos da su-perpotência, conseguindo de quebra evi-denciar aos americanos que não é horade desarmar o arsenal construído pelosEUA durante a guerra fria.

Assim, as duas grandes heranças doepisódio da Iugoslávia foram o preceden-te de intervenção à revelia do Conselhode Segurança da ONU e a eficácia do hu-manitarismo como ideologia hegemônicano limiar do século XXI. O livro terminacom citações de algumas vozes dissiden-tes em cantos afastados do mundo: na Ín-dia, no Egito e em Israel raros intelectuaistentaram mostrar os riscos colocados peladoutrina dos países “esclarecidos”.

De resto, a própria marcha dos acon-tecimentos desnudou recentemente onovo humanitarismo. No começo de ju-lho deste ano, a BBC de Londres levouao ar ampla reportagem sobre o relató-rio da comissão que examinou as condi-ções que cercaram o massacre de Ruan-da, em 1994. A principal conclusão: osEstados Unidos e a França poderiam terevitado o massacre, se apenas fizessemvaler sua influência. Clinton e Albright,ainda assombrados pelo episódio damorte de dezoito soldados americanos naSomália, deixaram os africanos à suaprópria sorte. Indignado, um dos mem-bros da comissão afirmou: “Pessoalmen-te, eu gostaria de saber como a senhoraMadeleine Albright pode conviver comessas constatações”. A resposta talvezseja simples: guardando antes de deitara roupa vistosa do humanitarismo. Edormindo o sono dos justos.

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Isabel LoureiroHebert Marcuse: a grande recusa hoje. Coleção Zero à esquerda. Vozes, 1999.José Corrêa Leite (editor do jornal Em Tempo).

Sob que bases teóricas podemos pen-sar o socialismo e a revolução nas con-dições atuais do mundo? As referênciaspara isso são bastante diversas das queprevaleceram na esquerda ao longo dequase todo o século XX – uma era queterminou melancolicamente com o co-lapso da União Soviética em 1991. Vi-vemos em uma época histórica nova,profundamente diferente daquela que seestruturava até duas décadas atrás. Astradições teóricas e políticas da esquer-da legadas por este período, seus diag-nósticos da sociedade e suas propostassão submetidas a um debate renovado,que deve revelar a atualidade ou eviden-ciar o anacronismo (e os equívocos) decada concepção.

O pensamento de Herbert Marcusevem demonstrando uma enorme vitali-dade. Nas condições do capitalismo soba globalização neoliberal, as análisesproduzidas por Marcuse em Eros e civili-zação na década de 50 e em O homemunidimensional na década seguinte – bemcomo, diga-se de passagem, o elaboradotambém nos anos 60 por Guy Debord emA sociedade do espetáculo – se tornaramreferências incontornáveis para pensar omundo em que vivemos hoje e comoorganizar aí a luta socialista.

Isso ajuda a entender o espaço quesua obra vem recuperando. Recentemen-te, os dois volumes de Cultura e socie-dade (o primeiro com textos dos anos 30e o segundo com escritos dos anos 60) ea coletânea Tecnologia, guerra e fascis-

mo, organizada por Douglas Kellner, queagrupa textos dos anos 40, vieram se so-mar a outras obras importantes de Mar-cuse – inclusive Razão e revolução, Omarxismo soviético, O fim da utopia eContra-revolução e revolta – publicadasno Brasil nos anos 60 e 70.

Agora, Isabel Loureiro nos brindacom uma importante coletânea de textosdo pensador alemão. Herbert Marcuse:a grande recusa hoje tem, todavia, umcaráter bem diferente das anteriores. Elacompreende textos de Marcuse dos anos60 e 70, palestras em reuniões com estu-dantes, ásperas trocas de correspondên-cia com Heidegger (em 1947/48) e Ador-no (em 1969), entrevistas (a última de1980), intervenções em debates e doisartigos de Peter-Erwin Jansen que con-textualizam algumas questões. A obraserve de introdução acessível ao pensa-mento de Marcuse para as novas gera-ções políticas; a partir destes textos, oleitor pode enfrentar com muito maisfacilidade as obras clássicas do pensa-dor da “grande recusa”.

Mas A grande recusa hoje é, ao mes-mo tempo, uma releitura e uma defesado projeto político de Marcuse, a partirdo reordenamento de seu discurso porIsabel Loureiro. Assim, para além dahábil escolha dos textos, o que cabe des-tacar é o pensamento que neles se ex-pressa. Ele permite respondermos comclareza à questão de por que Marcuse éimportante para a esquerda revolucioná-ria da atualidade.

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Em primeiro lugar, porque na gran-de tradição da Escola de Frankfurt, quecada vez mais se coloca no centro docampo teórico marxista do século XX,Marcuse representa, em oposição a Ador-no e Horkheimer, o esforço permanentede articular teoria e prática. Sua obra é, deconjunto, uma elaboração política que serecusa a aceitar, como fazem os autoresde A dialética do esclarecimento, umasituação de impotência em transformaro mundo; Marcuse procura de todas asmaneiras as mediações para viabilizar aluta socialista nas condições adversas dasociedade “unidimensional” (ou “admi-nistrada” ou do “espetáculo” ou ainda do“capitalismo tardio”), que empreendeuma “dessublimação repressiva”.

Em segundo lugar, porque Marcusecoloca no coração de suas reflexões (eisso fica muito evidente em A granderecusa hoje) uma série de questões deenorme candência no debate teórico-po-lítico atual. A valorização da redução dajornada de trabalho e do tempo livre, aimportância da ecologia, o questiona-mento do progresso como desenvolvi-mento das forças produtivas, a problema-tização do significado das mudanças téc-nicas, a articulação entre arte e política,o questionamento do papel revolucioná-rio do proletariado e a busca de novossujeitos revolucionários, a crítica doconsumismo e a análise da construçãopelo capitalismo de uma subjetividadedócil à dominação, a distinção entre ne-cessidades verdadeiras e falsas, a rebe-lião contra o sistema, são todos temasfortes no seu pensamento. A obra deMarcuse não envelheceu, ganhando, pelocontrário, uma atualidade renovada.

Em terceiro lugar, porque Marcuseenfrentou com sucesso o desafio de arti-

cular os campos teóricos do marxismo eda psicanálise. Pode, dessa maneira, des-vendar o processo dialético pelo qual sedá a formação social da subjetividade epelo qual essa subjetividade reproduz osistema.

É neste ponto que recai boa parte dascríticas ao trabalho teórico de Marcuse:é possível integrar marxismo e psicaná-lise sendo fiel a ambos? Mas o queMarcuse fez não foi combinar duas teo-rias, mas sim articular um marco de aná-lise mais amplo, capaz de integrar os doiscampos epistemológicos e teóricos, emque as duas teorias poderiam ser desen-volvidas mas não mais de forma separa-da. Não é mais possível manter o mes-mo otimismo antropológico de Marxdepois das descobertas de Freud. Mastambém não é possível aceitar a natura-lização positivista da psique, pela qual ofundador da psicanálise buscou com-preender suas descobertas; a psique é estru-turada social e, portanto, historicamente.Daí Eros e Thanatos poderem deixar deser pulsões de fundo biológico (e, em con-seqüência, invariantes), como em O mal-estar na civilização, para se tornarem ten-dências e potencialidades históricas, uma“segunda natureza” social (como aliáspode ser lida a análise de Norbert Elias do“processo civilizador”).

Em uma entrevista de 1980, reprodu-zida em A grande recusa hoje, Marcusecomentava sobre o movimento feminis-ta: “Tomo como pressuposto que há defato qualidades femininas que se contra-põem antiteticamente às dos homens. Porexemplo: maior receptividade, maiorcapacidade emocional, menor violência.Ora, contra isso se objeta constantemen-te que essas são qualidades produzidassocial e historicamente, que ninguém

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sabe se pertencem à natureza da mulher.A isso respondo: tanto faz. De qualquermaneira elas estão aí e tornaram-se umasegunda natureza e devem ser valorizadascomo uma segunda natureza” (p. 20-21).

Se Marcuse procede da mesma ma-neira em sua aposta na vitória de Eros,da vida e do amor, através do estabeleci-mento de uma sociedade emancipada, épor conceber uma história aberta, em que

esta aposta pode ser feita – uma liçãoimportante nestes tempos de passivida-de e conformismo. Sua antropologia é aúnica que, incorporando o legado deFreud sem traí-lo, permite que visualize-mos uma ordem social que deixe de sebasear na repressão, uma sociedade fun-dada no tempo livre no qual as potencia-lidades humanas possam ser desenvolvi-das e realizadas.

1 Neste caso específico é fundamental a referência ao livro de Ângela de Castro Gomes. A invençãodo trabalhismo. Rio de Janeiro: Vértice, 1989.

Adalberto ParanhosO roubo da fala – origens da ideologia do trabalhismo no Brasil.Boitempo Editorial, 1999.Lucília de Almeida Neves (professora da PUC, Minas Gerais)

A produção historiográfica brasilei-ra sobre o período do Estado Novo ébastante ampla. Na verdade, não só his-toriadores, mas cientistas políticos, so-ciólogos e antropólogos têm se dedica-do a interpretar o período sob os maisvariados ângulos. Proliferam títulos queabordam a referida conjuntura através deanálises que tratam do pensamento auto-ritário gestado e consolidado nos anosVargas, da questão nacional, da censura,da literatura, do projeto cultural do gover-no, do planejamento e intervencionismoeconômico do Estado, da relação do gover-no com as diferentes classes sociais, dapropaganda estado-novista, da atuação doaparelho coercitivo do Estado, dentre tan-tos outros temas que compõem um insti-gante caleidoscópio de realidades múlti-plas e integrantes de um período históricoessencial ao entendimento da realidade

republicana brasileira no presente século.Portanto, escrever sobre o primeiro

governo Vargas e, em especial, sobre oEstado Novo, é um desafio real. Corre-se, no mínimo, o risco de a abordagemse constituir em um texto recorrente, senão repetitivo. Paranhos não se recusoua enfrentar esse desafio. E o fez com es-pecial renovação e consistência analíti-ca. Seu livro O roubo da fala – origensda ideologia do trabalhismo no Brasil,revisita um tema já explorado, inclusivepor algumas obras que se tornaram clás-sicas.1 Sua abordagem, contudo, é cria-tiva, instigante e polêmica, trazendo novacontribuição para um melhor e maisembasado conhecimento histórico sobrea obra de Vargas e sobre seu legado paraos tempos históricos que sucederam seuprimeiro governo como presidente daRepública brasileira.

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São duas as melhores surpresas do tex-to, sem excluir, além disso, a limpidez, oestilo e a fluência da redação que tornama leitura do livro bastante agradável.

Em primeiro lugar, há que se aludirao referencial teórico que sustenta doprincípio ao fim as análises que com-põem o conjunto do livro. Retomandoautores e conceitos clássicos do marxis-mo, Paranhos leva-os a dialogar comnovos conceitos criados pela renovaçãohistoriográfica que marcou o século XX.Dessa forma, seu campo teórico princi-pal é o do marxismo, traduzido pela pre-sença constante desde a introdução dolivro até as suas considerações finais deconceitos tais como: estado, classes so-ciais, lutas de classes, hegemonia, ideo-logia. Na verdade, o suporte teórico prin-cipal do texto é gramsciano. Incorpora deGramsci aquilo que ele tem de mais ino-vador em relação ao próprio marxismo,ou seja, uma abordagem que elege o ter-reno da política como sendo um espaçofundamental de conflitos, de construçãode consensos, de realização da hege-monia e de reprodução da ideologia.

Quanto aos autores cujo campo deanálise não é prioritariamente marxista,busca contribuições em Roger Chartier,Roland Barthes, Michel Foucault e CarloGinsburg. Desses autores destacam-seprincipalmente duas contribuições: so-bre o conceito de mito, buscada emBarthes, e sobre o de circularidade cul-tural, fortemente inspirada em Ginsburg.

Em segundo lugar, cabe destacar autilização criativa de metáforas, a co-meçar pelo próprio título – O roubo dafala – e de letras de músicas da época.São palavras ou versos musicais que re-tratam, através da arte popular, o proces-so de grande transformação por que pas-

sava o Brasil nos anos trinta: moderni-zação, industrialização, disciplinarizaçãodo trabalho, forte sentimento de hierarquia,construção de um projeto de forte identi-dade nacional... Tudo isso alimentandoum processo histórico dinâmico, que serecriava dialeticamente no cotidiano dahistória, e que considerava como um deseus sujeitos históricos mais ativos asdiferentes classes sociais que se relacio-navam naquela conjuntura específica.Classes sociais que terão no Estado nãosó um arguto interlocutor, mas principal-mente um ágil sujeito, capaz de incor-porar às políticas públicas a voz dos tra-balhadores. De fato, para Paranhos, ogoverno Vargas reconheceu e considerouas reivindicações operárias, mas delas seapropriou, “redirecionando-as” – comoelementos integrantes a um projetoeconômico que não foi espelho fiel desuas reivindicações.

Após as considerações tecidas, quetratam de aspectos constantes de todo olivro, cabe analisar o que se constitui noponto nevrálgico, central da hipótese deParanhos, em torno da qual constrói umagama de argumentações destinadas a dar-lhe maior consistência. Em resumo, aidéia central do autor refere-se à ques-tão ideológica, que por si mesma se cons-titui uma tarefa árdua em sua abordagem,pois o terreno da ideologia pode se tor-nar fluido e escorregadio, caso não ve-nha a ser tratado com a consistência teó-rica que um assunto tão complexo econtrovertido requer.

Para o autor, a ideologia do trabalhis-mo, fundamento maior da construção domito varguista, não surgiu como um pas-se de mágica na década de 30. Muito me-nos se constituiu a partir de um ímpetocriativo de Vargas e dos intelectuais or-

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gânicos autoritários que alimentaram ogovernante de novas idéias sobre nação,hierarquia, disciplina, centralização,antiliberalismo, valor do trabalho e mo-dernização. Sua origem, como já ante-riormente afirmado por Gomes, em obracitada nesta resenha, retoma décadasanteriores. Cabe lembrar que, entre 1910e 1914, os anarquistas tiveram forte pre-sença nas lutas do nascente operariadobrasileiro, e que na década de 20, os co-munistas, embalados pelo êxito daRevolução Russa de 1917, tornaram-seespecialmente reivindicativos. Em decor-rência, em ambos os períodos as lutasdo movimento operário, apesar derestritas a algumas cidades do país, al-cançaram efetiva repercussão. Além dis-so, trabalhadores, que se inspiravam notrabalhismo inglês e na possibilidade deuma terceira via, também levantaram,mesmo que de forma mais suave, sua voz.Paranhos, conseguiu captar muito bemo significado histórico desses movimen-tos e concluiu que a ideologia dotrabalhismo, que foi elaborada e reela-borada, conforme o movimento da his-tória, ao longo dos quinze anos do pri-meiro governo Vargas, incorporou e seapropriou do discurso ideológico dasclasses dominadas, tanto no período queprecedeu a chegada de Getúlio Vargas aopoder, quanto no decorrer do própriogoverno Vargas.

Dessa forma, como afirma CaioNavarro de Toledo no Prefácio ao livro,a ideologia do trabalhismo é identificadapelo autor como “uma fala roubada aostrabalhadores na medida em que é o re-sultado de um processo de assimilação/apropriação/ressignificação da produçãosimbólica e ideológica das classes traba-lhadoras”. Todavia, Paranhos não apre-

senta um entendimento simplista e linearde que ideologia é tão-somente manipu-lação e apropriação. Entende que o “tra-balhismo é um eco distorcido do movi-mento operário”, visando alcançar a pazsocial necessária à implementação do pro-cesso de modernização industrializanteque o governo projetava para o Brasil na-queles anos. Mas entende também que semganhos efetivos, sem materialização deconquistas que signifiquem melhorias nascondições de vida, não há como se conso-lidar ideologias na mente da população tra-balhadora e muito menos não há como sereproduzir a própria ideologia, ou até mes-mo torná-la hegemônica.

Para desenvolver esse raciocínio, bus-ca inspiração no conceito de circulari-dade de Ginsburg e afirma que há umapermanente influência das ideologias dasclasses dominadas na produção dasideologias dominantes. Não só no terrenoda apropriação de conceitos, mas tam-bém no de atendimento a determinadasdemandas. Com certeza, em nossso en-tendimento, somente assim é possívelconstruir-se algum tipo de legitimidadegovernamental junto aos governados. As-sim o foi com Vargas. Na verdade, o mitoda doação, fundamento maior do que sepode denominar de trabalhismo getulis-ta, só alcançou eficácia pois, como bemdiz Paranhos, não atuou no vazio. Direi-tos foram concedidos, mesmo que o go-verno tenha buscado, e muitas vezes con-seguido, transformá-los em instrumentode tutela.

O autor abre a introdução de seu livrocom um belo cartão de visita: a letra damúsica Três apitos, de Noel Rosa. Trata-se de um poema da música popular brasi-leira que aparentemente fala sobre umamor pouco correspondido, mas que na

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verdade retrata com maestria o cotidianode urbanização e industrialização do paísnos anos 30. Retrata também a hierar-quização e a disciplinarização integrantesdessa nova faceta industrializada do país.Um país que não está à deriva, que “ga-nhou” novas leis de proteção ao trabalho,leis que, além de sua eficácia econômica,têm um efetivo poder de sedução sobreuma população até então desamparada esujeita às oscilações do mercado.

Na própria introdução, Paranhosapresenta uma visão do movimento dahistória bastante perspicaz: a de um pro-cesso permeado por conflitos e em per-manente construção. Dessa forma, otrabalhismo gestado ao longo dos anos30 alcançará, para o autor, eficácia maiornos primeiros anos da década de 40, apósum período em que se constituiu comouma “obra aberta”, esculpida pelo mo-vimentar incessante do próprio processohistórico. Essa proposição é retomadacom maior densidade no capítulo II, queé precedido, no capítulo I, por um beloestudo sobre a ideologia autoritária (diga-se a obra de Azevedo Amaral e outrosintelectuais orgânicos do autoritarismo).No capítulo III o autor analisa o carátermobilizador/imobilizador da ideologiatrabalhista e no capítulo IV desenvolveo que se pode considerar a essência desua argumentação, ou seja, analisa osprincípios e fundamentos da ideologiatrabalhista.

Como se não bastasse, tece, nas con-siderações finais, através de uma análi-se da bibliografia sobre o tema, densascríticas a alguns autores, que incorremno que considera os principais equívo-cos presentes em inúmeras obras que sededicaram a analisar o trabalhismo e oEstado Novo. Ou seja, Paranhos discor-da de historiadores e cientistas políticosque identificam a classe operária dosanos 30 e 40 como silenciosa, presa àmanipulação governamental, incapaz deesboçar qualquer resistência, marcadapor uma ausência de história própria. Emsuma, podemos concluir que, ao finali-zar seu livro, destaca uma interpretação,com a qual compartilhamos integral-mente, de que a classe operária, atravésda circularidade/troca de influênciascom o Estado, foi sujeito histórico pre-sente no cenário político nacional. Emdecorrência, foi altamente consideradapor um governo que, paradoxalmente,teve como sua marca maior o auto-ritarismo.

Por fim, vale ressaltar que as análisesde Paranhos vêm acrescentar novas luzesao que de melhor se tem publicado sobreos anos 30 e sobre o trabalhismo, des-tacando-se os trabalhos de Maria CéliaPaoli2, Jorge Ferrreira3, Maria HelenaCapelato4 e o já citado livro, A invençãodo trabalhismo de Ângela de CastroGomes.

Para finalizar, retomaremos análise

2 Paoli, Maria Célia. “Os trabalhadores urbanos na fala dos outros” in Lopes, José Sérgio Leite (coord.)Cultura e identidade operária. São Paulo, Rio de Janeiro: Marco Zero, 1987.

3 Ferreira, Jorge. Trabalhadores do Brasil. O imaginário popular. Rio de Janeiro: Getúlio Vargas, 1997.

4 Capelato, Maria Helena. Multidões em cena – propaganda política no varguismo e no peronismo.Campinas: Papirus, 1998.

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do próprio Paranhos sobre o trabalhismo.O autor considera que por sua dimensão erepercussão constituiu-se como uma “re-ligião civil” . Marcada por paradoxos, aideologia do trabalhismo apresentava

duplicidade: imobilizava e chamava àmobilização. Marcou, todavia, de formapeculiar um tempo histórico no qual oEstado não pôde fechar seus ouvidos àsvozes do trabalho.

Carlos Eduardo Jordão MachadoUm capítulo da história da modernidade estética: debate sobre o expressionismo. São Paulo,Fundação Editora da UNESP, 1998.Fernanda Pitta (doutoranda do IFCH, Unicamp).

O livro de Carlos Eduardo JordãoMachado faz uma reconstrução esmera-da do debate em torno do expressionismoalemão, ocorrido nos anos de ascensãodo nazismo imediatamente precedentesà eclosão da II Guerra Mundial. A partirdas posições e argumentos de seu maisimportante crítico, Georg Lukács, dedefensores como Ernest Bloch, além departidários das vanguardas como BertoltBrecht, e de Walter Benjamin, o autorexpõe em detalhes as ambigüidades epontos cegos deste que é um dos maissignificativos movimentos das vanguar-das históricas – talvez aquele que me-lhor expressa a complicada relação en-tre arte e política na modernidade.

No Expressionismo, propostas esté-ticas e ideológicas opostas se mesclaramnum caldo explosivo. O que Machadofaz, apoiado em textos que traduziu aten-tamente (que, por sua importância, jávaleriam o livro), é um ótimo trabalhode reconstrução histórica, preocupando-se em explicar conceitos e posições es-téticas e teóricas, evitando tratar o mo-mento histórico em que eles surgemcomo mero “contexto” decorativo.

A posição desses autores foi orques-

trada por Machado para explicar os an-tecedentes da polêmica em torno doexpressionismo na revista Das Vort, ini-ciada em 1937 por Klaus Mann, com oartigo intitulado o “Caso Benn”. Nessadisputa, que se estende por vários nú-meros da revista e conta com diversosinterlocutores, alguns representantes daesquerda alemã condenaram o expressio-nismo por acreditarem que ele comparti-lhava o mesmo espírito do fascismo. Ou-tros repreenderam especificamente astentativas feitas por intelectuais alemães,especialmente Gottfried Benn, mas tam-bém Stefan George, de aproximar o ex-pressionismo ao nazismo, justamente nomomento em que a arte expressionista eraestigmatizada como “arte degenerada”.

Outra ala da esquerda sai em defesado movimento ou por considerá-lo es-sencialmente antifascista, lembrando queparticipantes como Brecht, Wolf e Zechtornaram-se antifascistas radicais, afir-mando que o expressionismo não poderiaser pensado fora do contexto das vanguar-das européias ou separado de sua oposi-ção à guerra e sua luta pela democracia.Faz-se também a defesa de seu anticapi-talismo, do espírito de revolta e crítica.

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Lukács entrará nesse debate reforçan-do a idéia de que o expressionismo tinharelações com o fascismo (idéia que jávinha sendo elaborada por ele desde oinício da década de 30). Curiosamente,ele retoma em sua crítica alguns dos ar-gumentos que os hitleristas utilizavam noataque a essa vanguarda, avaliandonegativamente os elementos presentesnas obras expressionistas, tais como afuga da realidade, o “decadentismo” bur-guês, a falta de perspectiva e sentido navida. Mas sua crítica, em vez do dogma-tismo dos nazistas, respaldava-se numaconcepção própria da autonomia da obrade arte como uma totalidade coerente,que se afastava tanto das vanguardasquanto do realismo socialista (concep-ção essa que viria a ser a base de todo oseu antivanguardismo).

Machado desenvolve com pertinên-cia essa apreciação lukacsiana da cultu-ra como fenômeno inseparável da totali-dade da realidade objetiva, mostrandocomo sua posição vai se articulando desdeas “Teses de Blum”(1928) até “O GrandeHotel ‘Abismo’” e “Grandeza e decadên-cia do expressionismo”(1934), culminan-do no texto que se soma ao debate em DasVort, “Trata-se do realismo!”(1938).

Para Lukács, a criação artística devereproduzir o real em sua integridade etotalidade, não somente em sua imedia-tez. Seu julgamento acerca da qualidadeda arte a valorizava ou não na medida desua relação com a representação da reali-dade, superando a “aparência” da impos-sibilidade de conhecê-la. Desse modo, acondenação do expressionismo se justi-ficava, dentro de sua teoria, pelo fato deo movimento se afastar da forma realis-ta. Lukács entendia esse afastamentocomo a essência e a tragédia da arte

moderna. A recusa da realidade expri-miria verdadeiramente o ódio, o horrore o desprezo pelo regime político e so-cial da época, mas também uma aliena-ção de classe do artista burguês. Umavisão total do processo real adquirida napráxis seria o que poderia dar novamen-te às obras de arte moderna uma signifi-cação épica, isto é, coerente, da vida.

Lukács reconhecia que as caracterís-ticas da modernidade se impõem objeti-vamente às consciências, como ideolo-gia, impedindo o acesso à realidade dasrelações sociais e ao seu significado. Masa contingência da vida moderna seriamera aparência, a ser superada atravésdo método realista. Pois o “verdadeiroartista” deveria saber distinguir entre aessência objetiva do mundo e sua apa-rência. As experiências artísticas da mo-dernidade não tinham para ele nenhumavalidade estética porque canonizavam aexperiência subjetiva do artista, fazendoa deformação do mundo passar porfundamento de toda realidade.

Os argumentos em defesa da heran-ça expressionista viriam afirmar, ao con-trário, que os fenômenos da modernidadenão eram mera aparência a ser descartada.Benjamin e Bloch, por exemplo, com-partilhavam a idéia de que a impossibi-lidade da representação realista era re-sultado de uma mudança estrutural naexperiência, não de sua deformação emfunção da realidade social do capitalis-mo tardio, como acreditava Lukács. Issoapesar de Benjamin não defender aherança expressionista nos termos deBloch, já que considerava significativa aconexão estabelecida por Lukács entreo expressionismo e o fascismo.

A leitura do livro de Machado nosproporciona entender a diferença no tra-

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tamento da arte moderna por parte des-ses autores em relação a Lukács. Elaparece residir em uma concepção daideologia como algo que informa aexperiência, devendo ser desvendada apartir do fenômeno ilusório particular enão como um véu a ser levantado a par-tir da reconstrução da totalidade. Seriapreciso partir de dentro da estrutura dofenômeno cultural para salvar seu con-teúdo de verdade em meio a sua ambi-güidade, não descartá-lo. Os grandesautores da modernidade podem ser re-cuperados (isto é, a sua herança pode serreapropriada, nos termos de Bloch, ou asua história pode ser escovada a con-trapelo, nos termos de Benjamin), por-que levaram até o limite a consciênciade sua classe através das imposições deseu fazer artístico. Pois para esses críti-cos a arte trabalha a matéria da ideolo-gia artisticamente e, nessa operação,mantém a possibilidade de desvendá-lae de reencontrar as aspirações malogra-das que a época histórica cunhou e nãopôde realizar.

A arte moderna foi capaz de revelaros meandros da ideologia precisamentequando a escondia, mimetizava ou inver-tia. Por esse motivo, passava a requerersua decifração objetiva, em descon-tinuidade com seus propósitos explícitos.O princípio da “arte pela arte” não po-deria mais ser encarado como mera fuga,deveria ser visto como uma estratégiaartística em tempos de repressão sociale da administração moderna do mundo.Assim, contrariamente ao que seria dese esperar, as constantes quebras da es-trutura realista, inauguradas pelas novasestratégias lingüísticas e perceptivas, tor-

navam-se ferramentas para expressar anova realidade. O “esteticismo” das ex-periências da arte de vanguarda servia àexpressão realista do novo estado de coi-sas. A fratura da forma realista, ou seja,a falta de organicidade e coerência domundo representado na obra de artemoderna, deveria ser entendida como im-possibilidade objetiva que se fundamen-tava no impasse histórico que o momen-to capitalista impunha às consciências,com a mudança no caráter da experiên-cia e a interiorização da forma-merca-doria na forma da consciência. A críticade arte moderna deveria centrar-se apartir de então justamente em uma lei-tura crítica dessas “fantasmagorias”. Vê-se, portanto, que esse nada mais era doque o terreno da crítica imanente, advo-gada por Lukács e curiosamente, comoaponta Machado, ausente em sua abor-dagem das obras das vanguardas.

Benjamin resumiu o problema que aarte moderna colocava aos seus críticos,afirmando a urgência de se perguntarpelo aspecto humano desses novos uni-versos formais. Pois se, fruto do progres-so técnico desenfreado, esses novos uni-versos deixaram de ser incorporados àhumanidade e se tornaram formas hostisa ela, a arte poderia ser exemplo para aconfiguração de uma nova experiênciana qual essas formas reencontrariam umlugar. Desse modo, a arte, considerada“refratária ao progresso”, poderia servirna determinação de seu verdadeiro nú-cleo. E não é o menor dos méritos dolivro de Carlos Eduardo Jordão Macha-do ter enveredado por esse caminho, aotrazer luz novamente à viva e ambíguatradição do expressionismo.